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Luler,,: Sobre a autoridade secul<lr:

até que JJ<Jnlo se estende a


(Jbediência devida a ela?
/Von Willicher Oherkeit]

Nota do tradutor da edição inglesa

As palavras que nào se encontram no texto original,


mas são necessária~ para compld.ar o sentido da frase, são
<:oloca<las, nesta e<li,·ào, entre colchetes. Estes são tamhém
usados para ind icar as referências híbJ kas que, não raro,
sào ítnprec:í~as ou n ão são fornecidas pelo autor, e para
reforír o .5 versículos (Lutero e seus conte mporâneos não
o fazíam).
A.., palavras .s<.::~t I ída~ por um aste risco são explicadas
e <lisc ur.ida~ no Gl<Jssário.
()!) números entre cokhétt:s ( por exemplo: f.3691) rt:fe-
r~rn-'¼: a págínas da edí(ào Clemen das Luthcrs Werke.

13GO:l J\o íJu.stre e nobre Príncipe e Senhor, Johann ,


Duque da Sax(>nía, Landgrave da Turíngia, Margravé de
Mdsscn , int u gracioso Senhor.
Gra~·a e hannonía ern Crbto. A forç;a <las c irc unstá n-
<.:Ía."> e e, fato <lc que n1uitos me p ediram, n1~s sobrc:tucJo o.s
d<:sc·j(,~ lexpre~so.-,j <lc V<,s~a Alteza, rneu rnuí excelente e
n<,hrc príncipt.. e ho nd< ,~ü S<:nhor, obrigan1~me a esc.:n.:ver
ll"i,;}i~ urna Vt:z sobre a 3utc,rídade ,<.;ecular e sua E.~p~<.la :
<:orn() S<: p<x.k: faz<..:r um. u so <.'ri!'.tào da .autorid.a de sec u lar

j
e até que ponto os cristàos lhe <levem ohediêru.:iat ,Q que
os perturba {aqueles 4ue n1e pedem para escrever sobre o ·
assunto} ~1o as palavras de Cristo en1 1\1ateus 5 (25.39-·l0l:
"nào resistais :10 hon1em 1nau ... tnas sede con1pbcenlt..
-conl teu adversário, e àquele que quer to1nar-vos a túnica,
deixai-lhe ta1nbén1 a veste··. E na Epístola ao~ Ro1nanos
12 l19): A nü1n pertence a vingança; eu é que retribuirei,
diz o Senhor... São exata1nente esses os textos utilizados.
há tnuito ten1po, pelo Príncipe Volusiano e1n objerào a
{361 :] S3nto Agostinho, in1pugnando a doutrina cristà por
dar carta branca aos n1alfeitores e por ser inco1npatível
co1n a Espalt1 secular.
Os sofistas nas universidades tatnbén1 encontraratn
aqui u1n obstáculo, visto não poderem con1patibilizar as
duas fa Espada e as palavras de Cristo]. Assim, para não
colocar os príncipes inteiran1ente forà da cristandade 1• eles
tê1n ensinado que essas declarações de Cristo não são
m3.nda1nentos, 1nas apenas ··conselhos para a perfeição.
E1n outras palavras, para preservar a posiçào e a digni-
dade dos príncjpes. Cristo teve de ser apresentado di-
zendo o que não era nem verdadeiro neni justo. Por se-
ren1 cegos e desprezíveis sofisras. eles não conseguen1
ex.:.ihar os príncipes sen1 rehaixar Cristo. Esse en·o vene-
noso agora permeou o n1undo todo. e a opinião geral a
respeito dessas afinnações de Cristo é que se trata antes
de simples conselhos para aqueles que desejan1 ser per-
feitos do que de n1anà.unentos obrigatórios para todos os
-·•-.•··· ..··········•"
1. t.it<.•ralment~: transfonn.1r os prín('if)cS ~m p a~jos. Os teólogos eKo-
1.i,tx."Os <..os ~:-ot,-.;r,3~~) por ,•ia 1..k.- regra rt:.·conç1ltavam as estnta.s p :1lav-,.1 <; d~
Cn!>to a que~· n:ft•re l.utl:.'ro com .J.') ~xig~ncia5 da práu1.::i 1 ao estabdecerem ~•
dL--tirn;ão ~mre o que er-.i necc-.ssatio p:1r.i a ~pfift.~1ção·· e o que era ad(•quado
r ara ,tquclô m~·ru )~ MnhKioso~ esptrinialmente

4
cf+~tú.os . \()s ~ofistas] çht~~ar.un ao ponto de pcnnilir fo
tt.~o J~j a E:-;1x1<l<t e a autoridadt· M.:cubr ao s/otzt~ .. perft~i-
to·· d~)..'S hispos e Jté ao "n1;tis perfeito·· de..' todos o~ ·tatus.
o do p;tpa. Na vc:.:nltde. eles n~'to ~,penas concedt:r.lln•ll1es
fLtZL't' u~o do qttt..· propria1ncntc pertence apen<1s ai; e~tc
'' ianpt: rfeilo'' status da Espada e da autnritbde st..cular; p<?lo
. contrúrio, t.~les os atrihuíratn integralrncnte ao papa, rn~1is
do que a qualquer outro no rnundo. O diabo apossou-:,;e
çon1plctarnentt' <los sofi~las e e.las universicl.1<les; eles rnes-
rnos n~·to se d ~to conta do que estJo dizendo e ensinando.
i\1as ,ninha esperan,·a é a <lc que eu seja capaz de en-
sinar ao~ príncipes e üs autoridades se<..:ubres con10 po-
<len1 pcrn1~necer cristãos e ter Cristo corno Senhor se1n
reduzir seus 111anda1nentos a sirnplcs 'iconselhos'' . E gos-
t;tria de realizar [essa tarefaJ co1no urn hu,niJde .serviço a
Vos~1 Altl·za, co1no algo que todos po~satn usar, se neces-
sit,1ren1, e para louvor e glúria de Cristo nosso Senhor. E
reco,ncndo Vossa Alteza e vossa fa111ília à gra\'ª cJe Deus,
para que tcnharn sua n1isericórdia. An1érn.

\Vittenhcrg, dia <le Ano Novo, 1is23


O hutnilde servo de Vossa Alteza
~-taninus Luther

Algu1n tcn1po atrJ~, escrevi un1 panfleto dirigido à no-


hrt'Za ale1n~1 j. Nele, apontei suas tarefas e deveres con10
rrbt~1os. A aten~·ào que prestara1n a ele s~,lta aos olhos
...................... '
l Os hábitos Lksn1i<.L1dos ele exprt·~~fl.o d(.· luw1:o e o ~ ~t a pamento
(_"•o nC"(_'1tual ohsokro J e status <v. Glo-s,ário > turnaram nec~s!'-Jrio um J~~nH>l--
vtmento m.·stt" ponto. .
. J A,, ât>Jl Chmtliclwn .-1t.1c l cJ<·utscher Nalion [i\pdo .1 no hrt>l.'1 ( ff t..l <la
n:..ç·ão .1.k-nul. 1--.10.
__
- - - - - - - ~ - Sobre a autoridade secu!(ir ------,-.-..-____,

para todos veren1. Assim, devo dirigir meus esforços em


ou~tra direção e escrever, em vez disso, acerca do que eles
nao devem fazer e do que devem cessar de fazer. Tenho
certeza de que prestarão tão pouca atenção desta vez
quanto fizeram em relação a meu último escrito. Que pos-
sam por n1uito tempo pern1anecer príncipes se-m jamais
se tornaren1 cristãos. [362:] Pois Deus Todo-Poderoso tor-
nou loucos os nossos príncipes: eles realmente acreditam
que podem ordenar a seus súditos o que quer que dese-
jen1 e fazer em relação a eles o que bem lhes aprouver. E
seus súditos estão igualmente iludidos e acreditam (erro-
neamente) que devem obedecer-lhes em todas as coisas.
Agora chegou-se a esse ponto, em que os governantes
começaram a ordenar às pessoas que entregassem livros~
e acreditassem e pensassem como seus governantes lhes
dizem. Eles tiveram a temeridade de colocarem-se no lu-
gar de Deus, de tornarem a si mesmos senhores das cons-
4..-

ciências e da crença"' e de pretendere1n dar lições ao Espí-


rito Santo a partir do que existe em seus cérebros deterio-
rados. E, depois disso tudo, não permitirão que nínguérn
ouse lhes revelar (a verdade} e ainda ins istem en1 ser cha-
mados de "'meus graciosos Senhores".
Eles elaboram e pubJicam editos, isímul:ando que es-
sas] são as decisões do imperador e que eles fpróprío-;}
estão meramente agindo na qualidade de obedientes prín-
cipes" cristáos do imperador, como se acreditassem seria-

6
1
nH~lllt nís.i,;o e <·ooH) St.} as inc1paz(·s de p<.·~.,o:s" Í<Ji•,.'J('fll
cnxerg~tr :ttr;1v~-~ dt·~s:1 t·. . . p(·dt· dv s11hh:rf(1gio. Se o itnpc ..
rador f'o.~se n ·tir;tr d<!l(•S t11n de ~e u~ CJ ,\ I ·lo.~ ou '-:idades
'
ou onlt:n;1r qt1íll(Jl1t.'r outr~1 "'oba qu<.: n;.1o Ih<.·.~ parecc.~.\ :o;e
justa, logo o~ vt•,í~unos procun1r r;1z(K·,.., p<: las quab f .. r.ia,n
o din: iLo de n:shtir e dt·~ol>'-'<'.('<.'t:r a <:le. Ma:-i, cnqu~H1to for
\IIH,.t qtH"," hlO d t• atonne,Har o ho1nc1n pobre e d e ~ubn1e•
ter a vont;td(i de.: l )c•us a M'US pr(,prio~ t: arhítr:írios c.:;.1prí 4

<:hos, d,:ve ser d1an1ada dt~"ohvdíi:nda ;)s orden.~ do i,n..


p,:rador". E,n l<:tnpos idos, p<.•.-..,soa~ a.~:;itn t~riéHll o norne
dt· can~d11~ls, ll\:J S agora dc.tvt~1lH>S <:h;11nú-la~ dt· ''príncipes
<,:rist1os e ol>c..~dk·tH<..:s". E ainda ;t.'iSjrn ele:-; n~lo pcrn1itir~1o
a ningui'·tn obter urn jlllg;111h: nlo O\I n::.,ponck·r a acu~ar c>es
dirigidas contra ·"i, por 1naís huo1ilderncrHe qut: se lhe.~ so-
licite, ~inda qut· ck·s nit•sttH>s l'On.i.;íden1ssc1n intolerável
S{"r tr:ttados dc:~st· rnodo pelo inlpt:rador ou qualquer ou~
tr:i pt.·ssoa. SJo c:.4-,s<.·s os pdndpes que ~ovt'rnarn os terri-
rúrios ~tl(•rnJc.:s do hnp0río", t! n;)o ctusa e:,; panto qut~ as
coisas c:-;t<:j~un <.~nl tal estado.
Agora, ,·orno o furor d<.·s.~<..'.~ Lolos <:onduz à destnii~Jo
da f{.~ ,.: ríst it, ,'t nt·g;1~:;lo da Palavra Divina e à hlasfêrnia
<:ontra a 1n:.1j<..·.~·tad~· <.k: J') ·us, n~10 pos:-;o ,nai.~ pcnnancce r
o,:io.~anH•fll · à uwrµ~:rn e li,nilar.. tl\~ a oh.~{:rvar rneus ut:~~
graciosos .~t·nhon:s e fu dosos príncipt·s. Devo resistir a
ele.o;, ,lind~ qu<! apenas c.:onl palavras. E urna vez que nüo
tive H:inor d(· s<._~ll ídolo, o pap,1, qt1ando nle anlc;Jrou cont
a pt!rda cio c.fu t: de~1ninh;.1 alrna, devo n10.-.;tr;1r ao n,tu1-

, •• , •• r• ., , ,,, .,,., , , ,,

7 . Naq 1.id<.◄ l'~·ri< ,d,J, <,,. , t~ rritl ,ri,,1,.. di: p c.;•.n,.k~n11.·l'i <i.•1n t<: t·ri-11 11, fon'nab ou
l k · fato) dl, s... ~r;;11k, 1111p,: 1'Jd•1r ttfJtn,!l'l<J 1w,1l>(·m ind 1•1_i: 1m U: r'rns ,·,..,p;_1r,ho~.1!-i,
1t,tl, ..1nJs ç• hür)!,•·,r,111,.•:,a/ll. lw111 ('01111 , "•t AI ~_.,,,;.11i· li,;t· i.:, '°h, A11.,trh
J
·• ' ·
LU{t:·ro, p o 11,11\.,

h1, i1 p.t1'<.'11\t.· 1ni,~1-iri.• t·Hl ,1 ( '.st.•I 1~•t,; n·1\d1J ~1/]l il ui,-.1it1 1;;W,

7
- - - ~ - - - - - ~ Sohre a aut.oridc,de secular-------...,____

do que tampouco tenho receio dos lacaios8 do papa,


que me a1neaçan1 [apenas] con1 a perda de minha vida e
· meus bens mundanos. Possa Deus deixá-los en1 fúria até
o fírn <los ten1pos9 e ajudar-nos a sobreviver a suas an1ea-
ç·as. An1én1.
1. Nossa tarefa inicial consiste en1 [encontrar] un1 fir-
me alicerce para a lei secular e a Espada 10, de n1odo que
remova qualquer possível dúvida quanto a an1bas estaren1
no mundo como resultado da vontade e da providência
divinas. As passagens [das Escrituras] que proporciona1n
esse fundatnento são as seguintes: Romanos 12 [na verda-
de, 13,1-21: "Todo homen1 se submeta [363:] ao poder* e
à superioridade*. Pois não há poder que não venha de
l)eus, e o poder que existe por toda a parte é estabeleci-
do por Deus. De modo que aquele que resiste ao poder
opôe-se à ordem estabelecida por Deus. ivtas quein quer
que se oponha à ordem divina atrairá sobre si 1nesrno a
condenaçào." 11 E tambétn em lPedro 2 [13-14]: ''Sujeitai-

8 . Literalme nte: "suas escamas" (o Diabo era com freqüê ncia descriro
como estando coberto de ~scamas ou placas, como um peixe ou um crocodi-
lo, v. a passag<:m sohrC:' Leviatà em Jó 41, em geral interpretada como refe ren-
te ao Diabo) "e bolhas d 'água": e~te é um jogo de palavras do qual mui ali bis
bnlt, "todas as ~uas bulas", poderia ser uma pálida imitação; a palavra latina
l1ulla sigrufica literalmente uma bo lh;,1, numa referê ncia ao selo do documen-
to. Lut<:·m achou esse troca<l1lho irresistível.
9. l.itc-ralm~nte: "até- os casacos-cínzentos (isto é. os h:1bitos dos mon-
ges) cksap:arec:e rem", aparentemente uma expressão idiomática . _
10. Quanlo ao uso da metáfora da Espada por Lute ro, v. Introdu\·ao,
p . xx-rv.
11. OninÚttJ,1, p<xk :-.ignífícar tanr.o uma regulamenra~·ào qu~nto uma ~>r~
, .lt-m_ A trad u~:ão qu.e LuH:ro aqui oft:rece de~sc texto crucial não é a que te~
.em s~1as vcrsi~t> postt-rior<:-s da Bíbli.1 e m alemão. A pahvra que aqui trac.kizt
('r)rno ~ptxk-r" ( (it.!wa./t). Luter o traJuziu po stkriornw nte como Oht!d~l!it: l ~m
..iJ1.:•rnáo ctmtc.rnporá.net ) o tt-rm.c:1 torno u -SI..'. Ohrll;.kdt. Cf. fntJoduç-ào. P· XXH.
'-"' G.lns.~á no. Poder.

8
_ _ _ _ _ _ _ Lutero: Sohre a autoridade secular

vos a toda a sorte de ordenação bun1ana. seja ao rei, corno


soberano, seja aos governadores, con10 enviados por ele,
con10 un1a vingança contra os n1alfeitores e urna recorn-
pensa pard os justos•."
AEspada e sua lei existiran1 desde o início do nn1n-
do. Quando Cairn golpeou seu innjo Abel até 1natü-lo, fi-
cou aterrorizado porque seria pelo que fizera. l\·1as
1110110
Deus irnpôs un1a proibição especial, detendo [a puniç~'io
por} a espada no caso de Caitn: ninguén1 deveria 1n;1tá-lo.
A única razão possível para Cairn ter sentido 111edo é que
ele vira e escutara de Adão que os assassinos deveriarn
ser 1nortos. 1\.1ais ainda, Deus reinstituiu e confinnou [essa
orden1] ern palavras expressas após o Dilúvio, quando diz
en1 Gênese 9 [6]: ''Quen1 derrarna o sangue do ho1ne1n ,
pelo hon1em terá seu sangue derran1ado. '' Isso nJo pode
ser interpretado con10 un1a referência a [o própdo] Deus
infligindo sofritnento e puniçJ.o aos assassinos, urna vez
que n1uitos deles, seja porque se arrepênde1n, seja porque
receben1 perdão, pennanece1n vivos e 111orren1 {natural-
n1ente] se1n a espada. Não: isso se refere à justiça• da Es-
pada: un1 assassino perde o direito a sua vida , e é de jus-
tiça• que ele seja n1orto pela espada. E se algo i111pede
que a lei* seja cu111prida, ou se a espada é n1orosa e o as-
sassino n1orre de 111orte natural, isso nüo prova que as Es-
crituras estejan1 erradas. O que dizetn as Escrituras é que
todo aquele que derra111a o sangue do hon1en1 deverá ter
seu sangue derrarnado pelos ho1nens. É culpa dos ho-
1nens se a lei de Deu~ nào é levc:ida a çabo, assin1 con10
se os den1ais n1an<la1nentos de Deus n~·,o s~1o ohcdeddos.
~1ais tarde, a Lei de f\1oisés confinnou essa {ordernl:
"Se algu(~n1 rnatar seu vizinho por astúcia , tu o arr;tncar-..ís
até 1nesn10 do n1cu altar, para que n1orra '' (Ex 21 {1 ,i1). E

9
--..:-.- ..-------_....----~
....... ..
. S<.,hte a autr,rtdrKle .'W:(,,J.tÚ'Jr - ------ -~

novamente: hVí<la por vida 1 olho por olho-, dt~nte p<)f den-
te, pf por pf, mão pc,r mão, ferifnento por !erirnento,_gr>l-
pe por golpe," E, mais ainda, Crísto tam.bém
. c(,nhr_:113 :>
quando <lí~se a Pedro no jardirn fde Get*mani, ,\ft 26r)2}:
'"Todo aquele que en1punhar a espada ptrecerá pela e:S-
pa<la., 1 o que <leve ser entendido no mesrrio sentído de
C,ênese 9 (6}; "(Juem derrama o sangue do ho1nem 1 etc. ~;
não há dúvida de que aqui Cri!;to está invocando aquefa,s
palavras e de que deseja ter esse mandamento íntroduzí-
<lü e confirn1ado [na Nova Aliança}. O mesmo en~ína João
Batista [Lc 3 141. Quando os soldados lhe perguntaram o
1

que deveriam fazer, respondeu-lhes: ~A ninguém moles-


teis com violência• ou injustíça e contentai-vos com vosso
soldo." Se a Espada não fosse uma ocupaçào 12 aprovada
por Deus, João deveria ter-lhes ordenado que deixassem
de ser soldados, até mesmo porque (sua vocação] era tor-
nar as pessoas perfeitas e ensiná-las de um modo ver-
dadeiramente [364:] cristão. Portanto, existem clareza e
certeza suficientes quanto ao modo pelo qual a Espada
e a lei seculares devem ser empregadas de acordo com
.
a vontade de Deus: para punir os malfeitores e prote-
ger os .Justos .
2_Mas o que diz Cristo em Mateus 5 (38-391 soa enfa-
ticamente contrário a isso: "Ouvistes o que foi dito a vos-
so s ancestrais: olho por olho, dente por dente. Eu, porém,
vos digo: não resistais ao homem mau; antes àquele que 1

te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda; e


àquele que quer pleitear contigo, para tomar-te a túnica:

l2. Lltt"ralnlente~ status. cf. Gtos_<;árío. Sobre o pensamento de Lutero


a.cer\.::J da mQraiidad~ da prátic:i. d o soldado. cf por exemplo: Oh Kriegsl.eute
O'f.lcb m1. s.tetigen. S/.a-nd sem kónnten l5e também os solda d os pode m estar e m
t::"!->t.ado dê ~raç a.L 1526. .

10
_ _ _ _ _ _ _ Lutero: Sobre a autoridade secular
------~
deixa-lhe tan1bém a veste; e se alguém te obriga a cami-
nhar uma n1ilha, anda com ele duas, etc." No mesmo sen-
tido, na Epístola de Paulo aos Romanos 12 [19): "Não façais
justiça por vossa conta, caríssimos, n1as dai lugar à ira de
Deus. Pois está escrito: A mim pertence a vingança; eu
é que retribuirei, diz o Senhor." E também em Mateus 5
{44]: "Amai vossos inimigos. Fazei bem aos que vos
odeiam." E !Pedro 2 [na verdade, 3,9]: "Ninguém deve-
rá pagar n1al por mal, nem injúria por injúria, etc." Estas
e outras afirmações da mesma espécie são indisputáveis e
soam como se os cristãos na Nova Aliança não devessem
ter Espada secular.
É por isso que os sofistas dizem que Cristo aboliu a
Lei de !v1oisés, e por isso fazem de tais ordens [meros]
"conselhos de perfeição". Eles dividem, a seguir, a doutri-
na cristã e a condição* cristã em duas partes. A uma parte
chan1am "aqueles que são petfeitos", e a esta destinam os
"conselhos"; à outra parte denonünarn "os in1perfeitos", e
a eles destinam as ordens. Mas isso é pura desfaçatez e
obstinação, sern nenhuma sanção das Escrituras. Eles não
conseguem perceber que naquele mesn10 lugar Cristo im-
põe seus ensinan1entos tão enfaticamente que não admi-
tirá a remoção de nenhuma parte, por menor que seja, e
condena ao inferno aqueles que não a1nam seus inimigos
[Mt 5,22 ss.]. Deven10s portanto interpretá-lo de outro
rnodo, para que suas palavras continuen1 a se aplicar a to-
dos, sejarn e]es "perfeitos" ou "irnperfeitos''. Pois a perfei-
ção e a imperfeição não são inerentes a obras e não esta-
belecem nenhurna distinção de condição exterior ou de
statu~... entre c.:ristios; são antes inerentes ao coração, à fé,
ao ainor, <letal modo que todo aquele que acredita n1ais
ffinnernentc) e ten1 n1ais an1or, tal pessoa é perfeita, in<le-

11
pendcnternenle de st.'"r un1 hona~,n ou tuna nn1lher. un1
rn íncípc <>u un1 .c unponf:s, tun 1nonge ou tHn leigo. Pois o
í-Unor e a fé n;1o cria1n dissens(>cs e <listinçôes exter1ores_
3. Aqui devcrnos dividir os fíJho~ de Acl1o. toda a hu-
uw nidaJc, t~rn duas pat1t'S: a pri1neira pertence ao r.eino*
de Deus, a segunda ao reino do inundo•. 1·0Jos aqueles
que acreditarn vcrda<lciran1ente ern Cristo pertencen1 ao
reino de [)eus, pois Cristo é rei e senhor no reino de
J)eus, con10 proclan1~1n o segundo Saln10 [v. 61 e o con-
junto <las Escrituras. E Cristo veio para dar início ao reino
<le J)eus e estabelecê-lo no n1un<lo. É por i~so que e)e de-
clarou perante Pilatos Uo 18,36 ss.]: " fvleu reino não é
[36-5:l deste n1un<lo, mas quem é <la verdade escuta n1inha
_voz,., e que, ao longo de todo o Evangelho, ele anuncia o
reino de I)eus, dizendo {Mt 3,2]: "Arrependei-vos, porque
o reínc, de J)eus está próxirno"; e tan1bém [~lt 6 ,33]: ''Bus-
cai, em primeiro lugar, o reino de Deus e sua justiça. " E,
corn efeito, ele charna ao Evangelho um evangelho do rei-
no de l)<:-us, visto que ensina, orienta e resguarda o reino
<lc f)eus.
Ora, tais p~ssoas não têm necessidade nem da lei"
nem da Espada seculares [zveltlich]•. E se todos no n1undo
(U'leltl fo~sem verdadeiros cristãos, isto é, se todos acredí-
tas:c;em ver<la<lcíramente, tarnpouco haveria neces.<;idacle
ou funçâo para príncipes, reis, senhores, a Espada ou a
lcL ('J que lhes caberia fazer? Porquanto (os verdadeiros
çristãos} tê rn o Espírito Santo e1n seus corações, que os
ensina e os l~va a amar todas as pessoas, a não tratar nin-
gufrn de modo injusto e a suportar prazenteiran1ente as
injúria..,, atf mes1no a morte. CJnde todos os n1ales são to-
lerado~, de ho1n grado e o que é ju5to• é feíto espontanea-
rn-cnt~.. n ~o existe lugar para contendas, disputas, tribu-
nab~punir (~~, l<:i~ ou a E~pa<la. E, porn1nto, as leis e ª Es-

12
pa<la se<:ular não poden1 (•n~Otllrar ahsolutanll·ntf! Jl<.:' --
nhutn en1prego entre os cri~t~1os, en1 esp'--·cbl porque, por
si n1esn1os, eles faze1n n,uito ruais do que quaisqu<:r lei~
ou ensinan1entos poderiatn exigir. Co1no diz Paulo cn1
1Timóteo 1 [9}: "As leis n~'io sào <lcstina<las ao j\1~to, ,na~
aos injustos."
Por que <leve ser assirn? Porque o hornen1 ju~to [der
Gerecbld, por sua livre vontade. faz tudo e n1uito 1nai.'i do
que exige qualquer lei* [Rechtl. ~1as os injustos ( Unge..
recbten} nada fazem que seja direito [rech/] e, por conse-
guinte, têtn necessidade das leis para ensin{1-k)s. for\·~·1-los
e instigá-los a agir con1 retidào. Un1a bo3 árvore 1- n~lo prt:~ 1

cisa de nenhun1 ensina1nento e de nenhu111a lei para ge-


rar bons frutos; é sua natureza fazê-lo sen1 ensinan1cn1.os
ou leis. Un1 hon1en1 teria de ser un1 idiota para re<li_gir u1n
livro de leis a uma rnacieira prescrevendo-lhe a produr~1o
de maçãs e não de espinhos, visto que a madeira fad isso
naturalmente e n1uito 111elhor do qut: quaisque r )eis ou
ensinamentos poderiam ordenar. Do 1nes1no n1odo, por
causa do espírito e da fé, a natureza de todos os crist:1os
é tal que eles agetn bern e co1n rctid~lo, n1eJhor do que
quaisquer leis poderia1n ensiná-lo~, e portanto n~1o têtn ·
necessidade de leis para si 1nesn10s.
Vocês poderiatn replicar: ··Então por que Deus forne-
ceu tantas leis à hu1nanidade e por que n1otivo Cristo, nos
Evangelhos, ensinou-nos tantas coisas sobre o que deve-
n1os fazer?" Acerca disso estendi-rne detalhadan1ente en1
n1eu "Con1ent~rio"1-1 e en1 outros escritos de 1nodo que
apresentarei a questjo de 1naneira bastante sucinta. Sào
Paulo diz que a lei é forneci<.b por cau~a do injusto. Ern

13. A referê n cia implidra t a p,,rábola ('ffi M:1t~us, 7, 18. _


da f.(J.rtfu. d ·. t '<1·1.,;ao
- <·I~.- ,v· " r, 10··- •· hl-70 ·
7
14 Isto é, Sf>rnu1e:; solJre o A 110 , 1'·t
~"ui

13
o ulr~•s p~!la\'ras, ~quck:s qu<: n áo ~jo t·n,t ~)os ~jo -c nn~-
tr~•n,gídos pt·la~ lt·i~ a ~th,tere rn -~t· l'Xt (·rion l K'ntc tk: J(Cx.·s
1n1quas. con10 '-'n·tno~ n,ais adi~ulte . t ·1nJ V\.'l, pon.-.n1 f
qu<.' nt'nhuin hon1t..·1n é por n :lt1&rez~1 un1 ni,t~lo ou urn Jll ·
to1\ n1~s ~do todo~ n,~uis e pt·c1dnn:s, ·D<.~us cotoc , oh••a.í-
( u\os tlL-tntt.• de todos <:l<:s. por 111(:io da l<.:i. in1p<.:d1ndo-os
de fazer o qu<~ queretn e dt· <.:Xpre"·" ªr extt·ri< >rnK·nte. c: tn
~H:ôt•s. -~ua iniqüitladc. l!,(l>:l E S:.)o Paulo atribui outra in-
curnl>ência à lei 'n en1 Rotna nos 7 [71t· ( jtdatas 2 {na verda-
de. 3,19.2-'•l: ela ensina con10 o pecado pode . er rec:onht>
cido. dt· ,nodo que rebaixe o hon1en1 no St."ntido da di;.;po-
. ~i\·jo de aceitar à graç-a e a fé en1 Cristo. Cristo e nsi na a
1nesn1<1 coisa e1n t\1aceus 5 L-391: não se ueve rcsi ...._tir ao 1n;1I.
Ai ele está explicando a lei e ensin.an<lo-nos a nJtureza
de utn verdadeiro cristão, con10 ouviren10s 1nais adiante.
4. Todos aqueles que não s~1o crbt1os (no sentido aci-
n1a referidol pertencen1 ao reino do n1undo• ou [en1 ou-
tras palavras) e stão sub1nct1dos à lei. São poucos os que
acreditam e ainda 01enor o nún1ero daqueles que st· con1-
porta1n con10 cristãos e se abstêm d e praticar o ma l [e les

15. f)·omm; cf Glosslrio: Justo. Ohst'r.·e-se que aqui o akm:io ~k Lutero


é amhí~uo, mais do que- admite m ,llguns come ntanst~is. Ele nào afirma qu..: nin-
guém no mundo é um cristão o u um justo. mas apenas qut> ningu0m o é ~n,a-
tur-Jlmcnt<:'', o que tanto po<lt.: significar que alguns S30 cri~tào." e ju:-.ro.,;, porL' O\
cxclu,,;ivamente pe la grJça lhvina, qua.mu te r o scnti<lo. como f)n:Ít'1Vi~1m os co-
m(•n ta1istas. de que os c rist.'1os em sua conduta extt:·rior permanecem 1n1f'(.'r1e1-
ros. Não é ab~otutament-c óhvio que;: Lutl.'ro tivesse <.-m ment<.> cS."'-.' últ11no ~•nti-
do .. e a falta de ,.:lart'z.a é signtfü.·..niva. d..1d as a d ivisão antem)r. f<:1ta por Lull.·ro.
da e:-..,ptck· humana em du.1s partes e :--u.a insi...,tê'ncia de q LK. s.1o ~<-.., crist .i1.'-, ·
- e nàn os ~en."~ humano:-;, na mt"dtd:1 t.•m que se comportam v f ('t1 vamt.·Ott'
como <ri.sci<~ - -q ue não nCCL'S...,1tam d~ esp:H.b ou d..i lei. ·.is p3gin.1~ lo~) a ~··
guir. S\.' ll o h jt>tivo {: m <:>$lídr a cscJss~z d~ vt·rd:1<.ktn >:- c-r1st5os.
16. Aq ui e na fri ,;e a ntt>rior. l.ukro pJrt-·1.."l' e~tJr Sl' r~:f...·rind1.> .ll"\.'5 Tk-7.
M.rndam~ntos, ma~ não d,.stiniuiu explit:itanwnre l:·ntrc a k·1 p.~1r1va. kit~ pç-lo
humt.:m. e a k·, J.ivina.

14
_ _ _ _ _ _ Lutem: Snhre a autoridade secular_ _ _ __ _ _

própriosl, para não n1encionar a não-resistência ao n1al


[feito a eles]. E para o restante Deus instituiu outro gover-
nor\ fora do status* cristão e do reino* de Deus, e lançou-
os sob o jugo da Espada. Assin1, por rnuito que aprecias-
seff\ praticar o n1al, encontran1-se in1possibilita<los de agir
en1 concordância corn suas inclinações ou se o fizerem
' ' '
não poderào fazê-lo sen1 n1edo, ou gozar de tranqüilida-
de e boa fortuna. Do 1nes1no n1odo, urn animal feroz e
perverso é acorrentado e preso para que não possa n1or-
der ou dilacerar, con10 sua natureza o incitaria a fazer, por
n1uito que o deseje; enquanto utn animal dócil e pacífico
não precisa de nada sen1elhante a correntes e laços e é
inofensivo 1nes1no setn eles.
Se não existissem [leis e governos], u1na vez que o
n1undo é n1au e apenas um ser humano en1 nlil é um ver-
dadeiro cristão, as pessoas se destruiriam umas às outras
e ninguén1 seria capaz de sustentar sua mulher e seus fi-
lhos, de se ali1nentar e de servir a Deus. O n1undo* [Welt]
tornar-se-ia um deserto. E assim Deus instituiu os dois go-
vernos*, o [governo] espiritual, que molda os verdadeiros
cristãos e as pessoas justas por meio do Espírito Santo sob
Cristo, e o governo secular* [weltlich], que reprin1e os
maus e os nào-cristàos e os obriga a conservarem-se exte-
riormente em paz e a pennanecerem quietos, gostem ou
nào gosten1 disso. É nesse sentido que São Paulo conside-
ra a Espada secular quando diz em Ron1anos 13 [3]: "Ela [a
Espada] não incute 1ne<lo quando se faz o ben1, n1as quan-
do se pratica o 1nal." E Pedro diz [lPd 2,14]: "É dada como
un1a punição para os n1alfeitores. t)

............. ·····.....
1-.1 . Aqui. Lutero faz a distmçao
_ . - entre " remo · h) e " gc)verno" .( Re00 i-
· ,. (Reu:
ment). Quanto ao conteúd<') e às implicações de tal distinção, v. Glossáno, PP·
LV-LV!ll .

15
----~--- Sobre a rwtm1dad e secular _ _

Vocês in1aginan1 qual seria o resultado se alguf·n1 qui-


sesse ter o rnun<lo• governa<lo segundo o Ev:.ingelho e
ahoiir a Espada e toda a lei secular"', cotn base etn todos
seren1 batizados e cristãos e de o Evangelho não adrnitir
o uso e.la lei ou <la e spada entre os crisü1os, que (de qual~
quer tnodo] não necessitatn delas? Esse algué rn libertada
os anitnais selvagens de seus laços e correntes e o s deixa-
ria n1altratar e dilacerar a todos en1 peda<s· os , dizendo en-
quanto isso que na realidade esses ani1nais são coisi.nhas
delicadas, dóceis e n1eigas. Meus ferin1entos, porétn, con ..
tar-rne-iatn algo diferente. E <lesse n1o<lo os iníquos, sob a
cobertura do non1e de cristãos, farian1 mau uso da liber~
d.ade do Evangelho, colocarian1 ern prática sua iniqüi<lade
e proclarnar-se-ia1n cristãos e [portanto] não suhnle ti<los a
nenhurna lei ou a nenhu1na Espada. Alguns deles já es-
tão vociferanJo coisas ass1n1 18 •
{367 :] A tal pessoa deve ser dito que sem dúvida é
verdade que o s cristüos não estão suhn1cti<los à lei ou à
Espada por s ua própria causa , e não necessitatn delas.
rv1a s, antes <le vocês governaretn o mundo de utn 1nodo
cristão e evangélico, ce rtifiquern-se de que o povoaran1
con1 verdadeiros crbtàos. E tal coisa vocês jan1ais far;1o ,
porque o mundo e as nn.1lti<lües são n üo-c ristàos e pe nna -
necerào assin1, 4uer seja m cornpo~to.s de crist~1os b atiza-
dos e nonünais , quer n~1o o scjan1. O s cristãos, con10 se
co~turna dizer. são poucos e encontrados a largos inte rva-
los, t! o n1undo não adn1itirá urn governo• cristão presi-

18 . Trata-S<..· aparente mente de uma refc-ri•nc1a aos anah JtiMa.<;. CompMe·


~- ('' >m ~ u Wider die ll fmmlischen Propht!ten (Contra º" p roft·tas cele'>tiai~I.
He:· fari J tm 5t·g1J1da p rario ,ment(:' ~1s me~mas tlenúnnas contra os campone ·
:t\t:~ !.uhlt·va,J,y;_ V. Wi-tl er d ü: l<â u heriw,h en 1Hi,rderi.i.chen Ro ttert !Contra ª~
hrJn.1.---.. u,;• ç·,....,., °' i . ~ -
'"' , -~lO('St.'-\ aque;:H <>r(•..; e ;,,t',5,1-,s tno '-L 1...,2.,.

16
_ _ _ _...._:____ Luterv: Sobre a autoridade _,;;ecular
- - - - - -- -
dindo urn território ou tH11a grande n1l1ltid:1o, e n1uito ine-
nos a totalidade do n1undo. Existe se111pre un1 núrnero
1nuito n1aior de iníquos do que de hon1ens justos•. As-
sin1. tentar governar toda tuna regiào ou o inundo inteiro
por n1eio do Evangelho é con10 abrigar no 111esn10 aprisco
lobos, leões, águias e carneiros, pennitindo que se asso-
ciern 1ivren1ente, e dizer-lhes: alin1ente1n-se e sejatn justos
e pacíficos~ o estúbulo n~1o está fechado, existe pastagen1
em abund:1ncia e não há cães ou porretes que precisen1
temer. Os carneiros certan1ente conservar-se-ia1n en1 paz
e se deixarian1 ser governados e alitnentados sossegada-
n1ente, mas n{io sobreviveriatn por n1uito te1npo.
Portanto deve-se ton1ar cuidado en1 conservar distin-
tos os dois governos• e pennitir que a1nbos continue111
[seu trabalho], un1 par'1 tornar justos• [os ho1nens] e o ou-
tro para estabelecer a paz exterior e itnpedir os delitos.
Nenhurn deles é suficiente para o n1undo sen1 o outro.
Se1n o governo espiritual de Cristo, nenhtun hon1e111 pode
se tornar justo aos olhos de Deus [apenas] pelo governo
secular. No entanto, o governo espiritual <le Cristo não se
estende a todos; ao contrário, en1 todos os ternpos os cris-
tãos são os n1enos nutnerosos e vivein e1n nleio :.ios nüo-
cristàos. Inversan1ente, onde o governo secular ou a lei
governa por si só, prevalece a hipocrisia pura e sin1ples,
ainda que fosse1n os próprios rnand~tnentos de Deus [que ·
estivessen1 sendo executados]. Pois ninguérn se torna ver-
dadeiramente justo sem o Espírito Santo ern seu cor.,l~'àO.
por rnelhores que sejarn suas ações 19 • Assitn tatnbén1 , onde
........ -· ........... . .

17
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade s e c u l a r - - - - - - ~ -

o governo espiritual preside sem auxílio um país ou um


povo, toda sorte de iniqüidade campeia à solta e toda es-
pécie de velhacaria n1anifesta-se abertamente. Pois o mun-
do em geral é incapaz de aceitá-lo ou de compreendê-lo
[isto é, o governo espiritual].
Agora vocês podem perceber o alcance das palavras
de Cristo que citamos antes a partir de Mateus 5 [39], no
sentido de que os cristãos não devem recorrer aos tribu-
nais ou usar a Espada secular entre si mesmos. Na realida-
de, isso só é dito aos cristãos, que ele an1a, e são apenas
eles que o aceitam e agem de acordo cotn isso, em vez de
reduzi-lo a meros "conselhos", como os sofistas. Ao con-
trário, é tal o caráter que o Espírito Santo conferiu a seus
corações que eles não fazem mal a ninguém, mas antes
o suportam de bom grado nas 1nàos de qualquer outra
pessoa. Ora, se o mundo inteiro fosse cristão, tais pala-
vras se aplicarian1 a todos e todos agiria1n de acor<lo con1
elas. !\1as, uma vez que existem não-cristãos, as palavras
nada tên1 a ver con1 eles, que tan1pouco as segue1n. Eles
pertencem, em vez disso, ao outro governo [isto é, o se-
cular], mediante o qual os não-cristãos são exteriorn1ente
constrangidos e obrigados a se con1portar bem e p:.1cifi-
ca1nente.
[368:) Pela 1nes1na razào, Cristo não trouxe consigo a
Espada [en1 pessoal ou a instituiu en1 seu reino: ele reina
sobre os cristãos e governa exclusivan1ente por seu Espí-
rito Santo, sem nenhurna lei. E, ainda que ele confirn1as-
se {a legititni<lade de] a Espada , ele próprio não a en1pre-

é ju:sto po r ~ -u_.., próprios t" desamparadüs esforços (obras ) ;1 fX'OtO d~ mé're-


cer por Ll1r<.' ito a rt:'comr~nsa de Deus. Cf. \ lm den G't1le 1l ~ t,rk<•n lSo hrt· ;! ...
txxl:-. o bra -,}. l "20.

lH
__
_ _ _ ______ lutero: Sobre a tluton'dade secular_ _ _ _ _ __

gou, pois ela nà,.o favorece seu reino, que não contém
senão os justos. E pela n1esrna razão que nos dias antigos
Davi não teve pennissào para construir o Ten1plo, pois
ele havia en1punhado a Espada e derran1ado n1uito san-
gue. Não que con1 isso tivesse cometido injustiças, mas
ele não podia prefigurar _Cristo, que terá um reino pacífi-
- co sem a Espada. Em vez dele, Salon1ào teve de fazê-lo -
''Salon1ão" ern alen1ào significa sereno, pacífico 20 - , pois
Salo1nào teve um reinado pacífico, que portanto podia ser
o emblema do reino pleno de serenidade de Cristo, o ver~
<ladeiro Salomào. E também, dizem as Escrituras, durante
todo o período em que o Templo era construído, não se
escutou o som de instrumentos de ferro; tudo isso porque
Cristo queria um povo livre e voluntário, sem coerção ou
constrangimento, lei ou Espada [lRs 6, 7].
É esse o significado do que dizem os profetas: Salmo
109 [possivelmente Salmo 110,3]: '·Teu povo será aqueles
que são generosos'', e Isaías 11 [9]: ''Ninguétn n1atará ou
fará n1al algum en1 todo o meu santo monte" (em outras
palavras. a Igreja). E Isaías 2 [4]: "Eles transforn1arào suas
espadas em relhas de arado e suas lanças ein podadeiras;
e nenhuina nação levantará a espada contra outra; nem se
aprenderá n1ais a fazer guerra, etc.'' Aqueles desejosos de
estender o significado deste e de outros ensinan1entos si-
1nilares para fazê-los recobrir todos os que se dize1n cris-
tãos estariam pervertendo {o significado de] as Escrituras,
pois essas coisas se dizem apenas dos verdadeiros cris-
tàos, que de fato age1n desse n1odo entre si.
···••ilt••·~--········
,
20. Lurero reiere-sc aqui._ por ,mp
. t·icaçao., ao f·ato l l,e que etunólooicamcn-
. - ~ .-
(,..
~
o - ,
norn<: propri-o akmJo f riedrich e 1 entKO aod· · nom,, ~
.. ht·bnuco ~.1 \om:w.
__
1
l......, - · · s- -n,:-~1·to tratar-~ de uma
'·"'ªvez que a referf•ncia é intraduzível . eu a supnmr. U-'.)t,..: •
ai• ...,- 1· . . d ~ . • ·. procetor de Lutero .
.....-;ao i.-.on)\:·1ra a frt"derk:o , o Sá h.io1 Ele itor :1 ~axo nia t: · -

19
_ _ __ _ _ __ Soh1·t• u autoridade s<1cu!r.1r _ _ _ _ _ _ __

5. Aqui vocês objetanio: visto que os cristüos n~10 ne-


cessitan1 nem da Espada secular nen1 da lei, por que 1110-
tivo Paulo diz a todos os cristãos e1n Ron1anos 13 [l]:
"Todo ho1nen1 se sub111eta ao po<le~ e à superioridade*"?' 1
E São Pedro [lPd 2,13]: ..Sujeitai-vos a toda a sorte de ins-
tituiç_'ào hurnana, etc.'', co1no citados acin1a? Minha respos-
ta é a seguinte: já declarei que os cristãos, entre si e para
si n1esn10s, não necessitam de nenhuma lei e de nenhu-
n1a Espada, pois não têtn en1prego para elas. Mas con10
urn verdadeiro cristão, enquanto se encontra sobre a ter-
ra, vive para seu próximo e o serve, e não para si mesn10,
faz coisas que não são em seu próprio benefício, n1as das
quais seu vizinho tem necessidade. Tal é a natureza do
espírito cristão. Ora, a Espada é indispensável ao mundo
inteiro, para preservar a paz, punir o pecado e refrear os
iníquos. E portanto os cristãos prontainente se submetem
a ser governados pela Espada, pagam itnpostos, respei-
tatn os que estão investidos de autoridade*, serven1-nos,
auxilian1-nos e fazem o possível para sustentar-lhes o po-
der, de 1no<lo que estes possam prosseguir com seu tra-
ha lho e possan1 ser preservados o temor e a reverência
diante da autoridade. [Tudo isso] ainda que os cristãos
não o necessiten1 para si n1esmos (369:l; n1as eles cuidam
daquilo de que os outros necessitam, como ensina Paulo
en1 Efésios 5 [21).
Do 1nesmo n1odo, o cristão executa toda a sorte de
obra <le anior sem que ele próprio tenha necessidade de-
las. Visita os doentes, n1as nào para curar-se. Não ali1nen-
ta os outros porque necessite de alin1ento para si mesn10.
Nen1 se1ve a autoridade* porque tenha precisão disso, mas

21. Cf. nota 11.

20
--~--------- lulero: SfJhre a autonâade secular
---- ---
porque os ou~ros a tê1n, de n10Jo que estes possatn go-
zar de prot<:çao e que o~ n1alfeitores não se tornein ain-
da piores. lJ1n tal serviço"' não o prejudica e ele nào fica
<lirninuído ao fazê-lo, n1as o n1undo se beneficia enorme-
ntcnte. C)tnilir-se de fazê-lo não seria o procedin1ento de
u1n crist~to; seria o oposto do [dever cristão de] amor e
daria utn n1au exernplo [aos nào-cristàos): en1hora não se-
jatn crist1os, ta1nhén1 eles recusariarn subn1eter-se à au-
toriuade. E tudo isso daria má reputação ao Evangelho,
con10 se ele pregasse a rebelião e produzisse pessoas
egoístas, sern vontade de ser úteis e prestimosas aos de-
n1ais, ao passo que o Evangelho faz do cristão alguém
devotado a todos. Assin1, em Mateus 17 (271, Cristo pagou
o tributo para não provocar escân<lalo, e1nbora não tives-
se necessidade de fazê-lo.
De fato, nas palavras <le Mateus 5 [39] citadas acima,
vocês efetiva1nente encontran1 Cristo ensinando que aque-
les que são dele não devem ter lei ou Espada secular en-
tre si 1nesn1os. rv1as ele não os proíbe de serviren1 e de se
subn1etere1n àqueles que <le fato detêrn a Espada secular
e as leis. Ao contrário, precisamente porque vocês não
necessitatn dela e não devetn tê-la, devem servir àqueles
que não alcançarain o 1nes1no nível [espiritual] en1 que
vocês se encontrarn e que ainda necessitam dela. En1bo-
ra vocês próprios não precise1n de que seu inin1igo seja
punido, seu vizinho vulnerável precisa, e vocês devem
ajudá-lo a gozar de tranqüilidade e tratar de fazer com
que os ini1nigos dele sejam repritnidos. E isso não pode
acontecer a rnenos que o poder• e os superiore~* seja~
vistos com reverência e ten1or. A~ palavras de Cnsto nao
são: vo<..·ês não <levem servir o poder nen1 se su bn1 eter a
ele, rnas antes: "não resistais ao ho1ne1n n)au ·• . con10 que

21
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a auton·d ade secul.ar - - ~ - - - - -

para dizer: vocês deve1n conduzir-se de 1naneira que su-


portem todas as coisas e assim não tenhan1 necessidade
de que os detentores do poder os auxiliem, os sirvan1 ou
lhes sejan1 úteis~ ao contrário, vocês devem ajudá-los, ser-
vi-los e ser indispensáveis a eles. Farei com que vocês se-
jam de urna condição a tal ponto nobre e honrosa que não
precisarão deles; antes, eles é que precisarão de vocês.
6. Vocês perguntam se um cristão pode chegar a em-
punhar a Espada secular e [ele mesmo] punir os n1alfei-
tores, visto que as palavras de Cristo "Não resistais ao
homem mau" parecem tão claras e peremptórias que os
sofistas tiveram de diluí-las num mero ''conselho". Ares-
posta é : vocês ouviram agora duas coisas [contraditórias].
Uma é que não pode haver Espada entre os cristãos. E
portanto vocês nào podem brandir a Espada sobre ou en-
tre os cristãos. Assim, nesse contexto, a pergunta é irre-
levante; deve-se perguntar, en1 vez disso, em relação ao
outro grupo [dos não-cristãos]: pode-se fazer um uso cris-
tão da Espada, no que lhes diz respeito? É aqui [370:] que
se aplica a segunda parte [do que eu disseJ, aquela que
afirma que vocês deven1 à Espada seu serviço e seu apoio
por todos os n1eios que estejan1 a seu alcance, seja com
seu corpo, seus bens, sua honra e sua ahna. Pois essa é
uma tarefa da qual vocês mesn10s não têm necessidade,
mas seu próxin10 e o n1undo inteiro a têm co1n toda a
certeza. E portanto, se vocês percebere1n que há falta de
carrascos, oficiais de justiça, juízes, senhores ou prínci-
pes, e julgarem ter vocês as qualificações necessárias,
devem oferecer seus serviços e buscar um cargo, de tal
n1odo que a autoridade*, tão necessitada, jan1ais venha
. a ser vista con1 desprezo, torne-se impotente ou pereça.
O mundo não pode sobreviver sem ela.

22
_ _ _ _...,._ _ Lutero: Sobre a autoridade secular_---,._ _ _ __

Con10 isso resolve a dificuldade? Da seguinte manei-


ra : todas as ações desse gênero deveriam ser devotadas
exdusivan1ente ao serviço* dos outros; elas deveriam be-
neficiar apenas a seu próximo, e não a vocês, sua honra e
possessôes. Vocês não estariarn buscando vingança [para
si mesmos], não estaria1n pagando o mal con1 o mal, mas
antes estariam buscando o bem de seu próximo, a preser-
vação, proteção e tranqüilidade dos demais. No que diz
respeito a vocês e a seus bens materiais, permaneçam
fiéis ao Evangelho e ajam de acordo com a palavra de
Cristo; ofereçam de bom grado a outra face e entreguem.
a veste juntamente com a túnica, quando são vocês e seus
bens que se encontram envolvidos. E assim as duas par-
tes são rigorosamente reconciliadas: vocês satisfazem ao
mesmo ten1po, exteriormente e interiormente, as exigên-
cias do mundo e do reino* de Deus; vocês suportam o
mal e a injustiça e no entanto os punem~ não resistem ao
homem mau e no entanto o enfrenta1n. Pois vocês cui-
dam de um determinado modo de si mesn1os e do que é
seu, e de outra maneira do seu vizinho e daquilo que lhe
pertence. Em relação a vocês e aos seus, vocês cumprem
o Evangelho e aceitam a injustiça como um verdadeiro
cristão. Mas, onde seu próxitno e o que é dele estiverem
envolvidos, vocês agem em consonância com a [ordem
de] amor e não toleram nenhuma injustiça contra ele. E
isso não é proibido pelo Evangelho; ao contrário, o Evan-
gelho o ordena alhures [cf. Rn1 13,4).
É desse modo que, desde o início do mundo, todos
os santos empunharam a Espada: Adão e seus descen-
dentes, Abraão quando salvou Lot, filho de seu irmão, ,.e
matou os quatro reis (Gn 14 [13-161)- e existe alguma du-
vida de que Abraão sin1bolize todo o Evangelho? Foi des-

23
se n1odo que o ~anto profeta Sann1el nlalou o rei A~;1g
(lSrn 15 [.12 S$.]), e Elias, os profetas <lc Baal ( I Rs 18 (/40) ).
E Moisés, Josué, os Filhos de Israel, Sansüo, I)avi, todos
os reis e príncipes do Velho Testarnento agirarn <lo Olt s .. 4

n10 tnodo. O n1esn10 fizera1n, na Bahilünia, Daniel e seu."'


con1panheiros Ananias, Azarias e lv1isael; o rnesrno fez Jo.-,é
no Egito, e assin1 por diante.
Alguns aqui afinnariatn que a Antiga AJiança está abo-
lida e não é n1ais válida e que, portanto, não faz sentido
repetir aos cristãos esses exen1plos. N~1o é assirn. Pois Sfto
Paulo diz en1 }Coríntios 10 [31: "Eles cornerarn o n1esnK>
ali1nento espiritual que nós cornernos, e bcl>erarn a 1nes-
n1a hebida espiritual da rocha que é Cristo." Ou seja, eles
tinhan1 o n1esrno espírito e fé ern Cristo que nós te1nos
- [371 :}, e eran1 tão cristãos quanto nós sotnos. E o que era
correto a eles fazeren1 é justo a todos os cristãos, do iní-
cio ao fin1 do nn1n<lo. Pois o te111po e nn1danp1s exterio-
res não faze1n <lifcrença entre os cristãos. Nen1 é verda<le
que a Antiga Aliança tenha sido abolida, de rno<lo que
não seja preciso conservar-se fiel a ela ou que seja errô-
neo obedecer a ela - un1 ponto no qual São Jerônirno e
1nuitos outros con1etera1n urn engano. Antes, é esse o
rnodo segundo o qual a Antiga Alian~a foi abolida: fazer
ou deixar de fazer são entregues à vontade livre, e não
1nais ohriga,n, co1no faziatn anterionnente, sob pena de
per<lern10s no~sas alrnas.
Isso porque São Paulo diz en1 !Coríntios 7 [19] e Gá-
latas 6 [15}: "A incircuncis,lo nada é, e a circuncisão nada
é; antes, unia nova criatura en1 Cristo." Ou seja, não é pe-
cado ser incircunciso, {ao contrário do que] pensavarn os
judeus, netn é pecado ser circunciso, corno acredilavatn
os pagàos, 1nas an1hos os estados s~\o igualtnente bon!-j e

24
_ __ _ _ _ _ lutero: Sobre a au.to rultu:lt! St!cufar _ _

igualrnente deixados a nosso critério, desde que aquele


que assin1 proceda não in1agine que se tornará justo• ou
· será salvo por isso. O n1es1no se aplica a todas as outrjs
· partes da Antiga Aliança: não é errado deixar de fazer
nen1 errado fazer, rnas tudo é deixado con10 livre e born
'
para ser feito ou ser on1itido. E, de fato, se fosse un1a
questão daquilo que é necessário ou proveitoso para a
salvaç.ào da altna de nosso próxin10, seria obrigatório
guardar todos os n1andamentos. Todos tên1 o dever de fa-
zer o que seja necessário por seu próximo, sem levar em
conta se é algo perte~cente à Antiga ou à Nova Aliança,
independentemente de ser algo judaico ou pagào, con10
esclarece São Paulo em 1Coríntios 12 (13]: "O an1or pene-
tra tudo e transcende tudo, e olha apenas para a necessi-
dade e o benefício dos outros, n1as não indaga se é algo
velho ou novo." O mesmo vale para os exen1plos do [uso
da] Espada. Vocês são livres para segui-los ou não. 11as,
quando virem seu próxitno em precisão, o a1nor os obri-
ga a fazer o que em outras circunstâncias seria deixado
livre para ser feito ou ser on1itido. Apenas nào it11<lginen1
que suas ações os tornarão justos ou os salvarào, con10
os judeus tiveram a audácia de pensar; antes, deixen1 isso
a cargo da fé, que os transfonna em un1a nova criaç~10 sen1
necessidade de obras22 •
No entanto, para provar nünha tese ta1nbé1n a partir
do Novo Testan1ento, pode1nos nos basear ern Jolo Ba-
tista (Lc 3 [1 SD, cujo dever era se1n dúvida dar teste111u-
nho de Cristo anunciá-lo e 1nostrj-lo. Isto é, sua doutrina
'
deveria ser evangélica, o Novo Testal'nento e1n sua pure-

······ ..................
22. Cf. nota 19-.

25
:1 •., , ~
t:"lt d<.·vt·ria conduzir a Crbto pessoa~ perfeitas. João
cunfifnla n oficio do soldado, dizendo que eles <leveriarn
s<.• (.'(HltL'lltlr conl ~eu p~tg:ttn~nto. Se não fosse çrí~t~1o
hr.1ndir a t·spada, ckl (k~veria puni-los e dizer-lhes para
lan(ar fora tanto suas e:;padas quanto seus soldos; do
t·nntr;irio., n~'to est:1ri~1 cnsinando•lhes o que é digno para
os c rist1ns. E, quando S1o Pe dro e1n Atos <los Apóstolos
10 (}l ss.l l~s1ava ensinando a Cornelius acerca de Cristo,
n:1o lhe disstl par-..\ abandonar seu ofício, corno deve ria ter
feito se l·ste tivesse sido u1n e1npecilho para Cornelius
{atingirl o slatu.,... de cristJo. [372:l tvtais ainda , antes de
{Conh.~lius] st·r hatizJ.do [At 10,441, o Espírito Santo desceu
sobre ele. E S;..1o Lucas louvou-o co1no urn hon1ern justo
l"Al 10,2] antes de Pedro doutriná-lo e nele njo encontrou
1núl'utt por ser ele u1n con1an<lante <le soldados e um
ct•nluri:1o do i1nperador pag;.1o. O que era correto p ara
o F~,pirito Santo deixar itnut(lvel e ilnpune no caso de Cor-
nelius é iguahnente correto para né>s.
l) nlesn10 ext~tnplo nos é dado pe lo eunuco etíope,
un1 ctpitJo, en1 Atos 8 [27 ss.], j que1n o evangelista Fili-
pt:~ convt>rteu e b~Hizou e en1 seguida pennitiu que con-
servasse seu cargo e voltasse para casa. [O etíope] dificil-
1nente poJeri~• ter 1nantido urn cargo tão irnportante sob
as ot'lk·ns da rainha da Etiópia setn en1punhar a espada.
Isso rarnbén1 ~contt·ceu no caso do governador de Chi-
pre, SL·rgius Paulus (_At. 13 [7 ,121), a quern São Paulo con-
veneu t.· no t>ntanto pertnitiu que perrnanece.sse gover-
nador, entre e sobre os pag~'tos. E o n1esn10 foi feito por
rnuitos 111:.'irtires sarHifictdos, que erarn obedientes ao in1-
r~•rador pagJ.o de Rotna , entravan1 e1n batalha sob suas
or<lens e se1n dúvida 1n~navan1 pessoas par~ conservar a
paz, con10 t.•stá escrito sobre s~lo Maurício, Santo Acácio

26
_ _ _ _ _ _ _ Lutero. Sobre a autoridade secular_ _ _ _ _ __

e São Gereào e n1uitos outros sob o con1ando do imper.1-


dor Juliano [o Apóstata]u.
Porém n1ais importante do que todos esses exen1plos
é o texto enérgico e direto (Rn1 13 [lJ) onde s~10 Paulo
diz: "O poder* é a ordenação de Deus." E n1ais adiante:
"Não é debalde que aqueles no poder trazen1 a espada.
Pois o poder é a serva de Deus, seu vingador para teu
bem contra aquele que faz o 1nal" [Rm 13,4]. l\Ieus caros
irn1ãos, não ousem dizer que o crist~10 nào deve fazer o
que na realidade é a própria obra de Deus, por ele orde-
nada e criada. Pois nesse caso tan1bém seria preciso afir-
mar que o cristão não deve comer, beber ou se casar, urna
vez que estas são igualmente obras e determinações de
Deus. E por serem criações divinas elas são boas, e é
igualmente benéfico para todos fazer delas un1 uso cris-
tão, como ensina São Paulo em 2Tin1óteo 4 [4]: "Tudo
criado por Deus é bom e não deve ser rejeitado pelos fiéis
e por aqueles que reconhecem a verdade.,, E vocês de-
vem incluir, entre as coisas criadas por Deus. não apenas
a comida e a bebida, as roupas e os sapatos, mas tan1bé 1n
o poder e a subordinação, a proteção e a punição.
Portanto, para resurnir urna longa história: un1a vez
que São Paulo afirn1a que o poder é a serva de Deus, seu
uso deve ser permitido não apenas aos pagãos n1as a toda
a hun1anida<le. Pois qual pode ser o se ntido de afirn1ar
que o poder é a serva de Deus, a não ser o de que é. por
natureza , algo que pode ser usado para servir a Deus?
Seria totalmente não-cristão dizer que existe algu1na coi-
sa que serve a Deus e que nào obstante un1 crisrüo n~1o
. ..... ' ...., ........
~

23. Lutero aqui e~tá recorrendo ::i. exemplos tirad0s das lendas populares
da Vdtu Jgreja .

27
--·- - - --- Sohre a autoridade secular _,_ _ _.....,_....
deve fazer, pois não existe ninguérn mais qualificado par~i
servir a Deus do que uin cristão. Do 111esn10 rnodo, é cor-
reto e necessário que todos os príncipes [373:] sejarn bons
. cristãos. A Espada e o poder, co1no urn servjço* especial
prestado a Deus, sào mais adequados para os crist~1 os do
que para qualquer outra pessoa no mundo, e por conse-
guinte vocês deven1 estin1ar a Espada e o poder tanto
quanto o estado de casado, o cultivo do solo ou qualquer
outra ocupação instituída por Deus. Assim con10 urn ho-
mern pode servir a Deus na condi\:ào de esposo, na agri-
cultura ou no trabalho manual, en1 benefício de seu pró-
xin10 - e cotn efeito deve fazê-lo, se a necessidade de seu
próximo o ex1gir -, ele tatnbérn pode servir a Deus pelo
[exercício do] poder, e tetn obrigação de fazê-lo quando
seu próximo tiver necessidade disso. Pois são esses os
servos e trabalhadores de Deus, que punen1 o mal e pro-
tegen1 o que é bon1. Todavia, isso deve permanecer na
esfera do livre-arbítrio sempre que não haja [absoluta] ne-
cessidade, assim como contrair matrin1ônio e dedicar-se à
agricultura ta1nbém são deixados ao critério das pessoas,
sempre que não haja [absoluta] necessidade.
Se entào vocês perguntarem por que Cristo e os Após-
tolos não exerceram o poder, nlinha resposta será: por
que [Cristo} não teve urna esposa, ou não se tornou um
sapateiro ou um alfaiate? Devemos concluir que unia con-
di~·ão• ou ocupação* não é boa simplesn1ente porque o
. próprio Cristo não a teve? Nesse caso, o que aconteceria
a todos os status e ocupações exceto o de pregador, urna
vez que esse foi o único que ele exerceu? Cristo ocupou
o cargo e o status~ adequados a ele, n1as ao fazê-]o não ·
rejeitou nenhu1n outro. E1npunhar a Espada n::'io era apro-,,
priado para ele, pois seu único ofício deveria ser o de go-

28
_ _ _ _ _ _ _ ll/lt:>rú: Sr>hre a autoridade secular_ _ _ _ _ _ __

vernar seu reino e tudo o que servisse exdusivamente a


esse reino. E não dizia respeito a sua realeza* tornar-se
marido, sapateiro, alfaiate, lavrador, príncipe, carrasco ou
porta-maça; tanlpouco empunhar a Espada ou [criar] leis
seculares; tudo o que dizia respeito a sua realeza era a
Palavra de Deus e o espírito pelos quais os seus são go-
vernados interiormente. E o cargo que ele ocupava então
e que continua a ocupar é sempre conferido pelo espírito
e pela Palavra de Deus. E os apóstolos e todos os gover-
nantes espirituais deveriam sucedê-lo nesse cargo. Aque-
la obra, a obra da Espada espiritual, a Palavra de Deus,
dar-lhes-á tanto que fazer, se pretenderem fazê-lo ade-
quadamente, que eles terão de negligenciar a Espada se-
cular e deixá-la para outros que não têm de encarregar-se
da prédica, ainda que fazê-lo não seja incompatível com
seu status 14, como se afirmou. Pois cada um deve cuidar
de sua própria vocação* e de seu próprio mister.
E assim, embora o próprio Cristo não tenha empu-
nhado ou ensinado25 a Espada, é suficiente que ele não
a tenha proibido ou eliminado mas antes a confirmasse,
assim como é suficiente que ele não tenha abolido o esta-
do conjugal mas o confirmasse, embora ele próprio não ti-
vesse se casado e não tivesse ensinado nada sobre esse es-
tado. Isso porque a tarefa condizente com seu statu~ era
a de dedicar-se por inteiro à obra que seIVia especifica-
mente a seu reino e a nada mais, de modo que impedisse

24. Aqui o texto de Lutero é uma elipse destruidora do sentido. Creio que
ele queria dizer algo romo: "Exercer a autoridade secular não constitui algo
contra o stalus do pa~tor como cristão, mas é algo contra sua vocação. Pois ... "
25. Penso que isto s ig nifica : -ou ensinado o utras pessoas a exercer a au-
torrdad.c: coercitiva'"' . Observe-se como no pensamento de Lutero a Espada
metatô rka torno u-se completamente dissociada da ~ pada física.

29
que st.~u cxernplo fos~e tr:Hado con10 u111a ntz~1o obrigatú-
ri~t p~H~\ o c..~nsino e a cren\'~l etn que o reino de I)eus núo
pode cnntinuar ~-en1 o cas~unento ou a Espada [37,í:] ou
otHras coi:-;as exterion,~s de~~t· teor, ao passo que esse rei-
no ~ub~iste exclu~iva,nente pelo espírito e pett Palavra de
l)~us. (Pois o exe1nplo de Cristo co111pele à i1nita'1/ io.) ()
prúprio ofício• de Crbto era e tinha de ser o de 111ais alto
soberano ne~:,;e n1es1no r~ino. E, u1na vez que nern todos
o~ ctist~1os tfnl o tnesrno ofício (en1bora pudessern tê-lo),
é justo e :.1dcquado que eles tenha1n algutn outro [ofício]
cxtt·tior) nK·d.ianle o qual l)eus tatnbérn possa ser servi<lo.
Segue-$e de tudo isso que a interpreta~;;lo correta das
palavras de Cristo etn l'vtateus 5 (39] - ''N:1o resistais ao
hornen1 1uau, etc." - é a de que os crist~los deven1 ser ca-
p~lzes de suportar todo 1nal e toda injustiça se111 buscar
vingan\.'ª para si n1es1nos e sern tan1pouco recorrer aos
tribun;tis t.'tn defesa própria. Ao contrário) eles não de-
tnandar~)o da autoridade tetnporal e das lei~ [Rechtl* :.1b-
soluta1nente nada para si rnestnos. Poden1, poré1n, bu~car
retribui\-Jo, justiça [Rechtl, proteç·~lo e auxílio para os ou-
tros t' f;lZl.'r tudo aquilo que queira1n para alcançar ess~,
finali<l~H..le. E aquck·s no poder., por sua vez, deven1 aju-
dj~los e protegf·-los\ por inidativa própria ou por ordern
<le outrt.·tni ainda que os crist:Jos nào apresenten1 queixas
ou peli~;ôt:s nern instituarn pron:~~sos judiciai~. C>nde quer
qut~{as autori<.bdes seculares] deixe1n de fazê-lo) o crist~ lo
<leve pcrnlitir que ele pré>prio sofra abusos e mau~Hratos
e nüo dt:ve n: sislir ao 1n;ll, justatnenlc con10 ensina a Pa-
bvra c.k~ Cri~to. ·
~1a~ voc(~s podcnl l(: r ct~rt.cza de urna coisa : c~se cn~
sínatnento de~ Cristo n~\o é un1a "n.:-co111ctHla<r·ào para os
perft,itos'', çon10 susten1a1n nossos sofistas blasfe1nos e
1nentirosos, ,na:-; urna pres<.·ri\·ào l:'Slrita para todo crjstào.
- - - . . - --~Lutero.- Sohre a. autoridade secular_ _ _ _ _ __

E fiquen1 certos de que aqueles que buscam a vingança e


entrarn e1n litígio e disputan1 nos tribunais por seus bens
e honrarias não passarn de pagãos ostentando o non1e de
cristãos, e jamais serão alguma outra coisa. Não prestem
atenção à n1aneira das pessoas e ao que elas fazem usual-
n1ente. Não se enganem quanto a isso: existem poucos
cristãos sobre a face da terra. E a ordem de Deus é uma
coisa diferente daquilo que é usualmente feito.
Vocês aqui podem perceber que Cristo não aboliu a
Lei quando falou: "Ouvistes o que foi dito a vossos ances-
trais: olho por olho. Eu, porém, vos digo: não resistais ao
hon1em mau, etc." [Mt 5,38 ss.]. Ele está antes interpretan-
do o significado da Lei e nos contando como esta deve
ser entendida, como se dissesse: vocês, judeus, pensam
que é correto e adequado aos olhos de Deus que recupe-
rem o que é seu mediante [o recurso a] a lei, e baseiatn-
se em Moisés dizendo "olho por olho, etc." Mas eu lhes
digo que Moisés pronunciou essa lei por causa dos iní-
quos, daqueles que não pertencem ao reino de Deus,
para itnpedi-los de buscar eles próprios a vingança ou de
fazer ainda pior. Por intermédio de uma tal lei itnposta
do exterior eles seriam compelidos a abster-se do mal,
sendo ainda tolhidos pela lei e governo exteriores e sub-
metidos à autoridade*. Mas vocês deven1 conduzir-se de
1nodo que jamais necessitem ou busque1n uma tal lei. Pois
ainda que a autoridade secular deva ter essa espécie de
leis, para julgar os descrentes, e ainda que vocês próprios
possan1 fazer u~o delas, para trazer justiça aos den1ais,
rnesrno assin1, para si ·rnesmos e e1n seus próprios assun-
tos, não devern [375:] recorrer a elas ou utilizá-las, pois
vocês tên1 o reino do céu e devem deixar o reino terreno
[Erdreich] para aqueles que o recebern de vocês.

31
Vocês pt·n:l:hen1, cntúo, que Cristo não intt.:rpretou
~ua.s (pr<>priasl palavras con10 S<.~ abolissenl a Lei de Moí-
sl~s ou proihissern a autoridade secular. Ant<:s, ele n:Urou
Jo alcatH.'t~ desta últirna aqueles que são ~cus, <le n1odo
que dela n~)o flzessetn uso para ::;i pr6prios, rnas a deixa~-
se.tn para os de~crenlt.::-i, de que,n ele~ C'Onl efeito podt.·m
tratar por rncio de tais leis, un1a vel que os n::10 .. crist.Jo~
eft·tivatnente existern e ninguén1 pode se tornar u1n c.:rb-
tào verdadeiro pela cot·rção. Torna-se claro, porén1, que
as palavras <le Cristo sào dirigidas exclusivarnente aos
seus, quan<lo ele diz pouco adiante que eles devcrn arnar
seus ini1nigos e ser perfeitos, assirn con10 seu pai celes-
tial é perfeito lMt 5,4/4.48]. Todavia, urn hon1em que é per-
feito e an1a seu inirnigo deixa a lei para trás: não neces-
sita desta para cobrar olho por olho. Mas ele tan1pouco
estorva os não-cristãos, que não arnan1 seu inimigo e
~fetivan1ente querem utilizar a lei; ao contrário, o crbtâo
auxilia a justiça a capturar os maus, para irnpedi-los <le
corr1etcr atos ainda piores.
Ern minha opinião, é esta a rnaneira segundo a qual
as palavras de Cristo se reconciliam corn os textos que
institue1n a Espada. (J que elas significam é que os cris-
tãos não devern empr<:>gar a Espada ou a ela apelar para
si mesrnos e ern seu próprio interesse. Mas podem e
devem u~á-la e apelar a e)a no interef)se <los outros, de
modo que o n1al possa ser in1pe<lido e se confirn1e a jus-
tiça. É exatan1ente nesse sentido que o Senhor <liz, no
n1esmo trecho, que os cristàos não deverão prestar ju-
ramentos e que sua fala <leve ser sitn, sim e não, não (fv'ft
5,34 ss.l. Eni outras palavras, eles não devern jurar em seu
próprio nome ou por sua própria iniciativa e ínclinação.
f\1as, quando a necessidade, o benefído e a salvação {de
outr~)sl ou a glória <le l)eus assirn o exigirern, eles devetn

32
....-,..---- - -Lu!ero: Sobre a auton"dade seotlar~ - -

prestar juratnento. Para ajudar os outros, eles fazern uso


do jttíjtnento proibido [e1n outras circunst1ncias], precisa-
1nente do n1es1no 1nodo pelo qual usan1 a espada proibi--
da. Con1 efeito, os próprios Cristo e Paulo con1 freqüência
prestan1 jura1nento con1 o objetivo de tornar seu ensina-
n1ento e teste1nunho benéficos e dignos de crédito para a
hu1nanidade - assin1 con10 as pessoas fazen1, e est~)o au-
torizadas a fazê-lo no caso daqueles tratados e acordos
de que fala o Salino 62 [na verdade, 63 v. 12]: "S:lo louva-
dos aqueles que juran1 pelo no1ne dele.''
Coloca-se ainda un1a questão, a de saber se os por-
ta-n1aças, carrascos, juristas, advogados e todo o restante
dessa espécie podem ser cristãos e en1 estado• de graça.
A resposta é que, se o governo [die Geu,ia ftl• e a Espada
servem a Deus, con10 foi n1ostrado acima, ent~1o tudo de
que o governo necessita para e1npunhar a Espada cons-
titui iguahnente um serviço a Deus. Te1n de haver alguérn
encarregado de capturar os n1aus, acus{t-los e executá-los,
e de proteger, inocentar, defender e salvar OI'> ho1ne ns
bons. E, portanto, se a intenção daqueles que dese1npe-
nha1n essas tarefas não é a de buscar seu próprio bene-
fício, n1as apenas a de contribuir para afirrnar as leis e as
autoridades de n1odo que repritna1n os n1:.1us, não haver[!
risco para eles nessas tarefas e poderüo <lese1npenh[t-las
con10 a qualquer outro ofício [376:] e tirar disso se u sus-
tento. Con10 já ~e disse antes, o an1or ao pr6xin10 nào
leva e in conta a pessoa nern consider:.1 se o que deve ser
feito é importante ou trivial, desde que seja para o be1n
do pr6xirno ou da con1unidac.Je• 26 •

J.6. Gnnem e (= (,'emeinde), o tt-rmo ~é'n~rko Lk: LULt'ro p ;,ira uma n,k-1.i-
st·~,
\'J(.\;.i<.J,.: humanJ , ~•,-.tcl uma tongrc:.'ga,; .io. u ma parhq uia, uma d d .1 dc= <>tJ um
k ·.rriti',ri(~ p o lu w .11nc.: nh: ory_ani✓. :id, ) .

.B
---------- Sobre a autoridade s e c u l a r - - - - - --
Finahnente, vocês poderiatn perguntar: será que eu
n,1o poderia usar a Espada para mim mesmo e n1eus
próprios interesses, desde que não tenha em vista bene-
ficiar-n1e , mas simplesmente pretenda que o mal seja
punido? !vlinha resposta é que um tal milagre não é im-
possível, mas é muito incomum e perigoso27 • Pode acon-
tecer onde o Espírito estiver presente em sua plenitude.
Con1 efeito, le1nos em Juízes 15 (11] que Sansão decla-
rou: ''Assim como me fizeram, eu lhes fiz também." Mas
Provérbíos 24 [29] se pronuncia contra isso: "Não digas:
segundo me fez, assitn lhe farei." E também Provérbios
20 [22]: «Não digas: vingar-me-ei do mal." Sansão foi in-
cumbido por Deus de flagelar os filisteus e salvar os fi-
lhos de Israel. E, ainda que utilizasse seus interesses par-
ticulares con10 um pretexto para declarar-lhes guerra,
apesar disso não o fez para se vingar ou buscando van-
tagens próprias, mas para auxiliar [os israelitas] e punir
os filisteus. Todavia, ninguém pode seguir esse prece-
dente a n1enos que seja un1 verdadeiro cristão, preenchi-
do pe1o Espírito [Santo]. Onde quer que a razão [hun1a-
na comun1] queira fazer o mes1no, ela sem dúvida ale-
gará que não está buscando seu próprio benefício, mas
a afirmação será falsa de alto a baixo. Tal coisa é itnpos-
sív el sen1 a graça. Portanto, se vocês quiserem agir co1no
Sansào, tornem-se pritneiro sen1elhantes a Sansão.

27. Outra frase confusa . O sign ificado , imagino, é: tal coisa não é impos-
síveL m;i!ii tio rara a pomo d e ser quase um mjlagre . e alé m disso é p erigoso
a·iir desse modo.

34
· Segunda Parte

Até oruie se estende a autoridade secular

Chegarr1os agora à parte principal deste sennâo. Apren-


den1ot; que nesta terra deve haver autoridade secular e
cotno se pode fazer dei.a un1 uso benéfico e cristão. Ago-
ra, devemos estabelecer quão longo é o alcance dessa
autorí<la<le., até onde pode estender seu braço se1n ultra-
passar seus limites e invadir o governo e o reino• de Deus.
Trata-se de algo acerca do que devemos ter muita clareza.
f)uan<lo é dada excessiva liberdade de ação .[ao governo
secular], o dano que disso resulta é insuportável e revol-
tante, mas tê-la confinada em limites demasiado estreitos
tatnbém se n1ostra prejudicial. No primeiro caso há puni-
ção excessiva, e no outro, insuficiente. É mais tolerável,
porém, errar no segundo caso: é sempre n1eJhor un1 pa-
fife conservar a vida do que um homem justo* ser morto.
Exi~tem sempre patifes no mundo, e sempre existirão,
mas há poucos homens justos . ·
[377:1 O primeiro ponto a ser notado é que as duas
partes em que se dívídem os filhos de Adão (como disse-
mos acima), uma o reino de Deus• sob Cristo, a outra o
reino <lo mundo• sob a autoridade* [secular], têm cada
urna sua própría espécie de lei*. A experiência cotidiana
mostra~nos suficientemente que cada reino deve ter suas
próprias leis e que nenhum reino ou governo pode so-
breviver sem lei. O governo secular tem leis que não se
•~ stendem além do corpo, dos bens e das questôes exte-
nores>terrenas•. Todavia, no que diz respeito à alma, Deus
não pode e não quer pern1itir que nenhurn outro gover-
nt: alérn dele mesmo. E assim, onde a autoridade secular

35
totna a seu cargo lcgbf,tr (:rn re·t;1<;üo à al,na. <:la invadt: fo
que pe,ttnc:c a] o governo d<; l)vuH e siolpk·sinerHt~ ~ ·duz
e faz perder as ahn(,s. Prt~tt:ndo tornar c~se ponto U]o ·fa-
ro, tio ~en1 a,nhigiiidade, que ninguénl possa deixar de
apreendê-lo, p,1ra que nossos senhores os príncipes e bis-
pos possarn percebl'r a loucura de tentar <:ornpelir à cn:n-
ça nisto ou naquilo por rneio de leb e ordens.
Se alguérn itnpuser as alrnas unw lei feita pelo horne1n,
obrigando à crença no que esse aJguérn quer que se t.1cre-
dite, provaveltnente não haverá palavra de l)eus para ju~-
tifícá-lo2A. Se não existir nada na Palavra de f)eus quanto
a isso, será duvidoso se é isso o que J)eus quer. Se e]e
n1esn10 n~1o ordenou a1gurna coisa, não há rneio de es-
tabelecer que esta lhe seja agradável. Ou, antes, podetnos
estar certos de que não lhe é agradável, pojs e)e quer que
nossa fé se baseie exdusivan1ente em sua divina Palavra;
con10 ele afirn1a e1n Mateus 18 [na verdade, 16)8]: "So~
bre esta pedra edificarei rninha igreja."n E tan1bém em
João 10 [27]: ''Minhas ovelhas escutam n1jnha voz e rne
conhecen1, mas não escutam a voz dos estranhos e fogern
deles." Segue-se disso que, corn suas ordens blasfernas, a

28. ''Para justificá-lo" Cto just((y it) é a minha tradução, dcltbera<lamente


ambígua, do ca~ual "da" (Já) utílízado p or Lutero. que pode .')ignifícar '" uma tal
crença··. Ou então Lutero poderia ter em mente (como acredito que tívcsstJ
que as pessoas irão impor crenças apenas quando não puderem encontrar
sanção nas Escrituras para a crença em questão. Seja como for, Lutero e5tá
equivocado quanto ao problema c1i kgirimi<lade de se compelir profi'isões de
f f cm a~suntos sobre os quais as Escrituras não são ambíguas.
29. Esse teJ1.tO ( para o qual Lutero, significativamente, forneceu a refe-
ri'.ncia errada) é o loc11s classicus para afirmar a autoridade papal - e Lut<:-ro
está ddiheradam<.:nte voltando-o em ourra direção. Segundo essa interpreta-
ção. a "pedra" deve ser enrc:n<l1da como a fé, e não Pedro, como o texto pa-
r<~cc:: dizer. Em grego e hebreu, as pabvras para '-Pedro" e "pedra" são idênti-
cas, e em larim quase idêntkas.

36
- - -- ----'--- luten>: Sobre a autu11dude w!cular ____.._______ -
,.
----~--·- - ....
,

autoridade secular lança as altnas na dana<;·:1o eterna. P< >Í.<.;


isso significa obdgar as pessoas a acreditar que algo 0 ;,n
certeza agradará a Deus, quando isso nào é absolutatncn-
te certo; ao contrário, é certo que desagrada a I)c-us, urna
vez que não existe [texto no] Verbo de Deus para sancio-
ná-Jo. Pois quen1 quer que acredite que algo seja correto
qua11<lo de fato é errado ou duvidoso nega a verdade,
que é o próprio Deus, e crê en1 1nentiras e erros ... -',{)
Portanto, é absoluta loucura eles nos ordenaren1 que
acrediten10s na Igreja, nos Padres [<la Igreja] e nos Concí-
lios 1nesn10 que não exista Palavra [expressa] de Deus
[quanto ao que nos dizem para acreditar]. São os apósto-
los do detnônio, e não a Igreja, que divulgan1 essa espé-
cie de ordern. A Igreja não exige nada, à exceção do que
é certo segundo a Palavra de Deus. Con10 diz S,1o Pedro
[lPd 4,111: ''Se alguéin fala, faça-o con10 se pronunciasse
oráculos de Deus." ~1as eles jamais serão capazes de mos-
trar que os decretos dos Concílios são o Verbo de l)eus. E
o que é ainda n1ais ridículo é quando se argurnenta que,
afinal, é nisso que os reis, os príncipes e as pessoas geral-
tnente crêe1n. Mas. n1eus an1igos, não son1os batizados ern
norne de reis e príncipes e das pessoas em geral, rnas em
non1e de Cristo e do próprio l)eus. E nosso título nào é o
de "reis" ou "príncipes" ou "pessoas em geral", mas O de
cristàos. (378:] Ninguém pode ou deve estabelec~r ~o-
rnandos para a alrna, exceto aqueles que poder~ <lirecio:
ná-la no nano do céu. Nenhurn ser humano, porern, pode
...
faze-lo; apenas Deus. E, portanto, , n,,15, c·o1·sas
· · que . dizem
·
. a. . sa 1v~\-·ao
respeito _ e1as a 1rnas,, nada clev'e'" ·ser ensinado
,. ou
aceito a n~1o ser a Palavra de Deus.

..................... .. . nr-tndo ser dirdro !ou íu~--


.30. O texto contmua plcon.i.sticamcnt1:·: sUMt' • ·
to) o qllc é. errado 101.1 'in1usto. unrec htf' .
~-------- Sobre a autoridade ~,ecular - - - - - - - -
Outro ponto importante é o seguinte. Por mais estú-
pidos que sejatn, eles deven1 ad1nitir que não têm poder
sobre a aln1a, pois nenhun1 ser hu1nano pode aniquilar a
aln1a ou trazê-la à vida, ou encan1inhá-la ao céu ou ao in-
terno. E, se eles não acreditaren1 em nós, então Cristo vai
tnostrá-lo com clareza mais que suficiente quando diz em
l\i1ateus 10 [28]: "Não temais os que matan1 o corpo e de-
pois disso nada mais podem fazer. Temei antes aquele
que, depois de destruir o corpo, tem o poder de conde-
nar ao inferno." Cotn certeza isto é suficientemente claro:
a aln1a é retirada das n1ãos de todo e qualquer ser huma-
no e colocada exclusivan1ente sob o pode~ de Deus. Ago-
ra n1e digam o seguinte: alguém que estivesse lúcido da-
ria ordens onde não ten1 autoridade*? Vocês poderia1n
igualn1ente ordenar que a Lua brilhasse por seu co1nan-
do. Haveria algu1n sentido se as pessoas de Leipzig de-
vessem estabelecer as leis para nós aqui e1n Wittenberg,
ou vice-versa? Quem quer que tentasse isso receberia em
agradecimento un1a dose de heléboro, para desanuviar
sua cabeça e curar seus resfriados. l\r1as é exata1nente isso
o que estão fazendo nosso imperador31 e nossos judicio-
sos príncipes; eles deixan1 que o papa, os bispos e os so-
fistas os lideretn, o cego conduzindo o cego, ordenando
que.seus súditos tenha1n a crença que os príncipes con-
sideram adequada, sem a Palavra de Deus. E então eles
insistetn em conservar o título de "Príncipes Cristãos", que
Deus proibiu .
.... . ...... .. .. ..........
31 . Aqui Lutero, de m anei ra um tanto afoita, está culp::mdo o imperado r
em pes~oa. Em tf'annm,f;t an seine /iehe11 D e11tschl!n (Aviso a seu~ queridos
alemães), de 1531 , Lutero fez alguns rodeios para. não recrimtnar o ímpc'rador,
c:em,urando <~m vez disso seus consdheiros.

38
_ _ _ _ _ _ _ 1,utero: S<hre a autoridade secular
---- ---
Outra n1aneira de captar esse pontó é a de que toda
e qualquer autoridade só pode agir, e só deveria agir,
onde possa perceber, saber, julgar, sentenciar e n1o<lifícar
as coisas. <2ue espécie de juiz seria aquele que julga às
cegas, ern assuntos sobre os quais não pode escutar nem
enxergar? Mas n1e <liga1n: como pode um ser humano ver,
conhecer, julgar e mudar os corações? Isso é da compe-
tência exclusiva de Deus. Como diz o Salmo 7 (10]: "Deus
sonda o coração e os rins. " 32 E também [S1 7,9]: "O Senhor
é o juiz dos povos" e Atos 10 [na verdade, 1,24; 15,8]:
"Deus conhece os corações. " E ainda Jeremias 1 [de fato,
17,9]: "Falso e inescrutável é o coração do homem. Quem
pode sondá-lo? Eu, o Senhor, que sondo o coração e os
rins." l Jm tribunal <leve ter um conhecimento exato do
que deve julgar, mas os pensamentos e as mentes das
pessoas não podem ser manifestos para ninguém à exce-
ção de Deus. Portanto, é impossível e fútil ordenar ou
coagir alguém a acreditar nisso ou naquilo. Exige-se aqui
uma habilidade diferente; a força• não vai funcionar. Fico
surpreso com esses lunáticos [379:], visto que eles pró-
prios têm um ditado: De occultís non íudicat ecclesia, a
Igreja não é juiz em assuntos secretos. Ora, se [até mes-
mo] a Igreja, o governo espiritual, apenas rege assuntos
que sejam púhJicos e abertos, com que direito a autorida-
de secular, em sua loucura, ousa julgar uma coisa tão se-
creta, espiritual e escondida quanto a fé?
Cada um deve decidir por sua conta e risco em que
deve acreditar e deve cuidar para que acredite correta-
mente. Outras pessoas não podem ir para o céu ou para

,................,... - · 1· · · que significa· subme-


32. Lute ro está. usando uma expressao JC -10mat1ca ·-
ter a um exame mmucio!-,0.

39
_ _ __ _ _ _ _ _ Sohre a autoridade secular --- - - - - - - - --

o inferno en1 n1eu nome, ou abrir ou fechar [as portas do


céu ou do inferno] para mirn. Tan1pouco podem acreditar
ou deixar de acreditar en1 meu non1e, ou coagir rninha
crença ou descrença. O modo con10 a pessoa acredita é
um assunto de cada consciência individual, e isso não di-
nlinui [a autoridade de] os governos seculares. E]es deve-
rian1, portanto, contentar-se em cuidar de seus próprios
assuntos e permitir que as pessoas acreditem no que po-
den1 e no que desejam, sem usar de coerção nessa es-
fera contra ninguén1. A fé é livre 33 , e ninguém pode ser
con1pelido a crer. ~1ais precisan1ente, longe de ser algo
que a autoridade secular deve criar e cornpelir, a fé é
algo que Deus elabora no espírito. Daí a afirmação co-
n1un1, que tan1bén1 está presente e1n Agostinho-H: nin-
guém pode ou deve ser forçado a acreditar e1n algun1a
coisa contra sua vontade.
Essas pessoas cegas e desprezíveis nào co1npreen-
de1n que coisa absurda e impossível estão tentando. Por
mais rigorosas que sejan1 suas ordens, por maior que seja
seu furor, não pode1n forçar as pessoas a fazer mais do
que obedecer por palavras e atos [exteriores]; não poden1
obrigar o coração, ainda que cheguem a se dilacerar ten-

.33. Literalme nte: .. uma obra (ou ação) livre" ; um notá\·ef exemplo do
h á bito de Lutero J e !'-e expressar coloquial e d escuidadam e nte. uma vez que
o ponto central de sua teologia é. sem dú, ida, o de q ue a fé não é uma obra
ou açjo de quJ.lque r e..:;pécie, e sim uma d ~\di,·l livre m ente concedid:1 e
im<:n•çída .
34. A razào pd.;i qual Lutero cita Ago~tinho nesse c ontê XtO. altrn cL-. au-
wridadt> in ~ uala<l-a d e~te ú1tuno e ntr(;' os Padres (b lgrej'1 , no que dizi:1 res -
p(•ito :Jos rcfo rm.1dores, é que ele er-..t, de modo m.iis e·vidente e mais not0 no.
um.\ .auto rida<k pnxisarnente p:.ira a opindo qut> Lutt>ro está negJ.nd,.x Com-
p<'llt> i,t/mrt•. fon;á-las a enrrar lpara a l g rej~1].
tando. fiá n1uita verdade no ditado: o peni~trnento é livrt~.
(Jual o resultado de sua tentativa ern obrig;tr as pessoas
a acreditar en1 seus coraç-ôes?-~'\ Tudo o que conseguc1n é
ohrigar as pessoas de consciências fr:tgeis a 1nentir, a co..
n1eter perjúrio, a dizer u1na coisa enquanto ern seus cora-
çôes acreditan1 en1 outra. E desse n1odo [os governantes]
cunn1lan1 sobre si 111es1110s os revoltantes pecados con1etí-
<los por outros, porque todas as n1entiras e perjúrios pro-
feridos por tais [pessoas <le] frágeis consciências, quando
ditos sob coerção, recaen1 sobre aquele que as obriga a
fazer isso. Seria n1uito mais fácil , en1bora pudesse signi-
ficar deixar que seus súditos con1etessen1 erros, sitnples-
mente deixá-los errar, e1n vez de obrigá-los a 1nentir e a
declarar [con1 suas bocas] o que não acreditatn e1n seus
corações. E não é correto itnpedir utn ato rnau co1neten-
do-se outro ainda pior.
Vocês queretn saber por que Deus detern1inou que
os príncipes seculares deva1n fracassar dessa horrível rna-
neira? Eu lhes direi. [380:] Deus lhes <leu n1entes peiversas
e pretende acabar co1n eles, assiin con10 acabará con1 os
príncipes espirituais deles. Pois 1neus desgraciosos senho-
res, o papa e os bispos, deveriarn ser bispos-1<' [efetivos] e
pregar a Palavra de Deus. Eles, porén1, cessaran1 de fazê-

55. Outrc.> raciocínio elíptico de Lutero. O texto continua: "quando e ks


sabem que isso é impo~sí'.vd" . Imagino que a frase deveria /-ó('C HJa t:ornl):
~uma coisa que eles devt'. riam saber que é imrx >s.":tível".
36.-< )s n:.formado res ac-rt:dicavam que nJo h av ia d1f1;·rença ba.!>e ada na,
b ,<Tituras entrÇ:" um b1spu e um sact'rdote; <:ra tokrj vd. <.JUJndo rnuir.u, urnJ
. distmçào admi.rnstrativa Jc compcténd:.is . <:rn henefkio <.ht on.k -'l'tl, .1 k qul.11··
quc:r mod.o , .;1 <.:xi-;tf·nda dê bispol'i rws igrt·jas h.1te-rnnas part·c<.:.' congru1.:·n t1,~
çom a atih.1(k• d<- Lutero. t~ c.:'fa umht'rn a po~h:àc I ori~{111~1l de;:• Cal\'ino. Not ç'-St-=',
indu~ivê. qu<." atl- 1SL.1 Lutero ainda ~st.iv~i dbpusto a conn:·1.kr algLLfl'.1 rJpo (,.k·
fXq),,_-1 emu1t0 dim.in.u.ídoJ ao p,.ip~H.lo,

41
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade s e c u l a r - - - - - - - -

lo e tornara1n-se príncipes seculares 37 , governando por


n1eio de leis que dizen1 respeito apenas à vida e às pos-
sessões materiais. Eles conseguiram colocar tudo de ca-
beça para baixo: deviatn governar as almas com a Pa-
lavra de Deus, interiormente, e em vez disso governam
castelos, burgos, regiões e povos, exteriormente, e ator-
n1entam as ahnas con1 crin1es inenarráveis. E os senho-
res temporais, que deverian1 governar exterionnente re-
giôes e povos, tan1pouco o faze1n; em vez disso, a única
coisa que sabem fazer é tosar e tosquiar, empilhar uma
taxa sobre outra, deixar à solta um urso aqui, um lobo
n1ais adiante. Não há entre eles boa-fé ou honestidade;
gatunos e patifes con1portam-se melhor do que eles: o
governo secular atolou-se tão profundamente quanto o go-
verno dos tiranos espirituais. Deus fez com que tivessem
mentes perversas e privou-os de suas faculdades, de n10-
do que desejam governar espiritualmente as altnas, as-
sim co1no as autoridades espirituais pretendem gover-
nar de 1nodo mundano*. E [o propósito de Deus em
tudo isso é] que eles acumulem impensada1nente sobre
si mesn1os os pecados dos outros, que receban1 o ódio
dele e o da hurnanidade, até que se arruíne1n junta1nen-
te com os bispos, os párocos e os monges, todos os ve-
lhacos reunidos. E então eles atribuem toda a culpa ao
Evangelho, blasfemando contra Deus em vez de confes-
sar sua própria culpa e dizendo que são nossas prédicas

· 37 . Um exemplo patticularme nte claro da ambigüidade do termo uiel-


tlich e mpregado por Lutero: embora "seculares" esteja correto, o objetivo de
tutt·ro é nitidamente enfatizar o c:aráter mundano d os interesses e das preocu-
pações do papa e dos bispos. Nesse parágrafo, pouco adiante. fui obrigadoª
traduzir a mesma palaHa por '"mundano".

42
_ _ _ _ _ _ _ _ lutero: Sobre a auton"dade secular
-~------
que fizeran1 isso38 , quando é sua iniqüidade perversa que
lhes causou isto, e eles o n1ereceram e continuam a n1e-
recê-lo; os rornanos disseram exatamente a n1es111a coi-
sa quando forarn destruídos. E aqui vocês têm o julga-
n1ento de Deus sobre esses grandes homens. Mas eles
não o con1preendem, para que os graves desígnios de
Deus não sejan1 frustrados por seu arrependimento39 •
Mas vocês poderão replicar: em Ro1nanos 13 [1], São
Paulo não afirma: ''Todo ho1nem se submeta ao poder e
à superioridade"? E Pedro, que devemos nos sujeitar a
toda a sorte de instituição humana? [lPd 2, 13) Vocês es-
tão totalmente certos, e com isso trazem grão para n1eu
n1oinho. São Paulo está falando de superiores* e de po-
der*. Mas acabei de mostrar que ninguém ten1 poder so-
bre as ahnas exceto Deus. São Paulo não pode estar fa-
lando de obediência onde não existe poder [com direi-
to a obediência]. Segue-se que ele não está discorrendo
acerca da fé e não está dizendo que a autoridade mun-
dana deve ter o direito de comandar a fé. Ele está falando
acerca de benefícios exteriores, acerca de comandar e go-
vernar na terra. E ele torna claro que é disso que está fa-

38.
Nesse trecho, um conjunto de " ístos" e "issos" em livre flutuação
obscurecem o sentido pretendido por Lutero. Creio que ele quer dizer que
eles merect>m a destruição a que se refere a primeira parte do parágrafo. Tal
destruição, porém, evidentemente ainda nào havia ocorrido. de modo que,
presunúvelmente, Lutero tem em mente que eles iriio se queixar acerca dela
quando efetivamente ocorrer. A referência ao....:; romanos diz respeito às acusa-
<;'<\es que eles fizeram contra a cristandade, acusaçàt's que a Cidade de Deus,
<le Agostinho, teve pelo menos em parte o objetivo de refutar.
-39. Atrás dessa pass:a~em encontra-se a espinhosa doutrina de que De us
·
torna unp1c - <lo:s- p t:•çaJ·'"''.
· d osos os coraçoes ,..es, , de tal modo que eles acumulam _
culp.15 e assim merecem a punição et~rna qve lhes. e· 1m · fX.>Sta por ele· A diticul.--
.._ le t::· que isso
<w<. • . , n s•a· "t
r ~uece tornar 0 eus respo .. ·•J p•......Ja nuldade que d e suhsc-
4

·•
quentt•mt'nte •
"pune" . V. De Seno • · [A R'SfX:
Ar.1·>rtrw · "t·to u· 1a ,·onude
• e~crav1z::id.:1I.
·
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a auton'dade secular _ _ _ _ _ _ __

lando quando traça utn limite tanto para o poder quanto


para a obediência: ''Dai a cada u1n o que lhe é devido: o
itnposto a quem é devido; a taxa a quen1 é devida; a re-
verência a quen1 é devida; o temor a quem é devido" [R1n
13,7]. En1 outras palavras, a obediência e o poder secula-
res estendem-se apenas a in1postos, taxas, honras, reve-
rências, coisas e:x.'1eriores. No n1esn10 sentido: uo poder
não incute n1edo quando se faz o bem, mas quando se
pratica o n1al" [Rin 13,3]. Ele está estabelecendo um limite
para o poder: este não deve ter domínio sobre a fé e a Pa-
lavra de Deus, 1nas sobre a prática do mal.
São Pedro ten1 o n1esmo objetivo quando fala da "ins-
tituição hun1ana". Ora, as instituições hu1nanas não po-
den1 abranger o céu e as aln1as, mas apenas a terra e as
ações exteriores dos homens uns com os outros, assuntos
acerca dos quais os horr1ens podem ver, conhecer, pon-
derar, sentenciar, punir e inocentar.
O próprio Cristo sintetiza tudo isso con1 a admirável
distinção [que estabelece] en1 Mateus 22 (21]: Devolvei ao 14

i1nperador o que é do i1nperador, e a Deus o que é de


Deus. ".j() Se o poder do itnperador se estendesse ao reino
e ao poder de Deus, en1 vez de ser algo diferente e sepa-
rado, não haveria sentido en1 distinguir entre os dois. ~ias,
con10 se disse, a aln1a não está subn1etida ao poder do
in1perador. Ele não pode dar-lhe lições nen1 guiá-la; não
pode extern1iná-la nen1 trazê-la à vida; não pode an1arrá-
la ou libertá-la, julgá-la ou sentenciá-la, segurá-la ou soltá-
la. E no entanto ele precisaria {ser co1npetente para fazer
tudo isso] caso devesse ter o poder de legislar en1 relação

40. Preservei a tradução. feita por Luter o, do Ca.f:':.ar <la Vul~ata como
Kaiser( imf)êr-ador). p ois acredito que ele acolheu com prazer a an..1crônic:1 rc-
ft.·ri.-nda implícita ao $~1gr;:ido Imperado r Ro mano. Cf. nma 31.
_ _ _ _ _ _ _ /.utero: Sobre a au.ton·d ade secular_ _ _ _ -_ _ _

à ahna e dar ordens acerca da altna. ~1as, no que diz res-


peito a bens materiais e honr.1rias, este é seu don1ínio pró-
prio. Porque tais coisas estão subn1etidas a seu poder.
Há n1uito ternpo Davi resun1iu tudo is~o nutna afir-
tnaçào breve e precisa do Salino 113 [na verdade, 115,16]:
''Ele deu o céu para o senhor do céu, 1nas a terra, ele a
deu para os filhos de Adão." Em outras palavras, o ho-
mern pode ter poder a partir de Deus no que diz respei-
to a tudo aquilo que seja da terra e pertença ao reino•
te1nporal, terreno. Mas tudo aquilo que pertencer ao céu
e ao reino eterno estará subtnetido exclusivan1ente à Lei
do céu. E Moisés tinha isso en1 n1ente quando diz en1 Gê-
nese 1 [26]: "Deus disse: faça1nos o hon1e1n, e que eles
dominem sobre os animais e os peixes do n1ar e as aves
do céu." Tudo isso nào concede aos homens mais do que
o governo exterior. E, em resutuo, o que significa é que.
con10 diz São Pedro em Atos 4 [na verdade, 5,29]: ' Deve-4

n10s obedecer antes a Deus que aos hoinens." E co1u isso


ele está evidentemente traçando urn limite para a autori-
dade. Pois, se devêssen1os fazer tudo quanto aqueles en1
posiçào de autoridade nos dizen1 para fazer, não haveria
sentido em dizer uoevemos obedecer antes a Deus que
aos hon1ens".
Assitn, se un1 príncipe ou um senhor secular ordenar-
lhes a adesão ao papado, a crença nisto ou naquilo e a
entrega de livros, a sua resposta deveria ser: n~10 é ade-
quado que Lúcifer esteja ao lado de Deus. l\,1eu bondoso
senhor, devo-lhe ohec..liência corn n1inha vida e n1eus
bens. Ordene-1ne o que se enquadra nos lin1ites de sua
autoridade e obedecerei. Mas se ordenar-n1e acreditar, ou
entregar meus livros, nào ohedecerei. Pois então o ~enhor
torna-se herá se tornado] un1 tirano e se excede {se exce-
dido], dando ordens nun1 terreno no qual nJo tern direi-

45
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade secular _ __ _ _ _ __

to ou poder•~ 1• Se então ele se apoderar de seus bens e


puni-lo por sua desobediência, que as bênçãos recaían1
sohre você, e agradeça a Deus por considerá-lo digno de
sofrer por amor a sua Palavra. Dei..xem que o tolo se enfu-
reça~ [382:1 ele certamente encontrará seu juiz. ~1as eu lhes
digo: se não resistirem a ele e deixarem que ele lhes rou-
be sua fé e seus livros, então verdadeiran1ente vocês terão
negado a Deus.
Deixen1-n1e dar-lhes um exemplo. En1 ~1eissen, na
Baviera e na :rvtarca, e tan1bém en1 outros lugares, os tira-
nos protnulgara1n un1 decreto ordenando que [todos] os
exen1plares do Novo Testamento fossem entregues em
suas repartições. O que os súditos [desses governantes]
devern fazer é o seguinte: sob risco de perdere1n suas al-
n1as. eles não deven1 entregar un1a única página, nem se-
quer uma letra. Aquele que o fizer estará entregando Cris-
to a Herodes; será um assassino de Cristo, como o foi
Herodes. Deven1 suportar que suas casas sejam invadi-
das con1 violência* [1nit Geu:a/ij e saqueadas~ quer sejam
toniados seus livros, quer outros bens. l\'ào se deve resistir
ao n1al, n1as suportá-lo. É claro que vocês não deven1
aprovar o que é feito, nen1 levantar um dedo ou dar un1
só passo para ajudá-los e favorecê-los por qualquer modo
. que seja, e tan1pouco deven1 obedecer. Esses tirJ.nos agem
como os príncipes n1undanos-1 2 costu1nan1 agir. Príncipes

-H. Lutero aqui esr~ :idot:mdo uma ,·e1"$àO mai.s \.,iute!o.sa da. doutrina
escoi..btica concernente a ultra dres, segundo a qual um go\·eminte nlo dei-
.l ea de sê-to de\-ido à prática de atos ultra dres, mas de,·e si..mplesmente ser

desobt'de-cido no que diz respeito a tais atos.


-l2. ~-essa pas..."1gem. tr3.duz.ir U'f!tt/ícb como -secular" significa.ria perder
tocalmt.·nte a conexão com as linhas seguint.c.---s, nas quais a tigaçjo com 0
..muncto·· ( ~ ·elr) e -mundanos- -é feita de modo explídco. Cf. Glo.ss..irio: Set."U1lr.
Lutero: Sobre a autoridade secular- - - - - - -

do tnundo é o que eles são. O mundo, porém, é inimi~


go de Deus, e con.seqüente1nente eles devem fazer o que
e.stú e1n desacordo con1 Deus n1as de acordo com o mun-
do, de n1o<lo que conserven1 suas honrarias e permane-
çam príncipes n1undanos. E, portanto, vocês não devem
se surpreender com o furor e a estupidez deles contra o
Evangelho. Eles precisam ser leais para com os títulos que
ostentam.
Vocês predsarn saber que, desde o início dos ten1pos,
um príncipe cauteloso tem sido uma ave rara no mundo,
e u1n príncipe justo é ainda mais raro. Em regra, os prín-
cipes são o~ maiores tolos ou os piores criminosos sobre
a face <la terra; devem-se esperar deles poucas coisas
hoas e sempre o pior, especialmente no que diz respeito
a Deus e à salvação das almas. Isso porque eles são os
carcereiros e carrascos de Deus, e sua cólera divina faz
uso deles para punir os maus e conservar a paz exterior.
Nosso f)eus é um senhor poderoso, e é por esse motivo
que <leve ter tais carrascos e porta-maças nobres, ricos e
ben1-nasci<los, e permite que recebam de todos, em me-
dida crescente, riquezas, honrarias e reverente ternor. É
sua vontade e gosto que chan1emos ''graciosos senhores"
a seus carrascos, caiarnos a seus pés e nos submetamos
a eles com toda a hurnilda<le, desde que nào ultrapassem
_seus lirnítes querendo tornar-se pastores em vez de car-
rascos. Se urn príncipe tiver a sorte <le ser cauteloso, jus-
to ou crístão, este será u1n dos n1aiores nlilagres e um si-
nal extrerr1amente precioso do favor divino sobre a terra.
Mas, no curso norrnal das cobas, prevalece o que diz
Isaías en1 3 [/4]: "I)ar-lhes-ei crianças por príncipes, sim-
plórios serão seus senhore:-;." E tarnhém Osé ias 13 [11):
"Eu te dou urn rei em minha ira, cu o retomo ern n1eu fu-

47
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade secular _ _ _ _ _ _ __

ror." O inundo é demasiado petVerso para n1erecer prín-


cipes n1uito n1ais sábios e mais justos do que isso. As ràs
precisarn de cegonhas.
Mais uma vez, porém, vocês objetarão que a autori-
dade secular não obriga à crença; pelo recurso a n1eios
externos, ela simplesn1ente itnpede que as pessoas se-
jan1 desencan1inhadas por falsas doutrinas. De que outro
n1odo poderiam ser contidos os heréticos? A resposta é:
cabe aos bispos fazê-lo. Essa tarefa* foi atribuída a eles e
não aos governantes. O uso da força* não pode jamais
coibir a heresia. Itnpedi-la requer um tipo diferente de ta-
lento; não se trata de un1a batalha que possa ser travada
con1 a espada. Nessa batalha, quem deve lutar é a Palavra
de Deus. E, se esta não for vitoriosa, então certa1nente o
poder secular tampouco o será, ainda que devesse inun-
dar o mundo com sangue. A heresia é uma coisa espiri-
tual; não pode ser abatida pelo aço, queitnada pelo fogo
ou afogada na água. Unican1ente a Palavra de Deus pode
[triunfar] aqui; como diz São Paulo en1 2Coríntios 10 [4
ss.]: "Nossas arn1as não são carnais, mas tên1, a serviço de
Deus, o poder de destruir todos os raciocínios presunço-
sos e todo poder altivo que se levanta contra o conheci-
mento de Deus, e tornam cativo todo pensan1ento para
levá-lo a obedecer a Cristo."
E, com efeito, a fé e a heresia jan1ais são tão fortes
do que quando a força 43 pura e simples, em vez da Pala-

43. Nessa frase e nas três seguintes, Lutero está contrastando Gell'alt,
que aqui é traduzido como ..força pura e simples" (embora Lutero também
utilize o t(.>rmo no sentido de .. poder" e "autoridade" [v. Introdução, p. XXVD,
e Recht, que pode significar ''o que é direito", "justiça" ou ~lei". LJma vei que
um tradutor é obrigado a fazer uma distinção em palavras expre~sas onde 0
autor nào fez distin\:óes. perde-se a continuidade verhal do original de Lute-
ro. V. Glossário: Lei.

48
vra Je l)eus, é u~ada t·untr;¾ elas. Pois (nes~e 'aso} as pc~-
soas p~utcnl do pressuposto de que a for,·a n:1o est:í st·n-
do usada ern prol da justi,,a e que aquclt·~ qut.: a utili1..a1n
est~10 agindo Je rnaneira inju~ta, preci~an1entt' porque cs-
tào jgincJo ~en1 a Pah.,v,J de Deus e não ronsegut.·n1 in1a-
gin,,r outro tneio de pron1over seus objelÍ\OS sen:to pt:b
for\a pura e silnples, c:01110 se fossern ani1nais dt:sprovi-
dos de raz~1o. !v1eslno en1 assuntos seculares a for(a n~1 o
pode ser en1prcgada, a n1enos que a culpa tenha sido an-
tes estabelecida con1 referência à lei. E é ainda 1nais irn-
possível utilizar a for~·a sern o direito e sern a Palavra de
Deus en1 tais assuntos elevados e espirituais [con10 a he-
resia]. Que espertos S30 esses príncipes! Pretenden1 ex•
pulsar a heresia , 1nas não conseguen1 atac3-Ja sen;':to con1
algo que lhe dá un1 novo vigor, colocando j si n1es1nos
sob suspeita e justificando os hereges. tvleu J111igo, se qui-
ser expulsar a here:.~sia, ent~1o antes será preciso descobrir
un1 hon1 111eio para desenraizá-la dos cora)·ôes e quebrar
seu donúnio sobre as vontades. E você não conseguirü
fazê-lo pelo uso da fon~~a; assirn só a torn~rá n1ais forte.:·.
Que sentido existe en1 refor's:ar a heresia nos coraçôes .
ainda que você a debilite exterionnente silenciando a voz
das pessoas ou obrigando-as a fingir? A Palavra de Deu~.
por outro lado, ihunina os cor~çôes e con1 isso toda he-
resia e todo erro <lesaparecer~1o por si rnes111os.
f: sobre esse n1eio de destruir a heresia que f~tlou o
profeta )saías quanoo profetizou (ls 11(4]): "Ele ferir~• a
terra con1 o bast~1o de sua boca, e con1 o sopro dos seus
tíbios tnatar~í o ítnpio." fj8,t] Vocês podt:n1 perceber. à
partir <.lisso, que sJo ~s palavr.ts que acuretar~1o a 11101te ~
a convers~1o dos iníquos. Ern resurno. tais príncíp<.·s e ll-
ranos nào pt..~cebe1n qut" cornbatcr a heresia é <.·01no con 1~

49
Sohrc> a autoridade se, ular _ _ _ _ _ _ _ _ __

bater o detnônio que torna conta dos coraçôes por meio


<lo engano. Como diz Paulo en1 Efésios 6 (12]: "Nosso
con1bate não é contra a carne nem contra o sangue mas 1

contra os espíritos do n1al, contra os príncipes que gover-


narn este inundo de trevas, etc." E portanto, enquanto o
diabo não for rejeitado e expulso do coração, destruir seus
instrun1entos pelo fogo e pela espada terá tanto efeito so-
bre ele quanto o de enfrentar um relâmpago com uma
. palha. Jó tratou amplamente de tudo isso quando disse
(Jó 41 (18]): "O ferro para o diabo é como palha e não
ten1e poder sobre a terra." E a experiência ensina a mes-
ma coisa. Isso porque, ainda que todos os judeus e heré-
ticos fossem queimados, ninguém é vencido ou converti-
do por esse meio, nem jamais o será.
~1as um inundo tal como este deve ter essa espécie
de governantes; que os céus proíbam que algun1 deles
chegue a cumprir seu dever*! Os bispos devem abando-
nar a Palavra de Deus e não fazer nenhum esforço para
governar as almas com ela. Em vez disso, eles devem or-
denar aos príncipes seculares que governem as almas por
meio da espada. Os príncipes seculares, por sua vez, de-
vem permitir que a usura, o roubo, o adultério, o assas-
sinato e outras espécies de atos perversos can1peiem de-
senfreadamente - e na verdade deve1n eles mesn1os co-
n1eter esses atos, deixando aos bispos o encargo de puni-
los por meio de cartas de excomunhão. E desse modo
tudo se encontra de pernas para o ar: as almas são gover-
nadas pela espada e os corpos por meio de canas. Como
conseqüência, os príncipes mundanos➔➔ governan1 espi-
riluahnente, enquanto os príncipes espirituais go\ erna1n

4-l. V. nota 42.

50
· - - - - - lutero Sohrr (I autoriJfldc secular_ - --------- --____ ....,._ --

de rnaneira nn1ndana. Que n1ais resta ao diabo para f;tlcr


neste n1undo, a n~1o ser pregar peças a seu~ súditos e se
n1ascarar co1no se estivesse nun1 carnaval? Es~cs, ent:lo.
são nossos "príncipes cristüos", os ··defensore~ da f6'' e
''n1artelos dos turcos" . ffon1en.s capazes. nos quai~ pode»
n10s confiar. E con1 certeza con~eguir-.1o a(~1111u1 coi.sa ~ra-
ças a sua adn1irável astúcia: quebrarJo os pescoços e re-
duzirão suas terras e seus va.ssalos à n1isé ria t: à penúria.
Tenho utn botn conselho para essas pes_..;;oas deso -
rientadas. Acautelen1-se con1 a breve afinnaçlo do Saln10
106 [na verdade, 107,40}: Effundit conten1ptu111 Sllj)(:>rJJrin-
cipes {Ele derran1a seu desprezo sobre os príncipes]. Juro
perante Deus: se ignoraren1 esse pequeno texto e ele t:.~n~
trar em vigor contra vocês, estarão percJidos, ainda que
cada um de vocês seja tão poderoso quanto o turco; e
todo o seu bufar e rugir não irJo ajudá-los. En1 boa parte,
isso já aconteceu. Existem poucos príncipes aos quais o
povo não veja con10 loucos ou criminosos, e suas ações
confirman1 [aquele juízoJ; o horne1n con1un1 está ficando
informado, e uma forte epide111ia ern relaçào aos prínci-
pes (a que Deus chama conternptuni) está ~e alastrando
entre as pessoas sin1ples e o homen1 con1un1. Nleu n1edo
é que não haja n1eios de detê-la, a n1enos que os prínci-
pes comecem a se con1portar co1no príncipes e a gover-
nar judiciosa e prudente1nente. As pessoas [385:1 n~1o vão
n1ais agüentar passiva1nente sua tirania e arbitrariedade;
elas nào poden1 e não qoeren1 fazê-lo. ~1uita atenção,
n1eus bondosos senhores e a1nos. [O próprio} I)eus não
vai mais tolerá-lo. Este não é n1ais o n1un<lo ern que vo-
cês perseguiatn e con<luzíarn as pessoas con10 se fossem
caça. Portanto, ponham de lado sua blasfê1nia e violên-
cia\ cuidem de agir com justiça e deixen1 a Palavra de .

51
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade secular _ _ _ _ __ __

Deus ter o livre trânsito que ela deveria ter, deve ter e
terá; vocês não conseguirão detê-la. Se houver heresia,
deixern que esta seja subjugada pela Palavra de Deus; é
assim que deve ser. Mas, se vocês co111eçarem a dese1n-
bainhar a espada em todas as ocasiões, cuidado com a
vinda de alguén1 que lhes dirá para entregare1n suas es-
padas, e não ern nome de Deus45 •
Mas se vocês fossem perguntar: con10 devem os cris-
tãos ser governados exteriormente, visto que entre eles
não deve existir Espada secular? [Certamente] deve haver
superiores* tan1bém entre os cristãos? Minha resposta é
que não pode nem deve haver superiores entre os cris-
tãos. Antes, cada um deles está igualmente submetido a
todos os demais, como diz São Paulo em Romanos 12
[10]: "Cada um deve considerar o outro como seu supe-
rior." E Pedro (lPd 5 [5]): "Revesti-vos todos de hu1nilda-
de nas relações n1útuas de uns para com os outros." E isto
é o que deseja Cristo (Lc 14 [10]): "Quando fores convi-
dado para un1a festa de casamento, ocupa o último lugar."
Não existe superior entre os cristãos, à exceção de Cristo.
E con10 poderia haver superioridade [ou inferioridade],
quando todos são iguais e têm o mesmo direito*, poder,
benefícios e honrarias? Nenhum deles deseja ser superior
a outro, pois todos querem ser inferiores aos demais.
Como algué1n poderia, ainda que o desejasse, estabelecer
superiores entre pessoas assin1? A natureza não admitirá
superiores quando ninguém quer ser ou pode ser um su-
perior. Mas, onde não houver pessoas desta [últin1a] espé-
·cie, tampouco haverá verdadeiros cristãos.

45. Acre<.üto que essa seja uma alusão às palavras de Cristo para Pedro no
jardim de GeL'>âmani, Mt 26,52; Lutero está dizendo que n:io será Cristo, e siJTI 0
homem comum, que dirá aos governantes para entregarem suas espadas.

sz
E quanto ao...; sac·erdotes e bispos? Seu governo nJo
é de ~uperioridadc ou poder, 1n:1s antes un, st:rviço e uin
oficio*. Isso porqut~ eles nüo estC10 e1n posi( ÜO rnais ele-
vada O\l rHelhor do que os outros crist~os·16, e conseqiicn-
tenK·ntt: n i)o dt:~ven1 itnpor leis e ordens aos outros sen1
o consent in,ento e a penniss:lo destes. Ao conrnírio, seu
governo nada .1nais é do que o fornento da Palavra de
})c us, orientando os crist:los e ven(:endo a heresia por
rncio dela. Corno se disse, os cristàos nào pode1n ser go-
vernados por nada que não seja a Palavra de Deus. Isso
porque os cristãos deven1 ser governados na fé e não por
~l(f)t•s t:xteriores, IHas a fé n ão pode vir por n1cio das pa-
lavras dos ho1nens, apenas pela Palavra de I)eus. Como
diz Súo Paulo eI11 Rornanos 10 [17}: ''A fé ve1n da prega-
ção e a prega<.,::1o é pela Palavra de l)eus." Aqueles que
não tf:tn fé nüo s~\o crist~1os e nã.o pertencern ao reino de
Cristo e sin1 ao reino do n1undo, para seren1 coagidos e
regidos pela Espada e {386:] pelo governo exterior. Os
c.:ristjos (por outro lado] fazem tudo o que é correto, sem
ncnhu1na coa(~<>, e tt?rn tudo de que precisarn na Pala-
vra de I)eus. Mas sobre isso já escrevi n1uito e co1n fre-
qüência en1 outros lugares.

Terceira Parte

Agora que sahen1os alé onde se estende [a con1pe-


têncía del a autoridade secular, é hora de considerarrnos
•••• ' ' ••• ♦ •- •• •• 1 . ~' ♦

/46. Trata-se· <.k· um.a referl·nda â crucial (e corn,ick:ravdrn(:nre amhíxua)


c.kn.11.nna <.k: l.utt·ro ~J)n.~ 0 ~s~n:rdúc:ío de todos os fiéis"; quanto a esse po n-
to, v . lmrodu(,;ào, pp . x1v.xvr.

53
- - - - - - - - Sohre a autoridade secular _ _ _ _ _ __ _ _

de que n1odo un1 príncipe deve passar a exercê-la. [Es-


tou escrevendo isto] en1 benefício daqueles que querern
ser governantes e senhores cristãos e que se preocupatn
con1 sua própria salvação; existen1 1nuito poucos dessa
espécie. O próprio Cristo descreve o caráter dos prínci-
pes seculares quando diz em Lucas 22 {25]: "Os príncipes
seculares governarn e os que são superiores usam a for-
ça* . 1' 47 Pois, quando eles nascem ou são escolhidos para
governar, in1aginam-se con1 direito a seren1 servidos e a
governar por meio da força. Ora, quem quer que deseje
ser un1 príncipe cristão deve abandonar qualquer pre-
tensão de do111inar as pessoas e de usar a força. Pois toda
vida que é vivida e buscada para beneficio próprio é
amaldiçoada e condenada ao inferno: condenadas são to-
das as obras que não se originam do a1nor. E as ações que
brota1n do an1or são aquelas que não são feitas para o
próprio prazer, benefício, honra, conforto e betn-estar,
n1as antes visan1 totaln1ente ao benefício, à honra e ao
ben1-estar dos outros.
E, conseqüentemente, nada direi aqui acerca de leis e
assuntos n1undanos. Já existe1n demasiados códigos de
leis*, e o tópico é amplo [demais]. De qualquer modo, se
um príncipe não é por si mesn10 n1ais judicioso do que os
que o aconselhan1 sobre a lei e não con1preende n1ais do
que aquilo que é encontrado nos textos da lei, ele certa-
n1ente governará con10 diz o provérbio (Pr 28 [16]): "Um
príncipe sem inteligência oprin1irá_a muitos con1 injusti-
ças." Isso porque, por n1elhores ou mais itnparciais que
possam ser as leis, todas estão subn1etidas a esta limitação:
..............··~·· ..
_ _ 47. U~a traduç~o muito estranha, e dife rente _da que aparece em ver-
S<XS poste nores do Novo Testame nto de Lute ro.

54
n~1o podctn pn.·v~\lecer diante da necessidade 18 • O prínci-
pe deve. portanto, con~erva r con1 finneza as leis sob seu
pré)prio controle t~, l con10 faz corn a Espada e usar sua
prúpria t~lZJo para julgar quando e onde a lei deve ser
aplic·.Hla t.'otn seu pleno rigor e quando deve ser n1ode-
rad~t. As~itn, a 1~1zJo pern1anece o governante en1 todos
os n1on1entos, a lei supre1na e <lon1inadora de todas as
lei~. I)o n1t~s1no n1odo, o chefe de un1a fanlÍlia se1n dúvi-
da detenninat~i horjrios e quantidades de trabalho e de
alin1t·nto para seus criados e seus filhos. Apes~1r disso, po-
rérn, ele deve conservar seu poder sobre essas regras que
estabeleceu, de 1nodo que possa n1odificá-las ou suspen-
dê•bs se por acaso os servos estiveren1 enfen110s ou foren1
aprisionados, detidos, enganados ou tolhidos de algu1na
1naneira. [387:J Ele n~'io deve ípor exen1plo] tratar con1 o
1nes1no rigor o doente e o indivíduo sadio. Digo isso para
que as pessoas n:.1o pensen1 que é un1a coisa valiosa, e su-
ficiente por si n1es1na, seguir as leis escritas ou o parecer
dos conhecedores da lei. É necess(\rio 111ais do que isso.
i\-1as o que un1 príncipe deve fazer se não for tão sá-
bio ou tão judicioso assin1, devendo portanto pennitir que
ele 1nes1no seja governado por hon1ens de leis e pela le-
tra da lei?'1-> Foi precisaruente cotn referência a esse as-
pecto que dedarei que o ofício• de príncipe está cercado
de perigos, e, se o príncipe não for suficienten1ente s5hio
5
para controbr tanto suas leis quanto seus conselheiros °,

• •,• .. -·..............
48. t :m dn:idn usado co,m1n-1t:ntt', com o rigem (?) no Dirt>ito Canôtu\~o:
/Jecrc•ttlfn ú'raliani Pt JI , cau:--a J qu 1, <.fü:t. ante can 39. pars VI: Quta enim
necc..,s..<;ilas nm1 haher legem, st'd ipsa slhifacit lt>~em .. . .
•t9. Pt.•nso qu<' ~ isto que .t.utt'J-O quer d1zt.·r. nus não po..;so g.1ra nt1-lo.
Ein ~ -u tc-xto f('-sc: '" pdos livn>~ dt' lds". Cf. Glo.ssj rio: Lei . .
:;o. l.utc-ro t~~ra• pre!'-urrundo.
· · P r-t
d<.' .1coi"t•Jo com uma ,·r·l l..
··1 -ada vt.::l mais
l

~êl'\1.'ra.liz:nb, que os consdlwir<>-'i do prínn1'>t' st-r::'lo junst.t~.


..........-----........----- - - - Sobre a autoridm,le secular _ _ _ _ ____ _

iH.'Ontecerj o que diz Salonü1o: "Pobre da terra que tem


un1 criança por príncipe." E, corno Salotnào sabia disso,
pout~o esperava de todas as leis, ainda que [o próprio]
l)eus as tivesse estabelecido para ele através [da interven-
ç~lol de t\ 1oisé.s, e tatnpouco depositava esperan'"·as en1 to-
dos os seus príncipes e conselheiros, e voltava-se para o
próprio I)eus, pedindo-lhe un1 cora~·ào sábio con1 o qual
governar o povo. E u1n príncipe deve seguir seu exen1-
plo: deve agir con1 respeito e nüo confiar nern en1 livros
n1011os netn e1n cabeç~as vivas, tnas exclusiva1nente ern
I)eus. i1nportunando-o con1 súplicas de urn entenditnen-
to justo, tnaior do que todos os livros e n1estres, para con1
ele governar seus súditos sabiatnente. Ern resurno, nada
sei acerca de que leis reco1nendar a un1 príncipe; quero
apenas inforrná-lo de con10 dispor seu coraç~lo quanto a
todas as leis, pareceres, veredictos e casos con1 que te-
nha de lidar. Se ele o fizer, l)eus certa1nente dar-lhe-á [a
c~1paci<la<le] para usar todas e quaisquer leis, conselhos
e a\'ües co1n bons resultados.
Então, en1 pritneiro lugar, ele deve voltar-se para seus
súditos e cuidar de que esteja cotn a disposi~·üo correta
para con1 eles. I~to é, ele deve dirigir todos os seus esfor-
\'OS no sentido de lhes ser útil e prestinK>so. Ele não deve
pensar: a terra e as pessoas são 1ninbas; farei corno bern
tnc aprouver, tnas antes: pertenço ao povo e à ten-u; devo
t~tzer o que é vantajoso para eles. Não devo pensar e1n
çon10 dotnin(t-los, rnas etn corno eles pode1n ser prote-
gidos e defendidos e gozar as hênç~1os da paz. Ele deve
cokx:ar Cristo diante de seus olhos e dizer a si n1es1no:
aqui t.~st(l Cristo, o lllaior dos príncipes, e no entanto ~le
111111
veio p;lra scrvir-tnc. Ele nüo tratou de conseguir <le ~
honr..,rias, podt·r e riqueza; considerou apenas a u11nba
tH:ct~s:--idadc e núo 1nediu esforços para 1ne assegurar po-
- - - - - - - ~ - lutero: Sobre a autoridade secular
- - - - - --
der, riqueza e honrarias, por meio dele e nele. E eu farei 0
n1esn10. Não buscarei nas n1ãos dos meus súditos nieu
próprio benefício n1as o deles, e os servirei en1 minha
condição, protegendo-os, escutando-os, defendendo-os e
governando apenas em seu benefício, não em meu pró-
prio. Um príncipe deveria, portanto, prescindir de seu po-
derio e superioridade até onde seu coração e sua n1ente
estejam envolvidos e atender às necessidades de seus sú-
ditos como se fossem as suas. (388:] Pois é isto que Cristo
fez por nós, e são estas as obras efetivas do amor cristão.
A isso a réplica será: nesse caso, quem seria um prín-
cipe? O ofício e o status* de príncipe seriam os mais pe-
nosos sobre a face da terra, cheios de fadiga, preocupa-
ções e desconforto. E o que aconteceria a todos os delei-
tes principescos, as danças, as caçadas, as corridas, o jogo
e todos os outros prazeres mundanos* desse gênero? Mi-
nha tréplica é que não estou contando aos príncipes se-
culares como viver, mas como ser cristàos, para alcançar
o céu. Todos sabem que um príncipe é uma ave rara no
paraíso. Também não estou dizendo tudo isso porque
guarde a esperança de que os príncipes seculares o acei-
te1n. Eu o digo no caso de haver algum entre eles que
gostaria de ser um cristão e quer saber o que deve fazer.
Mas de uma coisa eu tenho certeza: a Palavra de Deus
não será dirigida e deturpada para convir aos príncipes;
antes, são os príncipes que devem ser condu~idos por
sua Palavra. É suficiente, para mim, se conseguir mostrar
que não é in1possível ser ao mesmo tempo prí~ci~e e
cristão, ainda que isso seja raro e difícil. E se os pnne1pes
efetivamente tornassem cuida d o para que su a s danças e
L

· caçadas e corridas não causassem danos a seus súditos,


e tarnbém em outros aspectos exercessern com an1or seu

57
_ _ _ _ __ _ _ Suhre a auton·dade secular - - - - - - -

ofício para corn eles, l)eus não seria tão estrito a ponto
de invejá-los por seus bailes, caçadas e corridas. 1'ais prín-
cipes logo descobriria1n, porérn, que se devessen1 cuid~r
de seus súditos con10 exige seu ofício n1uitas danças, cor-
ridas e jogos terian1 de ser descartados.
Etn segundo lugar, un1 príncipe deve acautelar-se en1
relação àqueles vigorosos potentados, seus conselheiros.
Sua atitude para com eles deveria ser a de não desprezar
nenhutn deles, mas tan1hém não confiar em nenhun1 de-
les, pelo n1enos a ponto de deixar tudo a seu cargo. Pois
Deus não pode tolerar nem um nern outro [o desprezo ou
a confiança total]. Ele certa vez falou por intern1édio de
un1 asno, e portanto nenhum ser humano , por mais hu-
n1ilde que seja, deve ser visto com desprezo. Mas ele dei-
xou igualmente que o maior dos anjos caísse do céu, e
portanto não se deve confiar [totahnente] em homen1 al-
gutn, por mais sábio, piedoso e grande que possa ser.
.l\1as todos deve1n ser ouvidos, e o príncipe deverá espe-
rar para ver através de qual deles Deus falará e agirá. Isso
porque o n1aior dos males, nas cortes dos príncipes, se dá
quando urn príncipe entrega prisioneiro seu entendimen-
to aos grandes hon1ens e aos aduladores e omite-se de
supervisionar pessoalmente as coisas. Se um príncipe se
1nostrar carente nesse ponto, e perder ten1po, não apenas
urna pessoa mas toda a região sofrerá. E desse modo u1n
príncipe deve colocar sua confiança nos poderosos e dei-
xá-los agir, mas de tal n1odo que conserve as rédeas e1n
suas próprias n1àos. Ele não deve considerar-se seguro
e pennítir-se adorn1ecer, mas verificar por si n1es1no, cru-
zando seus territórios a cavalo (con10 fezJosafá) e vigian-
do seus governadores e juízes. Dessa maneira ele desco-
brirá por si n1esrno [389:l que ninguém é merecedor de

S8
_ _ _ _ __ _ Lutero: Sobre a autoridade secular_ _ _ _ _ __

total confiança. Não pensem que qualquer outra pessoa


.cuidará dos bens e terras que vocês possuem tão ade-
quada1nente quanto vocês mesmos, a n1enos que essa
pessoa esteja preenchida pelo espírito e seja um bom cris-
tão. Un1 homem comum não vai fazê-lo. Vocês não sa-
ben1, porém, se qualquer indivíduo [em particular] é u1n
cristão ou por quanto tempo continuará a sê-lo e, por con-
seguinte, não podem confiar totalmente em ninguém.
Vocês devem ser especialmente cautelosos em rela-
ção àqueles que lhes dizem: meu gracioso senhor, por
que Vossa Graça não deposita mais confiança em mim?
Quem servirá \lossa Graça, etc.? Com toda a certeza tal
homem nào é puro [em suas intenções] e seu objetivo é
tornar-se senhor da região e transformá-lo em seu fanto-
che. Isso porque, se ele fosse um cristão justo• e cumpri-
dor de seus deveres, ficaria contente por você não con-
fiar nele e o louvaria e apreciaria por você vigiá-lo de per-
to. Utn co1nportamento devoto como esse poderá suportar
e de fato suportará sua fiscalização e, com efeito, a de
qualquer pessoa. Como diz Cristo ern Joào 8 [na verdade,
3,21]: "Quem faz o bem aproxin1a-se da luz, para que se
manifeste que suas obras são feitas ern Deus." Mas a [es-
pécie de] pessoa anterior pretende enganá-lo e agir na es-
curidão, con10 diz Cristo Uo 3,20]: ''Quem faz o mal afas-
ta-se <la luz, para que suas obras não sejam punidas." Por-
tanto, acautelem-se em relação a ele. E, se ele se queixar,
digam-lhe: não sou culpado de nenhu1na injustiça para
contigo. Deus não quer que confie em mim mesmo ou
em qualquer outro. Censure-o por isso e por ter feito de
você um sin1plcs ser humano. (Na verdade, não deposi-
taria minha confiança total e1u você} ainda que você fos-
se un1 anjo. Até n1es1no Lúcifer não merecia confiança,

59
t· port,HHO t;onpot 1co confia n~i o ,n1plera1nentt~ern você.
P< >i h dt·vv n \Os depos itar nossa con fían '6·~l t?xcf usí va rnen ~
h~ ti ll\ U0us.
<Jt1t~1H.. nhu1n pdncíp<.! inwgine ,4;er :;ua condirão 1ne-
lhor que a de J)~tví, o tnodelo para todos os príncipes.
Tinha ,~le u,n con~elheiro de no,ne Aquícoft~f, tüo s~hio
qtte, segtindo as Escrilurus, aquilo que Aquilofel dizia ti-
nha tanto peso quanln se o próprio [)eus rive~se :-,ido
r onsultado. E, no entanto, ele ,nergulhou t:1o haixo que
tr.tiu e lt:'ria niatado I )avi, seu próprio rei. E des~e rnodo
I)avi Leve de aprender que n,lo se devtt confiar ern abso-
hHarntnll: ningué1n. Por que hnagina,n que f)eus perrni-
tíu que u,n episódio üio assustador acontecesse e fosse
regi.strado, a nlerH>S que
fosse para alertar os príncipes e
governantes sohre 0 rnaíor dos perigos e infortúnios que
pode lhe,i., st1<..:eder e para en~íná-los a não confiar en1 nín-
guénl?"1 f~ usna coí'.<)a ignóbj{ quando os lbonjeadores rei-
narn nas cortes e quando os príncipes confiarn ern tercei-
ros e se cntregarn pri~ioneíros a estes, deixando-os agir
corno lhes apraz.
Vocês podem objetar, porén1, que, se não se pode
<.:onfiar crn pessoa algun1a, <le que modo um território e
seus habitantes dcvern ser governados? A resposta é que
vocês precharn a.~surnír o risco de atríbuír cargos a pes-
soa!-,, ruas não dcvern contar com elas ou confiar nelas,
rna.-, cxclu">iva,nente ern Deus. (390;} Vocês devem tratar
:..tqueles ao:-; quaLs conce derarn cargos con10 pessoas que

5 l . Ar,,.ú íJ. hn½'""~~(:m ck L.m.-m p<:rcku t<xia a u_x,são: foi obngad.<, a


v.k,,")fd~ em mmha IJ&,<l.u-\a..o f JéY(:'-~ ru.>ear. d<: pas!-i.ag<.--rn. que~ afjm-ia\"i<J tu-
111,f,._laJ d, fl> rd1. ,nnwJrJf~h, w, .M::ril}!:ÍO d.(: ,_.,~ ci':':i, adk-ri.a m <."X.du~1vamc·nte ao
"·W,mfo ;;<l<1 l.i.r..•ra.i d.:,.'> t".h<..n1'Ha.:,. <.k.-~m,a -~ purarr.14:-ntc- a fin.~ pok mi<:os e . em
t>t ftt/.:~.--n:;; _ rw.•J 1--k·V(~ ~ : r .µ;é ,it;,, lJJ-<.·rahn,,::nt<:.
podein falhar, de nlodo que preci."i~llll C<>rltinuar vigil;intes
e não pode1n se <leixar en1halar e adornH.·cer. () condutor
de u1na carruagen1 tetn confiança e1n 8eus ctvalos <.: na
carruagen1, n1as n:1o pt'nuile que eles sigan 1 ~cu prúprio
nuno. Ele con~erva as rédeas e o d1icot.e ~111 suas ot~los ~
pennanece vigilante. Leo1bren1-se dos antigos ditados que
forarn aprendidos a partir da experiência e no:j quais se
pode confiar: "Quando o gato cst{i longe os r~llos fazcrn
a festa. " '>.l Etn outras palavras, nada dá certo se o <lono
não cuidar pessoalrnente das cobas e e1n vez disso con-
fiar en1 conselheiros e criados. E isso está de acordo corn
a vontade c.le l)eus, ele pern1ite que isso aconle~·~• p;Jra
que os governantes sejarn obrigados a cuidar pessoal-
n1ente dos deveres de seu cargo, assirn con10 as detlljÍS
pessoas devern fazer suas próprias tarefas e todo~ deve,n
fazer seu próprio trabalho. De outro tno<lo os govern:1nLes
transformar-se-iarn ern cevados, se,n utilidade para nin~
guém à exce<s:ào de si n1esrnos.
E1n terceiro lugar, urn príncipe deve to1nar cuidado
quanto ao 1nodo pelo qual leva a justira aos nw]feitores.
Punir alguns sen1 destruir outros [que s~10 inocentes) re-
quer a tnaior cautela e sabedoria. Mais urna vez, n;lo sei
de n1elhor rnocJelo que Davi. Certa vez ele teve um capi-
tão denon1inado Joab que n1atou traiçoeira1nente dois
outros capitães, an1bos hon1ens justos, e portanto n1ere-
cia n1orrer duas vezes. No entanto l)avi, enquanLo viveu,
não o nullou, n1as ordenou que seu fi]ho Salo1não o fi~
zesse [após a 1norte Je Davi]. Sern dúvida isso aconteceu
porque Davi não podia ele n1e~n10 1natá-lo se1n ~ro:10-
car uni dano e un1a revolta ainda tnaiores. U1n pnncipe

cl ,. l1r·•dos 11opl1lan:.-. qu<..' n,l<>


52. Luterú apre~cnta aqui· lll-rul St:'
J .,-
ei,,,w t:: <- "" •
tt-m eq:uivaknk' cm in~IC·s e- foram omitiJ01-, <.fa tradui,;:lo.
_ __ __ _ _ _ S<hr-e a a,tto n dad.e Sfftdar ________ _ __

deve castigar e
os n1aus de tal modo que ·'ao apanhar a co-
lher ele nJo pise no prato e o quebre·~ e não afunde no
cao ~ to<lo o seu território e seu povo por causa de un1a
cabeça {u1na pessoa] e encha a terra con1 viúvas e órfàos.
Pela n1esn1a razão, ele não deve dar ouvidos àqueles con-
-elheiros e -soldados de gabinete que o en1purrariam • •'j~

para. guerr'1s con1 argun1entos do gênero: deven10s supor-


tar passi\-amente tais insultos e injustiças? É un1 cristão
n1uito ünperfeito aquele que coloca en1 risco toda uma
região por causa de un1 castelo. Para resu1nir, en1 tais ca-
sos o príncipe deve agir segundo a máxin1a: un1a pessoa
inc..---apaz de fechar os olhos a erros não sabe governar. Que
esta seja. portanto, sua regra de conduta: sempre que un1a
in justiça n ão po:~a ser punida sem un1a injustiça ainda
n1aior, ele não de\'e rei,·indicar seus direitos*, por n1ais
justa que seja sua causa . Ele deve olhar para as injustiças
sofridas po r outras pessoas e não para o dano que ele
rnesrno sofre. <..:ons iderando o que os outros sofrer-Jo se
ele exigir punições. O que fizera1n todas essas 111ulheres
e crianças para que n1ereç·an1 se tornar viúvas e órfãos,
apenas para que você possa vingar-se de un1a boca se1n
\·3lia ou da 01~0 perversa que lhe causou dano?
Aqui vocês podem perguntar: u1n príncipe não deve
{jarnabl tra\·~r a guerra? E seus súditos não tên1 o dever de
segui-lo ern conltxue? Tr..lt.a--se <le un1a questão an1pla, n1as
a respo.s ta sucinta é a seguinte. O procedin1ento cristão é
que nenhun1 governante faça guerra a seu suserano, seja
ele o Rei, o In1per..1dor ou qualquer outro senhor feudal'>4 •

S. ·u .ter.tlrrí\:·r rie. ~C(."\fnc:><j ores de f-t'-rro'" .


:-4. Aqui l tfü:.· ro <~ p a11indo do prt.>~sup<>SlO <lt' que o poder esci e.5-
trutur.u:11"1 ck fll<.Jd<.• f<-·ud.:d t no ~ntldo lém1c-o d o u·nno): em outra., çrJ.la \Tas,
K~ tém um ~.<-<.:r.mo, exo:.1.0 o .senhor supremo. Aquele .. no mesmo de-

62
_ _ _ _ _ _ _ _ Lutero: Sobre a autoridade secular_ _ _ _ _ _ __

Se algum desses se apoderar de algu1na coisa, deixe que


a ton1e, pois não se deve resistir pela força aos superio-
res*, mas apenas pelo testen1unho da verdade~-. Se eles
prestarem atenção, n1uito ben1; en1 caso contrário, você
está livre de culpa e suporta a injustiça ein non1e de Deus.
Mas, se seu oponente for seu igual ou inferior, ou u1n go-
vernante estrangeiro, você deverá primeiro oferecer-lhe
justiça e paz, con10 l\1oisés ensinou aos filhos de Israel. Se
ele não chegar a um acordo, faça o n1elhor possh el e re-
sista à força com a força, como N!oisés bem descreve en1
Deuteronômio 20 [10 ss.]56• ~'1as, ao fazê-lo, você não deve
ter em conta seu próprio proveito e con10 pode perma-
necer no governo, e sim seus súditos, aos quais deve au-
xílio e proteção, de modo que o en1preendimento seja
feito a partir do amor. Uma vez que toda a sua região se
encontra em perigo [pela guerr.1], você deve considerar se
Deus vai ajudá-lo, para que tudo não se tome ruína e de-
vastação; e, mesmo que não possa evitar o surgimento de
algumas viúvas e órfãos, deve pelo n1enos in1pedir a de-
vastação total, em que nada [reste] senào viúvas e órfãos.

grau da escada de super- e sub-ordinaçào (-grau") são -p:: ues"' e encontr-am-


se tão U\'res para lutar uns com os outros quanto os senhores su premos p:na
fazê-lo entre si.
55. No te.xto original lê-se Erkermtnis, conhecimt'nto, ou Beke1mt11is,
que estou adotando ; ambos me p arecem igualmente obscuros.
56. O texto a que se faz referência ordena o massacre de toda; os ind.~·í-
duos do sexo masculino e a escravização das mulheres e crian\' J.S de uma popu-
lação conquistada. VISto que não encontro e,·idêocias de que Llltero pR"te~.;;e
de libe radamente revogar os padrões m ais misericordiosos de conduta vigt"'ni~
em sua época. devo supor que sua disposição de pretende r ter Jprt'ndido <h
Bíblia - e não do.s ~sofistas" ou da ..razão mert'triz" - tudo o que v:ll\! a pena sa-
ber levou-o a sair em busca de um texto ad(:.quado no Velho Test:unemo . sem
que. nesse caso, encontras...<;<.> algo conveniente. Vim l'i n.pt!llt>r e<.resi.'-T.ir à fol\'<l
com a força) é evid~nk'mente dos ro manus. e não da B,1.){ia.

63
()s súditos, por sua vez, devern obediência, ben1 corno
dedicar a isso suas vidas e propriedades17 • I~so porque,
nutn caso desses, cada um deve arriscar seus bens e até a
;jl n1.<:~mo, ern hcnefício de seu próxin10. E, ern tal guerra,
é urn ato crist;1o, e urn ato de arnor, matar ini1nigos sen1
hesitaçót~sJ saquear e incendiar e fazer tudo aquilo que
c·ause dano ao inimigo, segundo os usos da guerra, até
que ele seja derrotado. Cuidado, porérr1, com os pecados
e corn a violação de mulheres e donzelas. E, quando o
inimígo estiver derrotado, deve-se mostrar nüsericórdía e
garantir a tranqüilidade a todos aqueles que se rendere1n
e se submeterem. Em outras palavras, aja de acordo com
a máxima ''Deus ajuda o mais forte". Abraão agiu assitn
quando derrotou os quatro reis (Gn 14 (15]). Naturalmen-
te, ele matou muitas pessoas e não mostrou misericórdia
até que a vitória fosse sua. Um caso co,no esse deve ser
visto como algo enviado por Deus, de modo que, por essa
vez, a terra ficou livre de patifes.
Mas e se um príncipe estiver errado? Ainda assim os
súditos estarão obrigados a obedecer-lhe? Não, porque
ninguérn tem o dever de agir de maneira injusta; devemos
obedecer antes a Deus ( que deseja que a justiça prevale-
ça) que aos homens [At 5,29]. Mas e se os súditos n_ã0
souberem se seu governante tem uma causa justa ou in-
justa? Enquanto náo souberem e não conseguirem desco-
brir, apesar de terem feito todos os esforços para canto,
eles poderão obedecer sem risco para suas al n1as. Isso
. . . · · ~ e1n
porque, em tais casos, deve-se seguir a Lei de ~1oises
Êxodo 21 [13], em que ele escreve que um assassino que
........................ ··se
~7 - O sentido aqui requer algum ek·mento de ligação do gênero:
uma Rtlcrra pr<..'<.:' n cher todas essas precondições .. : ·. ·

64
---- Lutf:'ro: Sobre a autoridade secular _________

n1atou alguérn sem o saber e sen1 intenção de fazê-lo de-


verá fugir para un1a cidade de refúgio e ali será absolvido
pelos tribunais. E o lado que é derrotado, seja justa ou in-
justa sua causa, deve aceitar isso con10 urna punição de
Deus, 1nas o la<lo que luta e triunfa, num tal estado de ig-
norância, <leve considerar a batalha como se alguém ti-
vesse caído de um telhado e matado outra pessoa, dei-
xando a questão a cargo de Deus. Para Deus é a mesn1a
coisa se ele o priva de seus bens ou de sua vida por in-
tern1édio de um senhor justo ou injusto. Vocês são criatu-
ras de Deus, e, urna vez que suas consciências estão ino-
centes, ele pode fazer com vocês o que lhe aprouver. E
desse modo [o próprio] Deus desculpa o rei Abimelec
(Gn 20 [6]) quando este tomou a mulher de Abraão. Não
que o ato fosse correto, mas ele não sabia que ela era mu-
lher de Abraão.
En1 quarto lugar, e este talvez devesse ter sido o pri-
n1eiro ponto: corno dissemos acima, um príncipe também
deve agir como um cristão para com Deus. Isto é, ele
deve subn1eter-se a ele em total confiança e solicitar-lhe,
corno fez Salomào, a sabedoria para governar bem. Em
outros textos, porén1, já ine estendi bastante sobre a fé e
a confiança ern Deus, e portanto não há necessidade de
dizer n1ais nada agora. E, assin1, van1os deixar isso neste
ponto e recapitular. Um príncipe deve auxiliar a si tnesmo
de quatro modos diferentes. Prin1eiro: voltando-se ern di-
reçào a Deus, com un1a confiança real e uma prece nas-
cida <lo coração. Segundo: para seus súditos! com an1or e _
auxílio cristãos. Terceiro: para seus conselheiros e hon1ens
influentes, corn urna razão livre e urn entendin1ento se1n
peias. Quarto: en1 relação aos rna]feitores! con1 a devida
gravidade e severidade. Dessa 1naneira sua condiç:ào* es-

65
-------- Sohre a autoridade s e c u l a r - - - - - - - -
tará correta exterior e interiormente, agradável a Deus e
aos hon1ens. Ele deve esperar, porém, uma grande quanti-
dade de inveja e sofrirnento. Um hon1em tão nobre quanto
esse logo sentirá o peso da cruz sobre seu pescoço.
Para tenninar, um adendo en1 resposta aos que escre-
veratn tratados sobre restitution 58, isto é, a restituição de
bens injustamente adquiridos. Essa é uma tarefa para a
Espada secular, acerca da qual muito já se escreveu, mui-
tas vezes con1 desnecessária severidade. Mas apresentarei
rapidarnente a coisa toda e elin1inarei de um só golpe to-
das as leis e toda a severidade. Não se encontra lei para
isso, à exceção da lei do an1or. Se você for charnado a
decidir un1 caso en1 que uma parte deve restituir alguma
coisa a outren1, e an1bos são cristãos, a questão logo esta-
rá solucionada. Pois nenhuma das partes negará ao outro
o que é dele e tan1pouco o exigirá do outro. Mas, se ape-
nas un1 deles for cristão, a saber, aquele a quem é devida
a restituição, a decisão 1nais un1a vez será fácil, pois ele
não exigirá sua devolução. Igualmente, se quen1 deve de-
volver algo é o cristão, ele por certo o fará. Mas seja ou
não cristão qualquer um deles, é assirn que você deve de-
cidir. Se o devedor é pobre e não ten1 tneios de fazer a
devolução, ao passo que a outra pessoa não é pobre, você
deveria dar livre curso à lei do a1nor e desobrigar o deve-
dor. Pois a outra parte tan1bé1n se vê na obrigação, pela
lei do arnor, de perdoar o débito e até n1esn10 de dar n1ais,

58. Ern seu texto, Lutero havia deixado a palavra em latim, clJí o ele-
m1.:nto explicaUvo. O tópico era. e continuou a ser, um dos favoritos dos c.:.>S-
C~>lásricos, no rmalme nte tratado em comentários sobre Tomás de Aquino,
S~imma 77Jeo!op,fca. Secunda Securn.be, qu. 62 e qu. 78, e aqui é :i tais disn1$-
so<.:s qL11c• Lutero S" f ""' , l ·l '. . - ,
_ · " , it"rc . n<. u1a a controve1t1da questao de pedir emprc~r~~-
do OL1 c-mprestar dii',heiro a iuros.

66
- - - - - - - - - luteru. Sol>rt> a autondode _,;•c,dar _ __ __ _ _

devido à necessidade do outro. Porérn, se o devedor n:to


for pobre, ent;}o que ele faça a restitui(ào, tanto quanto
possa , ~eja da totalidade, da rneta<le. de urn cer(o ou de
un1 qu3rto, desde que você lhe deixe sua casa, alin1ento e
,·estu:trio para ele 1nes1no, sua n1ulher e seus filhos. Pois de
qualquer n1odo você lhe deveria isso, caso tives~e 1neios
de fornecê-lo; e nntito tnenos deve tirá-lo dele, urna vez
que você não precisa disso para si n1esI110 e ele nJo pode
sobrevi\ er sen1 isso.
J\.1as, se nenhum dos dois for cristão, ou se u,n deles
não pern1itir que o assunto seja julgado segundo a lei <lo
amor, você deveria deixá-los procurar urn outro juiz e di-
zer ao credor não-cristão que ele está agindo contra Deus
e a lei natural, ainda que ele consiga a decisào austera a
seu favor [que ele busca] de un1 juiz hurnano. Pois a na-
tureza ensina o 1nesn10 que o an1or: não devo fazer o que
não gostaria que n1e fizesse1n. E portanto eu não posso
pilhar alguérn, por n1elhor que seja 1ninha alegação, urna
vez que eu n1esn10 nào quero ser pilhado. Aquilo que eu
desejaria, nu1n tal e.aso, é que a outra pessoa renunciasse
a seu direito; portanto, tarnbérn eu deveria renunciar ao
meu. E é as.sitn que os ganhos mal adquiridos deveriam
ser tratados, quer fossen1 conseguidos às escondidas, quer
abertan1ente, de n1odo que o amor e a lei natural sen1pre
prevalecessem. Pois, quando você julga en1 concordân-
cia con1 o an1or, faciln1ente distinguirá e decidirá todas as
coisas, se1n códigos de leis. Mas, se afastar as leis do an1or
e da natureza, jan1ais descobrirá o que é agrad5vel a Deus,
ainda que tenha engolido todos os livros de leis e todos
os jurisconsultos. Ao contcirio, quanto 1nais pensar sobre
[o ~1ue aprende deles], mais louco você fica. O bom ju1-
gainento não <leve ·ser buscado nos livros, n1as surge a

67
partir <lo 601n senso livre, como se não existis~crn livros.
Mas é o arnor e ·a lei natural, corn os quais está repleta
toda a razão, que proporcionatn urn tal bon1 senso. I )o~
livros vên1 decisões opressoras e incertas. Deixern-n1e dar-
lhes un1 exen1plo.
Conta-se uma história a respeito do duque Carlos da
Borgonha. Certo nobre capturou seu inimigo. A nnilher
do cativo veio para pagar seu resgate. O nobre disse que
lhe entregaria o hornetn se ela dormisse com ele. A 1nu-
lher era virtuosa mas queria seu marido libertado, e por
esse motivo procurou o esposo e perguntou-lhe se deve-
ria fazer isso para conseguir sua libertação. O hotnem que-
ria ser libertado e salvar a vida, e o permitiu. Contudo, un1
dia depois de o nobre ter dormido com a mulher, ele or-
denou a decapitação do esposo e o devolveu morto à mu-
lher. Ela se queixou do sucedido ao duque Carlos, que
intirnou o nobre e ordenou-lhe que desposasse a n1ulher.
l)epois do dia das núpcias ele ordenou a decapitação do
nobre, colocou a mulher na posse dos bens do marido
e restaurou sua honra. Uma punição verdadeiramente
principesca para a peIVersidade.
Ora, nenhu1n papa, nenhum jurista e nenhum livro
poderiatn tê-lo ensinado a dar um tal veredicto. Antes, ele
se originou <la razão desacorrentada, que é n1aior que to-
das as leis nos livros; trata-se de un1a sentença tão justa
que todos se vêem obrigados a aprová-la e encontran1 es-
crito en1 seus corações que ela é correta. Agostinho escre-
ve a n1esn1a coisa em seu De sermone Dominí in mor1te.
E, portanto, a lei escrita deve ser tida e1n n1enor apreço
do que a razão, pois com efeito a razão é a fonte de todas
as leis, aquilo de onde elas brotam. A nascente não deve
· ser repriniida pelo córrego► e a razão não deve ser apri-
sionada por letras.

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