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Alfabetização e Letramento: Desenvolvimento e Apropriação

A alfabetização é um assunto envolto em inúmeras dis-


cussões, não apenas na esfera acadêmica, mas também
entre os profissionais que se encontram em sala de aula.
Essas discussões são abordadas, nesta obra, por meio
do estudo do processo de alfabetização, dos conheci-
mentos linguísticos essenciais ao professor alfabetizador
e da abordagem psicogenética fundamentada na teoria
da psicogênese da língua escrita.
Esta obra traz também algumas questões práticas que
contribuem para otimizar a atuação do professor, tor-
nando-a mais significativa. Como o processo de alfa-
betização está intimamente relacionado ao letramento,
são discutidos alguns dos desafios em formar crianças
leitoras e produtoras de texto que sejam protagonistas da
própria aprendizagem.

LUCIANE ROLIM DE MOURA VILAIN

Código Logístico
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6583-7

9 788538 765837 59177


Alfabetização
e letramento:
desenvolvimento e
apropriação

Luciane Rolim de Moura Vilain

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
V745a

Vilain, Luciane Rolim de Moura


Alfabetização e letramento : desenvolvimento e apropriação /
Luciane Rolim de Moura Vilain. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020.
92 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6583-7

1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Prática de ensino. I. Título.


CDD: 372.416
20-62152
CDU: 37.091.33:028.1

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Luciane Rolim de Especialista em educação infantil pela Universidade
Positivo (UP). Licenciada em Pedagogia pelo Centro
Moura Vilain Universitário de Maringá (UniCesumar) e em Letras
– Português pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR). Atualmente, é autora e
editora de livros didáticos, além de professora dos anos
iniciais do ensino fundamental.
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SUMÁRIO
1 Alfabetização: uma palavra, muitas representações  9
1.1 Concepções e métodos de alfabetização   9
1.2 Escrita alfabética como código ou sistema notacional   15
1.3 Aprendizagem inicial da língua escrita   19

2 Psicogênese da língua escrita  26


2.1 As ideias de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky   26
2.2 Fases do processo de aprendizagem da escrita   31
2.3 Consequências das abordagens socioconstrutivistas   37

3 Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador  41


3.1 Relações entre oralidade, leitura e escrita   42
3.2 Consciência fonológica e consciência fonêmica   46
3.3 Apropriação da ortografia   51

4 A prática alfabetizadora na atualidade  58


4.1 Questões práticas da alfabetização   58
4.2 Ludicidade e significatividade na alfabetização   67
4.3 Planejamento e organização do trabalho pedagógico   70

5 Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores  75


5.1 Alfabetização e letramento como eixos norteadores da prática
pedagógica   75
5.2 Crianças leitoras e produtoras de textos desde a tenra idade   80
5.3 Avaliação no processo de alfabetização e letramento   87
APRESENTAÇÃO
A alfabetização é um assunto envolto em inúmeras discussões, não apenas
na esfera acadêmica, mas também entre os profissionais que se encontram
em sala de aula – mesmo aqueles que já têm certa experiência profissional.
Tais discussões se devem, em grande parte, aos recorrentes resultados insa-
tisfatórios do Brasil em avaliações educacionais, em âmbito nacional e inter-
nacional. Trata-se, portanto, de uma questão bastante ampla, que vai muito
além da, assim chamada por alguns autores, questão dos métodos, pois não se
reduz à simples escolha por um método ou outro.
Nesta obra, veremos que o processo de alfabetização exige do professor
muitos conhecimentos, e a maneira como esse processo é encarado pode
gerar consequências diversas. Analisaremos a abordagem psicogenética, por
intermédio do estudo da teoria da psicogênese da língua escrita e do deba-
te acerca de suas consequências. Verificaremos quais são os conhecimentos
linguísticos essenciais ao professor alfabetizador, além de algumas questões
práticas que contribuem para otimizar suas intervenções e tornar sua atua-
ção mais significativa. Por fim, debateremos como o processo de alfabetização
está intimamente relacionado ao letramento, abordando alguns dos desafios
em formar crianças leitoras e produtoras de texto que sejam protagonistas da
própria aprendizagem.
Bons estudos!
1
Alfabetização: uma
palavra, muitas
representações
Alfabetizar é um ato de muita satisfação para os educadores
e, ao mesmo tempo, é algo extremamente desafiador. É de
conhecimento geral que existem controvérsias no que diz respeito
aos métodos de alfabetização, principalmente porque, no dia a dia
da convivência entre aluno e professor, as teorias podem acabar
não condizendo com a realidade.
Neste capítulo, conheceremos alguns dos diversos conceitos e
métodos de alfabetização, além de discutirmos as implicações de
se adotar ou não determinadas concepções e o olhar de alguns
teóricos sobre o tema. O objetivo aqui é trazer questões para
refletirmos sobre as diferentes maneiras de se enxergar a escrita
alfabética, assim como as consequências de estudar esse processo
como sendo a aprendizagem inicial da língua escrita.

1.1 Concepções e métodos de alfabetização


Vídeo Nesta seção, abordaremos alguns aspectos históricos da alfabeti-
zação no Brasil para compreendermos a situação dela na atualidade.
Trata-se de um assunto historicamente envolto em dificuldades, fra-
cassos, controvérsias e polêmicas. As constantes mudanças de para-
digmas, concepções e métodos de alfabetização ao longo do tempo no
Brasil, sobretudo a partir das últimas décadas do século XIX, têm sido
ensejadas pelos frequentes – e persistentes – baixos índices denuncia-
dos por avaliações tanto de abrangência nacional, como o Sistema de

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 9


1 1
Avaliação da Educação Básica (Saeb) , quanto internacional, Programa
2
O Saeb é “um conjunto de Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) .
avaliações externas em larga
escala que permite ao Inep Primeiramente, é necessário conceituarmos o que é um método de
realizar um diagnóstico da alfabetização. De acordo com Soares (2017), essa expressão é comu-
educação básica brasileira e de
fatores que podem interferir mente confundida com cartilhas, manuais didáticos, artefatos pedagó-
no desempenho do estudante” gicos etc. Entretanto, método de alfabetização, segundo a autora, é um
(BRASIL, 2019c). conjunto de procedimentos que devem estar fundamentados em teo-
rias e princípios. Eles devem orientar a aprendizagem inicial da leitura
2 e da escrita pela criança, ou seja, a alfabetização.
O Pisa “é uma iniciativa de ava- No Brasil, durante décadas, vigorou a controvérsia sobre quais mé-
liação comparada, aplicada de
todos seriam mais eficientes: se os métodos sintéticos, que começam
forma amostral a estudantes
matriculados a partir do 7º a partir de fragmentos linguísticos, ou seja, que partem da letra, do
ano do ensino fundamental fonema ou da sílaba para chegar à palavra, por exemplo soletração,
na faixa etária dos 15 anos,
idade em que se pressupõe o silabação e métodos fônicos; ou os métodos analíticos (globais), que
término da escolaridade básica partem de unidades maiores da língua, como uma frase ou um conto,
obrigatória na maioria dos por exemplo. Entre os métodos analíticos destacam-se a palavração, a
países” (BRASIL, 2019b).
sentenciação e o método de contos (CARVALHO, 2008). Tal controvérsia
se estendeu até os anos 1980, com sucessivas mudanças de metodo-
logias, não apenas no âmbito da alfabetização, mas também na educa-
ção como um todo.
Importante
Assim como Soares (2017),
apenas nesta seção e em outros Exemplos de métodos sintéticos
poucos contextos trataremos Com base na memorização, o método de soletração combina as letras do alfabeto a
a palavra alfabetização como
sinônimo de aprendizagem
estímulos visuais e auditivos. O método de silabação apresenta listas compostas por
inicial da língua escrita. O sílabas de diferentes padrões – é o chamado ba-be-bi-bo-bu. Os métodos fônicos, por
conceito é mais complexo e será sua vez, chamam a atenção do aprendiz para a dimensão sonora da língua, explorando
abordado de modo mais amplo primeiro fonemas (sons) isolados, para depois partir para outras unidades linguísticas.
na seção 1.3.

Exemplos de métodos analíticos


O método da palavração parte da análise de palavras-chave e da formação de novas
palavras com as sílabas. Já o método da sentenciação parte da análise global de
frases, para depois analisar palavras e em seguida suas sílabas. O método de contos,
como o nome revela, trabalha primeiramente o conto, ou seja, uma breve história
que, muitas vezes, é desmembrada em partes menores (facilitando assim sua me-
morização), para depois passar à análise das palavras.

10 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


Braslavsky (1971 apud CARVALHO, 2008) afirma que os métodos Site
evoluíram e ganharam legitimidade em vias alternativas mistas, os cha-
No site Plataforma do
mados métodos analítico-sintéticos, que buscam combinar aspectos de letramento é possível visualizar
ambas as abordagens teóricas. De acordo com essa concepção, o traba- o infográfico Das primeiras
letras aos multiletramentos:
lho de compreensão do texto é feito paralelamente ao de identificação
caminhos na história e
dos fonemas e explicitação sistemática das relações entre letras e sons. compreender a evolução das
práticas de alfabetização no
Ainda que guardem diferenças significativas, tanto os métodos sin-
Brasil, desde o final do século
téticos quanto os analíticos, mesmo na versão híbrida mencionada no XIX até os dias atuais.
parágrafo anterior, limitam-se à aprendizagem do sistema alfabético- Disponível em: http://www.
-ortográfico da escrita. De acordo com Soares (2017), isso significa di- plataformadoletramento.org.br/
hotsite/infografico-letramento/.
zer que, nesses métodos, as palavras são selecionadas especificamente
Acesso em: 20 out. 2019.
para serem objeto de análise, para serem decompostas em sílabas e
fonemas de maneira descontextualizada. Do mesmo modo, as frases e
os textos são criados artificialmente para serem decompostos em pa-
lavras, sílabas e fonemas.

A autora, ao discorrer sobre os métodos sintéticos e analíti-


cos, prossegue:
Assim, nas duas orientações, o domínio do sistema de escrita é
considerado condição e pré-requisito para que a criança desen-
volva habilidades de uso da leitura e da escrita, lendo e produ-
zindo textos reais, isto é: primeiro, é preciso aprender a ler e a
escrever, verbos nesta etapa considerados intransitivos, para
só depois de vencida essa etapa tornar esses verbos transitivos,
atribuir-lhes complementos: ler textos, livros, escrever histórias,
cartas... (Soares, 2005). Também o pressuposto, nas duas orien-
tações, é o mesmo – o de que a criança, para aprender o siste-
ma de escrita, depende de estímulos externos cuidadosamente
selecionados ou artificialmente construídos com o único fim de + Saiba mais
levá-la a apropriar-se da tecnologia da escrita. (SOARES, 2017, p.
A teoria de Piaget denomina-se
19, grifos do original) epistemologia genética por
ter como objetivo explicar
Em meados dos anos 1980, surgiu o paradigma cognitivista, fun-
a gênese do conhecimento.
dado na epistemologia genética de Piaget e difundido no Brasil espe- Piaget buscou compreender
cialmente por intermédio dos estudos de Emilia Ferreiro. Nesse novo como o ser humano constrói
suas estruturas de pensamento,
paradigma, oposto à ideia de que a aprendizagem na alfabetização uma vez que ao longo da vida o
depende da escolha do método, o foco deixa de recair no método sujeito passa por diversas etapas
e passa a se situar no aprendiz, que constrói progressivamente o de desenvolvimento, que vão
desde o menor para o maior em
princípio alfabético. Com essa nova visão construtivista, passa-se a níveis de complexidade.
requerer que sejam proporcionadas ao aprendiz situações em que ele

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 11


interaja com materiais reais de leitura, e não forjados especificamen-
te para essa finalidade.

Em paralelo, segundo Alexandroff (2013), tomou força a corrente


sociointeracionista, com a divulgação das ideias de Lev Vygotsky. De
acordo com o psicólogo russo, o processo de apropriação da escrita se
dá primeiro nas interações sociais, para depois ser internalizado pelo
aprendiz. Para essa concepção, toda a aprendizagem, em um primeiro
momento, é feita socialmente e, de maneira gradativa, vai se tornando
uma construção individual.

Com o tempo, a batalha que antes era entre métodos sintéticos e


analíticos, denominados métodos “tradicionais”, transformou-se em
oposição entre estes e a chamada desmetodização proposta pelo cons-
trutivismo, ou seja, a desvalorização do método como elemento deter-
minante para a alfabetização (SOARES, 2017).

De acordo com Soares (2004), esse novo paradigma relacionado ao


construtivismo, apesar de ter trazido importantes contribuições para
os estudos da alfabetização, acabou levando a alguns equívocos em
sua aplicação. Isso se deu em razão de falsas interpretações e inferên-
cias, incluindo uma suposta incompatibilidade entre o paradigma con-
ceitual psicogenético e a proposta de métodos de alfabetização. Em
outras palavras, tal equívoco de interpretação levou a certa rejeição
aos métodos, fossem eles sintéticos ou analíticos, como se a esses mé-
todos, ditos tradicionais, se esgotassem todas as possibilidades meto-
dológicas para a aprendizagem da leitura e da escrita. Ainda de acordo
com a autora,
dirigindo-se o foco para o processo de construção do sistema de
escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do obje-
to de conhecimento em construção, que é, fundamentalmente,
um objeto linguístico constituído, quer se considere o sistema
alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais
e frequentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em
outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetiza-
ção, obscureceu-se sua faceta linguística – fonética e fonológica.
(SOARES, 2004, p. 11)

Decorrente de tais interpretações errôneas, Soares (2004, p. 9) explica


que vigorou o entendimento de que, por meio do “convívio intenso com o
material escrito que circula nas práticas sociais, ou seja, do convívio com a
cultura escrita, a criança se alfabetizaria”. A alfabetização acabou perden-

12 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


do sua especificidade, pois, nas palavras da referida autora, foi de certa
forma obscurecida pelo letramento.

Assim, o que era para ser uma mudança de paradigma benéfica para
o objetivo de suplantar os resultados negativos em avaliações de níveis
de alfabetização da população em processo de escolarização, acabou por
agravar esse quadro.

Em consequência disso, o movimento pendular de debates e alter-


nância entre os métodos de alfabetização ressurgiu, sobretudo com a
publicação do documento Política Nacional de Alfabetização (PNA)(BRASIL,
2019d), instituído pelo Decreto n. 9.765 (BRASIL, 2019a). Ao priorizar o
desenvolvimento de habilidades de consciência fonêmica e a decodifica-
ção de palavras, a PNA põe o método fônico em evidência novamente,
fundamentando-se nas ciências cognitivas, o qual até então não mais
figurava no discurso acadêmico hegemônico, tampouco nas orientações
curriculares – a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)
e mais recentemente da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), docu-
mentos que consideram tanto o alfabetizar quanto o letrar.

Soares (2004; 2017) assevera que é um equívoco dissociar alfabeti-


zação e letramento porque o ingresso da criança no mundo da escrita
ocorre simultaneamente por ambos os processos: alfabetização, isto
é, aquisição do sistema convencional de escrita, e pelo letramento, ou
seja, o desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema nas práti-
cas sociais que envolvem a língua escrita.

A solução dada pela autora é, portanto, conciliar os dois processos:


o que se propõe é, em primeiro lugar, a necessidade de reco-
nhecimento da especificidade da alfabetização, entendida como
processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfa-
bético e ortográfico; em segundo lugar, e como decorrência, a
importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto
de letramento – entendido este, no que se refere à etapa inicial
da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos va-
riados de leitura e de escrita, e o consequente desenvolvimento
de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais
que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a
essas práticas; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto a
alfabetização quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou
facetas, a natureza de cada uma delas demanda uma metodologia
diferente, de modo que a aprendizagem inicial da língua escrita
exige múltiplas metodologias [...]. (SOARES, 2004, p. 16)

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 13


Então, de acordo com essa visão, é possível compreender que os
métodos, em sua dimensão pedagógica, ou seja, na prática do contexto
de ensino, são instrumentos que, sem se configurarem fatores deter-
minantes, contribuem para a aprendizagem inicial da língua escrita em
suas várias facetas, proporcionando ao aprendiz o exercício simultâneo
de múltiplas e diferenciadas competências.

Vale ressaltar que Soares (2017) cita as três principais facetas de


inserção do aprendiz no mundo da escrita:

Alfabetização Letramento

Faceta
Faceta
Faceta interativa:
sociocultural:
linguística: considera a língua
diz respeito aos
diz respeito à escrita como veículo de
usos, funções e valores
aprendizagem do interação entre as pessoas,
atribuídos à escrita
sistema alfabético- de expressão e de
em contextos
-ortográfico. compreensão de
socioculturais.
mensagens.

Soares (2017), ao abordar o que ela chama de a questão dos métodos,


afirma que não há uma resposta única para essa questão, e sim várias. Se-
gundo ela, a questão não se resolve com um método, e sim com múltiplos
métodos, o que a levou a substituir a expressão métodos de alfabetização
por alfabetizar com método, o que significa “orientar a criança por meio de
procedimentos que, fundamentados em teorias e princípios, estimulem e
orientem as operações cognitivas e linguísticas que progressivamente a
Vídeo
conduzam a uma aprendizagem bem-sucedida da leitura e da escrita em
No vídeo Métodos de alfabe-
tização, publicado pelo Canal uma ortografia alfabética” (SOARES, 2017, p. 331).
Futura, podemos assistir à
Carvalho (2008, p. 19) propõe algumas questões a serem respondi-
entrevista em que a professora
Magda Soares (UFMG) responde das quando, nas condições concretas da escola brasileira, o alfabetiza-
a questionamentos sobre os dor escolhe por um ou outro método dentre os diversos disponíveis:
métodos ideais para alfabetizar
e comenta os desafios de ensi- •• Em primeiro lugar, qual é a concepção de leitura e de leitor que
nar em múltiplas linguagens. sustenta o método? Estão combinados os objetivos de alfabetizar
Disponível em: https://youtu. e letrar, isto é, a preocupação em ensinar o código alfabético é
be/mAOXxBRaMSY. Acesso em: tão presente quanto o objetivo de desenvolver a compreensão
20 out. 2019. de leitura? São previstas maneiras de sistematizar os conheci-
mentos sobre as relações entre letras e sons? Há interesse em

14 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


motivar os aprendizes para gostar de ler?
•• A fundamentação teórica do método é conhecida e faz sentido?
•• As etapas ou procedimentos de aplicação são coerentes com os
fundamentos do método?
•• O material didático é acessível, simples e de baixo custo?
•• Há evidências de que o método foi experimentado com êxito
em um número significativo de turmas, em contextos escola-
res diferentes?
•• O que dizem os professores e pesquisadores sobre a aplicação
e os resultados?

Ainda segundo Carvalho (2008), se as respostas encontradas forem Atividade 1


satisfatórias, há possibilidade de que o método escolhido (se bem apli-
Segundo Magda Soares, o que
cado) proporcione bons resultados. Afinal, mais do que se preocupar são os métodos de alfabetização?
se o método escolhido é eficaz ou não, o professor precisa estar ciente
de seus objetivos e seguro de suas opções metodológicas – o que por
si é a própria confirmação de que vai obter êxito em sua missão de
mediar as aprendizagens no processo de alfabetização.

1.2 Escrita alfabética como código ou sistema


Vídeo notacional
Diversos autores, como Magda Soares e Artur Gomes de Morais,
postulam a preferência da expressão sistema notacional para se referir
à escrita alfabética, em detrimento de palavras como código, decodificar
e codificar. Esses especialistas acreditam que essas três últimas trans-
mitem uma ideia errônea e simplificada acerca do trabalho cognitivo
que o aprendiz precisa fazer para se alfabetizar (MORAIS, 2012).

Soares (2017, p. 46) elucida essa questão da seguinte forma:


Na verdade, um código é, em seu sentido próprio, um sistema
que substitui (como o código Morse, a escrita em Braille) ou
esconde (como códigos de guerra, criados para garantir a se-
gurança de comunicações) os signos de um outro sistema já
existente – por exemplo, é possível criar um código para subs-
tituir ou esconder os grafemas do sistema alfabético por outros
signos. Consequentemente, se considera-se seu significado li-
teral, o verbo codificar denota a utilização de um sistema de
sinais ou sinos que substituem os grafemas do sistema alfa-
bético, e o verbo decodificar denota, literalmente, a decifração
de sinais ou signos traduzindo-os para o sistema alfabético.

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 15


Assim, este, o sistema alfabético, é o sistema primeiro, não é
um sistema de substituição de outro preexistente – não é um
código, a não ser que se considerasse que os grafemas “substi-
tuem” os sons da fala, o que não é linguisticamente verdadeiro:
os grafemas representam os sons da fala, e o sistema de escrita
alfabético foi inventado como um sistema de representação, não
como um código. (SOARES, 2017, p. 46, grifos do original)
Atividade 2 A questão central é, portanto, refletir sobre o que é a escrita alfa-
Por que a escrita alfabética bética e o seu aprendizado. É necessário pensar sobre aquilo que se
deve ser considerada um sis-
deseja registrar por meio da escrita alfabética: o significado da palavra
tema notacional e não apenas
um código? ou a sua sequência de sons? O aprendiz não precisa somente memori-
zar a letra e seu respectivo som, mas também compreender o que esse
sistema registra no papel, quais são os significados ali presentes.

Abordando as consequências práticas de se adotar uma ou ou-


tra visão sobre a língua escrita, Ferreiro (2001) nos traz importantes
ensinamentos a esse respeito. Para ela, se a escrita é vista como um
código que transcreve as unidades sonoras em unidades gráficas, é evi-
denciada apenas a discriminação perceptiva (visual e auditiva). Como
consequência, basta realizar exercícios de discriminação para treinar
3 a leitura e a escrita, pois a linguagem é reduzida a um amontoado de
3
Com base nos trabalhos sons, anulando-se o signo linguístico ao dissociar o significante sono-
de Ferdinand de Saussure, ro do significado.
Emilia Ferreiro concebe o
signo linguístico como a união Por outro lado, se a aprendizagem da língua escrita é concebida
indissolúvel entre significante como a compreensão do modo de construção de um sistema de re-
(imagem acústica) e significado
presentação, Ferreiro (2001) assevera que a questão central é justa-
(conteúdo semântico) – por
exemplo, a palavra cadeira mente compreender a natureza desse sistema de representação. Pois,
(significante) e o conceito de ao compreender características do sistema de escrita (em vez de rea-
cadeira (significado).
lizar treinos de sons isolados e sem sentido), o aprendiz se torna cada
vez mais apto a aplicar esse conhecimento nas mais variadas situações
de contato com a língua escrita. Isso significa que o aprendiz se torna
capaz de realizar abstrações, estendendo o que aprendeu a situações
nunca vistas antes. Por exemplo, se ele sabe que gato se escreve com a
sílaba inicial ga, consegue identificar que é preciso selecionar as letras
g e a ao reconhecer que a palavra galo começa com essa mesma sílaba.

De acordo com as premissas de Morais (2012), é necessário que o


professor auxilie as crianças desde cedo a entenderem as propriedades
do sistema alfabético e tenha sempre em mente que a consciência fo-
nológica exerce um papel de destaque na caminhada da alfabetização.

16 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


O autor acredita que o desenvolvimento da escrita alfabética envolve
um trabalho conceitual complexo, geralmente desconsiderado pelos
métodos tradicionais de alfabetização. Cada criança reconstrói em sua
mente o sistema alfabético. Usamos o termo reconstrução, pois não se
trata de inventar um novo sistema ou de descobrir, pois esse último
termo está vinculado à ideia errônea de que a criança deve descobrir
tudo sozinha.

A visão tradicional de alfabetização contempla a escrita como um


simples código da língua oral, pressupondo que o aluno aprende por
repetição e memorização. Acerca disso, ao comentar especificamente
sobre os métodos fônico e silábico, Morais (2012) argumenta:
Os dois métodos têm, portanto, uma visão adultocêntrica, isto
é, enxergam o funcionamento infantil como idêntico ao adulto.
Ambos partem do pressuposto de que as crianças, naturalmen-
te e sem dificuldades, já pensariam, desde cedo, que as letras
“substituem sons das palavras que pronunciamos”. Essa visão
simplista é o que justificaria a solução de, simplesmente, trans-
mitir-lhes, de forma pronta, as informações sobre correspondên-
cias som-grafia. (MORAIS, 2012, p. 31)

Assim, para os adeptos dos métodos tradicionais de ensino, uma + Saiba mais
boa cartilha e um plano de ensino bem controlado são a garantia para De acordo com a perspectiva
uma alfabetização satisfatória – e por essa razão são chamados de associacionista/empirista, o mé-
todo é fator determinante para
associacionistas ou empiristas. Porém, isso só funcionaria se a criança
o sucesso da alfabetização, uma
estivesse no estágio de prontidão para, em seguida, receber os ensi- vez que considera que o apren-
namentos que lhe seriam transmitidos em doses homeopáticas. De diz adquire os conhecimentos
por meio de transmissão,
acordo com essa concepção, a escrita alfabética seria reduzida a um repetição e memorização.
código, o qual, para ser aprendido, dependeria de treinos e repetições
das formas gráficas e seus respectivos sons.
4 4
Morais (2012), recorrendo à teoria da psicogênese da língua escrita ,
ressalta que é necessário reconhecer que o aprendiz da escrita alfabéti- Desenvolvida por Emilia
Ferreiro e Ana Teberosky, essa
ca não tem na sua mente as propriedades do sistema de maneira pron-
teoria afirma que as crianças
ta, dada ou disponível. Ele ainda não sabe como as letras funcionam e trazem consigo uma concep-
tem sobre a escrita uma visão diferente da que os adultos têm. É por isso ção sobre a escrita, e que,
portanto, não procede a ideia
que, em uma etapa inicial, não faz sentido ficar pronunciando fonemas de que os aprendizes precisam
isolados e repetindo a leitura de sílabas e palavras que comecem com estar prontos (ter prontidão)
determinado fonema. para se alfabetizar.

Desse modo, de acordo com a perspectiva psicogenética, o aprendiz


precisa compreender as propriedades do alfabeto como sistema no-

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 17


tacional, para que possa dominar o sistema de escrita alfabética (SEA)
(MORAIS, 2012). Nesse sentido, é sempre importante que o professor
tenha em mente quais são as propriedades desse sistema (Figura 1)
que o aprendiz precisa reconstruir, com a ajuda do professor por meio
do ensino sistemático, para se tornar alfabetizado.

Figura 1
Propriedades do sistema de escrita alfabética

As
letras têm
Escreve-se com letras
formatos fixos e
que não podem ser
pequenas variações que
inventadas, que têm um
produzem mudanças em
repertório finito e que são
sua identidade (p, q, b, d),
diferentes de números e
embora uma letra assuma
de outros símbolos.
formatos variados (P,
p, P, p).

Uma letra
pode se repetir no
A ordem das
interior de uma palavra
letras no interior
e em diferentes palavras,
da palavra não pode
ao mesmo tempo em
ser mudada.
que distintas palavras
Casa ≠ Saca.
compartilham as
mesmas letras.

As letras
Nem todas as
notam ou
letras podem ocupar
substituem a pauta
certas posições no interior
sonora das palavras que
das palavras, como a letra n
pronunciamos e nunca levam
antes de p e b, por exemplo,
em conta as características
e nem todas as letras
físicas ou funcionais
podem vir juntas de
dos referentes que
quaisquer outras.
substituem.

18 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


As letras têm
valores sonoros
As letras notam fixos, apesar de muitas
segmentos sonoros terem mais de um valor
menores que as sonoro, como a letra s,
sílabas orais que e certos sons, como /ç/,
pronunciamos. poderem ser notados com
mais de uma letra, ss,
como em posso.

Além das As sílabas


letras, na escrita podem variar quanto
de palavras usam-se, às combinações entre
também, algumas sinais consoantes e vogais, mas
(acentos) que podem a estrutura predominante
modificar a tonicidade, omo no português é a sílaba CV
em ô e ó, ou o som das (consoante-vogal), onde todas
letras ou sílabas onde as sílabas contêm, ao
aparecem. menos, uma vogal.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Morais, 2012, p.51.

Com base nessas propriedades, fica claro que um novo conhecimen-


to do sistema alfabético não emerge simplesmente do mundo exterior,
a partir das informações transmitidas pelo professor. Tal conhecimen-
to “pressupõe um percurso evolutivo, de reconstrução, no qual a ativi-
dade do aprendiz é o que gera, gradualmente, novos conhecimentos
rumo à ‘hipótese alfabética’” (MORAIS, 2012, p. 52).

Portanto, classificar o sistema de escrita como um código, portanto,


além de um equívoco, trata-se de um reducionismo, pois não leva em conta
toda a complexidade e o desafio que a escrita representa para o aprendiz.

1.3 Aprendizagem inicial da língua escrita


Vídeo Em virtude do desenvolvimento social, cultural, econômico e políti-
co pelo qual o Brasil passou durante o século XX, os limites do ensino
e aprendizagem da língua escrita foram se ampliando gradativamente.
Isso ocasionou a introdução, na década de 1980, do conceito de letra-
mento, que diz respeito às práticas sociais da leitura e da escrita.

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 19


Ao comentar a respeito, Soares pontua:
Surge então o termo letramento, que se associa ao termo alfabe-
tização para designar uma aprendizagem inicial da língua escrita
entendida não apenas como a aprendizagem da tecnologia de
escrita – do sistema alfabético e suas convenções –, mas também
como, de forma abrangente, a introdução da criança às práticas
sociais da língua escrita. (SOARES, 2017, p. 27, grifo do original)

Dessa maneira, a expressão aprendizagem inicial da língua escrita é


abrangente e tem sido usada por diversos teóricos para designar a práti-
ca que considera os processos de alfabetização e letramento de maneira
simultânea e indissociável, ainda que mantenham suas especificidades.

Pode-se considerar que tal expressão, por sua amplitude, abarca


as três facetas de inserção no mundo da escrita, já mencionadas ante-
riormente: 1) a faceta linguística, que diz respeito à aprendizagem do
sistema alfabético-ortográfico; 2) a faceta interativa, que considera a
língua escrita como veículo de interação entre as pessoas, de expres-
são e de compreensão de mensagens; e 3) a faceta sociocultural, que
se refere aos usos, funções e valores atribuídos à escrita em contextos
socioculturais. A primeira faceta se refere à alfabetização, a segunda e
terceira são relativas ao letramento e as três, em conjunto, formam um
todo que se denomina aprendizagem inicial da língua escrita.

Ainda que mantenham contato com a língua escrita antes de atingi-


rem a idade escolar, as crianças geralmente ingressam na escola sem
entender que escrevemos com letras e que as letras representam sons.
É necessário, pois, ensinar essas relações a elas, o que nos faz questio-
nar: Quando começar o ensino sistemático do sistema de escrita alfa-
bética? Existe uma idade certa para alfabetizar?

Iniciamos a resposta a essas indagações mencionando alguns mar-


cos legislativos importantes:
•• A Lei n. 11.274/2006 alterou diversos artigos da Lei n. 9.394/1996,
conhecida como Lei de Diretrizes e Bases (LDB), por estabelecer as
diretrizes e bases da educação nacional. Com essa alteração, a du-
ração do ensino fundamental passou de oito para nove anos, com
matrícula obrigatória das crianças a partir dos seis anos de idade.
•• O Pacto Nacional para Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) foi
criado em 2012 com o objetivo de fornecer formação docente e

20 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


garantir que todas as crianças soubessem ler e escrever até os 8
anos, ou seja, ao concluir o 3º ano.
•• A meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE), implementado
pela Lei n. 13.005/2014, prevê a alfabetização de todas as crian-
ças até o fim do 3º ano do ensino fundamental.
•• A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê a alfabetização
nos dois primeiros anos do ensino fundamental.
•• A Política Nacional de Alfabetização (PNA) tem como uma de
suas diretrizes a priorização da alfabetização no 1º ano do ensi-
no fundamental.

De acordo com a BNCC (BRASIL, 2017), mesmo que a criança par-


ticipe de diferentes práticas letradas desde o nascimento e nos anos
que passa na educação infantil, é nos dois primeiros anos do ensino
fundamental que há a expectativa de alfabetizá-la de fato. O referido
documento afirma que nesse período a alfabetização deve ser o foco
da ação pedagógica, com o ensino do alfabeto e da mecânica da escri-
ta/leitura. Assim, conforme a BNCC, para que alguém se torne alfabeti-
zado, deve haver:
o desenvolvimento de uma consciência fonológica (dos fonemas
do português do Brasil e de sua organização em segmentos so-
noros maiores como sílabas e palavras) e o conhecimento do al-
fabeto do português do Brasil em seus vários formatos (letras
imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas), além do estabe-
lecimento de relações grafofônicas entre esses dois sistemas de
materialização da língua. (BRASIL, 2017, p. 88)

Ao se examinar a parte da BNCC que se refere à educação infantil, é


possível encontrar objetivos de aprendizagem como os exemplificados
no quadro a seguir:

Quadro 1
Objetivos de aprendizagem (4 anos a 5 anos e 11 meses).

Campo de experiências “escuta, fala, pensamento e imaginação”


Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento
Crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses)
(EI03EF03) Escolher e folhear livros, procurando orientar-se por temas e ilustrações
e tentando identificar palavras conhecidas.
(EI03EF05) Recontar histórias ouvidas para produção de reconto escrito, tendo o
professor como escriba.

(Continua)

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 21


Campo de experiências “escuta, fala, pensamento e imaginação”
(EI03EF06) Produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em
situações com função social significativa.
(EI03EF08) Selecionar livros e textos de gêneros conhecidos para a leitura de um
adulto e/ou para sua própria leitura (partindo de seu repertório sobre esses textos,
como a recuperação pela memória, pela leitura das ilustrações etc.).
(EI03EF09) Levantar hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros
de palavras e textos, por meio de escrita espontânea.

Fonte: Brasil, 2017, p. 47-48.

Ao ler tais objetivos, que se destinam a crianças que estão concluin-


do a educação infantil, percebemos claramente a onipresença do le-
tramento. Não há, porém, nenhum indício de ensino sistemático do
funcionamento do sistema de escrita.

Por outro lado, essa sistematização fica muito clara em diversas ha-
bilidades apresentadas para o 1º ano do ensino fundamental. É pos-
sível verificar, no Quadro 2 a seguir, as habilidades relacionadas às
convenções da escrita e à correspondência entre fonemas e grafemas.

Quadro 2
Objetivos de aprendizagem (1º ano do ensino fundamental).

Habilidades
Práticas de linguagem Objetos de conhecimento
1º ano
(EF01LP01) Reconhecer que textos são
Leitura/escuta (compar-
Protocolos de leitura lidos e escritos da esquerda para a direi-
tilhada e autônoma)
ta e de cima para baixo da página.
(EF01LP02) Escrever, espontaneamente
Escrita (compartilhada e Correspondência ou por ditado, palavras e frases de forma
autônoma) fonema-grafema alfabética – usando letras/grafemas que
representem fonemas.
(EF01LP05) Reconhecer o sistema de es-
Análise linguística/semió- Construção do sistema alfa-
crita alfabética como representação dos
tica (Alfabetização) bético
sons da fala.

Fonte: Brasil, 2017, p. 96-97.

Importantes teóricos da área da alfabetização, como Morais (2012),


defendem que, para o enfrentamento da desigualdade existente na
educação brasileira, é necessário que as escolas, ao fim da educação
infantil, disponibilizem um ensino que permita aos alunos não apenas
conviver e desfrutar diariamente de práticas de leitura e produção de
texto, mas também refletir sobre as palavras, brincando com suas di-

22 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


mensões sonora e gráfica. Essa reflexão, porém, se dá sem iniciar o en-
sino explícito e sistemático das relações fonema-grafema, o que deve
ficar reservado ao ensino fundamental.

Essa opção visa respeitar as características dos alunos da educação


infantil, assegurando-lhes o direito de conviver com a escrita e de refle-
tir sobre ela. Assim, de acordo com Morais (2012):
Vídeo
desde o final da Educação infantil, as crianças podem ser aju-
dadas a desenvolver uma série de conhecimentos sobre aspec- No vídeo Leitura e escrita na
tos conceituais e convencionais da escrita alfabética. A reflexão educação infantil, publicado
sobre a dimensão sonora das palavras, apoiada em sua notação pela Nova Escola, Emilia Ferreiro,
em entrevista concedida em
escrita, de modo a promover determinadas habilidades de cons-
2013 à especialista brasileira
ciência fonológica, nos parece a estratégia principal [...]. O traba- em alfabetização Telma Weisz,
lho com palavras estáveis, como o nome próprio, e a prática de comenta o que e como as
montagem e desmontagem das palavras, com o alfabeto móvel, crianças podem aprender na
também têm se revelado boas alternativas para auxiliá-las a educação infantil sobre leitura
e escrita.
avançar na apropriação do SEA [...].
A priorização de atividades que enfoquem palavras, obviamen- Disponível em: https://youtu.
be/0YY7D5p97w4. Acesso em:
te, não implicaria perdermos de vista que queremos ensinar o
20 out. 2019.
sistema alfabético e letrar, ao mesmo tempo, sempre. (MORAIS,
2012, p. 117-118)

A professora Magda Soares, que em 2006 idealizou o projeto Alfa-


letrar, cujo objetivo é promover ações para alfabetização em todas as
escolas da rede municipal de Lagoa Santa (MG), também defende a al-
fabetização e o letramento desde a educação infantil, ensejado a partir
de atividades lúdicas – por exemplo, cantigas e parlendas.

Desde que feito com método, como observamos no item 1.1, o pro-
fessor pode contribuir para a aprendizagem da língua escrita pela crian-
ça desde a educação infantil. Soares afirma que as crianças chegam às
instituições educativas com diversos conhecimentos e cabe a tais insti-
tuições “dar prosseguimento a esses processos, pois seria prejudicial ao
desenvolvimento e aprendizagem da criança interrompê-los, impedi-los,
correndo o risco de fazê-los retroceder” (SOARES, 2017, p. 343).

O professor, portanto, consciente de todos os processos envolvidos


Atividade 3
na aprendizagem inicial da língua escrita, pode e deve realizar ações
Por que alguns autores preferem
sistemáticas no sentido de fazer seus alunos despertarem para a leitu- usar a terminologia aprendiza-
ra e para a escrita desde a educação infantil. Dessa forma, ele contribui gem inicial da escrita em vez de
alfabetização?
para que esse processo se consolide posteriormente, de maneira pro-
gressiva, célere e tranquila.

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 23


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente, a forma de enxergar o processo de ensino e aprendi-
zagem da leitura e da escrita passou por diversas transformações, acar-
retando alterações nas políticas e principalmente nas práticas escolares.
Essas transformações vão desde a visão de alfabetização como acú-
mulo de informações transmitidas pelo professor e assimiladas passiva-
mente pelo aprendiz, até a visão que revela a postura ativa do aprendiz,
como alguém capaz de refletir e criar hipóteses sobre o sistema de escri-
ta; desde a concepção desta como código até sua concepção como siste-
ma notacional. Contudo, ainda hoje parece haver um descompasso entre
a teoria e a prática das salas de aula.
Por se tratar de um fenômeno que, segundo Soares (2004), tem muitas
facetas, o ensino e aprendizagem da língua escrita demanda metodolo-
gias específicas que precisam ser articuladas pelo professor alfabetizador.
Assim, seu papel deve ser o de mediador desse processo, acompanhando
a criança na construção de suas hipóteses de escrita, na reflexão sobre o
sistema alfabético e na compreensão de suas propriedades.
Pautando-se pelas determinações legais, o professor deve estar
atento aos conhecimentos que as crianças já trazem sobre o funciona-
mento do sistema de escrita e ajudá-las a avançar rumo à aquisição da
escrita convencional.

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Educação Fundamental, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/
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2006/2006/lei/l11274.htm. Acesso em: 10 dez. 2019.
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BRASIL. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
Brasília, DF, 25 jun. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2014/Lei/L13005.htm. Acesso em: 10 dez. 2019.

24 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.
pdf. Acesso em: 26 nov. 2019.
BRASIL. Decreto n. 9.765, de 11 de abril de 2019. Diário Oficial da União, Poder Executivo,
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CARVALHO, M. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. 5. ed. Petrópolis:
Vozes, 2008.
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. Trad. de Horácio Gonzalez et al. 24 ed. São
Paulo: Cortez, 2001.
MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação,
Rio de Janeiro, n. 25, jan./fev./mar./abr. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/
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SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2017.

GABARITO
1. De acordo com Soares, a expressão método de alfabetização se refere a um conjunto
de procedimentos que devem estar fundamentados em teorias e princípios, os quais
devem orientar a aprendizagem inicial da leitura e da escrita pela criança, e não
cartilhas, manuais didáticos, artefatos pedagógicos etc.

2. Porque o sistema alfabético não é um sistema de substituição de outro preexistente,


como ocorre com o código Morse ou a escrita em Braille. Seria um código se
considerássemos que os grafemas substituem os sons da fala, o que não é
linguisticamente verdadeiro: os grafemas representam os sons da fala e, portanto,
trata-se de um sistema de representação ou um sistema notacional.

3. A terminologia aprendizagem inicial da escrita é defendida por diversos autores por


ser mais abrangente e designar a prática que considera os processos de alfabetização
e letramento de modo simultâneo e indissociável, ainda que esses dois processos
mantenham suas especificidades.

Alfabetização: uma palavra, muitas representações 25


2
Psicogênese da língua escrita
Durante muitos anos, no Brasil, as discussões relacionadas à
área da alfabetização giravam em torno da adoção de métodos
sintéticos e analíticos, cujas abordagens se diferenciam no que diz
respeito ao ponto de partida – se da parte para o todo (métodos
sintéticos) ou do todo para a parte (métodos analíticos). Porém, foi
somente a partir da década de 1980 que novas pesquisas entraram
em cena, trazendo novos entendimentos para os estudos do
processo de alfabetização. O objetivo deste capítulo é apresentar
esses estudos sobre a abordagem psicogenética de aquisição da
língua escrita e debater suas implicações pedagógicas.

2.1 As ideias de Emilia Ferreiro


Vídeo e Ana Teberosky
Na apresentação da edição brasileira do livro Psicogênese da lín-
gua escrita, a pesquisadora brasileira Telma Weisz relata que os es-
tudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky representaram um divisor
de águas no cenário educacional brasileiro e, em especial, na história
da alfabetização. Segundo Weisz (1999, p. vii), essa obra “documenta
uma investigação que tornou possível, pela primeira vez, a descrição
do processo de aquisição da língua escrita”.

As ideias de Ferreiro e Teberosky chegaram ao Brasil em 1984 e


transformaram o entendimento até então preponderante – que des-
considerava a atividade do aprendiz e questionava apenas como ensi-
nar e qual o melhor método de alfabetização – em uma percepção que
passou a dar importância para o papel do aluno, questionando como a
criança aprende.

26 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


Livro
É preciso ressaltar que não se trata de um método de alfabetização,
e sim de uma complexa pesquisa que desencadeou uma revisão sobre
como enxergamos a criança, colocando-a no centro do processo de
aprendizagem, e como ela se relaciona com a língua escrita.

Ferreiro e Teberosky (1999) fazem duras críticas aos métodos tradi-


cionais de alfabetização e à forma como a escola tem tratado as crian-
ças das classes populares, principalmente quando fracassam. Segundo
as pesquisadoras, a escola esquece que a criança já possui conceitos
sobre a escrita, mesmo antes da escolarização. A obra Psicogênese da lín-
gua escrita foi um marco
As psicolinguistas asseveram que os métodos sintéticos e analíticos, para a educação e você
pode aprender muito
ao darem ênfase às habilidades perceptivas do aprendiz, descuidam da
com ela.
competência linguística da criança e das suas capacidades cognosciti-
FERREIRO, E.; TEBE-
vas. Por isso, as autoras trazem diversos contrapontos a tais métodos, ROSKY, A. Porto Alegre:
chamados tradicionais, e aos estudos relacionados à linguagem infantil, Artmed, 1999.

que, até então, concentravam-se na quantidade e na variedade de pa-


lavras utilizadas pela criança. Segundo as autoras,
Nenhum conjunto de palavras, porém, por mais vasto que seja,
constitui por si mesmo uma linguagem: enquanto não tivermos
regras precisas para combinar tais elementos, produzindo ora-
ções aceitáveis, não teremos uma linguagem. Precisamente, o 1
1
ponto crítico no qual os modelos associacionistas fracassam
é este: como dar conta da aquisição das regras sintáticas? Hoje Nos modelos associacionistas,
o método é considerado fator
em dia, está demonstrando que nem a imitação nem o reforço
determinante no processo de
seletivo – os dois elementos centrais da aprendizagem associati- aprendizagem da língua escrita.
va – podem explicar a aquisição das regras sintáticas. (FERREIRO;
TEBEROSKY, 1999, p. 24)

Ferreiro e Teberosky (1999) prosseguem expondo que, em realida-


de, o que existe é uma criança que não espera passivamente, e sim que
procura de maneira ativa compreender a natureza da linguagem e que
constantemente formula e testa hipóteses, busca regularidades e cria
sua própria gramática.
Artigo

https://novaescola.org.br/conteudo/338/emilia-ferreiro-estudiosa-que-revolucionou-alfabetizacao

O artigo Emilia Ferreiro, a estudiosa que revolucionou a alfabetização, do autor


Márcio Ferrari, publicado na revista Nova Escola, em 1º de outubro de 2008,
apresenta uma breve biografia sobre a psicolinguista argentina Emilia Ferrei-
ro, considerada a estudiosa de maior influência sobre a educação brasileira
nos últimos 30 anos.

Acesso em: 6 jan. 2020.

Psicogênese da língua escrita 27


Exemplo disso é o fato de ser comum ouvirmos de crianças na faixa etá-
ria entre dois e três anos construções como “eu fazi” (em vez de “eu fiz”) e
“eu cabo” (em vez de “eu caibo”). De acordo com Ferreiro e Teberosky (1999),
situações como essas, que são classificadas como “erros” na visão tradicio-
nal, motivam a análise da natureza de tais equívocos, pois é um comporta-
mento recorrente que as crianças tratem todos os verbos como se fossem
regulares, em uma tentativa de parametrizar conjugações verbais. Ainda de
acordo com as autoras:
Uma criança não regulariza os verbos irregulares por imitação,
posto que os adultos não falam assim [...]. São regularizados por-
que a criança busca na língua uma regularidade, uma coerência
que faria dela um sistema mais lógico do que na verdade é.
[...] fatos como este demonstram também que existe o que
poderíamos chamar erros construtivos, isto é, respostas que se
separam das respostas corretas, mas que, longe de impedir al-
cançar estas últimas, pareceriam permitir acertos posteriores.
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 25)

Pensando especificamente na escrita, podemos tomar como exem-


plo uma criança já nos primeiros anos do ensino fundamental, que
escreve bolu para registrar a palavra bolo. O professor precisa estar
atento ao raciocínio que ela fez, pois, assim como o som /b/ é registra-
do com a letra b, ela usou a letra u para registrar o som que é ouvido
como /u/, e não como /o/. Nesse caso, o docente, sem classificar a si-
tuação simplesmente como erro, precisa aproveitar essa oportunidade
para orientar a criança de que há um combinado na língua portuguesa
para escrevermos essa palavra com a letra final o, independentemente
de o som final ser pronunciado como /o/ ou /u/. Assim, a criança terá
condições de estender essa regularidade para outras palavras, dando
mais um passo em sua aprendizagem.

Portanto, é fundamental permitir que a criança escreva como sabe


– o já conhecido “escreva do seu jeito”, “escreva como souber” ou escrita
espontânea –, isto é, de acordo com suas próprias hipóteses, a fim de
fornecer subsídios para que o professor compreenda as reflexões que
ela faz sobre a língua escrita e quais intervenções ele precisa fazer para
ajudá-la a avançar e evoluir no processo.

Diante dessas premissas, a pesquisa de Ferreiro e Teberosky (1999)


refuta conceitos como prontidão ou pré-requisitos para se alfabetizar.
Elas também negam que crianças de menor poder aquisitivo são me-

28 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


nos capazes. Segundo as autoras, todas as crianças, de todas as clas-
ses sociais, trazem consigo uma concepção sobre a escrita. Ainda que
muitas crianças das classes privilegiadas possam ingressar na escola já
em processo final de alfabetização, enquanto aquelas de classes menos
abastadas chegam na fase inicial, para todas o caminho é igualmente
árduo. Por isso, de acordo com as autoras, é imprescindível respeitar
as crianças como sujeitos cognoscentes, ou seja, sujeitos que aprendem
criticamente, que têm curiosidade e formulam questionamentos sobre
o mundo que os rodeia. Elas elucidam o conceito de sujeito cognoscente,
oriundo da teoria de Jean Piaget, da seguinte maneira:
O sujeito que conhecemos através da teoria de Piaget é aquele
que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia e
trata de resolver as interrogações que este mundo provoca. Não
é um sujeito o qual espera que alguém que possui um conheci-
mento o transmita a ele por um ato de benevolência. É um su-
jeito que aprende basicamente através de suas próprias ações
sobre os objetos do mundo e que constrói suas próprias catego-
rias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo.
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 29)

Tomando a teoria de Piaget como referência, Ferreiro e Teberosky


(1999) estabeleceram relações e formularam a teoria da psicogênese
da língua escrita. De acordo com essa teoria, a criança, enquanto su-
jeito cognoscente piagetiano, ao se deparar com situações de conflito
cognitivo que lhe causam uma perturbação, como escrever uma pa- 2
lavra que ainda não sabe, é compelida a modificar seus esquemas de Aqui é importante trazer
2 o conceito de assimilação,
ação para assimilar o que não conseguia fazer. Diante desse desafio, de Piaget, que consiste em
o professor precisa permitir que a criança passe pelo erro construtivo, uma ação externa, ou seja, o
por meio do qual poderá formular hipóteses com base em seus conhe- sujeito utiliza esquemas de ação
(atitudes de classificar, ordenar,
cimentos prévios. Quanto a isso, as autoras afirmam: relacionar, entre outras maneiras
Esta noção de erros construtivos é essencial. Para uma psicologia de interagir com o mundo)
para compreender determinado
(e uma pedagogia) associacionista, todos os erros se parecem.
conceito. Já a acomodação, um
Para uma psicologia piagetiana, é chave o poder distinguir entre processo interno, se refere à
os erros aqueles que constituem pré-requisitos necessários construção de novas estruturas
para a obtenção da resposta correta. (FERREIRO; TEBEROSKY, cognitivas, que ampliam
1999, p. 33, grifos do original) as estruturas preexistentes.
A combinação desses dois
Outra constatação importante sobre a psicogênese da língua escri- processos leva à equilibração,
ta é que a aprendizagem da criança é uma construção progressiva de por intermédio da qual a criança
arranja constantemente suas
conceitos e não ocorre linearmente. Portanto, as hipóteses da criança estruturas cognitivas buscando
adaptar-se ao meio.

Psicogênese da língua escrita 29


não seguem a lógica do sistema de escrita, e sim a sua própria lógica
diante das reflexões que faz sobre o sistema. Então, para além dos mé-
todos, dos manuais e dos recursos didáticos, as pesquisas de Ferreiro
e Teberosky (1999) mostraram que há um sujeito em busca de conhe-
cimento, que havia sido esquecido pelos métodos tradicionais, o qual
não é uma folha em branco e que requer uma atuação do professor
muito mais significativa e menos repetitiva e mecânica.

Como já mencionado anteriormente, as autoras não pretendem


criar um método ou dar uma receita pronta de como ensinar, pois é
justamente isso que criticam. Elas acreditam que a criança tem a inten-
ção de comunicar, mas não apenas um punhado de letras, de sílabas
ou de palavras descontextualizadas. Por isso, é preciso superar a visão
adultocêntrica, segundo a qual é o adulto que define a priori o que o
aluno deve aprender, e voltar a atenção para o sujeito.

Soares e Batista (2005, p. 35) fazem uma síntese das principais ideias
que sustentam os estudos sobre a psicogênese da linguagem escrita:
•• A criança não começa a aprender a escrita apenas quando entra
na escola; desde que, em seu meio, ela entra em contato com a
linguagem escrita, começa seu processo de aprendizado.
•• Esse aprendizado não consiste numa simples imitação mecânica
da escrita utilizada por adultos, mas numa busca de compreen-
der o que é a escrita e como funciona; é por essa razão que se diz
tratar-se de um aprendizado de natureza conceitual.
•• Ao buscar compreender a escrita, a criança faz perguntas e dá
respostas a essas perguntas por meio de hipóteses baseadas na
análise da linguagem escrita, na experimentação de modos de
ler e de escrever, no contato ou na intervenção direta de adultos.
•• As hipóteses feitas pela criança se manifestam muitas vezes em suas
tentativas de escrita (muitas vezes chamadas de escritas “espontâ-
neas”) e, por isso, não são “erros”, no sentido usual do termo, mas
sim a expressão das respostas ou hipóteses que a criança elabora.
•• O desenvolvimento das hipóteses envolve construções progressi-
vas, por meio das quais a criança amplia seu conhecimento sobre
a escrita com base na reelaboração de hipóteses anteriores.

Atividade 1 Partindo dessas ideias, Ferreiro e Teberosky (1999) demonstra-


Em termos gerais, no que ram que as crianças desenvolvem hipóteses sobre a escrita, as quais
consiste a teoria da psicogênese
da língua escrita? são bastante recorrentes. Na próxima seção, essas hipóteses serão
melhor apresentadas.

30 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


2.2 Fases do processo de aprendizagem da escrita
Vídeo
Apesar de não tratar apenas sobre a escrita – há diversos capítulos
relacionados à leitura, inclusive –, o livro Psicogênese da língua escrita
tornou-se popular no Brasil sobretudo graças ao Capítulo 6, intitulado
“Evolução da escrita”.

Ferreiro e Teberosky (1999) realizaram, na década de 1970, diversos


testes com crianças e organizaram os resultados em cinco níveis, os
quais, no Brasil, ficaram conhecidos de acordo com a respectiva hipóte-
se principal: pré-silábica (que se desmembra em duas), silábica, silábi-
co-alfabética e alfabética. Para descrever esses cinco níveis, as autoras
usam a terminologia níveis estruturais da linguagem escrita para explicar
as diferenças individuais e os ritmos dos alunos.

A compreensão dessas etapas pelo professor é fundamental, mas


vale ressaltar que não se trata de um processo uniforme ou linear, uma
vez que a aprendizagem como um todo não é um processo linear, pois
possui constantes avanços, interrupções e, até mesmo, retrocessos.
A passagem por esses níveis é um percurso dinâmico e, por vezes, ir-
regular. A mesma criança pode, por exemplo, pular uma das etapas
ou voltar a uma fase anterior, julgada já superada. Discorreremos
agora sobre cada um dos níveis ou etapas de aprendizagem da língua
escrita, tal como concebidos pela psicogênese.

•• Nível 1 (conhecido como hipótese pré-silábica 1 ou garatuja): de


acordo com Ferreiro e Teberosky (1999), para o aprendiz, escre-
ver é reproduzir os traços típicos da escrita e é necessário certo
número de caracteres. Se o aluno identifica a escrita de imprensa,
os grafismos serão separados entre si, formados por linhas retas
e curvas. Se ele identifica a forma cursiva, os grafismos são ligados
entre si, compostos por linhas fechadas ou semifechadas. Não se
trata de uma escrita convencional, e a criança não reconhece o
vínculo entre fala e escrita. Por isso, é comum haver o chamado
realismo nominal, ou seja, para registrar o nome de objetos/seres
grandes, a criança usa palavras grandes; para objetos/seres pe-
quenos, palavras pequenas. Ela demonstra intenção de escrever,
porém só ela sabe dizer o que está escrito. Assim, nessa fase, a

Psicogênese da língua escrita 31


Vídeo intenção subjetiva da criança ao fazer o registro conta mais que as
No vídeo Construção da diferenças objetivas no resultado. Nesse caso, o professor precisa
escrita: primeiros pas-
sos, publicado pelo canal perguntar o que o aluno quis escrever. Na Figura 1, o aprendiz A.,
Telma Weisz e produzido
de 3 anos e 9 meses, escreveu a palavra boneca.
para o Programa de For-
mação de Professores
Alfabetizadores (PROFA),
Figura 1
no início dos anos 2000, Exemplo de escrita própria do nível 1
a professora Telma en-

Luciane Rolim de Moura Vilain


trevista crianças para
saber o que elas pen-
sam e o que sabem so-
bre o sistema de escrita.

Disponível em: https://youtu.be/


mdd3MuUJjXI. Acesso em: 20
nov. 2019.

•• Nível 2 (conhecido como hipótese pré-silábica 2): conforme Ferreiro


e Teberosky (1999), para interpretar e produzir textos (atribuir sig-
nificados diferentes) é preciso haver diferenças objetivas nas escri-
tas (grafismos diferentes). O aprendiz geralmente começa a criar
hipóteses a partir do próprio nome, isto é, ele usa letras ou partes
do próprio nome para escrever outras palavras. Nessa fase, ain-
da é necessário perguntar à criança o que ela quis escrever. Na
Figura 2, podemos observar que T., com 4 anos e 2 meses, ao ser
convidada a escrever a palavra boneca, usou a letra inicial do seu
nome.

Figura 2
Exemplo de escrita própria do nível 2

Luciane Rolim de Moura Vilain

•• Nível 3 (conhecido como hipótese silábica): conforme Ferreiro e


Teberosky (1999), o aprendiz tenta atribuir um valor sonoro a
cada uma das letras que compõem uma escrita. Ele tem cons-
ciência de que existe uma relação entre fala e escrita e supõe
que a menor unidade da língua é a sílaba (apesar de ainda não
compreender o conceito de sílaba), portanto usa uma letra para
representar cada emissão sonora. Na Figura 3, podemos obser-

32 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


var a escrita da palavra boneca pelos aprendizes F., de 5 anos e 5
meses (à esquerda), e M., de 4 anos e 9 meses (à direita).

Figura 3
Exemplos de escritas próprias do nível 3

Luciane Rolim de Moura Vilain


Como desdobramento das pesquisas iniciais de Ferreiro e
Teberosky, foram desenvolvidos os conceitos de hipótese silábica sem
valor sonoro convencional (segundo a qual a criança, apesar de relacio-
nar a quantidade de letras à quantidade de sílabas e de variar as letras
ao escrever, ainda não usa as letras correspondentes para escrever as
palavras) e hipótese silábica com valor sonoro convencional (que repre-
senta um avanço em relação à anterior, pois a criança faz escolhas mais
pertinentes ao usar uma letra – vogal ou consoante – para representar
cada sílaba).

Artigo

http://www.plataformadoletramento.org.br/hotsite/aprendizado-inicial-da-escrita/#

O artigo Aprendizado inicial da língua escrita: uma proposta de sistematização,


da autora Magda Soares, publicado na Plataforma do letramento, foca em
algumas regularidades no processo de aprendizagem da língua escrita. Nele,
você pode escolher uma palavra para exemplificar as possíveis etapas do pro-
cesso de aprendizagem da criança.

Acesso em: 20 nov. 2019.

•• Nível 4 (conhecido como hipótese silábica-alfabética): de acordo


com Ferreiro e Teberosky (1999), trata-se da passagem da fase
silábica para a alfabética. O aprendiz passa a ter consciência de
que nem sempre uma letra é suficiente para representar uma
sílaba e começa a estabelecer a relação grafema-fonema, ainda
que não o faça corretamente. Na Figura 4, podemos observar a
escrita da palavra boneca pelo aprendiz L., de 5 anos e 7 meses.

Psicogênese da língua escrita 33


Figura 4
Exemplo de escrita própria do nível 4

Luciane Rolim de Moura Vilain


•• Nível 5 (conhecido como hipótese alfabética): Ferreiro e Teberosky
(1999) consideram como o final da evolução da escrita, pois a
criança compreendeu que cada letra corresponde a um valor so-
noro menor que a sílaba e realiza uma análise sistemática dos
fonemas. Ela passa a entender que a escrita tem uma função
social. Pode ainda omitir letras ou mesmo misturar as hipóteses
anteriores e ainda não tem domínio da ortografia.

Na Figura 5, a seguir, a criança K. (com 6 anos e 1 mês) escreveu a


palavra boneca.

Figura 5
Exemplo de escrita própria do nível 5

Observe o Quadro 1 para exemplificação e melhor visualização das Luciane Rolim de Moura Vilain

fases de desenvolvimento da escrita:

Quadro 1
Resumo e exemplos das hipóteses de escrita

O QUE A CRIANÇA COMO SÃO AS PRODUÇÕES DA


ETAPA
GERALMENTE PENSA CRIANÇA
Não há correspondência sonora,
(NÍVEL 1) Ela tenta diferenciar o mas há intenção de imitar o ato de
HIPÓTESE PRÉ- desenho da escrita, per- escrever.
-SILÁBICA 1 guntando-se: “o que é Uso aleatório de letras (pode haver
OU GARATUJA possível ler?”. preferência por algumas letras, prin-
cipalmente as do próprio nome).

(Continua)

34 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


O QUE A CRIANÇA COMO SÃO AS PRODUÇÕES DA
ETAPA
GERALMENTE PENSA CRIANÇA
Ainda podem ser encontrados ele-
(NÍVEL 2) mentos gráficos além de letras,
É necessário usar certa
HIPÓTESE como números e rabiscos. Nessa
quantidade mínima de
PRÉ-SILÁBICA 2 fase, as crianças podem revelar co-
letras diversificadas.
OU PRÉ-SILÁBICA nhecimento de algumas característi-
cas do sistema de escrita.
Hipótese silábica sem valor sono-
ro: usa uma letra para cada sílaba,
Passa da fase da escrita mas ainda não faz uso das letras
não fonetizada para a correspondentes para escrever as
(NÍVEL 3) escrita fonetizada, pois palavras.
HIPÓTESE começa a representar Hipótese silábica com valor sonoro: é
SILÁBICA cada emissão sonora considerada um avanço em relação
com uma letra (vogal ou à hipótese silábica sem valor sono-
consoante). ro, pois cada sílaba é representada
por uma letra que busca expressar o
som correspondente.
Compreende que es- A criança passa a colocar mais letras
crever é representar as em seus registros silábicos, às vezes
(NÍVEL 4)
partes sonoras das pala- usando as letras de modo pertinen-
HIPÓTESE SILÁBI-
vras, ainda que continue te, outras escolhendo letras aleato-
CA-ALFABÉTICA
cometendo alguns equí- riamente, a fim de resolver a ques-
vocos. tão da quantidade.
Produz registros que A criança pode escrever diversas
podem ser lidos por palavras convencionalmente, mas
(NÍVEL 5) outras pessoas e, mui- em alguns casos pode se equivocar,
HIPÓTESE tas vezes, começa a se principalmente quando se trata de
ALFABÉTICA questionar sobre a for- letras em situações regidas por con-
ma correta de grafar as venções ortográficas (das quais vai se
palavras. apropriar em momento posterior).

Fonte: Elaborado pela autora com base em Ferreiro; Teberosky, 1999.

O papel do professor é muito importante para que a criança possa


desenvolver suas hipóteses. Para isso, ele pode trabalhar com grupos
heterogêneos, proporcionando interações entre crianças de diferentes
níveis e preparando o ambiente para promover tais interações, além de
permitir que o aprendiz cometa os erros construtivos.

A pontuação e a ortografia, que não estão previstas nas etapas


elencadas por Ferreiro e Teberosky (1999), devem ser trabalhadas
gradativamente, em momento posterior ao desenvolvimento da hipó-
tese alfabética, ou quando surgirem dúvidas por parte do aprendiz.

Psicogênese da língua escrita 35


A alfabetização é um processo complexo que se desenvolve de acordo
com a criança, podendo ser diferente de uma para outra, portanto, não
se esgota no 1º ano do ensino fundamental.

Segundo Coutinho (2005), é necessário que o educador tenha sem-


pre em mente que a psicogênese da escrita é uma importante teoria
psicológica que aborda como os alunos se apropriam da escrita alfa-
bética. Porém, conhecê-la não é suficiente para o trabalho na fase de
alfabetização. Segundo a autora,
Atividade 2 É necessário o desenvolvimento de um trabalho sistemático
Segundo Emilia Ferreiro e Ana e diário que leve os alunos a refletir sobre os princípios desse
Teberosky (1999), quantos e sistema. E, nesse trabalho, as atividades realizadas no nível da
quais são os níveis estruturais da palavra (composição e decomposição de palavras em sílabas e
linguagem escrita?
letras, comparação de palavras quanto à presença de sílabas e
letras iguais etc.) e as de análise fonológica são fundamentais.
(COUTINHO, 2005, p. 67-68)

Estudando a teoria da psicogênese da língua escrita e analisando


seus desdobramentos, Frade (2005) ressalta que se trata de princípios
que levam o professor a deixar antigas visões sobre o processo de en-
sino e aprendizagem e ter outra postura perante o aluno. A autora cita
que o aprendiz, segundo as ideias de Ferreiro e Teberosky, é visto como
um sujeito que:
•• tem acesso à escrita na sociedade antes de passar por um pro-
cesso sistemático de ensino na escola;
•• tem um processo lógico de pensamento, de modo que cada
“erro” de escrita que produz indica uma hipótese sobre o conteú-
do do sistema alfabético de escrita;
•• “constrói conhecimentos em situação espontânea, desde que
conviva com o sistema de escrita e obtenha algumas informações
sobre seu funcionamento” (FRADE, 2005, p. 40).

Com base nesses princípios, Frade também ressalta que é necessá-


rio que a escola compreenda que:
•• um método ou uma única direção não é determinante da apren-
dizagem e que é preciso considerar o processo do aprendiz;
•• o contexto escolar deve propiciar a experimentação em torno da
escrita, sem provocar nos alunos o medo de avaliação de “erros”;
•• o material usado na escola deve ser aquele que representa a di-
versidade de uso da escrita existente na sociedade;
•• é necessário, antes de iniciar o ensino e durante o processo, saber
em que nível de compreensão da escrita o aluno se encontra;

36 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


•• para acompanhar o processo de aprendizagem, é crucial que a
escola construa instrumentos que permitam ao aluno expressar,
sem medo, o que sabe;
•• é fundamental que o professor conheça as teorias sobre o
“como se aprende” para interpretar os resultados apresenta-
dos pelos alunos;
•• a escrita e a leitura devem ser aprendidas em uso social
(FRADE, 2005, p. 40).

Portanto, ciente de toda a complexidade do seu papel no processo


de alfabetização, cabe ao professor conhecer a fundo as características
das etapas de aquisição da escrita pelas crianças e de como elas apren-
dem, além de conhecer e saber avaliar as hipóteses de seus alunos, a
fim de identificar quais são as intervenções adequadas.

2.3 Consequências das abordagens


Vídeo socioconstrutivistas
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer o uso do termo constru-
tivismo por diversos autores para se referir à teoria da psicogênese da
língua escrita. Soares (2016) qualifica como discutível tal denominação
na área de alfabetização, uma vez que esse termo diz respeito, mais
amplamente, a uma teoria da aprendizagem e seu uso para referir-se
a uma concepção do processo de alfabetização pode conduzir a uma
suposição equivocada de que o construtivismo é uma teoria da alfabe-
tização e, mais grave ainda, um método de alfabetização. Ainda assim,
no Brasil, essa denominação ficou consolidada, havendo uma ampla
apropriação dela pela área da alfabetização. Portanto, deve ser usada
sob tais advertências.

Feitas as ressalvas iniciais, o paradigma construtivista busca identi-


ficar as hipóteses construídas pela criança sobre o sistema de escrita
(conforme visto na seção anterior), cabendo ao professor acompanhá-
-la nesse processo. Segundo Soares (2016, p. 335, grifos do original),
esse acompanhamento traduz-se:
em provocação e orientação na estruturação, desestruturação,
reestruturação de hipóteses e conceitos sobre a língua escrita.
O/a alfabetizador(a) não propriamente ensina, mas guia a criança
em seu desenvolvimento: processos internos que levam à for-
mulação de hipóteses e à formação de conceitos sobre um objeto
de conhecimento com o qual se defronta – a língua escrita.

Psicogênese da língua escrita 37


Portanto, um professor que se autodenomina construtivista, deve
ter em mente a progressão natural a ser percorrida pela criança. De
acordo com Ferreiro e Teberosky (1999, p. 290),
Para chegar a compreender a escrita, a criança pré-escolar ra-
ciocinou inteligentemente, emitiu boas hipóteses a respeito do
sistema de escrita [...] superou conflitos, buscou regularidades,
outorgou significado constantemente. A coerência lógica que
elas exigiram de si mesmas desaparecem frente às exigências
do docente. A percepção e o controle motor substituirão a
necessidade de compreender; haverá uma série de hábitos a
adquirir no lugar de um objeto para reconhecer. Haverá que
deixar o próprio saber linguístico e a própria capacidade de
pensar até que logo se descubra que é impossível compreender
um texto sem recorrer a eles.

Aproveitando o ensejo dado pela visão de professor como um guia,


posto anteriormente na citação de Magda Soares, é necessário trazer
à tona também o conceito de mediação, advindo da concepção de Vy-
gotsky (1984), segundo a qual a cultura e o grupo social são elementos
constitutivos de cada indivíduo. Para Vygotsky, o professor representa
um elo intermediário entre o aprendiz e o conhecimento disponível no
ambiente, por meio das interações sociais – daí advém o prefixo socio-
muitas vezes associado ao termo construtivismo (socioconstrutivismo).

Além disso, a teoria da psicogênese da língua escrita tem diversos


outros pontos de contato com as postulações de Vygotsky, dentre eles
o fato de ambas considerarem a escrita como um sistema de represen-
tação da realidade.

Por fim, vale trazer a visão de Morais (2012) acerca da adoção de


um enfoque construtivista na alfabetização. Para o autor, essa questão
está relacionada à crença de que essa perspectiva é a que, atualmente,
melhor explica o que é a escrita alfabética e como os aprendizes dela se
apropriam, permitindo-nos colocar em prática os seguintes princípios
de ordem filosófica:
• • Formar pessoas não conformistas, críticas, que lutam por
seus direitos.
• • Formar pessoas que não só repetem, mecânica ou ordeira-
mente, o que lhes é transmitido, mas que criam ou recriam
conhecimentos e formas de expressão.

38 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


•• Formar pessoas que se regem por princípios éticos de justiça social,
de redução das desigualdades socioeconômicas, de respeito à diver-
sidade entre os indivíduos, grupos sociais e povos.
•• Formar pessoas respeitando suas singularidades, seus ritmos de apren-
dizagem, e levando em conta em quê, especificamente, necessitam ser
ajudadas, para que possam avançar nas aprendizagens.

Para Morais (2012, p. 114), em uma escola que almeje tais objetivos, Atividade 3
a perspectiva construtivista, na qual a psicogênese da língua escrita se Por que Magda Soares qualifica
enquadra, é absolutamente adequada. A adoção de uma perspectiva como “discutível” o uso do termo
construtivismo para se referir à
(socio)construtivista, portanto, traz consequências tanto para a atuação
área da alfabetização?
docente, que precisa ser readequada e ajustada para respeitar a ma-
neira como o aluno aprende, quanto para a formação de cidadãos crí-
ticos, contribuindo, assim, para uma sociedade mais justa e igualitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, percebe-se que a teoria da psicogênese da
língua escrita causou uma verdadeira revolução no processo de alfabe-
tização como um todo, trazendo muitos desdobramentos significativos.
Essa teoria alterou drasticamente a questão central vigente até a década
de 1980 no campo da alfabetização no Brasil, cujas discussões giravam
em torno de qual era o melhor método para ensinar a leitura e a escrita.
Houve um deslocamento, portanto, da discussão sobre como se ensina,
que passou a questionar sobre como se aprende.
De acordo com o paradigma trazido por Ferreiro e Teberosky, é pre-
ciso ressignificar a maneira de enxergar o aprendiz, que deixa de ser al-
guém que apenas recebe o conhecimento passivamente e precisa ser
visto como sujeito cognoscente, cujos “erros” são, na verdade, preciosas
demonstrações de como o conhecimento está sendo elaborado.
Nesse sentido, então, as práticas pedagógicas devem ser constante-
mente repensadas e transformadas de acordo com as mudanças sociais
que o mundo contemporâneo exige.

REFERÊNCIAS
COUTINHO, M. L. Psicogênese da língua escrita: O que é? Como intervir em cada uma
das hipóteses? Uma conversa entre professores. In: MORAIS, A. G.; ALBUQUERQUE, E. B.
C.; LEAL, T. F. Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.

Psicogênese da língua escrita 39


FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FRADE, I. C. A. S. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos de
fazer de professores. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005.
MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.
SOARES, M.; BATISTA; A. A. G. Alfabetização e letramento: caderno do professor. Belo
Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
WEISZ, T. Apresentação. In: FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto
Alegre: Artmed, 1999.

GABARITO
1. Não se trata de um método de alfabetização, e sim de uma complexa pesquisa que
desencadeou uma revisão sobre como enxergamos a criança, colocando-a no centro
do processo de aprendizagem e investigando como ela se apropria do sistema de
escrita. Essa teoria fez com que as perguntas, que antes estavam concentradas em
como se ensina e qual o melhor método de alfabetização, se transformassem em
como a criança aprende. Além disso, essa teoria também delineou os chamados
níveis estruturais da linguagem escrita, traçando o percurso que a criança trilha para
se alfabetizar.

2. São cinco níveis (hipóteses):

Nível 1 (hipótese pré-silábica 1 ou garatuja): a criança tenta diferenciar o desenho da


escrita, procurando imitá-la.

Nível 2 (hipótese pré-silábica 2 ou pré-silábica): o aprendiz percebe que é necessário


usar certa quantidade mínima de letras e uma diversidade de letras.

Nível 3 (hipótese silábica): a criança começa a representar cada emissão sonora com
uma letra (vogal ou consoante).

Nível 4 (hipótese silábica-alfabética): a criança compreende que escrever é representar


as partes sonoras das palavras, ainda que continue cometendo alguns equívocos.

Nível 5 (hipótese alfabética): o aprendiz produz registros que podem ser lidos por
outras pessoas e, muitas vezes, começa a se questionar sobre a forma correta de
grafar as palavras.

3. Porque esse termo diz respeito, mais amplamente, a uma teoria da aprendizagem.
O seu uso para referir-se a uma concepção do processo de alfabetização pode
conduzir a uma suposição equivocada de que o construtivismo é uma teoria da
alfabetização e, mais grave ainda, um método de alfabetização. Ainda assim, no
Brasil, essa denominação ficou consolidada, havendo uma ampla apropriação dela
pela área da alfabetização e, portanto, deve ser usada sob tais advertências.

40 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


3
Conhecimentos linguísticos
necessários ao alfabetizador
A aprendizagem inicial da língua escrita envolve as facetas in-
terativa, sociocultural e linguística. As duas primeiras estão rela-
cionadas ao letramento, por dizerem respeito à interação entre
as pessoas e os usos sociais da língua escrita; já a última, a faceta
linguística, é considerada como sendo a alfabetização propriamen-
te dita.
Uma vez que aprender a escrita alfabética é, em linhas gerais,
saber converter os sons da fala em letras (escrever) e converter
letras em sons (ler), a faceta linguística, em especial, exige do pro-
fessor diferentes conhecimentos relacionados à Linguística. Mas
isso não significa que o professor deva se debruçar exaustivamen-
te no estudo dessa área. Bastam alguns conhecimentos, que lhe
permitirão ter uma visão mais ampla. Entre esses conhecimentos,
selecionamos alguns para tratar neste capítulo:
• conhecimento sobre as relações entre fala, escrita e leitura;
• conhecimento sobre o papel das habilidades de reflexão
fonológica e sobre as relações fonema/grafema que regem
o nosso sistema alfabético;
• conhecimento sobre as convenções e as regularidades
contextuais na apropriação da ortografia.
Esses itens, que estão muito longe de esgotar todo o assun-
to, demonstram como os aspectos linguísticos são fundamentais
na alfabetização. Conhecê-los possibilita ao alfabetizador otimizar
suas intervenções e obter um resultado mais satisfatório, e é justa-
mente disso que este capítulo vai tratar.

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 41


3.1 Relações entre oralidade, leitura e escrita
Vídeo Mesmo diante do fato de que, em geral, o ser humano fala e ouve
mais do que escreve e lê, essas práticas não são valorizadas na mesma
proporção em nossa sociedade. O que a história social nos mostra é
que há uma supremacia da cultura escrita sobre a oral. Isso fica evi-
dente ao pensarmos no fato, por exemplo, de que por muito tempo
os analfabetos não eram considerados cidadãos plenos no Brasil, pois
não tinham direito ao voto.

Apesar de a cultura escrita ter sido elevada a um lugar privilegiado


nas sociedades letradas, a humanidade desde sempre se articulou por
intermédio da oralidade, pois esta é uma linguagem que tem estrutura
própria e traz consigo um modo de organizar o pensamento. As cultu-
ras iminentemente orais se baseiam na memória e se relacionam ao
cotidiano das pessoas.

De acordo com Barbosa (2012), não devemos pensar na língua oral


e na escrita como sendo opostas ou etapas sucessivas, mas sim
modos distintos de pensar, de construir a linguagem, talvez
modos complementares, porém não antagônicos. A opressão da
cultura oral frente à cultura escrita é semelhante àquela vivida
pela escrita com relação à multimídia. Mas não negaremos a cul-
tura escrita, pois sabemos que subjacente a qualquer modalida-
de multimidial, a escrita e a oralidade se mantêm presentes no
pensamento que é produzido. Talvez a forma mais adequada, e
menos discriminatória, de pensar a relação entre linguagem oral,
linguagem escrita e linguagem multimidial seja como diferença
e complementariedade, como potências, e não como etapas su-
cessivas. (BARBOSA, 2012, p. 129)

Sendo assim, o aprendiz chega à escola com um grau razoável


de domínio da língua, permeada pela oralidade, e isso não pode ser
desprezado pela instituição escolar. Em outras palavras, a escola não
pode partir do zero, negando a cultura oral. Sob a perspectiva do le-
tramento, o ensino da leitura e da escrita deve considerar os usos
diversos da língua, não somente os escritos, mas também os orais,
enxergando as diversas linguagens como fundamentais para o pro-
cesso de alfabetização.

Marcuschi e Dionísio (2007) ressaltam que a presença do trabalho


com a oralidade, junto ao trabalho com a escrita, em sala de aula, não

42 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


deveria causar estranheza, ou seja, deveria ser algo natural. De acordo
com esses autores, “é necessário que se tenha uma ideia clara da com-
petência oral para partir dela no restante do trabalho com a língua. A
escola não vai ensinar a língua como tal, e sim usos da língua em con-
dições reais e não triviais da vida cotidiana” (MARCUSCHI; DIONÍSIO,
2007, p. 8).

Os mencionados autores perceberam a existência de uma distinção


entre as relações existentes entre fala e escrita, de um lado, e entre ora-
lidade e letramento, de outro. Segundo eles, fica claro que:
há relações que se estabelecem no âmbito da língua como tal e
ali se definem (relações entre fala e escrita). Mas existem rela-
ções que dependem de outros fatores e estão fora desse conjun-
to de aspectos como tal e atingem as práticas sociais e os valores
sociais (relação entre oralidade e letramento).
Portanto, voltando às duas expressões, podemos dizer que a
oralidade diz respeito a todas as atividades orais no dia a dia, e as
atividades de letramento dizem respeito aos mais variados usos
da escrita, inclusive por parte de quem é analfabeto. Mas toma 1
um ônibus, usa as cédulas de dinheiro, acha uma rua, telefona
Textos multimodais (ou
digitando o número e identifica os produtos em supermercados. multissemióticos) são aqueles
Letramento é uma expressão que hoje vem se especializando que recorrem a mais de uma
para apontar os mais variados modos de apropriação, domínio modalidade de linguagem.
e uso da escrita como prática social e não como uma simples Por exemplo: um clipe musical
forma de representação gráfica da língua. O letramento volta-se mistura áudio (modalidade so-
nora), imagens em movimento
para os usos e as práticas, e não especificamente para as formas,
(modalidade visual), linguagem
envolve inclusive todas as formas visuais, como fotos, gráficos, corporal/danças (modalidade
mapas e todo tipo de expressão visual e pictográfica, observável gestual) e, muitas vezes, escrita
1
em textos multimodais . (MARCUSCHI; DIONÍSIO, 2007, p. 35, (modalidade verbal).
grifos do original)

De maneira correlata, ao afirmar que escrita e fala se comple-


mentam, Kleiman (2005) também estabelece uma distinção. Segun-
2
do ela, não há oposição entre fala e escrita, pois são dois sistemas
2 Segundo Kleiman (2005), um
semióticos ou sistemas de signos que utilizam canais (auditivo e sistema semiótico é um sistema
visual) e modalidades de comunicação diferentes para criar signifi- de signos para a produção social
cados. O letramento, por sua vez, tem como contraparte a oralidade, de significados. Como exemplos,
a autora cita as linguagens
e ambos se referem aos usos da linguagem. verbais da propaganda, da
televisão e do cinema.
É importante que o professor saiba que entre oralidade e letramen-
to não há uma relação de oposição, mas sim de continuidade. Essa
afirmação é possível porque, segundo Kleiman (2005), a noção de le-
tramento abre espaço para uma nova maneira de conceber a relação

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 43


entre o oral e o escrito, como sendo um contínuo. Ainda de acordo o
autor, em um dos extremos do contínuo estão os gêneros orais que
envolvem mais intimidade, como a conversa informal, o bate-papo e a
fofoca. No outro extremo, estão os gêneros escritos mais complexos e
estruturados, como o artigo científico e o romance.

Entre esses extremos, há inúmeros outros gêneros, situando-se


conforme se aproximam, escritos ou falados, do grau de maior ou me-
nor intimidade. Kleiman (2005) também traça uma seta (vertical) que
vai da informalidade à formalidade, criando um campo em que é possí-
vel situar os diferentes gêneros textuais. Observe:

Figura 1
Gêneros que se situam entre o oral e o escrito, entre o informal e o formal.

Oral Escrito

Informal

Bate-papo, fofoca Bilhete, carta pessoal


Caso, conversa fiada Diário
Biografia

Entrevista jornalística

Entrevista médica
Relato de vivências Notícia
Reclamação
Carta de reivindicação

Debate
Editorial, ensaio
Palestra
Carta ao leitor
Conferência
Relatório científico,
artigo científico, tese

Formal

Fonte: Adaptada de Kleiman, 2005, p. 46.

É papel da escola orientar o aprendiz a como se localizar nesse es-


pectro, desenvolvendo progressivamente habilidades para transitar
por ele e ganhando autonomia, tanto para selecionar o tipo de lingua-
gem a ser utilizada em suas produções quanto para compreender os
diversos textos que lê/ouve. Para auxiliar o aluno no processo de apro-
priação dessas características dos gêneros orais e escritos, o professor

44 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


precisa acolher o repertório trazido e considerar as competências lin- Livro

guísticas de cada estudante. O Caderno de orientações:


parlendas, produzido pelo
Outro ponto importante é o professor ter ciência de que na fala exis- Ministério da Educação,
tem como objetivo auxi-
te o fenômeno da variação linguística, ou seja, o aluno pode apresentar liar docentes no desen-
diferentes modos de falar (dialetos). Isso significa que a escola e todos volvimento da oralidade
e leitura de alunos de
aqueles que a compõem precisam respeitar esses dialetos, despindo- 6 anos e, para isso, traz
-se de preconceitos – os quais podem levar a intervenções equivocadas. orientações de como tra-
balhar com parlendas.
Dessa forma, aprender a ler e a escrever inclui aprender a usar varieda-
São Paulo: Instituto Natura,
des linguísticas diferentes, sobretudo o dialeto-padrão. Além disso, no 2011.
que tange à cultura oral, é imprescindível que o alfabetizador privilegie
práticas como a contação de histórias, a recitação de textos poéticos
e a exploração de textos de tradição oral, principalmente aqueles de Glossário
base mnemônica, como parlendas, trava-línguas e lenga-lengas. O tra- mnemônica: de fácil
memorização.
balho com textos tradicionais favorece a valorização da cultura oral e
da diversidade cultural, assim como contribui para a preservação do
imaginário popular e para a transmissão intergeracional dessa cultura.

Para a aprendizagem inicial da escrita, os textos da tradição oral,


por sua essência lúdica e sonora, trazem grande contribuição ao serem
levados ao contexto escolar. Ao recitar de memória parlendas, adivi-
nhas e quadrinhas, por exemplo, identificando a existência de diferen-
tes versões, o aprendiz pode se dar conta de que pode brincar e fazer
experimentações com a linguagem, por meio de trocas, segmentações
silábicas, desafios, jogos de palavras, manipulação e substituição de ri- Glossário
mas, aliterações, paródias etc. aliteração: repetição de
Além de trazer benefícios ao letramento e à apropriação das carac- fonemas parecidos no início de
várias palavras no mesmo verso.
terísticas de cada um dos gêneros textuais, explorar esses textos em
sala de aula proporciona reflexões e sistematizações sobre a dimensão
fonológica das palavras, além de possibilitar a correlação com a dimen-
são gráfica, por meio de registros desses textos por escrito pelo profes-
sor ou da apresentação deles em um livro, por exemplo.

Essa correlação entre o que se diz e o que está escrito, em um pri-


meiro momento, pode se dar pelo que alguns autores chamam de
pseudoleitura, por meio da qual o aprendiz simula que está lendo, apro- Atividade 1
priando-se do comportamento leitor, por já saber de antemão o que De acordo com Marcuschi
está escrito. Desse modo, o aprendiz tem a oportunidade de ter con- e Dionisio (2007), quais
tato com as convenções da escrita, além de perceber que é possível são as relações existentes
entre fala e escrita? E entre
registrar por escrito o que se fala, estabelecendo gradativamente uma oralidade e letramento?
relação de correspondência grafofônica.

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 45


Assim, tem-se em linhas gerais a importância de a escola e o profes-
sor terem ciência desses processos e considerarem a diversidade das
práticas sociais baseadas na oralidade, possibilitando, assim, que os atos
de ler e escrever sejam cada vez mais significativos para os aprendizes.

3.2 Consciência fonológica e


Vídeo consciência fonêmica
Desde muito pequena, a criança presta atenção nos sons das pala-
vras que ouve e, muitas vezes, ainda no primeiro ano de vida, começa
a repeti-los. Nessa fase inicial, o foco da criança está nos sons das pala-
vras. Conforme ela vai crescendo, vai se dando conta de que esses sons
encadeados têm significados. Assim, vai deixando de focar nos sons
para focar nos significados das palavras. Esse novo foco geralmente é
tão intenso que é comum as crianças, na fase de alfabetização, terem
o pensamento de que precisamos de uma palavra grande para se re-
ferir a algo grande, e uma palavra pequena para designar algo peque-
no. Nesse raciocínio, chamado realismo nominal, a criança pensa, por
exemplo, ao ver as palavras boi e pernilongo, que o animal maior (boi)
seria representado pela palavra maior (pernilongo).
Vídeo
Na fase de alfabetização, é necessário fazer com que a atenção da
No vídeo A oralidade a favor
da alfabetização, publicado criança se volte para o som das palavras, levando-a a compreender o
pelo canal Revista Educação, fato de que as palavras não têm apenas a função de comunicar, mas
Claudemir Belintane, profes-
sor da USP, explica como são também objetos de reflexão. É nesse momento que entra em jogo
elementos da tradição oral a consciência fonológica. Mas antes de nos aprofundarmos nesse con-
(adivinhas, jogos e trava-lín-
guas) podem ser trabalha- ceito, cabe tecer algumas considerações sobre os aspectos históricos
dos a favor do processo de da chegada dele ao Brasil e as controvérsias que o envolvem e que
alfabetização e letramento.
perduram até os dias atuais.
Disponível em: https://youtu.be/
xE0jVHJ7TI0. Acesso em: 26 dez. 2019. Para a apresentação de um breve apanhado histórico e do contexto
atual sobre a consciência fonológica, reproduzimos a seguir um trecho
de Morais (2019b):
Ainda nos anos 1980 (cf. MORAIS; LIMA, 1989), percebíamos que
as duas novas linhas teóricas que tratavam do aprendizado da es-
crita alfabética então difundidas – a psicogênese da escrita e os
estudos sobre consciência fonológica – não dialogavam entre si. E
avaliávamos que isso tinha a ver com as diferenças epistemológi-
cas subjacentes às duas perspectivas. Se Ferreiro e seu grupo in-
sistiam em tratar a escrita alfabética como um sistema notacional

46 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


e não como um código (cf. FERREIRO, 1985; TOLCHINSKY; TEBE-
ROSKY, 1992), o inverso ocorria – e, pensamos, continua ocor-
rendo – com a maioria dos estudiosos da consciência fonológica,
tanto no exterior como no Brasil.
[...]
Em todos os países, a maioria dos estudos da consciência fo-
nológica diz, frequentemente, que para se alfabetizar a crian-
ça precisa compreender o princípio alfabético, o que, para eles,
significaria compreender que as letras substituem fonemas. Por
trás dessa formulação aparentemente simples – e que para
muitos não deveria suscitar controvérsias – encontra-se sub-
jacente uma concepção associacionista de aprendizagem que
revela duas limitações: simplifica a análise do complexo traba-
lho conceitual construído/vivenciado pelo aprendiz e adota uma
visão adultocêntrica sobre como a criança aprende o alfabeto.
(MORAIS, 2019b, p. 15, grifos do original)

Apesar da aparente incompatibilidade entre os estudos da psico-


gênese da língua escrita e os estudos sobre a consciência fonológica,
Ferreiro (2014) constatou haver uma relação entre os níveis de escrita
das crianças e a consciência fonológica, ainda que esta possa não ser
válida/útil para todas as crianças, pois pode beneficiar apenas aquelas
que já se encontram em determinados níveis (a partir do silábico-al-
fabético), uma vez que, segundo a autora, as crianças que estão em
níveis anteriores nem sempre conseguem compreender informações
sobre fonemas. Ao concluir sua pesquisa, Ferreiro (2014) afirma que
a consciência fonológica é um dos aspectos a serem considerados no
processo de alfabetização, pois os sistemas de escrita são complexos.
Entretanto, ela faz a ressalva de que a alfabetização não pode se redu-
zir à aprendizagem de um código – que é o que Ferreiro considera ser
a consciência fonológica –, pois isso limitaria a escrita alfabética a mera
maneira visual de reproduzir fonemas.

Indo ao encontro das conclusões citadas no parágrafo anterior,


Morais e Leite (2005) assumem uma série de pressupostos defendidos
pela teoria da psicogênese da escrita – por exemplo, que as crianças
constroem hipóteses sobre como a escrita nota (representa) a fala
e que o aprendizado do sistema de escrita alfabética não se limita à
identificação de fonemas e à memorização de letras. Ao mesmo tem-
po, os autores defendem que o professor precisa superar eventuais
preconceitos e assumir que, para avançar em suas hipóteses sobre a
escrita, os aprendizes precisam refletir sobre os sons que compõem

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 47


as palavras. Assim, os autores defendem a consciência fonológica no
processo de alfabetização, por meio do qual o ensino deve promover,
sistematicamente, a reflexão sobre a dimensão sonora das palavras,
ajudando o aprendiz a desvendar as propriedades da escrita alfabética
enquanto invenção cultural.

Morais (2019b) ressalta, todavia, que a defesa da consciência fono-


lógica na alfabetização não deve ser confundida com a defesa do méto-
do fônico, no qual, segundo o autor, uma vez capaz de isolar fonemas,
o aprendiz acumularia informações sobre os grafemas corresponden-
tes que receberia em aulas transmissivas. Ao contrário, Morais (2019b)
evidencia seu entendimento de que as crianças precisam dar conta de
várias outras propriedades do sistema de escrita alfabética, algumas
bem antes de entender que as letras representam pequenos sons no
interior das sílabas.
Livro
A compatibilidade que Morais (2019b) enxerga entre a psicogênese
da língua escrita e a consciência fonológica é a seguinte: o aprendiz
que desenvolve habilidades de analisar as palavras da língua faz uso de
tais habilidades ao elaborar hipóteses sobre a escrita enquanto siste-
ma simbólico. Retomando estudos que havia feito em anos anteriores,
Morais lança a pergunta: como o aprendiz poderia entender a lógica
subjacente aos símbolos de uma escrita alfabética se não pudesse re-
fletir sobre as palavras, sendo que estas, além de veicular significados,

As 10 propriedades do
têm uma dimensão sonora? (MORAIS; LIMA, 1988 apud MORAIS, 2019b).
sistema de escrita podem
Além disso, Morais (2019b, p. 64) deixa claro que é possível articular
ser consultadas na página
51 do livro Sistema de es- a questão da consciência fonológica com a questão do letramento.
crita alfabética.
Se não temos preconceito em trabalhar com todas e quaisquer pa-
MORAIS, A. G. São Paulo: Melhora-
lavras que interessem às crianças, em suas formas orais e escritas,
mentos, 2012.
temos muito claro que nosso propósito é alfabetizar letrando. Sim, os
textos precisam estar nas salas desde o começo da educação infantil.
E quais gêneros textuais? Assim como as palavras, todos os
gêneros textuais que possam interessar às crianças.
Se tratarmos a escrita alfabética como um objeto de conhe-
cimento em si, que exige um ensino sistemático [...], defen-
demos que, atualmente, é obrigatório reconhecermos que os
conceitos de alfabetização e de criança alfabetizada exigem
o domínio das competências de ler/compreender e produzir
textos (MORAIS; LEITE, 2012). Assim, propomos que, de segun-
da a sexta-feira, a escola permita às crianças viver práticas de
leitura e produção de gêneros textuais diversificados (e que

48 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


no último ano da educação infantil e no ciclo de alfabetização
assegure também momentos diários de reflexão sobre a nota-
ção alfabética). (MORAIS, 2019b, p. 64, grifos do original)

Feitas essas longas, porém necessárias, explicações iniciais, é fun-


damental conceituarmos o que é a consciência fonológica. De maneira
breve, a consciência fonológica pode ser definida como a capacidade de
refletir sobre os segmentos sonoros das palavras. Trata-se, portanto
de uma atitude metalinguística, ou seja, que toma a linguagem como
objeto de reflexão.

No quadro a seguir, observe como a BNCC, quando se refere à alfa-


betização, expõe as habilidades relacionadas à consciência fonológica.

Quadro 1
Exemplos de habilidades relativas à consciência fonológica na BNCC

Habilidades
Práticas de linguagem Objetos de conhecimento
1º ano

(EF01LP05) Reconhecer o sistema de escri-


Construção do sistema alfabético ta alfabética como representação dos sons
da fala.
(EF01LP06) Segmentar oralmente palavras
Construção do sistema alfabéti- em sílabas.
co e da ortografia (EF01LP07) Identificar fonemas e sua repre-
Análise linguística/semió-
sentação por letras.
tica (Alfabetização)
(EF01LP08) Relacionar elementos sonoros
(sílabas, fonemas, partes de palavras) com
Construção do sistema alfabéti- sua representação escrita.
co e da ortografia (EF01LP09) Comparar palavras, identifican-
do semelhanças e diferenças entre sons de
sílabas iniciais.

Fonte: BNCC, 2017, p. 98-101.

Ao lermos tais habilidades, percebemos que não há o uso expresso


da expressão consciência fonológica, mas é isso que o texto aborda ao
se referir aos sons da fala e à segmentação oral em sílabas. Morais
(2019a) chama a atenção para o fato de que a consciência fonológica é
um conjunto de habilidades variadas. Essas variações, segundo o autor,
dizem respeito “à operação mental que o aprendiz realiza: pronunciar
um a um os segmentos que compõem a palavra, contar, identificar ou
produzir ‘partes sonoras’ parecidas, adicionar ou subtrair segmentos
sonoros” (MORAIS, 2019a).

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 49


As habilidades podem variar também quanto ao tamanho do seg-
mento sonoro, que pode ser uma rima (comparar a terminação das pa-
lavras, por exemplo, chão e coração), uma sílaba (identificar as sílabas
que se repetem, por exemplo, em pato e tomate) ou um fonema (por
exemplo, perguntar se sapo se escreve com s ou ç), e quanto à posição
do segmento (inicial, medial, final).
Atividade 2 Uma das dimensões da consciência fonológica é a percepção do
O que é consciência fonológica? aprendiz de que a palavra pode ser segmentada em “pedaços” meno-
res, isto é, a criança deve perceber que é possível repartir a palavra pete-
ca em pe-te-ca. Nesse momento, quando o foco se volta para as sílabas,
pode-se dizer que o aprendiz desenvolveu a consciência silábica.

Uma vez desenvolvida a consciência silábica, o aprendiz consegui-


rá chegar ao fonema, desenvolvendo, assim, a consciência fonêmica
– ou seja, a capacidade de refletir sobre o fonema, que é a unidade
mínima da estrutura fonológica. Soares (2017, p. 194), porém, ressalta
que os fonemas são representações abstratas e segmentos não pro-
nunciáveis, por isso a consciência fonêmica raramente acontece de
maneira espontânea.

Para desenvolver a consciência fonêmica, então, o aprendiz precisa


confrontar sílabas em que apenas um fonema se altera, pois só se chega
ao fonema pela comparação e pela oposição. Quando a criança confron-
ta, na oralidade e na escrita, por exemplo, as palavras da Figura 3, ela
tem possibilidade de identificar que as letras c, b e m representam fone-
mas diferentes, pois pode constatar a alteração de sentido da palavra ao
se alterar o fonema inicial.

Figura 3
Exemplo de confronto entre palavras para a percepção de fonemas

COLA

BOLA

MOLA
Fonte: Elaborada pela autora.

A impossibilidade de se pronunciar um fonema isolado, por ge-


rar a sobreposição e a coarticulação de fonemas, é uma das críticas

50 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


que os autores adeptos da psicogênese da língua escrita fazem aos
métodos fônicos, que pregam justamente o ensino sistemático de
fonemas isolados. Mas, então, por que o conceito de consciência fo-
nêmica é importante?

Com base em estudos realizados com crianças brasileiras, Morais Livro


(2019b) afirma que, em um momento inicial, para desenvolver a hipó-
tese silábica, a consciência silábica é necessária, ou seja, os aprendi-
zes precisam saber segmentar as palavras em sílabas orais, contá-las e
observar os sons que compõem aquelas sílabas, buscando letras que
poderiam representá-los. Já em um momento posterior, para desenvol-
ver a hipótese alfabética, o aprendiz precisa desenvolver a consciência
fonêmica, para, assim, conseguir voltar sua atenção para os fonemas
que compõem as sílabas orais das palavras, aprendendo os valores so-
O livro Consciência fonológi-
noros convencionais das letras.
ca na educação infantil e no
ciclo de alfabetização, por
Por fim, é importante ressaltar que, segundo a concepção da escri-
meio de uma proposta di-
ta alfabética como um sistema notacional (e não um código), a cons- dática de orientação cons-
trutivista, aborda diversas
ciência fonológica não é suficiente para uma criança se alfabetizar. O questões sobre consciên-
professor precisa também fazer intervenções no sentido de ajudar o cia fonológica e consciên-
cia fonêmica, além de
aprendiz a compreender o que a escrita nota e como ela produz essas abordar outros temas im-
notações. Aliado a esse trabalho docente sistemático, Morais (2019b) portantes no processo de
alfabetização.
assevera que a exploração de parlendas, trava-línguas, quadrinhas e
MORAIS, A. G. Belo Horizonte:
outros textos da tradição oral, que tenham rimas e sílabas repetidas, Autêntica, 2019.
auxilia no desenvolvimento da consciência fonológica. O autor adverte,
porém, que não se trata de treinar a consciência fonológica artificial-
mente, e sim permitir que os aprendizes brinquem com as palavras.

3.3 Apropriação da ortografia


Vídeo Para o aprendiz, enquanto sujeito cognoscente piagetiano, a aquisi-
ção da escrita alfabética significa uma fonte de desafio e conflito, uma
vez que, para aprender, ele precisa transformar os esquemas de que
dispunha até então ou criar outros esquemas. Não se trata, portan-
to, de um simples processo em que o aprendiz acumula informações
prontas que recebe do exterior.

Para a psicogênese da língua escrita, há cinco níveis de aprendiza-


gem da escrita, iniciando pela hipótese pré-silábica, passando pelas

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 51


hipóteses silábica e silábico-alfabética, até chegar na fase alfabética.
A ortografia, portanto, não figura como uma etapa independente na
teoria desenvolvida por Ferreiro e Teberosky (1999), ainda que as au-
toras reconheçam que é a partir do nível final de evolução da com-
preensão da escrita que a criança vai se defrontar com as dificuldades
próprias da ortografia.

Então, o professor alfabetizador certamente, em algum momento,


depara-se com questões como: quando começar o ensino da ortogra-
fia? Que intervenções devo fazer para ajudar meu aluno a aprender a
forma correta de grafar as palavras? Responderemos a essas pergun-
tas ao longo desta seção, mas, em primeiro lugar, é importante que o
professor tenha conhecimento da organização do nosso sistema grá-
fico, para compreender as dificuldades ortográficas dos aprendizes e
ajudá-los a superar tais adversidades.
Curiosidade
De acordo com Faraco (2015), a língua portuguesa tem uma repre-
Há línguas, como a chinesa, sentação gráfica alfabética com memória etimológica. Mas o que isso
em que as unidades gráficas
(Han) representam palavras, significa? O referido autor explica essa questão por partes:
e a japonesa, em que as Dizer que a representação gráfica é alfabética significa dizer que
unidades gráficas (kanji) as unidades gráficas (letras) representam basicamente unidades
representam sílabas.
sonoras (consoantes e vogais) [...] O princípio da memória etimo-
lógica significa dizer que ele [o sistema gráfico] toma como cri-
tério para fixar a forma gráfica de certas palavras não apenas as
unidades sonoras que a compõem, mas também suas origens.
(FARACO, 2015, p. 9)

A questão da memória etimológica faz com que, por exemplo, a pa-


4 4
lavra pajé seja escrita com j e não com g, por sua origem tupi , e a
Pajé, do tupi paîé, que signifi-
ca adivinho. palavra homem seja escrita com h, porque vem do latim homo. Esse
princípio faz com que as relações entre as unidades sonoras e as
letras não sejam 100% regulares, sendo a fonte da maioria das di-
ficuldades ortográficas, não apenas para os aprendizes em fase de
alfabetização, mas também para os já alfabetizados. Quem nunca he-
sitou ao escrever a palavra exceção? Não nos resta alternativa senão
decorar a grafia de certas palavras e, em caso de esquecimento ou
dúvida, recorrer ao dicionário.

Por essa razão, o professor precisa, em algum momento, infor-


mar o aluno que está em processo de aquisição da ortografia de
que, apesar de a maior parte das relações entre unidade sonora e

52 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


5 5
letra serem regulares (e, portanto, previsíveis), há uma gama de
Por meio das relações regu-
situações irregulares (e, portanto, imprevisíveis e arbitrárias). Nes- lares, sabemos, por exemplo,
ses casos, a apropriação vai se dar por memorização, seja pelo uso que a palavra passeio é gra-
recorrente ou pela consulta ao dicionário. fada com ss porque queremos
obter o som /s/, que está
Faraco (2015, p. 11) destaca, ainda, uma característica importante entre duas vogais, portanto o
s precisa ser duplicado.
do sistema gráfico, que é a sua relativa neutralidade em relação à pro-
núncia. Ou seja, ainda que haja muitas formas de pronunciar uma pala-
vra, em razão da variedade da língua que se fala, há uma única maneira
de grafá-la. Isso permite uma base segura de comunicação entre falan-
tes de variedades diferentes (por exemplo, uma pessoa do Amazonas
e outra do Rio Grande do Sul conseguem se entender tranquilamente).
Caso não houvesse tal uniformidade, a grafia perderia sua utilidade.

O fato de haver situações arbitrárias, entretanto, não significa que


o professor deva introduzir uma pronúncia artificial em sala de aula
só para que os alunos sigam a pronúncia da grafia. Segundo Faraco
(2015, p. 12), qualquer ação no sentido de corrigir uma pronúncia ou de
adotar uma pronúncia artificial “será enganosa, porque estaremos es-
condendo do aluno a estratégia correta para lidar com representações
arbitrárias, dificultando-lhe o domínio da grafia”.

Adepto de um ensino construtivista da língua escrita, Morais (2009),


ao abordar a maneira como as crianças aprendem a norma ortográfica,
afirma que:
não é um processo passivo, não é um simples armazenamento
de formas corretas na memória. Ainda que a norma ortográ-
fica seja uma convenção social [...], o sujeito que aprende, a
processa ativamente.
Erros infantis são uma boa demonstração disso. Quando um
aluno erra – porque cria certas regularizações, escrevendo, por
exemplo, “mininu” no lugar de “menino” –, está revelando que
elabora suas próprias representações sobre a escrita das pala-
vras, que não é um mero repetidor das formas escritas que vê ao
seu redor. (MORAIS, 2009, p. 45)

Morais defende que o professor precisa, portanto, analisar o nível


de conhecimentos que o aluno elaborou internamente sobre a escrita
ortográfica. Para o autor, o aprendiz reelabora em sua mente as infor-
mações sobre a escrita correta das palavras. Esse processo de reelabo-
ração (das restrições da norma), em níveis mais sofisticados, levaria o
aprendiz a ser cada vez mais capaz de escrever corretamente, já que

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 53


seus conhecimentos sobre regularidades e irregularidades se tornam
cada vez mais explícitos e conscientes (MORAIS, 2009). Além disso, o
avanço da escolaridade, em decorrência do tempo de contato com a
escrita, em geral, causa uma melhoria na capacidade de seguir as nor-
mas ortográficas. Ainda segundo o autor, o convívio do estudante com
a escrita impressa, seja em ambiente escolar ou familiar, assim como
as características das correspondências entre letras e sons (regularida-
de e irregularidade), e a frequência de uso das palavras também geram
grandes influências sobre o rendimento ortográfico.

Por meio dessas ponderações, fica clara a importância do letra-


mento para a apropriação das normas ortográficas. Morais (2009) faz
diversas ressalvas em relação às práticas tradicionais vigentes, como
o ditado, a cópia, os exercícios de treino e a recitação de regras. Para
ele, intervenções dessa natureza são conduzidas apenas com o intui-
to de verificar se o aprendiz está escrevendo corretamente ou não,
em vez de levá-lo à reflexão, e “levam o aluno a assumir ante a orto-
grafia uma atitude mecânica, passiva, de quem aprende repetindo,
imitando um modelo certo, de modo que ele pode chegar a cumprir
as exigências do professor (e acertar!) sem ter deduzido ou inferido
nada” (MORAIS, 2009, p. 65).

Não se trata, porém, de simplesmente abolir atividades desse tipo


– até porque, muitas vezes, o professor pode aplicar um ditado para
fazer uma avaliação diagnóstica –, e sim repensá-las e revisar seus ob-
jetivos, ou seja, onde se quer chegar com elas. O professor precisa per-
mitir que a criança escreva como sabe, pois, somente assim, ela poderá
formular hipóteses com base em seus conhecimentos prévios, bem
como rever tais hipóteses quando chegar o momento.

É bom ressaltar que não se trata de promover a produção de textos


espontâneos sem a preocupação com questões ortográficas, pois isso
levaria a um espontaneísmo, que, em última instância, seria sonegar
preciosas informações aos aprendizes. Afinal, se o aluno pergunta se
cabeça se escreve com ss ou ç, ele já demonstra que está refletindo
sobre as relações irregulares, e não há por que o professor deixar de
responder a tal inquietação.

Uma vez que a ortografia é uma norma que foi arbitrada social-
mente como correta, trata-se de um conhecimento estabelecido por
meio de convenções, normativo. Não há como o aprendiz descobrir as

54 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


normas ortográficas sozinho, pois são necessários modelos e situações
para ele possa refletir sistematicamente sobre características dessas
normas. Por isso, Morais (2009) elenca os seguintes princípios gerais
para auxiliar o aprendiz nessas reflexões:
1. É importante que a criança conviva com modelos em que a
norma ortográfica esteja presente; o convívio com materiais
impressos é necessário.
2. É preciso que o professor promova situações de ensino-aprendi-
zagem que façam a criança explicar seus conhecimentos sobre
a ortografia. A melhor maneira de fazer isso, segundo Morais
(2009), é semear a dúvida, ou seja, o professor deve confrontar
os alunos em suas escritas, com perguntas como: “por que você
escreveu com ch e não com x?”.
3. É importante que o professor defina metas ou expectativas para
o rendimento ortográfico dos estudantes.

Esse último item leva a uma questão crucial: quando começar o en-
sino da ortografia? Para Morais (2009), o ensino sistemático é cabível
quando as crianças já compreendem o sistema de escrita alfabética.
Entretanto, é importante frisar que esse autor entende que a curiosida-
de sobre questões ortográficas deve ser estimulada e transformada em
objeto de discussão desde a educação infantil, sempre que os aprendi-
zes atentarem para as “complexidades” da escrita alfabética.

A fim de desencadear a reflexão ortográfica, Morais (2009) pro-


põe algumas atividades que se enquadrariam no mencionado ensi-
no sistemático:
•• Ditado interativo: nele, busca-se ensinar a ortografia refletin-
do sobre o que se está escrevendo. Para isso, o professor dita à
turma um texto já conhecido, fazendo pausas e convidando os
alunos a focalizar e a discutir determinadas questões ortográficas
previamente selecionadas ou levantadas durante a atividade.
•• Releitura com focalização: durante a releitura de um texto já
conhecido, o professor faz interrupções para debater certas pala-
vras, lançando questões em relação à grafia delas.
•• Reescrita com transgressão ou correção: essa proposta deve ser
feita com gibis do personagem Chico Bento, de Mauricio de Sousa.
Após a leitura de algumas histórias e a consequente familiarização
com os personagens, o professor apresenta uma tira previamen-
te selecionada e pede aos alunos que identifiquem o que há de
errado na escrita da história. Assim, o professor pode também

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 55


promover uma discussão sobre como as pessoas de diferentes
regiões ou grupos sociais falam de maneiras distintas (incentivan-
do o respeito às variações) e sobre o cuidado que precisamos ter
ao escrever, uma vez que não escrevemos como falamos. É pos-
sível propor a reescrita da história, porém contando-a sem o uso
de diálogos. Dessa forma, é esperado que os alunos percebam
que não há nada que justifique a manutenção, na escrita, dos
traços da pronúncia dos personagens.

Morais (2009) também propõe que o professor faça um registro


escrito das regularidades que as crianças descobrem. Segundo ele,
esse registro potencializa a tomada de consciência das descobertas
que as crianças vão fazendo sobre as regras que as levam a ter se-
gurança quando escrevem certas correspondências letra-som. Isso
Atividade 3
permite que os aprendizes revisitem essas regras para estendê-las a
No que consiste o ensino e a outros casos similares. Porém, é importante que esses registros (qua-
aprendizagem da ortografia sob
a perspectiva construtivista? dros, cartazes etc.) sejam construídos coletivamente, e não dados
prontos pelo professor.

Diante de todo o exposto nesta seção, podemos dizer que a apren-


dizagem da ortografia se estende por todo o ensino fundamental, ou
melhor, por toda a educação básica. Cabe ao professor compreender
como funciona esse processo para poder conduzir o aluno de maneira
mais eficaz, obtendo bons resultados.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
São incontáveis os conhecimentos linguísticos úteis ao professor na
árdua, porém gratificante, tarefa de alfabetizar. Procuramos selecionar
aqueles que julgamos essenciais para uma intervenção consciente, uma
vez que, compreendendo os processos e entendendo a realidade linguís-
tica da criança, o professor tem condições de ajustar o prumo de sua prá-
tica. Ressaltamos que o intuito deste capítulo não foi esgotar o assunto,
mas, quem sabe, instigar o leitor a ampliar seu olhar.

56 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


REFERÊNCIAS
BARBOSA, M. C. S. et al. A infância no ensino fundamental de 9 anos. Porto Alegre:
Penso, 2012.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da
Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_
EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 26 out. 2019.
CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. 10. ed. São Paulo: Scipione, 2007. (Coleção
Pensamento e ação no magistério).
FARACO, C. A. Escrita e alfabetização. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2015. (Repensando a
Língua Portuguesa).
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FERREIRO, E. O ingresso na escrita e na cultura do escrito: seleção de textos de pesquisa. São
Paulo: Cortez, 2014.
KLEIMAN, A. B. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? Campinas:
Cefiel/IEL/Unicamp, 2005.
MARCUSCHI, L. A.; DIONÍSIO, A. P. Fala e escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
MORAIS, A. G. Consciência fonológica na alfabetização. In: Glossário Ceale: termos de
alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG, 2019a. Disponível
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MORAIS, A. G. Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização. Belo
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MORAIS, A. G. Ortografia: ensinar e aprender. 5. ed. São Paulo: Ática, 2009.
MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
MORAIS, A. G.; LEITE, T. M. R. Como promover o desenvolvimento das habilidades de
reflexão fonológica dos alfabetizandos? In: MORAIS, A. G.; ALBUQUERQUE, E. B. C.; LEAL,
T. F. (Org.). Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.
ROJO, R. As relações entre fala e escrita: mitos e perspectivas. Belo Horizonte: Ceale, 2006.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2017.

GABARITO
1. Segundo Marcuschi e Dionisio (2007), as relações entre fala e escrita se estabelecem
no âmbito da língua, já as relações entre oralidade e letramento dependem de outros
fatores, que estão fora da língua em si e atingem as práticas e os valores sociais. Por-
tanto, a oralidade está presente em todas as atividades orais diárias, e as atividades
de letramento abordam os usos variados da escrita, inclusive por quem é analfabeto.

2. É a capacidade de refletir sobre os segmentos sonoros das palavras, sendo, portanto,


uma atitude metalinguística, ou seja, que toma a linguagem como objeto de reflexão.

3. Para um ensino de base construtivista, aprender ortografia não é um processo pas-


sivo, não basta apenas armazenar formas corretas na memória. Assim, para quem é
adepto dessa concepção, o “erro” de um aluno pode revelar as representações sobre
a escrita que ele possui.

Conhecimentos linguísticos necessários ao alfabetizador 57


4
A prática alfabetizadora
na atualidade
Neste capítulo, abordaremos algumas situações que considera-
mos essenciais à aprendizagem inicial da língua escrita e que costu-
mam gerar algum tipo de insegurança ou dúvida no cotidiano de sala
de aula, buscando responder às seguintes questões:
• Vale a pena trabalhar com o nome próprio da criança?
Quando e de que maneira isso pode ser feito?
• Como o professor pode usar o ambiente de sala de aula a
seu favor na alfabetização? O que esse local deve conter?
• Qual é o melhor tipo de letra para iniciar o processo de
alfabetização? Quando começar a usar letra cursiva?
• Como organizar os alunos de maneira que garanta e otimi-
ze a aprendizagem de todos?
• Como tornar o processo de alfabetização mais lúdico e sig-
nificativo para os alunos?
• Como o professor pode se organizar e dar conta de todo o
trabalho que precisa ser feito, e chegar ao fim do ano com
a sensação de dever cumprido?
Não escondemos, portanto, o caráter utilitário deste capítulo, ao
mesmo tempo que não pretendemos dar receitas prontas, e sim
apontar alguns caminhos que, além de já terem sido testados e re-
testados na prática alfabetizadora, são corroborados por diversos
teóricos da educação e da aprendizagem inicial da língua escrita.

4.1 Questões práticas da alfabetização


Vídeo Nesta seção, abordaremos algumas questões com as quais o alfabe-
tizador pode se deparar em seu dia a dia, a fim de auxiliá-lo a refletir e
chegar a conclusões aplicáveis à sua realidade local. O intuito não é es-
gotar o assunto, e sim procurar um viés prático diante de tantas teorias
pedagógicas que constantemente buscam se reinventar.
58 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação
4.1.1 Nome próprio
Uma das primeiras palavras – senão a primeira – que a criança
aprende a ler e a escrever é o próprio nome. Trata-se de um aspecto
que contribui para a construção da subjetividade e da identidade da
criança, que geralmente mantém uma relação de afetividade com o
próprio nome.

Além de ser mais do que uma palavra com a qual a criança desde
cedo desenvolve familiaridade e que envolve aspectos socioemo-
cionais, o nome próprio tem função social: identificar as pessoas e
torná-las seres em particular. Por mais que possa haver mais de um
aluno com o mesmo nome na classe, sendo necessário identificá-los
pelo sobrenome, o nome é algo que faz parte da constituição de
cada um como indivíduo. Podemos observar, na Figura 1, como uma
criança de 4 anos e 7 meses identifica todos os seus pertences com a
escrita do próprio nome, mesmo sem saber o traçado convencional
de algumas letras.

Figura 1
Escrita de nome próprio

Luciane Rolim de Moura Vilain

Teberosky (1993, p. 35) lista os seguintes motivos que nos levam a


compreender a importância de se trabalhar com o nome próprio no
processo de aprendizagem inicial da linguagem escrita:
•• Tanto do ponto de vista linguístico como gráfico, o nome próprio
de cada criança é um modelo estável.
•• O nome próprio é um nome que se refere a um único objeto, com
o que se elimina, para a criança, a ambiguidade na interpretação.
•• O nome próprio tem valor de verdade porque se refere a uma exis-
tência, a um saber compartilhado pelo emissor e pelo receptor.
•• Do ponto de vista da função, fica claro que marcar, identificar
objetos ou indivíduos faz parte dos intercâmbios sociais da
nossa cultura.
•• Do ponto de vista da estrutura daquilo que está escrito, a pauta
linguística e o referente coincidem, e esta coincidência facilita a

A prática alfabetizadora na atualidade 59


passagem de um símbolo qualquer para um objeto qualquer em
direção à atribuição de um símbolo determinado para indivíduos
que não são membros indeterminados de uma classe, mas seres
singulares e concretos.
Vídeo
Ainda de acordo com a autora, o processo de construção do nome
O vídeo A conquista do
próprio é análogo ao de outras palavras. Contudo, ele é uma das pri-
nome próprio, publicado
pelo canal Nova Escola, meiras palavras que significa interpretação real, verdadeira e estável
mostra exemplos de ati-
de algo individual.
vidades para fazer com
o nome próprio dos alu-
Barros (2001), tomando por base as ideias de Teberosky, afirma que
nos, as atividades foram
desenvolvidas por uma a escrita de nomes próprios é uma oportunidade para trabalhar com
profe ssora alfabetizadora
modelos de escrita, o que, segundo Barros, é conveniente porque esse
em uma escola municipal
de educação infantil, no tipo de modelo oferece informações à criança sobre: a forma e o valor
município de São Paulo.
sonoro convencional das letras; a quantidade de letras necessária para
Disponível em: https://youtu. escrever os nomes; a variedade, a posição e a ordem das letras em uma
be/MfiEJ_Y22Bc. Acesso em: 30
dez. 2019. escrita convencional; a realidade convencional da escrita, que serve de
referência para checar as próprias hipóteses.

Desde a educação infantil, o professor pode aproveitar momentos


como o da chamada para proporcionar descobertas aos alunos. Duran-
te a chamada, os nomes podem, inicialmente, ser registrados em um
crachá com letras grandes e acompanhados das fotografias das crian-
ças, para que o reconhecimento se dê, em um primeiro momento, pela
imagem. Observe o exemplo presente na Figura 2 a seguir.

Figura 2
Exemplo de crachá para chamada na educação infantil

Rawpixel.com/Shutterstock

NICOLE
Com o passar do tempo, nos últimos anos da educação infantil,
a chamada pode ser feita somente com o nome e, com base nele,
o professor pode criar oportunidades para o aprendiz refletir sobre
quais e quantas letras compõem o nome da criança e em que ordem
elas se apresentam.

60 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


Gradativamente, o aprendiz vai compreendendo as propriedades
do sistema alfabético, podendo também estabelecer comparações en-
tre o próprio nome e os dos colegas, como, por exemplo:
•• que Maria e Mariana começam de forma semelhante, porém o
nome Mariana tem mais letras;
•• que entre Roberta e Roberto há apenas uma letra diferente;
•• que os nomes Marcos e Márcio se iniciam de maneira semelhante;
•• que Amanda e Fernanda terminam com a mesma sílaba.

Para isso, é interessante que a lista de nomes fique visível em um mu-


ral na sala de aula, com letras grandes e visíveis, fornecendo estabilidade
aos alunos. Quando os aprendizes compararem os nomes entre si e com
outras palavras, eles poderão confrontar suas hipóteses relacionadas a
novas palavras, que são desafiados a registrar por escrito ou a ler.

Assim, o nome Pedro, por exemplo, pode ser fonte de consulta para
escrever as palavras perigo e dromedário. Além disso, ao propor a es-
crita de determinada palavra, observando as dificuldades dos alunos,
o professor pode perguntar: “Alguém aqui na turma tem o nome que
começa com essa parte (esse pedacinho)?” e propor a observação da
lista de chamada.

Dessa forma, o nome próprio é um instrumento poderoso para o Atividade 1


processo de alfabetização, pois fornece ao aprendiz um modelo estável
Descreva o modo como o pro-
de escrita. Esse trabalho pode ser feito tanto individualmente, em que fessor pode trabalhar o nome
cada um explora o próprio nome e aprende a registrá-lo por escrito, próprio dos alunos no processo
de alfabetização.
quanto se estender para o reconhecimento e a exploração dos nomes
dos colegas e do professor.

4.1.2 Palavras estáveis


As palavras estáveis são aquelas que as crianças aprendem global-
mente, mesmo que ainda não dominem o sistema alfabético. Como es-
tudamos na subseção anterior, o nome próprio é uma palavra estável
e é comum que o aprendiz, a partir da fase silábica, comece a utilizar
letras de seu nome para escrever outras palavras.

De acordo com Coutinho (2005), o trabalho com palavras estáveis


pode favorecer o avanço dos alunos que se encontram na hipótese pré-
-silábica, objetivando o alcance da hipótese silábica. A adoção desse
trabalho, segundo essa autora, pode oferecer ao aprendiz a percepção

A prática alfabetizadora na atualidade 61


de que partes iguais têm grafia semelhante e que as letras ou sílabas
que ele vê no próprio nome podem estar presentes no nome de ou-
tros colegas. Além disso, Coutinho afirma que a exploração de textos
memorizados também pode auxiliar na alfabetização, já que, assim, as
crianças podem “ajustar a pauta sonora à pauta escrita” (COUTINHO,
2005, p. 54), percebendo que o texto decorado é o mesmo que está
escrito no papel.

Assim, podemos observar que optar pelo trabalho com palavras es-
táveis proporciona aos aprendizes:

a reflexão sobre partes menores


(sílabas e, posteriormente, fonemas)

a reflexão sobre
correspondências grafofônicas

a reflexão e a sistematização
de conhecimentos

a possibilidade de avançar em
suas hipóteses da escrita

Mas, afinal, em que consiste o trabalho com palavras estáveis? Tra-


ta-se de oferecer aos aprendizes um apoio visual para consulta, como
se fosse um banco de palavras. Isso não significa memorização mecâ-
1 nica, mas sim palavras que proporcionam reflexão e discussão entre o
1
Ambiente rico em textos grupo e que fazem parte de um ambiente alfabetizador . Elas podem
significativos para os alunos, ser organizadas em listas e expostas em um mural na sala de aula ou
que proporcionem o contato em cartazes, que podem ser retomados e revisitados em diversos mo-
constante com a língua escrita.
mentos. Segundo Morais (2012, p. 136-137):
A estabilidade é consequência da exposição frequente e, sobre-
tudo, do ato de registrar, repetidamente, a mesma palavra, o que
nos leva a entender que outras palavras, na sala de aula, podem

62 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


se tornar estáveis para um aluno, além de seu próprio nome: os
nomes de colegas e da professora, o nome da escola, os nomes
de seus pais, as palavras afixadas em cartazes que permanecem
nas paredes da sala de aula, algumas palavras que são muito im-
portantes no interior de certos projetos didáticos e que, durante
muitas semanas, são lidas, relidas e reescritas nas atividades da
turma. A estabilidade e a capacidade de reprodução fiel dela de-
corrente dependem muito da prática de reescrita da palavra em
foco. A possibilidade de a criança consultar modelos (como os
crachás em que estão os nomes próprios ou cartazes nos quais
se registrou determinada palavra ou texto) é uma estratégia di-
dática importante para ajudá-la a se apropriar de determinada
palavra como estável.

Essas palavras podem partir de alguma situação vivenciada, de alguma


atividade ou projeto proposto. Uma cantiga ou uma parlenda que tenha
sido explorada, por exemplo, pode ser registrada em um cartaz e ficar ex-
posta na sala. As próprias crianças podem e devem sugerir palavras para
alimentar o banco e é aconselhável que este seja renovado periodicamen-
te, pois, com o tempo, acaba caindo em desuso ou ficando defasado.

4.1.3 Letra cursiva x letra de imprensa


O reconhecimento das letras é fator essencial no processo de
aquisição da língua escrita. Mas de qual formato de letra estamos
falando? Qual letra devemos apresentar na fase inicial de alfabetiza-
ção? Essa questão vem sendo muito debatida ao longo das últimas
décadas no Brasil.

Até meados da década de 1980, as crianças brasileiras (e as de di-


versos outros países) eram alfabetizadas em letra cursiva. Havia, em
geral, certa expectativa de quando elas iriam, finalmente, escrever com
a chamada “letra da 1ª série” (que equivale atualmente ao 2º ano, pois
naquela época a criança ingressava no ensino fundamental com 7 anos
de idade), com o uso ostensivo dos famosos cadernos de caligrafia.

Morais (2012) afirma que, com o advento da psicogênese da língua


escrita, nos anos 1980, os estudiosos passaram a defender o uso da
letra de imprensa maiúscula na etapa inicial de apropriação do sistema
de escrita, isso porque, de acordo com o autor, geralmente,
elas [as letras de imprensa maiúscula] são adequadas, em tal
etapa, porque têm um traçado mais simples (retas e curvas sem
“enlaces”), o que permite ao aprendiz concentrar sua atenção na

A prática alfabetizadora na atualidade 63


tarefa de refletir sobre quais e quantas letras ai pôr e em que
ordem vai dispô-las, ao escrever. [...]
Como letras de imprensa maiúscula ficam separadas umas das
outras, podem ser tratadas pela criança como unidades bem de-
limitadas. Ela vê onde começa e onde acaba cada letra. Ao enfo-
car unitariamente aquelas partes, observa melhor a identidade
de cada letra da palavra, a ordem em que as letras ocorrem,
quantas letras compõem a palavra, quais são iguais e quais são
diferentes [...]. (MORAIS, 2012, p. 142-143)

Se, por um lado, as letras de imprensa maiúscula são adequadas por


facilitarem a análise das palavras, por outro, Morais (2012) assevera que
é necessário preparar os aprendizes para ler e escrever todos os textos
e palavras a seu redor, o que inclui ler diferentes tipos de letra. Sabe-se,
por exemplo, que se a criança vai ler uma lista de compras ou um bilhete
escrito à mão, a letra registrada é geralmente do tipo cursiva.

Para o referido autor, portanto, os tipos de letras com as quais


as crianças convivem devem ser bastante diversificados, já desde a
educação infantil. E, em relação ao momento em que o aluno precisa
aprender a escrever com letra cursiva, o autor afirma que isso deve
ocorrer quando o aprendiz alcançar a hipótese alfabética, ocasião em
que precisa receber todo o apoio para escrever com esse tipo de letra,
de modo legível e veloz. Não é interessante, segundo o autor, que o
aluno chegue ao 3º ano escrevendo somente com letra de imprensa
maiúscula e sem legibilidade.

Atualmente, a pergunta “Com que tipo de letra escrever?” foi subs-


tituída por: “Em uma época em que os meios digitais são largamente
utilizados para escrever, vale a pena insistir na discussão sobre a escri-
ta à mão?”. No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por exemplo,
não se exige um tipo específico de letra, apenas que o texto produzi-
do seja legível. Há, de fato, uma tendência de que a tecnologia faça as
pessoas abandonarem gradativamente o lápis e o papel. Porém, como
dificilmente a letra cursiva será extinta, é necessário ao menos que o
indivíduo, em diversas situações da vida (e aqui nos referimos não só
ao período de alfabetização) saiba ler e produzir textos com esse tipo
de letra quando for requisitado para isso.

64 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


É necessário, portanto, que o professor verifique quais são as es-
pecificidades de seu grupo de alunos, a fim de que possa discernir o
momento oportuno de introduzir a escrita da letra cursiva, pois ela ain-
da tem lugar em nossa sociedade. Por outro lado, o educador deve ter
ciência das vantagens de se trabalhar com a letra de imprensa durante
o processo de alfabetização e, principalmente, de garantir aos alunos
o contato com a maior variedade possível de tipos de letras, nos mais
diversos contextos, desde sempre.

4.1.4 Agrupamentos produtivos


Em toda classe de alfabetização há alunos em níveis diferentes no
processo de aquisição do sistema alfabético. No início, em um mesmo
grupo há aprendizes que ainda não desenvolveram a consciência fono-
lógica e, portanto, estão na fase pré-silábica, enquanto outros já estão
na silábica ou silábica-alfabética. A grande questão é como o professor
pode fazer com que todos os alunos avancem em suas hipóteses, sem
privilegiar aqueles que dão respostas mais prontamente, ou se dedicar
exclusivamente a auxiliar aqueles que estão com mais dificuldade, es-
quecendo-se dos demais.

Em conformidade com o que temos estudado até o momento, agru-


par alunos é uma estratégia de ensino alinhada ao construtivismo e
ao sociointeracionismo, por promover a interação dos aprendizes com
o meio, com o professor e, principalmente, entre pares. Corroboran-
do com esse posicionamento, Curto, Morillo e Teixidó (2000) afirmam
que há a necessidade de o professor acompanhar o processo, e não
apenas o produto final do trabalho dos alunos. Dessa forma, a criança
consegue externar imediatamente o que pensou ao realizar a atividade
e no que está tendo dificuldade, e o professor consegue ajudá-la. Além
disso, para esses autores, a organização dos aprendizes em grupos é
uma condição essencial para que se tenha um trabalho construtivista
com a linguagem.

Para dar conta dessa difícil tarefa, é necessário que o professor te-
nha domínio das etapas de evolução da escrita previstas pela teoria
da psicogênese da língua escrita, além de conhecer as especificidades

A prática alfabetizadora na atualidade 65


de seus alunos, por meio de avaliações diagnósticas constantes.
Ciente dessas questões básicas, o alfabetizador torna-se apto a uti-
lizar os agrupamentos em sala de aula para favorecer o avanço dos
alunos em suas hipóteses, respeitando as suas diferenças e especi-
ficidades. O professor deve manter em mente que:
A heterogeneidade do grupo é uma constante na maioria das
salas de aula. Ao invés de lutar contra isso e tentar homogeneizar
(tarefa quase impossível, uma vez que os ritmos de aprendiza-
gem são individuais e dependem de muitas variáveis), o profes-
sor deve procurar fazer com que essas diferenças joguem a favor
do processo de aprendizagem. Estimulando o intercâmbio entre
os alunos, ele fará circular mais informações na sala de aula, mais
questionamentos, e, através dos diálogos que surgirem, poderá
conhecer as hipóteses de cada membro do grupo.[...].
O professor não deve agrupar sempre os alunos que estão no
mesmo estágio, mas também não deve separá-los o tempo todo.
Deve haver equilíbrio na formação de subgrupos, de modo que
os desafios (não necessariamente os mesmos) existam o tempo
todo para todos. (ROCHA, 1997, p. 45-47)

Assim, dependendo da intenção educativa, o professor pode pro-


mover o arranjo de alunos ao reunir crianças com hipóteses diferentes,
porém próximas, para que elas se ajudem mutuamente. Na Figura 3, é
possível notar dois exemplos de agrupamentos produtivos.

Figura 3
Situações de agrupamento produtivo

Situação 1

Aluna B com
Aluna A com
hipótese silábica
hipótese silábica
com valor sonoro
sem valor sonoro
convencional
convencional (ainda
(escreve utilizando
utiliza qualquer letra
letras que
ao pensar sobre o
correspondem
valor sonoro que é
ao valor sonoro
inato a cada símbolo)
convencional)

MonkeyBusinessImages/Shutterstock

Neste agrupamento, a aluna B pode ajudar a aluna A a compreender


que letras correspondem ao valor sonoro convencional.

66 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


Situação 2

Aluna B com
hipótese silábica
Aluna C com hipótese
com valor sonoro
silábica-alfabética
convencional
(ora representa a
(escreve utilizando
sílaba com o número
letras que
correto de letras, ora
correspondem
não)
ao valor sonoro
convencional)

MonkeyBusinessImages/Shutterstock

A aluna C , nesse contexto, pode ajudar a colega (aluna B) a compreender


que, para se escrever uma sílaba, são necessárias duas letras, por exemplo.

Fonte: Elaborada pela autora com base em Massucato; Mayrink, 2013.

Vale ressaltar que não se trata de deixar os alunos livres, para que
aprendam sozinhos, tampouco colocar sob os estudantes de hipótese
mais avançada a responsabilidade de fazer com que o colega, que se
encontra em uma hipótese anterior, avance. Trata-se de otimizar as
situações de sala de aula e promover a troca entre os alunos para que
aprendam de maneira colaborativa.

4.2 Ludicidade e significatividade


Vídeo na alfabetização
Muitas vezes, pelo desejo de ver seus alunos alfabetizados, os pro-
fessores e a escola se esquecem de que os indivíduos que se encontram
nessa fase são apenas crianças. É como se, no imaginário popular, ou no
senso comum, os aprendizes deixassem de ser crianças ao ingressarem
no ensino fundamental, em um passe de mágica. Entretanto, devemos
ter em mente que se trata de indivíduos em plena infância, se desenvol-
vendo, e que para eles, na maior parte do tempo, tudo ao redor é mais
atrativo do que ficar sentado aprendendo a ler e a escrever.

De acordo com Borba (2007, p. 43),


Existem inúmeras possibilidades de incorporar a ludicidade na
aprendizagem, mas para que uma atividade pedagógica seja lú-
dica é importante que permita a fruição, a decisão, a escolha, as

A prática alfabetizadora na atualidade 67


descobertas, as perguntas e as soluções por parte das crianças e
dos adolescentes, do contrário, será compreendida apenas como
mais um exercício. No processo de alfabetização, por exemplo,
os trava-línguas, jogos de rima, lotos com palavras, jogos da
memória, palavras cruzadas, língua do pê e outras línguas que
podem ser inventadas, entre outras atividades, constituem for-
mas interessantes de aprender brincando ou de brincar apren-
dendo. Quantos de nós lembramos das muitas descobertas que
fizemos por meio de jogos e atividades lúdicas?
Se incorporarmos de forma mais efetiva a ludicidade nas nossas
práticas, estaremos potencializando as possibilidades de apren-
der e o investimento e o prazer das crianças e dos adolescentes
no processo de conhecer. E, com certeza, descobriremos tam-
bém novas formas de ensinar e de aprender com as crianças e
os adolescentes.

Um ponto citado por Borba que chama a atenção é que os textos


da tradição oral, de natureza lúdica, são especialmente importantes
para que a aprendizagem da língua escrita seja significativa para as
crianças. Araújo (2011) confirma tal posicionamento, ressaltando o
potencial do trabalho com textos da tradição oral que envolvem jogo
de linguagem e interação – cujos objetivos podem ser brincar, contar,
cantar, desafiar, rir –, uma vez que a ludicidade é intrínseca a esses
textos.

O termo significatividade, usado no título desta seção, com o ter-


mo ludicidade, remete ao conceito de aprendizagem significativa do
estadunidense David Ausubel (1918-2008), especialista em Psicologia
Educacional. Em suas obras, o teórico enfatiza a importância de se
estimular o pensamento reflexivo, possibilitando que o indivíduo re-
lacione os novos saberes aos seus conhecimentos prévios. Nesse sen-
tido, o aprendiz, motivado por uma situação que faça sentido a ele,
avalia e amplia os conhecimentos que já possui, transformando-os
em conhecimentos novos.
Atividade 2
Ausubel também evidenciou a pertinência de o professor, além de
De que forma o professor
promover situações significativas, selecionar materiais que incentivem
pode tornar a aprendizagem
inicial da escrita mais signifi- o aprendiz a se apropriar do novo conhecimento apresentado.
cativa e lúdica?
Assim como as brincadeiras de tradição oral, mencionadas anterior-
mente, outra maneira de concretizar o propósito de aliar significativi-
dade e ludicidade à aprendizagem, sobretudo no que diz respeito à
aprendizagem inicial da língua escrita, é levar jogos de alfabetização

68 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


para a sala de aula, pois eles permitem ao professor dispor do lúdico
para auxiliá-lo no processo de ensino e aprendizagem das crianças.

Brandão et al. (2009) acreditam que os jogos podem promover re- Vídeo
O vídeo Professoras usam
flexão sobre o sistema de escrita. Aprender brincando proporciona às
cantigas para ajudar na
crianças consolidar o que já aprenderam sobre o sistema alfabético, bem alfabetização de alunos,
publicado pelo canal Se-
como a aquisição de novos saberes, principalmente por meio da troca
cretaria da Educação,
entre pares. Entretanto, essas autoras salientam que é importante que apresenta a experiência
de educadoras do mu-
o professor saiba que nem tudo se aprende e consolida no jogo, sendo
nicípio de São Paulo ao
necessárias situações para sistematização da aprendizagem. Vale ressal- trabalharem com cantigas
e envolverem as famílias
tar, portanto, que não basta o professor colocar os alunos para jogar
pedindo que fizessem a
achando que, na interação e na brincadeira, os alunos resolverão todas leitura para as crianças.
Esse caso mostra como
as suas dúvidas e avançarão no processo de alfabetização. Ao contrário,
o envolvimento das crian-
ainda de acordo com Brandão et al. (2009), mesmo que os aprendizes ças e a participação dos
pais contribuem para as
assumam um papel bastante ativo nesse processo, o professor continua
crianças avançarem em
sendo um mediador das aprendizagens e “precisa, intencionalmente, sele- suas hipóteses.

cionar os recursos didáticos em função dos seus objetivos, avaliar se esses Disponível em: https://youtu.be/
recursos estão sendo suficientes e planejar ações sistemáticas para que os Y7ecomYtHEA. Acesso em: 07
jan. 2020.
alunos possam aprender de fato” (BRANDÃO et al., 2009, p. 14).

É importante lembrar que não estamos falando aqui apenas de jo-


gos tradicionais e analógicos, como trilha, memória, caça-palavras, cru-
zadinhas, forca, bingo, entre outros. Estamos também nos referindo
aos jogos digitais, tão difundidos entre crianças e jovens. Não há mais
como o professor dos dias atuais se recusar a, ao menos, conhecer o
que os jogos têm a oferecer para a aprendizagem, em especial para
o avanço de seus alunos no que diz respeito à alfabetização e ao le-
tramento. E, relacionado a isso, também não há como não se envol-
2
Segundo Bacich e Moran
ver com as chamadas metodologias ativas, que guardam íntima relação
(2018), as metodologias ativas
com o assunto abordado nesta seção. “dão ênfase ao papel protago-
2 nista do aluno, ao seu envol-
José Moran, um dos principais teóricos das metodologias ativas no
vimento direto, participativo
Brasil atualmente, defende que a aprendizagem é mais significativa quan- e reflexivo em todas as etapas
do o aluno se sente intimamente motivado. Ou seja, por meio do engaja- do processo, experimentando,
desenhando, criando, com a
mento, o aprendiz encontra sentido nas propostas escolares. O estudioso orientação do professor [...]”.
também explica o papel dos recursos tecnológicos, sobretudo dos jogos, São exemplos de metodologias:
para ressignificar a aprendizagem: aprendizagem baseada em
jogos, aprendizagem baseada
As metodologias ativas são pontos de partida para avançar para em projetos, aprendizagem
processos mais avançados de reflexão, de integração cognitiva, baseada em problemas, gami-
de generalização, de reelaboração de novas práticas.[...] ficação, sala de aula invertida,
entre outros.
Alguns componentes são fundamentais para o sucesso da

A prática alfabetizadora na atualidade 69


aprendizagem: a criação de desafios, atividades, jogos que real-
mente trazem as competências necessárias para cada etapa, que
Livro solicitam informações pertinentes, que oferecem recompensas
estimulantes, que combinam percursos pessoais com partici-

Divulgação
pação significativa em grupos, que se inserem em plataformas
adaptativas, que reconhecem cada aluno e ao mesmo tempo
aprendem com a interação, tudo isso utilizando as tecnologias
adequadas. (MORAN, 2015, p. 18)

Importante

Exemplos de jogos direcionados ao processo de alfabetização:


Analógico – jogo da memória (fundamentação e regras) disponível em: https://no-
O livro Jogos de alfabeti- vaescola.org.br/conteudo/1981/alfabetizacao-vamos-criar-fichas-para-um-jogo-de-
zação além de apresentar -memoria. Acesso em: 10 dez. 2019.
uma sólida justificativa Digitais – jogos diversos disponíveis em: http://www.noas.com.br/ensino-fundamental-1/
para o uso de jogos nes- lingua-portuguesa/. Acesso em: 10 dez. 2019.
se processo, traz diversas
ideias para a aplicação
desses recursos pedagó- Como existe uma gama muito grande de jogos disponíveis, sobretudo
gicos em sala de aula.
na internet, cabe ao professor selecionar previamente aqueles que aten-
BRANDÃO, A. C. P. A. et. al. Recife:
dam aos seus objetivos pedagógicos, à sua linha teórico-metodológica e
CEEL, 2009.
às necessidades educacionais de seus alunos. Conclui-se, então, que as
brincadeiras e os jogos – tanto analógicos quanto digitais – são ferramen-
tas de ensino fundamentais, que podem auxiliar o professor a mediar as
aprendizagens dos alunos no processo de alfabetização e letramento.

4.3 Planejamento e organização


Vídeo do trabalho pedagógico
A última entre as questões que nos propusemos a responder neste
capítulo é: Como o professor pode se organizar e dar conta de todo o
trabalho que precisa ser feito e, assim, chegar ao fim do ano com a sen-
sação de dever cumprido? Em outras palavras, como organizar a carga
horária de modo que garanta a aprendizagem dos alunos?

Para ajudar a responder esse questionamento, Ferreira e Albuquer-


que (2012) afirmam, em um documento do Pacto Nacional pela Alfabe-
tização na Idade Certa (Pnaic), que
De acordo com as abordagens construtivistas e sócio-interacio-
nistas de ensino-aprendizagem, é preciso que o professor saiba
os conteúdos e procedimentos de ensino e conheça seus alu-
nos, e o que eles sabem sobre determinados conteúdos, para
que possa planejar atividades que os façam evoluir em suas

70 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


aprendizagens, na interação com o docente e com os pares em
sala de aula. Nessas perspectivas, a organização do trabalho pe-
dagógico precisa envolver um conjunto de procedimentos que,
intencionalmente, devem ser planejados para serem executados
durante certo período de tempo, tomando como referência as
práticas sociais/culturais dos sujeitos envolvidos, suas experiên-
cias e conhecimentos. (FERREIRA; ALBUQUERQUE, 2012, p. 19)

O tempo é, portanto, fator fundamental para o professor, pois é ne-


cessário em diversas situações, como: planejar as ações; desenvolver
as aulas planejadas; ajudar os aprendizes que não tenham acompa-
nhado o restante da classe etc. É apenas por meio de um planejamento
sistemático, com o objetivo claro de garantir as aprendizagens, que o
professor vai conseguir evitar desperdício de tempo (concentrando-se
em situações desnecessárias ou pouco importantes) e evitar o impro-
viso. Isso também não significa que o planejamento é lei e que deve
ser respeitado a todo custo. É necessário ter flexibilidade, mas até para
isso é necessário que o professor esteja no controle do que está ocor-
rendo em sua classe.

Conforme consta em outro documento do Pnaic (BRASIL, 2012), é


necessário que a rotina do ciclo de alfabetização seja pensada de modo
a favorecer situações em que os aprendizes sejam auxiliados a com-
preender o funcionamento do sistema de escrita.

Como estratégia para criar condições de gestão do tempo na sala


de aula e, consequentemente, o professor conseguir trabalhar todos
os conteúdos previstos, Lerner (2002) propõe algumas modalidades or-
ganizativas do trabalho pedagógico: projetos, atividades habituais, se-
quências de atividades e situações independentes. A seguir, podemos
observá-las detalhadamente.

1. Projetos: oferecem, de acordo com Lerner (2002), contextos


para o trabalho pedagógico. Quando têm longa duração, eles
proporcionam a oportunidade de compartilhar com os alunos
o seu planejamento e favorecem a distribuição de tarefas e
responsabilidades. Na aprendizagem inicial da escrita, é possível
fazer, por exemplo, um projeto de leitura em que um livro é
escolhido para ser enviado para a casa dos alunos, em esquema
de rodízio, para que eles leiam-no com os familiares. Em sala de

A prática alfabetizadora na atualidade 71


aula, esse projeto poderia se estender por meio de conversas,
seminários, debates, encenações, reconto por escrito etc.
2. Atividades habituais: são aquelas atividades que se reiteram
de maneira sistemática e previsível, uma vez por semana ou a
cada quinze dias, durante vários meses ou ao longo de todo o
ano escolar, segundo o autor. Um exemplo de atividade habitual
comum nas escolas, durante a fase de alfabetização e letramento,
é a “hora do conto”.
3. Sequências de atividades: tratando especificamente da leitura,
Lerner (2002) propõe a existência de sequências de atividades
destinadas à leitura de diversos exemplares de um mesmo gênero
textual, diferentes obras de um mesmo autor ou diferentes textos
sobre um mesmo tema.
4. Situações independentes: são classificadas em dois subgrupos,
de acordo com Lerner (2002):

a. Situações ocasionais: surgem de alguma oportunidade


não planejada, mas que permite realizar algum trabalho
significativo, se possível relacionando-o ao conteúdo que está
sendo visto com os alunos. O professor pode, por exemplo,
trabalhar com alguma situação que foi noticiada e que tenha
chamado a atenção dos alunos. Assim, ele pode aproveitá-la
como alimentação temática para os conteúdos.
b. Situações de sistematização: estão diretamente relacionadas
aos propósitos didáticos e aos conteúdos que estão sendo
trabalhados pelo professor, porque permitem sistematizar os
conhecimentos linguísticos construídos por meio das outras
modalidades organizativas. Nelas, os aprendizes podem pôr
em prática o que aprenderam nas demais modalidades.

Isso não significa, porém, que são categorias estanques, tampou-


Atividade 3 co rígidas. São instrumentos de que o professor pode lançar mão
Uma vez feito o planejamento, para organizar o seu trabalho. Além disso, as modalidades podem
como o professor pode inserir ser realizadas concomitantemente. Por exemplo, em um projeto é
novas propostas sem que isso
possível haver diversas sequências de atividades e estas, por sua vez,
signifique improviso?
podem estar relacionadas a atividades habituais e de sistematização.

72 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, observamos alguns dos aspectos voltados ao proces-
so de alfabetização com o intuito de auxiliar o professor nessa jornada,
principalmente aqueles que se encontram em início de carreira. Para isso,
observamos a importância de se trabalhar com o nome próprio da crian-
ça, assim como outras palavras estáveis que façam parte do universo dos
aprendizes e que façam sentido para eles.
Ponderamos, também, sobre o tipo de letra a ser usado na aprendiza-
gem inicial da língua escrita, concluindo que a letra de imprensa maiúscula
favorece a percepção do aluno, mas que, ao mesmo tempo, aprender a
letra cursiva é significativo. Ainda na primeira seção deste capítulo, vimos
a relevância de o professor conhecer seus alunos para que possa fazer
agrupamentos que sejam produtivos, extraindo disso um grande poten-
cial para o avanço dos alunos.
Na segunda seção, discutimos por que e como promover uma apren-
dizagem lúdica e significativa, de maneira que os alunos se sintam cada
vez mais envolvidos com o objeto de conhecimento. Por fim, observamos
a importância de planejar o trabalho pedagógico e apresentamos uma
sugestão de organização: as modalidades organizativas.

REFERÊNCIAS
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oral na alfabetização. Salvador: EDUFBA, 2011.
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teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018.
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Educação. Programa de formação de professores alfabetizadores. Brasília: MEC, 2001.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/col_2.pdf. Acesso em: 3
dez. 2019.
BORBA, A. M. O brincar como um modo de ser e estar no mundo. In: BRASIL. Ministério da
Educação. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis
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BRANDÃO, A. C. P. A. et. al. (coord.). Jogos de alfabetização. Recife: CEEL, 2009.
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das hipóteses?: uma conversa entre professores. In: MORAIS, A. G.; ALBUQUERQUE, E. B.

A prática alfabetizadora na atualidade 73


C.; LEAL, T. F. Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.
CURTO, L. M.; MORILLO, M. M.; TEIXIDÓ, M. M. Escrever e ler: como as crianças aprendem
e como o professor pode ensiná-las a escrever e a ler. Porto Alegre: Artmed, 2000. v. 1.
FERREIRA, A. T. B.; ALBUQUERQUE, E. B. C. de. As rotinas da escola e da sala de aula:
referências para a organização do trabalho do professor alfabetizador. In: BRASIL.
Secretaria de Educação Básica. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa:
planejamento escolar: alfabetização e ensino da língua portuguesa. Brasília: MEC/SEB,
2012. Disponível em: http://www.serdigital.com.br/gerenciador/clientes/ceel/material/35.
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LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002.
MORAIS, A. G. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012. (Como
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MORAN, J. Mudando a educação com metodologias ativas. In: SOUZA, C. A.; MORALES, O.
E. T. (orgs.). Convergências midiáticas, educação e cidadania: aproximações jovens. Ponta
Grossa: Foca Foto-PROEX/UEPG, 2015. v. II. (Coleção Mídias Contemporâneas).
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ROCHA, A. Grupo 4 – tarde. In: CAVALANTI, Z. Alfabetizando. Porto Alegre: Artes
Médias, 1997.
TEBEROSKY, A. Psicopedagogia da linguagem escrita. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.

GABARITO
1. Inicialmente, o nome próprio pode ser utilizado com apoio da fotografia da criança,
para que ela se aproprie da escrita dele amplamente durante atividades cotidianas,
como o momento da chamada. Em seguida, os nomes dos alunos podem ser utiliza-
dos sem as imagens e, aos poucos, podem se tornar objeto de análises e comparações
(por exemplo: contar a quantidade de letras, verificar qual nome tem mais ou menos
letras, comparar as letras que mudam de um nome para outro etc.), além de se tor-
narem palavras estáveis que, expostas em sala de aula, podem auxiliar na escrita de
outras palavras.

2. Para conferir significatividade e ludicidade à aprendizagem, o professor pode lançar


mão de brincadeiras da tradição oral (cantigas, parlendas, trava-línguas etc.) para que
os alunos explorem rimas, aliterações, segmentação em sílabas, entre outros aspectos
linguísticos. Além disso, o alfabetizador pode usar jogos (analógicos ou digitais) que
auxiliem no processo de ensino e aprendizagem das crianças.

3. O planejamento é parte importante do trabalho pedagógico, pois, sem ele, o professor


está sujeito a se perder em meio a tantos conteúdos e a ter que improvisar diante das
inúmeras demandas cotidianas. Construindo um planejamento sistemático e cons-
ciente, porém flexível, o professor se coloca em uma posição de controle do que está
ocorrendo em sua classe e, portanto, se precisar incluir uma situação nova ou inespe-
rada, ele estará apto para isso.

74 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


5
Os desafios de alfabetizar,
letrar e formar leitores
O objetivo deste capítulo é debater os desafios de uma prática
que considere o alfabetizar e o letrar. Considerando toda a com-
plexidade desse processo, abordaremos questões relevantes para
que todos os mediadores envolvidos – família, escola e professor
– possam compreender as implicações da alfabetização e do le-
tramento no cotidiano escolar da educação básica, a fim de haver
alinhamento e harmonia nas ações propostas.
Para isso, o capítulo inicia tratando sobre o processo que se
convencionou chamar alfabetizar letrando, passando pela proposi-
ção e análise de algumas ações possíveis para garantir a aprendi-
zagem da leitura e da escrita. Por fim, abordaremos a avaliação do
processo, com o objetivo de discutir as melhores formas de aferir
a aprendizagem dos alunos.

5.1 Alfabetização e letramento como eixos


Vídeo norteadores da prática pedagógica
É importante, antes de mais nada, conceituarmos que a expressão
aprendizagem inicial da língua escrita abrange, conforme Soares (2017),
as três facetas de inserção no mundo da escrita: 1) a faceta linguística,
que diz respeito à aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico (cor-
respondendo à alfabetização propriamente dita); 2) a faceta interativa,
que considera a língua escrita como veículo de interação entre as pes-
soas, de expressão e de compreensão de mensagens; 3) a faceta socio-
cultural, que se refere aos usos, às funções e aos valores atribuídos à
escrita em contextos socioculturais (a segunda e a terceira correspon-
dem, conjuntamente, ao letramento).

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 75


Vídeo Soares (1998) traçou o percurso histórico do termo letramento – ori-
O documentário Meninos ginado do vocábulo em inglês literacy e introduzido no Brasil na década
de palavra, dividido em de 1980 –, conceituando-o como sendo “o resultado da ação de ensinar
duas partes no YouTube
e publicado pelo canal da ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um
Plataforma do Letramen- grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado
to, mostra o trabalho das
oficinas de arte e cultura da escrita” (SOARES, 1998, p. 18).
com ações de letramento,
desenvolvido com ado- Carvalho (2008) afirma que, apesar de serem interligadas, as práti-
lescentes em privação de cas de alfabetizar e letrar são processos distintos. Indo ao encontro das
liberdade.
ideias de Magda Soares, Carvalho assevera que:
Parte 1 disponível em: https://
youtu.be/iQHFOmryqfA. Acesso em: é possível alfabetizar letrando, isto é, podemos ensinar crianças e
2 jan. 2020 adultos a ler, a conhecer os sons que as letras representam e, ao
Parte 2 disponível em: https://
mesmo tempo, com a mesma ênfase, convidá-los a se tornarem
youtu.be/qtLqL7WMOWY. Acesso
em: 2 jan. 2020. leitores, a participarem da aventura do conhecimento implícita
no ato de ler. (CARVALHO, 2008, introdução, grifos do original)

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017 e


de adoção obrigatória pelas instituições brasileiras a partir de 2020, ao
mesmo tempo que preconiza a existência de atividades sistemáticas de
alfabetização a partir do 1º ano do ensino fundamental, deixa clara a ne-
cessidade de alinhar esse trabalho ao letramento. Segundo o documento,
ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar
aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação
1 dos letramentos 1 , de forma a possibilitar a participação signifi-
A BNCC usa, inclusive, o termo cativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituí-
letramentos no plural e com das pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens. (BRASIL,
algumas variáveis – novos 2017, p. 68-69)
letramentos e multiletramentos
–, com vistas a prever a plurali- É preciso, portanto, responder à pergunta: de que letramento es-
dade desse processo e abranger
tamos falando? Street (1984), citado por Kleiman (1995) e Jung (2007),
as práticas de linguagem
contemporâneas, notadamente postulou a ideia de um modelo ideológico de letramento, em que “as
aquelas que emergem da práticas de letramento (no plural) seriam social e culturalmente deter-
cultura digital.
minadas, o que equivale a dizer que os significados específicos que a
escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e das
instituições em que ela é adquirida e praticada” (STREET, 1984, apud
JUNG, 2007, p. 85).

Essa ideia faz oposição ao modelo autônomo de letramento, no


qual a escrita é um produto completo em si mesmo e, consequen-
temente, o leitor não precisa considerar o contexto de produção de
um texto para interpretá-lo. Assim, por considerarmos o contexto de

76 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


produção – tanto aspectos da cultura quanto as estruturas de poder
existentes na sociedade –, é possível constatar que estamos tratando
do modelo ideológico de letramento, que nos permite, portanto, falar
em letramentos e em práticas de letramento no plural, por se tratar
de um conceito plural.

Para efetivar o propósito de alfabetizar e letrar ao mesmo tempo,


Goulart (2007) assevera que o espaço da sala de aula deve ser, em pri-
meiro lugar, um espaço de formação de leitores, favorecendo as leitu-
ras não só das crianças, mas também dos professores. Essas leituras
podem ser de livros, jornais, panfletos, músicas, poesias e tudo aquilo
que for significativo, incluindo vários autores e diversos temas.

Goulart (2007) afirma que as crianças conseguem compreender me-


lhor a escrita a partir do contato recorrente com materiais escritos e do
auxílio de outros leitores (pais e professores, por exemplo), e isso se dá
quando os aprendizes:
•• exploram as possibilidades de significação;
•• relacionam características dos textos;
•• familiarizam-se com as letras, as palavras, as frases e as outras
marcas que compõem os textos escritos;
•• elaboram hipóteses sobre o que está escrito a partir do que já
conhecem;
•• refletem sobre as muitas questões que o professor destaca
como significativas para o aprendizado da leitura. (GOULART,
2007, p. 94)

Foucambert, citado por Goulart (2007), ressalta que o meio, durante Atividade 1
aprendizagem, “deve proporcionar à criança toda a ajuda para utilizar De acordo com Goulart
textos ‘verdadeiros’ e não simplificar os textos para adaptá-los às pos- (2007), como pode se dar o
contato dos aprendizes com
sibilidades atuais do aprendiz. Não se aprende primeiro a ler palavras, materiais escritos?
depois frases, mais adiante textos, e, finalmente, textos dos quais se
precisa” (FOUCAMBERT, 1994 apud GOULART, 2007, p. 94).

Todavia, o acesso à leitura e à produção de textos por si só não


garante a formação de aprendizes leitores e produtores de textos au-
tônomos. É necessário que lhes sejam dadas oportunidades para a efe-
tiva compreensão das características, funções e linguagens utilizadas
para construir cada gênero. Além disso, é preciso que compreendam o
funcionamento do sistema de escrita alfabética.

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 77


Assim, paralelamente ao trabalho com a leitura e ao contato com
textos autênticos, Goulart (2007) afirma que o professor precisa:
proporcionar atividades e questionamentos que considerem as
microanálises, isto é, análises que tenham como ponto de par-
tida os elementos menores do texto (letra, fonema, sílaba), e
também as macroanálises, ou seja, aquelas que têm como ponto
de partida as características mais globais do texto, tais como: o
modo como o texto se organiza no papel; o tipo e a temática do
texto a partir do título; os portadores de texto e o tipo de texto a
eles relacionados; e, quando houver, as ilustrações, as imagens.
O mais importante é não perder de vista o sentido dos textos.
(GOULART, 2007, p. 94)

Utilizando os conceitos de microanálises e de macroanálises, propostos


pela autora, podemos observar o paralelo representado no Quadro 1, que
relaciona uma e outra à alfabetização e ao letramento, respectivamente.

Quadro 1
Exemplos de ações relacionadas a microanálises e macroanálises.

Microanálises de um texto Macroanálises de um texto

Favorecem a alfabetização Favorecem o letramento


• Selecionar palavras do texto e explorar • Estabelecer expectativas sobre o texto que
suas partes (letras, fonemas, sílabas), será lido.
desenvolvendo a consciência silábica e a • Explorar o modo como o texto se organiza
consciência fonêmica. no papel.
• Comparar a escrita de algumas pala- • Explorar o tipo e a temática do texto a partir
Exemplos de ações

vras de um texto, identificando seme- do título.


lhanças e diferenças entre sons de sí- • Identificar os portadores de texto e o tipo de
labas iniciais. texto a eles relacionados.
• Propor a escrita espontânea de palavras • Explorar ilustrações e imagens, quando hou-
relacionadas ao texto. ver, relacionando-as ao texto.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Goulart, 2007, p. 94.

Com relação às microanálises, o professor pode explorar situações


de análise linguística em palavras que estão presentes em textos que
foram previamente trabalhados, contextualizando essa tarefa e tornan-
do-a mais significativa. No que diz respeito às macroanálises, pode
ser trazido à tona o conceito de estratégias de leitura, formulado por
Isabel Solé. Segundo a autora,
as estratégias de leitura são procedimentos de ordem elevada
que envolvem o cognitivo e o metacognitivo. No ensino elas não

78 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


podem ser tratadas como técnicas precisas, receitas infalíveis ou
habilidades específicas. O que caracteriza a mentalidade estraté-
gica é sua capacidade de representar e analisar os problemas e a
flexibilidade para encontrar soluções. Por isso, ao ensinar estra-
tégias de compreensão leitora, entre os alunos deve predominar
a construção e o uso de procedimentos de tipo geral, que pos-
sam ser transferidos sem maiores dificuldades para situações de
leituras múltiplas e variadas. (SOLÉ, 1998, p. 70)

Por meio das estratégias de leitura, de acordo com Solé (1998), o


aluno tem a oportunidade de planejar sua leitura, criar hipóteses sobre
o texto que vai ler, compreender o texto que está lendo, ou já leu, e
comprovar ou refutar as hipóteses iniciais. Para isso, o professor, colo-
cando-se em posição de leitor competente, pode adotar diversas estra-
tégias, como as exemplificadas a seguir:
1. Antes da leitura, o professor pode fornecer informações gerais
sobre o texto e autor da obra que será lida, levantar conhecimen-
tos prévios dos alunos sobre o assunto e pedir aos estudantes
que observem os elementos paratextuais (título, subtítulo, tipos
de letras, imagens etc.), para criar hipóteses.
2. Durante a leitura, o educador pode incentivar e auxiliar o aluno
a compreender melhor o texto, o que pode ser feito, por exem-
plo, ao formular e responder perguntas, esclarecer dúvidas, iden-
tificar a ideia central de cada parágrafo, entre outras atividades
interpretativas.
3. Depois da leitura, o professor pode retomar com os alunos as
hipóteses iniciais, para que sejam confirmadas ou revistas, re-
cuperar com eles a ideia principal do texto lido, a fim de que
demonstrem compreensão global, e formular questionamentos
para que os alunos localizem informações explícitas ou implícitas
no texto.

Desse modo, mesmo antes de a criança aprender a ler convencio-


nalmente, o professor pode atuar como mediador, usando e ensinan-
do as estratégias de leitura, atuando como leitor-modelo e auxiliando
na seleção, antecipação e compreensão de informações. Para isso, ele
precisa se preparar previamente, via planejamento, além de ser, tam-
bém, um leitor assíduo. Trataremos mais especificamente do papel do
professor na próxima seção; por ora, basta-nos ressaltar a importância
de o letramento não ser apenas uma realidade para os alunos, mas
também um estilo de vida para o professor.

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 79


5.2 Crianças leitoras e produtoras de
Vídeo textos desde a tenra idade
Para iniciarmos esta seção, vejamos o que disse, em uma entrevista,
a renomada autora de literatura infantil Ana Maria Machado:
Gerenciei uma livraria por 18 anos. Nunca, nunca, nunca nesse
tempo encontrei uma criança que não gostasse de ler. Encontrei
crianças que não tinham encontrado o livro que gostavam. A pri-
meira opção não costumava funcionar, mas aí na segunda ou ter-
ceira, quando achava aquele livro que era o encontro da vida, a
criança queria outros da mesma coleção, do mesmo tipo, mesmo
autor. Queria aquele de novo e de novo. Quando a criança ainda
não conseguia ler, o pai ou a mãe tinham que, à noite, contar a
mesma história outra vez. Mas depois começa a ter de outra co-
leção. A criança escolhe o que quer desde muito pequena. O meu
neto, antes de um ano e sem andar ainda, já escolhia, pela lomba-
da, o livro que queria naquela noite, quando a gente ia mostrar a
ele figurinhas antes de dormir. (UM ESCRITOR..., 2019)

A fala de Ana Maria Machado enseja diversas reflexões sobre o pa-


pel da literatura na infância e sobre a necessária mediação de leitores
mais experientes. Ainda que a criança desde bem pequena possa con-
viver com o mundo da escrita, por intermédio de outros gêneros e ou-
tros portadores de textos, sabemos que são os livros e as histórias que
costumam servir como porta de entrada ao mundo letrado.

Bem antes de a criança entrar na escola, como veremos mais adian-


te, a família pode proporcionar o contato dela com histórias, seja len-
do-as em livros, seja contando-as de memória. Além disso, é possível
também proporcionar contatos, mesmo que informais, com a escrita,
ao fazer uma lista de compras antes de ir ao supermercado ou redigir
um bilhete na presença da criança, por exemplo.

Já na escola, mesmo antes de aprender a ler convencionalmente, a


criança precisa ter a oportunidade de conviver com uma gama ainda
maior de gêneros textuais, escritos e orais, ampliando seus conheci-
mentos e apreendendo o comportamento leitor.

Um bom exemplo de proporcionar o contato com diversos gêneros


é manter na sala de aula, desde os primeiros anos da educação infantil,
uma pequena biblioteca. Nela, dispostos em local de fácil acesso e na

80 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


altura das crianças, pode haver um rico material previamente selecio-
nado pelo professor, com destaque para: livros de literatura infantil;
gibis; revistas de passatempo; livros, revistas e almanaques de curio-
sidades; jornais infantojuvenis; revistas infantojuvenis de divulgação
científica; entre outros Esse espaço deve ter regras de utilização previa-
mente estabelecidas (se possível, em conjunto com os aprendizes) e, ao
mesmo tempo, permitir a fruição e a livre escolha pelas crianças, des-
pertando nelas a familiaridade e o interesse pela leitura. Dessa forma,
elas podem aprender características dos textos escritos e incorporar
comportamentos leitores diversos, como:
•• folhear as páginas do livro da direita para a esquerda (há exce-
ções, mas essa é a maneira convencional);
•• ler as palavras de cima para baixo e da esquerda para a direita;
•• perceber que aquilo que uma pessoa lê em um livro (ou outro
suporte) é o mesmo que outra pessoa pode ler (ainda que as in-
terpretações possam ser diferentes);
•• notar que é possível ler um texto em voz alta, mas também
silenciosamente.
Atividade 2
No que diz respeito às práticas específicas de escrita, algumas ati-
vidades que podem ser propostas desde os anos iniciais da educação Que tipos de práticas de escrita
podem ser propostos desde os
infantil são: primeiros anos da educação
•• o professor atuar como escriba, registrando o texto que vai sen- infantil, mesmo que as crianças
ainda não saibam escrever?
do construído oralmente pelas crianças;
•• o professor escrever na presença das crianças, a fim de fornecer
um modelo de escrita convencional a elas, aproveitando para isso
todas as oportunidades possíveis em que há uma necessidade
real de produzir um texto;
•• as crianças escreverem espontaneamente, de acordo com suas
hipóteses, fornecendo um material frutífero para intervenções
2
do professor.
De acordo com a BNCC:
Diante do exposto, mesmo que a opção do professor seja iniciar a “Embora, desde que nasce e
na educação infantil, a criança
alfabetização formal a partir do 1º ano do ensino fundamental – o que
esteja cercada e participe de
2
está em pleno acordo com a BNCC –, há diversas maneiras de poten- diferentes práticas letradas, é
cializar o letramento dos aprendizes desde a educação infantil, criando nos anos iniciais (1º e 2º anos)
do Ensino Fundamental que
um terreno fértil para que o processo de apropriação do sistema de se espera que ela se alfabetize”
escrita seja mais tranquilo e significativo. (BRASIL, 2017, p. 89).

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 81


5.2.1 Papel da família
A família exerce influência fundamental, em conjunto com a esco-
la, para as aprendizagens das crianças. A legislação brasileira, tanto a
3 3
Constituição Federal quanto as leis diversas específicas para a área
“Art. 205. A educação, direito
de todos e dever do Estado e educacional, reconhece a necessidade de cooperação entre essas
da família, será promovida e duas instituições – família e escola – para o pleno desenvolvimento
incentivada com a colaboração de cada pessoa.
da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, Além de envolver aspectos afetivos, a postura e a atuação adequa-
seu preparo para o exercício da
das da família durante a fase de apropriação da língua escrita fazem
cidadania e sua qualificação
para o trabalho.” (BRASIL, 1988). toda a diferença, no sentido de otimizar e favorecer as aprendizagens,
além de ampliar o letramento.

Ciente da relevância do papel da família no processo de aprendi-


zagem inicial da língua escrita, o Ministério da Educação (MEC) lan-

4 çou, em 2019, o programa “Conta pra mim: Programa de Promoção


4
da Literacia Familiar” , como parte de sua Política Nacional de Alfa-
Material de divulgação (guias
e vídeos) disponível em: betização (PNA). Trata-se de uma estratégia para buscar envolver a
http://alfabetizacao.mec.gov. família na formação de leitores – no que a PNA convencionou chamar
br/18-para-pais-e-respon- de literacia familiar – e, consequentemente, causar impactos positivos
saveis/25-programa-con-
ta-pra-mim. Acesso em: 23 sobre o processo de alfabetização.
dez. 2019.
Ao se referir à literacia familiar, a PNA preconiza que:
o êxito das crianças na aprendizagem da leitura e da escrita está
fortemente vinculado ao ambiente familiar e às práticas e expe-
riências relacionadas à linguagem, à leitura e à escrita que elas
vivenciam com seus pais, familiares ou cuidadores, mesmo antes
do ingresso no ensino formal. [...]
Uma das práticas que têm maior impacto no futuro escolar da
criança é a leitura partilhada de histórias, ou leitura em voz alta
feita pelo adulto para a criança; essa prática amplia o vocabulá-
rio, desenvolve a compreensão da linguagem oral, introduz pa-
drões morfossintáticos, desperta a imaginação, incute o gosto
pela leitura e estreita o vínculo familiar [...]. (BRASIL, 2019, p. 23)
5
A PNA conceitua literacia como Ainda que não reconheça, tampouco utilize, a nomenclatura le-
5
“o conjunto de conhecimentos, tramento, e sim literacia , essa iniciativa contribui para a inserção da
habilidades e atitudes relaciona-
criança, desde a tenra idade, no mundo da escrita no seio familiar.
dos à leitura e à escrita, bem
como sua prática produtiva” Sabemos, entretanto, que nem todas as famílias têm condições,
(BRASIL, 2019, p. 21).
estrutura, conhecimento ou mesmo interesse de participar da vida

82 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


escolar dos filhos. Essa falta de participação pode se dar por infinitos Filme
motivos e foge da alçada do professor e da instituição escolar intervir
em grande parte desses casos, pois adentra na esfera de liberdade que
cada família tem para decidir o que é melhor para seus filhos. Entretan-
to, existem algumas sugestões que podem ser feitas junto às famílias,
em reuniões, palestras, aconselhamentos, conversas informais e/ou
comunicados etc., a fim de aproximá-las da formação dos filhos e au-
xiliar no processo. Seguem alguns exemplos de sugestões que podem
ser dadas aos familiares:
O filme Mãos Talentosas:
•• Ler e/ou contar histórias para as crianças (se possível, diariamen- a história de Benjamin
te), tendo em mente que nunca é tarde para começar. Carson, baseado em fa-
tos reais, conta a história
•• Deixar materiais diversos de leitura, adequados à respectiva faixa do neurocirurgião Ben
etária, disponíveis para livre manuseio e consulta. Carson, que na infância
tinha sérias dificuldades
•• Dar o exemplo, sendo leitores assíduos. escolares. Graças ao in-
centivo de pessoas que o
•• Acompanhar as crianças nas tarefas de casa e participar de reu- amavam, principalmente
niões e eventos promovidos pela escola. sua mãe, tornou-se um
dos maiores especialistas
•• Garantir a frequência da criança na escola, pois as faltas fazem em neurologia pediátrica
do mundo.
com que ela perca conteúdos que dificilmente serão recuperados.
Direção de Thomas Carter. EUA: Sony
•• Levar a criança o quanto possível a museus, bibliotecas, cinemas, Pictures, 2009.
contações de histórias, peças teatrais e outras atrações culturais
que ampliem o conhecimento de mundo dela.
•• Evitar exposição excessiva à TV e a outras telas, as quais podem des-
viar a atenção das crianças para outros aspectos, como publicidade,
e tomam tempo de outras atividades edificantes, como a leitura.
•• Manter sempre o diálogo, procurando saber sobre o cotidiano
das crianças na escola.
•• Acessar material educativo para ampliar seus conhecimentos
sobre a formação de leitores e o processo de alfabetização (por
exemplo: livros, sites, artigos, reportagens, podcasts).
•• Procurar ter paciência e compreensão, sabendo que cada criança
tem um ritmo para aprender e se desenvolver e, portanto, não
deve ser comparada.
•• Manter uma relação de confiança com o professor e a escola, re-
correndo a eles em caso de dúvidas ou problemas.

Com medidas simples como as exemplificadas, o professor e a es-


cola podem transformar as famílias em aliadas no processo de alfabe-
tização e letramento.

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 83


+ Saiba mais
O podcast Como começar 5.2.2 Papel da escola
a ler para crianças: a obra
de Ruth Rocha é o primeiro Ao abordarmos o papel da escola no processo de alfabetização e
episódio de uma série de letramento, estamos nos referindo tanto à escola enquanto instituição,
oito sobre literatura infan-
til brasileira e tem como pública ou privada, quanto à gestão escolar, composta geralmente de
objetivo discutir livros in- direção e coordenação.
fantis e estimular adultos
que convivem com crian- Segundo Goulart,
ças a formar leitores. Os
demais episódios da série a escola como instituição está marcada pela organização
(disponíveis em: https:// político-pedagógica que envolve os conhecimentos que ali são
soundcloud.com/como-co-
mecar-nexo) abordam os
trabalhados para que as crianças aprendam. Isso acontece de
seguintes autores: Tatiana tal modo que tem um valor estruturante na formação social das
Belinky, Monteiro Lobato, pessoas, dando-lhes identidade também pela aprendizagem de
Lygia Bojunga, Eva Furnari,
modos de ação e interação que são socialmente valorizados. Ou
Ana Maria Machado,
Ziraldo e Angela Lago. seja, o processo de escolarização marca-nos no sentido de am-
pliar a compreensão da dinâmica social, das variadas forças e co-
Disponível em: https://soundcloud.
com/como-comecar-nexo/como-co- nhecimentos que disputam poder na sociedade, das diferentes
mecar-a-ler-para-criancas-a-obra-de- interpretações de conteúdos, fatos, objetos, fenômenos e com-
-ruth-rocha. Acesso em: 2 jan. 2020.
portamentos sociais. (GOULART, 2007, p. 88)

A instituição escolar precisa garantir uma infraestrutura mínima


para que o professor possa desempenhar a sua missão de alfabetizar e
letrar de maneira satisfatória. Tal infraestrutura diz respeito, por exem-
plo, aos seguintes itens:
•• Respaldo em um projeto político-pedagógico consistente, que
seja possível de ser posto em prática.
•• Apoio da gestão escolar ao trabalho do professor, auxiliando-o
na identificação de dificuldades de aprendizagem; na resolução
de dúvidas e conflitos; no acompanhamento e na avaliação de
alunos; entre outras questões.
•• Incentivo à formação continuada do corpo docente.
•• Disponibilidade de tempo para realizar o planejamento da
ação didática.
•• Adoção/aquisição de materiais didáticos e pedagógicos de
qualidade.
•• Existência de ao menos uma pequena biblioteca, com títulos
atualizados, de boa qualidade e adequados à faixa etária.
•• Disponibilidade da biblioteca para uso sempre que necessário,
com acervo de fácil acesso e acompanhamento de um profissio-
nal capacitado (bibliotecário).

84 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


•• Criação/manutenção de espaços e tempo para a realização de
eventos em que os alunos poderão expor seus trabalhos e, quan-
do preciso, possa haver a presença/participação dos familiares e,
eventualmente, da comunidade escolar.
•• Existência de espaços educativos diversos que possibilitem as
mais variadas formas de expressão, visto que os aprendizes são
crianças em franco desenvolvimento e têm necessidades diver-
sas, e entre elas estão, invariavelmente, o brincar e o interagir.

Compreendendo esses e outros aspectos relativos ao papel da es-


cola, o profissional da educação, notadamente o alfabetizador, reúne
condições para buscar o diálogo com a instituição escolar, no intuito de
aprimorar constantemente o processo de alfabetização e letramento.

5.2.3 O professor em ação


Em uma proposta de ensino que tem como objetivo colocar o aluno
no centro do processo e promover aprendizagens significativas, o pro-
fessor tem o papel fundamental de mediador, e a sua atuação servirá
de guia para que os alunos avancem em suas hipóteses.

Mas como deve ser a prática do professor que deseja atuar sob a
perspectiva de alfabetizar letrando? Albuquerque (2012, p. 20) afirma
que “algumas pesquisas têm sido desenvolvidas com o objetivo de in-
vestigar como os professores estão construindo práticas de alfabetiza-
ção na perspectiva do alfabetizar letrando e investigar a relação dessas
práticas com a aprendizagem dos alunos”. Uma dessas pesquisas cita-
das foi feita por um grupo de educadores e consistiu na observação do
trabalho de professoras do 1º ano na educação municipal do Recife.
Segundo Albuquerque,
como procedimentos metodológicos, além de observações se-
manais das aulas das professoras, uma vez por mês eram re-
alizados encontros com as docentes que tinham o objetivo de
discutir as práticas observadas, e refletir sobre alguns aspectos
constitutivos do processo de alfabetização. A análise dos resulta-
dos revelou que um grupo de professoras desenvolvia uma prá-
tica sistemática de alfabetização que contemplava, diariamente,
atividades de reflexão sobre o Sistema de Escrita Alfabética, en-
quanto outras professoras priorizavam o trabalho de leitura e
produção coletiva de textos. A realização de um ditado com os
alunos das professoras mostrou que a maioria das crianças que

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 85


estudavam com as do primeiro grupo concluiu o ano na hipótese
alfabética de escrita, enquanto nos outros grupos uma proporção
maior de alunos apresentou hipóteses de escrita menos avança-
das. As experiências vivenciadas nos encontros mensais, no entan-
to, possibilitaram que as docentes refletissem sobre suas práticas
de ensino e, nesse processo, fossem recriando-as, na perspectiva
do alfabetizar letrando. (ALBUQUERQUE, 2012, p. 20)

É possível perceber, por esse relato, que, ainda que as professoras


que fizeram o trabalho sistemático de reflexão sobre o sistema de es-
crita alfabética tenham obtido um resultado melhor (uma vez que a
maioria dos alunos desse primeiro grupo concluiu o ano na hipótese
alfabética), ambos os grupos se propuseram a ressignificar suas práti-
cas, repensando-as sob a perspectiva do alfabetizar letrando.

A grande questão que fica é como o professor, considerando a al-


fabetização e o letramento, vai dar conta de fazer com que todos os
alunos avancem em suas hipóteses, sem privilegiar aqueles que dão
respostas mais prontamente, tampouco se debruçando no auxílio da-
queles que estão com mais dificuldade, esquecendo-se dos demais.
Outra questão é como dar conta disso em turmas com mais de 20 alu-
nos. A impressão é a de que o professor precisa ter habilidades de um
verdadeiro equilibrista.

Há algumas questões cruciais a esse respeito, que perpassam pe-


los conhecimentos, habilidades e competências que o professor vai
construindo em sua formação, tanto inicial quanto continuada, além
Vídeo da prática em sala de aula e na troca com seus pares. No intuito de sis-
O vídeo Ceale debate: A me- tematizar alguns desses saberes, propomos sucintamente os seguintes
diação pedagógica na escri- itens, para os quais o professor comprometido com o alfabetizar e o
ta espontânea da criança,
publicado pelo canal Ceale letrar deve voltar a sua atenção:
– FaE/UFMG, apresenta a
discussão promovida pelo
• • Comprometer-se com sua formação continuada e atualiza-
Centro de alfabetização, ção constante.
leitura e escrita (Ceale) ao
abordar a escrita espon- •• Conhecer e se atualizar sobre a legislação educacional, como a
tânea da criança e reflete BNCC, em especial sobre as habilidades que dizem respeito ao
sobre como as mediações
do adulto podem potencia-
ano/nível/ciclo no qual leciona ou deseja lecionar.
lizar esse desenvolvimento.
•• Ser um leitor diário, conhecedor dos mais diversos gêneros literários
Disponível em: https://youtu.be/ e não literários, a fim de transmitir aos alunos o prazer pela leitura.
xhewGmbRnw4. Acesso em: 3
jan. 2020. •• Procurar compreender o funcionamento e se atualizar em relação
a ferramentas tecnológicas interessantes ao trabalho pedagógico.

86 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


•• Proporcionar aos aprendizes o convívio e a leitura de livros, gibis,
jornais, revistas, entre outros materiais (impressos e digitais), ain-
da que os alunos não saibam ler convencionalmente. Uma boa
opção para essa finalidade é manter um cantinho da leitura na
sala de aula, com um miniacervo de livros.
•• Dar aos aprendizes a oportunidade de produzir textos em contextos
o mais próximo possível da realidade, mesmo que os alunos ainda
não saibam escrever convencionalmente, além de fazer os textos cir-
cularem em diferentes esferas, tornando-os mais significativos.
•• Ter domínio das etapas de evolução da escrita previstas pela
teoria da psicogênese da língua escrita, além das implicações da
adoção de um ensino construtivista em relação aos “erros” dos
alunos – conforme a noção de erro construtivo – e da importância
da interação nesse processo. 6
6
• • Conhecer as especificidades e as necessidades de seus alu- Necessidades não apenas
nos, por meio de diagnósticos constantes, feitos durante a educacionais, relativas às hipó-
teses de escrita e a eventuais
rotina de atividades.
dificuldades de aprendizagem,
•• Promover trocas entre os aprendizes, lançando mão de agrupa- mas também necessidades
mentos produtivos sempre que for pertinente. emocionais, físico-motoras,
socioeconômicas e, também,
•• Ter conhecimentos linguísticos diversos para fazer as interven- fisiológicas – um aluno com
ções necessárias para a apropriação do sistema de escrita alfabé- fome ou com sono dificilmente
conseguirá se concentrar nas
tica, principalmente no que diz respeito à consciência fonológica. atividades escolares. Casos em
•• Planejar sistematicamente a ação docente, estando aberto a que os problemas transcendem
a esfera de responsabilidade
eventuais adaptações, caso necessário.
ou a possibilidade de atuação
Ciente dessas e de outras questões básicas, e colocando-as em do professor devem ser devi-
damente encaminhados, com
ação, o alfabetizador se torna plenamente apto a chegar ao fim do ano auxílio da gestão da escola e de
letivo com a sensação de dever cumprido. equipe multidisciplinar.

5.3 Avaliação no processo de


Vídeo alfabetização e letramento
A avaliação é essencial no processo de ensino e aprendizagem. En-
tretanto, não se trata de uma avaliação que objetiva atribuir nota, que
serve para aprovar ou reprovar, como muitos educadores foram ava-
liados em sua infância.

Os estudos mais modernos na área da avaliação apontam para um


processo avaliativo que objetiva identificar o que a criança já sabe e o

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 87


Atividade 3 que ainda precisa aprender, permitindo ao aluno ver com clareza os
De que maneira a avaliação seus avanços e perceber as suas dificuldades. Além disso, a avaliação
serve à reflexão do aprendiz, e permite uma reflexão sobre o processo de ensino e aprendizagem em
não apenas do professor?
si, o papel da escola e a prática docente, verificando quais são os acer-
tos e quais são os pontos a melhorar.

Segundo Perrenoud (1999, p. 11), a avaliação, antes de regular as


aprendizagens, “regula o trabalho, as atividades, as relações de auto-
ridade e a cooperação em aula e, de certa forma, as relações entre a
família e a escola ou entre profissionais da educação”. A avaliação é
importante de modo geral, mas, na fase da aprendizagem inicial da lei-
tura e da escrita, ela ganha ainda mais destaque, principalmente a que
é chamada de diagnóstica ou inicial.

A avaliação diagnóstica na alfabetização diz respeito à análise e veri-


ficação da etapa de escrita em que o aprendiz se encontra. Ela precisa
ser frequente, a fim de que o professor tenha condições de acompa-
nhar o desenvolvimento do aprendiz em seu progressivo domínio da
leitura e da escrita. Ao identificar as dificuldades do aluno, o professor
consegue decidir o que é preciso fazer para que ele avance.

Em uma atividade cotidiana, o professor pode verificar, por exem-


plo, que um aluno escreveu “bicotu” em vez de “biscoito”. Esse episódio,
que pode ser considerado um erro produtivo, combinado com outros
indícios fornecidos nas atividades realizadas, torna possível avaliar que
o aprendiz está oscilando entre as hipóteses silábico-alfabética e al-
fabética. Ele parece ainda não ter percebido que a primeira sílaba é
composta pelas letras b, i e s, possivelmente porque não se deu conta
de que não há somente a estrutura consoante-vogal (CV, considerada
a sílaba canônica), mas há também CVC, como no caso. Além disso, o
aprendiz se equivocou ao registrar a letra u ao final, provavelmente por
pretender representar a pronúncia. Uma vez diagnosticada a hipótese
desse aluno, o professor sabe que precisa promover atividades que o
levem a reconhecer a existência de estruturas diversificadas de sílabas,
assim como mostrar que se convencionou registrar tal palavra com a
letra o ao final, e não com a u.

Outro tipo de avaliação muito importante no processo de alfabe-


tização e letramento é a formativa (também denominada processual,
progressiva ou contínua), que diz respeito à verificação do próprio per-

88 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


curso educativo. Após a identificação das dificuldades ou dos equívo-
cos nesse percurso, essa avaliação permite ao professor repensar os
conteúdos e os objetivos e ressignificar sua prática.

Como exemplo de uma ressignificação ensejada por uma avaliação


processual, podemos imaginar uma situação em que o professor, em
meados do ano letivo, propõe a escrita coletiva de um convite (gênero
textual já trabalhado no primeiro bimestre) para determinado evento.
Ao ditarem o texto ao professor, os aprendizes se esquecem de se diri-
gir ao destinatário do convite e de registrar duas informações sobre o
evento: a data e o horário. Nesse caso, o professor tem subsídios para
identificar que os alunos não compreenderam algumas características
fundamentais do gênero convite e, assim, colocar em seu planejamen-
to a retomada desse gênero.

Pode-se afirmar, dessa maneira, que a avaliação, seja ela diagnós-


tica ou formativa, e o planejamento devem andar lado a lado, em uma
relação constante de retroalimentação. Isso porque o planejamento
deve levar em conta os resultados da avaliação, muitas vezes provocan-
do uma alteração naquilo que foi previsto inicialmente, e a avaliação
deve considerar os conteúdos e as ações previstas no planejamento.

Como instrumentos que o professor pode utilizar para aferir os


avanços e as lacunas na aprendizagem, Leal, Albuquerque e Morais
(2007, p. 7) afirmam que
podemos nos valer tanto das produções escritas e orais diárias dos
estudantes (os textos e escritas de palavras que produzem a cada
dia na sala de aula; o que comentam, escrevem ou leem ao parti-
ciparem das atividades na classe) quanto de instrumentos específi-
cos (tarefas, fichas, etc.) que nos forneçam dados mais controlados
e sistemáticos sobre o domínio dos saberes e conteúdos [...].
Nas tarefas ou fichas usadas para avaliar as capacidades na
área de língua portuguesa, podemos, por exemplo, pedir que
os estudantes escrevam textos (indicando, obviamente, finali-
dades e destinatários); podemos entregar textos para que ten-
tem ler e depois conversar sobre o que entenderam. No caso
das crianças em fase de aprendizagem do sistema alfabético,
podemos, também, pedir que escrevam palavras, mostrando as
relações entre as partes escritas e as orais; entre muitas outras
atividades possíveis.

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 89


Portanto, a avaliação precisa ser feita no dia a dia da sala de aula, e
não necessariamente por intermédio de provas e exames com formato
de perguntas e respostas.

Podemos perceber que, por meio desses instrumentos, é possível


não só avaliar o processo de alfabetização, mas também o de letramen-
to, atendendo à perspectiva de ensino e aprendizagem comprometida
com alfabetizar e letrar. Para isso, Leal, Albuquerque e Morais (2007)
sugerem que o professor faça registros de acompanhamento, que po-
dem proporcionar a análise do desenvolvimento das competências de
leitura e produção de textos. Algumas das competências exemplifica-
das por esses autores são:
•• compreender textos lidos pelo professor, extraindo as informa-
ções principais (quem, o quê, quando, onde, por quê etc.);
•• compreender textos mais longos lidos pelo professor, inferindo
o sentido global do texto;
•• ler textos curtos com autonomia, extraindo informações
principais;
•• demonstrar interesse em ler, consultar livros e outros suportes
textuais;
•• elaborar textos que serão registrados pelo professor, organi-
zando as informações e estabelecendo relações entre partes do
texto, de acordo com diferentes finalidades e destinatários;
•• escrever textos curtos dos gêneros que foram explorados nas
aulas. (LEAL; ALBUQUERQUE; MORAIS, 2007, p. 105)

Quando esses autores mencionam registros de acompanhamento,


referem-se aos registros que devem ser feitos para o professor, tan-
to para atender às exigências legais de documentação escolar quanto
para organização própria e apoio à memória. Podem ser citados como
exemplos de registros os portfólios (conjunto de documentos que regis-
tram o percurso de cada aluno e que auxiliam o professor, o aprendiz
e os familiares a acompanhar o processo de aprendizagem) e o diário
de classe (anotações com registros qualitativos sobre as aprendizagens
dos alunos, restritas à equipe pedagógica).

Dessa forma, a avaliação deve ser vista como uma aliada no proces-
so de alfabetização e letramento, permitindo ao professor fazer ajustes
necessários em sua rota e tornar a aprendizagem inicial da leitura e da
escrita cada vez mais significativa.

90 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, pudemos visualizar a importância de considerar não
apenas a faceta linguística ou só as facetas interativa e sociocultural, mas
todas elas, em conjunto, para que se tenha um processo de ensino e
aprendizagem comprometido com o que diversos autores chamam de
alfabetizar letrando. Para isso, o professor deve estar atento à sua atua-
ção enquanto mediador das aprendizagens, tanto no que diz respeito à
compreensão do sistema de escrita alfabética quanto aos usos sociais da
leitura e da escrita.
Vislumbramos também qual pode ser a postura e as ações de alguns
dos atores envolvidos na aprendizagem inicial da escrita – a família, a es-
cola e o professor –, no intuito de garantir que as crianças se tornem leito-
ras e produtoras de textos desde a tenra idade. Nesse sentido, destaca-se
o papel dos responsáveis, que podem contribuir de diversas formas para
que o letramento da criança ocorra desde pequena. Essa atuação da famí-
lia é, inclusive, destacada em recente política governamental.
Por fim, vimos a avaliação como ferramenta potencializadora das
aprendizagens, na medida em que fornece subsídios para o professor re-
fletir, planejar, intervir e ressignificar sua prática.

REFERÊNCIAS
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alfabetização. In: BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão
Educacional. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: currículo na alfabetização:
concepções e princípios. Brasília: MEC/SEB, 2012. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/
obeducpacto/files/2019/08/Unidade-1.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5
out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm. Acesso em: 20 dez. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da
Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_
EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA: Política Nacional de
Alfabetização/Secretaria de Alfabetização. Brasília: MEC/SEALF, 2019. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/images/banners/caderno_pna.pdf. Acesso em: 16 dez. 2019.
CARVALHO, M. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. 5. ed. Petrópolis:
Vozes, 2008.

Os desafios de alfabetizar, letrar e formar leitores 91


GOULART, C. A organização do trabalho pedagógico: alfabetização e letramento como
eixos orientadores. In: BRASIL. Ministério da Educação. Ensino fundamental de nove anos:
orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: MEC/SEB, 2007.
JUNG, N. M. Letramento: uma concepção de leitura e escrita como prática social. In:
CORREIA, D.; SALEH, P. Práticas de letramento no ensino: leitura, escrita e discurso. São
Paulo: Parábola; Ponta Grossa: UEPG, 2007.
KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In:
KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
LEAL, T. F.; ALBUQUERQUE, E. B. C.; MORAIS, A. G. Avaliação e aprendizagem na escola:
a prática pedagógica como eixo da reflexão. In: BRASIL. Ministério da Educação. Ensino
fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade.
Brasília: MEC/SEB, 2007.
PERRENOUD, P. Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1999.
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2017.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Trad. de Claudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
UM ESCRITOR na Biblioteca: Ana Maria Machado. Cândido, 2019. Disponível em: http://
www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1721
&fbclid=IwAR1orD_9Ghn8tPbK04zAGTHjMXqUKUo9iNwMoZkAIiMmb9iJK
9Ghn8tPbK04zAGTHjMXqUKUo9iNwMoZkAIiMmb9iJKdhOTfm3Nq0. Acesso em: 20 dez. 2019.

GABARITO
1. Goulart (2007) afirma que as crianças conseguem compreender o sentido do que está
escrito por meio do contato recorrente com materiais escritos e do auxílio de leitores
mais experientes, como pais e professores. Para essa autora, isso ocorre quando os
aprendizes “exploram as possibilidades de significação; relacionam características dos
textos; familiarizam-se com as letras, as palavras, as frases e as outras marcas que
compõem os textos escritos; elaboram hipóteses sobre o que está escrito a partir do
que já conhecem; e refletem sobre as questões que o professor destaca como signifi-
cativas” (GOULART, 2007, p. 94) .

2. Alguns exemplos de atividades de escrita que podem ser propostas desde os anos
iniciais da educação infantil são: o professor atuar como escriba, registrando (na lou-
sa ou em um cartaz, por exemplo) o texto que vai sendo construído oralmente pe-
las crianças; o professor escrever textos reais, sempre que possível, na presença das
crianças, a fim de lhes fornecer um modelo de escrita convencional; as crianças terem
a oportunidade de realizar escritas espontâneas, de acordo com suas hipóteses.

3. A avaliação permite ao aluno ver com clareza os seus avanços e perceber as suas difi-
culdades, o que faz com que ele se torne ativo em sua avaliação, e não passivo, como
ocorria nas antigas avaliações meramente classificatórias.

92 Alfabetização e letramento: desenvolvimento e apropriação


Alfabetização e Letramento: Desenvolvimento e Apropriação
A alfabetização é um assunto envolto em inúmeras dis-
cussões, não apenas na esfera acadêmica, mas também
entre os profissionais que se encontram em sala de aula.
Essas discussões são abordadas, nesta obra, por meio
do estudo do processo de alfabetização, dos conheci-
mentos linguísticos essenciais ao professor alfabetizador
e da abordagem psicogenética fundamentada na teoria
da psicogênese da língua escrita.
Esta obra traz também algumas questões práticas que
contribuem para otimizar a atuação do professor, tor-
nando-a mais significativa. Como o processo de alfa-
betização está intimamente relacionado ao letramento,
são discutidos alguns dos desafios em formar crianças
leitoras e produtoras de texto que sejam protagonistas da
própria aprendizagem.

LUCIANE ROLIM DE MOURA VILAIN

Código Logístico
Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6583-7

9 788538 765837 59177

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