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SECCÇÃO II

Situações jurídicas em curso de constituição ou de extinção

Introdução

Na Secção anterior tratámos das SsJs (situações jurídicas) já constituídas (ou extintas)
quando entra em vigor a LN. Vimos, porém, que muitas vezes a constituição (ou extinção) duma
SJ (situação jurídica) se não opera uno actu, antes, ora requer a reunião de vários elemento
sucessivos que se vão produzindo no decurso do tempo, em diferentes momentos (assim o
casamento, a adoção, a sucessão testamentária, etc.), ora pressupõe uma certa duração dum
estado de facto contínuo (assim a usucapião e a prescrição extintiva, p. ex.). Por conseguinte, na
hipótese de a LN entrar em vigor antes de completado o processo constitutivo (ou extintivo)
mas no decurso deste, temos, por um lado, que ainda não existe uma SJ constituída que tenha de
ser respeitada pela LN e, por outro lado, que há elemento sde facto desse processo constitutivo
que se «localizam» sob a LA.
Surge então um problema que apresenta aspetos bem diferentes daquele que analisámos
na Secção anterior. Senão vejamos. Naquela Secção, pressupondo nós completada a fattisspecie
constitutiva ou integrada a hipótese legal desencadeadora do evento jurídico, tanto valia
referimos a regra do conflito do direito transitório à SJ enquanto entidade orgânica como referi-
la aos puros factos. Agora, perante este novo problema, temso que nos decidir: ou bem que a
dita regra de conflito tem por objeto factos, inorgânica e «atomísticametne» considerados, ou
bem que ele atem por objeto SsJs. Na primeira hipótese, o nosso problema reduz-se a saber que
lei aplicar aos factos passados pertencentes ao processo constitutivo em curso. E a regra de
conflito parece oferecer-nos uma resposta fácil e simples: aos factos passados aplica-se a LA (lei
antiga) – e, inversamente, aos factos novos aplica-se a LN (lei nova). Na segunda hipótese, o
nosso problema á se põe em termos diferentes, a saber: qual a lei competente para decidir sobre
a admissibilidade e sobre os requisitos da constituição daquela SJ em curso de formação: a LA
ou a LN? Agora temos uma questão jurídica única que apenas pode ser decidida por uma das
leis em presença, sob pena de o conflito de leis ficar por resolver – ou pela aplicação
cumulativa das duas leis, se esta solução for viável.
A aplicação cumulativa de ambas as leis, porém, na hipótese de a questão em debate ser
a admissibilidade ou a dos requisitos de constituição duma SJ, corresponderia a não aplicar o
regime de qualquer delas, mas um terceiro regime, obra do acaso, que se traduz em exigir a
concordância das duas leis quanto à admissibilidade da constituição da SJ e a verificação dos
precisos requisitos postos por uma e por outra a essa constituição. Ela equivale, portanto, a
dificultar a constituição da SJ. Quando bem pode acontecer que o propósito da LN seja
justamente o de facilitar essa constituição. Ora que importa o juízo da LA sobre o ponto se a SJ
vai nascer e viver sobre a LN? Por outro lado, a solução pressupõe uma aplicação da LN a
factos passados e da LA a factos novos, pois que os primeiros teriam que ser apreciados em face
da LN e satisfazer as exigências desta e os segundos teriam que ser apreciados por aplicação dos
critérios da LA e de corresponder a estes. Por todas estas razões, e sobretudo porque não parece
lícito aplicara a SJ em curso de constituição um regime diferente daqueles que foram previstos
pelo legislador na LA e na LN, deve afastar-se como de tudo inviável a solução do nosso
problema através da aplicação cumulativa das duas leis – que, aliás, não seria uma solução mas
uma fuga ao problema1.
Por conseguinte, concebendo a regra de conflito de direito transitório como referida a
SsJs, o nosso problema só pode pôr-se assim: qual das leis aplicar à constituição duma SJ em
vias de constituição, a LA ou a LN? Podemos adiantar que as soluções tradicionais dadas a
problemas deste tipo pela doutrina largamente dominante – excluindo apenas um ou outro autor
que, com AFFOLTER, afirmam o princípio da sobrevigência da LA como regra fundamental do
direito transitório – correspondem a uma aceitação do segundo termo da alternativa:
competência da LN para definir os pressupostos de admissibilidade e os requisitos de
constituição da SJ. Suponha-mos que, estando em curso um processo de casamento, sobrevém
uma LN nos termos da qual existe impedimento à celebração daquele casamento: o casamento
já não pode celebrar-se. Ou suponhamos que a LN vem exigir que a celebração tenha lugar com
intervenção dum oficial público, na Conservatória do registo civil: o vínculo jurídico já não
pode constituir-se através da celebração religiosa do casamento. Suponhamos que, feito um
testamento, o testador morre na vigência duma LN que recuso valida às disposições nele
contidas, em razão do seu conteúdo ou da pessoa do comtemplado: este já não ficará constituído
na situação de herdeiro do de cujus pro força do testamento. Suponhamos ainda que, estando a
correr o prazo de prescrição de certo crédito, sobrevém uma LN que declara imprescritíveis os
créditos daquela natureza ou exige por parte do prescribente o requisito da boa-fé, que se não
verifica no caso concreto: a prescrição já não pode consumar-se ainda que, segundo a LA,
faltasse apenas um dia para se completar o respetivo prazo. Imaginemos agora as hipóteses
inversas das precedentes: o casamento poderá ser agora validamente celebrado se o
impedimento, em face da LN, deixou de existir; pode ser celebrado na forma religiosa, se a LN
o permite; pode celebrar-se apesar da oposição formal feita por determinado indivíduo nos
termos da LA e sob esta aceite, se a LN bem retirar àquele indivíduo a faculdade de se opor
àquele matrimónio. Quanto ao testamento, haveria de ser considerado como válido se o testador

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Isto, é claro, apenas na hipótese focada no texto, ou seja, quando se refira a aplicação cumulativa das
duas leis à questão complexa da admissibilidade e dos requisitos da constituição da SJ.
viesse a falecer já na vigência duma LN que considerasse válidas as respetivas disposições, etc.
E também a prescrição passaria a correr e poderia vir a completar-se sob a LN, se esta viesse
considerar prescritível aquele direito de crédito, etc.; só que o respetivo prazo haveria de contar-
se apenas a partir da entrada em vigor da LN.
Tomemos agora alguns exemplos doutro setor: o dos atos ou negócios jurídicos que
necessitam, para que se tornem perfeitos (como elementos constitutivos, portanto), duma
aceitação ou duma autorização. Seja o caso duma liberalidade feita sob a LA mas ainda não
aceite à data da entrada em vigor da LN: se esta proíbe e fere de nulidade as liberdades daquele
tipo, o contrato já não pode aperfeiçoar-se. Imaginemos agora uma proposta contratual feita sob
a LA contendo cláusula válidas segundo esta lei (p. ex., uma cláusula de juros) mas proibidas
por uma LN que entra em vigor antes da aceitação da proposta ou, melhor, antes de a aceitação
ter chegado ao poder do proponente ou ser dele conhecida: o contrato já não pode formar-se
validamente e será havido por nulo (ou nulas as cláusulas que repugnam à LN, conforme os
casos). Suponhamos que a proposta contratual se referia ao arrendamento dum prédio indiviso e
fora feita pelo consorte ou consortes administradores sob uma LA que não exigia o assentimento
dos outros comproprietários: se, à data da entrada em vigor da LN, o contrato ainda não estava
perfeito, e esta lei vem exigir tal assentimento, só depois deste a SJ ficará constituída.
Suponhamos, por último, que uma LN vem exigir certas formas de publicidade, como o
registo ou a inscrição, para que dadas SsJs se possam considerar constituídas. Esta lei, só por si,
não afeta as SsJs do momento tipo constituídas antes da sua entrada em vigor; mas as SsJs cujo
processo de constituição ainda se não achava concluso nessa data, só depois da inscrição ou do
registo se poderão ser por concluídas. No caso inverso, isto é, se a LN vem, antes, dispensar
essa inscrição ou esse registo, há que distinguir conforme esses elementos sejam requeridos para
a constituição da própria SJ inter partes ou apenas para dar existência ou eficácia à mesma SJ
em face de terceiros2. No primeiro caso, se o registo ou a inscrição estão na dependência da
iniciativa ou da vontade dos sujeitos da SJ, esta continua por constituir enquanto se não
manifestar de novo, na devida forma, a vontade dos ditos sujeitos. No segundo caso, a SJ
constituir-se-á em face de terceiros na data da entrada em vigor da LN – isto na hipótese de já se
acharem realizados todos os outros elementos do processo constitutivo da SJ. Vem a propósito
notar que o facto de a LN dispensar certos elementos do processo de constituição duma SJ não
significa de modo algum que, no caso de se achar em vias de formação em SJ concreta desse
tipo, ela se tenha por imediatamente constituída com a entrada em vigor da LN se esta vem
dispensar o único elemento que faltava à sua formação. Isto não é assim, pelo menos, quando a
verificação desse elemento esteja na dependência da vontade das partes. Assim, se, pela LA, a

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Queremos referir-nos às formalidades de publicidade dos atos jurídicos relativos aos direitos reais.
Temos que distinguir, nestes casos, de um lado o ato jurídico (o contrato), que transfere a propriedade
entre as partes, do outro a formalidade da inscrição ou do registo, que a transfere em face de terceiros
(melhor: dá eficácia àquela transferência em face de terceiros).
propriedade se não transferia por força do contrato apenas mas exigia, além deste, a traditio, a
LN que vem atribuir ao contrato efeito translativo de direitos reais e dispensar a traditio não
pode atribuir efeitos translativos àquele contrato anterior e, por isso, a transferência da
propriedade da coisa continua na dependência da traditio ou dum novo contrato.
Cremos que se pode estabelecer a seguinte regra: às SsJs em via de constituição aplica-
se a LN, com ressalva, porém daqueles elementos do processo constitutivo que tenham um valor
próprio para fins de direito transitório. A principal dificuldade está justamente em determinar
quais sejam esses elementos do processo constitutivo que têm autonomia na perspetiva
cronológica.
Para nos esclarecemos quanto a este ponto precisamos, em primeiro lugar, de voltar de
novo àquela questão fundamental do direito transitório a que nos referimos no § 2.º da Secção
anterior: a questão de saber se uma SJ já se acha constituída ou se encontra ainda em vias de
formação. É que, se a SJ já se acha constituída, situa-se fora do âmbito desta Secção. Assim, se,
pela LA, a propriedade se transferia por força do contrato, pouco importa que a LN venha agora
exigir a traditio para que essa transferência se opere, pois que, se o contrato foi celebrado
anteriormente, o direito real do adquirente já se achava constituído no momento da entrada em
vigor desta lei, ainda a que a coisa se mantivesse na posse do anterior proprietário. Se, por
hipótese, nos termos da LA, a dissolução do casamento se operava pela entrega da «carta de
repúdio», e essa entrega se verificou antes da entrada em vigor da LN, nada importa que esta lei
venha tornar o divórcio dependente duma ação judicial, pois o casamento já se achava
dissolvido.
Mas, por outro lado, vimos que, durante o processo de formação duma SJ principal, se
constituem SsJs preliminares: tal o que acontece, p. ex., com a proposta contratual que, mesmo
quando a lei a considere revogável (v. art. 653.º do Código de 1867), obriga à indemnização do
interesse contratual negativo. Nestes casos, importa saber qual a SJ cuja apreciação está em
causa, se a SJ preliminar ou a SJ principal, pois bem pode ser que se ache constituída aquela
embora esta esteja por concluir. Lembremos a propósito que a LN, embora se não aplique em
princípio aos próprios efeitos dos contratos já celebrados, se aplica imediatamente aos contratos
em formação. Como escreve ROUBIER, «em direito transitório, o período pré-contratual não
pode ser assimilado ao próprio contrato». Mas é claro que esta observação já não vale a
propósito da promessa de contrato: aqui, celebrado o contrato-promessa sob a LA, a LN
encontra uma SJ contratual já constituída. Portanto, a LN já lhe não pode tocar – nem na sua
constituição, nem, em princípio, conforme vimos3, nos seus efeito. Pode, sim, proibir o contrato
prometido e, deste modo, criar uma impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa.
Mas, não sendo este o caso, o contrato valerá com os efeitos que lhe atribuía a lei do tempo da
sua celebração.
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Cfr. Supra, Secção I, § 3.º n.º 16 e 18.
Não era, porém, às SsJs preliminares que nos queríamos especificamente referir ao falar
de elementos do processo formativo da SJ que devem ser tratadas com certa autonomia do ponto
de vista do direito transitório: era, antes, aos elementos constitutivos da SJ em formação mas
considerados enquanto tais, isto é, na perspetiva da constituição da SJ principal. E agora já o
problema se torna mais difícil, pois que, como já veremos, se trona necessário harmonizar
princípios e critérios diferentes. Mas cremos que valerá a pena a tentativa de deslindar a
dificuldade, desde que essa tentativa possa contribuir para esclarecer as bases dogmáticas do
direito transitório.

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