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PANTHEON

A LANÇA INDESTRUTÍVEL
 “Aqui será minha eternidade... um dia que os deuses nunca se esquecerão!”
* Pantheon

Atreus nasceu nas hostis encostas de Targon e recebeu o nome de


uma estrela da constelação de Guerra, conhecida como Panteão.
Desde cedo, ele sabia que estava destinado à batalha. Como muitos
em sua tribo, ele treinou para se juntar aos Ra’Horak, a ordem militar
dos Rakkor. Sem nunca ser o mais forte nem o mais habilidoso dos
guerreiros, de alguma forma Atreus conseguiu perseverar, reerguendo-
se, ensanguentado e ferido, batalha após batalha. Com o tempo,
nasceu uma forte rivalidade entre ele e Pylas, um colega recruta; mas
não importava quantas vezes Atreus fosse jogado contra as pedras,
ele sempre se reerguia. Pylas ficou impressionado com a inabalável
resiliência de Atreus e, em meio ao sangue que ambos derramavam na
arena de treinamento, uma forte camaradagem se constituiu entre os
dois.
Atreus e Pylas estavam entre os Rakkor que se depararam com uma
incursão bárbara e sobreviveram a uma emboscada que aniquilou o
restante da patrulha. Quando o Aspecto do Sol se recusou a destruir
os invasores, Atreus e Pylas juraram capturar o poder dos próprios
Aspectos subindo até o pico do Monte Targon.
Como muitos antes deles, eles subestimaram o quão árdua seria a
subida, e Pylas deu seus últimos suspiros ao finalmente alcançar o
cume. Quando os céus se abriam, só restava Atreus, que tornou-se
anfitrião de um Aspecto divino, com o poder de buscar vingança.
Mas quem voltou ao Rakkor depois, empunhando uma lança e um
escudo que brilhavam com poder celestial, não foi um homem. Foi o
Aspecto da Guerra em pessoa, Pantheon. Julgando Atreus indigno por
ser um guerreiro que conhecera apenas a derrota, o Aspecto tomou o
controle de seu corpo para alcançar seus próprios objetivos; uma
tarefa que ele considerava grande demais para os mortais.
Relegado aos recantos mais remotos de sua própria mente, Atreus
pouco via, enquanto o Aspecto vasculhava o mundo em busca dos
Darkin, armas vivas criadas em eras passadas.
Depois de um tempo, Pantheon foi desafiado a lutar não muito longe
do Monte Targon, pelo Darkin Aatrox, que buscava o pico da
montanha. A luta invadiu os céus e varreu exércitos de homens em
terra firme... até que o impossível aconteceu. A lâmina Darkin, capaz
de matar deuses, perfurou o peito de Pantheon; um golpe que
arrancou a constelação de Guerra dos céus.
Mas quando o Aspecto desapareceu, Atreus, o homem que ele
considerara fraco, despertou. Apunhalado pela lâmina de Aatrox, e
sem o poder das armas do Aspecto, ele respirou fundo e cuspiu no
rosto do Darkin. Aatrox zombou dele e resolveu deixá-lo ali para
morrer.
Horas depois, quando os corvos começaram a se aproximar, Atreus
mal ficou de pé e caminhou cambaleante de volta para os Rakkor,
deixando para trás uma trilha de sangue. Após uma vida inteira de
derrotas, sua vontade de viver e sua raiva pela traição foram o
suficiente para afastar a morte que tinha levado a vida da própria
Guerra.
Atreus recuperou suas forças na casa de Pylas, sob os cuidados de
Iula, a viúva de seu amigo. Lá, Atreus percebeu que tinha passado a
vida olhando para as estrelas, sem nunca se dar conta do que havia
embaixo delas. Ao contrário dos deuses, os mortais lutavam
porque precisavam, sabendo que a morte estava à espreita. Uma
resiliência que ele conservara a vida inteira, diante de infindáveis
ameaças.
Era certo que agora os invasores bárbaros ameaçavam os
assentamentos do norte dos Rakkor, onde ficava a fazenda de Iula.
Embora ainda faltassem meses para que estivesse apto a levantar
uma lança, Atreus estava determinado a acabar pessoalmente com
aquele martírio e resolveu partir com as armas entorpecidas do
Aspecto em mãos.
Mas ao chegar, ele encontrou seus inimigos já sob ataque. Pelos gritos
e pelo forte cheiro de sangue... ele sabia que era Aatrox.
Atreus se deu conta de que os bárbaros haviam ido para Targon
fugindo do Darkin. Embora fossem considerados inimigos, eles eram
muito parecidos com os Rakkor; mortais que sofriam nos conflitos entre
poderes superiores. Atreus sentiu uma raiva profunda, tanto do Darkin
quanto dos Aspectos. Não havia diferença entre eles. Eles eram o
problema.
Atreus se colocou entre os bárbaros e Aatrox. Reconhecendo a lança e
o escudo surrado do Aspecto derrotado, o Darkin zombou dele; que
esperança tinha Atreus agora, sem o poder de Pantheon? Mesmo de
joelhos por causa dos golpes de Aatrox, a determinação de Atreus, ao
ouvir os gritos das pessoas ao seu redor, reacendeu a lança do
Aspecto... e com um poderoso salto, ele acertou um golpe que cortou o
braço do Darkin.
Tanto o Darkin quanto sua lâmina desabaram no chão. Apenas Atreus
permanecia em pé, olhando a estrela que lhe batizou voltar a brilhar no
céu.
Embora às vezes ele sinta vontade de voltar para a fazenda de Iula,
Atreus prometeu, naquele dia, lutar contra os Aspectos, Ascendentes e
demônios e qualquer um cujo poder trouxesse nada mais que a
destruição. Renegando o próprio nome, ele se tornou
um novo Pantheon, com as armas do Aspecto se alimentando de uma
vontade de lutar que só existia diante da possibilidade da morte.
Agora que o divino Pantheon não existia mais, a Guerra renasceria em
um homem.

POR AQUELES QUE CAÍRAM


Quando chego às ruínas de Nerimazeth, não é como se eu tivesse
saltado, com magia celestial incendiando meu caminho pelo céu, mas
como se eu tivesse caído.
Afinal de contas, sou apenas um homem.
Ao meu redor, nas dunas espiraladas, uma coorte dos Ra’Horak luta,
guerreiros Solari agora distantes dos templos do Monte Targon. Eles
marcharam pelo deserto com cinquenta lanças durante três semanas,
uma distância que eu teria percorrido em alguns instantes, para
investigar um poder que só cresce, enquanto o deles só diminui. Aqui,
o sol que eles cultuam é tão constante que as sombras do passado
ainda parecem gravadas no deserto, representando tudo aquilo que
restou de um império há muito tempo perdido. Suas construções, todas
cobertas pelas dunas. Um sol, outrora destinado a levar os mortais aos
céus, agora estava sem vida e caído na terra.
Shurima nasceu e morreu aqui. Foi em Nerimazeth que o primeiro
Ascendente foi criado. Destinados a defender Shurima de qualquer
ameaça, aqueles que sobreviveram ao império foram levados à loucura
por longos séculos de conflito, tornando-se Darkin e devastando o
mundo até que fossem contidos.
Mas, como bem sei, algumas abominações geradas pela arrogância
shurimane ainda vivem...
O som do metal ressoa em meu ouvido quando uma lança passa pelo
meu elmo. E outra, e mais outra. Os ruídos metálicos se transformam
em um único e pleno grito de guerra à medida que os Ra'Horak
revelam sua força. Enquanto o céu é tomado pelo aço, uma explosão
de magia rasga o trajeto das lanças, entalhando uma faixa de
destruição ao longo das ruínas.
Quando a poeira baixa, eu a vejo. A razão pela qual eu vim. Surge uma
criatura ardente e doentia, como o império que viria a governar. É
diferente de todos os Ascendentes que já vi, um deus devastado que
reivindicou essa cidade arruinada e queria vê-la ascendendo
novamente.
Mas até mesmo tal criatura... um dia havia sido um homem.
Vou relembrá-la do que isso significa: poder respirar mesmo em meio à
destruição. Farei com que todos se lembrem disso.
O "deus-guerreiro!":, grita um dos Ra’Horak. "Não podemos derrotá-lo!"
"Vou te mostrar como um deus morre!”, grito em resposta e acelero em
direção à criatura, erguendo minha lança. É com o poder deles que a
lança reluz: o poder dos deuses. O poder das estrelas. Meus músculos
se distendem para aguentar o peso anormal da magia, enquanto a
criatura desencadeia outra explosão de dentro de sua forma
devastada. Minha lança não se desfaz em brasas como a dos
Ra’Horak, mas arde com sua própria luz. Ela risca o ar como um
cometa em direção ao Ascendente, jogando-o na terra e levando sua
explosão para os céus.
Em minha frente, a apenas alguns metros da fenda aberta pela
explosão da criatura, uma Ra’Horak embala em seus braços o corpo
de um guerreiro caído. O braço dela foi queimado pela magia quando
tentou protegê-lo do ataque.
"Você... Você é um Aspecto", diz ela, embora eu veja o desespero em
seus olhos. Ela roga, implora para que eu diga que "sim", para que eu
possa salvá-la. Para que eu possa salvar o amigo dela. À nossa volta, as
enormes fileiras de guerreiros Ra’Horak foram despedaçadas,
juntamente com sua vontade de lutar.
Não respondo, mas a lança volta à minha mão por meio da magia que
aquela Ra’Horak tanto almeja, e seu retorno é um eco do meu próprio
impulso. O Ascendente não deixou quaisquer traços de sangue na
ponta da lança, apenas areia. Não há nem sinal de carne, apenas
magia e pedra.
Sinto vontade de dizer meu nome a ela. Que sou Atreus, que também
já fui um Ra’Horak que implorava aos céus por algum poder que me
salvasse... mas esse homem morreu. Ele morreu no pico do Targon,
ao lado de seu irmão, Pylas. Assassinado por Pantheon e por suas
próprias falhas. E não importa o quanto eu tente, não posso trazer
Atreus nem Pylas de volta. Até mesmo o deus já se foi... sua
constelação foi arrancada dos céus.
Viro-me para encarar a criatura mais uma vez.
"Você deve lutar", é só o que digo à Ra’Horak. "Todos vocês devem."
Ao nosso redor, a cidade arruinada queima, enquanto a magia do
Ascendente se recusa a desvanecer.
Passo por cima de areia fundida em vidro e cada nova explosão de
magia estremece o mundo inteiro, chegando a parecer que a própria
terra desmoronará. E que apenas os céus sobreviverão. Mas me
recuso a desistir. Vejo balistas, todas abandonadas no chão. Os
Ra’Horak levantam seus escudos para se protegerem dos destroços
arremessados pelas construções em queda, desaparecendo em meio
à poeira.
"Lutem! Vocês devem lutar!", grito mais alto, com uma voz que carrega
muito mais autoridade dos deuses do que eu gostaria. Eu parto para
cima do Ascendente, usando minha lança para atacá-lo e
atravessando a rocha despedaçada que tomava o lugar de seu rosto.
Eis que suas explosões atingem meu escudo, jogando-me para trás.
Ataco novamente, com minha lança emanando magia, e outra vez,
enquanto ergo meu escudo a tempo de desviar da ira do Ascendente.
Meus pés ficam presos nos escombros. Esforço-me para manter a fera
distante enquanto a magia me atinge com a vontade do Ascendente,
fortalecido pela crueldade e pela fúria. Eu o empurro, repleto de ira, e o
poder é expelido pelo escudo descontroladamente em todas as
direções, atravessando as ruínas, o céu e a multidão dos Ra’Horak,
ainda acovardados em meio ao caos. Minhas mãos começam a
tremer, não pelos guerreiros, mas por mim mesmo, que resmungo
ofegante, enquanto luto para respirar:
"Lutem..."
A criatura fica com os olhos entreabertos. Ela sabe. A terra sob meus
pés não aguenta mais. Eu não aguento mais. Conforme vou caindo à
terra, a magia de minha lança se extingue e o elmo é derrubado
enquanto eu tusso.
Cuspo sangue nos destroços e mal consigo erguer a cabeça. Mas tudo
o que consigo enxergar de Nerimazeth é aquela guerreira Ra’Horak,
rodeada de fumaça e caos. Ela me encara, fitando os meus olhos que
apenas agora estavam visíveis... e, pela primeira vez, ela vê algo além
de um Aspecto. O homem que havia acalentado Pylas em seus braços
enquanto sua respiração agonizante formava neve.
Pergunto-me se ela havia reconhecido as estrelas, se havia
reconhecido meu destino, tatuados em meu peito. A cicatriz que os
atravessa. Seus olhos não emitem mais súplica, enquanto eu vejo a
iluminação crescente em seu rosto, com a criatura reunindo poder para
mais uma explosão. Embora seu braço estivesse gravemente ferido e
seu amigo estivesse estirado no solo, ela apanhou o escudo e
começou a cambalear em minha direção, tão inevitável e determinada
quanto a morte.
"Qual... é o seu nome?”, digo tossindo e ofegante, com a luz
aumentando cada vez mais.
"Asose", diz ela com firmeza enquanto se posiciona ao meu lado,
virando seu escudo para encarar a explosão.
As ruínas se enchem daquela luminosidade que promete destruir tudo,
e assim o faz, restando apenas a escuridão. Não há mais poder, não
há mais Aspecto. Não há mais nada onde Asose estava. Apenas
minha memória.
Ainda assim, sinto minha cicatriz latejando dolorosamente. Fazendo-
me lembrar de que estou vivo e de cada momento que me trouxe até
aqui. De Pylas, meu irmão de batalha, dizendo-me para deixar de derramar
sangue em suas vitórias… Do ataque bárbaro, de nós dois à beira da morte…
Do fracasso no pico de Targon… Da espada Darkin, atravessando a morte
para me fazer renascer… Do trigo do Empíreo, agarrando-se à montanha…
Da lama em minhas mãos quando soltei o arado e peguei a lança…
Tudo isso estaria acabado sem aquela mulher com aquele escudo,
sabendo que não sobreviveria, mas lutando mesmo assim. O poder e o
sacrifício dela superavam muito os das estrelas. Superavam muito os
meus e os das armas do Aspecto que me mantiveram em segurança.
Não será em vão.
Enquanto me esforço para ficar de pé, devastado, vejo a sombra dos
Ra’Horak emergindo, encobrindo o berço do Disco Solar atrás de mim,
no centro das ruínas. Levanto-me com eles, não como um deus, mas
como um homem. Meu panteão, todos aqueles que caíram,
concedendo-me outro momento. Todos aqueles que viveram, e todos
aqueles que morreram, diante de um momento de verdade em que
precisam decidir por que lutam. Quem eles amam. O que eles
realmente são.
O que são deuses diante dessa coragem? Eles não são nada.
"Asose!”, grito bem alto em meio às ruínas, mesmo que minhas
costelas estejam a ponto de perfurar os pulmões.
"Asose!", os Ra’Horak gritam de volta. Eles também estão em meio aos
escombros, suas sombras cada vez maiores conforme o Ascendente
volta a acumular magia.
E embora eu esteja devastado, embora o deus esteja morto, sinto o
poder incendiar mais uma vez minha lança, enquanto as plumas do
meu elmo explodem em chamas. Sinto o chamado à batalha, enquanto
os Ra’Horak arremessam suas lanças mais uma vez.
E, por um momento, uma estrela perdida com a Constelação da
Guerra brilha mais que o próprio sol.
Seu nome era Asose.
EM BATALHA,
DESTRUÍDO
POR L. J. GOULDING

SHORT STORY

EM BATALHA, DESTRUÍDO
POR L. J. GOULDING

Achar que os Aspectos agem em prol de Targon ou dos targonenses é uma


tolice da mais alta ordem.
Quando o primeiro Rakkor escalou a Grande Montanha, desejava aproximar-
se do sol sagrado, a fonte divina de toda a luz e grandiosidade deste mundo.
No entanto, ao chegar ao cume, encontrou seres estranhos e sobrenaturais à
espera.
Não deuses. Não havia deuses na montanha nem acima dela. Os Aspectos
nunca alegaram ser e os Rakkor nunca os consideraram como tal. Apesar de
todo o seu poder divino, os seres tinham descido do firmamento do reino
celestial. Ainda assim, eram incapazes de entrar em Runeterra sem ajuda, e
estavam dispostos a pagar muito caro para isso. O bastante para usar o pior
da nossa natureza contra nós. O bastante para trair o próprio sol dourado.
Até hoje, os Aspectos buscam manipular um mundo que não é deles, por
razões que não somos capazes de compreender completamente, em uma
escala de tempo que ridiculariza até a maior das ambições mortais.
No entanto, podemos ter certeza de que suas motivações não são humanas e
de que apresentam um nível de capacidade para crueldade e dissimulação
nunca antes visto.
– da "Tribo do Último Sol", da Hierarca Malgurza de Helia
Cansada das tarefas do dia, Iula limpou as mãos enrijecidas no avental
e ergueu uma xícara em direção à cornija da lareira.
"Um brinde a você, meu amor", sussurrou antes de levá-la aos lábios.
Uma onda de doçura. Calor. Os últimos raios de um pôr do sol no outono.
Ela apreciou o sabor por um momento, deixando-o descansar no céu
da boca, respirando lentamente pelo nariz. Então, baixou o olhar para
a bebida e agitou suavemente o líquido dourado.
"O que achou?", perguntou Hanne enquanto fechava a porta da casa
da fazenda atrás de si.
Iula deu de ombros. "Bom. Talvez fique melhor com o tempo."
A mulher mais jovem colocou dois grandes sacos de grão no chão, ao
lado da mesa da cozinha, e serviu uma xícara para si mesma. Iula a
viu cheirar a bebida e dar um gole generoso em seguida.
Hanne tossiu e piscou com força duas vezes.
Três vezes.
"Dá pra... Dá pra sentir a fumaça mesmo...", conseguiu dizer. "O
hidromel é sempre… assim?"
Iula sorriu, passando os dedos pelos ramos de ervas pendurados nas
vigas do teto. "Não, nem sempre. Depende do que você coloca. Pra
um medu tradicional, eu esperava que a sálvia de sebe tivesse um
gosto mais forte. Talvez a gente use mais na próxima vez. E fresca,
não seca."
"Mas ainda vamos levar para o mercado? Vai ficar pronto até lá?"
"Tá tudo bem. Depois da fermentação, podemos adoçar cada jarro
com um pouco mais de mel antes de eu selá-los."
Hanne bebeu todo o hidromel com apenas um leve indício de careta
antes de baixar a xícara. "Acho que vi só mais um favo de mel no
armazém", disse. "Vou trazer."
"Sem pressa. Não vou fazer isso esta noite. Preciso começar a massa
lêveda antes de dormir."
"Não custa nada!", insistiu Hanne. "Vou agora, antes de servir o jantar
do rapazinho aqui."
O pequeno Tomis ainda estava sentado à mesa, balançando os pés
descalços num vai e vem. Embora o dia tivesse sido longo, o olhar dele
continuava vivo... e muito atento à bebida na mão de Iula.
"Posso provar?", pediu assim que Hanne saiu.
Iula se virou para ele com uma expressão muito exagerada de falsa
confusão. "Você está falando do ensopado delicioso que a Hanne fez
pra nós?", perguntou, apontando para a lareira com a xícara.
Tomis balançou a cabeça. "Não. O medu."
"Bom, acho que não seria uma boa ideia, não é?", respondeu,
passando por cima do banco para se sentar ao lado dele. Seus joelhos
e cotovelos rangeram no processo, mas eles sempre rangiam, então
ela havia deixado de reparar nisso há anos.
Ela tocou no grande jarro de vidro próximo a ele.
"E o seu belo chá solar, hein? Não quer tomar um pouco? Passamos o
dia inteiro fazendo e você ajudou bastante! Estou ansiosa pra provar."
Tomis torceu o nariz. "Não gosto mais de chá solar."
"Ah, não pode ser! É uma bebida muito especial pra um jovem Rakkor.
Enche você da cabeça aos pés com as bênçãos do Sol. Não é isso
que você quer?"
O garoto ficou muito quieto e imóvel, baixando o olhar para a mesa.
"Então por que a senhora guarda sua bebida no escuro?", murmurou
queixosamente. "Quer dizer que ela é má?"
De repente, Iula ficou com medo de ter exagerado. "Ah, não", riu,
envolvendo-o com o braço, "Não é má. Nem um pouco. Meu marido
querido me ensinou a fazer hidromel no começo do casamento. Tenho
que deixar no escuro por um tempo para... hã... que fique mais... meio
que..."
Desistiu de tentar explicar fermentação para uma criança de quatro
anos e apertou o nariz dele na brincadeira.
"Olha, garoto, algumas das melhores coisas que adultos apreciam
acontecem no escuro, tá bom? Um dia, quando for mais velho e mais
alto, você vai entender. E aí vai poder tomar um gole de hidromel! Mas,
por enquanto, vamos tomar chá solar! Que tal poupar meus pés velhos
e cansados e trazer duas xícaras limpas pra mim?"
Tomis riu e correu até a despensa. Iula observou o garoto se afastar e
tomou o último gole do hidromel rapidamente, logo antes da porta da
casa da fazenda se abrir.
"Pensando bem, Tom", balbuciou, "traga três. A Hanne voltou e ela vai
querer..."
"Iula."
Algo no tom de voz de Hanne gelou o sangue de Iula. Fela ficou em pé
antes que se desse conta, avançando para juntar-se à garota na
entrada aberta. "O que foi?"
"Tem alguém vindo. Acho que... Acho que é um Solari."
Iula semicerrou os olhos na direção da escuridão crepuscular do vale,
para além do pátio poeirento da humilde casa e dos campos de trigo
do empíreo.
Ali.
Realmente, ela via a figura abatida e distante de um homem vestido
com uma armadura dourada e embotada. Ele atravessava lentamente
a plantação, mas não havia dúvida sobre o destino que tinha em
mente. O lar de Iula era afastado e isolado e os vizinhos mais próximos
moravam há horas dali, ao norte.
Ela suspirou, acalmando os nervos, e saiu para o pátio.
"Saudações, amigo", cumprimentou. "Que a luz do Sol ilumine você.
Espero que sua viagem pelas montanhas não tenha sido muito difícil."
O homem não respondeu nem parou de aproximar-se.
Iula continuou. "Posso oferecer comida e água, mas lamento dizer que
guerreiros não são mais bem-vindos à casa que já compartilhei com
meu amado. Quem sabe você já tenha ouvido falar dele? Pylas dos
Ra’Horak. Foi um herói nobre dos Solari há uns quarenta anos. Tenho
o apoio dos sacerdotes em reconhecimento ao serviço dele. Você não
vai encontrar inimigos aqui, eu garanto."
O homem continuou em silêncio.
Ele atravessou a vala inferior. Agora, estava a apenas cem metros da
casa.
"Hanne", disse Iula, calma, "vá pegar a espada do meu marido."
A garota não se mexeu. Seus olhos estavam fixados na figura que se
aproximava.
Iula lhe lançou um olhar sério.
"A espada pendurada sobre a lareira. Pegue para mim. Agora. E não
se esqueça de esconder o Tomis."
Havia algo peculiar no guerreiro. Enquanto a figura chegava mais
perto, ela notou que ele vestia uma capa azul-escura, rasgada e
manchada em batalha, e que um escudo pendia debilmente ao lado
dele. A lança do sujeito, o punho corroído e curvado, se arrastava na
terra atrás dele como o arado de um rei de mendigos.
Iula deu um passo para trás. Não sabia o que o homem estava fazendo
ali... mas, se ele pretendesse fazer mal aos três, ela estaria pronta
para revidar.
Hanne saiu da casa segurando a espada embainhada contra o peito e
soltou uma lamúria ao ver o guerreiro se lançar no caminho entre o
pátio e os campos. Ele tropeçou e Iula percebeu que a sandália
esquerda batia frouxamente no pé ensanguentado.
Ela sentiu o coração trovejar nas orelhas.
"...Atreus?"
O guerreiro parou ao ouvir o som do próprio nome. A lança escorregou
das mãos dele.
E então ele começou a cair.
Sem pensar, Iula e Hanne se lançaram para a frente numa tentativa vã
de segurá-lo, uma reação instintiva e mortal ao ver uma verdadeira
divindade humilhada e derrotada.
No entanto, é claro que não conseguiram.
Atreus, outrora conhecido como Pantheon e Aspecto da Guerra, caiu
de cara no piso de pedra, o elmo tinindo como o sino partido de um
templo ao rolar pela escuridão.

No quarto dia, ele despertou. Iula não o ouviu levantar da cama, vestir
a túnica recém-lavada e seca que ela e Hanne lhe deixaram nem
rastejar pelo corredor de pedra arenosa até a cozinha.
Deu-se conta da recuperação quando o cheiro inconfundível de
queimado invadiu suas narinas.
Atordoada, rolou para fora de sua cama simples com o coração aos
pulos.
"Hanne!", gritou. "Hanne, chame o Tom!"
O chão estava frio sob seus pés, mas Iula não procurou as sandálias.
Afastou a cortina divisória para o lado, praguejando ao bater o ombro
na madeira do batente enquanto atravessava.
Havia fumaça no corredor.
"Hanne!"
Estremecendo, segurando o ombro, ela martelou o punho na parede
de pedra áspera do quartinho de Hanne até a cozinha antes de lembrar
que a garota devia ter ido ao mercado horas atrás. Iula precisaria
resolver isso sozinha.
Então, fez uma curva e parou abruptamente.
Atreus estava agachado diante do forno de pão na lareira, abanando
freneticamente uma pequena chama com o próprio escudo. Os olhos
estavam irritados devido à fumaça, as mãos cobertas de farinha e
fuligem.
Ele olhou por cima do ombro para Iula.
"Perdão", arfou. "Não... Não sei o que eu..."
Ela soltou um grito irritado e pegou uma jarra de água na despensa.
"Sai da frente, grandalhão!"
Um vapor saiu do forno quando o fogo foi extinto. Iula tossiu e arfou,
soltando a jarra para cobrir a boca e o nariz com seu roupão noturno.
Encarou o guerreiro, que estava parado timidamente no meio do
cômodo.
"O que você está esperando? Vá abrir a porcaria da porta", vociferou
para ele enquanto cambaleava até a janela e abria-a com força. O sol
da manhã invadiu as sombras, quase virando barras sólidas de luz na
fumaça.
Atreus abriu a porta, pensou por um instante e começou a mexê-la
para a frente e para trás para que o ar fresco entrasse. Iula lançou um
olhar fulminante para ele antes de ajoelhar-se diante do forno para
avaliar o dano.
"Bom, lá se foi a fornada inteira", murmurou, arrancando
cuidadosamente um dos pães encharcados e queimados da bagunça.
A base de pedra rangeu e crepitou enquanto esfriava, com uma lama
de cinzas e água caindo no chão sob a lareira aberta. "E o fogo
apagou também. Demorei um dia inteiro para deixar na temperatura
certa, sabia?"
Ela apontou um dedão para Atreus por cima do ombro.
"Eu falei na última vez em que esteve aqui: você nunca será padeiro.
Desista."
Ele continuou a ventilar com a porta como se fosse a tarefa mais
importante do mundo. "A garota", murmurou. "Ela me pediu pra cuidar
do pão antes de sair."
Iula ficou em pé com um pouco de esforço. "Você falou com a Hanne?"
Atreus fez que sim. Olhou ao redor à procura de algo para manter a
porta aberta antes de dar de ombros e usar o próprio escudo. Quando
o guerreiro se levantou de novo, ela notou que ele não a olhava nos
olhos, mantendo o olhar no chão entre os dois.
Iula não conseguia espantar a sensação de que, de alguma maneira, o
homem parecia... mais fraco do que se lembrava. Era como se ele
tivesse encolhido, talvez. No passado, ele sempre irradiara uma
espécie de rebeldia obstinada, que tranquilizava aliados e perturbava
quem viesse a desafiá-lo.
Aquilo se fora.
Atreus passou os dedos pela barba, parecendo tentar encontrar uma
combinação específica de palavras que gostaria de dizer. "Eu queria...
Quero achar um jeito de recompensar você, Iula. Por todas as
gentilezas que fez por mim ao longo dos anos."
Ela bufou. "Bom, vamos ter que achar alguma coisa fora da cozinha.
Talvez eu deixe você arar os campos antes da semeadura na próxima
estação. Nem mesmo você consegue atear fogo na lama. Pelo menos
é o que espero. Talvez eu esteja errada."
O lampejo de um sorriso cruzou o rosto dele, mas foi apenas um
lampejo.
Então, o olhar do guerreiro se desviou dela para o corredor.
Iula viu Tomis parado ali, espiando da curva, agarrando a beirada da
parede com os dedinhos. Ela alisou o roupão e fez um gesto para a
criança.
"Venha aqui, Tom. Venha dizer oi. Esse é o homem que estamos
ajudando. Ele se chama Atreus, somos amigos há muito tempo. Muito,
muito tempo mesmo. Mas você não saberia só de olhar pra ele, né?"
O garoto não se mexeu. Nem Atreus.
Suspirando, ela se arrastou e pegou Tomis no colo, deixando-o
descansar a cabeça em seu ombro machucado enquanto carregava-o
para a cozinha. "Acho que ele está com um pouco assustado. Você é o
primeiro soldado que ele vê desde..." As palavras morreram nos seus
lábios. Iula sorriu para o menino e assoprou o cabelo dele
carinhosamente. “Bom. Ele é um órfão. Os últimos anos não foram
fáceis para o povo dos vales altos."
Atreus alternou o olhar entre Iula e Tomis.
"Ele não é seu?"
Iula riu. "Você está falando sério? Nunca tenho certeza com você."
Os olhos de Atreus voltaram a pousar no chão. "Não... Não estou..."
"Não, Atreus. Garanto que esse menininho não é meu filho. E antes
que pergunte: não, Hanne também não é minha filha. Tenho sessenta
e oito anos e sei que aparento, então não me venha com elogios pra
que eu perdoe você pelo pão queimado. Sei que você não fica velho,
mas o resto de nós, mortais, fica, sim."
Então, ela fitou o guerreiro diante dela, um homem que conhecera
quase a vida toda, e se deparou com algo que nunca tinha visto antes.
Ele tinha os olhos cheios de lágrimas. Tremia.
Ela tentou dar um passo na direção dele, mas Tomis se contorceu
desconfortavelmente em seus braços com a ideia, então ela o colocou
no chão. "Vá, mocinho. Volte para o quarto. Levo seu café da manhã
logo, logo."
Apesar de seu sorriso tranquilizador, o garoto saiu da cozinha muito
cautelosamente. Iula se voltou para Atreus, que havia se inclinado para
pegar a jarra.
"Você sumiu por tanto tempo", disse ela, estendendo o braço para pôr
uma mão reconfortante no braço dele. "Eu estava começando a me
pergun…"
Atreus reagiu ao toque como se atingido por um raio de verão.
"Fique longe de mim!", berrou, recuando com tanta força que caiu sobre
o banco de madeira baixo e rachou a testa no canto da mesa.
Iula se afastou, quase perdendo o equilíbrio também.
Atreus escondeu o rosto com uma mão e tentou se levantar e
recuperar a compostura. O guerreiro se acuou no espaço atrás da
porta aberta e ergueu os joelhos, como um muro entre ele e o resto do
mundo. "Não me toque, não me toque, não me toque", repetiu baixinho
de novo e de novo.
Fora doloroso ver o corpo dele destruído, mas Iula sabia, agora, que as
feridas que ele devia ter sofrido recentemente eram muito mais
profundas.
E ver aquilo, presenciar aquilo era mais doloroso do que qualquer coisa
que pudesse imaginar.
Ela cruzou os braços firmemente sobre o peito, soluçando levemente,
segurando o tecido do roupão, e se sentou de frente para ele no chão.

Ficaram sentados ali por um tempo. Iula não disse nada por um bom
bocado, observando, através janela, a luz do sol avançar lentamente
pelos ladrilhos cinza, sem pensar na dor reumática nas juntas ou no
frio nos dedos do pé.
Por fim, quando Atreus pareceu calmo o bastante para baixar um
pouco a cabeça, ela enxugou os olhos com as mangas e limpou a
garganta.
"O que aconteceu com você, velho amigo?", perguntou.
“Não sei. Eu não... Eu não lembro direito."
"Do que você se lembra? Você se lembra da última vez em que esteve
aqui? Da última vez que nos vimos?"
Ele franziu um pouco a testa. "Acho que sim. Há quanto tempo foi
isso?"
"Seis anos, Atreus. Não te vejo há seis anos."
Suas palavras pairaram no ar por mais tempo que o pretendido. A
mulher o viu tentar processá-las considerando o que quer que quisesse
lhe contar.
"Eu... acho que voltei para o cume", murmurou ele. "Acho que escalei a
montanha de novo."
Iula arregalou os olhos. "Mas..."
"Eu sei. Deveria ser impossível. Mesmo assim, aconteceu."
Aquilo estava além de qualquer coisa que ela imaginara. Claro, havia
lendas, mais antigas até do que o império de Shurima, sobre
escaladores que alcançaram o cume do Monte Targon, não foram
reivindicados por um Aspecto e, contra todas as estatísticas,
conseguiram descer e voltar para o próprio povo; seja em vergonha ou
triunfo, os contos não costumavam ser claros e não eram considerados
nada além de parábolas fantasiosas.
No entanto, a ideia de que qualquer mortal, até mesmo o hospedeiro
de um Aspecto, pudesse escalar duas vezes...
Era inédita.
Ela riu, batendo no chão com a palma da mão. "Meu velho amigo",
sorriu, "se alguém fosse reescrever as leis do mundo um dia, tinha que
ser você!"
Atreus balançou a cabeça e Iula sentiu toda a frivolidade sumir.
"Não", contradisse ele. "Não fui eu."
"Então quem..."
"Viego."
Embora nunca tivesse ouvido aquele nome, ela estremeceu diante do
som. Não gostava de pensar que palavras ou nomes pudessem ter
tanto poder sobre os vivos. Talvez fosse apenas a maneira como
Atreus falara, o olhar assombrado e frágil.
"Viego. O antigo rei que trouxe a Névoa Negra para as nossas terras.
Tentei enfrentá-lo, mas ele... hã..."
Atreus coçou a cabeça distraidamente.
"Ele me fez de fantoche, Iula. Acho que fiz coisas muito, muito
terríveis."
Iula estava entorpecida. Lembrou-se do estado desgrenhado de Atreus
quando ele cambaleou de volta para o vale e de como ela e Hanne não
ousaram imaginar quais inimigos o guerreiro enfrentara para cegar as
armas e embotar a armadura de um Aspecto.
Será que haviam mesmo sido inimigos?
Ficou de joelhos e percebeu que não conseguia parar de balançar a
cabeça, incrédula com a injustiça de tudo aquilo. "Sinto muito. Sei o
quanto foi difícil pra você ser controlado pelo Pantheon anos atrás. Isso
deve ter sido... Ah, Atreus. Sinto muito pelo que aconteceu com você,
meu amigo."
Lenta e cautelosamente, ela tentou tocá-lo. Dessa vez, ele não se
encolheu, mas seu rosto se enrugou com uma tristeza dolorosa.
"Ah, Atreus", repetiu e abraçou-o, embalando-o gentilmente para a
frente e para trás no chão da cozinha. O guerreiro segurou suas vestes
com as mãos marcadas, o rosto pressionado contra seu peito, não tão
diferente assim do jovem Tomis nos primeiros dias após chegar à
casa.
À beira das lágrimas também, Iula fechou os olhos.
"Me diga do que precisa, velho amigo", sussurrou. "Vou fazer o que
puder por você. Sabe disso."
Atreus respirou mais fundo para se acalmar.
"Eu preciso que me diga que desistir não é um problema", respondeu
ele.
Iula congelou subitamente. "Quê?"
"Tem tanto mal no mundo. Nós dois já vimos. Lutei contra ele por tanto
tempo, nem me lembro de como era antes... mas estou cansado. Muito
cansado, Iula. Que esperança os mortais têm de derrotar reis imortais
ou deuses-guerreiros caídos? Os Aspectos e os escravos deles.
Demônios do reino espiritual. Runeterra está virando o parque de
diversões deles. Achei que eu só precisava continuar me levantando,
aconteça o que acontecer. Mas, se até eu posso ser transformado num
inimigo, então resiliência não basta mais."
"E o pior de tudo é que eu perdi o pouco de poder que eu ainda tinha
depois que meu Aspecto foi morto. Deve ser obra do Viego. O que
quer que me ligasse ao reino celestial se foi. Sou... sou só um homem.
Então preciso que me diga que não é um problema deixar tudo para
trás. Você é a única pessoa que eu..."
Iula o empurrou e se ergueu, trêmula. A adrenalina invadiu suas veias.
Percebeu que a questão não era apenas a falta da rebeldia
reconfortante dele, a qual, durante muitos anos, fez com que se
sentisse mais segura só de saber que seu amigo estava lá fora, em
algum lugar no mundo.
Ele realmente tinha desistido.
"Como se atreve?", murmurou ela.
Atreus se levantou, confuso, elevando-se acima dela, e secou o rosto
com a parte de trás do antebraço.
"Não enten..."
"Como se atreve?!", gritou Iula. "Como pode pensar em pedir isso?"
Ele titubeou, cerrando os punhos involuntariamente. "Eu não aguento
mais. Por favor."
Um gosto amargo surgiu no fundo da garganta dela. A raiva era tão
intensa, tão ardente, que ela não conseguia mais sentir o chão sob os
pés.
"Como ousa?", vociferou. "Como ousa?! Covarde. Como tem coragem
de me dizer isso?"
"Iula, por favor, escute..."
Ela deu um tapa forte no rosto dele.
E mais um.
O guerreiro não tentou se defender, mas encarou-a, atônito, a
bochecha ficando vermelha rapidamente.
Iula não conseguia chorar. Estava furiosa demais. "Ele te amava,
Atreus! Pylas te amava mais do que a um irmão. Ele era meu marido,
mas subiu aquela montanha amaldiçoada com você mesmo depois de eu
implorar que não fizesse isso. Ele era meu e você o perdeu lá em
cima!" Ela soltou um grito mudo de dor e afundou as unhas nos
antebraços. "Você pôde segurá-lo, Atreus. Pôde segurá-lo enquanto
ele morria. E o que eu ganhei?"
Ela apontou para a cornija da lareira, onde a arma de Pylas estava
pendurada.
"Uma espada. Nada mais."
Iula cerrou a mandíbula e olhou para cima, para o céu aberto e limpo
que imaginava haver além das vigas do teto.
"Não ouse falar das coisas que perdeu e do quanto não aguenta mais.
Você não pode se aposentar. Não tem essa opção. Você não é a
questão aqui. Nunca foi. Eu te ajudei porque é o que Pylas teria
desejado. Até tentei virar soldado e me juntar a você no campo de
batalha depois da morte dele. Ele morreu por você, para que se
tornasse algo maior do que qualquer Ra’Horak. Maior do que qualquer
mortal."
Atreus balançou a cabeça. "Mas não sou."
Exasperada, ela saiu deu passos rápidos e pesados até a lareira,
agarrou a espada, arrancando-a da bainha e pressionou-a contra o
coração de Atreus em um só movimento.
"Então não precisamos de você! Podemos muito bem deixar que os
Aspectos comecem uma guerra e que esse seja o fim de tudo!"
A ponta do aço temperado pelo sol rasgou os fios da túnica de Atreus e
fez um fio de sangue escorrer pelo peito dele. Ele baixou a cabeça e
viu o pequeno ponto vermelho se espalhar lentamente pelo tecido.
Depois, voltou a olhar para Iula.
"Que guerra?", perguntou com a voz fraca.
Ela segurou a arma com mais força, percebendo somente naquele
momento que não sabia como esperava que isso acabasse.
"Os Solari, Atreus. Eles enxergam heresia em todo lugar. E não estão
matando só quem acham que é Lunari, mas também qualquer pessoa
suspeita de abrigar um." Incapaz de tirar uma mão do punho, Iula
acenou com a cabeça na direção do corredor aberto. "O povoado
inteiro do Tomis. Os Ra’Horak massacraram todo mundo. Isso, é isso o
que acontece quando os Aspectos se escondem atrás da superstição
dos mortais. Seus antigos irmãos foram atraídos para a escuridão pela
luz ofuscante da nova salvadora deles."
Algo semelhante a compreensão passou pelas feições de Atreus,
como se ele tentasse se lembrar de um sonho evanescente. "E o
Aspecto da Lua... Claro, ela ainda não reivindicou a liderança dos
Lunari."
"E quanto as coisas vão piorar quando isso acontecer?", sibilou Iula.
"Você jurou que iria enfrentá-los, Atreus, que não deixaria o destino
deste mundo ser ditado por tais monstros inumanos, nem mesmo
depois que decidiram não fazer nada. Lamento o que aconteceu com
você de verdade... mas não posso deixar que quebre seu juramento.
Não agora."
Lenta e deliberadamente, Atreus envolveu a lâmina com os dedos da
mão direita. "Matar os Aspectos da Lua ou do Sol não vai resolver o
conflito em Targon. Assim como a morte da Guerra não trouxe paz
eterna."
"Cala a boca. Pare de tentar justificar o que você quer e faça o que
sabe que deve fazer. Aquele menininho estava morrendo de medo
quando você chegou, mas, mesmo assim, quis usar seu elmo e
empunhar sua lança assim que os viu. Se você não tomar uma atitude
agora, este será único futuro dele: crescer para lutar e morrer como
tantos outros Rakkor."
Ela forçou o máximo de convicção que podia em sua voz.
"Você tem que se reerguer, Atreus. Eu não queria ser uma fazendeira
viúva. Não queria herdar tudo isso. Tive que abrir mão da minha
vida e do meu amor, então você precisa mostrar que é digno da fé que
meu marido tinha em você. Precisa honrar os sacrifícios que todos nós
fizemos e impedir que os Aspectos destruam nosso povo por inteiro."
Com uma expressão de determinação, Atreus segurou a mão
dominante de Iula, pedindo gentilmente que investisse com a lâmina
para frente.
"Não consigo", sussurrou, a voz embargada. "Não sou forte o
suficiente."
Foi a gota d'água. Iula estava farta.
Ela jogou a espada no chão e passou por ele, seguindo em direção ao
quarto de Tomis. "Bom, se você vai desistir e morrer, diga ao meu
marido que o amo quando o vir", gritou sobre o ombro antes de pegar
a criança assustada no colo e sair correndo da casa aos prantos. Não
olhou para trás para ver se Atreus os seguia.
"Aonde a gente vai?", perguntou Tomis.
Iula estremeceu ao sentir os cortes do caminho de pedra nos pés
descalços, mas não desacelerou.
"Vamos cortar mais lenha, meu bem", forçou um sorriso. "Vamos assar
pão de novo hoje."

Quando voltaram, Atreus tinha partido.


Iula ignorou o bilhete colocado cuidadosamente ao lado da espada
embainhada de Pylas na mesa da cozinha e foi fechar a porta.
Dizendo a si mesma que estava apenas conferindo se Hanne já estava
voltando do mercado, vasculhou as trilhas distantes que levavam para
cima e para fora do vale, mas não encontrou sinal de ninguém.
Respirou fundo para se acalmar, soltando a respiração lentamente ao
andar até a lareira, e se ajoelhou diante do forno frio com um grunhido
de desconforto. Então, sem ler, ela amassou e enfiou o bilhete na
lareira e começou a cantarolar uma antiga canção de sua juventude
enquanto empilhava lenha fresca sobre ele.
Iula esperava com todo o coração que aquela não fosse a última vez
que via seu velho amigo; que ele encontrasse uma saída das trevas,
pelo bem de todos, independentemente do caminho que escolhesse.
No entanto, até lá, ela iria afiar a espada do marido e se preparar para
enfrentar o que viesse pela frente.

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