Você está na página 1de 5

Os mitos dos Acidentes de Trânsito

De elevada complexidade e decorrentes da interação entre os fatores causais humano,


veicular e viário-ambiental, o que incorpora um grande número de variáveis e permite
inúmeras combinações no estudo das suas causas, os acidentes de trânsito são ainda cercados
de diversos mitos. Vejamos a seguir, 20 dos mais conhecidos:

1) “99% dos acidentes de trânsito são causados pelos motoristas.”

Ainda que o fator humano seja preponderante como causa dos acidentes de trânsito, o
fator causal veicular e o fator causal viário-ambiental são negligenciados nas estatísticas
elaboradas a partir de informes policiais. Estes fatores quando considerados como causas
associadas a outras, a partir de uma visão de analise sistêmica, aumentam muito sua
participação, o que só aparece em estudos científicos. É consenso mundial de que o fator
humano, associado a outras causas, corresponde a aproximadamente 90%. No entanto,
afirmar que 99% dos acidentes são causados unicamente pelos condutores é lavar as mãos e
jogar toda a responsabilidade para os condutores.

2) “Em um acidente de trânsito seguido de incêndio, resulta a explosão do tanque.”

Quando do incêndio em veículo, é improvável que ocorra a explosão do tanque de


combustível, apesar do mesmo conter vapores potencialmente explosivos. No interior do
tanque, a mistura entre combustível e ar atmosférico se encontra saturada, ou seja, acima do
limite superior de inflamabilidade. Além disso, os tanques de combustível são providos de
dispositivo de alívio de pressão, o que permite a fuga de combustível e o conseqüente efeito
lança-chamas, sendo improvável que o fogo penetre para o interior do tanque e ocasione uma
combustão súbita da massa de combustível. Atualmente, utilizam-se materiais construtivos de
baixo ponto de fusão, como o alumínio e matérias plásticos, os quais sofrem derretimento
quando submetidos à ação do calor. Por certo, a explosão de veículos incendiados encontra-se
impregnada no imaginário das pessoas, incentivado pela indústria cinematográfica.

3) “O tempo de reação dos motoristas é de 0,75 (3/4) segundos.”

Os mais recentes estudos sobre tempos de reação de condutores nos dão conta de
que ninguém reage a uma situação inesperada em menos de 1,8 segundos1 durante o dia e em
menos de 2,5 segundos2 durante a noite (tempos mínimos de reação), o que explica a
inevitabilidade de muitos dos acidentes de trânsito. Este tempo de reação, conhecido como
tempo de P.I.E.V. (Percepção, Identificação, Emoção e Vontade) pode chegar a até 5,1
segundos, dependendo de diversos fatores tais como cansaço, enfermidades, idade, álcool e
outras drogas, entre outros. O tempo de reação de 0,75 segundos só corresponde à realidade
em uma situação esperada e em condições externas favoráveis, como por exemplo, a espera
pela mudança de cor de um semáforo.

4) “O travamento do ponteiro do velocímetro revela a velocidade em que o veículo


trafegava no momento do impacto.”

1
G. T. Taoka, Brake Reaction Times of Annalerted Drivers, Int. Traff. Journal (1989).
2
Robert Dewar, Human factors Affecting Perception, Law and Order Magazine, August (1996).

1
O travamento do ponteiro do velocímetro não se constitui em um indicativo confiável
da velocidade de impacto de um veículo envolvido em acidente de trânsito 3, dadas as diversas
desacelerações a que o mecanismo de medição da velocidade é submetido em uma colisão.

5) “O acidente de trânsito foi causado pelo estouro de um pneu.”

Os pneumáticos utilizados atualmente na indústria automobilística são de construção


radial e os mesmos não estouram quando rompidos, esvaziando lentamente, diferentemente
dos pneumáticos antigamente utilizados, de construção diagonal.

6) “Quando do rodízio ou substituição dos pneus, deve-se colocar os pneus menos gastos
na dianteira e os mais gastos na traseira.”

O eixo traseiro constitui-se no “leme do veículo”. Em uma situação de tráfego em


traçado curvo e com pista molhada, por exemplo, o acionamento do sistema de freio
associado ao desgaste da banda de rodagem dos pneumáticos traseiros, resulta na
derrapagem do eixo traseiro e na conseqüente perda da estabilidade direcional, situação de
mais difícil correção, a qual muitas vezes é confundida com o fenômeno da aquaplanagem 4.

7) “Os pneus gastos são mais eficientes.”

Ainda que teoricamente um pneumático “liso”, ou seja, com elevado desgaste da


banda de rodagem, tenha maior área de contato e, portanto, maior eficiência de frenagem em
pista seca (vide pneus slick na fórmula 1), com péssimo desempenho em pista molhada, pneus
com prazo de validade vencido tem pior desempenho pela degradação e conseqüente perda
das propriedades mecânicas da borracha, resultando em menor eficiência de frenagem.

8) “A saída da pista de um veículo significa que o motorista dormiu ao volante.”

A saída de inopino de um veículo de uma pista, tanto de traçado curvo, quanto de


traçado retilíneo, pode ocorrer por diversas causas, inclusive pelo condutor ter dormido ao
volante. Muitos dos acidentes de trânsito contabilizados em estatísticas oficiais como “dormir
ao volante”, tem na verdade outras causas.

9) “O cinto de segurança só é importante na estrada, e inconveniente em algumas


situações.”

O cinto de segurança apresenta sua máxima eficiência enquanto dispositivo de


segurança passiva em velocidades de até 60 km/h. Daí a importância da sua utilização em
perímetros urbanos. Além disso, os mecanismos de lesões mais freqüentes em acidentes de
trânsito (projeção, ejeção, intrusão e asfixia) são todos atenuados pela utilização deste que é o
mais simples e efetivo dispositivo de segurança veicular. Se como conseqüência de um
acidente de trânsito ocorrer imersão em água ou se for deflagrado um incêndio, as chances
dos ocupantes estarem lúcidos e se evadirem do veículo são bem maiores para aqueles que

3
, W. Toresan Jr., O Registro Permanente do Ponteiro do Velocímetro de Veículos Automotores, Após
um Evento de Colisão, Utilizado como Elemento para a Perícia em Acidentes de Trânsito (2006).
4
O. Negrini N. e R. Kleinübing, “O Mito da Aquaplanagem”, Dinâmica dos Acidentes de Trânsito -
Análises, Reconstruções e Prevenção, Ed. Millennium, 3 a Edição (2009).

2
utilizam o cinto de segurança. Portanto, o cinto de segurança deve ser utilizado sempre e por
todos os ocupantes.

10) “Se melhorar as condições de tráfego vão ocorrer mais acidentes.”

De fato, as estatísticas internacionais nos têm revelado um menor número de


mortes por acidentes de trânsito em adversas condições ambientais, o que pode parecer
contraditório, tendo em vista as piores condições de aderência e de visibilidade ambiental,
mas que acabam por diminuir o ímpeto dos condutores e a ocupação das vias. Da mesma
forma, a melhoria física da infra-estrutura viária resulta na diminuição do número de
vítimas/unidades de tráfego, diferente da influência sobre o número absoluto de vítimas que
pode ser aumentado pelo incremento de tráfego originado a partir destas melhorias.

11) “Os carros antigos eram mais fortes e seguros que os modernos.”

Os carros mais antigos eram, na verdade, mais rígidos e conseqüentemente tinham


mais dificuldade para se deformar no caso de uma colisão. Os carros mais modernos, por sua
vez, são feitos para deformar, absorvem energia cinética, amenizando assim a sua
transferência para os ocupantes e aumentando as chances de sobrevivência. Do ponto de vista
da segurança veicular, “o carro ideal é aquele que a gente olha feio e ele se deforma.”

12) “Os atropelamentos são sempre causados pelos motoristas.”

Muitos dos atropelamentos ocorrem em uma situação de inevitabilidade para o


condutor, pois nesses casos a distância de parada (distância de reação + distância de
frenagem) de um veículo para a velocidade em que ele trafega é maior do que a distância em
que ele percebe a presença de um pedestre, mesmo estando em velocidade de placa. Os
pedestres devem cuidar da sua segurança, pois é muito mais fácil um pedestre parar do que
imobilizar um veículo, bem como, na maioria das vezes, um pedestre visualizar um veículo do
que o contrário. Convém também lembrar que uma criança de até 12 anos ainda não
desenvolveu plenamente as suas capacidades físicas, intelectuais e sociais para se locomover
sozinha no trânsito. O pedestre deve assumir sua condição de membro do ambiente viário.

13) “A prioridade da prevenção é reduzir o número de acidentes de trânsito.”

A prioridade das medidas preventivas com relação aos acidentes de trânsito não é a de
reduzir o número de acidentes de trânsito e sim de reduzir o número de acidentes de trânsito
com vítimas fatais, seguido dos acidentes de trânsito com lesões permanentes, seguido dos
acidentes de trânsito com lesões em geral, seguido dos acidentes de trânsito com danos
ambientais e seguido dos acidentes de trânsito com danos materiais. De nada adianta se
investir em segurança no trânsito e não se reduzir o número de mortes por acidentes de
trânsito. Em uma determinada situação, a redução do número de vítimas fatais pode se dar
pela melhoria dos procedimentos de primeiros socorros, de resgate e remoção de emergência.
Do total dos acidentes de trânsito, aproximadamente 15% resultam em lesões significativas,
com aproximadamente 1% resultando em vítimas fatais e 85% apenas em danos materiais.

14) “Os carros saem da fábrica sem defeitos.”

3
Existe um número significativo de acidentes de trânsito causados por falha de
componentes automotivos, não apenas por uso inadequado ou por ausência de manutenção,
mas também por problemas de fabricação e que não aparecem nas estatísticas. Daí a
importância da certificação de componentes automotivos e a realização dos recalls. Há muito
tempo caiu por terra o “mito da infalibilidade das montadoras”.

15) “Os Pardais não funcionam, fazem parte da indústria da multa.”

Concebidos para serem discretos, como ninhos, e daí o apelido de “pardal”, estes
dispositivos eletrônicos de controle de velocidade tiveram sua eficácia prejudicada pela
exigência legal de serem sinalizados. Neste caso, é fácil quebrar a indústria da multa: é só
respeitar o limite máximo de velocidade. Pior que a indústria da multa é a indústria da contra-
multa.

16) “Posso beber e dirigir, pois quando bebo dirijo com mais cuidado.”

Ao contrário do que algumas pessoas ainda possam acreditar, apesar de produzir certa
excitação inicial, o álcool é um depressor do sistema nervoso central (SNC), com grau de
depressão diretamente proporcional a sua concentração no sangue. Uma concentração de 0,5
dg álcool/litro sangue, inferior à concentração tolerável antes da promulgação da denominada
“lei seca”, pode dobrar o tempo de reação do condutor.

Considerando-se que o SNC comanda as reações do cérebro, alterando a


percepção, a coordenação motora e a capacidade de auto-avaliação, resulta os seguintes
aspectos para os condutores: alteração da capacidade de julgamento e aumento da auto-
confiança, com elevação da velocidade de condução do veículo; maior tempo de observação
para a avaliação de situações de trânsito, inclusive as mais corriqueiras; dificuldade ou até
mesmo impossibilidade de sair-se bem de situações inesperadas que dependam de reações
rápidas e precisas; tendência de fixação em um ponto único, diminuindo a sua capacidade de
desviar a atenção para outro fato relevante; e limitação da percepção a um menor número de
fatos num determinado tempo.

Tais aspectos resultam em uma relação direta entre o consumo de bebidas alcoólicas e
o risco de provocar ou se envolver em acidentes de trânsito, relação esta evidenciada pelas
estatísticas mundiais de acidentes de trânsito, as quais revelam altos índices de envolvimento
neste tipo de sinistro por condutores que ingeriram bebida alcoólica, principalmente à noite.
Segundo estudo5, entre as 3h e 4h da madrugada de um fim de semana, o risco de fatalidade
em acidentes de trânsito é 10 vezes maior que durante as 10 e 11h da noite, quando a
escuridão é a mesma.

Por último, vítimas de acidentes de trânsito alcoolizadas possuem menos chances de


sobrevivência. Sendo o álcool um dilatador dos vasos sangüíneos, os acidentados alcoolizados
em choque apresentam maior perda de sangue com maior enfraquecimento do coração que
não se contrai com a mesma força, gerando falência no sistema cardiocirculatório. Além disso,

5
R. C. Schwing, e D. B. Kamerud, The Distribuition of the Risk: Vehicle Occupant Fatalities and Time of
the Week, Risk Analysis 8 (1988).

4
em atendimento de emergência existe a dificuldade de se diagnosticar se a pessoa teve uma
lesão neurológica ou se está apenas alcoolizada. Também no caso de necessidade de uma
cirurgia, existe a questão da anestesia. Portanto, vítimas de acidentes de trânsito alcoolizadas
são mais suscetíveis a óbitos.

17) “Se eu estiver de capacete, estou seguro no caso de acidente (cultura do capacete).”

Apesar da importância da utilização do capacete enquanto equipamento de proteção


individual para ocupantes de motocicletas, ocorrido um acidente de trânsito com este tipo de
veículo, são grandes as chances de gravidade de lesões em outras partes do corpo. A melhor
forma de se proteger em uma motocicleta é adotar uma atitude de condução segura, além do
“ver e ser visto”, evitando que ocorra o acidente de trânsito.

18) “O Brasil é o campeão mundial dos acidentes de trânsito.”

Nosso país apresenta índices acidentológicos, número de vítimas por população e por
frota, muito maiores do que países que adotaram programas de prevenção de acidentes de
trânsito, mas menores do que outros países. Acidentes de trânsito não é a maior causa de
morte da nossa população, mas a maior causa de morte de jovens, isto num país de grandes
índices de criminalidade contra os jovens. Os acidentes de trânsito são a maior causa de
perdas de anos de vida laborativa em nosso país, o que representa um enorme impacto na
nossa economia.

19) “Só a Educação vai melhorar a situação dos acidentes de trânsito.”

A redução a um número aceitável do número de mortes por acidentes de trânsito em


nosso país depende de um programa de prevenção baseado na educação, no esforço legal e na
engenharia viária e veicular, e não apenas na educação.

20) “A solução para os acidentes de trânsito é aumentar o rigor das penas”

Aumentar o rigor das penas não resolve o problema da criminalidade e muito menos
dos acidentes de trânsito. O mais importante é termos maior qualidade na fase policial e
judicial de apuração da responsabilidade dos acidentes de trânsito, visando a diminuição da
impunidade com o fortalecimento da prova pericial na instrução processual, evitando o
julgamento de um acidente de trânsito apenas por um informe policial ou por prova
testemunhal.

Você também pode gostar