Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
HUMANAS
Frederick S. Perls
19
de nosso comportamento social neurótico. Neste con
texto nenhuma psicoterapia pode ter sucesso, nenhum
casamento insatisfatório pode ser melhorado. Mas o
mais importante é que o indivíduo é incapaz de dissolver
seus próprios conflitos internos e chegar à integração.
Os conflitos estendem-se para o exterior também.
Exigindo a identificação e submissão a uma auto-ima-
gem, as expectativas neuróticas da sociedade levam o
indivíduo a se dissociar ainda mais de sua própria natu
reza. O primeiro e último problema do indivíduo é
integrar-se internamente e ainda assim, ser aceito pela
sociedade.
A sociedade exige conformidade através da educação;
enfatiza e recompensa o desenvolvimento intelectual do
indivíduo. Na minha linguagem chamo o intelecto de
“computador embutido” . Cada cultura e os indivíduos
que a compõem criaram certos conceitos e imagens do
comportamento social ideal, ou formas como o indi
víduo “deveria” funcionar dentro desta estrutura de
referência. P ara ser aceito pela sociedade, o sujeito
responde com um conjunto de respostas fixas. Ele chega
a estas respostas “computando” o que considera ser a
reação apropriada. A fim de compactuar com os “deve
rias” da sociedade, o indivíduo aprende a ignorar seus
próprios sentimentos, desejos e emoções. Então ele tam
bém se dissocia de ser parte integrante da natureza.
Paradoxalmente, quanto mais a sociedade exige que
o indivíduo corresponda aos seus conceitos e idéias,
menos eficientemente ele consegue funcionar. Este con
flito básico entre as exigências e a natureza interna,
resulta em notáveis gastos de energia. É bem sabido
que o indivíduo normalmente só usa 10 a 25% de seu
potencial. Entretanto, quando há uma emergência, é
possível que as respostas condicionadas sofram um
colapso. A integração se torna espontânea. Nesta
situação o indivíduo é capaz de lidar diretamente com
obstáculos e, algumas vezes consegue resultados herói-
20
cos. A gestalt-terapia procura levar à integração sem
a urgência de situações de emergência.
Quanto mais o caráter repousa sobre conceitos pron
tos, formas fixas de comportamento e “computação” ,
menos capaz ele é de usar os seus sentidos e intuição.
Quando o indivíduo tenta viver de acordo com idéias
pré-concebidas de como o mundo “deveria” ser, ele se
afasta de seus próprios sentimentos e necessidades. O
resultado desta alienação dos sentidos é o bloqueio de
seu potencial e a distorção de sua perspectiva.
O ponto crítico durante qualquer desenvolvimento,
tanto coletivo quanto individual, é a habilidade para
diferenciar entre auto-realização e realização de um
conceito. Expectativas são produtos de nossa fantasia.
Quanto maior for a discrepância entre o que a pessoa
pode se tornar através de seu potencial inato e, os con
ceitos idealistas e impostos, maior será o esforço e a
possibilidade de fracasso. Darei um exemplo ridicula
mente exagerado. Um elefante quer ser uma roseira,
e uma roseira quer ser elefante. Até que cada um se
resigne a ser o que é, ambos terão uma vida de infe
rioridade. Aquele que se auto-realiza, espera o possível.
Aquele que quer realizar um conceito tenta o impossível.
Respondendo a “deverias” , o indivíduo atua num
papel que não é apoiado pelas suas necessidades genuí
nas. Ele se torna falso e fóbico. Evita encarar suas
limitações e desempenha papéis sem base no seu poten
cial. Procurando fora pistas para o seu comportamento,
ele “computa” e responde com reações que não são
basicamente suas. Ele constrói um ideal imaginário de
como “deveria” ser e não de como realmente é.
O conceito de perfeição é um ideal deste tipo. Res
pondendo a ele, o indivíduo desenvolve uma fachada
falsa para impressionar os outros. Exigências de per
feição limitam a capacidade do indivíduo de funcionar
dentro de si mesmo, na situação terapêutica, no
casamento, bem como em outras situações sociais.
21
Pode-se observar nas dificuldades conjugais que um,
ou ambos os cônjuges, não estão apaixonados pelo par
ceiro e sim, por uma imagem de perfeição. Inevitavel
mente, o parceiro não corresponde a estas expectativas.
A frustração mútua de não encontrar a perfeição resul
ta em tensão e aumento de hostilidade, que resulta num
permanente “status quo”, ou num impasse, ou no me
lhor dos casos, num divórcio inútil. A mesma condição
se aplica à situação terapêutica. Ou há a manutenção
do “status quo” por vários anos, ou tenta-se a troca de
terapeutas, mas nunca uma cura.
Voltando para si próprio suas exigências perfeccio
nistas, o neurótico divide-se para atender seu irreal.
Embora a perfeição seja geralmente rotulada como
“ideal” , na verdade é um flagelo vulgar que pune e
tortura, tanto o indivíduo quanto os outros, por não
corresponderem ao objetivo impossível.
Pelo menos mais dois fenômenos interferem com o
desenvolvimento do potencial genuíno do homem. Um
deles é a formação de caráter. O indivíduo então só
pode agir com um conjunto limitado e fixo de respostas.
O outro é a atitude fóbica que é muito mais difundida
do que a psiquiatria quis até agora reconhecer.
Freud foi o gênio das meias-verdades. Suas investiga
ções sobre repressões, bloqueios e inibições revelam
sua própria atitude fóbicá em relação às fobias. Segun
do Freud, uma vez que um impulso se torna perigoso,
nós nos viramos ativamente contra ele e colocamos um
cordão de segurança em volta dele. Wilheim Reich torna
esta atitude mais explícita em sua teoria da couraça.
Mas o perigo não é sempre agressivamente neutraliza
do. Com mais freqüência, nós o anulamos e fugimos
dele. Portanto, evitando os meios e formas de escape,
nós perdemos metade dos instrumentos de cura.
O organismo se afasta de dores reais. O neurótico se
afasta de dores imaginárias e de emoções desagradá
veis. Também evita assumir riscos razoáveis. As duas
22
atitudes interferem com qualquer possibilidade de
amadurecimento.
Conseqüentemente, em gestalt-terapia nós chamamos
a atenção do paciente para esta evitação^do desagra
dável. Nós trabalhamos as maquinações sutis do com
portamento fóbico, além de romper bloqueios, inibições
e outras atitudes de proteção.
Para perfurar as dores imagináveis e as emoções
desagradáveis, necessitamos de um equilíbrio preciso
entre frustração e apoio. Uma vez que o paciente sente
a essência do “aqui-agora” e do “eu-tu” , ele começa a
compreender seu comportamento fóbico.
A princípio, o paciente fará qualquer coisa para des
viar sua atenção das experiências reais. Ele fugirá
para a memória e para expectativas (passado e futu
ro) ; para a série de idéias (associações livres), racio
nalizações ou “criando um caso” de certo e errado.
Finalmente, ele encontra os furos em sua personali
dade, com a conscientização do vazio, do nada, do
impasse.
Por fim, o paciente percebe o caráter alucinatório de
seu sofrimento. Descobre que “não tem que” se tortu
rar. Adquire maior tolerância à frustração e à dor
imaginária. Neste ponto, ele começa a amadurecer.
Eu defino a maturidade como a transição do apoio
ambiental para o auto-apoio. Na gestalt-terapia a matu
ridade é alcançada desenvolvendo-se o próprio potencial
do indivíduo, diminuindo-se o apoio ambiental, aumen
tando-se a tolerância à frustração e desmascarando sua
representação falsa de papéis infantis e adultos.
A resistência é grande, pois o paciente foi condicio
nado a manipular seu ambiente para receber apoio. Ele
consegue isto agindo como indefeso e estúpido; adulan
do, subornando e seduzindo. Ele não é infantil mas age
como se fosse infantil e dependente, esperando com isto
controlar a situação com um comportamento submisso.
Também atua como um adulto infantil. Para ele, é
difícil receber a diferença entre um comportamento
23
maduro e representar o adulto. Com a maturação, o
paciente é cada vez mais capaz de mobilizar esponta
neamente seus próprios recursos, de forma a poder
lidar com o meio ambiente. Ele passa a se sustentar
sobre seus próprios pés, tornando-se capaz de lidar com
seus próprios problemas e com as exigências de vida.
O potencial humano é diminuído tanto pelas ordens
não apropriadas da sociedade, como pelo conflito inter
no. A parábola de Freud sobre as duas serventes bri
gando, resultando em ineficiência é, na minha opinião,
novamente uma meia-verdade. Realmente são os pa
trões que brigam. Neste caso, os patrões que brigam
são o que Freud chamou de superego e id. O Id, na con-
ceituação de Freud é um aglomerado de instintos e de
lembranças reprimidas. Na realidade observamos que
em cada caso, o superego é oposto por uma entidade
personalizada que poderia ser chamada de infraego.
Na minha linguagem, eu chamo os patrões que brigam
de dominador (topdog) e dominado (underdog). A bata
lha entre os dois é tanto interna quanto externa.
O dominador (topdog) pode ser descrito como exi
gente, punitivo, autoritário e primitivo. Ele manda con
tinuamente, com afirmações do tipo “você deveria” ,
“você precisa” e “porque você não” . Estranhamente,
todos nós nos identificamos, tão fortemente com nosso
dominador (topdog) interno'' que não questionamos
mais sua autoridade. Aceitamo-la como ponto pacífico.
O dominado (underdog) desenvolve uma grande habi
lidade em fugir das ordens do dominador. Normal
mente, com a intenção de concordar apenas parcial
mente com o dominador, ele responde: “sim, m a s ...”
“estou tentando muito, mas da próxima vez farei me
lhor” e “amanhã” . O dominado normalmente se sai
melhor do conflito.
Em outras palavras, dominador e dominado são na
verdade dois palhaços representando sua sina e papéis
inúteis no palco do self tolerante e mudo. Integração
e cura só podem ser conseguidas quando a necessida
24
de de controle entre dominador e dominado cessa. Só
aí os dois chefões se ouvem mutuamente. Uma vez
que cheguem aos seus sentidos (no caso, ouvirem-se)
é que a porta para integração e unificação se abre.
A possibilidade de se transformar numa pessoa total a
partir de uma cisão torna-se uma certeza.
O impasse do “status quo” ou o conflito eterno da
terapia que não acaba, podem ser superados.
Uma técnica gestáltica de integração é o trabalho
com sonhos. Nós não fazemos jogos de interpretação
psicanalítica. Suspeito que o sonho não seja um desejo
satisfeito, nem uma profecia do futuro. Para mim, é
uma mensagem existencial. Esta diz ao paciente qual é
a situação de vida e especialmente como modificar o
pesadelo de sua existência, tornando-se consciente e
assumindo seu lugar histórico na vida. Em uma cura
bem-sucedida, o neurótico desperta de seu transe de
ilusões. No Zen-Budismo este momento é chamado des
pertar (satori). Durante a gestalt-terapia o paciente
experiencia alguns despertares menores. Voltando aos
seus sentidos, ele freqüentemente vê o mundo de forma
clara e viva.
Na prática, deixo o paciente encenar (act-out) todos
os detalhes de seu sonho. Como terapeutas, não ima
ginamos que sabemos mais do que o próprio paciente.
Assumimos que cada parte do sonho é uma projeção.
Cada fragmento do sonho, cada pessoa, coisa, estado
de espírito, é uma porção de self alienado. Partes do self
devem encontrar-se com outras. O encontro básico, é
claro, ocorre entre dominador e dominado.
Para ilustrar o método de integração de dominador
e dominado por meio do trabalho com sonho, relato o
caso de um paciente que impressionava a todos com
sua excentricidade psicótica. Durante uma das sessões
de grupo, ele contou um sonho onde via um jovem
entrar numa biblioteca, jogar livros e gritar. Quando a
bibliotecária, uma solteirona idosa, o repreendeu, ele
25
reagiu, continuando com seu comportamento excên
trico. Desesperada, a bibliotecária chamou a polícia.
Levei meu paciente a encenar e experienciar o encon
tro entre o rapaz (dominado), a bibliotecária e a polí
cia (dominador). No início o confronto foi beligerante,
e consumiu inutilmente tempo e energia. Depois de
participar do encontro hostil por duas horas, as dife
rentes partes do meu paciente conseguiram parar de
brigar e escutar-se. O escutar verdadeiro é entendi
mento. Ele reconheceu que “brincando de louco” , pode
ria enganar seu dominador, porque a pessoa irrespon
sável não é punida. Continuando esta integração bem-
sucedida, o paciente não precisou mais bancar o loucó
para ser espontâneo. Como resultado, é agora uma
pessoa mais livre e mais amena.
Quando o dominador mantém as expectativas de su
cesso, mudanças, resultados', melhoras do dominado,
este geralmente responde com pseudo-obediência ou
sabotagem. O resultado é ineficiência e raiva. Se o
dominado tenta sinceramente compactuar, pode optar
entre uma neurose obsessiva, fuga na doença ou “es
gotamento nervoso” . A estrada para o inferno é cons
truída com boas intenções. Externamente, o dominador
e dominado batalham também pelo controle. Marido e
mulher, terapeuta e paciente, empregador e empregado
desempenham papéis de mútua manipulação.
A filosofia básica da gestalt-terapia é a da natureza:
diferenciação e integração. Só a diferenciação leva a
polaridades. Como dualidades, estas polaridades facil
mente lutarão e se paralisarão. Integrando os opostos,
tornamos a pessoa completa de novo. Por exemplo, a
fraqueza e a fanfarronice integram-se em firmeza
silenciosa.
Tal pessoa terá a possibilidade de ver uma situação
total (uma gestalt) sem perder os detalhes. Com esta
orientação desenvolvida, está em condições de lidar
com a realidade, mobilizando seus próprios recursos.
Não mais reagirá com respostas fixas (caráter) e com
26
idéias pré-concebidas. Não gritará para obter apoio
ambiental, pois poderá arranjar-se sozinha. Não mais
viverá com medo de catástrofes ameaçadoras. Poderá
avaliar a realidade experimentando as possibilidades.
Abandonará a loucura por controle e deixará a situação
ditar suas ações.
A capacidade de renunciar, de abandonar respostas
obsoletas e abrir mão de relacionamentos esgotados e,
de tarefas além do próprio potencial, é parte essencial
da sabedoria de viver.
27