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AMANDA KAROLAINE DE SOUZA FELDHAUS

PATRÍCIA MACHADO DE OLIVEIRA

UMA ANÁLISE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.641, II,


DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Artigo científico apresentado à banca


examinadora do Centro Universitário São
Lucas Ji-Paraná (UniSL), como requisito
de aprovação para obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Profa. Orientadora: Cheila Cristina da


Silva

Ji-Paraná
2021
UMA ANÁLISE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.641, II,
DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Amanda Karolayne de Souza Feldhaus1


Patrícia Machado de Oliveira2
Cheila Cristina da Silva3

RESUMO: A obrigatoriedade da norma que impõe ao idoso a adoção do regime da


separação legal de bens em seu casamento, ainda é questão de muita crítica e visto
como um atentado a principiologia constitucional aplicada ao direito de família. Neste
sentido, este trabalho tem como objetivo analisar a inconstitucionalidade dessa
norma que obriga o idoso que, ao atingir 70 anos, deve adotar o regime de
separação legal de bens quando for contrair núpcias. Para tanto, o método utilizado
foi o da pesquisa bibliográfica e documental, buscando informações em livros,
artigos, jurisprudências, súmulas e Leis presentes na legislação brasileira. Segundo
as pesquisas, verificou-se a inconstitucionalidade do inciso II, do artigo 1.641, do
Código Civil ao usar a idade como parâmetro para medir a capacidade do idoso,
contrário ao que dispõe os artigos 1º, inciso III, e 5º, da Constituição Federal, bem
como os artigos 3º, 4º, e parágrafo único do artigo 1.640, todos do Código Civil de
2002.

Palavras-chave: Casamento. Regime de Bens. Separação Legal ou Obrigatória.


Inconstitucionalidade.

ABSTRACT: The obligation of the rule that imposes on the elderly the adoption of the
regime of legal separation of property in their marriage, is still a matter of much
criticism and seen as an attack on the constitutional principle applied to family law. In
this sense, this work aims to analyze the unconstitutionality of this norm that obliges
the elderly who, upon reaching 70 years of age, must adopt the regime of legal
separation of property when they are going to get married. Therefore, the method
used was the bibliographic and documentary research, seeking information in books,
articles, jurisprudence, summaries and laws present in Brazilian legislation.
According to the researches, the unconstitutionality of item II, of article 1641, of the
Civil Code, when using age as a parameter to measure the capacity of the elderly,
contrary to the provisions of articles 1, item III, and 5, of the Federal Constitution, as
well as articles 3, 4, and sole paragraph of article 1640, all of the Civil Code of 2002.

Keywords: Wedding. Property Regime. Legal or Mandatory Separation.


Unconstitutionality.

1
Acadêmica do 9º período do curso de Direito na UNISL. E-mail: amandajipa_cristina@hotmail.com
2
Especialista em Supervisão, Orientação e Gestão Escolar com Ênfase em Psicologia Educacional
pela Faculdade Santo André (2014), Especialista em Psicopedagogia pelo Centro de Ensino Superior
de Vitória (2017), Licenciada em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil (2011), Acadêmica
do 9º período do curso de Direito na UNISL. E-mail: patriciamchd26@gmail.com
3
Professora Orientadora Mestranda em Direito Internacional pela Universidade Autônoma de Asucion
(2019), Especialista em Psicopedagogia e Gestão Escolar pelo Instituto Cuiabano de Educação
(2003), Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Unintes (2008), Especialista em Direito
para a Carreira da Magistratura pela Emeron (2018), Graduada em Pedagogia pelo Centro
Universitário Luterano de Ji-Paraná (2001), Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Luterano de
Ji-Paraná (2011). E-mail: cheilacristinadasilva79@gmail.com
2

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo versa sobre a obrigatoriedade da norma que impõe aos


maiores de 70 (setenta) anos a adoção do regime da separação legal de bens
quando se casarem. Esse dispositivo encontra-se materializado no artigo 1.641, II,
do Código Civil de 2002, alterado pela Lei n. 12.344 de 2010, com a justificativa de
adequá-lo à realidade contemporânea. Adequação essa, que em nada contribuiu a
não ser a elevação da idade de 50 anos (mulher) e 60 anos (homem) para 70 anos
ambos, porém permanecendo a imposição quanto à escolha do regime a ser
adotado quando contrair núpcias.
Convêm questionar se tal dispositivo legal deveria de fato permanecer no
ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que atualmente vivemos no
paradigma do Código Civil Constitucionalizado e menos patrimonialista. Além disso,
tem-se que a população está cada vez mais ativa e vivendo mais, portanto, limitar a
capacidade de alguém em razão unicamente de sua idade, ofende princípios
constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade.
Necessário se faz refletir sobre o tema, porque, diante dessa limitação de
idade, as pessoas com idade igual ou superior a 70 anos não podem usufruir de
seus direitos previstos na Constituição Federal como a liberdade individual e a
igualdade, ferindo com isso a sua dignidade como ser humano, através de uma
limitação que o próprio Código Civil tratou de esclarecer os casos em que seriam
aplicáveis em seus artigos 3º e 4º, ao tratar da incapacidade do indivíduo.
Neste sentido, este trabalho tem o objetivo de analisar a inconstitucionalidade
da norma que torna obrigatório a adoção do regime da separação legal de bens aos
maiores de 70 anos. Para isso, abordar-se-á em um breve relato a evolução histórica
do direito de família e os princípios constitucionais quais sejam dignidade da pessoa
humana, liberdade e igualdade. Serão tratados ainda, os tipos de regimes de bens
existentes no novo Código Civil, sintetizando a evolução histórica do regime da
separação legal de bens, imposta aos maiores de setenta anos e a aplicabilidade da
Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Por fim, será feita uma análise a respeito
da incapacidade em razão da idade e a inconstitucionalidade do regime da
separação legal de bens.
3

O método utilizado foi da pesquisa bibliográfica e documental, a partir da


leitura de livros de autores renomados no direito de família como Carlos Roberto
Gonçalves, Flávio Tartuce, Maria Berenice Dias entre outros, onde se pretendeu
chegar a uma conclusão sobre a inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código
Civil.
O método de procedimento utilizado foi o histórico, onde foi necessário
abordar as alterações ocorridas na legislação, fazendo um paralelo com as
mudanças e avanços no que concerne a qualidade e expectativa de vida do idoso no
Brasil, utilizou-se o método comparativo, relacionando o teor do artigo 1.641, II, do
Código Civil aos princípios constitucionais do direito de família.
Destarte, buscou-se estudar, através da leitura de artigos, jurisprudências,
Súmulas e Leis presentes na legislação brasileira informações que pudessem
reforçar o que o presente artigo levantou como questionamento: A
inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002.

2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE FAMÍLIA E OS PRINCÍPIOS


CONSTITUCIONAIS

O código civil brasileiro regula a vida das pessoas desde antes do seu
nascimento até após a sua morte. Entre seus títulos e subtítulos o assunto que fala
sobre o casamento merece especial destaque por sua importância na vida das
pessoas ao longo dos séculos, pois o conceito de família que existia há 100 anos
sofreu grandes mudanças tanto estruturais como formais.
Para o Estado, família era aquela que surgia a partir do casamento entre
homem e mulher, não usufruindo da proteção estatal aqueles que se uniam sem tal
convenção. Antes da constituição de 1988, somente os filhos gerados na constância
do matrimônio eram sujeitos de direitos, sendo a estes conferido o “status familiar”,
preconizado pelo Código Civil de 1916.
Traçando parâmetros matrimonializados e sob forte influência francesa, o
código de 1916, possuía uma configuração hierárquica, patriarcal e patrimonial.
Dessa maneira, por meio do casamento haveria a preservação do patrimônio, a
continuação de um legado, fazendo dos filhos instrumentos para atingir tal finalidade.
Na figura do homem centrava todo o poder, suprimindo, ou por vezes, até
4

desconsiderando a capacidade da mulher. Verucci (1999, p. 35), preleciona que o


referido código,

[...] sofreu grande influência do Estado e da Igreja, e consagrou a


superioridade do homem, dando o comando único da família ao marido, e
delegando a mulher casada a incapacidade jurídica relativa, equiparada aos
índios, aos pródigos e aos menores de idade.

No entanto, Azevedo (1999) assevera importantes mudanças que ocorreram


na condição jurídica da mulher, com o advento do estatuto da mulher casada, onde
na constância do casamento as mulheres deixaram de ser consideradas incapazes
em relação a alguns atos, ou à maneira de exercê-los.
Consoante a isso, o modelo sustentado pelo antigo Código Civil não se
manteve, urgia a necessidade de adaptação da legislação diante das mudanças e
transformações da sociedade, onde tanto o homem quanto a mulher deveriam ter os
mesmos direitos resguardados, prevalecendo a igualdade e a liberdade ante a sua
condição física e sexual. Era necessário acima de tudo que o Código Civil
caminhasse lado a lado com a Constituição Federal, conferindo aos indivíduos a tão
proclamada dignidade da pessoa humana.
Gonçalves (2021, p. 33) brilhantemente leciona que:

A Constituição Federal de 1988 “absorveu essa transformação e adotou


uma nova ordem de valores, privilegiando a dignidade da pessoa humana,
realizando verdadeira revolução no Direito de Família, a partir de três eixos
básicos”. Assim, o art. 226 afirma que “a entidade familiar é plural e não
mais singular, tendo várias formas de constituição”. O segundo eixo
transformador “encontra-se no § 6º do art. 227. É a alteração do sistema de
filiação, de sorte a proibir designações discriminatórias decorrentes do fato
de ter a concepção ocorrido dentro ou fora do casamento”. A terceira grande
revolução situa-se “nos artigos 5º, inciso I, e 226, § 5º. Ao consagrar o
princípio da igualdade entre homens e mulheres, derrogou mais de uma
centena de artigos do Código Civil de 1916.

Consequentemente, as mudanças pertinentes ao direito de família destacam


a função social da família no direito brasileiro, principalmente no que concerne a
proclamação da igualdade absoluta dos cônjuges e dos filhos, resultando no poder
familiar e, mais ainda, proibindo a interferência das pessoas jurídicas de direito
público na comunhão de vida instituída pelo casamento (artigo 1.513, do Código
Civil).
5

2.1.1 Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família

A Constituição Federal de 1988 representou grande marco na evolução do


direito de família e, consequentemente, trouxe novas formas de concepção e
compreensão do que seria a entidade familiar.
O Código Civil, que antes carregava traços patrimonialistas e patriarcais, onde
a mulher sob hipótese alguma poderia ocupar a mesma posição do homem, com o
novo Código Civil, passou a caminhar lado a lado com a Constituição Federal de
1988, elevando a personalidade em detrimento do patrimônio, fornecendo ao direito
de família, a tão proclamada dignidade da pessoa humana, com igualdade e
liberdade entre os cônjuges.
No âmbito do direito de família, permeiam diversos princípios, dentre eles,
diante da nova roupagem constitucionalista do direito civil moderno, se sobressaem
os princípios da proteção da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da
igualdade, que serão tratados a seguir.

2.1.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio da dignidade da pessoa humana é garantido constitucionalmente


no Brasil, a sua realização conduz a garantia de vários outros direitos.
Como decorrência do disposto no artigo 1º, III, da Constituição Federal de
1988, tratam-no daquilo que se denomina princípio dos princípios, e para que se
efetive o Estado democrático de direito deve-se fundamentar primordialmente na
dignidade da pessoa humana.
Moraes (2015, p. 18) leciona que:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se


manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das
demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam
ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre
sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas
enquanto seres humanos.

Dessa maneira, entende-se esse princípio como sendo uma máxima de como
deve ser, por este princípio a pessoa deve ser respeitada perante os demais no
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exercício de seus direitos, onde a restrição de quaisquer direitos e liberdades sejam


medidas excepcionais.
Gonçalves (2012, p. 33) assevera que “o Direito de Família é o ramo mais
humano do Direito e, portanto, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa
humana é a base da comunidade familiar”.
Outrossim, de acordo com Mendes (2014, p. 52), o princípio da dignidade é
“considerado a base fundadora dos demais direitos fundamentais previstos na
Constituição Federal, como direito à vida, à liberdade e os direitos das minorias,
como os direitos dos idosos”.
Em vista disso, pode-se dizer que este princípio carrega a limitação ao poder
do Estado, e além de disso, a obrigação deste em garantir o exercício livre e pleno
de tal direito fundamental.

2.1.3 Princípio da Liberdade

A Constituição Federal de 1988 estabelece no caput do artigo 5º como


princípio fundamental o da Liberdade. Silva (2005, p. 233) leciona que “a liberdade
consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à
realização da felicidade pessoal”, sendo possível entender o termo liberdade sobre
vários campos, a saber, liberdade de expressão e de pensamento, liberdade de
ação individual, liberdade profissional, liberdade econômica, dentre outras.
Ainda de acordo com Silva (2005, p. 236), a liberdade de ação se relaciona ao
interesse de agir e decidir conforme bem entender.

Esse dispositivo é um dos mais importantes do direito constitucional


brasileiro, porque, além de conter a previsão da liberdade de ação
(liberdade-base das demais), confere fundamento jurídico às liberdades
individuais e correlaciona liberdade e legalidade. Dele se extrai a ideia de
que a liberdade, em qualquer de suas formas, só poderá sofrer restrições
por normas jurídicas preceptivas (que impõem conduta positiva) ou
proibitivas (que impõem uma abstenção), provenientes do Poder Legislativo
e elaboradas segundo o procedimento estabelecido na Constituição. Quer
dizer: a liberdade só pode ser condicionada por um sistema de legalidade
legítima.

Dessa maneira, a conceituação de liberdade tem como função, permitir a


coexistência entre as liberdades das pessoas de acordo com leis universais de
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conduta, ou seja, respeitando as normas e desde que não venha prejudicar


terceiros, ao indivíduo é assegurado fazer tudo que não é proibido por lei.
Nesse sentido, fica vedado ao Estado intervir na escolha da organização
familiar ante a consagração do princípio da liberdade na Constituição Federal,
consoante Dias (2011, p. 67):

em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma


relação conjugal, uma união estável hétero ou homossexual. Há a liberdade
de dissolver o casamento e extinguir a união estável, bem como o direito de
recompor novas estruturas de convívio. A possibilidade de alteração do
regime de bens na vigência do casamento (C.C. 1.639, §2º) assinala que a
liberdade, cada vez mais, vem marcando as relações familiares.

Destarte, é possível extrair do trecho acima que qualquer pessoa é livre para
fazer suas escolhas como melhor lhe convir, podendo constituir família com quem
bem entender, alterá-la ou extingui-la gozando de autonomia perante o Estado e os
demais cidadãos, não podendo prevalecer qualquer restrição à liberdade individual
ou na organização da estrutura familiar.

2.1.4 Princípio da Igualdade

Outro princípio fundamental e geral corroborado na Constituição Federal


também no artigo 5º é o da igualdade, onde diz que todos são iguais perante a Lei,
sendo inviolável o direito à vida e à liberdade, dentre outros, sem distinção de
qualquer natureza. Esse princípio tem como objetivo equilibrar as diferenças entre as
pessoas, buscando a paridade.
A vista disso, Barbosa, ensina que:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos


desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social,
proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da
igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar
com desigualdade os iguais, ou os desiguais com igualdade, seria
desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos
conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a
cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se
todos se equivalessem. (BARBOSA, 1997, p. 26)

Assim sendo, pelo princípio da igualdade pretende-se um tratamento


isonômico a todos os indivíduos, concedendo tratamento igual a todas as pessoas
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na medida de suas igualdades, bem como um tratamento desigual de acordo com as


suas desigualdades.
Por conseguinte, como bem explanado por Lôbo (2011, p. 66) o princípio da
igualdade assim como os demais princípios constitucionais não é de aplicabilidade
absoluta, “admite limitações que não violem o núcleo essencial”, em outras palavras,
é permitido constitucionalmente a edição de “leis que estabeleçam tratamentos
diferenciados aos indivíduos em razão da idade, grupo social e sexo, proibindo
apenas a diferenciação obtida através de parâmetros arbitrários, sem razoabilidade
ou que deixe de atender relevante razão de interesse público”. (Paulo e Alexandrino,
2012).
Sob o mesmo ponto de vista, Filho (2008, p. 283), preleciona que, sendo uma
regra constitucional é o entendimento “da doutrina majoritária que somente a
Constituição pode validamente abrir exceções”. Logo, qualquer dispositivo legal que
verse sobre o quaisquer assuntos de maneira diversa do que está previsto na
constituição afrontando-a, é tido como inconstitucional.
Dessa forma, o princípio da igualdade é uma limitação imposta ao legislador,
proibindo normas que façam ou permitam qualquer discriminação em razão do sexo,
cor ou até mesmo idade.
Todavia, o Código Civil de 2002 ao absorver o princípio da igualdade como
princípio relacionado ao direito de família, soa em total dissonância com a
Constituição Federal, vez que ao falar de regime de bens no casamento de pessoas
com idade igual ou superior a 70 anos, o Estado faz essa distinção considerada por
muitos doutrinadores como discriminatória, tratando esses sujeitos de forma
desigual, colocando-os como incapazes perante os demais indivíduos em razão
unicamente de sua idade.
Rolf Madaleno (2008, p. 30), expõe de maneira concisa que, leis
infraconstitucionais não podem diminuir a liberdade e autonomia das pessoas
levando em consideração apenas o fator idade para determinar sua capacidade,
pois sendo assim, “é como se o tempo fosse por si só fator determinante para retirar
do sujeito o sagrado e fundamental direito de se autodeterminar, salvo tendo sido
diagnosticado alguma demência cerebral.”

2.2 OS TIPOS DE REGIMES DE BENS E A SÚMULA 377 DO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL
9

Considerando que o presente trabalho tem como objetivo analisar a


inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002, é necessário
abordar antes mesmo da análise jurídica do tema, os tipos de regimes de bens
previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, compreender o conceito de regime de bens é de extrema
importância. Para Gonçalves (2021, p. 444) trata-se “do conjunto de regras que
disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a
terceiros, durante o casamento”.
O regime de bens é norteado por princípios básicos como o da livre
estipulação, mutabilidade motivada e variedade de regimes. Os cônjuges possuem a
liberdade na escolha do regime de bens a ser adotado, bem como é permitido que
as partes regulamentem suas relações econômicas fazendo combinações entre eles,
podendo, inclusive, criar um regime misto e até eleger um novo e diferente. Contudo,
a exceção a essa regra está no artigo 1.641, II, do Código Civil.
Ademais, a liberalidade na escolha do regime contém regras que se não
cumpridas acarretam na nulidade do feito, conforme disposto no artigo 1.655, do
Código Civil, onde diz que “é nula a convenção ou cláusula dela que contravenha
disposição absoluta de lei”. A lei coloca à disposição dos nubentes quatro regimes:
comunhão parcial, comunhão universal, participação final nos aquestos e a
separação de bens.
Pelo regime da comunhão parcial, disposto no artigo 1.658, do Código Civil,
existe um marco divisório que se dá com o casamento, logo os bens que cada
cônjuge possuía antes do casamento serão separados e haverá comunhão quanto
aos bens adquiridos na constância do casamento.
Esse é regime adotado nos casos em que não há pacto antenupcial ou nos
casos que os pactos são considerados nulo ou ineficazes, conforme leitura do artigo
1.640, do Código Civil.
Portanto, nesse regime todos os bens adquiridos onerosamente, mediante
negócios jurídicos e os frutos dos bens comuns ou particulares de cada cônjuge,
percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a
comunhão, são comunicáveis (artigo 1.660, do Código Civil). O artigo 1.661,
menciona a hipótese na qual os bens não se comunicam.
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O outro tipo de regime é o da comunhão universal previsto no artigo 1.667, do


Código Civil. Sua principal característica é que deve ser celebrado através de pacto
antenupcial, por se tratar de regime convencional. Nesse regime de bens, todos os
bens atuais e futuros de ambos os cônjuges se comunicam, porém, a comunhão
universal não é absoluta, conforme disposições do artigo 1.668.
Nessa linha, Lôbo (2011, p. 352) aduz que “no que concerne aos bens
adquiridos com os recursos obtidos com a alienação dos bens particulares,
permanecerão incomunicáveis em virtude da sub-rogação”.
Inovação do Código Civil de 2002 é o regime de participação final dos
aquestos, que “suprimiu o regime dotal, tornando superado com o desaparecimento
da família patriarcal” (Paulo Lôbo, p. 358).
Por esse regime de bens, existe uma completa separação dos bens
particulares na constância do casamento, sejam adquiridos de forma onerosa ou
não. Guarda certa semelhança com o regime de comunhão parcial de bens no
momento da dissolução conjugal, onde haverá a comunicabilidade dos bens
adquiridos pelo casal, a título oneroso, cabendo a cada um o direito a metade.
Conforme palavras de Venosa (2001, p. 169) “trata-se de um regime misto, pois no
curso do casamento aplicam-se, em síntese, as regras da separação e da comunhão
parcial”.
O regime da separação de bens, encontra fundamento no artigo 1.687, do
Código Civil. Pelo regime da separação convencional, também conhecida como
absoluta, nenhum bem se comunica, seja de qual natureza for e,
independentemente, de sua origem ou data de aquisição, também é necessário a
elaboração de pacto antenupcial.
Já o regime da separação legal, também conhecido como obrigatória de bens,
deixa de ser de escolha dos nubentes e passa a ser uma imposição conforme o
1.641, do Código Civil, in verbis:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:


I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas
suspensivas da celebração do casamento;
II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº
12.344, de 2010)
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
(BRASIL, 2002)
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Dentre as condições que obrigam os nubentes a adotar o regime da


separação obrigatória de bens, chama-se a atenção para o inciso II, ponto central
deste trabalho, onde é imposto aos que possuem idade igual ou superior a 70
(setenta) anos o regime da separação legal ou obrigatória de bens, o que torna a
evolução do Código Civil nesse sentido conflituosa com a Constituição de 1988, por
violar princípios constitucionais voltados ao direito de família, como a liberdade de
escolha e a igualdade entre as pessoas, ferindo a dignidade da pessoa humana.

2.2.1 A evolução histórica do regime da separação obrigatória de bens

O Código Civil de 2002 refletiu a natural evolução da sociedade. Alicerçado na


Constituição Federal de 1988, popularmente conhecida como Constituição Cidadã,
apresentou princípios identificados pela doutrinadora Maria Berenice Dias, em sua
obra Manual de Direito das Famílias, como os princípios constitucionais da família,
listando-os em: da dignidade da pessoa humana; da liberdade; da igualdade e
respeito à diferença, entre muitos outros.
Não há dúvidas sobre a importância da Constitucionalização do Direito de
Família, pois conforme ensinamentos de Dias (2005, p. 33):

Grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os


temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A
intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o
revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto
constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz
da nova Constituição.

Sendo assim, princípios considerados obsoletos no direito de família foram


aniquilados surgindo novos dentro da proposta de constitucionalização,
personalização e despatrimonialização do direito civil. Diante desse novo
regramento, o patrimônio deixa de ser supervalorizado em detrimento da pessoa que
passa a ser enaltecida primando a dignidade da pessoa humana, a igualdade, e a
autonomia da vontade.
Neste sentido, caminhou o legislador quando da edição do Código Civil de
2002, porém, inúmeras foram críticas em relação a permanência do inciso II, do
artigo 1.641 na legislação brasileira, visto por muitos como um dispositivo
ultrapassado e discriminatório.
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O artigo 1.641, II, do Código Civil, tem seu equivalente legal no artigo 258, II,
do Código de 1916, onde fortalece o caráter patrimonialista e a proteção dos bens
que apregoava o Código de 1916.
A justificativa dada a Lei n. 12.344 de 2010 para alterar o inciso II do artigo
1.641, do Código Civil, foi o de adequá-lo à realidade contemporânea. De acordo
com a redatora, deputada Solange do Amaral, em suas justificativas para elaboração
do Projeto de Lei n. 108/07, in verbis:

Nos primórdios do Século XX, a expectativa de vida média do brasileiro


variava entre 50 e 60 anos de idade, a Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916,
o que condicionou o legislador a estabelecer que nos casamentos
envolvendo cônjuge varão maior de 60 anos e cônjuge virago maior de 50
anos deveria ser observado o Regime de Separação Obrigatória de Bens,
norma expressa no inciso II do Art. 258 daquele Estatuto.
Em decorrência dos avanços da ciência e da engenharia médica, que
implicou profundas transformações no campo da medicina e da genética, o
ser humano passou a desfrutar de uma nova e melhor condição de vida,
resultando em uma maior longevidade. Tal alteração estipulou que homens
e mulheres, quando maiores de 60 anos, teriam, obrigatoriamente, de casar-
se segundo o Regime de Separação de Bens.
Hoje, no entanto, em pleno Século XXI, essa exigência não mais se justifica,
na medida em que se contrapõe às contemporâneas condições de vida
usufruídas pelos cidadãos brasileiros, beneficiados pela melhoria das
condições de vida urbana e rural, graças aos investimentos realizados em
projetos de saúde, saneamento básico, educação, eletrificação e telefonia.
Iniciativas que se traduzem em uma expectativa média de vida,
caracterizada pela higidez física e mental, superior a 70 anos.
Em virtude dessa realidade, impõe-se seja alterado o inciso II do Artigo
1.641 do Código Civil Brasileiro, com o objetivo de adequá-lo a uma nova
realidade, para que o Regime Obrigatório de Separação de Bens só seja
exigível para pessoa maior de 70 anos. Pelas razões expostas, e por
entender que esta proposição consolidará uma situação fática vivenciada
por todos os brasileiros, conto com o apoiamento de nossos Pares para a
aprovação desta iniciativa.

Percebe-se uma única preocupação, aumentar o número da idade, que


outrora era 60 anos para o homem e 50 anos para mulher, para 70 anos ambos. A
problemática estaria apenas em aumentar a idade mínima e igualar a condição da
mulher ao homem, por força do princípio da isonomia proclamado pela Constituição
de 1988, bem como adequar o artigo as mudanças que a sociedade contemporânea
exigia, em razão do aumento da expectativa de vida das pessoas.
O Código de 1916, carregava consigo traços patriarcais, sendo a figura do
homem elevada a um patamar superior à da mulher, que na maioria das vezes era
inferiorizada e até mesmo considerada relativamente incapaz a certos atos da vida
civil.
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Naquela época, era compreensível que o legislador impusesse uma norma


que restringia direitos, pois não havia uma constituição democrática e aquilo era
visto e entendido como algo normal. Destarte, proclamava o artigo 233 do Código
Civil de 1916, que o marido era o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe a
administração dos bens comuns e particulares das mulheres.
Ainda, o diploma de 1916 trazia em capítulos distintos os direitos e deveres
dos homens e das mulheres. Mas com o advento da Constituição Federal de 1998,
que tratou da isonomia, o novo Código disciplinou os direitos dos cônjuges afastando
as diferenças outrora reforçadas.
Ademais, o referido diploma de 1916 elevava o patrimônio em detrimento da
pessoa, o que foi alterado pela nova roupagem constitucionalista do Código de 2002,
que buscou uma supervalorização da pessoa, enfatizando a dignidade da pessoa
humana e outros princípios considerados como basilares de uma sociedade
democrática.
Dito isto, a preocupação que outrora se pautava na conservação do
patrimônio daquele que contrairia novas núpcias, resta infundada diante do novo
conceito de idoso que a sociedade moderna carrega.
Indubitavelmente, na época da edição do código de 1916 o patrimônio se
sobrepunha a quaisquer bens. Todavia, diante da representação humanitária que a
Constituição Federal de 1988 buscou solidificar, não se pode aceitar normas que
discriminem indivíduos em razão da idade, onde visa a proteção patrimonial não
levando em consideração os interesses pessoais e afetivos da pessoa, mitigando o
princípio da isonomia.

2.2.2 A aplicação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal em relação ao


regime da separação obrigatória de bens

A jurisprudência, ainda no antigo código civil de 1916, já se manifestava a


respeito do regime de separação legal ou obrigatória de bens. Quando então, em
1964, foi publicada a Súmula 377 pelo Supremo Tribunal Federal, onde informa que
os bens adquiridos na constância do casamento, comunicam-se, sendo, portanto,
divididos aqueles percebidos após a união, no caso de dissolução da sociedade
conjugal.
14

Existia uma preocupação sobre injustiças que pudessem vir a acontecer ou


que já aconteciam naquela época diante das situações ao qual era obrigatório a
adoção do regime de bens em razão da idade. Conforme aduz Dias (2011, p. 414-
415):

A situação de absoluta injustiça levou o STF, já no ano de 1964, a editar a


Súmula 377, simplesmente alterando o regime imposto pela lei. Ao ser
autorizada a comunhão dos bens adquiridos durante o casamento, acabou
a Justiça transformando o regime de separação total dos bens no regime da
comunhão parcial. A doutrina e a jurisprudência, de forma majoritária,
passaram a considerar plena de discriminação e de preconceito a
diferenciação legal, pois revela o conceito de uma distante época, onde o
individualismo e a preocupação de proteger e de preservar a família legítima
justificavam a ingerência exercida pelo Estado sobre a vontade individual. A
restrição à escolha do regime de bens vem sendo reconhecida como clara
afronta ao cânone constitucional do respeito à dignidade, além de
desrespeitar os princípios da igualdade e da liberdade, consagrados como
direitos humanos fundamentais.

Neste sentido, Percebe-se a preocupação quando da edição da referida


Súmula aproximando o instituto da separação legal ao da comunhão parcial,
tentando mitigar a intromissão Estatal na vida privada e o caráter preconceituoso do
regime de separação legal de bens.
Pereira (2009), informa que quando houve a edição da Súmula 377 começou
uma discussão acerca da necessidade de comprovação do esforço comum para se
ter direito aos bens adquiridos na constância do casamento. Porém, tal discussão
logo restou superada não havendo necessidade de comprovação do esforço
comum, haja vista a presunção da comunhão. Nesse sentido, manifestou-se o
Superior Tribunal de Justiça:

União estável. Dissolução. Partilha do patrimônio. Regime da separação


obrigatória. Súmula nº 377 do Supremo Tribunal Federal.
Precedentes da Corte.
1. Não há violação do art. 535 do Código de Processo Civil quando o
Tribunal local, expressamente, em duas oportunidades, no acórdão da
apelação e no dos declaratórios, afirma que o autor não comprovou a
existência de bens da mulher a partilhar.
2. As Turmas que compõem a Seção de Direito Privado desta Corte
assentaram que para os efeitos da Súmula nº 377 do Supremo Tribunal
Federal não se exige a prova do esforço comum para partilhar o
patrimônio adquirido na constância da união. Na verdade, para a
evolução jurisprudencial e legal, já agora com o art. 1.725 do Código
Civil de 2002, o que vale é a vida em comum, não sendo significativo
avaliar a contribuição financeira, mas, sim, a participação direta e
indireta representada pela solidariedade que deve unir o casal, medida
pela comunhão da vida, na presença em todos os momentos da
15

convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e profissional de


seus membros.
3. Não sendo comprovada a existência de bens em nome da mulher,
examinada no acórdão, não há como deferir a partilha, coberta a matéria da
prova pela Súmula nº 7 da Corte.
4. Recurso especial não conhecido.
(REsp 736.627/PR, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO,
TERCEIRA TURMA, julgado em 11/04/2006, DJ 01/08/2006, p. 436) grifo
nosso

Da mesma forma, também se manifestou o Tribunal de Justiça de Minas


Gerais (TJ-MG), através do Relator Peixoto Henriques, em 2019:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - INVENTÁRIO - FALECIDO CASADO SOB O


REGIME DA SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS - CÓDIGO CIVIL DE 1916 -
COMUNICABILIDADE DOS BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DO
CASAMENTO - SÚMULA Nº. 377 / STF - PRESUNÇÃO DE ESFORÇO
COMUM - VÍUVA RECONHECIDA COMO MEEIRA - PROSSEGUIMENTO
DO FEITO - SENTENÇA CASSADA. I - Nos termos do art. 258, p. único, II,
do CCB/1916, aplicável em razão da data da celebração do matrimônio, o
regime de bens de casamento do maior de sessenta anos é o da separação
obrigatória de bens. II - Como expressamente ressalvado pelo art. 1.829, I,
do CCB/2002, vigente na data do óbito do varão, seu cônjuge supérstite não
é herdeira para fins sucessórios se casados eram sob o regime de
separação obrigatória de bens. III - Considerando que "no regime de
separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do
casamento" (Súmula nº. 377/STF), a viúva inventariante deve ser
considerada meeira dos bens adquiridos na constância de seu casamento
com o "de cujus", excluídos aqueles provenientes de herança, doação ou
fruto da venda de bens particulares anteriores. IV - Incorreta a extinção do
feito que considerou a cônjuge supérstite parte ilegítima para figurar na ação
de inventário por carecer-lhe a qualidade de herdeira, impondo-se, em tal
hipótese, a cassação da sentença e o regular processamento do feito,
mormente em face do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
(TJ-MG - AC: 10486090187189001 MG, Relator: Peixoto Henriques, Data de
Julgamento: 30/04/2019, Data de Publicação: 08/05/2019)

Reafirmando tal entendimento, há julgados recentes no Tribunal de Justiça de


Minas Gerais que entendem pela desnecessidade de demonstração do esforço
comum:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA - ANULAÇÃO DE


PARTE INOFICIOSA DE DOAÇÃO - FALECIMENTO DE CÔNJUGE -
REGIME DE SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS - AMENIZAÇÃO - SÚMULA
377 DO STF - PRESUNÇÃO RELATIVA - AUSÊNCIA DE PROVAS DO
ESFORÇO COMUM PARA AQUISIÇÃO DO BEM - POSSIBILIDADE DE
DOAÇÃO - RECURSO NÃO PROVIDO. - O Código Civil (CC), versando
sobre o regime de bens entre os cônjuges, impõe o regime de separação de
bens da pessoa maior de 70 anos (art. 1.641, II) - Para amenizar os efeitos
desse regime imposto e garantir o direito patrimonial de ambos os cônjuges
em bens adquiridos na constância do casamento, definiu o Supremo
Tribunal Federal (STF) em sua Súmula n. 377 - A presunção da Súmula não
é absoluta, competindo aos cônjuges, para a partilha deste bem,
16

demonstrar o esforço comum para sua aquisição - Não havendo provas de


que o cônjuge falecido, cujo casamento era regido pela separação
obrigatória, contribuiu para aquisição do bem imóvel, o cônjuge supérstite
poderia doar integralmente o bem que adquiriu - Recurso conhecido e não
provido. (JD. Convocado Fábio Torres De Sousa) v.v.: APELAÇÃO CÍVEL -
AÇÃO ORDINÁRIA DE ANULAÇÃO DE PARTE INOFICIOSA DE DOAÇÃO
- FALECIMENTO DE CÔNJUGE CASADO SOB O REGIME DE
SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS - COMUNICAÇÃO DO BEM - SÚMULA
377 DO STF - DOAÇÃO DE BEM IMÓVEL FEITO PELO CÔNJUGE
SOBREVIVENTE - HERDEIROS DO DE CUJUS PREJUDICADOS -
DOAÇÃO INOFICIOSA CARACTERIZADA - NULIDADE DE 50%
(CINQUENTA POR CENTO) DA DOAÇÃO - RECURSO PROVIDO - O
entendimento jurisprudencial exarado pelo colendo Supremo Tribunal
Federal na súmula 377 já se encontra consolidado no sentido de que a
partilha dos bens adquiridos na constância do casamento realizado no
regime de separação legal de bens prescinde da demonstração de
comunhão de esforços na formação desse patrimônio - No caso em
comento, denota-se nula a doação quanto à parte que exceder àquela de
que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento,
eis que pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos
bens da herança, constituindo a legítima. Inteligência dos artigos 549 e
1.846, ambos do Código Civil. (Desª. Ângela de Lourdes Rodrigues)
(TJ-MG - AC: 10467150008127001 Palma, Relator: Ângela de Lourdes
Rodrigues, Data de Julgamento: 10/09/2020, Câmaras Cíveis / 8ª CÂMARA
CÍVEL, Data de Publicação: 16/12/2020)

Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já julgou em


sede Apelação, por meio do Relator Rui Portanova em 22/03/2018, in verbis:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. INVENTÁRIO. HOMOLOGAÇÃO DE PLANO


DE PARTILHA. MEAÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE. SÚMULA 377.
DIREITO REAL DE HABITAÇÃO NO REGIME DA SEPARAÇÃO
OBRIGATÓRIA DE BENS. a) A meação do viúvo e a aplicação da Súmula
377 - prova de contribuição: tratando-se de casamento celebrado pelo
regime da separação obrigatória de bens, aplica-se a súmula 377 do STF
para fins de reconhecer a meação do cônjuge sobrevivente sobre os bens
onerosamente adquiridos durante a vigência do casamento, independente
de prova de contribuição, sendo essa presumida. b) Direito real de
habitação: é garantido ao cônjuge sobrevivente, independente do regime de
bens, o direito real de habitação sobre o imóvel que servia de residência ao
casal (art. 1.831 do Código Civil). c) As Joias e Semijoias: os herdeiros não
divergem quanto ao direito de partilha igualitária das joias e semijoias
deixadas pela falecida mãe. Logo, não há impeditivo à inclusão de tais
objetos na partilha. d) IPVAs e IPTUs: é de todos os herdeiros a
responsabilidade pelo pagamento dos ônus tributários incidentes sobre os
bens do espólio durante o inventário, ainda que, nesse período, tais bens
tenham ficado sob a administração do inventariante. e) Litigância de má-fé:
ausente intenção procrastinatória a justificar o pedido contrarrecursal de
condenação da parte apelante às penas por litigância de má-fé. f)
Prequestionamento: o presente julgado deu plena aplicação à sumula 377
do STF. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. REJEITARAM O
PEDIDO CONTRARRECURSAL. (Apelação Cível Nº 70075804211, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado
em 22/03/2018)
17

Apesar de sempre haver discussões doutrinárias acerca da


inconstitucionalidade da obrigatoriedade do regime da separação legal de bens e o
instituto ter sido mantido no novo Código Civil, a Súmula 377 do STF, foi editada
com intuito de amenizar os efeitos do mencionado instituto, sendo recepcionada pela
Constituição de 1988, abrindo espaço para que se firmasse o entendimento de que,
no regime da separação legal de bens imposto ao maior de 70 anos, os bens
adquiridos durante o casamento, quando houver a dissolução conjugal, serão
divididos entre os cônjuges, presumindo o esforço comum, similar ao que ocorre no
regime de comunhão parcial de bens, não necessitando de comprovação de esforço
comum entre os cônjuges.
Diante do exposto, tendo a Súmula 377 o condão de amenizar os efeitos
negativos e discriminatórios que o regime da separação legal de bens causa aos
indivíduos por ela acobertados, percebe-se a clara inutilidade de tal instituto. Pois,
se quando houver a dissolução da sociedade conjugal no regime da separação legal
de bens, os bens que foram adquiridos na constância do casamento irão se
comunicar, tem-se logo, o que denomina como regime da comunhão parcial de
bens, que possui exatamente os mesmos efeitos. Tão logo, pode-se concluir que só
ocorrerá a separação total de bens, ou seja, nenhuma comunicação, nos casos da
separação absoluta de bens, onde é necessário o pacto antenupcial lavrado em
cartório e sendo de livre escolha dos nubentes.

2.3 A INCAPACIDADE EM RAZÃO DA IDADE E A INCONSTITUCIONALIDADE


DO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS

O novo Código Civil traz como regra a capacidade, sendo exceção a


incapacidade, visto que mesmo antes do nascimento todos são sujeitos de direitos.
O artigo 2º, do Código Civil, informa que “a personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro”. (BRASIL, 2002)
Ocorre que, nem todas as pessoas têm a capacidade para exercer os atos da
vida civil, ou seja, contrair deveres em nome próprio, ao que a legislação denomina
de incapacidade, que se subdivide em incapacidade absoluta ou relativa.
Na incapacidade absoluta, a pessoa não poderá praticar os atos da vida civil,
salvo se for representado por seus pais ou representantes legais. Já na
18

incapacidade relativa, é permitido o exercício dos atos da vida civil, desde que seja
assistido pelos seus pais ou seus representantes legais.
Consta nos artigos 3º e 4º, do Código Civil, os absolutamente e os
relativamente incapazes de exercer atos da vida civil, in verbis:

Art. 3º - São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da


vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
Art. 4º - São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os
exercer:
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade;
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação
especial. (BRASIL, 2002)

Nessa seara, é possível notar que os indivíduos que se enquadram nessas


situações acima descritas, tem a sua capacidade parcial ou total limitada. Limitação
essa que os condiciona sempre a depender da representação ou assistência de
outra pessoa legalmente constituída, o que nesses casos é necessário e tem por
objetivo resguardar o interesse do incapaz ou relativamente incapaz.
Nesse sentido, o Código Civil traz ainda em seu artigo 5º, que:

Art. 5º. A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa
fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante
instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por
sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;
II - pelo casamento;
III - pelo exercício de emprego público efetivo;
IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;
V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de
emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos
completos tenha economia própria. (BRASIL, 2002)

Tão logo, a partir dos dezoito anos completos e observando as limitações dos
artigos 3º e 4º do Código Civil, todas as pessoas são habilitadas a praticarem os
atos da vida civil, gozando da capacidade até os últimos dias de vida. Não trazendo
nenhum dispositivo legal um limite de idade máxima para o exercício dos direitos da
vida civil. Se assim ocorresse, caracterizar-se-ia como abusivo e inconstitucional.
Sendo assim, o artigo que trata da obrigatoriedade do regime de bens a um
grupo de indivíduos em razão da idade, resta obsoleto, pois inadmissível uma norma
19

que impõe ao maior de 70 anos a adoção da separação legal de bens quando for
casar, como consta no artigo 1.641, II, do Código Civil, atribuindo tratamento
diferenciado a determinado grupo perante os demais.
Tal imposição, limita a vontade das pessoas, ferindo sua dignidade como
pessoa humana por violar o princípio da liberdade dos contraentes de escolher o
regime de bens que melhor julgar adequado.

2.3.1 A inconstitucionalidade do regime da separação legal ou obrigatória de


bens: uma análise voltada nos princípios constitucionais aplicáveis ao direito
de família

O casamento é considerado um contrato bilateral com características


institucionais e contratuais de natureza mista, sendo público e privado, pois trata de
interesses particulares, dando autonomia aos nubentes para escolha do que lhe for
conveniente, todavia essa liberdade pode ser mitigada pelo Estado ao regular esse
instituto, impondo limites às ações dos nubentes, com a finalidade de proporcionar
segurança jurídica às relações a ele inerentes.
O artigo 1.639 do Código Civil permite aos nubentes escolher o que for
conveniente em relação aos seus bens, antes da celebração do casamento,
demonstrando a preocupação do legislador ao dar especial atenção ao princípio da
autonomia privada. Ademais, o §2º do referido artigo abre margem para
possibilidade de alteração do regime outrora escolhido mediante autorização judicial,
observados os requisitos legais. Em sequência o parágrafo único do artigo 1.640,
complementa tal previsão ao dizer que:

Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar


por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-
se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto
antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas. (BRASIL, 2002)

Portanto, a regra é a permissividade da escolha do regime patrimonial a ser


adotado pelos nubentes, ou, a automática conversão para o regime de comunhão
parcial de bens ante o silêncio destes.
Todavia, o artigo 1.641, do Código Civil de 2002, que encontra seu
equivalente legal no artigo 258 do já ultrapassado Código de 1916, tão criticado pela
20

doutrina e jurisprudência, permaneceu com a imposição de um regime de bens a ser


adotado por um determinado grupo.
Analisando o dispositivo em comento, é possível identificar claramente a
dissonância lógica do artigo na aplicação do inciso II em relação aos incisos I e III.
Na hipótese do inciso I, quando não respeitadas as causas de suspensão para o
casamento (artigo 1.523, do Código Civil), ou no caso do inciso III, ignorando a
necessidade de suprimento judicial, de consentimento dos pais ou responsáveis
(artigo. 1.517; 1.519; e 1.634, III, todos do Código Civil), tais sanções poderão ser
sanadas quando cessadas as causas de imposição de regime. Inclusive, prevê o
Enunciado n. 262 do Conselho da Justiça Federal/STJ que é possível a alteração do
regime de bens, nos termos do artigo 1.639, §2º, do Código Civil.
Todavia, aquele que atingir determinada idade, como no caso do inciso II, do
artigo 1.641, do Código Civil fica impedido e até excluído das determinações do
artigo 1.639, que trata das hipóteses de alteração de regime. A intenção,
inicialmente, seria de proteção da pessoa que pudesse ser vítima do famoso “golpe
do baú”, em razão de sua avançada idade e carência afetiva, bem como a
preservação do patrimônio adquirido ao longo da vida e proteção quanto aos direitos
dos herdeiros.
Ocorre que, hodiernamente, tal dispositivo já não encontra razão para, ainda,
existir no ordenamento jurídico brasileiro frente os avanços na medicina, aumento da
expectativa de vida das pessoas e, principalmente, o novo paradigma do Código
Civil Constitucionalizado, que tem sua interpretação à luz da Constituição Federal.
Nesse sentido, limitar um indivíduo em razão da sua idade é um tanto
contraditório e inconstitucional, pois fere diversos princípios, quais sejam o da
liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
A vista disso, a doutrina vem se posicionando pela inconstitucionalidade do
artigo 1.641, II, do Código Civil. Conforme Enunciado n. 125 do Conselho da Justiça
Federal/STJ, que propõe a revogação da norma, chegaram os juristas a seguinte
conclusão, ipsis verbis:

Enunciado125. Proposição sobre o art. 1.641, inc. II: Redação atual: “da
pessoa maior de sessenta anos”. Proposta: Revogar o dispositivo.
Justificativa: A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta
de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a
alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado
drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto
21

às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado


patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade
para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor
consultar seus interesses.

Da mesma forma, Tartuce (2017, p. 234) preleciona que:

A norma que torna obrigatório o regime da separação obrigatória ou legal de


bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é
manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da
pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da
Carta Magna (art. 1º, inc. III, da CF). Isso porque, introduz um preconceito
quanto às pessoas idosas que, em razão unicamente da idade são
consideradas incapazes de fazer suas escolhas pessoais, como de escolher
o regime de bens quando de seu casamento.

Mais ainda, Madaleno (2017, p. 128) corrobora com a tese de que a restrição
do Código Civil aos idosos é inconstitucional.

Não se justificam limitações de capacidade de agir das pessoas,


unicamente escoradas na sua idade, fazendo presumir por regra geral a
falta de capacidade do septuagenário, tratando a lei de pretender protegê-lo
da cobiça humana, restringindo-lhe a vontade ao lhe proibir de casar em
regime de comunidade de bens, muito embora o noivo idoso não fique
proibido de dispor livremente de seus bens nos demais atos da vida civil,
como, por exemplo, doá-los para a futura esposa, já que não há nenhuma
vedação de doação de bens de um cônjuge para o outro no regime
obrigatório da separação de bens, porque não foi repetido o artigo 312 do
Código Civil de 1916, que ficou sem nenhuma correspondência no vigente
Código Civil.

Deste modo, mesmo tendo sofrido alterações com advento de sua nova
redação dada pela Lei n. 12.344/2010, o dispositivo supracitado encontra-se
dissonante da realidade moderna, que visa proteger a autodeterminação, a
autonomia privada, e nesse caso é possível perceber a preocupação secular que
carregava o antigo Código Civil, que visava a proteção do patrimônio em detrimento
da pessoa. Diante da constitucionalização do Código Civil de 2002, trata-se de um
retrocesso.
Com o avanço da tecnologia, a melhora das condições e qualidade de vida
das pessoas evidente ficou que o idoso, atualmente, aporta maturidade e
experiência de vida suficiente para escolher livremente os atos de sua vida, que
somente em razão de sua idade lhe são restringidos.
No direito patrimonial, um dos princípios basilares, é a autonomia privada e
este princípio resta ferido uma vez que as pessoas maiores de 70 gozam ainda de
22

absoluta capacidade civil conforme a regra do artigo 3º e 4º do Código Civil. No


entanto, presume-se o contrário disso às pessoas com 70 anos ou mais.
No plano jurisprudencial, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem um
posicionamento de vanguarda em questões de direito civil de modo geral, em 2014 o
relator José Antonino Baía Borges já decidia pela inconstitucionalidade do artigo
1.641, II, do Código Civil de 2002 por este trazer ofensa e violação da dignidade da
pessoa humana.

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - DIREITO CIVIL -


CASAMENTO - CÔNJUGE MAIOR DE SESSENTA ANOS - REGIME DE
SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - ART. 258, PARÁGRAFO ÚNICO
DA LEI 3.071/16 - INCONSTITUCIONALIDADE - VIOLAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE HUMANA. - É
inconstitucional a imposição do regime de separação obrigatória de bens no
casamento do maior de sessenta anos, por violação aos princípios da
igualdade e dignidade humana. (TJ-MG - ARG: 10702096497335002 MG,
Relator: José Antonino Baía Borges, Data de Julgamento: 12/03/2014,
Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 21/03/2014)

Nesse diapasão, conservar um dispositivo como este que discrimina,


inferioriza uma pessoa em razão unicamente de sua idade é considerado um
retrocesso. Mesmo com a alteração dada pela Lei 12.344/10 continua sendo visto
com maus olhos por grande parte da doutrina que entende tal dispositivo como uma
afronta a Constituição Federal de 1988.
Para Tartuce (2017), uma norma que outrora carregava consigo a intenção de
proteger, agora é vista como discriminatória e atentatória a dignidade da pessoa
humana, suprimindo a autonomia da vontade e o princípio da liberdade na escolha
do que lhe convém àquele que atingiu a idade de 70 anos.
Ora, uma pessoa que possui 69 anos, 11 meses e 29 dias pode, porque a lei
lhe permite, escolher o regime de bens que lhe convier, porém aquele que
completou 70 anos, automaticamente é tido como incapaz de se proteger frente as
pessoas que se aproximam com intuito de constituir matrimônio unicamente por
interesse.
Logo, tal instituto na verdade deveria ter sido banido do sistema brasileiro,
haja vista a condição do idoso na sociedade atual. Pensar em avanço em razão da
alteração dada ao dispositivo supracitado, quando o mesmo só aumentou a idade
dos nubentes, não condiz com os valores e objetivos que a Constituição e até
mesmo o próprio Código tentou consolidar.
23

Diante disso, extrai-se que a imposição do regime de bens aos idosos


existente no Código Civil é tido por maioria da doutrina e jurisprudência como
atentatória a dignidade humana e a autonomia privada do idoso, que pode se casar
com quem bem entender e por qualquer regime de bens que lhe convier. Portanto,
inadmissível permitir que um dispositivo legal restrinja o direito à dignidade,
liberdade e autodeterminação dos idosos na escolha do seu regime patrimonial
(Waquin e Carvalho, 2015).
Assim sendo, os princípios dispostos na Constituição Federal são tidos como
fontes de direitos, onde lei alguma pode opor-se a eles, por traduzirem valores
fundamentais, onde segundo Mello (1980, p. 230):

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A


desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do
princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais (...).

Por todo o exposto, pensar em uma norma retrógrada como a do artigo 1.641,
II, do Código Civil, que permite dia após dia a reafirmação da discriminação contra o
indivíduo, que ao atingir determinada idade se vê obrigado a agir conforme o
entendimento de uma Lei, perdendo totalmente a sua capacidade jurídica de
escolha, viola não só o direito alheio como também põe em cheque a soberania da
constituição Federal e os princípios que através dela buscam efetivar valores
fundamentais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo prestou-se a analisar as críticas acerca da


inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002, que trata da
obrigatoriedade que é imposta aos idosos que ao atingirem 70 anos devem adotar o
regime da separação legal de bens quando contrair núpcias, norma essa que se
contrapõe aos princípios constitucionais do direito de família.
Nesse contexto, foi feito um breve estudo referente a evolução histórica do
conceito de direito de família, tendo em vista os avanços ocorridos ao longo dos
anos no que concerne ao entendimento do que seria uma família, o casamento
24

como meio para se chegar a esse fim reportando o caráter patrimonialista e


patriarcal que existia no Código de 1916.
Nesse cotejo histórico, foi possível analisar a importância da Constituição de
1988, que estabeleceu princípios fundamentais onde todo o ordenamento jurídico
deve estar em consonância para que a cidadania e a democracia sejam efetivadas,
princípios estes conhecidos também como princípios constitucionais do direito de
família, a saber: a dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade.
Para tanto, necessário foi apontar os tipos de regimes de bens existentes no
ordenamento jurídico brasileiro, com a edição do Código Civil de 2002, que são:
comunhão parcial de bens, comunhão universal de bens, participação final nos
aquestos e separação de bens. Feito isso, adentrou-se ao que é objeto desse
estudo: a evolução histórica do regime de separação legal de bens imposta aos
maiores de setenta anos, sintetizando sua evolução histórica.
No tratamento deste tema foi possível constatar a violação de vários
princípios constitucionais, refletindo acerca do desejo do legislador à época do
Código de 1916 que visava a proteção do patrimônio do idoso e de seus herdeiros
contra possíveis golpes relacionados à casamentos por interesse, percebeu-se uma
disparidade com a realidade do novo Código Civil Constitucionalizado que,
atualmente, eleva a condição do homem deixando seu patrimônio em segundo
plano.
Neste sentido, observou-se que, hodiernamente, a terceira idade, aquele que
possui 70 anos ou mais, na maioria das vezes carrega consigo uma bagagem de
experiência de vida incomparável, pois possuem ao seu favor os muitos
aprendizados que os anos consequentemente proporcionam, podendo manifestar-se
livremente sobre suas escolhas, tendo em vista que isso é um direito garantido
constitucionalmente e, inclusive, também nos primeiros artigos do Código Civil.
Logo, tal imposição encontra-se totalmente dissonante da realidade contemporânea.
Notório que a permanência deste dispositivo no Código Civil, afronta os
princípios outrora mencionados, além de tantos outros. Certamente, que essa norma
possui um caráter discriminatório e preconceituoso.
Nessa seara, foi abordada a alteração do artigo 1.641, II, dado pela Lei
12.344/2010, o qual mudou apenas a idade dos nubentes, aumentando para 70
anos e igualando-as, fortalecendo o princípio da isonomia. Para tanto, buscou
alguns julgados, bem como o posicionamento adotado por alguns doutrinadores e a
25

jurisprudência acerca da inconstitucionalidade do artigo supracitado, bem como sua


permanência no ordenamento jurídico.
Sob o ponto de vista jurisprudencial, importante se fez analisar a discussão
atinente ao enunciado da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que prevê a
comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento dos maiores de
70 anos, ou seja, aqueles submetidos ao regime de separação obrigatória ou legal
de bens, uma vez que a Súmula foi publicada com intuito de amenizar os efeitos do
artigo 1.641, II, do Código Civil ante as diversas situações de injustiça.
Por fim, tratou-se da incapacidade em razão da idade buscando analisar os
dispositivos relacionados ao tema presentes no Código Civil de 2002, artigos 3º e 4º,
constatando que a imposição do regime de separação obrigatória ou legal de bens
aos idosos limita a vontade das pessoas, ferindo a dignidade da pessoa humana,
bem como viola a liberdade, a autonomia privada, uma vez que é atribuído um
tratamento diferenciado aquele que possui 70 anos ou mais, supervalorizando o
patrimônio em detrimento da pessoa.
Desse modo, por meio da análise dos entendimentos doutrinários e
jurisprudenciais, foi possível constatar o posicionamento majoritário da doutrina e
jurisprudência pela inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002,
que encontra-se dissonante da realidade de uma sociedade que cada dia evolui,
sempre buscando a valorização da pessoa humana e a garantia dos direitos
elencados na Constituição Federal de 1988, concluindo que, a permanência desse
dispositivo não condiz com a realidade moderna.
Por todo o exposto, tem que necessário se faz banir do ordenamento jurídico
brasileiro essa afronta constitucional e legal que é a imposição de um regime de
bens a uma pessoa, que goza de suas faculdades mentais em perfeito estado,
simplesmente pelo fato de ter atingido certo patamar etário, privando-a de exercer os
atos de sua vida civil plenamente.

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