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GESTALT — TERAPIA E POTENCIALIDADES

HUMANAS

Frederick S. Perls

Geótalt-terapia é uma das forças rebeldes, humanis­


tas e existenciais da psicologia, que procura resistir à
avalanche de forças autodestrutivas, autoderrotistas,
existentes entre alguns membros de nossa sociedade.
Ela é “existencial” num sentido amplo. Todas as esco­
las do existencialismo enfatizam a experiência direta,
mas a maioria delas tem uma moldura conceituai.
Kierkegaard com sua teologia protestante, Buber com
seu judaísmo, Sartre com seu comunismo e Biswanger
com a psicanálise. A gestalt-terapia é integralmente
ontológica, pois reconhece tanto a atividade conceituai
quanto a formação biológica de Gestalten. É, portanto,
auto-sustentada e realmente experiencial.
Nosso objetivo como terapeutas é ampliar o potencial
humano através do processo de integração. Nós faze­
mos isto apoiando os interesses, desejos e necessidades
genuínas do indivíduo.
Muitas das necessidades individuais se opõem à socie­
dade. Competição, necessidade de controle, exigências
de perfeição e imaturidade, são características de nossa
cultura atual. Deste fundo surge a praga e a causa

Beimpresso de Explorations in Human Potentialities, editado por Herbert A.


Otto, Ch. 35. 1966 Charles C. Thomas, Springfield, 111.

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de nosso comportamento social neurótico. Neste con­
texto nenhuma psicoterapia pode ter sucesso, nenhum
casamento insatisfatório pode ser melhorado. Mas o
mais importante é que o indivíduo é incapaz de dissolver
seus próprios conflitos internos e chegar à integração.
Os conflitos estendem-se para o exterior também.
Exigindo a identificação e submissão a uma auto-ima-
gem, as expectativas neuróticas da sociedade levam o
indivíduo a se dissociar ainda mais de sua própria natu­
reza. O primeiro e último problema do indivíduo é
integrar-se internamente e ainda assim, ser aceito pela
sociedade.
A sociedade exige conformidade através da educação;
enfatiza e recompensa o desenvolvimento intelectual do
indivíduo. Na minha linguagem chamo o intelecto de
“computador embutido” . Cada cultura e os indivíduos
que a compõem criaram certos conceitos e imagens do
comportamento social ideal, ou formas como o indi­
víduo “deveria” funcionar dentro desta estrutura de
referência. P ara ser aceito pela sociedade, o sujeito
responde com um conjunto de respostas fixas. Ele chega
a estas respostas “computando” o que considera ser a
reação apropriada. A fim de compactuar com os “deve­
rias” da sociedade, o indivíduo aprende a ignorar seus
próprios sentimentos, desejos e emoções. Então ele tam­
bém se dissocia de ser parte integrante da natureza.
Paradoxalmente, quanto mais a sociedade exige que
o indivíduo corresponda aos seus conceitos e idéias,
menos eficientemente ele consegue funcionar. Este con­
flito básico entre as exigências e a natureza interna,
resulta em notáveis gastos de energia. É bem sabido
que o indivíduo normalmente só usa 10 a 25% de seu
potencial. Entretanto, quando há uma emergência, é
possível que as respostas condicionadas sofram um
colapso. A integração se torna espontânea. Nesta
situação o indivíduo é capaz de lidar diretamente com
obstáculos e, algumas vezes consegue resultados herói-
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cos. A gestalt-terapia procura levar à integração sem
a urgência de situações de emergência.
Quanto mais o caráter repousa sobre conceitos pron­
tos, formas fixas de comportamento e “computação” ,
menos capaz ele é de usar os seus sentidos e intuição.
Quando o indivíduo tenta viver de acordo com idéias
pré-concebidas de como o mundo “deveria” ser, ele se
afasta de seus próprios sentimentos e necessidades. O
resultado desta alienação dos sentidos é o bloqueio de
seu potencial e a distorção de sua perspectiva.
O ponto crítico durante qualquer desenvolvimento,
tanto coletivo quanto individual, é a habilidade para
diferenciar entre auto-realização e realização de um
conceito. Expectativas são produtos de nossa fantasia.
Quanto maior for a discrepância entre o que a pessoa
pode se tornar através de seu potencial inato e, os con­
ceitos idealistas e impostos, maior será o esforço e a
possibilidade de fracasso. Darei um exemplo ridicula­
mente exagerado. Um elefante quer ser uma roseira,
e uma roseira quer ser elefante. Até que cada um se
resigne a ser o que é, ambos terão uma vida de infe­
rioridade. Aquele que se auto-realiza, espera o possível.
Aquele que quer realizar um conceito tenta o impossível.
Respondendo a “deverias” , o indivíduo atua num
papel que não é apoiado pelas suas necessidades genuí­
nas. Ele se torna falso e fóbico. Evita encarar suas
limitações e desempenha papéis sem base no seu poten­
cial. Procurando fora pistas para o seu comportamento,
ele “computa” e responde com reações que não são
basicamente suas. Ele constrói um ideal imaginário de
como “deveria” ser e não de como realmente é.
O conceito de perfeição é um ideal deste tipo. Res­
pondendo a ele, o indivíduo desenvolve uma fachada
falsa para impressionar os outros. Exigências de per­
feição limitam a capacidade do indivíduo de funcionar
dentro de si mesmo, na situação terapêutica, no
casamento, bem como em outras situações sociais.
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Pode-se observar nas dificuldades conjugais que um,
ou ambos os cônjuges, não estão apaixonados pelo par­
ceiro e sim, por uma imagem de perfeição. Inevitavel­
mente, o parceiro não corresponde a estas expectativas.
A frustração mútua de não encontrar a perfeição resul­
ta em tensão e aumento de hostilidade, que resulta num
permanente “status quo”, ou num impasse, ou no me­
lhor dos casos, num divórcio inútil. A mesma condição
se aplica à situação terapêutica. Ou há a manutenção
do “status quo” por vários anos, ou tenta-se a troca de
terapeutas, mas nunca uma cura.
Voltando para si próprio suas exigências perfeccio­
nistas, o neurótico divide-se para atender seu irreal.
Embora a perfeição seja geralmente rotulada como
“ideal” , na verdade é um flagelo vulgar que pune e
tortura, tanto o indivíduo quanto os outros, por não
corresponderem ao objetivo impossível.
Pelo menos mais dois fenômenos interferem com o
desenvolvimento do potencial genuíno do homem. Um
deles é a formação de caráter. O indivíduo então só
pode agir com um conjunto limitado e fixo de respostas.
O outro é a atitude fóbica que é muito mais difundida
do que a psiquiatria quis até agora reconhecer.
Freud foi o gênio das meias-verdades. Suas investiga­
ções sobre repressões, bloqueios e inibições revelam
sua própria atitude fóbicá em relação às fobias. Segun­
do Freud, uma vez que um impulso se torna perigoso,
nós nos viramos ativamente contra ele e colocamos um
cordão de segurança em volta dele. Wilheim Reich torna
esta atitude mais explícita em sua teoria da couraça.
Mas o perigo não é sempre agressivamente neutraliza­
do. Com mais freqüência, nós o anulamos e fugimos
dele. Portanto, evitando os meios e formas de escape,
nós perdemos metade dos instrumentos de cura.
O organismo se afasta de dores reais. O neurótico se
afasta de dores imaginárias e de emoções desagradá­
veis. Também evita assumir riscos razoáveis. As duas
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atitudes interferem com qualquer possibilidade de
amadurecimento.
Conseqüentemente, em gestalt-terapia nós chamamos
a atenção do paciente para esta evitação^do desagra­
dável. Nós trabalhamos as maquinações sutis do com­
portamento fóbico, além de romper bloqueios, inibições
e outras atitudes de proteção.
Para perfurar as dores imagináveis e as emoções
desagradáveis, necessitamos de um equilíbrio preciso
entre frustração e apoio. Uma vez que o paciente sente
a essência do “aqui-agora” e do “eu-tu” , ele começa a
compreender seu comportamento fóbico.
A princípio, o paciente fará qualquer coisa para des­
viar sua atenção das experiências reais. Ele fugirá
para a memória e para expectativas (passado e futu­
ro) ; para a série de idéias (associações livres), racio­
nalizações ou “criando um caso” de certo e errado.
Finalmente, ele encontra os furos em sua personali­
dade, com a conscientização do vazio, do nada, do
impasse.
Por fim, o paciente percebe o caráter alucinatório de
seu sofrimento. Descobre que “não tem que” se tortu­
rar. Adquire maior tolerância à frustração e à dor
imaginária. Neste ponto, ele começa a amadurecer.
Eu defino a maturidade como a transição do apoio
ambiental para o auto-apoio. Na gestalt-terapia a matu­
ridade é alcançada desenvolvendo-se o próprio potencial
do indivíduo, diminuindo-se o apoio ambiental, aumen­
tando-se a tolerância à frustração e desmascarando sua
representação falsa de papéis infantis e adultos.
A resistência é grande, pois o paciente foi condicio­
nado a manipular seu ambiente para receber apoio. Ele
consegue isto agindo como indefeso e estúpido; adulan­
do, subornando e seduzindo. Ele não é infantil mas age
como se fosse infantil e dependente, esperando com isto
controlar a situação com um comportamento submisso.
Também atua como um adulto infantil. Para ele, é
difícil receber a diferença entre um comportamento
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maduro e representar o adulto. Com a maturação, o
paciente é cada vez mais capaz de mobilizar esponta­
neamente seus próprios recursos, de forma a poder
lidar com o meio ambiente. Ele passa a se sustentar
sobre seus próprios pés, tornando-se capaz de lidar com
seus próprios problemas e com as exigências de vida.
O potencial humano é diminuído tanto pelas ordens
não apropriadas da sociedade, como pelo conflito inter­
no. A parábola de Freud sobre as duas serventes bri­
gando, resultando em ineficiência é, na minha opinião,
novamente uma meia-verdade. Realmente são os pa­
trões que brigam. Neste caso, os patrões que brigam
são o que Freud chamou de superego e id. O Id, na con-
ceituação de Freud é um aglomerado de instintos e de
lembranças reprimidas. Na realidade observamos que
em cada caso, o superego é oposto por uma entidade
personalizada que poderia ser chamada de infraego.
Na minha linguagem, eu chamo os patrões que brigam
de dominador (topdog) e dominado (underdog). A bata­
lha entre os dois é tanto interna quanto externa.
O dominador (topdog) pode ser descrito como exi­
gente, punitivo, autoritário e primitivo. Ele manda con­
tinuamente, com afirmações do tipo “você deveria” ,
“você precisa” e “porque você não” . Estranhamente,
todos nós nos identificamos, tão fortemente com nosso
dominador (topdog) interno'' que não questionamos
mais sua autoridade. Aceitamo-la como ponto pacífico.
O dominado (underdog) desenvolve uma grande habi­
lidade em fugir das ordens do dominador. Normal­
mente, com a intenção de concordar apenas parcial­
mente com o dominador, ele responde: “sim, m a s ...”
“estou tentando muito, mas da próxima vez farei me­
lhor” e “amanhã” . O dominado normalmente se sai
melhor do conflito.
Em outras palavras, dominador e dominado são na
verdade dois palhaços representando sua sina e papéis
inúteis no palco do self tolerante e mudo. Integração
e cura só podem ser conseguidas quando a necessida­
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de de controle entre dominador e dominado cessa. Só
aí os dois chefões se ouvem mutuamente. Uma vez
que cheguem aos seus sentidos (no caso, ouvirem-se)
é que a porta para integração e unificação se abre.
A possibilidade de se transformar numa pessoa total a
partir de uma cisão torna-se uma certeza.
O impasse do “status quo” ou o conflito eterno da
terapia que não acaba, podem ser superados.
Uma técnica gestáltica de integração é o trabalho
com sonhos. Nós não fazemos jogos de interpretação
psicanalítica. Suspeito que o sonho não seja um desejo
satisfeito, nem uma profecia do futuro. Para mim, é
uma mensagem existencial. Esta diz ao paciente qual é
a situação de vida e especialmente como modificar o
pesadelo de sua existência, tornando-se consciente e
assumindo seu lugar histórico na vida. Em uma cura
bem-sucedida, o neurótico desperta de seu transe de
ilusões. No Zen-Budismo este momento é chamado des­
pertar (satori). Durante a gestalt-terapia o paciente
experiencia alguns despertares menores. Voltando aos
seus sentidos, ele freqüentemente vê o mundo de forma
clara e viva.
Na prática, deixo o paciente encenar (act-out) todos
os detalhes de seu sonho. Como terapeutas, não ima­
ginamos que sabemos mais do que o próprio paciente.
Assumimos que cada parte do sonho é uma projeção.
Cada fragmento do sonho, cada pessoa, coisa, estado
de espírito, é uma porção de self alienado. Partes do self
devem encontrar-se com outras. O encontro básico, é
claro, ocorre entre dominador e dominado.
Para ilustrar o método de integração de dominador
e dominado por meio do trabalho com sonho, relato o
caso de um paciente que impressionava a todos com
sua excentricidade psicótica. Durante uma das sessões
de grupo, ele contou um sonho onde via um jovem
entrar numa biblioteca, jogar livros e gritar. Quando a
bibliotecária, uma solteirona idosa, o repreendeu, ele
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reagiu, continuando com seu comportamento excên­
trico. Desesperada, a bibliotecária chamou a polícia.
Levei meu paciente a encenar e experienciar o encon­
tro entre o rapaz (dominado), a bibliotecária e a polí­
cia (dominador). No início o confronto foi beligerante,
e consumiu inutilmente tempo e energia. Depois de
participar do encontro hostil por duas horas, as dife­
rentes partes do meu paciente conseguiram parar de
brigar e escutar-se. O escutar verdadeiro é entendi­
mento. Ele reconheceu que “brincando de louco” , pode­
ria enganar seu dominador, porque a pessoa irrespon­
sável não é punida. Continuando esta integração bem-
sucedida, o paciente não precisou mais bancar o loucó
para ser espontâneo. Como resultado, é agora uma
pessoa mais livre e mais amena.
Quando o dominador mantém as expectativas de su­
cesso, mudanças, resultados', melhoras do dominado,
este geralmente responde com pseudo-obediência ou
sabotagem. O resultado é ineficiência e raiva. Se o
dominado tenta sinceramente compactuar, pode optar
entre uma neurose obsessiva, fuga na doença ou “es­
gotamento nervoso” . A estrada para o inferno é cons­
truída com boas intenções. Externamente, o dominador
e dominado batalham também pelo controle. Marido e
mulher, terapeuta e paciente, empregador e empregado
desempenham papéis de mútua manipulação.
A filosofia básica da gestalt-terapia é a da natureza:
diferenciação e integração. Só a diferenciação leva a
polaridades. Como dualidades, estas polaridades facil­
mente lutarão e se paralisarão. Integrando os opostos,
tornamos a pessoa completa de novo. Por exemplo, a
fraqueza e a fanfarronice integram-se em firmeza
silenciosa.
Tal pessoa terá a possibilidade de ver uma situação
total (uma gestalt) sem perder os detalhes. Com esta
orientação desenvolvida, está em condições de lidar
com a realidade, mobilizando seus próprios recursos.
Não mais reagirá com respostas fixas (caráter) e com
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idéias pré-concebidas. Não gritará para obter apoio
ambiental, pois poderá arranjar-se sozinha. Não mais
viverá com medo de catástrofes ameaçadoras. Poderá
avaliar a realidade experimentando as possibilidades.
Abandonará a loucura por controle e deixará a situação
ditar suas ações.
A capacidade de renunciar, de abandonar respostas
obsoletas e abrir mão de relacionamentos esgotados e,
de tarefas além do próprio potencial, é parte essencial
da sabedoria de viver.

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