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O Mercosul, do Tratado de Assunção até hoje

Embaixador Regis Percy Arslanian

Da mesma forma que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem


sua sede em Nova Iorque ou que a União Europeia tem sede em Bruxelas,
os países membros do Mercosul têm suas Delegações representadas junto
ao bloco, em Montevidéu, em um prédio à margem do Rio da Prata,
onde a maioria das reuniões do Mercosul tem lugar. Sou o Embaixador,
o Representante Permanente do Brasil junto ao Mercosul e à Associação
Latino-Americana de Integração (Aladi).
Eu estou lá há quase cinco anos e devo dizer que, nesse período,
assisti a muitas mudanças no Mercosul, muita coisa. Ele cresceu e se
aprofundou enormemente. O bloco hoje conta com uma estrutura
institucional que o caracteriza como um verdadeiro projeto de integração.
O Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), que está
destinado a prover recursos a fundo perdido para reduzir assimetrias no
bloco, e o Parlamento do Mercosul, que já funciona regularmente e cujas
bancadas já estão sendo eleitas pelo voto direto, são dois componentes
do bloco que, com apenas quatro anos de atividade, fazem do Mercosul
um empreendimento de integração não apenas comercial como também
político e social.
O Mercosul deixou, assim, de ser apenas um acordo de livre
comércio entre seus quatro sócios, pelo qual países gozam entre si de
uma liberalização comercial, mediante a negociação de um programa
de desgravação tarifária que chega a zero ou quase zero em matéria de
impostos alfandegários. Seu projeto vai, aliás, muito além dos acordos de

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livre comércio que o próprio bloco tem, no âmbito da Aladi, por exemplo,
com os demais países da América do Sul, ou do Acordo Nafta, que os EUA
têm com o Canadá e o México.
A integração pressupõe uma convergência normativa e uma
solidariedade econômica, social e, às vezes, até política. Ela configura uma
harmonização de procedimentos para que permitam a construção comum
e unificada de um projeto de integração que tenha como beneficiário final
o cidadão. É a integração no desenvolvimento de políticas econômicas
comuns, no aperfeiçoamento dos instrumentos de saúde, de educação, de
segurança, etc.
Quando se decidiu, por exemplo, na reunião de cúpula de
Foz do Iguaçu, em dezembro de 2010, que se unificariam as placas de
todos os veículos dos quatro países do Mercosul e que se adotaria uma
cédula de identidade única para todos os cidadãos, o objetivo foi o de
criar um cadastro único, sustentado por um banco de dados, de forma
a permitir a identificação de veículos e cidadãos em qualquer local que
se encontrassem, dentro do território aduaneiro do Mercosul. Só com
isso é que será possível almejar a livre circulação de veículos e pessoas,
consolidando assim a integração.
Quando se estabeleceu, na Cúpula de San Juan, também em 2010,
a eliminação da dupla cobrança, o objetivo foi o de obter a livre circulação
de mercadorias dentro do Mercosul. Seria difícil, senão impossível,
pretender criar cadeias de integração produtiva, com a participação
conjunta de produção setorial entre empresas de nacionalidades distintas
dentro do território aduaneiro, se um insumo importado tivesse que pagar
imposto alfandegário cada vez que passasse de uma país para outro, ao
seguir o ciclo produtivo, por meio da agregação de valor. Uma verdadeira
integração deve implicar necessariamente que um produto importado, ao
pagar a tarifa externa comum (TEC), deve ser considerado “originário”,
ou seja, passa a ser um produto Mercosul – e não brasileiro ou uruguaio –
seja onde ele estiver.
Vista a diferença entre uma integração e um acordo de livre
comércio apenas, valeria fazer algumas considerações sobre as próprias
vantagens que a relação comercial dentro do Mercosul trouxe para os
sócios, em especial em uma conjuntura adversa de crise financeira e
econômica por que estão passando os países europeus e os EUA. Do
lado do Brasil, em 2010 nossas exportações para os três outros países
do Mercosul não só ultrapassaram os níveis pré-crise de 2008/2009,
mas superaram em muito aqueles patamares. Se considerarmos o ano
de 2010, nossas exportações para o bloco foram de US$ 22,6 bilhões,

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quando em 2008 haviam chegado a US$ 21,7 bilhões. Já para a União


Europeia ou para os EUA, no mesmo período, nossas vendas foram bem
inferiores àquelas registradas em 2008: para a UE, caíram US$ 6 bilhões,
e para os EUA, US$ 8 bilhões. O comércio intra-Mercosul hoje é mais
dinâmico inclusive do que era há dois ou três anos atrás, antes da crise
internacional, enquanto que nosso comércio com a União Europeia e os
Estados Unidos ainda não se recuperou depois da crise.
Mais do que isso, esse crescimento do comércio com os países
do Mercosul verificou-se com uma participação de quase 93% de
manufaturados em nossas exportações. Se considerarmos outros parceiros
importantes, apenas 40% das nossas exportações para a União Europeia e
55% das exportações para os Estados Unidos são de manufaturados.
Isso mostra que, em nosso comércio com o Mercosul, existe
uma enorme dinâmica, que não deixou de servir para nós no Brasil de
blindagem frente aos efeitos da crise, ainda que em um contexto altamente
desfavorável do ponto de vista cambial.
Embora cifras demonstrem que o comércio global do bloco vai muito
bem, não há como não reconhecer os problemas e mesmo as distorções
que devemos enfrentar em nosso comércio dentro dele. Não há como
negar que as perfurações à tarifa externa comum (TEC), por exemplo, são
excessivas, e que é necessário implementar um programa de convergência
que possa reduzi-las ao máximo. Fala-se, ultimamente, muito nas licenças
não automáticas adotadas pela Argentina, que afetam vários setores
exportadores brasileiros, provocando atrasos na deliberação aduaneira
e constituindo mesmo barreiras a muitos dos produtos brasileiros. Seria,
de qualquer modo, difícil imaginar uma relação comercial que cresceu de
US$ 7,3 bilhões, em 2002, para US$ 32,9 bilhões, em 2010, que não tenha
dificuldades na sua administração. Mais ainda se considerando que,
em 2002, o Brasil contava com um déficit de US$ 2,6 bilhões e, em 2010,
registrou um superávit de mais de US$ 4,5 bilhões, valor este que é crescente
desde 2004, quando o Brasil passou a registrar saldos superavitários com
a Argentina. Além disso, a parcela das exportações brasileiras que está
submetida a licenças não automáticas corresponde a apenas 15% do total
exportado para a Argentina. A boa notícia é que tais problemas são sempre
objeto de tratamento imediato pelas autoridades governamentais do bloco,
pelo próprio fato de que, em todas as instâncias, técnicas ou não, há um
diálogo permanente por meio das reuniões regulares mantidas entre os
Governos.
Criou-se, recentemente, uma polêmica em torno da decisão
brasileira de aumentar o IPI em 30% para certas importações de automóveis.

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Tal decisão, pela incidência que poderia ter sobre as compras de veículos
efetuadas do Uruguai, foi regulamentada de forma a excluir a medida
para aquele país. Três montadoras estrangeiras já haviam se instalado
no Uruguai com a expectativa de vender no mercado brasileiro. Com o
aumento do imposto sobre produtos industrializados (IPI), os empresários
instalados no Uruguai viram a inviabilização das suas exportações para o
Brasil e estavam cogitando em fechar suas fábricas. A isenção do Uruguai
não deixa de resultar da existência do acordo automotivo Brasil-Uruguai
(como também existe um acordo automotivo Brasil-Argentina), que
permite exportações de automóveis produzidos no Uruguai, ainda que não
tenham origem no Uruguai. Esse acordo automotivo foi negociado dentro
do espírito do Mercosul de promover uma política de integração de cadeias
produtivas. O acordo automotivo não é ainda um acordo do Mercosul, mas
o objetivo é transformá-lo em um acordo entre os quatro sócios.
Outro elemento importante que caracteriza o bloco como projeto de
integração, que vai além de um mero acordo de livre comércio, é o Fundo de
Convergência Estrutural do Mercosul, o Focem, mencionado inicialmente.
O objetivo do Fundo é contribuir para a redução das assimetrias entre
os países e para o aprofundamento da integração regional. O Focem é
constituído por contribuições anuais dos países do bloco que totalizam
US$ 100 milhões ao ano em fundos regulares. São recursos, basicamente
do Brasil, que outorga 70% do total anual, representando, assim, US$ 70
milhões anuais destinados ao Fundo. Parcela de 27% é dada pela Argentina,
2% pelo Uruguai e 1% pelo Paraguai. A alocação desses recursos é na
ordem inversa: Paraguai tem direito a utilizar 48% do total, Uruguai 32%
e Argentina e Brasil 10% cada um. Esses aportes outorgam recursos não
reembolsáveis para projetos de interesse para o desenvolvimento e para a
integração regional, especialmente no Paraguai e no Uruguai.
Em cinco anos de existência do Focem, já se chegou a uma carteira
de projetos de US$ 1,1 bilhão. Dentro do Paraguai, por exemplo, o Fundo
está fornecendo os recursos (US$ 400 milhões) para a construção da linha
de transmissão elétrica entre Itaipu e Assunção, que equacionará de vez os
problemas de fornecimento de energia elétrica para a zona mais povoada
daquele país. Não faz sentido que o Paraguai seja detentor de metade
da energia gerada em Itaipu e que ainda tenha de se submeter a falhas
e quedas no suprimento de eletricidade. No Uruguai, o Focem já deu
recursos para a construção de rodovias e, aqui também, para uma linha
de transmissão elétrica entre Candiota, no Brasil, e San Carlos, ao sul do
Uruguai. Também foram aprovados projetos do Focem para a Biblioteca
da Universidade Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu; para

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apoio a pequenas e médias empresas dos quatro países que desenvolvam


projetos na integração de cadeias produtivas nos setores automotivo e de
gás e combustíveis; para um amplo programa destinado à erradicação da
febre aftosa (PAMA), igualmente nos quatro países (além da Bolívia); e
para projetos de sistemas de saneamento básico no Brasil, entre outros.
Temos no Parlamento do Mercosul outro elemento característico
de um verdadeiro projeto de integração. Muitos perguntam para que
serve o Parlamento do bloco se ele não tem funções legislativas. Mas é
difícil conceber outra maneira pela qual um Parlamento possa começar
a funcionar entre quatro países tão distintos, em termos políticos,
populacionais e também culturais. O Parlamento Europeu funcionou mais
de trinta anos com funções consultivas. Hoje, não há decisão europeia que
não tenha que ser submetida ao escrutínio parlamentar.
Na realidade, ainda que não tenha, por enquanto, funções
legislativas, o Parlamento do Mercosul tem desempenhado papel relevante
como órgão de consulta e controle sobre matérias que dizem respeito ao
processo de construção da integração. Todos os meses, o Parlamento
se reúne em Montevidéu para discutir integração, e, muitas vezes, a
bancada nacional brasileira apresenta aos negociadores governamentais
propostas sobre formulação de políticas que promovam maior inserção
da cidadania nos modelos de integração, em áreas como educação, saúde
e desenvolvimento social. Estes são temas que, certamente, serão sempre
melhor interpretados – e defendidos – pelos representantes parlamentares,
que estão em contato permanente com seus concidadãos. O Parlamento
do Mercosul tem dado uma grande contribuição para que esta integração
seja conformada de forma mais justa e, sobretudo, representativa, tanto
econômica quanto socialmente.
Numa primeira etapa, chamada de transição, cada bancada
nacional do Parlamento teve 18 membros. Pelo acordo político alcançado,
em outubro de 2010, entre as quatro representações, na segunda etapa (que
é a atual), começa a reger a denominada proporcionalidade atenuada, em
que o Brasil passou a ter 37 membros titulares, a Argentina 26, e o Uruguai
e o Paraguai, 18 cada um.
Já a partir de 2014, deverão ser eleitos no Brasil, através do voto
direto, os parlamentares do Mercosul, cuja representação contará com 75
assentos. Nessas eleições, todos nós brasileiros elegeremos, por sufrágio
universal, os nossos parlamentares do Mercosul. A Argentina e o Uruguai,
com 43 e 18 representantes, respectivamente, também escolherão seus
representantes em votação direta. O Paraguai, com 18 parlamentares, já
escolheu, em suas últimas eleições nacionais diretas, seus parlamentares.

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Isso significa que, no Brasil, serão apresentados, em meio


à campanha eleitoral regular, os candidatos para o Parlamento do
Mercosul. Caberá a eles apresentar nos meios de comunicação, no horário
eleitoral, suas propostas e programas de ação para a integração regional,
e nós os elegeremos através do sufrágio direto, universal e secreto. Esta
representa a etapa inicial do funcionamento do Parlamento. Obviamente,
o Parlamento acabará exercendo funções legislativas, como ocorreu com
a União Europeia. Eles levaram muito tempo para a construção do seu
Parlamento. Mas hoje, o legislativo do bloco europeu é fortíssimo e tem
grande influência sobre os objetivos e o processo de integração europeia.
Outro elemento que passou recentemente a fazer parte da estrutura
institucional do bloco, como decorrência do próprio aprofundamento
do Mercosul, refere-se ao Alto Representante-Geral do Mercosul. Foi
designado para tal função o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.
O Alto Representante-Geral representa o bloco como um todo.
Nós defendemos, como representantes governamentais, os interesses
específicos de nossos países nas reuniões negociadoras com os nossos
sócios. Daí surge a necessidade de poder contar com uma personalidade
que seja a cara visível do Mercosul, que represente o bloco como um todo
e que trabalhe em prol da integração em si, já não apenas em nome dos
interesses individuais de cada um dos sócios. O Alto Representante, desde
que deu início à sua função, em janeiro passado, tem procurado coordenar
propostas e representar posições comuns, buscando construir a integração
através da articulação e da convergência das normas vigentes nos quatro
países membros, em todos os setores relativos ao desenvolvimento
econômico, comercial e social, como saúde, educação, cultura, meio
ambiente, defesa, etc. Afinal, não se faz integração sem convergência.
Nesse sentido, ao Alto Representante compete pensar o Mercosul e ser
visto como o Mercosul.
Tendo em vista que o nosso Seminário se refere à América do Sul,
caberia, aqui, fazer um comentário quanto ao papel que a União de Nações
Sul-Americanas (Unasul) e o Mercosul desempenham na região. Isso porque
são recorrentes os questionamentos sobre se existiria ou não uma superposição
de esforços nos trabalhos desenvolvidos em ambos os processos.
A verdade é que ambos se complementam e são reciprocamente
necessários. O Mercosul foi criado primeiramente como uma iniciativa
comercial, que está evoluindo para uma integração muito mais ampla,
como se viu no texto acima. O objetivo sempre foi, obviamente, o de obter,
ao longo do tempo, a adesão, se possível, de todos os países da América
do Sul. O Brasil, a começar pelo seu tamanho geográfico e diversidade

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de fronteiras comuns, tem, no continente, a maior responsabilidade – e


também o maior interesse – na construção de um continente próspero e
pacífico. Quanto melhor estiverem nossos vizinhos, maiores serão nossas
garantias de harmonia e paz.
Quando se concebeu o Mercosul, pensou-se em um mercado
comum do Cone Sul do continente. Hoje, nada impede que sonhemos com
um projeto de integração da América do Sul como um todo. Algumas
das tratativas, porém, de negociar com países vizinhos acordos de adesão
plena ao bloco, mediante sua incorporação à União Aduaneira, não se
concretizaram pelas próprias disparidades tarifárias. Este é o caso do
Chile. A tentativa, nos anos 1990, de se alcançar um acordo de adesão
daquele país à tarifa externa comum do Mercosul esbarrou, basicamente,
na grande diferença então existente entre os respectivos perfis tarifários.
Certamente nossa melhor opção estratégica para o continente não seria
permanecer de braços cruzados, aguardando que o universo tarifário
do Chile, ou de outros países como Colômbia ou Peru, por exemplo, se
equiparasse ao da TEC.
Foi com esse espírito que decidimos perseguir uma cooperação
alternativa com os demais países da América do Sul, ainda que, por
enquanto, não se constituísse em uma integração comercial. Se não
podemos ter uma integração comercial com eles, conseguimos, sim, criar,
com a Unasul, um foro de diálogo e concertação política, de coordenação
de projetos de infraestrutura e de consultas na área de defesa.
O importante é construir a integração, da maneira que for possível
para cada um de nós no continente. É preciso de alguma forma ampliar
e aprofundar o processo de aproximação com nossos vizinhos. Como
objetivo último, devemos sempre pensar em construir uma América do
Sul cada vez mais integrada, seja através do Mercosul, da Unasul ou de
qualquer outra iniciativa que sirva para nos unir.
Daí a importância, por exemplo, da adesão da Venezuela como
membro pleno ao Mercosul. A ratificação do acordo, subscrito há mais
de cinco anos, ainda depende do Congresso paraguaio. Muito se falou,
no Brasil, sobre a incorporação ou não da Venezuela ao bloco, mas não
podemos nos dar ao luxo de virar as costas para um país de fronteira.
Sobretudo para um país da importância econômica e geográfica da
Venezuela. No futuro, os nossos vizinhos venezuelanos não deixariam
de nos cobrar isso. Além disso, a adesão da Venezuela configuraria, de
uma vez por todas, o Mercosul como um projeto de integração regional
de dimensão continental. Existem dados que merecem ser considerados a
propósito de nossa relação com a Venezuela. Por exemplo, há uma estrada

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pavimentada entre Boa Vista e Caracas, mas para viajar de Boa Vista a
São Paulo é preciso voar de avião. Toda a energia elétrica de Boa Vista é
gerada pela usina hidroelétrica de Guri, que fica na Venezuela.
Uma última observação que caberia fazer sobre o Mercosul: os
europeus continuam chamando, depois de mais de sessenta anos, sua
integração de “projeto” de integração. Somos, frequentemente, cobrados
porque, às vezes, nossa integração, o Mercosul, experimenta avanços
pouco visíveis, e até contramarchas. Temos, é bem verdade, distorções
na nossa tarifa externa comum (TEC); a eliminação da dupla cobrança
obedece a um cronograma demasiadamente longo; o Parlamento do bloco
ainda não tem funções legislativas; são várias as barreiras não tarifárias, as
dificuldades ou restrições migratórias, educacionais, além de outras. Mas
se a União Europeia, depois de mais de meio século é ainda considerada
por eles mesmos como um “projeto”, como é que nós, no Mercosul, com
vinte anos de existência, podemos pretender contar com uma integração
perfeita? A integração, entre países tão diversos e assimétricos como
os nossos, não se faz em dois, três ou dez anos. Nem pode ser feita
por decreto. É uma construção permanente, que se faz tijolo por tijolo,
com uma perspectiva de horizonte de mais de 40 ou 50 anos. Estamos
hoje construindo a integração para os nossos filhos e netos. Mas se não
começarmos esse empreendimento agora, eles não poderão se beneficiar
dele no futuro.

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

2. Integração, cooperação e negociação no


Mercosul: interesses e orientações de
política exterior

O processo de negociação que conduziu à criação do Mercosul,


com a conformação do seu arcabouço institucional, do regime de livre
comércio e da união aduaneira, que o consubstanciam como iniciativa
de integração econômica, desencadeou-se com base na disposição, no
plano político, dos governos do Brasil e da Argentina de, inicialmente
de forma bilateral, porem em marcha um processo de aproximação e
cooperação envolvendo iniciativas nos planos político, econômico e
estratégico. Assim, tanto em sua origem quanto em sua evolução
posterior, esteve o processo negociador diretamente condicionado pelos
interesses e objetivos de política externa de ambos os países, interesses
remetidos não apenas ao processo de integração em si, mas também às
injunções e transformações do sistema internacional, aqui considerado
o âmbito regional, e daqueles afetos aos correspondentes cenários
domésticos.
Aintegração almejada não representava um fim em si mesma,
mas um meio para a consecução de objetivos consagrados no âmbito
das respectivas políticas externas, os quais não estavam circunscritos
exclusivamente aos planos econômico e comercial e nem aos espaços
sub-regional e regional em que deveria ser construída. O protagonismo
central dos governos, na definição da integração econômica como
desígnio político de ambos países e na formulação dos objetivos e
princípios que a orientariam, estendeu-se à arena da negociação
internacional, instrumentalizando-acom canais e recursos diplomáticos
e dando a ela conotação intergovernamental coadjuvada, em plano
secundário, por outros atores das esferas política, econômica e social
em cada país.Tratou-se portanto de exercício de negociação diplomática,
se considerados os canais e as faculdades de decisão política, o
qual foi conduzido em distintos níveis (presidencial, ministerial e
executivo) e apoiado em ampla base de insumos e de interação em
nível técnico.

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ALCIDES COSTA VAZ

É necessário, portanto, situar o processo negociador do


Mercosul com base em sua contextualização, em particular no que
tange no âmbito das políticas exteriores do Brasil e da Argentina e da
consideração de seus respectivos interesses, objetivose prioridades. Por
essa razão, nas seções seguintes, analisam-se, em primeiro lugar, as
orientações e as inflexões das políticas externas do Brasil e da Argentina,
procurando identificar seus objetivos principais e os interesses a eles
subjacentes, contextualizando a integração como expressão e estratégia
de realização de objetivos da política externa e também da política de
âmbito doméstico e, ao mesmo tempo, buscando analisar as
conseqüências, para o processo negociador do Mercosul, do maior ou
menor grau de convergência entre os dois países quanto aos aspectos e
às dimensões definidores de suas políticas externas. Em seguida, são
considerados os interesses e objetivos de cada país quanto à integração
nos planos bilateral e sub-regional, com o propósito de analisar como
eles concorreram para definir: a natureza do processo negociador; seu
objeto principal; e as perspectivas e posições de negociação, bem como
as possibilidades de trade-offsno processo.
Por tratar-se de um processo de negociação intergovernamental,
a análise a ser feita privilegia as perspectivas e visões de atores diretamente
engajados na formulação e implementação das políticas externas, em
particular no tocante à integração, e, por conseqüência, no próprio
processo negociador no período considerado. Se, por um lado, essa
perspectiva conduz inevitavelmente ao tratamento do discurso
diplomático, abre, por outro, a possibilidade de considerar como os
interesses e objetivos formalmente assumidos eram percebidos,
interpretados e comunicados pelos atores que desempenharam papel
central no processo de negociação.

2.1. Orientações de política exterior frente às


injunções externas e internas: as perspectivas
do Brasil e da Argentina

Na década de 1980, as políticas externas do Brasil e da


Argentina encontraram importantes elementos de convergência.
O comprometimento com a restauração plena e a consolidação da

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

democracia condicionou tanto a política externa brasileira, sob José


Sarney (1985-1990), como a política externa argentina, sob Raúl
Alfonsín (1983-1989), e refletiu-se, sobretudo, na forma com que
suas respectivas prioridades passaram a ser operacionalizadas.1 No Brasil,
o Governo Sarney confrontou o desafio de adaptar a política externa
às novas condições do cenário internacional e do próprio país,
procurando superar desconfianças geradas regional e globalmente pela
orientação autárquica, baseada na leitura hobbesiana, com a qual os
governos militares a haviam conduzido. Tratou-se de esforço de
solidificar e agilizar a interlocução com os países industrializados, de
recuperar credibilidade nos foros multilaterais, de explorar possibilidades
de relacionamento com parceiros não tradicionais e, ao mesmo tempo,
de atuar afirmativamente em temas que eram percebidos como
desafiadores aos interesses nacionais, como direitos humanos,
endividamento externo e, em particular, meio ambiente.2
Por sua vez, a Argentina, ao longo do Governo Alfonsín,
igualmente enfrentou o desafio de redefinir os parâmetros de sua
inserção externa. Contudo, isso foi feito com base em uma perspectiva
eminentemente política, em que se privilegiava a dimensão de
legitimidade que a restauração democrática lhe conferia, para também
afirmar-se internacionalmente por um intenso esforço de recuperação
da credibilidade externa, que havia sido fortemente erodida em razão
dos abusos de poder perpetrados pelo regime militar, ao que se somaram
a Guerra das Malvinas e a deterioração da economia, com reflexos no
campo social. Arecuperação da credibilidade externa era entendida, no
contexto de então, como pré-requisito para gerar condições propícias
ao encaminhamento dos problemas econômicos.
Os esforços de ambos os países para adaptarem-se às condições
internacionais e imprimirem às próprias políticas externas novo
direcionamento, em razão também dos novos ordenamentos

1 Luiz Felipe Seixas Corrêa, “A política externa do Governo Sarney”, In: José A. G. de
Albuquerque, Sessenta anos de política externa, vol. 2. São Paulo: Cultura Editores Associados,
1996, p. 370.
2 Ibid, p. 380.

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domésticos que a redemocratização colocava, refletiram-se de forma


distinta, em cada país, no padrão de continuidade de política externa,
ao mesmo tempo em que produziram um nítido sentido de
convergência quanto à prioridade a ser conferida à América Latina como
espaço privilegiado de sua atuação político-diplomática e econômica.
Assim, parao Brasil, preservava-se o sentido universalista de sua política
exterior, mas dentro dele, foi fortalecida e ampliada a prioridade às
relações com a América Latina, que passaram a encontrar, finalmente,
sentido de funcionalidade no plano econômico. Cumpre lembrar que
o comércio intra-regional crescera, na segunda metade dos anos 70 e
no início dos anos 80, a taxas superiores às de crescimento do comércio
internacional.
Ainda, tornara-se imperioso reorientar vários projetos de
desenvolvimento concebidos no regime militar, notadamente aqueles
envolvendo o desenvolvimento ou a transferência de tecnologias
sensíveis, seja pela carência de recursos, agudizada pelos efeitos da crise
econômica, seja pela falta de legitimidade que, em um marco de
redemocratização, os tornava econômica e politicamente inviáveis.
Ficara evidente o esgotamento do modelo de desenvolvimento que o
país havia perseguido por décadas, ao qual a política exterior e as alianças
internacionais até então entabuladas haviam servido, sem que, contudo,
o governo Sarney lograsse imprimir uma nova estratégia global para
orientar o desenvolvimento econômico e a inserção externa do país.
No entanto, a retificação de muitas linhas da política externa
brasileira então conduzidas não implicou o abandono de prioridades
já consolidadas, sobretudo as definidas em termos de espaços
geográficos. Foram, sobretudo, as formas de dar conteúdo às políticas
e de implementar prioridades que se modificaram sensivelmente, o
que ficou evidenciado, de forma particular, no plano das relações com
a América Latina. São importantes, nesse sentido, o reatamento de
relações com Cuba, o papel que o Brasil passou a desempenhar no
Grupo de Apoio ao Processo de Contadora e, subseqüentemente, no
Grupo do Rio e a intensa diplomacia presidencial conduzida na região.3

3 Ibid, p. 370-373.

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Essas relações estavam definidas muito mais por sua importância política
que por sua densidade econômica, diferentemente do que ocorria com
as parcerias que se buscavam no Primeiro Mundo. A partir de então,
procurar-se-iam formas efetivas de materializar, no campo econômico,
a importância política conferida à América Latina, levando o país a
engajar-se em iniciativas bilaterais, ao mesmo tempo em que mantinha
a ênfase no fortalecimento dos mecanismos multilaterais de cooperação
como a melhor opção para o atendimento de seus interesses no plano
internacional.
Para a Argentina, muito mais que para o Brasil, a reinserção
internacional obrigava à promoção de sensíveis mudanças de orientação
da política externa. Ao iniciar-se o governo Alfonsín, a Argentina
promoveu o que o então chanceler Dante Caputo qualificou de “giro
realista de la política exterior”. Isso não significava qualquer forma de
exercício de política de poder. O sentido do termo realista reportava-
se mais ao reconhecimento das adversidades externas e da escassez dos
recursos de que a Argentina dispunha para ajustar-se a um sistema
internacional então marcado pelapresença de fatores que eram avaliados
negativamente em termos de seus impactos para a estabilidade política
do país. Sem dispor de atributos nos planos estratégico e econômico e
diante de um contexto de instabilidades externa e interna, o governo
Alfonsín definiu, pragmaticamente, a proteção e consolidação da
democracia como o principal eixo articulador de sua política externa.
No plano externo, o encaminhamento dos problemas econômicos
esteve fortemente condicionado à recuperação da imagem e da
credibilidade externas da Argentina, o que, por sua vez, tinha como
pressuposto fundamental a preservação e o fortalecimento das
instituições democráticas recém- reinstauradas e a promoção de direitos
humanos.4
Entretanto, o debate sobre a inserção argentina no contexto
econômico mundial vinculava-se ao não menos intenso debate político
interno sobre os perfis produtivo e econômico que o país deveria

4 Roberto Russell, “Políticas exteriores: hacia una política común”. In: Mario Rapoport (org.),
Argentina y Brasil en el Mercosur. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1995, p. 35.

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perseguir. Os resultados e os elevados custos econômicos e sociais da


abertura econômica promovida pelos governos militares, entre 1976 e
1982, geraram, internamente, um quadro pouco favorável à condução
de políticas de corte liberal, o que terminou, em seguida, reforçando o
papel do Estado no campo econômico. Ao mesmo tempo, ante a
constatação das crescentes dificuldades de retomar o modelo de
desenvolvimento baseado na substituição de importações, a Argentina,
sob Alfonsín, optou por uma estratégia que, pautando-se pelo
reconhecimento da existência de agrupamentos econômicos de natureza
preferencial, objetivava promover relações privilegiadas com alguns
países, as quais pudessem dinamizar o desenvolvimento econômico
dentro de um padrão de abertura regulada e conferir capacidade de
resguardar-se de externalidades negativas decorrentes de sua exposição
externa. Segundo Roberto Lavagna:
si se opta por una estratégia de asociación privilegiada com otros
países, integrando agrupamientos que intentan acotar la apertura y
llevar adelante programas de desarrollo com mayor grado de
autonomía y estabilidad, limitando así el juego de las reglas de las
ventajas comparadas, el país podrá ser visualisado como un país
grande. País grande significa, al mismo tiempo, capacidad para
determinar la marcha de su economía e influyr en la de los países
com los que se encuentra asociado, limitando los impactos exógenos
negativos.5

Considerando a condição marginal da Argentina no contexto


mundial e sua importância relativa no cenário regional, Leavagna, que
viria a influir decisivamente na formulação e implementação do
processo integracionista com o Brasil, asseverava, ainda em 1980, que
inútil es afirmar que salvo cambios fundamentales en la situación,
Argentina no puede encontrar otro marco de asociación que dentro
de su área geo-política, es decir, America Latina, con dos pivotes del
proyecto de desarrollo asociado, Brasil y la Zona Andina.6

5 Roberto Lavagna, Argentina, Brasil, Mercosur: una decisión estrategica. Buenos Aires: Ciudad
Argentina, 1998, p. 42-43.
6 Idem, p. 43.

76
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

A constatação posterior de que o Pacto Andino não suscitaria


nenhum impacto competitivo para a Argentina, por não possuir nem
escala e nem complexidade industrial suficientes para produzir
vantagens, terminava por colocar o Brasil como alternativa natural para
o estabelecimento de parceria estratégica no contexto regional,7
conferindo-lhe, ademais do conteúdo político então prevalecente,
racionalidade econômica.
Assim, a parceria Brasil-Argentina, desenhada gradualmente a
partir da solução da questão de Itaipu-Corpus, em 1979, e
impulsionada de 1985 em diante, com a Ata de Iguaçu, era expressão
e resultado de intensa convergência política em torno de objetivos como
a consolidação democrática, as estabilidades política e estratégica
regional, o resgate da credibilidade externa e a coordenação de posições
ante a questão do endividamento externo. Procurar-se-ia materializar
a parceria com a promoção de maior nível de interdependência
econômica, mediante ações de cooperação em um amplo espectro de
setores. A construção da parceria, a partir de 1979, envolveria, em seu
primeiro momento, não iniciativas de fundo econômico, mas propostas
e ações no plano da segurança, inclusive na área nuclear, fomentando
um clima de confiança mútua crescente e que ensejou, em seguida, o
desmantelamento das hipóteses de conflito entre os dois países. Nesse
sentido, observa-se que as iniciativas de integração, tanto na etapa
bilateral, como, posteriormente, nado Mercosul, viriam a modificar a
geoeconomia do Cone Sul, área cuja geopolítica já havia sido
profundamente impactada pela superação das desconfianças mútuas
do Brasil e da Argentina, nos planos político e estratégico, tendo como
marcos fundamentais a solução do contencioso Itaipu-Corpus e, em
seguida, a solidariedade brasileira à Argentina, na Guerra das Malvinas
em 1982. O fato de a parceria brasileiro-argentina ter sido construída
com base, inicialmente, no tratamento de questões estratégicas é um
traço singular de sua moldura política. Segundo Celso Lafer:

7 Entrevista com Roberto Lavagna.

77
ALCIDES COSTA VAZ

Pode-se dizer que, enquanto nos relacionamentos clássicos as


questões de segurança, inclusive as nucleares, dependiam do
clima político geral, no caso brasileiro-argentino elas constituíam
parte significativa da ambigüidade da atmosfera política, tendo
colaborado para sua melhoria pela própria autodissolução do
problema.8

Ao que agregaríamos ter também contribuído para que, nas


fases posteriores, a ênfase, no relacionamento bilateral ena integração,
recaísse na dimensão econômico-comercial.
Em sua origem mais imediata, no entanto, a parceria Brasil-
Argentina, tal como consubstanciada nos instrumentos diplomáticos
firmados a partir da Ata de Iguaçu de 1985, resultou de entendimentos
mantidos entre o presidente eleito do Brasil, Tancredo Neves, e o
presidente argentino, Raúl Alfonsín. Quando de sua visita a Buenos
Aires, Tancredo Neves tomara a iniciativa de propor um incremento
de relações que retirasse dos militares o argumento da confrontação,
que permitisse desmobilizá-los para que, no futuro, ambos os lados
pudessem ter acesso às instalações nucleares do outro. Com a morte de
Tancredo, em abril de 1985, José Sarney confirmou, ao assumir a
Presidência, a mesma disposição, e Alfonsín propôs uma ampla revisão
da agenda bilateral. Para a tarefa definiu-se, com a Ata de Iguaçu de 30
de novembro de 1985, a criação de uma comissão mista de alto nível
para encaminhar, no prazo de um ano, recomendações aos presidentes,
focalizando notadamente os temas de energia, transporte, comunicação,
ciência e tecnologia.
Para o Brasil, a parceria com a Argentina diferia significativa
mente dos esforços de associação entabulados até então com outros
países. Ao contrário das parcerias estabelecidas com a Alemanha e o
Japão, nos anos 70, pela primeira vez, construiu-se uma parceria
relativamente mais simétrica e baseada em convergência de interesses e
de propósitos políticos definidos em um marco de restauração da

8 Celso Lafer, “Relações Brasil-Argentina: alcance e significado de uma parceria estratégica”.


In: Contexto Internacional, vol. 19, nº 2, p. 253.

78
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

democracia. A maior simetria e o conteúdo abrangente proposto para


essaparceria, expresso nos protocolos bilaterais assinados em 1986, e,
posteriormente, no Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvi
mento, firmado em 1988, demandavam mecanismos mais complexos
para a articulação de interesses e, conseqüentemente, de legitimação
política, o que esteve inicialmente associado à natureza de ambos os
regimes políticos. Refletiam também a amplitude dos objetivos
pretendidos: alongo prazo, a promoção de desenvolvimento conjunto
no quadro de uma integração a ser construída a partir do enlace de
setores produtivos e de iniciativas em campos fundamentais como
energia, transporte, telecomunicações e outros. Ao mesmo tempo e de
forma imediata, almejava-se atuar, cooperativamente, no sentido de
um afiançamento e reforço mútuos, diante de problemas comuns,
tanto no campo político, notadamente os relacionados à consolidação
da democracia, como no econômico, em que a inflação alta e o
endividamento externo representavam a face comum e mais evidente
do desafio que os dois países confrontavam.
Embora as condições para a construção da parceria com a
Argentina estivessem sendo geradas, gradativamente, desde o final dos
anos 70, e, apesar do crescente e decisivo exercício da diplomacia
presidencial e do ainda escasso envolvimento de outras instâncias
políticas e sociais no debate ena condução das relações bilaterais naquele
momento, estas representariam, no caso brasileiro, um campo
privilegiado de exercício de diálogo, ainda que restrito, entre o
Executivo, o Legislativo e o setor privado.
Outro aspecto a merecer destaque é o fato de que, também
pela primeira vez, se construiu uma parceria envolvendo temas sensíveis,
como cooperação no campo nuclear e no campo da segurança, sem
suscitar conflitos com os Estados Unidos. Isso deveu-se, em primeiro
lugar, ao fato de que a aproximação entre o Brasil e a Argentina teve,
como pano de fundo, um sentimento de relativa frustração, de parte
de cada país, quanto aos seus intentos, levados a efeito em diferentes
momentos, de estabelecer relacionamento privilegiado com os Estados
Unidos. Assim, a integração Brasil-Argentina não se destinava a
representar, em nenhum sentido, oposição ou confrontação com aquele

79
ALCIDES COSTA VAZ

país; tratava-se, antes, de suplantar desconfianças e fatores de


instabilidade política e estratégica que, tanto para o Brasil como para a
Argentina, haviam obstaculizado importantes objetivos de
desenvolvimento econômico e científico-tecnológico por ação dos
próprios Estados Unidos. Em segundo lugar, por resultar em sensível
melhora dos níveis de estabilidade política no Cone Sul e por reforçar
o sentido da consolidação da democracia na região, essa aproximação
permitiria aos Estados Unidos concentrar atenção em outras áreas e
temas em que percebiam maior comprometimento de seus interesses,
notadamente no campo econômico. Além disso, com a estabilidade
política, almejava-se que a questão da dívida externa passasse a ter maior
centralidade na agenda com os Estados Unidos, tendo sido esse um
tema que, por força dos próprios termos da negociação definidos pelos
credores, não viria a ser objeto de tratamento conjunto pelo Brasil e
pela Argentina, permanecendo, pois, fora do âmbito das iniciativas
bilaterais então empreendidas. Finalmente, não eram percebidas, até
então, as possibilidades de que a cooperação que se arquitetava pudesse
implicar maiores embaraços aos interesses econômicos dos Estados
Unidos, uma vez que, apesar de já prenunciada a emergência de blocos
comerciais, o esforço de liberalização comercial, naquele momento, estava
sendo canalizado para as negociações que viriam a ser empreendidas no
âmbito do Gatt, sendo que os esforços de integração regional na América
Latina, sob aégidedaAladi, estavam praticamente estagnados.
Importante notar que, na perspectiva brasileira, a construção
da parceria estratégica com a Argentina iniciou-se em um contexto em
que as variáveis, tanto de índole interna quanto externa, que haviam
contribuído para dar objetividade às parcerias com os países
industrializados, particularmente com a Alemanha e o Japão, tinham-
se modificado profundamente, tornando essas parcerias, em grande
medida, inoperantes quanto aos seus objetivos maiores. Para isso, muito
contribuíram as condições internas da economia brasileira de então e,
ainda mais, as posições assumidas quanto à dívida externa, particularmente
a moratória, decretada em 1987, que indispôs fortemente o país com
seus principais credores e parceiros.

80
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Para a Argentina, a importância daparceria com o Brasil definia-


se mais por considerações de ordem econômica que política, o que
ficara patente desde as negociações que resultaram na Ata de Integração
Brasil-Argentina de 1986. A preponderância, para a Argentina, de
interesses de ordem econômica na relação com o Brasil resultava das
necessidades de buscar outro modelo econômico, em face do
esgotamento da experiência de substituição de importações, e de
responder simultaneamente aos problemas advindos da abertura
indiscriminada promovida pelos governos militares, entre 1976 e 1982,
entre os quais o deslocamento de setores produtivos, notadamente no
campo industrial, e de mão-de-obra, e o aumento da dívida externa.
Para tanto, propunha-se um modelo intermediário que contemplava
uma abertura regulada, na qual as relações e a integração com o Brasil
ganhavam funcionalidade.
Assim, a partir de meados dos anos 80, deram-se as condições
para que o Brasil e a Argentina estabelecessem sua principal e mais
abrangente parceria estratégica, que serviria de plataforma para redefinir
suas relações no plano regional e, no início dos anos 90, para
instrumentalizar sua inserção externa já em um contexto internacional
profundamente modificado pela superação da confrontação leste-oeste,
pela emergência de blocos econômicos, pela gradual afirmação do
liberalismo econômico e da democracia como valores consagrados na
ordem internacional emergente. Ao mesmo tempo, esse esforço esteve
condicionado pelas restrições de ordem econômica que, interna e
externamente, ambos os países enfrentavam, masque, simultaneamente,
representaram estímulo para uma maior aproximação política, com a
qual procurariam responder àquelas mesmas vicissitudes.
No entanto, embora aproveitando plenamente as possibilidades
que emanavam do novo quadro político interno em favor da integração,
os governos de Sarneye Alfonsín não lograram definir novosparadigmas
de desenvolvimento capazes de orientar suas políticas externas. Assim,
para os dois países esgotaram-se os paradigmas de desenvolvimento
econômico aosquais suas políticas externas serviram e, por conseqüência,
perderam funcionalidade as alianças estratégicas então forjadas, sem
que se introduzissem, naquele momento, outros paradigmas. Isso

81
ALCIDES COSTA VAZ

somente viria a ocorrer, para a Argentina, a partir de 1989, com a


chegada ao poder de Carlos Menem, e, para o Brasil, em 1990, com a
presidência de Fernando Collor de Mello.
As rápidas transformações que o sistema internacional
atravessara, particularmente a partir de 1989, e a orientação liberal
conferida pelos novos governos, na Argentina e no Brasil, às políticas
econômicas no plano doméstico provocaram importantes inflexões
nas políticas externas dos dois países e modificaram substantivamente
o contexto e o conteúdo da integração. Esta desenvolvera-se com base
em um elevado grau de convergência das macrovisões do Brasil e da
Argentina sobre questões estruturais do sistema internacional e sobre
seus riscos e oportunidades para a inserção externa. Essa convergência
traduziu-se, nos governos de Sarney e Alfonsín, em prioridades de
política externa compartilhadas sobretudo no que se refere ao
protagonismo de ambos os países nos contextos sub-regional e regional,
mas que não encontraram condições de plena realização no campo
econômico em razão do agravamento, em cada país, das condições
econômicas internas e das dificuldades de acesso a recursos externos.

2.2. As inflexões de política externa nos anos 90

2.2.1. A política exterior argentina sob Carlos Menem

A partir de 1990, a política externa argentina, com Carlos


Menem, sofreu importante inflexão que se fundamentava em profunda
crítica dos postulados que a haviam orientado nas últimas décadas e
que, segundo essa mesma perspectiva, levaram o país à condição de
isolamento internacional, notadamente no que respeita ao mundo
industrializado, resultando em acentuada deterioração de suas condições
econômicas e sociais. Apesar da restauração da democracia, que propiciara
um quadro de relativa estabilidade política e de sensíveis avanços no
campo dos direitos humanos, tanto no sentido de sua situação econômica
e social doméstica quanto de seu status quo internacional, a Argentina
percebia-se, quando da chegada de Carlos Menem ao poder, como país
isolado em termos políticos e decadente do ponto de vista econômico.

82
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

A necessidade de gerar condições imediatas de reverter essa


condição e de transformar e revigorar o aparato produtivo e o sistema
econômico levou a que, no plano da política externa, a Argentina
assumisse objetivos e prioridades significativamente distintos em relação
àqueles que norteavam a política externa brasileira, sobretudo no
tocante às implicações, em termos de suas respectivas inserções externas
e de alinhamentos no plano internacional, do fim da Guerra Fria, da
condição dos Estados Unidos como única superpotência global e da
redefinição das estruturas de poder internacional tanto no sentido
político-estratégico como econômico.
No plano normativo, a inflexão da política externa argentina
pautava-se no reconhecimento de que a ordem internacional que se
instaurava, com o fim da Guerra Fria, seria definida com base em
valores liberais que conformavam o chamado “Ocidente” e, nosplanos
político e estratégico, na liderança dos Estados Unidos, na construção
da nova ordem, apontando o sentido do alinhamento que passou a
perseguir. A opção pelo alinhamento com os Estados Unidos e o
conseqüente esforço de ajustar a agenda global da política exterior
argentina às posições norte-americanas, tal como preconizadas no
chamado Consenso de Washington, induziram importantes mudanças
que alcançaram temas como as negociações sobre as Malvinas, o
envolvimento em conflitos internacionais, as políticas nuclear e
aeroespacial, o padrão de votos nas assembléias gerais da ONU e outros,
levando o país a procurar uma postura ativa em temas de realpolitics.9
Mas, ademais de seu conteúdo político e dos desdobramentos em
termos de posições de política exterior, o alinhamento também
respondia a interesses no plano doméstico, representando uma
“estratégia consistente en obtener los beneficios que derivan del
alineamiento, tratando de contrarrestar de esta manera los costos internos
que implica elplan de ajuste económico”.10 Desse modo, o alinhamento

9 Alfredo Bruno Bologna e Anabella Busso, “La política exterior argentina a partir del
gobierno de Menem: una presentación”: In: Alfredo Bruno Bologna e Anabella Busso,
“La política exterior argentina a partir del gobierno de Menem: seguimento y reflexiones al
promediar su mandato.” Rosario: CERIR, 1994, p. 35-41.
10 Idem, p. 35.

83
ALCIDES COSTA VAZ

com os Estados Unidos e com a agenda do vitorioso Ocidente


representaria contrapartida e resposta aos custos das medidas de ajuste
econômico postas em prática internamente.
No plano econômico e em consonância com o acima exposto,
a política exterior argentina passou a fundamentar-se na consagração
das forças de mercado, seja no âmbito das relações econômicas
internacionais, seja como propulsoras das reformas econômicas que se
introduziam domesticamente, implicando a adoção de medidas de
abertura comercial, desregulamentação econômica e privatização. No
plano externo, a orientação liberal implicaria a superação de contenciosos
bilaterais, com os parceiros do mundo industrializado, e, em particular,
com os Estados Unidos, uma maior aproximação aos organismos
financeiros e às fontes internacionais de investimento e a convergência
com as posições norte-americanas nos foros multilaterais e nas iniciativas
de alcance regional. Considerando a não funcionalidade, para os
interesses argentinos, de qualquer postura de confrontação com os
Estados Unidos e demais países industrializados, o governo Menem
passou a definir os interesses argentinos de forma mais pragmática e
em termos essencialmente econômicos.11 Esse fato refletia, sobretudo,
as preocupações imediatas da sociedade argentina e a disposição do
novo governo de empreender profunda reforma das estruturas
econômicas e de gerar um quadro de estabilidade macroeconômica e
de rápido crescimento. Segundo Alieto Guadani,
la política exterior de la Argentina privilegia el interés nacional
entendido como la búsqueda de las mejores condiciones de bienestar
de su población en todos los ámbitos. Esto presupone una actitud
realista, quepasa a reconocer que solamente el crecimiento económico
y el equilíbrio social nos conferirá esa condición de competitividad y
nos permitirá insertarnos en el mundo de una forma diferente.12

Aconsecução dos interesses econômicos viria a ser instrumen


talizada, no plano externo, em duas vertentes distintas quanto ao seu

11Roberto Russell, op. cit., p. 36.


12 Alieto A. Guadagni, La Argentina y el regionalismo abierto. Buenos Aires: Facultad de
Ciencias Socialesy Económicas, Pontifícia Universidad Católica de Argentina, 1995, p. 21.

84
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

alcance e forma de condução. A primeira, como visto acima, estaria


associada ao intento de estabelecer relacionamento privilegiado com
os Estados Unidos, como forma de gerar condições de acesso a recursos
necessários ao desenvolvimento, não somente naquele país, mas
também em outros países industrializados e nos organismos
internacionais. A segunda vertente refere-se à continuidade e ao
redirecionamento do processo de integração no Cone Sul, de modo a
permitir acesso ao mercado em bases preferenciais e em condições mais
equânimes de competição que aquelas encontradas no Primeiro Mundo
e também a colocar, para o setor produtivo argentino, a oportunidade
de preparar-se para o contexto de abertura generalizada.
Aprevalência do paradigma neoliberal na Argentina e no Brasil
produziria forte convergência quanto ao sentido a ser impresso às
reformas econômicas. Mas, ao mesmo tempo, despontavam importantes
clivagens no âmbito das políticas externas que, embora não
obstaculizassem a continuidade do processo de integração bilateral,13
passariam a condicioná-lo em dois sentidos: primeiro, levando a que a
estratégia de integração fosse centrada nas áreas de forte convergência,
possíveis de realização imediata e, como se verá adiante, circunscritas
ao âmbito comercial, uma vez que já tinham sido praticamente
suplantadas desconfianças no plano estratégico-militar; segundo,
introduzindo um elemento de volatilidade política que permitiria à
Argentina o exercício de uma estratégia de elevar sua capacidade de
barganha manipulando politicamente as assimetrias que marcam suas
relações tanto com o Brasil como com os Estados Unidos, as quais
constituíam, ainda que com sentidos diferenciados, os eixos centrais
de promoção de sua inserção internacional. Em outras palavras, o
manejo simultâneo das relações com o Brasil e com os Estados Unidos
em elevado nível de prioridade, na política exterior argentina, passaria
a representar meio importante para reduzir ou compensar, no campo
da política internacional e no âmbito de seus vínculos bilaterais, suas
limitações e inferioridade no plano econômico, onde estavam, de fato,
definidos os interesses e as necessidades fundamentais do país.

13 Roberto Russel, op. cit., p. 40.

85
ALCIDES COSTA VAZ

2.2.2. A política exterior brasileira sob .ernando Collor e


Itamar .ranco: o foco regional e as relações com a
Argentina

Apolítica externa brasileira viria também a experimentar, no


mesmo contexto, com a chegada de Fernando Collor ao poder,
significativas mudanças, as quais estiveram voltadas a adaptá-la ao novo
cenário internacional e, no plano doméstico, à promoção de reformas
econômicasedo Estado. Tratava-se, já nos albores da pós-Guerra Fria,
de implementar reformas econômicas de corte liberal, que tinham a
abertura, a desregulamentação e a privatização como medidas
indeclináveis para a retomada do desenvolvimento e para tornar a
economia brasileira competitiva internacionalmente. Ao mesmo tempo,
procurar-se-ia restaurar a credibilidade externa do país, que seguia ainda
abalada por um legado de projetos herdados do regime militar, não
totalmente suplantados pelo governo Sarney, pela deterioração da
condição macroeconômica, acentuada pelo fracasso no controle da
inflação e no combate à corrupção no aparelho do Estado, e por medidas
como a moratória da dívida externa decretada em 1988.
De forma imediata, sob Collor, a política externa passaria a
servir a um duplo objetivo: instrumentalizar, no âmbito externo, o
processo de reforma e abertura econômica e restaurar a credibilidade
do país perante os seus interlocutores, principalmente, nos países
desenvolvidos. Procurava-se romper com a identificação do Brasil com
o contexto do subdesenvolvimento e imprimir a ele um perfil renovado
e convergente com as teses e postulados de modernidade dos países
desenvolvidos. Segundo Hirst, três metas foram estabelecidas para
atender a esses objetivos: atualizar a agenda internacional, construir
uma agenda positiva com os Estados Unidos e descaracterizar o perfil
terceiro-mundistado Brasil.14 Em uma perspectiva mediata, apolítica
externa estaria voltada para o aumento da competitividade internacional
do país mediante a abertura econômica e a busca de condições favoráveis

14 Mônica Hirst e Letícia Pinheiro. “A política exterior do Brasil em dois tempos”, Revista
Brasileira de Política Internacional, nº 1/38, p. 6.

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

de acesso a mercados, créditos e tecnologias.15 Diante desses objetivos,


reafirmavam-se a funcionalidade e o sentido predominantemente
econômico a serem impressos às parcerias internacionais, notadamente,
com a Argentina.16
Cumpre notar, pois, um elemento recorrente: a preocupação
em alterar o perfil do relacionamento com os países industrializados e,
em particular, com os Estados Unidos. Contudo, esse esforço não
implicava o abandono ou desqualificava, em nenhum sentido, a
dimensão universalista da política externa brasileira. Tampouco deveria
implicar qualquer forma de retrocesso ou comprometimento dos
avanços obtidos nas relações com os países do Cone Sul e com a Argentina
em particular. A rigor, o Brasil seguiu rejeitando a possibilidade de
alinhamento exlusivo ou de relacionamento privilegiado com os Estados
Unidos, no que passou a constrastar fortemente com a orientação impressa
à política externa argentina no mesmo contexto, particularmente com
a ascensão de Guido di Tella ao comando da chancelaria argentina.
A leitura que orientaria, desde então, a formulação da política
externa brasileira, diferentemente da visão argentina, assumia que o
sistema internacional passava a caracterizar-se, do ponto de vista da
distribuição do poder, por polaridades indefinidas, pela persistência e
pelo alargamento de assimetrias e pela coexistência de forças de
integração e de dispersão.17 Em tal contexto, assumia-se que a estratégia
visando projetar os interesses brasileiros e redefinir o perfil externo do
país deveria pautar-se pela ação simultânea, com sentido de reforço
mútuo, no plano das relações bilaterais, no âmbito regional e nos foros
multilaterais, objetivando o aproveitamento de possibilidades que
revertessem em favor da modernização da economia e da restauração
da credibilidade externa do país.

15 Marcos C. de Azambuja. A política externa do governo Collor, citado em, Mônica Hirst e
Letícia Pinheiro op. cit., p. 7.
16 Ver Celso Lafer, “Perspectivas e possibilidades da inserção internacional do Brasil”,
Política Externa, v. 1, dez. 1992, p. 117.
17 Formulação de Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores durante os meses finais do
governo Collor, que também se referia às forças centrífugas e centrípetas atuando no sistema
internacional.

87
ALCIDES COSTA VAZ

Essa mesma lógica passaria a orientar o processo de integração


com a Argentina, o que implicou o abandono da estratégia integracionista
perseguida anteriormente, baseada na aproximação setorial com que se
procurara gerar maior interdependência entre os dois países. Aquela
estratégia fora conduzida com base nos princípios de simetria,
reciprocidade e gradualismo; estes cederam lugar à liberalização
progressiva, automática e linear do comércio, com a qual, além do
avanço em termos da integração econômica, se procurava sinalizar aos
países industrializados e aos investidores internacionais a disposição
quanto à abertura econômica do país em sentido geral.
Aintegração e, conseqüentemente, as relações com a Argentina,
ganhavam, para o Brasil, a partir de então, novo sentido de funcionalidade
imediata: representariam espaço e oportunidade de aprendizado e
adaptação dos setores privados para a abertura econômica e para a
exposição à concorrência externa, segundo a lógica do mercado,
representando também resposta adaptativa à formação de blocos
econômicos. O Mercosul constituiria, segundo essa lógica, o espaço
em que as agendas econômicas domésticas vincular-se-iam às tendências
da economia mundial e, com base nele, os países membros negociariam
conjuntamente a inserção internacional, sendo essa uma importante
dimensão do sentido estratégico a ele então outorgado.
O afastamento de Fernando Collor de Mello e a ascensão de
Itamar Franco não acarretaram rupturas essenciais na política externa.
Em geral, foram reafirmadas as linhas introduzidas por Collor e efetuados
ajustes que tinham a ver com a forma voluntarista com a qual Collor
procurou promover a aproximação com o Primeiro Mundo e rejeitar
o perfil terceiro-mundista do Brasil. Com Itamar Franco, retomou-se,
no discurso diplomático, a condição do Brasil como país em
desenvolvimento identificado com as causas e necessidades do sul, mas
igualmente buscando restabelecer e renovar seus vínculos com o mundo
industrializado. Segundo as palavras do então chanceler Celso Amorim:
a agenda diplomática deve mesclar de forma cuidadosa elementos
de continuidade e de inovação e evitar as guinadas abruptas,
ditadas por conversões precipitadas ou descabidos sentimentos
de rejeição, que por vezes chegam à auto-rejeição. Sem assumir

88
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

o que de fato somos – país em desenvolvimento, pluriracial e


com enormes desafios a vencer, nos planos social, econômico e
tecnológico – não lograremos alcançar as condições e os
instrumentos necessários à superação de nossos problemas e a
uma inserção internacional adequada.18

Se, em linhas gerais, a política externa refletia continuidade,


houve, contudo, mudança importante quanto ao protagonismo
brasileiro no âmbito regional: o governo Itamar Franco, apesar de breve
fase de indecisão inicial, reafirmou e acentuou a prioridade à
consolidação do Mercosul e, ao mesmo tempo, procurou articular
novas iniciativas que ampliassem a toda a América do Sul o alcance da
integração iniciada no Cone Sul. São exemplos de tais iniciativas, as
propostas de criação da Área de Livre Comércio da América do Sul
(Alcsa) e a Iniciativa Amazônica. Apesar de não haverem prosperado,
essas propostas tiveram o mérito de inscrever a perspectiva de integração
regional no cálculo estratégico dos países do Mercosul diante das
propostas de integração de alcance continental, como a formulada pelos
Estados Unidos em dezembro de 1994, na Cúpula de Miami. Ao
mesmo tempo, as propostas manifestavam o interesse brasileiro em
exercer papel proativo na integração para além do nível sub-regional.
Assim, o governo Itamar Franco empreendeu esforços no
sentido de ampliar os vínculos do país no continente sul-americano e
em outras regiões, como a África, mas o fez a partir de iniciativas de
caráter multilateral. Com a implantação das medidas de estabilização
econômica, a partir do início de 1994, inaugurou-se, para o Brasil,
uma fase em que estiveram presentes duas condições cruciais para o
desenvolvimento do país, as quais impactaram sua política externa e,
conseqüentemente, o exercício de construção de parcerias. Também,
viriam a influenciar e, em muitos sentidos, definir, como se verá em
capítulo posterior, os rumos das negociações no âmbito do Mercosul.
São elas: estabilidade política em um marco democrático e crescimento
no contexto de abertura econômica. Esse novo quadro interno, aliado
às incertezas que continuaram marcando o cenário internacional, passou

18 Discurso no Instituto Rio Branco, em 16 de março de 1994.

89
ALCIDES COSTA VAZ

a exigir maior abertura à participação social e criatividade no campo da


política externa, sem, contudo, descaracterizar os seus elementos de
continuidade.
Em face disso, o Brasil passou a adotar postura na qual
procurava ajustar os imperativos do novo modelo de desenvolvimento,
calcado no liberalismo econômico, à opção de exercer autonomia
relativa na condução de sua política exterior, ainda que, para tanto,
devesse redefinir, substantivamente, o sentido dessa autonomia e a
forma de atuar para resguardá-la. Tratou-se, claramente, de resposta
que, em termos de condução da política exterior, procurava refletir os
paradoxos do sistema internacional contemporâneo.
O esforço de equilibrar necessidades nacionais e as possibilidades
e restrições colocadas por um contexto de globalização passaram a
requerer, portanto, formulações que racionalizassem e permitissem
expressar, de modo coerente, a orientação da política externa e, ao mesmo
tempo, alegitimassem internamente. Naspalavrasdo ex-chanceler Luiz
Felipe Lampréia, proferidas em momento ulterior ao ora analisado,
mas plenamente aplicáveis ao contexto:
É essencial ter presente que a defesa de margens para escolhas
próprias não se confunde mais, como ocorreu no passado, com a
noção de auto-suficiência. Muito pelo contrário: em nossos dias,
autonomia passa necessariamente pela integração com outros
países, e não apenas no âmbito regional, mas também por parcerias
internacionais cuidadosamente construídas e aprofundadas. Passa,
ainda, diferentemente do que se poderia intuir, por um mundo
governado não por menos e sim por mais regras internacionais;
sobretudo por decisões e acordos que atendam às nossas
necessidades e interesses.19

A questão que se colocava, portanto, para a política externa


brasileira, era a de conciliar os interesses forjados no contexto de um
modelo de desenvolvimento autárquico, em sua adaptação a uma
realidade que se amparava em postulados opostos aos que deram

19 Luiz Felipe Lampréia, discurso proferido no Fórum Nacional, em maio de 1998.

90
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

sustentação àquele modelo, com a necessidade de promover, interna e


externamente, iniciativas orientadas para a inserção em uma economia
globalizada.
Nesse contexto, a relação com a Argentina, que dá sustentação
ao Mercosul, preservaria o mesmo sentido de funcionalidade geral que
em períodos anteriores, dado que a política externa continuava então,
como no presente, fundamentalmente voltada para a realização de
interesses de desenvolvimento:
De modo geral, entretanto, parece correto dizer que, no caso do
Brasil, ... o objetivo principal é conseguir do intercâmbio externo
elementos úteis à realização da meta prioritária do desenvolvimento,
tanto em suas dimensões econômica e social, como também em
áreas como direitos humanos, políticas públicas e meio ambiente.
Em síntese, elementos que sirvam ao desenvolvimento na acepção
mais abrangente do conceito. As parcerias externas são um
complemento indispensável para os esforços de desenvolvimento,
embora não tenha deixado de ser verdade que o fator determinante
continua a ser as boas políticas internas.20

Portanto, no caso brasileiro, o que se redefiniu, essencialmente,


não foram tanto as prioridades e os objetivos de política externa, mas
sim o modelo de desenvolvimento do qual a política externa esteve a
serviço, que, ao procurar pautar-se na orientação das forças e estruturas
de mercado ena abertura econômica, terminou por realçar a importância
do espaço regional como âmbito de atuação prioritária para o país.
Assim, a necessidade mútua de redefinir os parâmetros de
inserção internacional e de reformar as estruturas econômicas
domésticas, segundo orientação liberal, traduziu-se, para o Brasil e a
Argentina, em visões convergentes quanto a importantes objetivos de
política externa, notadamente a maximização de oportunidades
comerciais, com o conseqüente esforço para garantir acesso a mercados,
e de forma privilegiada no que tange a seus respectivos mercados, a
atração de recursos financeiros e tecnológicos para empreender a desejada

20 Idem.

91
ALCIDES COSTA VAZ

transformação de suas estruturas produtivas, a melhoria da interlocução


e o aumento da capacidade de negociação diante dos países
desenvolvidos e nos foros multilaterais.
Foi precisamente à luz desses objetivos que se definiu, em cada
caso, a integração, inicialmente em nível sub-regional, como dimensão
essencial das políticas externas dos dois países, de que se depreende seu
caráter instrumental. Embora assumindo diferentes premissas sobre o
sentido e as implicações para a estrutura de poder das transformações
do sistema internacional e sobre as opções em termos de alinhamentos
a serem construídos, o Brasil e a Argentina seguiam com visões
convergentes sobre a importância do espaço regional como locus de
atuação primária e da integração, consubstanciada em um primeiro
momento em instrumentos bilaterais e, posteriormente, no Mercosul,
como meio de realizar objetivos externos e domésticos, tal como se
analisa a seguir.

2.3. A definição de interesses e a formulação dos


objetivos, na perspectiva governamental, no plano
da integração sub-regional

Os objetivos gerais da integração, do ponto de vista formal,


estão explicitados nos acordos, nos tratados e em outros atos e
mecanismos diplomáticos que a instrumentalizam, jurídica e
tecnicamente, e definem, numa perspectiva formal, o próprio objeto
da negociação que se instaura, em um primeiro momento, em nível
bilateral, e que assume, a partir de 26 de março de 1991, com a
assinatura do Tratado de Assunção, caráter multilateral. Além dos
objetivos formais enunciados nos instrumentos diplomáticos, objetivos
de caráter mais circunstancial e táticos foram sendo definidos, em cada
país, ao longo do processo negociador, em uma relação dialética
envolvendo, de um lado, interesses dos governos em face de objetivos
de política econômica e oportunidades e constrangimentos domésticos
e também externos e, de outro, as próprias condições de implementação
do processo integracionista e de condução do processo negociador em
suas diferentes etapas.

92
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

No entanto, é necessário considerar que os objetivos formais


da integração, tal como expressos nos diferentes instrumentosjurídicos
que a instaura e que orientam as ações dos governos em sua realização,
não retratam, com precisão e de forma integral, os interesses e os
objetivos do Brasil e da Argentina, dentro de uma visão de factibilidade
imediata. Tal como expressos no Tratado de Assunção, os objetivos da
integração podem ser considerados formulações maximalistas e
eminentemente políticas, que não encontrariam condições de
operacionalização no curto e médio prazos, do ponto de vista técnico
ou mesmo político, ou de ambos simultaneamente, mas que
comportam objetivos particulares, de menor alcance, nem sempre
explicitados, mas tidos como viáveis nos planos político e técnico e
cuja consecução, mesmo que parcial, representaria avanço rumo aos
formalmente definidos.
Nesse sentido, a consideração dos objetivos gerais do Brasil e
da Argentina, quanto à integração e ao processo negociador que lhes
corresponde, empreendida a seguir, assenta-se, por conseguinte, nas
formulações oficiais, isto é, aquelas contidas nos atos diplomáticos,
procurando resgatar, dentro de um enquadramento histórico e
conjuntural e com base nas percepções colhidas junto a vários dos
negociadores, elementos que ensejem a identificação e caracterização
de outros objetivos e interesses que também impulsionaram e
orientaram, de modo efetivo, a interação entre o Brasil e a Argentina
no âmbito do processo negociador no período de 1991-1994.
O Tratado de Assunção de 26 de março de 1991, que criou o
Mercosul, enuncia como objetivo fundamental o estabelecimento de
um mercado comum entre os quatro países no prazo de cinco anos.
É importante ressaltar que existe uma inadvertida diferença entre a
versão em espanhol e a em português na redação do artigo 1º do Tratado
de Assunção. A versão em espanhol estabelece: “Los Estados Parte
deciden constituir un Mercado Común, que deberá estar conformado al
31 de diciembre de 1994, el que se denominará Mercado Común del
Sur (Mercosur)”. Na versão em português, lê-se: “Os Estados-parte
decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido

93
ALCIDES COSTA VAZ

a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará Mercado Comum


do Sul (Mercosul).” Aredação original em espanhol retrata, com maior
precisão, o sentido parcial que se desejava conferir à consecução do
objetivo eminentemente comercial da fase de transição. Ainda que faça
menção explícita à forma de integração a ser alcançada (mercado
comum) e enumere outros objetivos para sua consecução, o tratado
dispõe dos mecanismos para a formação de uma área de livre comércio,
resgatando, para os quatro países-parte, instrumentos criados pelo
Acordo de Complementação Econômica nº 14, celebrado no âmbito
da Aladi, entre o Brasil e a Argentina, em dezembro 1990, que absorveu
todos os acordos e protocolos bilaterais até então assinados.
Assim, o Tratado de Assunção não introduz inovações quanto
ao então principal instrumento da integração bilateral no âmbito
comercial: o mecanismo de desgravação tarifária linear e automática
constante do Acordo de Complementação Econômica nº 14
(ACE 14) foi transposto para os quatro países-parte do Tratado de
Assunção. Há inovações, neste último, mas apenas quanto aos ritmos
diferenciados para a desgravação tarifária do Paraguai e do Uruguai,
países que ainda se beneficiaram de um maior número de produtos
mantidos fora do regime de liberalização e de um tratamento mais
favorável quanto a cotas e ao regime de adequação à tarifa externa
comum surgido posteriormente com o Protocolo de Ouro Preto, de
dezembro de 1994. Portanto, o essencial do programa de desgravação
tarifária executado no Mercosul, a partir de março de 1991, e que seria
o principal eixo de estruturação da área de livre comércio entre os quatro
países membros, já estava definido e em operação entre o Brasil e a
Argentina, quando da assinatura do Tratado de Assunção. E este,
embora definisse como principal objetivo a constituição de um mercado
comum até o final de 1994, não o instrumentalizou em sua plenitude,
dando lugar a um descompasso entre o objetivo final enunciado e os
mecanismos criados para sua operacionalização.
A esse respeito, vale lembrar que o Programa de Integração e
Cooperação Econômica, de 1986, assumia como objetivo a “criação
de um espaço econômico comum”, formulação retomada no Tratado

94
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, de novembro de 1988,


cujo artigo 1º dispõe:

O objetivo final do presente Tratado é a consolidação do processo


de integração e cooperação econômica, entre a República
Federativa do Brasil e a República Argentina. Os territórios dos
dois países integrarão um espaço econômico comum, de acordo
com os procedimentos e os prazos estabelecidos no presente
Tratado. (Grifo do autor).

O mesmo tratado, nos artigos 3º a 5º, estabelecia que a


construção do espaço econômico comum entre o Brasil e Argentina
dar-se-ia em duas etapas: a primeira, compreenderia a remoção dos
obstáculos tarifários e não tarifários ao comércio de bens e serviços e
deveria transcorrer no prazo de dez anos, para, a partir de então, em
uma segunda fase, promover-se a “harmonização gradual das demais
políticas necessárias à formação do mercado comum entre os dois
Estados-parte”. Tratava-se de esforço para promover a abertura mútua
e seletiva de ambos os mercados e a complementação econômica com
base em aproximações setoriais, embora mantendo, cada país,
mecanismos de proteção diante de terceiros.
Cumpre destacar ser esta a primeira referência explícita à
formação de um mercado comum entre o Brasil e a Argentina.
Particularmente o Brasil fora, em momentos anteriores, reticente
quanto à formação de um mercado comum de âmbito regional,
preferindo, numa perspectiva pragmática, como estratégia de integração,
o estabelecimento de acordos de liberalização comercial abrangendo
um número restrito de países. Assim foi, por exemplo, no final dos
anos 50, quando, por iniciativa brasileira, principiaram-se estudos e
consultas com a Argentina, o Chile e o Uruguai, com apoio da Cepal,
visando à criação de uma área de livre comércio mediante a redução
gradual das barreiras tarifárias e não tarifárias. Essa iniciativa teve a
acolhida da Argentina, cuja produção industrial, naquele momento,
equiparava-se àbrasileira. O mesmo verificou-selogo em seguida, no
transcurso das negociações que conduziram ao Tratado de Montevidéu,

95
ALCIDES COSTA VAZ

de 1960, quando o país atuou de forma ativa para assegurar, como


primeiro passo para a integração, a liberalização gradual dos fluxos
comerciais.21 A relutância brasileira com os termos do Tratado de
Montevidéu, de 1960, que consagrava a criação de um mercado comum
como objetivo maior, teria constituído o cerne do impasse produzido
já ao final da negociação.22 Essa posição foi reafirmada quando do
processo de avaliação da Alalc, ocorrido em 1969-1970, quando o Brasil,
com a Argentina e o México, conseguiu evitar que se estabelecessem
prazos para a instauração do mercado comum no âmbito da associação,
priorizando a implementação de medidas de abertura comercial na
região.
A resistência brasileira à formação de um mercado comum,
manifestada desde o final dos anos 50 e presente ao longo de toda a
trajetória da Alalc e somente superada, de modo gradual, a partir de
meados dos anos 80, refletia, em última instância, a opção pela
autonomia na promoção do desenvolvimento econômico, orientado
então pelo modelo de substituição de importações e o pragmatismo
da política externa que marcaram os governos desde então, e com maior
nitidez os governos militares no período pós-1964.23 Além disso,
entendia-se como incompatível com os interesses brasileiros a inevitável
perda de autonomia, em termos decisórios, que a institucionalização
requerida por um mercado comum acarretaria. Daí também a
discordância brasileira com a criação de instâncias supranacionais para
conduzir o processo de integração que, na perspectiva do governo
brasileiro, deveria ser eminentemente comercial. Esse posicionamento
refletia, ainda, a visão de que a integração regional era um complemento
da política comercial brasileira que atendia ao interesse de expandir

21 O Brasil participou ativamente da Conferência Intergovernamental para o estabelecimento


de uma zona de livre comércio no período de 1958 a 1960.
22 Relato do embaixador Mateo Magariños ao embaixador Rubens Antônio Barbosa, citado
em Rubens Antônio Barbosa, “O Brasil e a integração regional: a Alalc e a Aladi (1960-
1990)”. In: José A. G. Albuquerque, Sessenta anos de política externa: 1930-1990. São Paulo:
Cultura Editores Associados, 1996, nota 14, p. 161.
23 Rubens Antônio Barbosa, op.cit., p. 143. Cumpre assinalar, contudo, que na gestão de
Roberto Campos à frente do Ministério do Planejamento, formulou-se proposta de criação
de um mercado comum com a Argentina, mas que não prosperou.

96
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

mercados e incrementar as exportações de manufaturas, como meio


de acesso a recursos importantes para a promoção do desenvolvimento
econômico, principal vetor de orientação da política exterior do país.
Ainda assim, nos anos 60 e no início dos anos 70, o Brasil e a
Argentina, por razões semelhantes, compartilharam o interesse de
preservar a estrutura jurídica da Alalc, com o propósito de promover
um regime de livre comércio, mas sem se engajarem efetivamente nos
esforços de redirecionar o processo de integração para a finalidade de
constituir um mercado comum, como o pleiteavam os demais membros
da associação e, mais particularmente, os países andinos. Os dois, ao
lado do México, constituíam o conjunto de economias de maior
desenvolvimento relativo no âmbito latino-americano e almejavam
transformar suas estruturas produtivas, então centradas na produção e
exportação de bens primários. Assim, perseguiam políticas de
desenvolvimento econômico baseadas na estratégia de substituição de
importações. Enfrentavam dificuldades na geração de economia de
escala, dadas as limitações dos respectivos mercados domésticos para
dar sustentação aos esforços de industrialização. Desde os anos 50,
apoiaram firmemente a proposta de integração comercial como forma
de superar as limitações dos mercados nacionais e coadjuvar a política
de substituição de importações, tal como preconizava a Cepal.
É importante lembrar a esse respeito que a integração econômica
seria, segundo a perspectiva cepalina, complemento à política de
substituição de importações e estimularia a geração de economias de
escala por meio do alargamento dos mercados nacionais. Naquele
contexto, o interesse comum do Brasil e da Argentina, portanto, dizia
respeito à liberalização comercial na região, sem que isso implicasse
necessariamente comprometimento com a promoção de níveis mais
profundos de integração econômica.
A lógica que os vinculava em torno de um interesse comum,
na promoção de um esquema de integração eminentemente comercial,
viria a ser gradualmente alterada na década de 1970 e nos primeiros
anos da de 1980, em razão de fatores políticos e econômicos. No
primeiro caso, o advento dos governos militares recolocou em
perspectiva os elementos de confrontação tradicionalmente presentes

97
ALCIDES COSTA VAZ

nas relações entre o Brasil e a Argentina, na medida em que ambos os


países perseguiram estratégias que almejavam o fortalecimento e a
expansão de suas respectivas bases de poder, acirrando uma competição
estratégica, no plano sub-regional, refletida nas hipóteses de conflito
que orientavam o planejamento, em nível estratégico, das respectivas
forças armadas.
Ainda nesse período, a Argentina desencadeou um processo de
abertura econômica generalizado, que não se pautava por nenhum
sentido de prioridade ao mercado regional. Nessa decisão não foi
acompanhada pelo Brasil, que aprofundou seu modelo de industrialização
baseado na proteção ao mercado doméstico e na substituição de
importações. Do ponto de vista econômico, pesaram decisivamente as
crescentes dificuldades que os dois países enfrentavam em razão, de
um lado, da crise que assolara a economia mundial a partir do primeiro
choque do petróleo e, posteriormente, com a superposição do novo
choque do petróleo à crise financeira que culminou com a moratória
mexicanade 1982; e, deoutro, em conseqüência da crescente diferenciação
da estrutura produtiva brasileira, assentada no setor industrial, em vista
da estrutura argentina, que seguiu concentrada em torno dos setores
primários. Entretanto, em ambos os casos, tinha-se como pano de fundo
o gradual esgotamento da política de substituição de importações que,
naturalmente, acarretou maiores impactos na economia brasileira.
Desse modo, aumentaram, naquele período, as razões objetivas
que levavam o Brasil e a Argentina, embora em perspectivas distintas,
a posições de grande reserva quanto à criação de um mercado comum
de âmbito regional, demais da percepção de que se tratava de objetivo
inexeqüível nas circunstâncias políticas e econômicas de então. Nas
relações bilaterais, já nos anos 80, muito mais que a consecução de
uma forma específica de integração econômica, passava a ser de interesse
dos recém-empossados governos de Raul Alfonsín e de José Sarney o
estabelecimento de um intenso relacionamento nos planos político e
econômico, para responder a problemas comuns, o que constituiu, a
partir de então, um importante elemento definidor da natureza das
negociações do processo de integração, tanto na fase bilateral como na
multilateral, com o Mercosul, a partir de 1991.

98
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Na perspectiva argentina, o estreitamento de vínculos com o


Brasil permitiria responder a um conjunto amplo de interesses: no
plano político, fortaleceria o processo democrático e contribuiria
decisivamente para a estabilidade política e estratégica no Cone Sul,
invalidando argumentos, como o da necessidade de confrontar o Brasil
estrategicamente, que justificassem ou propiciassem qualquer forma
de influência direta dos militares na condução política do país, tanto
no plano doméstico como no externo, para além das esferas de sua
competência específica. Conseqüentemente, permitiria a redução dos
gastos das forças armadas, em uma fase em que a contenção de
dispêndios públicos era percebida como de fundamental importância
em face dos ajustes econômicos e das demandas por recursos em outras
áreas de política pública. No plano econômico, a superação de
contenciosos e a aproximação com o Brasil abririam condições para o
aproveitamento de oportunidades no mercado brasileiro, ampliariam
oportunidades econômicas e aumentariam o poder de barganha nas
negociações da dívida externa.
Para o Brasil, as razões que, na segunda metade dos anos 80,
justificavam a integração com a Argentina eram coincidentes: a
superação do clima contencioso com a Argentina e a confrontação de
posições xenófobas, internamente, instaurando um marco de
estabilidade regional. Do ponto de vista econômico, representava
oportunidade de expandir as exportações de manufaturas brasileiras,
além de propiciar reforço mútuo ante a questão da dívida externa.
O sentido da cooperação era o da abertura progressiva dos mercados
dos dois países, segundo princípios de realismo, pragmatismo, equilíbrio
e flexibilidade, mas mantendo, ao mesmo tempo, elevados níveis de
proteção com relação a terceiros mercados. Tratava-se, pois, de iniciativa
que se inscrevia no contexto de economias nacionais relativamente
fechadas, com forte presença do Estado e que procuravam confrontar
o desafio da modernização sem romper com o modelo econômico
vigente.
Por essa razão, embora voltadas para a instauração de um amplo
processo de cooperação econômica e desenvolvimento conjunto, as
iniciativas bilaterais durante os governos de Alfonsín e Sarney, na

99
ALCIDES COSTA VAZ

segunda metade dos anos 80, não incorporavam, de forma explícita,


objetivos formais que desencadeassem uma ampla abertura econômica,
nem mesmo entre os dois países. Acautela dos governos ante tal tipo
de compromisso, além do gradualismo, do prazo dilatado (dez anos) e
da abordagem setorial que incorporara, estava também refletida na
formulação dos objetivos contidos no Tratado de Cooperação e
Desenvolvimento Conjunto, de 1998, que se refere ao estabelecimento
de um espaço econômico comum entre os dois países.
Formalmente, o objetivo de estabelecer um mercado comum
entre o Brasil e a Argentina surge na Ata de Buenos Aires, firmada em
6 de julho de 1990, por ocasião da visita do presidente Fernando Collor
a Buenos Aires, já em um contexto substancialmente distinto, para
ambos os países, nos âmbitos doméstico, regional e global.
Internamente, ambos os governos, recém-eleitos, confrontavam o
desafio de estabilizar as economias mediante a implementação de
medidas de ajuste e de impacto imediato e, ao mesmo tempo, de
proceder às reformas estruturais que assegurassem a modernização e a
inserção econômica, em novas bases e patamares de produtividade e
competitividade. Para tanto, a abertura econômica e a desregulamentação
dos mercados, promovidas por meio de medidas unilaterais e negociadas,
multilateral e regionalmente, apresentaram-se como opções desejáveis
e às quais a integração passou a vincular-se em termos operativos.
Externamente, dois aspectos influenciaram fortemente as
definições, quanto à forma e aos prazos da integração brasileiro-
argentina, consubstanciadasna Ata de Buenos Aires. Em primeiro lugar,
os impasses do Gatt, na Rodada do Uruguai, que colocavam em
perspectiva a possibilidade de fracasso das negociações, com o
conseqüente enfraquecimento do sistema multilateral de comércio e a
fragmentação da economia internacional, despontando o regionalismo
como importante elemento alternativo ao multilateralismo e,
potencialmente, definidor do ordenamento econômico internacional
para os anos 90. Reforçava-se e justificava-se, desse ponto de vista, a
necessidade de intensificar o processo de integração. Em segundo lugar
e no mesmo sentido, o anúncio, pelo governo norte-americano, da
Iniciativa para as Américas (IPA), em junho de 1990, gerou, em um

100
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

contexto imediato, a necessidade, para o Brasil e a Argentina, de


considerarem o encaminhamento de seu processo de integração à luz
de um novo elemento que se apresentava, potencialmente, como o
novo eixo articulador da política norte-americanapara a América Latina.
A perspectiva de integração comercial do hemisfério colocada
pela IPA adicionava, para ambos os países, um componente novo às
relações econômicas no plano continental, além do Nafta que passava
a apresentar-se como referência nas políticas comerciais dos países latino-
americanos. As reações do Brasil e da Argentina à proposta do governo
Bush foram, em um primeiro momento, convergentes quanto aos
aspectos positivos que a mesma colocava em perspectiva para a América
Latina,24 particularmente no tocante ao acesso ao mercado norte-
americano, maspassaram adiferenciar-seàmedidaque se dimensionaram
seus riscos e limites, os quais eram particularmente acentuados na
perspectiva dos interesses brasileiros. Em sua formulação original a
IPA contemplava um regime de livre comércio no continente americano,
um plano de conversão da dívida externa oficial dos países latino-
americanos, contraída com os Estados Unidos, por projetos ambientais
e a estruturação de um mecanismo de fomento a investimentos. Dado
o pequeno volume de sua dívida oficial e do montante passível de ser
reduzido nos termos da IPA, o Brasil, opunha-se fortemente ao
mecanismo de conversão, uma vez que a forma de gerenciamento
prevista para os projetos implicava ingerência externa. No tocante aos
investimentos, a constituição de um fundo com aportes de cerca de
quinhentos milhões de dólares era tido como insuficiente para as
necessidades da região. O interesse brasileiro, centrava-se na perspectiva
de lograr melhores condições de acesso ao mercado norte-americano,
mediante a revisão, por parte dos Estados Unidos, dos programas e

24 Para uma apreciação pormenorizada das implicações da IPA para o Brasil e a Argentina,
ver Alcides Costa Vaz, “La Iniciativa para las Américas desde la perspectiva brasilera”, e Rut
Diamint, “La Iniciativa para las Américas: el caso de Argentina”. In: Francisco Rojas Aravena
(org.), La respuesta latinoamerica a la Iniciativa para las Américas. Santiago: Flacso, 1993, p.
115-142 e 81-114. Ver ainda, para o caso brasileiro, João Paulo dos Reis Velloso, O Brasil
e o Plano Bush: oportunidades e riscos em uma futura integração das Américas”. São Paulo:
Nobel, 1991.

101
ALCIDES COSTA VAZ

dispositivos de legislação comercial que afetavam vários produtos


brasileiros.
Em conseqüência, a posição cautelosa do Brasil em relação à
IPA passou a contrastar com o entusiasmo que marcava as posições
dos demaispaíses do Cone Sul. A Argentina assumira, desde o anúncio
da IPA, uma atitude favorável, uma vez que ela coincidia com a
orientação que se imprimia à política exterior do país e reforçava o
direcionamento da política econômica para a abertura e o incremento
de vínculos econômicos com os Estados Unidos. Sob novo governo,
o Uruguai, que procurava definir os termos da sua inserção externa e
havia proposto, pouco antes do anúncio da IPA, um diálogo de âmbito
continental, para tratar da promoção de investimentos, também
acolheu a iniciativa com grande interesse. O Chile aceitou de imediato
os termos propostos pelo governo norte-americano e mostrou-se
disposto a iniciar as negociações prontamente.
Nesse contexto em que se tornava evidente, para o Brasil, o
risco de dispersão de esforços que a IPA, além do Nafta, representava
no âmbito sub-regional, o país imediatamente procurou concertar
posições, tentando “evitar umareação desordenada dospaíses envolvidos
no processo de formação de mercado comum em nível regional”.25
Esse esforço concentrou-se, inicialmente, na Argentina e, logo em
seguida, estendeu-se aos demais países do Cone Sul, à exceção do
Paraguai. Cumpre destacar que o anúncio da IPA coincidiu com os
preparativos da primeira viagem de Fernando Collor à Argentina, que
se realizaria no mês seguinte, julho de 1990. O tema da coordenação
de posições inseriu-se na agenda do encontro presidencial, que tinha
como objeto principal a reformulação da estratégia de integração
econômica. A IPA representou, na nova fase da integração, a primeira
oportunidade efetiva de construir, em torno do esforço de integração
sub-regional, uma plataforma para atuação conjunta em negociações
externas, o que viria a representar, posteriormente, uma importante
dimensão política assumida por intermédio do Mercosul.

25Celso Amorim e Renata Pimentel, “Iniciativa para as Américas, o Acordo do Jardim das
Rosas”. In: José Guilhon de Albuquerque, op. cit, vol. 2, p. 113.

102
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Assim, da Cúpula de Buenos Aires, de julho de 1990,


emanaram duas decisões que, de um lado, redefiniam o sentido a ser
conferido ao processo de integração, ajustando-o ao novo contexto
doméstico e externo, e que, de outro, contribuiriam diretamente para
definir a composição do Mercosul, marcando a multilateralização do
processo de integração Brasil-Argentina. A primeira decisão
consubstanciada na Ata de Buenos Aires envolve a formação de um
mercado comum como objetivo final e a redução, de dez para cinco
anos (31 de dezembro de 1994), do prazo fixado no Tratado de
Cooperação, Integração e Desenvolvimento, de 1988, paraaremoção
dos obstáculos tarifários e não tarifários ao comércio de bens e serviços
entre os dois países, o que representava a primeira etapa do processo
então previsto. A segunda decisão refere-se à coordenação de uma
posição conjunta em relação àIPA.26
A primeira decisão formaliza, portanto, a mudança qualitativa
do objetivo formal da integração e reflete a disposição de ambos os
governos de empreender esforços para consolidar um bloco econômico
que representasse uma alternativa real de inserção em um contexto em
que a fragmentação do sistema multilateral de comércio era avaliada
como factível. Para tanto, projetam um objetivo ambicioso, embora,
na ocasião, não houvesse referência explícita à sua operacionalização
para além do campo comercial, mediante o estabelecimento de um
mecanismo progressivo, automático e linear de redução tarifária e a
constituição do Grupo Mercado Comum, este com a incumbência de
propor medidas visando à harmonização de políticas, examinar questões
afetas ao comércio bilateral e coordenar posições diante de práticas
desleais de comércio de terceiros países.
Refletia igualmente a preocupação de ambos os governos em
garantir a continuidade do processo de integração, nos novos termos
em que o mesmo passara a ser definido, e em favor da abertura
econômica, para o que circunscrevem sua implementação aos
respectivos mandatos, resguardando-o de eventuais inflexões ou

26Declaração conjunta dos ministros das Relações Exteriores do Brasil e da Argentina, de


6 de julho de 1990.

103
ALCIDES COSTA VAZ

retrocessos causados por mudanças de orientação de futuros governos


em cada um dos países. Nas palavras do então ministro Renato
Marques, negociador brasileiro:27 “O prazo era isso. Era a segurança
de que quem assinou leva o esquema até o final. Não tem aquela coisa
de que amanhã vem outro governo, com outro projeto, com um matiz
distinto, e vai renegociar ou vai atenuar ou retardar alguma coisa”.
A racionalidade do prazo, portanto, referia-se menos à consecução do
objetivo final, que consistia na formação de um mercado comum, e
mais à disposição de ambos os governos, tomando por base a estrutura
do programa de abertura comercial brasileiro, de circunscreverem aos
respectivos mandatos a implementação das medidas de abertura no
plano bilateral que conduzissem a um regime de livre comércio.
Essa lógica encontra confirmação nas palavras de Félix Peña,
em entrevista ao autor:

Sabiendo que lo que se estaba haciendo era lanzando un proceso en


la dirección estrategica determinada y que de ninguna manera, en
ninguno momento, jamás, ni en el que se escribió, ni en lo que
conversamos, que yo recuerdo, nadie pensó que el mercado comun
estaria concluido en 31 de diciembre de 1994. Ni mismo en la
redacción del artículo primero [do Tratado de Assunção, inserção
minha] cuando dice ‘el Mercado Comum deberá estar conformado’,
está diciendo ‘tendrá forma’ pero luego, a continuación de lo que
implica un mercado comun, define el producto final y luego se asumen
los compromisos concretos que definen lo que se debia alcanzar en el
periodo de transición.

Portanto, o objetivo e os prazos fixados na Ata de Buenos


Aires e, em seguida, incorporados ao Tratado de Assunção foram
definidos à luz de considerações preponderantemente políticas,
vinculadas à promoção da abertura econômica, e não propriamente
pragmáticas quanto às condições, os requerimentos e o tempo
necessários para a conformação de um mercado comum. Referiam-se
antes a objetivos internos dos governos que eram coincidentes: em

27 Embaixador Renato Marques, entrevista ao autor.

104
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

primeiro lugar, vincular o processo de abertura, que em ambos os países


atravessava uma fase inicial, a compromissos acordados externamente,
traduzidos em objetivos estritos quanto à substância e aos prazos, e
formalizados em instrumento jurídico, colocando, pois, um anteparo
às resistências de setores domésticos à abertura. No caso brasileiro, esse
objetivo tinha como foco a abertura comercial, sendo que, para a
Argentina, além da abertura comercial, acrescia-se o componente da
promoção da estabilidade econômica, que viria a ancorar-se, em seguida,
na convertibilidade da moeda ao dólar norte-americano. Em segundo
lugar, era de interesse dos dois governos que, naquele momento, a
implementação das medidas de abertura estivesse o mais imune possível
às pressões políticas domésticas. Por essa mesma razão delimitam o
horizonte temporal de implementação das medidas de abertura
comercial aos seus próprios mandatos e também confirmam a
metodologia de desgravação linear e automática, que fez que o ritmo
de implementação da integração comercial não estivesse mais
condicionado às resistências setoriais. Em outras palavras, o propósito
da abertura comercial, tanto em seu sentido geral quanto em sua
dimensão sub-regional, passava a constituir um tema não negociável
em relação aos distintos protagonistas sociais, políticos e econômicos
em cada país.
Por sua vez, a decisão de coordenar posições ante a IPA, além
de reforçar o sentido pragmático que o Brasil e a Argentina imprimiam
à integração, precipitou a necessidade de concertar ações em um contexto
no qual também se colocava a possibilidade de incorporação do Uruguai
e do Chile, covalidando, ainda que indiretamente, o interesse uruguaio
de vincular-se ao processo de integração que o Brasil e a Argentina
levavam a cabo. E gerou-se o contexto imediato em que se evidenciaria
a opção chilena por uma estratégia de perseguir unilateralmente vínculos
com os Estados Unidos, afastando-se da orientação favorável a concertar
interesses com seus vizinhos sul-americanos que marcara os primeiros
momentos da política externa chilena sob Patricio Alwyin.
Portanto, da Ata de Buenos Aires por diante, a integração
Brasil-Argentina, tanto na fase estritamente bilateral quanto na do
Mercosul, adquiria nova funcionalidade: além de dimensão essencial

105
ALCIDES COSTA VAZ

das políticas comerciais de ambos países, passou a representar espaço


específico de promoção da abertura econômica e de internacionalização
de seus respectivos setores produtivos, propiciando, de forma direta, o
ajustamento dos agentes privados a um novo contexto de exposição à
competição externa e de transformação produtiva e tornou-se espaço
privilegiado de articulação de interesses em âmbito regional diante dos
temas da agenda econômica internacional. De um regionalismo
autocentrado e coadjuvante da estratégia de substituição de importações,
como caracterizado nas décadas anteriores e ainda nos anos 80, procurou-
se afirmar a integração que se forjava como expressão de regionalismo
aberto,28 no qual se tentaria conciliar o estabelecimento de arranjos
preferenciais com a maior interdependência promovida pela atuação e
o incremento das forças de mercado em nível global.
A passagem de um regionalismo autocentrado para o
regionalismo associado à abertura e às reformas econômicas domésticas
implicava, para os governos brasileiro e argentino, no campo da
negociação, a necessidade de confrontar uma agenda distinta da que
orientara a integração nos anos 80, a qual fora definida em torno de
ações governamentais destinadas a promover a articulação de esforços
setoriais, dos quais os 24 protocolos bilaterais, assinados a partir de
1986, foram a melhor expressão.
O sentido da ampla abertura econômica a que a integração
passara a vincular-se, apartir de 1990, recolocava, para os dois países, a
liberalização comercial como objetivo imediato, com base no qual a
consecução de um mercado comum pudesse dar-se, sendo, portanto,
as questões afetas à construção de uma área de livre comércio o principal
eixo de definição da agenda de negociação desde então. Assim, tanto a
Ata de Buenos Aires quanto o ACE 14, este firmado em dezembro de
1990, e o próprio Tratado de Assunção representavam, em termos
práticos, o resgate do interesse do Brasil e da Argentina, tal como
expresso no final dos anos 50, de promover a integração tomando por
base a liberalização comercial, bilateralmente e também por grupos de
países, diferentemente das estratégias multilaterais, que caracterizaram

28 Cepal, El regionalismo abierto en América Latina y el Caribe, 1994.

106
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

os esforços da Alalc e da Aladi,29 e do enfoque setorial que orientou as


suas próprias iniciativas bilaterais nos anos 80. Apartir de então, questões
relacionadas à construção de uma área de livre comércio e,
posteriormente, de uma união aduaneira constituíram o cerne da agenda
de negociação entre 1990 e 1994, tanto no nível técnico como nas
instâncias executiva e política.
As questões pertinentes à liberalização dos fatores de produção
e à coordenação de políticas econômicas ficaram em plano secundário,
para o que foram decisivas as diferenças de condição macroeconômica
entre o Brasil e os seus parceiros. O Brasil atravessava fase de grande
instabilidade econômica e depois política, em razão do fracasso dos
Planos Collor I e II e do processo de impeachment que culminou com
a renúncia do presidente Collor. Enquanto isso, notadamente a
Argentina, com a adoção do Plano Cavallo em abril de 1991, ingressara
em um período de estabilidade e rápido crescimento econômico.
Ademais, dada a proeminência das questões comerciais na fase de
transição do Mercosul, as autoridades políticas e econômicas e os
próprios negociadores entendiam ser prescindível, para a conformação
da área de livre comércio e mesmo da união aduaneira, alcançar elevados
níveis de coordenação econômica para além do domínio das políticas
comerciais.
Contudo, em que pese a centralidade que a liberalização
comercial passara a assumir, dentro do novo sentido de funcionalidade
econômica e política que a integração adquiria, tanto no que respeita a
objetivos domésticos quanto externos, não deixava de ser oportuno
para ambos os países projetar níveis mais profundos de integração,
passando a formação de um mercado comum, não apenas uma área de
livre comércio, a constituir objetivo formal consagrado nos instrumentos
de integração a partir da Ata de Buenos Aires. De todo modo, a
formação de um mercado comum era percebida como compatível
com o gradualismo que deveria ser impresso à integração econômica,
dando-se prioridade à abertura de mercados comerciais como o primeiro
passo. Ao mesmo tempo, condizia com o sentido estratégico atribuído

29 Rubens Antônio Barbosa, op. cit., p. 159.

107
ALCIDES COSTA VAZ

à integração no contexto da inserção externa dos dois países e do


conjunto do Cone Sul e conferia um sentido de permanência de
interesses fundamentais e de continuidade em relação às iniciativas
anteriores, apesar das marcadas diferenças de enfoque entre elas, o que
representava um fator de estabilidade importante do ponto de vista da
atratividade de ambos os países ante os investidores externos. Por fim,
cumpre destacar que tanto Collor como Menem estavam imbuídos
do intuito de não formalizar, no plano das relações bilaterais, nenhuma
forma de retrocesso ou ruptura do que haviam pactuado Sarney e
Alfonsín, muito embora houvesse a clara percepção, da parte dos
negociadores, de que não estavam dadas as condições necessárias para a
realização dos níveis profundos de integração previstos no Acordo de
Integração e Cooperação de 1988.30
O ACE 14, firmado pelo Brasil e a Argentina no âmbito da
Aladi, em dezembro de 1990, refletia, em sua formulação, a referência
a um mercado comum,31 para cuja consecução objetivava criar
condições favoráveis, definindo um programa de liberação comercial
consubstanciado em cronograma de desgravação progressiva, linear e
automática, que compreenderia todo o universo tarifário de bens,
excetuados aqueles que integraram listas de exceções, as quais deveriam
ser gradualmente reduzidas ao longo do período de desgravação (1991-
1994). Consagra, portanto, a centralidade dos temas comerciais na
agenda de integração, vinculando a eles os esforços de coordenação
macroeconômica que se esperava empreender posteriormente.32
A integração entre o Brasil e a Argentina assumiu, com o ACE 14, a
feição que viria a definir o próprio Mercosul: um processo eminentemente
comercial objetivando, atéo final de 1994, ainstauração de um regime
de livre comércio, com referência a um posterior aprofundamento rumo

30 Embaixador Renato Marques e Félix Peña, entrevistas ao autor.


31 Associação Latino-Americana de Integração, Acordo de Complementação Econômica
nº 14, art. 1o.
32 O artigo 10 do ACE 14 diz: “A fim de tornar viável o cumprimento do cronograma de
desgravação disposto nos artigos 7o e 8o, bem como o estabelecimento definitivo do Mercado
Comum, ambos os países harmonizarão suas políticas macroeconômicas como referido no
Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, começando com aquelas vinculadas
aos fluxos de comércio e à configuração do setor industrial dos dois países.”

108
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

a um mercado comum, para cuja consecução alude-se à coordenação


macroeconômica e à possibilidade de incorporação de acordos de
complementação industrial. Em termos operativos, no entanto,
instrumentaliza-se apenas a criação da zona de livre comércio.
Como se verá adiante, esse formato de integração, transposto
para o Tratado de Assunção, traduzia a convergência de interesses do
Brasil e da Argentina em relação à abertura recíproca de seus mercados,
embora seja necessário considerar que, mesmo convergentes, tais
interesses possuíam especificidades, segundo cada país, que
condicionavam o processo negociador.

2.3.1. A redefinição dos interesses e objetivos do Brasil e


da Argentina nos anos 90

Do lado brasileiro, conforme já se mencionou, a integração


econômica, tanto em seu eixo bilateral como no âmbito regional,
representava uma dimensão de sua política comercial que atendia,
fundamentalmente, ao interesse de ampliar mercados de exportação,
notadamente de bens industriais, refletindo a diversidade e a própria
estrutura de sua base econômica, predominantemente industrial. Tal
interesse, como visto, já era manifesto desde o final dos anos 50, e
manteve-se nas décadas seguintes, alcançando a integração com a
Argentina a partir de meados dos anos 80, muito embora nessa fase,
houvesse também a forte incidência de interesses de ordem política,
que diziam respeito à manutenção e consolidação de um quadro de
estabilidade do Cone Sul, em termos estratégicos, e ao afiançamento
recíproco da democracia.
No entanto, é importante frisar que, mesmo nesse período e
em que pese a relevância da sua dimensão política, o conteúdo da
integração foi definido fundamentalmente no campo econômico e
em favor da promoção do desenvolvimento em tal âmbito. Não se
perdia, nem tampouco se diluía, em tais arranjos, a referência ao âmbito
nacional, nem em sentido político e nem em sentido econômico, uma
vez que a expansão dos mercados de exportação reverteria em benefício
direto do setor industrial, até então conformado fundamentalmente

109
ALCIDES COSTA VAZ

por grandes empresas de capital nacional (públicas e privadas) e empresas


transnacionais que, sob a égide do Estado, coadjuvavam um projeto
de desenvolvimento econômico de corte nacionalista.
Mesmo apartir de 1990, com aprofunda alteração do modelo
econômico, o ativo engajamento do Brasil na integração em nível sub-
regional continuou a responder a interesses políticos que encontrariam
sua realização no campo econômico, notadamente, por meio da
liberalização comercial. A lógica da vinculação entre interesses políticos
e econômicos no campo da integração, segundo a perspectiva brasileira,
foi assim expressa pelo embaixador Rubens Barbosa:

Ademais dos fatores geoestratégicos que possam desempenhar,


embora de forma limitada, um papel de realce nesse processo,
cabe salientar que as reais motivações do engajamento do Governo
brasileiro são, fundamentalmente, de ordem política (como aliás,
parecem ser, igualmente, as razões dos demais vizinhos). Essas
motivações de natureza política seriam basicamente duas: uma
proposta interna de desenvolvimento nacional (reestruturação
industrial e ampliação do mercado interno) e um projeto externo
de adequação a um mundo em rápida mutação.33

Igualmente, do ponto de vista da política comercial, o objetivo


brasileiro, em âmbito regional, seguia inalterado: ampliar mercados,
consolidando aposição de liderança brasileira,34 e preservar a capacidade
de influência do país em seu entorno, particularmente em face de três
fatores: a atração que o Nafta poderia exercer sobre os países vizinhos
e o possível efeito de desvio de comércio que afetaria as exportações
brasileiras para o mercado norte-americano; a perspectiva de formação
de uma área de livre comércio hemisférica, tal como preconizada na
IPA, proposta pelo governo Bush, em 1990, e retomada, em 1994,
pelo governo Clinton; o fortalecimento dos blocos econômicos

33 Rubens Antônio Barbosa e Luis Fernando Panelli Cesar, “A integração sub-regional,


regional e hemisférica: o esforço brasileiro”. In: Gelson Fonseca Júnior e Sérgio H. N.
Castro, Temas de política externa brasileira II, volII. Brasília: Funag, 1994, p. 303.
34 Marcelo Paiva Abreu e Winston Fristch, “Aspectos estratégicos da política comercial
brasileira”, Boletim da Diplomacia Econômica, nº 13, nov. 1992, p. 48.

110
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

colocados em perspectiva pela possibilidade de fragmentação do sistema


multilateral de comércio, considerando-se as dificuldades que as
negociações no âmbito da Rodada Uruguai atravessavam, o surgimento
do Nafta e a consolidação do Mercado Comum Europeu.
Nesse sentido, os interesses brasileiros, no contexto da
integração, revestiam-se de um caráter dual: por um lado, traduziam a
percepção da necessidade de uma postura afirmativa, em âmbitos sub-
regional e regional, para extrair benefícios econômicos diretos, com a
intensificação dos fluxos comerciais, e indiretos, pelos acréscimos em
termos de competividade externa e de atratividade diante de investidores
externos; de outro, refletiam uma postura reativa e defensiva, com a
qual se procurava resguardar interesses políticos e econômicos ante as
injunções dos cenários regional e global e, mais particularmente, o
risco de fragmentação do sistema multilateral de comércio, posto em
perspectiva pelos impasses na Rododa do Uruguai do Gatt, o
engajamento dos Estados Unidos em iniciativas de integração econômica
regional e hemisférica e o eventual desvio de exportações que o Nafta
produziria. Essas preocupações foram reforçadas com o anúncio, pelo
governo norte-americano, em junho de 1990, daIPA, tendo como
principal pilar a construção de uma área de livre comércio no continente
americano. Esses aspectos levaram o Brasil a confrontar a necessidade
de busca de respostas viáveis e eficazes, a curto prazo, o que, ao lado do
interesse de reforçar internamente o sentido da abertura econômica,
fortalecia o apelo da liberalização comercial na esfera do Mercosul, a
qual poderia ser empreendida, simultaneamente, com o processo de
abertura em seu sentido geral, servindo-lhe de plataforma, e com maior
possibilidade de êxito que outras formas mais profundas de integração,
cujos requerimentos não condiziam com as possibilidades dos governos,
no contexto de então, sobretudo no tocante à capacidade de
coordenação de políticas, nem com os prazos acordados.
Ademais dos fatores relacionados ao delineamento das relações
comerciais no continente americano, o interesse brasileiro pela integração
no Mercosul e, extensivamente com os demais países latino-americanos,
passava a definir-se com base em percepção clara das crescentes
dificuldades enfrentadas pelo país quanto ao acesso de suas exportações

111
ALCIDES COSTA VAZ

ao mercado global, notadamente, aos mercados tradicionais de


exportação, quais sejam, os Estados Unidos e a Europa ocidental. As
perspectivas de acesso ao mercado japonês restringiam-se ao setor
primário; o mercado dospaíses do leste europeu passava a ser fortemente
dominado pelas exportações da Comunidade Econômica Européia,
do Japão e da Coréia. Dessa forma, a América Latina (excetuando-se o
México) apresentava-se como alternativa restante de mercado para
incremento das exportações de bens manufaturados brasileiros e de
realização de esforços associativos para fazer frente à crescente
competição econômica internacional. Segundo avaliação do embaixador
Rubens Barbosa, já então chefe do Departamento de Integração do
Ministério das Relações Exteriores do Brasil,

Nossas relações comerciais com os Estados Unidos caíram


drasticamente e com a Comunidade Econômica Européia estão
estagnadas. O empresário entende a linguagem do bolso. Se estão
perdendo dinheiro em determinado mercado, procuram outro.
Esse é um dos motivos de haver crescimento em nossas relações
comerciais com a América Latina e, dentro dela, o Mercosul.
Poucos empresários têm consciência de que o mercado latino é
sofisticado. Aproximadamente 65% de nossa exportação para a
América Latina são de produtos industrializados. Se diminui o
comércio com os EUA, estagna com a CEE, aumenta a
competição aqui, com México, tigres asiáticos, Japão e nós não
damos atenção, ao invés de ampliarmos esse mercado, vamos
perdê-lo.35

Em outras palavras, o deslocamento do Brasil em seus próprios


mercados tradicionais de exportação, ditado por injunções políticas e
econômicas externas bem como pela erosão gradual dos fatores de
competitividade de sua produção industrial, conduziu a uma visão
pragmática sobre a importância dos espaços sub-regional e regional
para a realização de interesses econômicos brasileiros e para a viabilização
de uma nova estratégia de inserção externa e de busca de competitividade

35 Correio Brasiliense, “Integração reduzirá recessão”, 19.1.92, p. 13.

112
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

para o setor privado, na qual as relações com a Argentina e com o


Mercosul adquirem funcionalidade e alcance estratégico:
A América do Sul tem para o Brasil o sentido de viabilizar algo
semelhante ao que dispõe o Japão na Ásia, ou seja, um mercado
estratégico para a colocação de produtos em mercados regionais,
o que possibilita testar a qualidade do produto, avaliar a necessidade
de seu aperfeiçoamento, como plataforma para ganhar escala de
produção e, assim, poder viabilizar-se como exportador mundial,
como global trader. Então, a idéia de negociar essas novas condições
é, insisto, um gesto político da Chancelaria brasileira. É algo que
tem a ver, muito de perto, com as necessidades do setor produtivo
brasileiro, sua disposição e sua capacidade de manter-se vivo e
competindo em condições mais vantajosas dentro da própria
região.36

Para a Argentina, a integração, apesar de seus propósitos


políticos, anteriormente analisados, teve um apelo preponderantemente
econômico desde a etapa bilateral. No início dos anos 90, acentralidade
dos interesses econômicos acentua-se , como se depreende, por exemplo,
da análise de Alieto A. Guadagni37 sobre as razões que, a seu ver,
justificavam a integração com o Brasil:

a) o tamanho da economia e do mercado brasileiros (PIB


de US$ 350 bilhões e 150 milhões de habitantes, à
época);
b) a existência de uma fronteira comum com densidade
econômica;
c) a complementaridade das economias em muitos setores;
d) o fato de o Brasil perceber a Argentina como principal
sócio possível para a integração;

36 Embaixador Rubens A . Barbosa, em Senado Federal, “Mercosul: introdução e


desenvolvimento”, Anais de Seminário, Brasília, 23 e 24 de junho de 1997, p. 53.
37 Alieto A. Guadagni, Mercosur: uma herramienta de desarrollo. Buenos Aires, Adema, 1991,
citado em Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas, El arancel externo
común del Mercosur: los conflictos, Documento de trabajo nº 36, Buenos Aires, febrero de
1993, p. 43-44.

113
ALCIDES COSTA VAZ

e) os efeitos positivos, para a economia argentina, de um


processo de crescimento sustentado da economia brasileira
em um quadro de interdependência;
f) a integração significaria uma garantia de acesso seguro ao
mercado brasileiro.

Das razões acima expostas, apenas uma tem conteúdo e


especificidade de ordem estritamente política. No entanto, isso não
significa que, do ponto de vista dos interesses e da formulação da
política externa argentina sob Menem, os fatores políticos não
representassem uma condicionante de peso. Ao contrário, pois apolítica
externa sofrera importantes inflexões e incorporara opções que o
governo Alfonsín não pudera considerar. Nesse sentido, a integração
com o Brasil passou a representar uma dimensão que, no período ora
considerado, articulava-se, de modo funcional e complementar, à opção
de alinhamento com os Estados Unidos, definindo os principais
eixos de sua pretendida inserção externa.38 Embora aparentemente
contraditórias quanto a vários aspectos de sua consecução, essas duas
dimensões, ao serem perseguidas simultaneamente, permitiriam à
Argentina cumprir objetivos políticos fundamentais: em primeiro lugar,
levava o Brasil, país que estaria em melhores condições de perseguir
uma estratégia mais universalista e de promover uma abertura econômica
horizontal, isto é, sem necessariamente conferir preferências a qualquer
sócio, a fortalecer a prioridade conferida ao Mercosul, garantindo
politicamente, para a Argentina, condições de acesso privilegiado ao
mercado brasileiro, o que era considerado de fundamental importância
para a própria reestruturação do setor produtivo argentino, dadas as
suas dificuldades de competir eficientemente em outros mercados
externos.
Ao mesmo tempo, os formuladores da política externa
argentina sabiam bem que o interesse brasileiro de integração sub-
regional realizava-se por meio da Argentina e que, sem ela, o Mercosul

38 Essa funcionalidade é defendida e analisada em detalhe por Felipe de la Balze, Argentina


y Brasil: enfrentando elsiglo XXI. Buenos Aires: Cari, 1995, p. 13-36.

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

perdia, conseqüentemente, seu atrativo maior para o Brasil.39 Assim, a


condição de sócio prioritário e privilegiado outorga à Argentina valor
em termos políticos e econômicos em relação ao Brasil, o que deveria
traduzir-se em oportunidade de extrair benefícios da relação bilateral,
fosse de forma direta ou por meio de um processo pendular envolvendo
outros parceiros igualmente importantes para a Argentina. Em outras
palavras, manter a possibilidade de vincular-se ao Nafta, como interesse
explícito da Argentina, ademais de corresponder a um interesse de fato
e compatível com o modelo econômico e com as prioridades de sua
política externa, conferia-lhe capacidade de barganha diante do Brasil,
atuando pois como uma forma de, politicamente, equilibrar as
capacidades de barganha em um quadro marcado por grandes assimetrias
econômicas entre os dois países. Do mesmo modo, a plataforma que
o Mercosul representava permitiria também à Argentina, segundo as
perspectivas dos formuladores de política e de acadêmicos, dispor de
um nivelador de suas assimetrias em relação aos Estados Unidos.40
Assim, a integração no âmbito do Mercosul significava para a Argentina
a possibilidade de manejo das relações com seus dois parceiros principais
de forma a permitir auferir benefícios políticos e econômicos com
base nas assimetrias que caracterizam essas relações.

2.3.1. Interesses e orientações de política exterior do Brasil


e da Argentina no Mercosul

Na análise feita nas seções anteriores, alguns aspectos merecem


atenção. No que respeita às orientações das políticas exteriores dos
doispaíses, observa-se ter havido forte sentido de convergência, derivado
de um conjunto de interesses compartilhados e de igual valor para

39 Ver, por exemplo, a formulação do mesmo embaixador Alieto A. Guadagni apresentada


anteriormente. Esse aspecto é também mencionado nas entrevistas com Jorge Hugo Herrera
Viegas, Félix Peña e Jorge Flouries, os quais estiveram à frente da División de Mercosur da
Chancelaria Argentina.
40 Rut Diamint, “La Iniciativa para las Américas: el caso de Argentina”. In: Francisco Rojas
Aravena (org.), La respuesta latinoamericana a la iniciativa para las Américas. Santiago: Flacso,
1993, p. 113.

115
ALCIDES COSTA VAZ

ambos e que remetem às motivações das iniciativas bilaterais nos


governos Sarney e Alfonsín, em particular a confrontação de posições
xenófobas internamente em favor da estabilidade política no Cone
Sul e o afiançamento recíproco do processo democrático. Apesar de
ambos os países contarem, já no início dos anos 90, com governos
democraticamente eleitos, aindapersistiam, internamente, questões cujo
encaminhamento era imperioso para o aperfeiçoamento e a consolidação
das instituições democráticas.
Algumas dessas questões ou haviam sido herdadas do regime
militar ou não estavam totalmente respondidas ou superadas com as
tentativas de reforma empreendidas inicialmente por Sarney e Alfonsín
(reformas das instituições políticas, pendências quanto às denúncias de
abuso contra direitos humanos, relações cívico-militares, redefinição
do papel das Forças Armadas, acrescentando-se, no caso argentino, as
insatisfações e os focos de rebelião no meio militar). A permanência
dessas questões continuava conferindo sentido político às iniciativas
de integração segundo uma relação de simbiose, cujos termos podem
ser assim definidos: a democracia representaria condição essencial para
o êxito da integração, sendo esta, em tal acepção, um subproduto
daquela; a integração, por sua vez, atuaria como geradora de condições
mais propícias à construção e à consolidação das instituições democráticas
à medida que forjasse e promovesse valores e princípios comuns e que
ensejasse condições para maximizar oportunidades de desenvolvimento
econômico e social.
Nas perspectivas governamental e diplomática, pretendia-se
que a interdependência econômica, alcançada por meio dos acordos e
das iniciativas de integração, tivesse equivalência no plano político, o
que representaria um grande avanço em termos da construção
democrática no plano regional, tomando-se em conta que, na América
Latina, os mecanismos de diálogo e coordenação política haviam-se
desenvolvido, até então, de forma paralela às iniciativas de integração
econômica.41 O Brasil e a Argentina visualizavam, portanto, a
democracia e a integração como valores que se reforçavam mutuamente

41 Alcides Costa Vaz, “Integração e democracia no Mercosul’, Carta Internacional, nº 39. p. 4.

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

e sobre os quais deviam assentar a convivência e o relacionamento entre


eles e com os demais países da região.
Em segundo lugar, à medida que se consolidam instituições
democráticas e que se instauram novos governos, a partir de 1989 e
1990, com propostas de reforma e abertura econômica, já em face das
transformações do sistema internacional, esse conjunto de interesses
comuns amplia-se com a agregação de outros que, embora compartidos,
possuem pesos relativos distintos para cada país. O fortalecimento do
processo democrático, por exemplo, era de interesse comum dos dois
países, mas apresentava-se com contornos mais graves e imediatos para
a Argentina que para o Brasil, em razão do modo como processou-se a
transição para a democracia naquele país e dos problemas com
segmentos militares não totalmente equacionados no governo Alfonsín,
os quais perduraram até o primeiro mandato de Carlos Menem. Por
sua vez, o esforço para lograr maior influência sobre o comportamento
do sócio, também um interesse compartilhado, possui para a Argentina
peso relativo maior, dada a aguda percepção das assimetrias em seu
desfavor, em relação ao Brasil, o que gerava a necessidade de nivelá-las
politicamente e de compensá-las por meio de uma maior
interdependência, que produzisse maior previsibilidade no
comportamento brasileiro relativamente aos interesses e temas comuns.
Ao Brasil, por seu turno, também interessava lograr, certamente, mais
influência sobre o comportamento de seu maior vizinho, embora o
interesse estivesse remetido, na conjuntura de então, principalmente
para as posições de política externa que a Argentina assumia, em
particular para as relativas aos Estados Unidos e ao Nafta, que
representavam, na ótica brasileira, constrangimentos aos seus interesses
no Cone Sul e na América Latina em geral.
Por outro lado, a expansão das exportações de bens industriais
era de interesse relativo maior para o Brasil, dadas as dificuldades de
incrementá-las nos mercados dos países desenvolvidos, em virtude da
baixa competitividade externa decorrente dos altos custos internos e
do desvio de comércio provocado por arranjos preferenciais que
deslocavam manufaturas brasileiras naqueles mercados, como é o caso
do Nafta, que privilegia a produção mexicana nos mercados norte

117
ALCIDES COSTA VAZ

americano e canadense, e dos acordos sob a Convenção de Lomé.


Embora houvesse, da parte da Argentina, grande interesse em promover
a exportação de bens industriais, no período de 1990 a 1994,
particularmente em face do substancial incremento que então se
verificou de suas exportações para o mercado brasileiro, tanto em
termos quantitativos como qualitativos, a preocupação maior do
governo argentino voltara-se para a reestruturação do seu parque
industrial. Daí resultou a implementação de agressiva política de
fomento à importação de bens de capital e de atração de investimentos
externos, para o que muito contribuiu a política cambial do Plano
Cavallo, com o estabelecimento da paridade peso-dólar. Apromoção
de um bloco econômico que representasse alternativa real e viável de
inserção externa tinha peso relativo maior para o Brasil, uma vez que a
Argentina, sobretudo no primeiro mandato de Menem, manteve como
uma de suas prioridades de política externa o estabelecimento de relações
privilegiadas com os Estados Unidos, empreendendo esforços para
associação direta e individualmente ao Nafta. Em outras palavras, a
Argentina não abrira mão de uma alternativa ao Mercosul e procurou
jogar, simultaneamente, com duas opções, ao passo que, para o Brasil,
não interessava o acesso individual ao Nafta e tampouco que o tema se
convertesse em objeto de dispersão de esforços na América Latina.
Por fim, há um conjunto de interesses que são particulares a
cada país, como é o caso, para a Argentina, do nivelamento das
assimetrias em relação ao Brasil; e, para o Brasil, o da preservação da
capacidade de influência em seu entorno e a constituição de uma
plataforma de negociação conjunta com terceiros países ou blocos
econômicos.
O espectro de interesses comuns ou convergentes traduziu-se
em orientação política em favor da integração, afiançada nos mais
elevados níveis decisórios, tanto no Brasil como na Argentina,
notadamente pelos respectivos presidentes. Ela prevaleceu, em ambos
os países, ao descrédito, à indiferença e mesmo à resistência que a
proposta de integração, tal como definida no Tratado de Assunção,
suscitava junto a vários segmentos da classe política e do empresariado

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

em cada país.42 Também representou importante elemento de


alavancagem das negociações, particularmente nos momentos em que
as divergências encaminhadas de modo não adequado nas instâncias
técnicas competentes provocaram o recrudescimento de tensões e
geraram impasses cujo desenlace veio a requerer a interveniência de
atores de níveis decisórios mais elevados.
Observa-se a inexistência, entre os dois países, de objetivos e
interesses, nos respectivos âmbitos de formulação e implementação de
política externa, que fossem explicitamente competitivos ou
conflituosos e que pudessem obstar ou desestimular, de modo efetivo,
o prosseguimento da cooperação bilateral e a integração. Esse fato
representou importante elemento de sustentação e vontade política,
de ambas as partes, quanto à integração, como também contribuiu
para a conformação de diferentes marcos cooperativos. Mais
particularmente concorreu para que as diferenças ou especificidades de
orientações e interesses políticos não terminassem favorecendo o
surgimento ou o acirramento de divergências no plano negociador em
nível bilateral ou multilateral no contexto do Mercosul.
Cumpre salientar ter existido diferenças entre os dois países
no tocante:

a) às leituras e premissas sobre as transformações do sistema


internacional;
b) às conseqüentes opções de cada país quanto à estratégia
de condução política na estrutura de poder internacional
do pós-Guerra Fria, ainda indefinida em vários aspectos,
os quais levaram a orientações distintas de política exterior

42 Cabe destacar que, na Argentina, a sustentação da vontade política para a integração


dependeu muito mais crucialmente da figura do presidente que no Brasil, dado que, tanto
para o ex-chanceller e ex-ministro da Economia Domingo Cavallo como para o ex-chanceller
Guido di Tella, o Mercosul não representava a melhor opção em termos de estratégia de
inserção externa argentina. O tema da integração provocou um intenso debate interno,
alcançando grupos a favor e contra na chancelaria, no Ministério da Economia, nos meios
político, empresarial e acadêmico.

119
ALCIDES COSTA VAZ

sobretudo no tocante às relações com os Estados Unidos e


às questões da agenda de segurança internacional;
c) às motivações, às perspectivas e aos desígnios quanto à
integração sub-regionale regional.

No entanto, tais diferenças terminaram por contribuir para


um maior equilíbrio para as negociações no âmbito do Mercosul, uma
vez que elas condicionaram e definiram a natureza e as possibilidades
de ganhos relativos e de trade-offs no contexto da negociação,
notadamente no plano bilateral, na medida em que situaram os ganhos
desejados (a aposta na terminologia de Dupont) para cada parte em
planos distintos, abrandando os aspectos e custos distributivos e assim
facilitando a consecução do projeto comum.
Nesse sentido, é importante adiantar e ressaltar que as
divergências entre o Brasil e a Argentina, ao longo do processo
negociador do Mercosul, na fase de transição, estabeleceram-se não
propriamente em torno de questões derivadas das orientações e dos
objetivos maiores de política exterior ou mesmo dos objetivos relativos
à integração. Elas manifestaram-se principalmente quanto à forma de
operacionalizar os mecanismos de integração acordados e em razão da
percebida necessidade de ambos os países de amainar os custos e os
efeitos negativos da abertura e da integração econômica ante setores
específicos de suas economias. Nesse sentido, as divergências que viriam
a marcar o processo de negociação, no período de transição do Mercosul,
retratavam e resultavam especialmente das assimetrias entre as estruturas
produtivas e de competitividade industrial dos dois países, das distintas
condições macroeconômicas e das diferentes opções em matéria de
política econômica e de estratégias mediante as quais cada país buscou
empreender as reformas do Estado e da economia e lograr estabilidade
econômica a partir dos anos 90.
Essa observação é importante por permitir uma análise mais
precisa da natureza da negociação com base nos interesses e objetivos
que ela coloca em jogo. No caso considerado, não se pode deixar de
tomar em conta que, mediante a preponderância de interesses
convergentes entre o Brasil e a Argentina, no plano político, o processo

120
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

de negociação que se estabelece e que dá sustentação ao Mercosul


assume, pois, características preponderantemente integrativas, voltando-
se para a realização de um projeto comum.
A preponderância de aspectos integrativos na definição dos
objetivos e interesses das partes define a natureza da negociação, mas
não deve significar, contudo, elemento de minimização dos fatores
distributivos. Como dito acima, as divergências que conferiram à
negociação um caráter distributivo estiveram associadas às diferenças
quanto às condições e aos custos relativos da implementação dos
objetivos e instrumentos da integração, como acordados no Tratado
de Assunção, às assimetrias econômicas e às diferentes estruturas de
produção. Não se tratavam, portanto, de divergências que tivessem
origem no conjunto de interesses que orientavam as políticas externas
ou nos objetivos delineados.
É preciso, pois, diferenciar os interesses e objetivos gerais dos
países, como traduzidos em suas políticas externas, dos objetivos da
negociação e dos objetivos das partesnasnegociações, os quais são tratados
no capítulo 6. Mais que detalhe semântico, essa formulação permite
distinguir, de um lado, os objetivos políticos que condicionaram o
processo negociador, por referirem-se ao contexto de condução das
políticas externas do qual a negociação resulta e ao qual se vincula
funcionalmente, uma vez que a integração não representa um fim em
si mesma; de outro, permite contemplar os objetivos específicos, em
torno dos quais se estabeleceu o processo de negociação, que são de
alcance mais restrito que os primeiros, de valor instrumental e
indissociáveis do próprio objeto da negociação. Finalmente, há de se
reconhecer a existência de um subconjunto de objetivos dentro do
processo negociador e que estão a eles referidos e adstritos, atendendo
aos interesses e movimentos táticos das partes no esforço de lograr
melhor posição de negociação perante as demais partes, obter concessões
e/ou resultados favoráveis ou de produzir avanços do processo
negociador em seu conjunto.
Em síntese, nas relações entre o Brasil e a Argentina, no
contexto da criação e da implementação do Mercosul, observou-se
grande margem de compatibilização de interesses e de objetivos

121
ALCIDES COSTA VAZ

políticos. Para a consecução daquele objetivo, embora não contemplada


pelos próprios negociadores como factível nos prazos acordados,
consagrava-se uma abordagem gradualista, de aproximações sucessivas,
e que, por sua vez, permitiu a acomodação de interesses que, embora
convergentes, diferiam em seu alcance e valor para ambos os países, ao
mesmo tempo em que abriu a possibilidade de concessões e trade-offs
com os quais se encaminharam soluções, mesmo circunstanciais, às
questões e aos conflitos distributivos presentes no processo de negociação
e que são objeto de análise posterior.

122
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

3. A dimensão multilateral do Mercosul

No capítulo anterior, realizou-se a análise de como a integração


regional inscreveu-se no contexto das políticas exteriores do Brasil e da
Argentina, em virtude de objetivos e interesses nacionalmente definidos,
conformando, em uma primeira etapa, o marco bilateral do qual
emergiu, subseqüentemente, a integração conduzida sob a égide do
Mercosul, jáem sua feição quadripartite. A análise do multilateralismo
como variável condicionante do processo negociador do Mercosul
requer, em primeiro lugar, que se considerem o modo como essa
multilateralização se produziu, bem assim o contexto, os interesses, os
objetivos e os fatores que concorreram para tanto.
Além disso, é preciso ultrapassar o sentido estritamente formal
do multilateralismo, relacionado ao número de atores (países)
envolvidos no processo negociador, para considerar sua dimensão
substantiva como fonte de elementos específicos para a análise de sua
influência como dimensão estruturante do processo negociador e
condicionante da interação entre o Brasil e a Argentina no âmbito
desse processo. O presente capítulo está, por conseguinte, organizado
em torno desses aspectos. Na primeira sessão, abordam-se os fatores
que conduziram à incorporação do Uruguai e do Paraguai ao processo
de integração brasileiro-argentino; na segunda, focalizam-se os princípios
e as regras mediante os quais conduziu-se o processo de negociação,
em sua dimensão quadripartite, definindo eles, substantivamente, a
multilateralidade do Mercosul; na terceira e última seção, examinam-
se as funções do multilateralismo, em particular no tocante aos problemas
de coordenação e colaboração entre os quatro países, analisando ainda
como a expressão multilateral, que caracteriza o Mercosul, ajustou-se
à proeminência do eixo Brasil-Argentina que lhe deu origem.

3.1. Do bilateralismo à multilateralização: contexto e


interesses na incorporação do Uruguai e do Paraguai
Com o mandato político de criação de um mercado comum
entre o Brasil e a Argentina, formalizado na Ata de Buenos Aires, de

123
ALCIDES COSTA VAZ

junho de 1990, desencadeou-se o processo de negociação que conduziria


à assinatura, em dezembro daquele ano, do ACE 14, no âmbito da
Aladi, e, em um segundo momento, à multilateralização do processo
refletida no Tratado de Assunção, de março de 1991.
O objetivo fundamental do Brasil e da Argentina, nessa etapa,
era consubstanciar, técnica e operativamente, as decisões políticas
constantes da Ata de Buenos Aires, de modo apermitir a implementação
do processo de liberalização comercial entre os dois países no curto
prazo. Cumpre recordar que a negociação do ACE 14 ocorreu
concomitantemente às consultas e articulações entre ospaíses do Cone
Sul, em parte desencadeadas a partir da Ata de Buenos Aires,1 para
tratar da coordenação de posições frente à Iniciativa Para as Américas.
A multilateralização do processo de integração, que vinha sendo
conduzido bilateralmente, não era um desígnio original do Brasil e da
Argentina2 eproduziu-se, em primeiro lugar, com a mudança de postura
do Uruguai, a partir de junho de 1990, em relação ao processo. Da
assinatura dos primeiros protocolos bilaterais, em 1986, até a assinatura
da Ata de Buenos Aires, em julho de 1990, o Uruguai manteve-se na
condição de observador e vinculou-se parcialmente à integração
argentino-brasileirapor meio de alguns dos protocolos setoriais bilaterais
de então. No entanto, ainda nessa etapa, já manifestara repetidamente
o interesse em incorporar-se de modo pleno ao processo, o que fora
evidenciado, em particular, pela atuação do presidente Sanguinetti
perante seus pares brasileiro e argentino.

1 Cumpre lembrar que o Uruguai, a essa altura, achava-se já parcialmente vinculado ao


processo de integração. A assinatura da Ata de Buenos Aires, ato estritamente bilateral, teve,
contudo, a concorrência do presidente do Uruguai. A agenda da reunião contemplava a
coordenação de posições ante a Iniciativa para as Américas.
2 Entrevista do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães ao autor. A reticência brasileira em
relação à incorporação do Uruguai ao processo de integração, naquela fase, é também
referida pelo então chanceler uruguaio, Hector Gros Spiell, que assim analisa a posição do
Brasil sobre o tema:
La iniciativa uruguaya, tratada oficiosamente, permitió comprobar que las intenciones de los
Gobiernos vecinosen materia de integración trinacional no iban más allá del terreno político
y que la asociación operativa uruguaya a los Protocolos de su programa bilateral era prematura
y hasta podría decirse que ‘irritante. Hector GrossEspiell, El Uruguay y el Mercosur: proceso
que condujo ao Tratado de Asunción, Montevideu, Aldoz, 1999, p. 6.

124
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Com efeito, houve três encontros presidenciais tripartites entre


julho de 1986 e maio de 1987, em que se discutiram formas de
associação do Uruguai ao processo bilateral, de modo que pudesse ser
realizada com base nos acordos de cooperação já firmados por aquele
país, nos anos 70, com a Argentina e o Brasil, quais sejam, os Convênios
Argentino-Uruguaios de Cooperação Econômica I e II (Cauce I e II) e
os Protocolos de Expansão Comercial I e II (PEC I e II) respectivamente.
Com esses acordos, o Uruguai havia procurado, além do acesso
privilegiado aos mercados dos seus dois principais parceiros econômicos,
consolidar instrumentos que tornassem natural sua participação em
eventuais entendimentos entre o Brasil e a Argentina em matéria
econômica3 e com tratamento diferenciado, evitando, nas palavras de
seu ex-chanceler Héctor Gross Espiell “ser llevado por la ‘fuerza de
arrastre’de la integración desusdosvecinos– cuyasdiscrepancias anteriores
constituyeron sin duda serio escollo para el proceso de integración
latinoamericana – com su secuela de soluciones impuestaspor los hechos”
paraassociar-se ao processo “con derechos cautelares eobligaciones acordes
con su menor poderío económico”.4
A diplomacia presidencial, no entanto, não resultou, naquela
fase, em nenhum avanço efetivo quanto à incorporação do Uruguai
nos termos que ele pretendia. As perspectivas brasileira e argentina,
por razões sobretudo políticas, eram a de buscar uma forma de
envolvimento do Uruguai que não descaracterizasse o processo bilateral,
como vinha sendo forjado, e que não implicasse a diluição ou perda,
em nenhum grau, da capacidade de sua condução a partir do eixo
bilateral original, tampouco a necessidade de estender tratamento
diferenciado ao Uruguai para além do já disposto nos acordos bilaterais
existentes, uma vez que a integração Brasil-Argentina vinha sendo
conduzida com base nos princípios de simetria e reciprocidade.
Atendendo, pois, a um critério político, os presidentes Raul Alfonsín
e José Sarney acordaram com o presidente uruguaio Julio Sanguinetti,
em 6 de abril de 1988, em encontro realizado em Brasília, a gradual

3 Idem, p. 8.
4 Idem, ibid.

125
ALCIDES COSTA VAZ

associação do Uruguai ao processo de integração brasileiro-argentino.


Segundo a Ata de Alvorada, firmada pelos três governantes na ocasião,
a participação uruguaia seria instrumentalizada de acordo com os graus
e modalidades que conviessem a cada caso, “tendo em conta as condições
particulares do Uruguai e os instrumentos bilaterais vigentes com ambos
países”.5 Na mesma oportunidade, decidiu-se que a integração tripartite
seria regida pelos mesmos princípios que norteavam as iniciativas
bilaterais do Brasil e da Argentina e elegeu-se o setor de transporte
terrestre como o mais adequado para iniciar a integração tripartite. Na
oportunidade, criou-se um grupo de negociação com a incumbência
de começar, de imediato, a elaboração de projeto de acordo nesse setor,
para apresentação aos governos no prazo de 120 dias, o que resultou
na celebração, em 30 de novembro de 1988, do Acordo Tripartite
nº 1 –Transporte Terrestre, com seis anexos.
Dessa forma, acomodavam-se os interesses uruguaios, ainda
que em condições distintas das desejadas pelo país, ao mesmo tempo
em que se preservava o processo bilateral como vinha sendo conduzido.
Logrou uma forma de associação parcial; naquela fase, foram
infrutíferos os esforços uruguaios de tornar trilateral o processo de
integração e de nele manter condição privilegiada, em razão de seu
menor tamanho.
O foco de resistência maior era então o Brasil, que não desejava
reproduzir, em escala menor, a experiência da Aladi, em que a presença
de países de menor desenvolvimento relativo acarretara a adoção de
um regime de tratamento privilegiado, no qual o país, por sua dimensão
e diversidade econômica, devia oferecer concessões sem reciprocidade.
A avaliação era a de que a diferença em termos de desenvolvimento
relativo tornava contraproducente, para o Brasil, a incorporação do
Uruguai e Paraguai, sendo que, no caso deste, aprópria natureza de seu
regime político representava um elemento impeditivo.
Ao tomar conhecimento de que ospresidentes Fernando Collor
e Carlos Menem firmariam uma ata formalizando o compromisso de
estabelecer um mercado comum no prazo de cinco anos e não mais de

5 Ata de Alvorada, Brasília, 6 de abril de 1988.

126
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

dez, como disposto no Tratado de Cooperação, de 1988, o presidente


Alberto Lacalle, do Uruguai, determinou uma mudança de
posicionamento à sua chancelaria e passou a atuar ativamente de modo
a alterar a condição marginal do Uruguai, derivada da associação a alguns
dos protocolos firmados pelo Brasil e a Argentina, e seu status de
observador no processo de integração, defendendo com vigor a plena e
imediata incorporação ao mesmo, o que se transformou em prioridade
maior da política externa uruguaia então.6 No mesmo sentido, o
governo uruguaio passou a defender fortemente a posição de que sua
adesão ao processo se formalizasse por meio de instrumento jurídico
convencional, no caso, um tratado internacional, objetivando com isso
obter garantia jurídica no que respeita aos seus direitos, compromissos
e interesses perante os dois sócios maiores. Nos dias que se seguiram à
assinatura da Ata de Buenos Aires, desencadearam-se gestões
diplomáticas, de um lado, pelo Uruguai, com o propósito de lograr
sua plena incorporação ao processo de integração, e, de outro, pelo
Brasil e a Argentina, com o propósito de discutir uma estratégia comum
de resposta àIPA.
Aproposta de integração comercial do continente americano,
como expressa na IPA, alterava, sobretudo, para o Brasil, sua perspectiva
de integração no Cone Sul, a qual passava a ser considerada como
fundamental para agregar capacidades para a eventual negociação com
os Estados Unidos. O fato novo que a IPA representava, tendo como
pano de fundo o advento do Nafta e as dificuldades das negociações
comerciais multilaterais no âmbito do Gatt, alimentou o interesse do
Brasil na incorporação de outros países ao processo de integração.
O governo Sarney, em seus últimos meses, havia-se mantido fiel à
concepção da integração em que se privilegiava a Argentina e resistiu às
propostas formuladas por ela, no início do governo Menem, de
estender a iniciativa ao Chile. Com a redefinição de todo o processo, a
partir da chegada ao poder de Fernando Collor, o Brasil reviu sua
posição, admitindo incorporar outros países, desde que a incorporação
estivesse condicionada à aceitação, pelos eventuais novos participantes,

6 Hector Grosss Espiell, op.cit., p. 13.

127
ALCIDES COSTA VAZ

dos princípios, das formas, dos prazos e dos mecanismos já pactuados


bilateralmente com a Argentina. Com isso, estruturar-se-ia um bloco
comercial que lhe serviria de plataforma de inserção externa e de maior
projeção nas negociações comerciais, tanto no plano continental como
no multilateral, e que lhe permitiria extrair benefícios da escala mais
ampla das negociações.
O abandono, pelo Brasil, da reticência em incorporar outros
países ao processo integracionista decorreu não somente da perspectiva
colocada pela IPA, também refletia a orientação que o governo Collor
viria a imprimir às relações com a Argentina e ao processo de integração
sub-regional, qual seja, a construção, com base em valores liberais, de
uma plataforma de inserção externa e de afiançamento e de indução de
reformas econômicas domésticas. Nesse sentido, é oportuno lembrar
que, nos contatos políticos de alto nível entre o então novo governo
brasileiro e o governo de Carlos Menem, o tema da incorporação de
novos países, notadamente o Uruguai, já fora tratado.
Para a Argentina, a possibilidade de incorporar novos países
passara a ser contemplada como interesse a ser defendido diante do
Brasil desde a posse de Carlos Menem em julho de 1989. Além de
representar avanço nas relações com o Uruguai e de constituir importante
elemento de estabilidade e de impulso aos desenvolvimentos político e
econômico da Bacia do Prata, onde também o Paraguai, já sob governo
democraticamente eleito, procurava romper o isolamento político,
ocorrido sobretudo nos últimos anos do regime de Stroessner, buscando,
inicialmente, estreitamento de relações com a Argentina. Assim, ainda
no final do governo Alfonsín, em março de 1989, foram conduzidos
entendimentos com o governo do presidente Andrés Rodrigues sobre
navegação no Rio Paraná.
No mês seguinte, ambos os presidentes reuniram-se para
acordar o início da construção de uma nova etapa da represa de
Yacyeretá, quando firmaram declaração conjunta em que, entre aspectos
relacionados à infra-estrutura de transporte, se destacava a importância
da criação da Comissão de Coordenação Política e Integração entre os
dois países.7 Acomissão reuniu-seem Buenos Aires, em 15 de setembro

7 Ver Integración Latinoamericana, nº 146-147, junho-julho de 1989, p. 78-79.

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

de 1989, sob a presidência dos chanceleres Domingo Cavallo e José


Luís Argaña, os quais acordaram uma série de iniciativas de integração,
envolvendo a criação de empresas binacionais, cooperação no setor
energético e fluvial, instalação de comitês de fronteira e operação de
terminais de combustível. Nova reunião dos dois chanceleres viria a
ocorrer um mês depois, em Buenos Aires, para preparar o encontro
presidencial que aconteceria em 28 de novembro do mesmo ano de
1989, quando se firmou o Acordo de Complementação Econômica e
acordos de cooperação no campo energético. Em outro encontro
presidencial, realizado nos dias 3 e 4 de março de 1990, a Argentina e
o Paraguai acordaram a construção da represa binacional de Corpus,
reorganizaram a empresa binacional de Yacyeretá, firmaram acordo
comercial pelo qual seiscentos produtos (trezentos por país) passariam
a ser comercializados com tarifa zero e adotaram um regime comum
de controle de fronteiras.
A possibilidade de incorporar outros países ao processo de
integração, começando pelos vizinhos Uruguai e Paraguai, também
permitiria à Argentina cumprir importantes objetivos em relação ao
Brasil. Em primeiro lugar, propiciar-lhe-ia melhores condições para
lidar com a inclinação protecionista de seu sócio. Em segundo lugar,
diluiria o peso relativo do Brasil, na condução do processo de integração
e no processo decisório. O Brasil teria que ajustar-se à presença de
novos países, ampliando, assim, as chances de a Argentina lograr
melhores condições de barganha perante o sócio maior.
Dentro dessa lógica, além de mostrar-se favorável ao
atendimento do pleito uruguaio de incorporar-se plenamente ao
processo de integração e das iniciativas de aproximação do Paraguai, o
governo argentino propugnou a incorporação do Chile, país que, por
sua orientação econômica liberal e que por procurar, como a Argentina,
lograr sua inserção externa calcando-se em um amplo e irrestrito
processo de abertura econômica, seria um forte aliado para fortalecer,
no bloco, a orientação liberal, diante da brasileira, percebida como
fortemente marcada pela presença estatal na economia. Além disso, o
então recém-empossado governo chileno de Patrício Alwyin manifestara
disposição de promover abertura comercial recíproca com a Argentina,

129
ALCIDES COSTA VAZ

tomando como modelo os acordos de integração e cooperação subscritos


pelo Brasil e a Argentina em 1986.8 Em face dessa convergência de
interesses, o governo Menem propôs-se a impulsionar a formação de
um espaço comum integrado, no Cone Sul, mediante a incorporação
também do Chile à integração que já vinha sendo entabulada com o
Brasil e o Uruguai.9 Com a opção chilena de não participar, naquele
momento, do processo de integração do Cone Sul, prosseguiram
entendimentos bilaterais que resultariam, posteriormente, em acordo
celebrado quando da visita de Menem ao Chile visando estabelecer as
bases de um espaço econômico ampliado entre os dois países a partir
de 31 de dezembro de 1995. Além disso, a Argentina e o Chile
acordaram ainda concertar posições em organismos internacionais sobre
temas de segurança e desarmamento.10
Em contrapartida, almejando preservar e mesmo ampliar sua
influência política no bloco em formação, o novo governo brasileiro
passou a defender a inclusão do Paraguai, que havia inaugurado uma
nova e importante fase de sua trajetória política com a queda do regime
de Alfredo Stroessner no final de fevereiro de 1989. Na agenda bilateral,
estavam postas questões energéticas (o novo governo paraguaio
propunha a revisão dos termos do Tratado de Itaipu, o que era recusado
pelo Brasil) e diversas outras relacionadas ao comércio fronteiriço. Além
disso, a inexistência de disciplina comercial por parte do Paraguai era
percebida como um fator de vulnerabilidade para o arranjo integracionista
que se esboçava no Cone Sul. Essa percepção terminou por consolidar
o interesse brasileiro em incorporar o Paraguai a tal arranjo, o que daria
ao bloco em formação maior envergadura.

8 Ver a respeito, “Argentina impulsa la integración com Brasil y Chile”, Integración


Latinoamericana, nº 157, junho de 1990, p. 50.
9 A proposta foi veiculada publicamente pelo secretário de Integração Latino-Americana,
Juan Schiaretti, anteriormente, quando dos preparativos da visita de Carlos Menem ao
Brasil, em agosto de 1989, ao afirmar que “queremos aumentar a integração com o Brasil e
ampliá-la para outros países, inclusive o Chile”. Ver Folha de São Paulo, 22.8.89, p. A-4.
Dias depois, já no contexto da visita do presidente argentino, o presidente José Sarney
reafirmaria à imprensa que o processo de integração limitava-se ao Brasil e à Argentina, não
fazendo referência nem mesmo ao Uruguai. Ver Folha de São Paulo, 25.8.89, p. A-8.
10 “Acordaron Argentina y Chile um mercado común a partir de 1996”, Integración
Latinoamericana, nº 160, setembro de 1990, p. 61.

130
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Assim, ainda que atendendo a objetivos diferentes, o Brasil e a


Argentina passaram a uma posição convergente no tocante à
incorporação de outros países às iniciativas bilaterais, abrindo caminho
para a multilateralização do processo de integração. Em conseqüência,
atendendo à solicitação uruguaia de realizar uma reunião tripartite de
chanceleres e ministros de Economia para discutir os rumos da
integração no Cone Sul e a IPA, os governos brasileiro e argentino
convidaram o Uruguai para a reunião, que se realizou em 1º de agosto
de 1990, em Brasília, a qual contou também com a presença dos ministros
de Relações Exteriores e de Economia do Chile. Nesse encontro, o
Uruguai solicitou formalmente sua incorporação ao processo de
integração brasileiro-argentino, passando, em seguida, em consonância
com a posição argentina, a defender a inclusão do Chile e da Bolívia.
A incorporação formal e plena do Uruguai, em setembro de
1990, a pronta aceitação, pelo governo paraguaio, do convite para
incorporar-se ao processo de integração11 e a opção chilena de não se
vincular, naquele momento, às iniciativas brasileiro-argentinas,
sobretudo em razão de diferenças na estrutura tarifária e do grau de
abertura já praticado por aquele país, bem como de sua atração por
uma associação individual ao Nafta, terminaram por definir a
composição quadripartite com a qual surgiria, em seguida, o Mercosul.
Assim, pela primeira vez, em 5 e 6 de setembro de 1990, reuniu-se o
Grupo Mercado Comum,12 já com os representantes do Uruguai e do
Paraguai, para discutir as linhas básicas para a elaboração do acordo
quadripartite pelo qual os quatro países formalizariam o compromisso
com a conformação de um mercado comum no prazo de quatro anos.
Do exposto, denota-se que o multilateralismo, que marca o
Mercosul desde o seu início formal, resultou, se considerado na

11 O governo paraguaio manifestou aos governos brasileiro e argentino seu interesse em


participar dos acordos para a criação do mercado comum por meio de seu chanceler Alexis
Frutos Vaesken, em visita a Brasília em 7 e 8 de agosto de 1990 e à Buenos Aires em 22 e 23
do mesmo mês.
12 O Grupo Mercado Comum, já com sua composição quadripartite, reuniu-se sete vezes,
entre setembro de 1990 e fevereiro de 1991, com a finalidade de preparar o projeto do
tratado que viria a ser assinado em Assunção, em março de 1991.

131
ALCIDES COSTA VAZ

perspectivado relacionamento Brasil-Argentina, da confluência de dois


fatores imediatos: um exógeno e outro relacionado ao protagonismo
de um terceiro Estado em seu esforço de juntar-se ao processo de
integração. O fator exógeno foi o anúncio da IPA, que induziu
significativa mudança no quadro de avaliação dos incentivos e dos riscos
da ampliação do processo bilateral, contribuindo para fazer reverter
a reticência, sobretudo por parte do Brasil, em relação à ampliação.
O segundo fator refere-se à movimentação do Uruguai, a partir da
posse do presidente Alberto Lacalle e, notadamente, da Ata de Buenos
Aires, no esforço de tornar trilateral o processo de integração brasileiro-
argentino. Um terceiro fator, de caráter mediato, refere-se à
movimentação argentina, explorando convergências com os novos
governos do Paraguai e do Chile, com o objetivo de estabelecer um
conjunto de acordos tendentes à liberalização comercial que lhe
propiciasse acesso aos mercados de seus vizinhos.
Por conseguinte, depreende-se que as motivações do Brasil e
da Argentina, no sentido da absorção do Uruguai e do Paraguai, bem
como da não concretizada associação do Chile, apesar de serem distintas,
possuíam um substrato comum eminentemente político e que
outorgou o impulso definitivo à multilateralização do processo
integracionista. Contudo, não se amparavam em uma lógica econômica
ineludível, sobretudo tomando-se em conta as peculiaridades da
economia paraguaia e o fato de restar a alternativa, para ambos os países,
de estabelecer associações por meio de outras formas e outros
instrumentos bilaterais de cooperação, como tinha sido feito,
anteriormente, em relação ao Uruguai. Também não se reportavam
propriamente às necessidades da integração comercial ou à busca de
melhores condições para sua implementação, salvo no que concerne à
infra-estrutura, o que ficou evidenciado no próprio Tratado de
Assunção, que incorporou integralmente objetivos, prazos, princípios
e mecanismos definidos bilateralmente no ACE 14, com concessões
excepcionais ao Uruguai e ao Paraguai no tocante aos prazos para o
cumprimento do programa de desgravação tarifária e ao número de
produtos a serem mantidos fora de tal programa até o fim do período
de transição.

132
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

No novo contexto que se esboçava na América Latina, com a


vigência de regimes democraticamente eleitos em todos os países e
comprometidos com a condução de reformas econômicas de cunho
liberal, e no próprio continente americano, com a conversão dos Estados
Unidos ao regionalismo econômico e com o Nafta, justificava-se, em
termos políticos, o propósito de ampliar horizontalmente o processo
de integração, com o que se instauraria contexto mais propício à
implementação de reformas econômicas ao mesmo tempo em que se
fortaleceria a capacidade de negociação, do conjunto dospaísesdo Cone
Sul, no plano comercial. Assim, a expressão multilateral com que surgiu
o Mercosul respondeu mais a injunções e interesses políticos que a
considerações de ordem econômica ou afeitas à dinâmica do próprio
processo de integração.
Nesse contexto, tornavam-se lógicos o interesse e o empenho
do Brasil e da Argentina não somente de salvaguardar a dimensão
bilateral da integração, em face das transformações políticas e
econômicas que marcavam seus planos domésticos, regional e
continental e o próprio sistema internacional, mas de transformá-la
no eixo fundamental, operativo e vinculante da integração econômica
do Cone Sul, em um primeiro momento, e, a partir daí, eventualmente,
no eixo da integração econômica da América do Sul. Amultilateralização
foi, nesse sentido, uma resposta afirmativa do Brasil e da Argentina à
oportunidade política de construir maior coesão no plano sub-regional,
mas que tinha, como contrapartida, a preservação do eixo bilateral
original como substrato a partir do qual a integração, em sua nova
expressão, devesse ser construída.
Para o processo de negociação que se seguiria, isso implicou a
necessidade de encontrar uma fórmula de harmonizar os interesses e o
peso político dos dois sócios maiores com as expectativas de benefícios,
diferenciadas entre si, dospaísesmenores, de modo a evitar que eventuais
frustrações viessem a minar a vitalidade e a credibilidade de todo o
processo. Nesse sentido, a adoção do consenso como critério para a
tomada de decisão foi de singular importância, na medida em que,
primeiramente, assegurava às partes a faculdade que garantia a
preservação de seus interesses essenciais, ainda que a capacidade de exercer

133
ALCIDES COSTA VAZ

o poder de veto, que a fórmula do consenso trazia implícita, não fosse


homogênea, como se verá adiante. Essa faculdade era percebida como
de grande significado sobretudo para os dois países menores, que
encontrariam no multilateralismo o abrigo para a defesa de seus
interesses, já que no relacionamento bilateral estariam sempre em
condição de inferioridade.
A regra do consenso como critério fundamental para a tomada
de decisão pelos quatro países, além de conferir legitimidade e
credibilidade ao processo, representava, ao mesmo tempo, elemento
nivelador das acentuadas assimetrias entre eles, constituindo uma
característica definidora do multilateralismo dentro do Mercosul e veio
a compor, ao lado dos princípios da simetria, do gradualismo e da
reciprocidade, a fórmula institucional com a qual se procurou
harmonizar e salvaguardar os interesses de cada país no processo de
integração. Sob a ótica dos dois sócios menores, o preço a pagar pela
incorporação ao processo de integração sub-regional era a exposição à
competição econômica e a submissão a uma disciplina comercial
comum e à sistemática de desgravação linear e automática com margens
muito estreitas de tratamento diferenciado. Para o Brasil e a Argentina,
e, mais particularmente para o primeiro, o preço a pagar pela ampliação
da escala das negociações traduzia-se, no que tange à tomada de decisões,
na abdicação de qualquer critério de ponderação de seu peso relativo
no bloco.

3.2. A dimensão substantiva do multilateralismo:


princípios, normas e procedimentos na negociação
do Mercosul

O multilateralismo, como condicionante estrutural do processo


de negociação no Mercosul e, conseqüentemente, da própria interação
entre o Brasil e a Argentina em seu âmbito, representa dimensão
associada não apenas ao número das partes. Muito mais importante
que isso, o multilateralismo consubstancia dimensão institucional,
configurada pela existência de princípios e valores orientadores do
comportamento das partes, no caso os Estados- membro do Mercosul,

134
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

a qual, ao mesmo tempo, remete às regras, às formas e aos meios


empregados por essas mesmas partes para tratar de problemas de
coordenação e colaboração e para tomar decisões e atuar conjuntamente
no plano da integração sub-regional.
Adimensão multilateral, tida como variável independente para
a análise do processo de negociação do Mercosul, não deve, portanto,
ser considerada apenas em uma perspectiva nominal e de caráter formal,
que remete essencialmente à consideração do número de partes
envolvidas, ainda que o fato de os países do Mercosul serem apenas
quatro tenha trazido desdobramentos significativos. Em primeiro lugar,
facilitou a manutenção do conjunto de iniciativas deslanchadas pelo
Brasil e a Argentina, que terminaram por configurar a espinha dorsal
de todo o processo de integração do Mercosul. Em segundo lugar,
facilitou a operacionalização do processo decisório baseado no consenso,
permitindo que, na construção do consenso, os países pudessem
negociar, não raro, exaustivamente, para tentar alcançar resultados
equilibrados. Por fim, o pequeno número de países participantes do
processo negociador contribuiu para restringir a possibilidade de
formação de coalizões e de alianças táticas, como é característico das
negociações multilaterais, o que também contribuiu para a preservação
do eixo Brasil-Argentina como fundamento da integração no Mercosul.
No entanto, como assevera John G. Ruggie, definições
nominais de multilateralismo13 não captam a dimensão qualitativa do
fenômeno, que é precisamente aquela que o distingue de outras formas
organizacionais de coordenação de políticas nacionais entre três ou mais
Estados.14 Portanto, o ponto de interesse, quanto à dimensão
multilateral da negociação do Mercosul, não é exatamente o fato de
tratar-se de uma negociação quadripartite, segundo definição de caráter
estritamente nominal. É, antes, o sentido substantivo, ou seja, o tipo
de relação que se tenha institucionalizado entre os Estados- membro

13 Um exemplo é a formulada por R.Keohane, que define multilateralismo como a prática


da coordenação de políticas nacionais entre três ou mais estados. Ver Robert Keohane,
“Multilateralism, an Agenda for research”, International Journal, 45, Autumn 1990, p. 731.
14 John Gerard Ruggie, “Multilateralism: The anatomy of na institution”, International
Organization, n.46(3), 1992, p. 566.

135
ALCIDES COSTA VAZ

com base em princípios, normas e procedimentos que instrumentalizam


suas relações mútuas, orientam o seu comportamento e a tomada de
decisão no processo negociador.
Então, faz-se necessário considerar as relações entre os países-
membro do Mercosul e a própria dinâmica do processo negociador,
em sua perspectiva multilateral, à luz dos valores e princípios que as
balizaram e orientaram. Uma primeira observação a esse respeito é a de
que, no plano valorativo, o Mercosul foi tributário das iniciativas de
integração bilateral, dos anos 80, do Brasil e da Argentina. Como visto
no capítulo anterior, a convergência no plano político, gerada com a
restauração da democracia em ambos os países e com o interesse
compartido em sua proteção e aprofundamento, terminou por erigir e
consagrar um valor permanente no relacionamento bilateral e no
âmbito da integração sub-regional.
A consagração da democracia como valor político fundamental
para a integração, com sua transposição para o plano multilateral no
Mercosul, representou mais que um ato declaratório ou compromisso
formal. Teve incidência e conseqüências diretas para o processo de
integração e para o relacionamento entre os quatro países. Ao representar
condição indeclinável para a permanência no bloco e, por conseguinte,
para auferir os benefícios de a ele pertencer, estabeleceu-se parâmetro
político com o qual se reforçava o apelo e a viabilidade da própria
integração, uma vez que esta se beneficiaria, na vigência da ordem
democrática, de bases sólidas e de formas efetivas de legitimação política.
Ao mesmo tempo, a integração representaria não apenas resultado ou
processo caudatário da vigência de instituições democráticas, mas viria
a configurar uma importante dimensão da estratégia e um espaço de
construção e consolidação da democracia em âmbito sub-regional.
Naperspectiva do processo de negociação, uma conseqüência
direta do primado da democracia como valor político diz respeito à
maior acessibilidade e permeabilidade por parte dos governos na
formação de posições de negociação ena condução política do processo
de integração às expectativas e demandas de distintos setores domésticos,
muito embora seja preciso admitir que tal acessibilidade e permeabilidade
tenham sido distintas para cada país, refletindo constrangimentos e

136
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

limitações das próprias instituições políticas domésticas e as formas e


canais pelos quais se estabeleceu a interlocução dos governos com
diferentes segmentos políticos, sociais e produtivos em torno de
questões afetas à integração, que são tratadas no capítulo 8.
Além do mais, o intenso protagonismo dos governos no
lançamento e na condução do processo de integração e o escopo
acentuadamente comercial que lhe foi conferido, somados às resistências
dos setores produtivos que se percebiam como mais ameaçados pela
exposição à competição no mercado ampliado, terminaram por
configurar condição pouco favorável à ampla participação social no
processo de integração, o que, no entanto, não invalida a importância
e o impacto que teve a democracia como valor, parâmetro e dimensão
da construção do Mercosul e para o relacionamento entre seus membros.
Ao lado do primado da democracia, um segundo princípio
herdado da etapa bilateral e reafirmado com o Mercosul, embora com
matizes distintos, foi o gradualismo, expresso no Tratado de Assunção,
na ênfase dada à consecução de objetivos no plano comercial em prazos
delimitados ( o período de transição) como etapa e condição prévias
para se alçar níveis mais profundos de integração. Como visto no
capítulo anterior, a definição de prazos estritos (quatro anos) para a
conformação da área de livre comércio e da união aduaneira atendeu
mais a desígnios políticos que a uma racionalidade pautada nos
requerimentos e condições necessários para a integração profunda que
a letra do tratado consagrava. Mas, ainda assim, a fixação, no Tratado
de Assunção e, posteriormente, no Cronograma de Las Leñas, de metas
a serem alcançadas dentro de prazos definidos e limitados representou
elemento de forte impacto para as negociações, na medida em que se
definia, em detalhes, a agenda sobre a qual os negociadores deveriam
concentrar-se imprimindo às negociações um ritmo intenso, tanto no
nível técnico, em que atuavam os onze subgrupos de trabalho, como
nas esferas executiva e política, a cargo do Grupo e do Conselho do
Mercado Comum, respectivamente.
A negociação multilateral esteve portanto condicionada e
impulsionada pela necessidade de cumprimento de metas e prazos que
representavam, demais de elementos de orientação para os negociadores,

137
ALCIDES COSTA VAZ

fator de restrição de sua capacidade de modificar a agenda ou de alterar


o ritmo das negociações. Em decorrência dessa sistemática, havia um
conjunto de temas não negociáveis: em primeiro lugar, a orientação
política do processo15e, em segundo lugar, os próprios parâmetros e
os prazos estabelecidos no Tratado de Assunção, assim como a
metodologia de desgravação tarifária. A existência de temas não
negociáveis retirou, em grande medida, a possibilidade de que qualquer
das partes pudesse, no âmbito multilateral, buscar rediscutir ou
reformular os termos de sua participação no processo de integração,
tornando-o menos suscetível a inflexões emanadas de pressão ou
resistências setoriais domésticas ou a mudanças de posição dos governos
quanto ao sentido e aos instrumentos com que se levava a cabo a
liberalização do comércio no plano intra-regional.
Além dos prazos e das metas a serem cumpridos, o processo
de negociação, no plano multilateral, esteve condicionado pela
sistemática de reuniões semestrais de instâncias políticas, inclusive
presidencial, em que se tomavam e confirmavam decisões fundamentais
quanto ao direcionamento do processo, o que também incidia no
compasso das negociações, na medida em que propiciavam um
elemento de reforço sustentado e permanentemente renovado do
compromisso político, em mais alto nível, com a integração. Nas
palavras de Felix Peña,

Esta firmeza en la dirección se refleja en algo que se ha llamado la


diplomacia presidencial en el Mercosur, que viene del período de
integración bilateral Argentina-Brasil. Consiste en que los
negociadores saben que cada seis meses se tienen que encontrar con
los presidentes y a nadie le gusta, siendo funcionario (ministro,
subsecretario o alto funcionario de un gobierno), llevar a ningún
presidentea una reunión quefracase. Este fue un factor poderosísimo
porque sabíamos – y sabían luego los que nos sucedieron – que los
presidentes querían que las cosas fueran para adelante.16

15 Félix Peña, entrevista ao autor.


16 Félix Peña, Principales tendencias de las negociacionespara la integración regional: la experiencia
del Mercosur y de lo Cuatro más Uno, p.165.

138
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

Em outros termos, o processo de negociação multilateral estava


fortemente condicionado ao mandado político emanado dospresidentes
dos quatro países de que a integração era um objetivo a ser concretizado
segundo os princípios, objetivos, instrumentos e prazos já acordados.
A delimitação de prazos estritos para a consecução de metas e
dos objetivospactuados representava também a contrapartida a qualquer
sentido protelatório que o gradualismo pudesse induzir, e manifestava
a disposição política dos protagonistas da integração de não reproduzir,
no âmbito do Mercosul, os erros que haviam, a seu juízo, conduzido
o processo de integração no âmbito da Aladi a uma condição de
inoperância.17 O princípio do gradualismo, introduzido ainda na etapa
bilateral, é portanto estendido ao Mercosul, porém, matizado pela
preocupação de sinalizar claramente que ele não deveria servir de
argumento para corroborar ou justificar atrasos ou dificuldades em
avançar no que fora pactuado, para o que se definiram tarefas, metas e
prazos a serem cumpridos, fazendo coincidir o período de transição
com os mandatos dos presidentes do Brasil e da Argentina de então.
Em síntese, o gradualismo não deveria fomentar o descomprometimento,
mas, ao contrário, deveria representar elemento de reforço e viabilização
dos compromissos assumidos conjuntamente.
Significativamente, o único princípio explicitado na letra do
Tratado de Assunção e que também estivera presente na fase da
integração bilateral é o da reciprocidade.18 Por esse princípio, procurou-
se estabelecer condição de isonomia entre os países do Mercosul em
relação aos compromissos assumidos, independentemente de seu grau
de desenvolvimento relativo. Nesse sentido, o princípio era aplicável
não apenas ao domínio comercial, onde implicava a recusa de
tratamentos diferenciados ou excepcionais, salvo diferenças pontuais
de ritmo em favor do Paraguai e do Uruguai na execução do Programa
de Liberalização Comercial19 e as exceções admitidas no Regime de

17 Rubens A. Barbosa, América Latina em perspectiva: a


integração latino-americana: da retórica
à realidade, p. 90.
18 O artigo 2o. do Tratado de Assunção diz que “o Mercado Comum estará fundado na

reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados-parte”.


19Tratado de Assunção, artigo 6o.

139
ALCIDES COSTA VAZ

Convergência à Tarifa Externa Comum. Era um princípio que tinha,


além disso, expressão no campo político, uma vez que restringia
fortemente a possibilidade de que os dois países menores pudessem
adotar, com êxito, estratégia pendular ante dois sócios maiores.
Contudo, o princípio foi aplicado de forma mais rigorosa no início
do processo negociador e flexibilizado na fase final do período de
transição, como o regime de adequação à tarifa externa comum,
adotado em dezembro de 1994, evidencia-o.
Também consagrada nas iniciativas bilaterais dos anos 80, a
flexibilidade é um princípio que não se pode considerar plenamente
incorporado ao Mercosul. Neste, foram privilegiadas, antes, a
automaticidade na sistemática de liberalização comercial, a reciprocidade
e, como visto acima, a definição de metas e prazos estritos para a
consecução dos objetivos da integração no campo comercial. No
entanto, se por um lado, os governos dos países do Mercosul acordaram
um esquema de integração mais rígido quanto à forma de
operacionalização, ao mesmo tempo, procuraram garantir a preservação
de amplos espaços de soberania, o que fica retratado na delimitação da
arena comercial como o principal espaço de promoção da integração,
na recusa à criação de instâncias supranacionais, na firme defesa de um
arranjo institucional intergovernamental e nas diferenças substantivas
de orientação de políticas domésticas e também de políticas exteriores
entre os dois países naquele mesmo período.
Assim, a pouca flexibilidade dos instrumentos de integração,
notadamente os aplicados no campo comercial, encontrava contrapartida
na preservação da prerrogativa de atuar com discricionalidade em áreas e
temas não alcançados pelos instrumentos de integração na fase
considerada e que se restringiu fortemente à esfera comercial, mas cujo
tratamento se considerava necessário para a consecução dos objetivos
de coordenação econômica e para a livre circulação dos fatores de
produção no futuro, segundo disposto no próprio Tratado de Assunção.
No tocante às regras, cabe analisar, em particular, a aplicada ao
processo de tomada de decisões. Assim como ocorreu em relação aos
valores e princípios herdados da fase bilateral, que foram quase que
integralmente confirmados a partir do Tratado de Assunção, a

140
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

multilateralização não acarretou nenhuma mudança quanto à regra para


a tomada de decisões, que continuou a ser o consenso.20 Esse arranjo
refletia a isonomia, nos planos político e jurídico, entre as partes do
Tratado de Assunção, e atendia ao propósito de preservar o equilíbrio
do processo em face das desigualdades entre ospaísespartes. No entanto,
a prevalência do consenso, como critério básico para a tomada de
decisões no âmbito do bloco, não suplantou a realidade das assimetrias
de poder e não implicou, por conseguinte, nenhuma forma de diluição
ou limitação da capacidade dos dois sócios maiores de conduzirem o
processo de integração no sentido e nos termos por eles acordados.
O consenso implicava, teoricamente, que qualquer das partes,
independentemente de seu peso no bloco, usufruiria de poder de veto.
A questão que se coloca, no entanto, diz respeito não à possibilidade
de exercê-lo e de sua extensão aos quatro países indistintamente, mas
sim à capacidade real para fazê-lo, que não se desvincula da avaliação
dos custos que a dissensão representaria.
Esses custos afiguravam-se maiores para os dois sócios menores,
uma vez que o bloqueio do processo decisório, por eles, em temas
fundamentais para a construção do Mercosul, em razão de posições
dissonantes que sustentem, individual ou conjuntamente no âmbito
do Grupo Mercado Comum e do Conselho Mercado Comum,
poderia implicar dificuldades para a consecução de seu interesse
principal, que era garantir acesso privilegiado aos mercados dos dois
sócios maiores. Desse modo, a possibilidade de exercício do poder de
veto via-se restringida, nos casos do Uruguai e Paraguai, pelo interesse
de resguardar o processo de integração em seu sentido final. Em
decorrência dessa limitação, os dois países perseguiram a estratégia de
buscar a obtenção, no plano político, de concessões e resultados mais
favoráveis, ainda que com sacrifício de interesses específicos dentro da
negociação. A capacidade de exercício do poder de veto dentro do
esquema consensual adotado estava, por conseguinte, desigualmente
distribuída em favor dos dois sócios maiores.

20 Tratado de Assunção, artigo 6o.

141
ALCIDES COSTA VAZ

A aplicação da regra do consenso também deve ser analisada,


no período ora considerado, tomando-se em conta o fato de que o
Brasil e a Argentina estavam imbuídos da disposição de promover a
integração nos termos acordados bilateralmente, a despeito de qualquer
eventual dissonância por parte dos outros dois países. São elucidativas
a esse respeito as palavras de Félix Peña, em depoimento ao autor, ao
referir-se à estrutura das negociações:

Simultaneamente con el Mercosur y el Tratado de Assunción, habiamos


negociado el Acuerdo 14 y que es practicamente lo mismo, y esto de
alguna manera ponia el límite al que podia ser alguna tentación
que podia haber de alguno de los dos paises de menor dimensión de
jugar al pendulo o poner los intereses de Brasily Argentina en cuestión.
Esto porque el mensajen era ‘queremos hacerlo de cuatro, pero, en
ultima instancia, tendremos que hacerlo de dos’. Y esto luego resolvió
muchos problemas, permitió hablar claro, resolver unos problemas
que habia en la preparación del Tratado de Asunción que era romper
com la idea que venia de la Aladi de que habia de tener un tratamento
diferenciado a los paises de menor desarrollo relativo.

Essa mesma disposição fica evidenciada, do lado brasileiro, na


argumentação do chanceler Celso Laffer ao ser questionado, na
Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, sobre a
capacidade de o país preservar seus interesses fundamentais em um
esquema decisório baseado no consenso e envolvendo países de menor
expressão econômica. Segundo Laffer,

É evidente que durante uma fase de transição como a que estamos


vivendo, isso (o consenso) traz garantias para os Estados menores,
traz garantias para o Uruguai, traz garantias para o Paraguai.
Mas nem por isso, penso eu, o Brasil está prejudicado. Não está
prejudicado, porque sendo o Brasil o que é para o Mercosul,
dado o seu peso político, a imprescindibilidade do seu acordo e
a ativa participação dos nossos representantes nessas discussões,
o Brasil pode com tranqüilidade ver a defesa integral dos seus
interesses estratégicos na conformação do Mercosul. Eu diria
até, numa frase um pouco contundente demais para o Ministro

142
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

das Relações Exteriores, falando na Comissão de Relações


Exteriores, que o Mercosul será o que o Brasil acabará admitindo
como válido para o Mercosul (...) Dado o peso do Brasil e a sua
especificidade, uma posição negativa do Brasil defende o Brasil
de qualquer coisa. Por isso que eu digo, em última instância,
que o Mercosul será, nesta avaliação, aquilo que o Brasil, em
conjunto com os demais países, mas examinando sua perspectiva,
vier a estruturar.21

Dessas declarações, depreende-se a disposição, tanto do Brasil


como da Argentina, de evitar que a aplicação do critério do consenso
se desse às expensas da capacidade de ambos de manter o processo de
integração nos moldes definidos bilateralmente ou que se abrisse espaço
de manobra para que o Paraguai e o Uruguai viessem a demandar
tratatamento privilegiado ou concessões em razão de serem países de
menor desenvolvimento econômico relativo.

3.3. O multilateralismo ante os problemas de


coordenação e colaboração

Do ponto de vista teórico, o multilateralismo como instituição


política, além de erigir-se sobre princípios e normas orientadores das
relações entre os países, cumpre, no plano internacional, funções em
favor da cooperação interestatal. Segundo Ruggie, a forma genérica de
multilateralismo pode ser encontrada, historicamente, em arranjos
institucionais para definir e estabilizar direitos de propriedade dos
Estados, manejar problemas de coordenação e resolver problemas de
colaboração.22 No caso das relações entre os Estados-membro do
Mercosul, os dois últimos aspectos despontam como de particular
interesse para análise, uma vez que a integração entre o Brasil, a
Argentina, o Paraguai e o Uruguai não colocou em questão direitos de
propriedade, os quais se associam à prerrogativa de soberania sobre
territórios e ao direito de aceder ao uso de recursos em áreas não sujeitas

21 Celso Lafer, depoimento na Comissão de Relações Exteriores, 12a. Sessão, 1992.


22 John Gerard Ruggie, op. cit., p. 567.

143
ALCIDES COSTA VAZ

à jurisdição de nenhum Estado em particular. Porém, o Mercosul


suscitou, ao longo de sua trajetória e de modo particular na fase de
transição, problemas de coordenação e de colaboração que foram objeto
importante de negociação, tanto no nível bilateral (Brasil e Argentina)
como no multilateral. A distinção entre colaboração e coordenação
como aqui expressabaseia-senaformulação de Arthur Stein, que associa
a primeira à existência de interesses comuns entre Estados e a segunda
ao esforço de superar conflitos e aversão mútua. Em sua visão,
colaboração e coordenação engendrariam regimes internacionais de
natureza diversa. Apartir do trabalho de Stein, outros autores, como
Lisa Martin, propõem uma classificação distinta para os problemas de
cooperação, discriminando, além dos de colaboração e coordenação,
os chamam de suasion, isto é, problemas nos quais as assimetrias entre
as partes levam a resultados que não atendem às expectativas de pelo
menos uma delas, e de assurance, problemas em que o único desfecho
desejado é a cooperação mútua.23
Conceitualmente, os problemas de coordenação referem-se à
necessidade ou ao interesse das partes de reduzir custos de transação
em uma dada área ou um dado setor de atuação conjunta, partindo de
distintos arranjos ou instituições domésticas. A solução de problemas
de coordenação envolve, entre outras medidas, segundo Stein, o
estabelecimento de convenções e a padronização de normas. O
estabelecimento de um regime de livre comércio e de uma união
aduaneira, como se fez no Mercosul, envolveu o encaminhamento de
diversos problemas de coordenação em torno de temas que integraram
a agenda de negociação, de que são exemplos: a eliminação de obstáculos
tarifários e não tarifários ao comércio intra-regional, a unificação do
sistema de classificação de mercadorias, a adoção de medidas de
facilitação de trânsito aduaneiro, a desregulamentação do transporte
de cargas terrestres e as questões relativas à infra-estrutura (energia e
transportes principalmente). O tratamento conjunto dessas questões,
no contexto da criação de uma área de livre comércio, atendia não

23 Ver Lisa L. Martin, “Interests, power and multilateralism”, International Organization


46, 4, 1992, p. 765-792

144
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

apenas ao propósito de viabilizar o regime de livre comércio, mas


também ao de reduzir custos de transação no âmbito sub-regional.
Os problemas de colaboração, por sua vez, referem-se à
necessidade de regular o comportamento mediante o estabelecimento
de padrões que gerem previsibilidade e que ensejem a realização de
interesses comuns. Envolveram, no caso do Mercosul, no período ora
em consideração, os temas relativos ao estabelecimento de uma
disciplina comercial comum: regras de origem, regime de solução de
controvérsias, normas anti-dumping, subsídios e financiamento de
exportações, defesa da concorrência e do consumidor, aTarifa Externa
Comum e os temas a ela vinculados (valoração aduaneira, tratamento
aos regimes aduaneiros especiais, regime de adequação).
Os problemas de coordenação e colaboração entre os quatro
países- membro do Mercosul derivavam, pois, do próprio objetivo
perseguido e do caráter eminentemente comercial conferido ao processo
de integração durante seus quatro primeiros anos, e constituíram-se
em torno da necessidade de eliminar obstáculos ao comércio e de
implementar medidas que implicassem a redução dos custos de
transação dentro da região, e, ao mesmo tempo, de construir o
arcabouço normativo que engendrasse uma disciplina comercial a ser
aplicada às relações entre os quatro países e entre eles e terceiros.
Nesse sentido o multilateralismo representou forma institucional
de resposta conjunta a esses problemas, tendo exercido, no caso, função
eminentemente instrumental. Porém, cumpre observar que se o
multilateralismo representou, por um lado, uma forma institucional
de resposta aos problemas e desafios suscitados pela construção do
regime de livre comércio e da união aduaneira, por outro, conferiu
maior complexidade às negociações. Isso porque os problemas de
coordenação e de colaboração aludidos foram realçados e mesmo
agudizados pelo tratamento isonômico conferido aosEstados-membro
pelo Tratado de Assunção, no que tange às prerrogativas e aos
compromissos nele fixados, tratamento que contrastava com as notórias
assimetrias existentes entre eles.
A existência de grandes assimetrias entre as partes envolvidas
no processo de negociação do Mercosul reflete-se diretamente na

145
ALCIDES COSTA VAZ

natureza da negociação e do multilateralismo como instituição por


meio da qual as partes procuram responder a problemas de cooperação,
como acima explicitado. Isso porque os problemas de coordenação e
colaboração supõem uma inclinação em favor da simetria de interesses
das partes,24 condição esta dificilmente observada em negociações
multilaterais, notadamente nas que envolvem um número muito grande
de países. No caso do Mercosul, apesar do número reduzido de
participantes, o processo de negociação esteve condicionado pelas
acentuadas assimetrias entre as partes, refletidas no alcance de seus
interesses ena capacidade real de produzir resultados no processo, bem
como nos próprios resultados logrados. As posições hegemônicas do
Brasil e da Argentina, na negociação multilateral do Mercosul,
tomando-se em conta o quadro de assimetrias entre as partes, suscitam
o problema de como persuadir os dois outros países a prosseguirem
cooperando.
Teoricamente, esse dilema encontraria solução em duas
estratégias possíveis: a primeira, de natureza coercitiva, implicaria a
dissuasão, ou seja, a ameaça de adotar um curso de ação cujos custos,
para a outra parte (no caso os países menores), suplantariam aqueles
advindos da cooperação nos termos estabelecidos pelos mais fortes; a
segunda consistiria em ampliar as possibilidades de benefícios para os
menores por meio de recompensas laterais (sidepayments).
Nesse sentido, o tipo de problema observado no processo de
negociação do Mercosul, na fase de transição, consideradas as perspectivas
do Brasil e da Argentina como principais atores, aproxima-se do que
Lisa Martin descreveu como problema de persuasão, ou seja, a situação
em que, em um contexto de assimetria, o país hegemônico enfrenta o
dilema entre persuadir ou coagir os demais à cooperação.25 Segundo a
mesma autora, em tal situação, há poucas razões para crer-se que o
multilateralismo possa em si mesmo representar um fator de limitação
do comportamento dos países mais fortes, uma vez que o controle da
agenda e das decisões seguirá em mãos deles mesmos. Nas palavras da

24 Idem, p. 777.
25 Idem, 778.

146
COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

autora: “International multilateralism mayprovidecoverforsmallerstates


but will have little impact on actual decision making”.26
A experiência do Mercosul, à vista dos fatores anteriormente
apresentados, tanto se considerada a fase de transição ora enfocada como
sua trajetória posterior, confirma essa assertiva. O multilateralismo
permitiu o encaminhamento de soluções para problemas de cooperação
(notadamente os relativos à liberalização do comércio no campo
tarifário) entre os quatro países-membro do Mercosul, mas não
implicou a redistribuição das capacidades de influência e de decisão no
processo negociador, as quais permaneceram centradas no eixo Brasil-
Argentina, refletindo assim a estrutura de poder dentro do bloco.
Além de servir à solução de problemas de coordenação e de
colaboração, o multilateralismo é associado a outras funções. Zartman
enumera a simplificação, a estruturação e a liderança como funções
essenciais do multilateralismo.27 A simplificação associa-se à redução
da complexidade resultante da existência de múltiplos temas e enfoques
usualmente presentes em negociações multilaterais; a estruturação refere-
se à forma de organizá-los e abordá-los com vista à obtenção dos
resultados desejados; a liderança, por fim, remete à necessidade de um
direcionamento que encaminhe e torne viável a tomada de decisão.
O argumento aqui apresentado é o de que, no caso do Mercosul,
essas funções não foram cumpridas de forma harmônica, uma vez que
a multilateralização do processo de integração a partir de setembro de
1990, com a incorporação do Uruguai e do Paraguai, conferiu, como
dito acima, maior complexidade às negociações, tanto em razão do
conjunto de assimetrias a elas incorporadas como das demandas trazidas
por esses dois países, as quais retratavam, em larga medida, perspectivas
e necessidades em muitos sentidos distintas daquelas que haviam
orientado o processo em sua etapa bilateral.
Assim, ao contrário do que afirma Zartman quanto à
simplificação, o multilateralismo representou, no Mercosul, fator da

26 Idem, 780.
27 William Zartman, “Desarrollos recientes em la estructura de las negociaciones”, In Juan
CarlosBeltramino(coord.), Jornadas sobre requerimientosy tendencias actualesde la negociación
internacional, Buenos Aires: CARI, 1998, p. 24-25.

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ALCIDES COSTA VAZ

maior complexidade para a negociação, sobretudo por ter resultado


do envolvimento de países que acentuaram disparidades já existentes
na fase bilateral. Afunção de simplificação, no caso do Mercosul, esteve
associada mais aos esforços do Brasil e da Argentina de preservar os
entendimentos bilaterais como parâmetro da negociação multilateral,
delimitando assim o escopo da mesma, que a qualquer necessidade de
estruturação de agenda, que devesse ser promovida com a prevalência
de uma orientação particular, lograda por meio da negociação conjunta,
em detrimento de outras sustentadas por qualquer das outras partes.
Além do mais, como visto antes, o reduzido número de participantes
nas negociações e o critério do consenso na tomada de decisões
instaram as partes, diante de uma agenda complexa, a negociarem
exaustivamente, ao contrário de procurarem simplificar a agenda no
plano multilateral.
Quanto à estruturação, em que pese a estrutura da negociação
ter sido praticamente herdada da etapa bilateral, pode-se afirmar que
foi uma função adequadamente cumprida, na medida em que o formato
multilateral das negociações ensejou o desenvolvimento de uma
tecnologia de cooperação que conduziu à consecução dos objetivos
definidos para o período de transição e também gerou resultados
expressivos no campo da integração, como atestaram os indicadores
de crescimento do comércio intra-regional, o ingresso de investimentos
estrangeiros e o nível geral de transações entre os quatro países, espelhado
nos crescentes níveis de interdependência entre eles.
Por sua vez, a liderança não resultou, em nenhum sentido, do
formato multilateral, mas da capacidade maior do Brasil e também da
Argentina de fazer prevalecer suas visões no processo de negociação.
O sentido de orientação política não decorreu, portanto, de uma visão
consensuada no plano multilateral, mas sim da disposição e dos
interesses do Brasil e da Argentina quanto à consecução dos objetivos
formalmente definidos no Tratado de Assunção e dos delimitados no
âmbito de suas políticas externas.
Por conseguinte, pode-se asseverar que muitas funções do
multilateralismo e a própria estrutura das negociações, mesmo
consideradas as formulações de Ruggie ou as de Zartman, estiveram,

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COOPERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E PROCESSO NEGOCIADOR: A CONSTRUÇÃO DO MERCOSUL

no caso do Mercosul, matizadas pela existência de um eixo bilateral


Brasil-Argentina no qual concentrou-se a capacidade decisória em
termos efetivos, dadas as limitações enfrentadas pelo Uruguai e o
Paraguai no sentido de, individual ou conjuntamente e a partir de um
eventual dissenso frente ao Brasil e à Argentina, provocar forma
significativa de redirecionamento do processo de integração. Esse é
um dado central para a compreensão da estrutura das negociações como
da própria dinâmica do Mercosul. Como visto, a multilateralização
do processo de integração formalizada no Tratado de Assunção não
implicou, em termos reais, o deslocamento das relações Brasil-Argentina
como “eixo gravitacional” de todo o processo.
Assim, houve, no Mercosul, em sua feição multilateral, uma
construção jurídica, institucional e normativa que consagrou a igualdade
dos países e, ao mesmo tempo, operou a partir de uma realidade de
poder assimétrica, reproduzindo assim o mesmo dilema que caracteriza
o sistema internacional em que a prerrogativa da soberania comparece
como niveladora, no campo jurídico, das assimetrias entre os Estados-
nação, as quais seguem refletidas na estrutura e na hierarquia de poder
internacional. Dessa forma, o multilateralismo, no âmbito do
Mercosul, não exerceu satisfatoriamente a função de nivelar assimetrias,
exceto no que tange ao plano decisório, em razão da eleição do consenso
como critério formal para tomada de decisões, mas refletiu a
proeminência do Brasil e da Argentina, como principais atores dentro
do processo negociador, e ajustou-se a ela.
Em síntese, a dimensão multilateral do processo de negociação
do Mercosul decorreu de considerações e interesses eminentemente
políticos, particulares a cada país, sem, contudo, haver descaracterizado
o projeto de integração bilateral como redefinido na Ata de Buenos
Aires, dejunho de 1990. Consagrou princípios, valores e instrumentos
gerados bilateralmente pelo Brasil e a Argentina e ajustados à nova
feição acentuadamente comercial que se imprimia ao processo a partir
de então. O multilateralismo representou, nesse caso, forma
institucional relativamente bem sucedida de resposta aos problemas
de coordenação e de colaboração associados à instauração, entre países
com grandes assimetrias entre si, de um regime parcial de livre comércio

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ALCIDES COSTA VAZ

e de uma disciplina comercial comum para regular as relações, no plano


comercial, com terceiros países.
Ao mesmo tempo, a existência de um conjunto de temas “não-
negociáveis”, o pequeno número de participantes e a existência de um
eixo bilateral, em muitos sentidos definidor do conteúdo e do sentido
da negociação, restringiram a possibilidade de alianças táticas no
contexto da negociação, mantendo sua dinâmica vinculada à passagem
do eixo bilateral para o multilateral e ao funcionamento das instâncias
institucionais formais, o que terminava resguardando e reforçando a
influência dos dois sócios maiores no curso do processo negociador
em sua dimensão quadrilateral. Assim, em termos operativos, o
multilateralismo no Mercosul esteve matizado pela preservação do eixo
Brasil-Argentina como eixo gravitacional e vinculante do processo de
integração no período considerado, característica que se manteria nos
anos seguintes.

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