Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
j
e até que ponto os cristàos lhe <levem ohediêru.:iat ,Q que
os perturba {aqueles 4ue n1e pedem para escrever sobre o ·
assunto} ~1o as palavras de Cristo en1 1\1ateus 5 (25.39-·l0l:
"nào resistais :10 hon1em 1nau ... tnas sede con1pbcenlt..
-conl teu adversário, e àquele que quer to1nar-vos a túnica,
deixai-lhe ta1nbén1 a veste··. E na Epístola ao~ Ro1nanos
12 l19): A nü1n pertence a vingança; eu é que retribuirei,
diz o Senhor... São exata1nente esses os textos utilizados.
há tnuito ten1po, pelo Príncipe Volusiano e1n objerào a
{361 :] S3nto Agostinho, in1pugnando a doutrina cristà por
dar carta branca aos n1alfeitores e por ser inco1npatível
co1n a Espalt1 secular.
Os sofistas nas universidades tatnbén1 encontraratn
aqui u1n obstáculo, visto não poderem con1patibilizar as
duas fa Espada e as palavras de Cristo]. Assim, para não
colocar os príncipes inteiran1ente forà da cristandade 1• eles
tê1n ensinado que essas declarações de Cristo não são
m3.nda1nentos, 1nas apenas ··conselhos para a perfeição.
E1n outras palavras, para preservar a posiçào e a digni-
dade dos príncjpes. Cristo teve de ser apresentado di-
zendo o que não era nem verdadeiro neni justo. Por se-
ren1 cegos e desprezíveis sofisras. eles não conseguen1
ex.:.ihar os príncipes sen1 rehaixar Cristo. Esse en·o vene-
noso agora permeou o n1undo todo. e a opinião geral a
respeito dessas afinnações de Cristo é que se trata antes
de simples conselhos para aqueles que desejan1 ser per-
feitos do que de n1anà.unentos obrigatórios para todos os
-·•-.•··· ..··········•"
1. t.it<.•ralment~: transfonn.1r os prín('if)cS ~m p a~jos. Os teólogos eKo-
1.i,tx."Os <..os ~:-ot,-.;r,3~~) por ,•ia 1..k.- regra rt:.·conç1ltavam as estnta.s p :1lav-,.1 <; d~
Cn!>to a que~· n:ft•re l.utl:.'ro com .J.') ~xig~ncia5 da práu1.::i 1 ao estabdecerem ~•
dL--tirn;ão ~mre o que er-.i necc-.ssatio p:1r.i a ~pfift.~1ção·· e o que era ad(•quado
r ara ,tquclô m~·ru )~ MnhKioso~ esptrinialmente
4
cf+~tú.os . \()s ~ofistas] çht~~ar.un ao ponto de pcnnilir fo
tt.~o J~j a E:-;1x1<l<t e a autoridadt· M.:cubr ao s/otzt~ .. perft~i-
to·· d~)..'S hispos e Jté ao "n1;tis perfeito·· de..' todos o~ ·tatus.
o do p;tpa. Na vc:.:nltde. eles n~'to ~,penas concedt:r.lln•ll1es
fLtZL't' u~o do qttt..· propria1ncntc pertence apen<1s ai; e~tc
'' ianpt: rfeilo'' status da Espada e da autnritbde st..cular; p<?lo
. contrúrio, t.~les os atrihuíratn integralrncnte ao papa, rn~1is
do que a qualquer outro no rnundo. O diabo apossou-:,;e
çon1plctarnentt' <los sofi~las e e.las universicl.1<les; eles rnes-
rnos n~·to se d ~to conta do que estJo dizendo e ensinando.
i\1as ,ninha esperan,·a é a <lc que eu seja capaz de en-
sinar ao~ príncipes e üs autoridades se<..:ubres con10 po-
<len1 pcrn1~necer cristãos e ter Cristo corno Senhor se1n
reduzir seus 111anda1nentos a sirnplcs 'iconselhos'' . E gos-
t;tria de realizar [essa tarefaJ co1no urn hu,niJde .serviço a
Vos~1 Altl·za, co1no algo que todos po~satn usar, se neces-
sit,1ren1, e para louvor e glúria de Cristo nosso Senhor. E
reco,ncndo Vossa Alteza e vossa fa111ília à gra\'ª cJe Deus,
para que tcnharn sua n1isericórdia. An1érn.
6
1
nH~lllt nís.i,;o e <·ooH) St.} as inc1paz(·s de p<.·~.,o:s" Í<Ji•,.'J('fll
cnxerg~tr :ttr;1v~-~ dt·~s:1 t·. . . p(·dt· dv s11hh:rf(1gio. Se o itnpc ..
rador f'o.~se n ·tir;tr d<!l(•S t11n de ~e u~ CJ ,\ I ·lo.~ ou '-:idades
'
ou onlt:n;1r qt1íll(Jl1t.'r outr~1 "'oba qu<.: n;.1o Ih<.·.~ parecc.~.\ :o;e
justa, logo o~ vt•,í~unos procun1r r;1z(K·,.., p<: las quab f .. r.ia,n
o din: iLo de n:shtir e dt·~ol>'-'<'.('<.'t:r a <:le. Ma:-i, cnqu~H1to for
\IIH,.t qtH"," hlO d t• atonne,Har o ho1nc1n pobre e d e ~ubn1e•
ter a vont;td(i de.: l )c•us a M'US pr(,prio~ t: arhítr:írios c.:;.1prí 4
, •• , •• r• ., , ,,, .,,., , , ,,
7 . Naq 1.id<.◄ l'~·ri< ,d,J, <,,. , t~ rritl ,ri,,1,.. di: p c.;•.n,.k~n11.·l'i <i.•1n t<: t·ri-11 11, fon'nab ou
l k · fato) dl, s... ~r;;11k, 1111p,: 1'Jd•1r ttfJtn,!l'l<J 1w,1l>(·m ind 1•1_i: 1m U: r'rns ,·,..,p;_1r,ho~.1!-i,
1t,tl, ..1nJs ç• hür)!,•·,r,111,.•:,a/ll. lw111 ('01111 , "•t AI ~_.,,,;.11i· li,;t· i.:, '°h, A11.,trh
J
·• ' ·
LU{t:·ro, p o 11,11\.,
h1, i1 p.t1'<.'11\t.· 1ni,~1-iri.• t·Hl ,1 ( '.st.•I 1~•t,; n·1\d1J ~1/]l il ui,-.1it1 1;;W,
7
- - - ~ - - - - - ~ Sohre a aut.oridc,de secular-------...,____
8 . Literalme nte: "suas escamas" (o Diabo era com freqüê ncia descriro
como estando coberto de ~scamas ou placas, como um peixe ou um crocodi-
lo, v. a passag<:m sohrC:' Leviatà em Jó 41, em geral interpretada como refe ren-
te ao Diabo) "e bolhas d 'água": e~te é um jogo de palavras do qual mui ali bis
bnlt, "todas as ~uas bulas", poderia ser uma pálida imitação; a palavra latina
l1ulla sigrufica literalmente uma bo lh;,1, numa referê ncia ao selo do documen-
to. Lut<:·m achou esse troca<l1lho irresistível.
9. l.itc-ralm~nte: "até- os casacos-cínzentos (isto é. os h:1bitos dos mon-
ges) cksap:arec:e rem", aparentemente uma expressão idiomática . _
10. Quanlo ao uso da metáfora da Espada por Lute ro, v. Introdu\·ao,
p . xx-rv.
11. OninÚttJ,1, p<xk :-.ignífícar tanr.o uma regulamenra~·ào qu~nto uma ~>r~
, .lt-m_ A trad u~:ão qu.e LuH:ro aqui oft:rece de~sc texto crucial não é a que te~
.em s~1as vcrsi~t> postt-rior<:-s da Bíbli.1 e m alemão. A pahvra que aqui trac.kizt
('r)rno ~ptxk-r" ( (it.!wa./t). Luter o traJuziu po stkriornw nte como Oht!d~l!it: l ~m
..iJ1.:•rnáo ctmtc.rnporá.net ) o tt-rm.c:1 torno u -SI..'. Ohrll;.kdt. Cf. fntJoduç-ào. P· XXH.
'-"' G.lns.~á no. Poder.
8
_ _ _ _ _ _ _ Lutero: Sohre a autoridade secular
9
--..:-.- ..-------_....----~
....... ..
. S<.,hte a autr,rtdrKle .'W:(,,J.tÚ'Jr - ------ -~
novamente: hVí<la por vida 1 olho por olho-, dt~nte p<)f den-
te, pf por pf, mão pc,r mão, ferifnento por !erirnento,_gr>l-
pe por golpe," E, mais ainda, Crísto tam.bém
. c(,nhr_:113 :>
quando <lí~se a Pedro no jardirn fde Get*mani, ,\ft 26r)2}:
'"Todo aquele que en1punhar a espada ptrecerá pela e:S-
pa<la., 1 o que <leve ser entendido no mesrrio sentído de
C,ênese 9 (6}; "(Juem derrama o sangue do ho1nem 1 etc. ~;
não há dúvida de que aqui Cri!;to está invocando aquefa,s
palavras e de que deseja ter esse mandamento íntroduzí-
<lü e confirn1ado [na Nova Aliança}. O mesmo en~ína João
Batista [Lc 3 141. Quando os soldados lhe perguntaram o
1
10
_ _ _ _ _ _ _ Lutero: Sobre a autoridade secular
------~
deixa-lhe tan1bém a veste; e se alguém te obriga a cami-
nhar uma n1ilha, anda com ele duas, etc." No mesmo sen-
tido, na Epístola de Paulo aos Romanos 12 [19): "Não façais
justiça por vossa conta, caríssimos, n1as dai lugar à ira de
Deus. Pois está escrito: A mim pertence a vingança; eu
é que retribuirei, diz o Senhor." E também em Mateus 5
{44]: "Amai vossos inimigos. Fazei bem aos que vos
odeiam." E !Pedro 2 [na verdade, 3,9]: "Ninguém deve-
rá pagar n1al por mal, nem injúria por injúria, etc." Estas
e outras afirmações da mesma espécie são indisputáveis e
soam como se os cristãos na Nova Aliança não devessem
ter Espada secular.
É por isso que os sofistas dizem que Cristo aboliu a
Lei de !v1oisés, e por isso fazem de tais ordens [meros]
"conselhos de perfeição". Eles dividem, a seguir, a doutri-
na cristã e a condição* cristã em duas partes. A uma parte
chan1am "aqueles que são petfeitos", e a esta destinam os
"conselhos"; à outra parte denonünarn "os in1perfeitos", e
a eles destinam as ordens. Mas isso é pura desfaçatez e
obstinação, sern nenhuma sanção das Escrituras. Eles não
conseguem perceber que naquele mesn10 lugar Cristo im-
põe seus ensinan1entos tão enfaticamente que não admi-
tirá a remoção de nenhuma parte, por menor que seja, e
condena ao inferno aqueles que não a1nam seus inimigos
[Mt 5,22 ss.]. Deven10s portanto interpretá-lo de outro
rnodo, para que suas palavras continuen1 a se aplicar a to-
dos, sejarn e]es "perfeitos" ou "irnperfeitos''. Pois a perfei-
ção e a imperfeição não são inerentes a obras e não esta-
belecem nenhurna distinção de condição exterior ou de
statu~... entre c.:ristios; são antes inerentes ao coração, à fé,
ao ainor, <letal modo que todo aquele que acredita n1ais
ffinnernentc) e ten1 n1ais an1or, tal pessoa é perfeita, in<le-
11
pendcnternenle de st.'"r un1 hona~,n ou tuna nn1lher. un1
rn íncípc <>u un1 .c unponf:s, tun 1nonge ou tHn leigo. Pois o
í-Unor e a fé n;1o cria1n dissens(>cs e <listinçôes exter1ores_
3. Aqui devcrnos dividir os fíJho~ de Acl1o. toda a hu-
uw nidaJc, t~rn duas pat1t'S: a pri1neira pertence ao r.eino*
de Deus, a segunda ao reino do inundo•. 1·0Jos aqueles
que acreditarn vcrda<lciran1ente ern Cristo pertencen1 ao
reino de [)eus, pois Cristo é rei e senhor no reino de
J)eus, con10 proclan1~1n o segundo Saln10 [v. 61 e o con-
junto <las Escrituras. E Cristo veio para dar início ao reino
<le J)eus e estabelecê-lo no n1un<lo. É por i~so que e)e de-
clarou perante Pilatos Uo 18,36 ss.]: " fvleu reino não é
[36-5:l deste n1un<lo, mas quem é <la verdade escuta n1inha
_voz,., e que, ao longo de todo o Evangelho, ele anuncia o
reino de I)eus, dizendo {Mt 3,2]: "Arrependei-vos, porque
o reínc, de J)eus está próxirno"; e tan1bém [~lt 6 ,33]: ''Bus-
cai, em primeiro lugar, o reino de Deus e sua justiça. " E,
corn efeito, ele charna ao Evangelho um evangelho do rei-
no de l)<:-us, visto que ensina, orienta e resguarda o reino
<lc f)eus.
Ora, tais p~ssoas não têm necessidade nem da lei"
nem da Espada seculares [zveltlich]•. E se todos no n1undo
(U'leltl fo~sem verdadeiros cristãos, isto é, se todos acredí-
tas:c;em ver<la<lcíramente, tarnpouco haveria neces.<;idacle
ou funçâo para príncipes, reis, senhores, a Espada ou a
lcL ('J que lhes caberia fazer? Porquanto (os verdadeiros
çristãos} tê rn o Espírito Santo e1n seus corações, que os
ensina e os l~va a amar todas as pessoas, a não tratar nin-
gufrn de modo injusto e a suportar prazenteiran1ente as
injúria..,, atf mes1no a morte. CJnde todos os n1ales são to-
lerado~, de ho1n grado e o que é ju5to• é feíto espontanea-
rn-cnt~.. n ~o existe lugar para contendas, disputas, tribu-
nab~punir (~~, l<:i~ ou a E~pa<la. E, porn1nto, as leis e ª Es-
12
pa<la se<:ular não poden1 (•n~Otllrar ahsolutanll·ntf! Jl<.:' --
nhutn en1prego entre os cri~t~1os, en1 esp'--·cbl porque, por
si n1esn1os, eles faze1n n,uito ruais do que quaisqu<:r lei~
ou ensinan1entos poderiatn exigir. Co1no diz Paulo cn1
1Timóteo 1 [9}: "As leis n~'io sào <lcstina<las ao j\1~to, ,na~
aos injustos."
Por que <leve ser assirn? Porque o hornen1 ju~to [der
Gerecbld, por sua livre vontade. faz tudo e n1uito 1nai.'i do
que exige qualquer lei* [Rechtl. ~1as os injustos ( Unge..
recbten} nada fazem que seja direito [rech/] e, por conse-
guinte, têtn necessidade das leis para ensin{1-k)s. for\·~·1-los
e instigá-los a agir con1 retidào. Un1a bo3 árvore 1- n~lo prt:~ 1
13
o ulr~•s p~!la\'ras, ~quck:s qu<: n áo ~jo t·n,t ~)os ~jo -c nn~-
tr~•n,gídos pt·la~ lt·i~ a ~th,tere rn -~t· l'Xt (·rion l K'ntc tk: J(Cx.·s
1n1quas. con10 '-'n·tno~ n,ais adi~ulte . t ·1nJ V\.'l, pon.-.n1 f
qu<.' nt'nhuin hon1t..·1n é por n :lt1&rez~1 un1 ni,t~lo ou urn Jll ·
to1\ n1~s ~do todo~ n,~uis e pt·c1dnn:s, ·D<.~us cotoc , oh••a.í-
( u\os tlL-tntt.• de todos <:l<:s. por 111(:io da l<.:i. in1p<.:d1ndo-os
de fazer o qu<~ queretn e dt· <.:Xpre"·" ªr extt·ri< >rnK·nte. c: tn
~H:ôt•s. -~ua iniqüitladc. l!,(l>:l E S:.)o Paulo atribui outra in-
curnl>ência à lei 'n en1 Rotna nos 7 [71t· ( jtdatas 2 {na verda-
de. 3,19.2-'•l: ela ensina con10 o pecado pode . er rec:onht>
cido. dt· ,nodo que rebaixe o hon1en1 no St."ntido da di;.;po-
. ~i\·jo de aceitar à graç-a e a fé en1 Cristo. Cristo e nsi na a
1nesn1<1 coisa e1n t\1aceus 5 L-391: não se ueve rcsi ...._tir ao 1n;1I.
Ai ele está explicando a lei e ensin.an<lo-nos a nJtureza
de utn verdadeiro cristão, con10 ouviren10s 1nais adiante.
4. Todos aqueles que não s~1o crbt1os (no sentido aci-
n1a referidol pertencen1 ao reino do n1undo• ou [en1 ou-
tras palavras) e stão sub1nct1dos à lei. São poucos os que
acreditam e ainda 01enor o nún1ero daqueles que st· con1-
porta1n con10 cristãos e se abstêm d e praticar o ma l [e les
14
_ _ _ _ _ _ Lutem: Snhre a autoridade secular_ _ _ __ _ _
............. ·····.....
1-.1 . Aqui. Lutero faz a distmçao
_ . - entre " remo · h) e " gc)verno" .( Re00 i-
· ,. (Reu:
ment). Quanto ao conteúd<') e às implicações de tal distinção, v. Glossáno, PP·
LV-LV!ll .
15
----~--- Sobre a rwtm1dad e secular _ _
16
_ _ _ _...._:____ Luterv: Sobre a autoridade _,;;ecular
- - - - - -- -
dindo urn território ou tH11a grande n1l1ltid:1o, e n1uito ine-
nos a totalidade do n1undo. Existe se111pre un1 núrnero
1nuito n1aior de iníquos do que de hon1ens justos•. As-
sin1. tentar governar toda tuna regiào ou o inundo inteiro
por n1eio do Evangelho é con10 abrigar no 111esn10 aprisco
lobos, leões, águias e carneiros, pennitindo que se asso-
ciern 1ivren1ente, e dizer-lhes: alin1ente1n-se e sejatn justos
e pacíficos~ o estúbulo n~1o está fechado, existe pastagen1
em abund:1ncia e não há cães ou porretes que precisen1
temer. Os carneiros certan1ente conservar-se-ia1n en1 paz
e se deixarian1 ser governados e alitnentados sossegada-
n1ente, mas n{io sobreviveriatn por n1uito te1npo.
Portanto deve-se ton1ar cuidado en1 conservar distin-
tos os dois governos• e pennitir que a1nbos continue111
[seu trabalho], un1 par'1 tornar justos• [os ho1nens] e o ou-
tro para estabelecer a paz exterior e itnpedir os delitos.
Nenhurn deles é suficiente para o n1undo sen1 o outro.
Se1n o governo espiritual de Cristo, nenhtun hon1e111 pode
se tornar justo aos olhos de Deus [apenas] pelo governo
secular. No entanto, o governo espiritual <le Cristo não se
estende a todos; ao contrário, en1 todos os ternpos os cris-
tãos são os n1enos nutnerosos e vivein e1n nleio :.ios nüo-
cristàos. Inversan1ente, onde o governo secular ou a lei
governa por si só, prevalece a hipocrisia pura e sin1ples,
ainda que fosse1n os próprios rnand~tnentos de Deus [que ·
estivessen1 sendo executados]. Pois ninguérn se torna ver-
dadeiramente justo sem o Espírito Santo ern seu cor.,l~'àO.
por rnelhores que sejarn suas ações 19 • Assitn tatnbén1 , onde
........ -· ........... . .
17
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade s e c u l a r - - - - - - ~ -
lH
__
_ _ _ ______ lutero: Sobre a tluton'dade secular_ _ _ _ _ __
gou, pois ela nà,.o favorece seu reino, que não contém
senão os justos. E pela n1esrna razão que nos dias antigos
Davi não teve pennissào para construir o Ten1plo, pois
ele havia en1punhado a Espada e derran1ado n1uito san-
gue. Não que con1 isso tivesse cometido injustiças, mas
ele não podia prefigurar _Cristo, que terá um reino pacífi-
- co sem a Espada. Em vez dele, Salon1ào teve de fazê-lo -
''Salon1ão" ern alen1ào significa sereno, pacífico 20 - , pois
Salo1nào teve um reinado pacífico, que portanto podia ser
o emblema do reino pleno de serenidade de Cristo, o ver~
<ladeiro Salomào. E também, dizem as Escrituras, durante
todo o período em que o Templo era construído, não se
escutou o som de instrumentos de ferro; tudo isso porque
Cristo queria um povo livre e voluntário, sem coerção ou
constrangimento, lei ou Espada [lRs 6, 7].
É esse o significado do que dizem os profetas: Salmo
109 [possivelmente Salmo 110,3]: '·Teu povo será aqueles
que são generosos'', e Isaías 11 [9]: ''Ninguétn n1atará ou
fará n1al algum en1 todo o meu santo monte" (em outras
palavras. a Igreja). E Isaías 2 [4]: "Eles transforn1arào suas
espadas em relhas de arado e suas lanças ein podadeiras;
e nenhuina nação levantará a espada contra outra; nem se
aprenderá n1ais a fazer guerra, etc.'' Aqueles desejosos de
estender o significado deste e de outros ensinan1entos si-
1nilares para fazê-los recobrir todos os que se dize1n cris-
tãos estariam pervertendo {o significado de] as Escrituras,
pois essas coisas se dizem apenas dos verdadeiros cris-
tàos, que de fato age1n desse n1odo entre si.
···••ilt••·~--········
,
20. Lurero reiere-sc aqui._ por ,mp
. t·icaçao., ao f·ato l l,e que etunólooicamcn-
. - ~ .-
(,..
~
o - ,
norn<: propri-o akmJo f riedrich e 1 entKO aod· · nom,, ~
.. ht·bnuco ~.1 \om:w.
__
1
l......, - · · s- -n,:-~1·to tratar-~ de uma
'·"'ªvez que a referf•ncia é intraduzível . eu a supnmr. U-'.)t,..: •
ai• ...,- 1· . . d ~ . • ·. procetor de Lutero .
.....-;ao i.-.on)\:·1ra a frt"derk:o , o Sá h.io1 Ele itor :1 ~axo nia t: · -
19
_ _ __ _ _ __ Soh1·t• u autoridade s<1cu!r.1r _ _ _ _ _ _ __
20
--~--------- lulero: SfJhre a autonâade secular
---- ---
porque os ou~ros a tê1n, de n10Jo que estes possatn go-
zar de prot<:çao e que o~ n1alfeitores não se tornein ain-
da piores. lJ1n tal serviço"' não o prejudica e ele nào fica
<lirninuído ao fazê-lo, n1as o n1undo se beneficia enorme-
ntcnte. C)tnilir-se de fazê-lo não seria o procedin1ento de
u1n crist~to; seria o oposto do [dever cristão de] amor e
daria utn n1au exernplo [aos nào-cristàos): en1hora não se-
jatn crist1os, ta1nhén1 eles recusariarn subn1eter-se à au-
toriuade. E tudo isso daria má reputação ao Evangelho,
con10 se ele pregasse a rebelião e produzisse pessoas
egoístas, sern vontade de ser úteis e prestimosas aos de-
n1ais, ao passo que o Evangelho faz do cristão alguém
devotado a todos. Assin1, em Mateus 17 (271, Cristo pagou
o tributo para não provocar escân<lalo, e1nbora não tives-
se necessidade de fazê-lo.
De fato, nas palavras <le Mateus 5 [39] citadas acima,
vocês efetiva1nente encontran1 Cristo ensinando que aque-
les que são dele não devem ter lei ou Espada secular en-
tre si 1nesn1os. rv1as ele não os proíbe de serviren1 e de se
subn1etere1n àqueles que <le fato detêrn a Espada secular
e as leis. Ao contrário, precisamente porque vocês não
necessitatn dela e não devetn tê-la, devem servir àqueles
que não alcançarain o 1nes1no nível [espiritual] en1 que
vocês se encontrarn e que ainda necessitam dela. En1bo-
ra vocês próprios não precise1n de que seu inin1igo seja
punido, seu vizinho vulnerável precisa, e vocês devem
ajudá-lo a gozar de tranqüilidade e tratar de fazer com
que os ini1nigos dele sejam repritnidos. E isso não pode
acontecer a rnenos que o poder• e os superiore~* seja~
vistos com reverência e ten1or. A~ palavras de Cnsto nao
são: vo<..·ês não <levem servir o poder nen1 se su bn1 eter a
ele, rnas antes: "não resistais ao ho1ne1n n)au ·• . con10 que
21
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a auton·d ade secul.ar - - ~ - - - - -
22
_ _ _ _...,._ _ Lutero: Sobre a autoridade secular_---,._ _ _ __
23
se n1odo que o ~anto profeta Sann1el nlalou o rei A~;1g
(lSrn 15 [.12 S$.]), e Elias, os profetas <lc Baal ( I Rs 18 (/40) ).
E Moisés, Josué, os Filhos de Israel, Sansüo, I)avi, todos
os reis e príncipes do Velho Testarnento agirarn <lo Olt s .. 4
24
_ __ _ _ _ _ lutero: Sobre a au.to rultu:lt! St!cufar _ _
······ ..................
22. Cf. nota 19-.
25
:1 •., , ~
t:"lt d<.·vt·ria conduzir a Crbto pessoa~ perfeitas. João
cunfifnla n oficio do soldado, dizendo que eles <leveriarn
s<.• (.'(HltL'lltlr conl ~eu p~tg:ttn~nto. Se não fosse çrí~t~1o
hr.1ndir a t·spada, ckl (k~veria puni-los e dizer-lhes para
lan(ar fora tanto suas e:;padas quanto seus soldos; do
t·nntr;irio., n~'to est:1ri~1 cnsinando•lhes o que é digno para
os c rist1ns. E, quando S1o Pe dro e1n Atos <los Apóstolos
10 (}l ss.l l~s1ava ensinando a Cornelius acerca de Cristo,
n:1o lhe disstl par-..\ abandonar seu ofício, corno deve ria ter
feito se l·ste tivesse sido u1n e1npecilho para Cornelius
{atingirl o slatu.,... de cristJo. [372:l tvtais ainda , antes de
{Conh.~lius] st·r hatizJ.do [At 10,441, o Espírito Santo desceu
sobre ele. E S;..1o Lucas louvou-o co1no urn hon1ern justo
l"Al 10,2] antes de Pedro doutriná-lo e nele njo encontrou
1núl'utt por ser ele u1n con1an<lante <le soldados e um
ct•nluri:1o do i1nperador pag;.1o. O que era correto p ara
o F~,pirito Santo deixar itnut(lvel e ilnpune no caso de Cor-
nelius é iguahnente correto para né>s.
l) nlesn10 ext~tnplo nos é dado pe lo eunuco etíope,
un1 ctpitJo, en1 Atos 8 [27 ss.], j que1n o evangelista Fili-
pt:~ convt>rteu e b~Hizou e en1 seguida pennitiu que con-
servasse seu cargo e voltasse para casa. [O etíope] dificil-
1nente poJeri~• ter 1nantido urn cargo tão irnportante sob
as ot'lk·ns da rainha da Etiópia setn en1punhar a espada.
Isso rarnbén1 ~contt·ceu no caso do governador de Chi-
pre, SL·rgius Paulus (_At. 13 [7 ,121), a quern São Paulo con-
veneu t.· no t>ntanto pertnitiu que perrnanece.sse gover-
nador, entre e sobre os pag~'tos. E o n1esn10 foi feito por
rnuitos 111:.'irtires sarHifictdos, que erarn obedientes ao in1-
r~•rador pagJ.o de Rotna , entravan1 e1n batalha sob suas
or<lens e se1n dúvida 1n~navan1 pessoas par~ conservar a
paz, con10 t.•stá escrito sobre s~lo Maurício, Santo Acácio
26
_ _ _ _ _ _ _ Lutero. Sobre a autoridade secular_ _ _ _ _ __
23. Lutero aqui e~tá recorrendo ::i. exemplos tirad0s das lendas populares
da Vdtu Jgreja .
27
--·- - - --- Sohre a autoridade secular _,_ _ _.....,_....
deve fazer, pois não existe ninguérn mais qualificado par~i
servir a Deus do que uin cristão. Do 111esn10 rnodo, é cor-
reto e necessário que todos os príncipes [373:] sejarn bons
. cristãos. A Espada e o poder, co1no urn servjço* especial
prestado a Deus, sào mais adequados para os crist~1 os do
que para qualquer outra pessoa no mundo, e por conse-
guinte vocês deven1 estin1ar a Espada e o poder tanto
quanto o estado de casado, o cultivo do solo ou qualquer
outra ocupação instituída por Deus. Assim con10 urn ho-
mern pode servir a Deus na condi\:ào de esposo, na agri-
cultura ou no trabalho manual, en1 benefício de seu pró-
xin10 - e cotn efeito deve fazê-lo, se a necessidade de seu
próximo o ex1gir -, ele tatnbérn pode servir a Deus pelo
[exercício do] poder, e tetn obrigação de fazê-lo quando
seu próximo tiver necessidade disso. Pois são esses os
servos e trabalhadores de Deus, que punen1 o mal e pro-
tegen1 o que é bon1. Todavia, isso deve permanecer na
esfera do livre-arbítrio sempre que não haja [absoluta] ne-
cessidade, assim como contrair matrin1ônio e dedicar-se à
agricultura ta1nbém são deixados ao critério das pessoas,
sempre que não haja [absoluta] necessidade.
Se entào vocês perguntarem por que Cristo e os Após-
tolos não exerceram o poder, nlinha resposta será: por
que [Cristo} não teve urna esposa, ou não se tornou um
sapateiro ou um alfaiate? Devemos concluir que unia con-
di~·ão• ou ocupação* não é boa simplesn1ente porque o
. próprio Cristo não a teve? Nesse caso, o que aconteceria
a todos os status e ocupações exceto o de pregador, urna
vez que esse foi o único que ele exerceu? Cristo ocupou
o cargo e o status~ adequados a ele, n1as ao fazê-]o não ·
rejeitou nenhu1n outro. E1npunhar a Espada n::'io era apro-,,
priado para ele, pois seu único ofício deveria ser o de go-
28
_ _ _ _ _ _ _ ll/lt:>rú: Sr>hre a autoridade secular_ _ _ _ _ _ __
24. Aqui o texto de Lutero é uma elipse destruidora do sentido. Creio que
ele queria dizer algo romo: "Exercer a autoridade secular não constitui algo
contra o stalus do pa~tor como cristão, mas é algo contra sua vocação. Pois ... "
25. Penso que isto s ig nifica : -ou ensinado o utras pessoas a exercer a au-
torrdad.c: coercitiva'"' . Observe-se como no pensamento de Lutero a Espada
metatô rka torno u-se completamente dissociada da ~ pada física.
29
que st.~u cxernplo fos~e tr:Hado con10 u111a ntz~1o obrigatú-
ri~t p~H~\ o c..~nsino e a cren\'~l etn que o reino de I)eus núo
pode cnntinuar ~-en1 o cas~unento ou a Espada [37,í:] ou
otHras coi:-;as exterion,~s de~~t· teor, ao passo que esse rei-
no ~ub~iste exclu~iva,nente pelo espírito e pett Palavra de
l)~us. (Pois o exe1nplo de Cristo co111pele à i1nita'1/ io.) ()
prúprio ofício• de Crbto era e tinha de ser o de 111ais alto
soberano ne~:,;e n1es1no r~ino. E, u1na vez que nern todos
o~ ctist~1os tfnl o tnesrno ofício (en1bora pudessern tê-lo),
é justo e :.1dcquado que eles tenha1n algutn outro [ofício]
cxtt·tior) nK·d.ianle o qual l)eus tatnbérn possa ser servi<lo.
Segue-$e de tudo isso que a interpreta~;;lo correta das
palavras de Cristo etn l'vtateus 5 (39] - ''N:1o resistais ao
hornen1 1uau, etc." - é a de que os crist~los deven1 ser ca-
p~lzes de suportar todo 1nal e toda injustiça se111 buscar
vingan\.'ª para si n1es1nos e sern tan1pouco recorrer aos
tribun;tis t.'tn defesa própria. Ao contrário) eles não de-
tnandar~)o da autoridade tetnporal e das lei~ [Rechtl* :.1b-
soluta1nente nada para si rnestnos. Poden1, poré1n, bu~car
retribui\-Jo, justiça [Rechtl, proteç·~lo e auxílio para os ou-
tros t' f;lZl.'r tudo aquilo que queira1n para alcançar ess~,
finali<l~H..le. E aquck·s no poder., por sua vez, deven1 aju-
dj~los e protegf·-los\ por inidativa própria ou por ordern
<le outrt.·tni ainda que os crist:Jos nào apresenten1 queixas
ou peli~;ôt:s nern instituarn pron:~~sos judiciai~. C>nde quer
qut~{as autori<.bdes seculares] deixe1n de fazê-lo) o crist~ lo
<leve pcrnlitir que ele pré>prio sofra abusos e mau~Hratos
e nüo dt:ve n: sislir ao 1n;ll, justatnenlc con10 ensina a Pa-
bvra c.k~ Cri~to. ·
~1a~ voc(~s podcnl l(: r ct~rt.cza de urna coisa : c~se cn~
sínatnento de~ Cristo n~\o é un1a "n.:-co111ctHla<r·ào para os
perft,itos'', çon10 susten1a1n nossos sofistas blasfe1nos e
1nentirosos, ,na:-; urna pres<.·ri\·ào l:'Slrita para todo crjstào.
- - - . . - --~Lutero.- Sohre a. autoridade secular_ _ _ _ _ __
31
Vocês pt·n:l:hen1, cntúo, que Cristo não intt.:rpretou
~ua.s (pr<>priasl palavras con10 S<.~ abolissenl a Lei de Moí-
sl~s ou proihissern a autoridade secular. Ant<:s, ele n:Urou
Jo alcatH.'t~ desta últirna aqueles que são ~cus, <le n1odo
que dela n~)o flzessetn uso para ::;i pr6prios, rnas a deixa~-
se.tn para os de~crenlt.::-i, de que,n ele~ C'Onl efeito podt.·m
tratar por rncio de tais leis, un1a vel que os n::10 .. crist.Jo~
eft·tivatnente existern e ninguén1 pode se tornar u1n c.:rb-
tào verdadeiro pela cot·rção. Torna-se claro, porén1, que
as palavras <le Cristo sào dirigidas exclusivarnente aos
seus, quan<lo ele diz pouco adiante que eles devcrn arnar
seus ini1nigos e ser perfeitos, assirn con10 seu pai celes-
tial é perfeito lMt 5,4/4.48]. Todavia, urn hon1em que é per-
feito e an1a seu inirnigo deixa a lei para trás: não neces-
sita desta para cobrar olho por olho. Mas ele tan1pouco
estorva os não-cristãos, que não arnan1 seu inimigo e
~fetivan1ente querem utilizar a lei; ao contrário, o crbtâo
auxilia a justiça a capturar os maus, para irnpedi-los <le
corr1etcr atos ainda piores.
Ern minha opinião, é esta a rnaneira segundo a qual
as palavras de Cristo se reconciliam corn os textos que
institue1n a Espada. (J que elas significam é que os cris-
tãos não devern empr<:>gar a Espada ou a ela apelar para
si mesrnos e ern seu próprio interesse. Mas podem e
devem u~á-la e apelar a e)a no interef)se <los outros, de
modo que o n1al possa ser in1pe<lido e se confirn1e a jus-
tiça. É exatan1ente nesse sentido que o Senhor <liz, no
n1esmo trecho, que os cristàos não deverão prestar ju-
ramentos e que sua fala <leve ser sitn, sim e não, não (fv'ft
5,34 ss.l. Eni outras palavras, eles não devern jurar em seu
próprio nome ou por sua própria iniciativa e ínclinação.
f\1as, quando a necessidade, o benefído e a salvação {de
outr~)sl ou a glória <le l)eus assirn o exigirern, eles devetn
32
....-,..---- - -Lu!ero: Sobre a auton"dade seotlar~ - -
J.6. Gnnem e (= (,'emeinde), o tt-rmo ~é'n~rko Lk: LULt'ro p ;,ira uma n,k-1.i-
st·~,
\'J(.\;.i<.J,.: humanJ , ~•,-.tcl uma tongrc:.'ga,; .io. u ma parhq uia, uma d d .1 dc= <>tJ um
k ·.rriti',ri(~ p o lu w .11nc.: nh: ory_ani✓. :id, ) .
.B
---------- Sobre a autoridade s e c u l a r - - - - - --
Finahnente, vocês poderiatn perguntar: será que eu
n,1o poderia usar a Espada para mim mesmo e n1eus
próprios interesses, desde que não tenha em vista bene-
ficiar-n1e , mas simplesmente pretenda que o mal seja
punido? !vlinha resposta é que um tal milagre não é im-
possível, mas é muito incomum e perigoso27 • Pode acon-
tecer onde o Espírito estiver presente em sua plenitude.
Con1 efeito, le1nos em Juízes 15 (11] que Sansão decla-
rou: ''Assim como me fizeram, eu lhes fiz também." Mas
Provérbíos 24 [29] se pronuncia contra isso: "Não digas:
segundo me fez, assitn lhe farei." E também Provérbios
20 [22]: «Não digas: vingar-me-ei do mal." Sansão foi in-
cumbido por Deus de flagelar os filisteus e salvar os fi-
lhos de Israel. E, ainda que utilizasse seus interesses par-
ticulares con10 um pretexto para declarar-lhes guerra,
apesar disso não o fez para se vingar ou buscando van-
tagens próprias, mas para auxiliar [os israelitas] e punir
os filisteus. Todavia, ninguém pode seguir esse prece-
dente a n1enos que seja un1 verdadeiro cristão, preenchi-
do pe1o Espírito [Santo]. Onde quer que a razão [hun1a-
na comun1] queira fazer o mes1no, ela sem dúvida ale-
gará que não está buscando seu próprio benefício, mas
a afirmação será falsa de alto a baixo. Tal coisa é itnpos-
sív el sen1 a graça. Portanto, se vocês quiserem agir co1no
Sansào, tornem-se pritneiro sen1elhantes a Sansão.
27. Outra frase confusa . O sign ificado , imagino, é: tal coisa não é impos-
síveL m;i!ii tio rara a pomo d e ser quase um mjlagre . e alé m disso é p erigoso
a·iir desse modo.
34
· Segunda Parte
35
totna a seu cargo lcgbf,tr (:rn re·t;1<;üo à al,na. <:la invadt: fo
que pe,ttnc:c a] o governo d<; l)vuH e siolpk·sinerHt~ ~ ·duz
e faz perder as ahn(,s. Prt~tt:ndo tornar c~se ponto U]o ·fa-
ro, tio ~en1 a,nhigiiidade, que ninguénl possa deixar de
apreendê-lo, p,1ra que nossos senhores os príncipes e bis-
pos possarn percebl'r a loucura de tentar <:ornpelir à cn:n-
ça nisto ou naquilo por rneio de leb e ordens.
Se alguérn itnpuser as alrnas unw lei feita pelo horne1n,
obrigando à crença no que esse aJguérn quer que se t.1cre-
dite, provaveltnente não haverá palavra de l)eus para ju~-
tifícá-lo2A. Se não existir nada na Palavra de f)eus quanto
a isso, será duvidoso se é isso o que J)eus quer. Se e]e
n1esn10 n~1o ordenou a1gurna coisa, não há rneio de es-
tabelecer que esta lhe seja agradável. Ou, antes, podetnos
estar certos de que não lhe é agradável, pojs e)e quer que
nossa fé se baseie exdusivan1ente em sua divina Palavra;
con10 ele afirn1a e1n Mateus 18 [na verdade, 16)8]: "So~
bre esta pedra edificarei rninha igreja."n E tan1bém em
João 10 [27]: ''Minhas ovelhas escutam n1jnha voz e rne
conhecen1, mas não escutam a voz dos estranhos e fogern
deles." Segue-se disso que, corn suas ordens blasfernas, a
36
- - -- ----'--- luten>: Sobre a autu11dude w!cular ____.._______ -
,.
----~--·- - ....
,
38
_ _ _ _ _ _ _ 1,utero: S<hre a autoridade secular
---- ---
Outra n1aneira de captar esse pontó é a de que toda
e qualquer autoridade só pode agir, e só deveria agir,
onde possa perceber, saber, julgar, sentenciar e n1o<lifícar
as coisas. <2ue espécie de juiz seria aquele que julga às
cegas, ern assuntos sobre os quais não pode escutar nem
enxergar? Mas n1e <liga1n: como pode um ser humano ver,
conhecer, julgar e mudar os corações? Isso é da compe-
tência exclusiva de Deus. Como diz o Salmo 7 (10]: "Deus
sonda o coração e os rins. " 32 E também [S1 7,9]: "O Senhor
é o juiz dos povos" e Atos 10 [na verdade, 1,24; 15,8]:
"Deus conhece os corações. " E ainda Jeremias 1 [de fato,
17,9]: "Falso e inescrutável é o coração do homem. Quem
pode sondá-lo? Eu, o Senhor, que sondo o coração e os
rins." l Jm tribunal <leve ter um conhecimento exato do
que deve julgar, mas os pensamentos e as mentes das
pessoas não podem ser manifestos para ninguém à exce-
ção de Deus. Portanto, é impossível e fútil ordenar ou
coagir alguém a acreditar nisso ou naquilo. Exige-se aqui
uma habilidade diferente; a força• não vai funcionar. Fico
surpreso com esses lunáticos [379:], visto que eles pró-
prios têm um ditado: De occultís non íudicat ecclesia, a
Igreja não é juiz em assuntos secretos. Ora, se [até mes-
mo] a Igreja, o governo espiritual, apenas rege assuntos
que sejam púhJicos e abertos, com que direito a autorida-
de secular, em sua loucura, ousa julgar uma coisa tão se-
creta, espiritual e escondida quanto a fé?
Cada um deve decidir por sua conta e risco em que
deve acreditar e deve cuidar para que acredite correta-
mente. Outras pessoas não podem ir para o céu ou para
39
_ _ __ _ _ _ _ _ Sohre a autoridade secular --- - - - - - - - --
.33. Literalme nte: .. uma obra (ou ação) livre" ; um notá\·ef exemplo do
h á bito de Lutero J e !'-e expressar coloquial e d escuidadam e nte. uma vez que
o ponto central de sua teologia é. sem dú, ida, o de q ue a fé não é uma obra
ou açjo de quJ.lque r e..:;pécie, e sim uma d ~\di,·l livre m ente concedid:1 e
im<:n•çída .
34. A razào pd.;i qual Lutero cita Ago~tinho nesse c ontê XtO. altrn cL-. au-
wridadt> in ~ uala<l-a d e~te ú1tuno e ntr(;' os Padres (b lgrej'1 , no que dizi:1 res -
p(•ito :Jos rcfo rm.1dores, é que ele er-..t, de modo m.iis e·vidente e mais not0 no.
um.\ .auto rida<k pnxisarnente p:.ira a opindo qut> Lutt>ro está negJ.nd,.x Com-
p<'llt> i,t/mrt•. fon;á-las a enrrar lpara a l g rej~1].
tando. fiá n1uita verdade no ditado: o peni~trnento é livrt~.
(Jual o resultado de sua tentativa ern obrig;tr as pessoas
a acreditar en1 seus coraç-ôes?-~'\ Tudo o que conseguc1n é
ohrigar as pessoas de consciências fr:tgeis a 1nentir, a co..
n1eter perjúrio, a dizer u1na coisa enquanto ern seus cora-
çôes acreditan1 en1 outra. E desse n1odo [os governantes]
cunn1lan1 sobre si 111es1110s os revoltantes pecados con1etí-
<los por outros, porque todas as n1entiras e perjúrios pro-
feridos por tais [pessoas <le] frágeis consciências, quando
ditos sob coerção, recaen1 sobre aquele que as obriga a
fazer isso. Seria n1uito mais fácil , en1bora pudesse signi-
ficar deixar que seus súditos con1etessen1 erros, sitnples-
mente deixá-los errar, e1n vez de obrigá-los a 1nentir e a
declarar [con1 suas bocas] o que não acreditatn e1n seus
corações. E não é correto itnpedir utn ato rnau co1neten-
do-se outro ainda pior.
Vocês queretn saber por que Deus detern1inou que
os príncipes seculares deva1n fracassar dessa horrível rna-
neira? Eu lhes direi. [380:] Deus lhes <leu n1entes peiversas
e pretende acabar co1n eles, assiin con10 acabará con1 os
príncipes espirituais deles. Pois 1neus desgraciosos senho-
res, o papa e os bispos, deveriarn ser bispos-1<' [efetivos] e
pregar a Palavra de Deus. Eles, porén1, cessaran1 de fazê-
41
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade s e c u l a r - - - - - - - -
42
_ _ _ _ _ _ _ _ lutero: Sobre a auton"dade secular
-~------
que fizeran1 isso38 , quando é sua iniqüidade perversa que
lhes causou isto, e eles o n1ereceram e continuam a n1e-
recê-lo; os rornanos disseram exatamente a n1es111a coi-
sa quando forarn destruídos. E aqui vocês têm o julga-
n1ento de Deus sobre esses grandes homens. Mas eles
não o con1preendem, para que os graves desígnios de
Deus não sejan1 frustrados por seu arrependimento39 •
Mas vocês poderão replicar: em Ro1nanos 13 [1], São
Paulo não afirma: ''Todo ho1nem se submeta ao poder e
à superioridade"? E Pedro, que devemos nos sujeitar a
toda a sorte de instituição humana? [lPd 2, 13) Vocês es-
tão totalmente certos, e com isso trazem grão para n1eu
n1oinho. São Paulo está falando de superiores* e de po-
der*. Mas acabei de mostrar que ninguém ten1 poder so-
bre as ahnas exceto Deus. São Paulo não pode estar fa-
lando de obediência onde não existe poder [com direi-
to a obediência]. Segue-se que ele não está discorrendo
acerca da fé e não está dizendo que a autoridade mun-
dana deve ter o direito de comandar a fé. Ele está falando
acerca de benefícios exteriores, acerca de comandar e go-
vernar na terra. E ele torna claro que é disso que está fa-
38.
Nesse trecho, um conjunto de " ístos" e "issos" em livre flutuação
obscurecem o sentido pretendido por Lutero. Creio que ele quer dizer que
eles merect>m a destruição a que se refere a primeira parte do parágrafo. Tal
destruição, porém, evidentemente ainda nào havia ocorrido. de modo que,
presunúvelmente, Lutero tem em mente que eles iriio se queixar acerca dela
quando efetivamente ocorrer. A referência ao....:; romanos diz respeito às acusa-
<;'<\es que eles fizeram contra a cristandade, acusaçàt's que a Cidade de Deus,
<le Agostinho, teve pelo menos em parte o objetivo de refutar.
-39. Atrás dessa pass:a~em encontra-se a espinhosa doutrina de que De us
·
torna unp1c - <lo:s- p t:•çaJ·'"''.
· d osos os coraçoes ,..es, , de tal modo que eles acumulam _
culp.15 e assim merecem a punição et~rna qve lhes. e· 1m · fX.>Sta por ele· A diticul.--
.._ le t::· que isso
<w<. • . , n s•a· "t
r ~uece tornar 0 eus respo .. ·•J p•......Ja nuldade que d e suhsc-
4
·•
quentt•mt'nte •
"pune" . V. De Seno • · [A R'SfX:
Ar.1·>rtrw · "t·to u· 1a ,·onude
• e~crav1z::id.:1I.
·
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a auton'dade secular _ _ _ _ _ _ __
40. Preservei a tradução. feita por Luter o, do Ca.f:':.ar <la Vul~ata como
Kaiser( imf)êr-ador). p ois acredito que ele acolheu com prazer a an..1crônic:1 rc-
ft.·ri.-nda implícita ao $~1gr;:ido Imperado r Ro mano. Cf. nma 31.
_ _ _ _ _ _ _ /.utero: Sobre a au.ton·d ade secular_ _ _ _ -_ _ _
45
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade secular _ __ _ _ _ __
-H. Lutero aqui esr~ :idot:mdo uma ,·e1"$àO mai.s \.,iute!o.sa da. doutrina
escoi..btica concernente a ultra dres, segundo a qual um go\·eminte nlo dei-
.l ea de sê-to de\-ido à prática de atos ultra dres, mas de,·e si..mplesmente ser
47
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade secular _ _ _ _ _ _ __
43. Nessa frase e nas três seguintes, Lutero está contrastando Gell'alt,
que aqui é traduzido como ..força pura e simples" (embora Lutero também
utilize o t(.>rmo no sentido de .. poder" e "autoridade" [v. Introdução, p. XXVD,
e Recht, que pode significar ''o que é direito", "justiça" ou ~lei". LJma vei que
um tradutor é obrigado a fazer uma distinção em palavras expre~sas onde 0
autor nào fez distin\:óes. perde-se a continuidade verhal do original de Lute-
ro. V. Glossário: Lei.
48
vra Je l)eus, é u~ada t·untr;¾ elas. Pois (nes~e 'aso} as pc~-
soas p~utcnl do pressuposto de que a for,·a n:1o est:í st·n-
do usada ern prol da justi,,a e que aquclt·~ qut.: a utili1..a1n
est~10 agindo Je rnaneira inju~ta, preci~an1entt' porque cs-
tào jgincJo ~en1 a Pah.,v,J de Deus e não ronsegut.·n1 in1a-
gin,,r outro tneio de pron1over seus objelÍ\OS sen:to pt:b
for\a pura e silnples, c:01110 se fossern ani1nais dt:sprovi-
dos de raz~1o. !v1eslno en1 assuntos seculares a for(a n~1 o
pode ser en1prcgada, a n1enos que a culpa tenha sido an-
tes estabelecida con1 referência à lei. E é ainda 1nais irn-
possível utilizar a for~·a sern o direito e sern a Palavra de
Deus en1 tais assuntos elevados e espirituais [con10 a he-
resia]. Que espertos S30 esses príncipes! Pretenden1 ex•
pulsar a heresia , 1nas não conseguen1 atac3-Ja sen;':to con1
algo que lhe dá un1 novo vigor, colocando j si n1es1nos
sob suspeita e justificando os hereges. tvleu J111igo, se qui-
ser expulsar a here:.~sia, ent~1o antes será preciso descobrir
un1 hon1 111eio para desenraizá-la dos cora)·ôes e quebrar
seu donúnio sobre as vontades. E você não conseguirü
fazê-lo pelo uso da fon~~a; assirn só a torn~rá n1ais forte.:·.
Que sentido existe en1 refor's:ar a heresia nos coraçôes .
ainda que você a debilite exterionnente silenciando a voz
das pessoas ou obrigando-as a fingir? A Palavra de Deu~.
por outro lado, ihunina os cor~çôes e con1 isso toda he-
resia e todo erro <lesaparecer~1o por si rnes111os.
f: sobre esse n1eio de destruir a heresia que f~tlou o
profeta )saías quanoo profetizou (ls 11(4]): "Ele ferir~• a
terra con1 o bast~1o de sua boca, e con1 o sopro dos seus
tíbios tnatar~í o ítnpio." fj8,t] Vocês podt:n1 perceber. à
partir <.lisso, que sJo ~s palavr.ts que acuretar~1o a 11101te ~
a convers~1o dos iníquos. Ern resurno. tais príncíp<.·s e ll-
ranos nào pt..~cebe1n qut" cornbatcr a heresia é <.·01no con 1~
49
Sohrc> a autoridade se, ular _ _ _ _ _ _ _ _ __
50
· - - - - - lutero Sohrr (I autoriJfldc secular_ - --------- --____ ....,._ --
51
_ _ _ _ _ _ _ _ Sobre a autoridade secular _ _ _ _ __ __
Deus ter o livre trânsito que ela deveria ter, deve ter e
terá; vocês não conseguirão detê-la. Se houver heresia,
deixern que esta seja subjugada pela Palavra de Deus; é
assim que deve ser. Mas, se vocês co111eçarem a dese1n-
bainhar a espada em todas as ocasiões, cuidado com a
vinda de alguén1 que lhes dirá para entregare1n suas es-
padas, e não ern nome de Deus45 •
Mas se vocês fossem perguntar: con10 devem os cris-
tãos ser governados exteriormente, visto que entre eles
não deve existir Espada secular? [Certamente] deve haver
superiores* tan1bém entre os cristãos? Minha resposta é
que não pode nem deve haver superiores entre os cris-
tãos. Antes, cada um deles está igualmente submetido a
todos os demais, como diz São Paulo em Romanos 12
[10]: "Cada um deve considerar o outro como seu supe-
rior." E Pedro (lPd 5 [5]): "Revesti-vos todos de hu1nilda-
de nas relações n1útuas de uns para com os outros." E isto
é o que deseja Cristo (Lc 14 [10]): "Quando fores convi-
dado para un1a festa de casamento, ocupa o último lugar."
Não existe superior entre os cristãos, à exceção de Cristo.
E con10 poderia haver superioridade [ou inferioridade],
quando todos são iguais e têm o mesmo direito*, poder,
benefícios e honrarias? Nenhum deles deseja ser superior
a outro, pois todos querem ser inferiores aos demais.
Como algué1n poderia, ainda que o desejasse, estabelecer
superiores entre pessoas assin1? A natureza não admitirá
superiores quando ninguém quer ser ou pode ser um su-
perior. Mas, onde não houver pessoas desta [últin1a] espé-
·cie, tampouco haverá verdadeiros cristãos.
45. Acre<.üto que essa seja uma alusão às palavras de Cristo para Pedro no
jardim de GeL'>âmani, Mt 26,52; Lutero está dizendo que n:io será Cristo, e siJTI 0
homem comum, que dirá aos governantes para entregarem suas espadas.
sz
E quanto ao...; sac·erdotes e bispos? Seu governo nJo
é de ~uperioridadc ou poder, 1n:1s antes un, st:rviço e uin
oficio*. Isso porqut~ eles nüo estC10 e1n posi( ÜO rnais ele-
vada O\l rHelhor do que os outros crist~os·16, e conseqiicn-
tenK·ntt: n i)o dt:~ven1 itnpor leis e ordens aos outros sen1
o consent in,ento e a penniss:lo destes. Ao conrnírio, seu
governo nada .1nais é do que o fornento da Palavra de
})c us, orientando os crist:los e ven(:endo a heresia por
rncio dela. Corno se disse, os cristàos nào pode1n ser go-
vernados por nada que não seja a Palavra de Deus. Isso
porque os cristãos deven1 ser governados na fé e não por
~l(f)t•s t:xteriores, IHas a fé n ão pode vir por n1cio das pa-
lavras dos ho1nens, apenas pela Palavra de I)eus. Como
diz Súo Paulo eI11 Rornanos 10 [17}: ''A fé ve1n da prega-
ção e a prega<.,::1o é pela Palavra de l)eus." Aqueles que
não tf:tn fé nüo s~\o crist~1os e nã.o pertencern ao reino de
Cristo e sin1 ao reino do n1undo, para seren1 coagidos e
regidos pela Espada e {386:] pelo governo exterior. Os
c.:ristjos (por outro lado] fazem tudo o que é correto, sem
ncnhu1na coa(~<>, e tt?rn tudo de que precisarn na Pala-
vra de I)eus. Mas sobre isso já escrevi n1uito e co1n fre-
qüência en1 outros lugares.
Terceira Parte
53
- - - - - - - - Sohre a autoridade secular _ _ _ _ _ __ _ _
54
n~1o podctn pn.·v~\lecer diante da necessidade 18 • O prínci-
pe deve. portanto, con~erva r con1 finneza as leis sob seu
pré)prio controle t~, l con10 faz corn a Espada e usar sua
prúpria t~lZJo para julgar quando e onde a lei deve ser
aplic·.Hla t.'otn seu pleno rigor e quando deve ser n1ode-
rad~t. As~itn, a 1~1zJo pern1anece o governante en1 todos
os n1on1entos, a lei supre1na e <lon1inadora de todas as
lei~. I)o n1t~s1no n1odo, o chefe de un1a fanlÍlia se1n dúvi-
da detenninat~i horjrios e quantidades de trabalho e de
alin1t·nto para seus criados e seus filhos. Apes~1r disso, po-
rérn, ele deve conservar seu poder sobre essas regras que
estabeleceu, de 1nodo que possa n1odificá-las ou suspen-
dê•bs se por acaso os servos estiveren1 enfen110s ou foren1
aprisionados, detidos, enganados ou tolhidos de algu1na
1naneira. [387:J Ele n~'io deve ípor exen1plo] tratar con1 o
1nes1no rigor o doente e o indivíduo sadio. Digo isso para
que as pessoas n:.1o pensen1 que é un1a coisa valiosa, e su-
ficiente por si n1es1na, seguir as leis escritas ou o parecer
dos conhecedores da lei. É necess(\rio 111ais do que isso.
i\-1as o que un1 príncipe deve fazer se não for tão sá-
bio ou tão judicioso assin1, devendo portanto pennitir que
ele 1nes1no seja governado por hon1ens de leis e pela le-
tra da lei?'1-> Foi precisaruente cotn referência a esse as-
pecto que dedarei que o ofício• de príncipe está cercado
de perigos, e, se o príncipe não for suficienten1ente s5hio
5
para controbr tanto suas leis quanto seus conselheiros °,
• •,• .. -·..............
48. t :m dn:idn usado co,m1n-1t:ntt', com o rigem (?) no Dirt>ito Canôtu\~o:
/Jecrc•ttlfn ú'raliani Pt JI , cau:--a J qu 1, <.fü:t. ante can 39. pars VI: Quta enim
necc..,s..<;ilas nm1 haher legem, st'd ipsa slhifacit lt>~em .. . .
•t9. Pt.•nso qu<' ~ isto que .t.utt'J-O quer d1zt.·r. nus não po..;so g.1ra nt1-lo.
Ein ~ -u tc-xto f('-sc: '" pdos livn>~ dt' lds". Cf. Glo.ssj rio: Lei . .
:;o. l.utc-ro t~~ra• pre!'-urrundo.
· · P r-t
d<.' .1coi"t•Jo com uma ,·r·l l..
··1 -ada vt.::l mais
l
57
_ _ _ _ __ _ _ Suhre a auton·dade secular - - - - - - -
ofício para corn eles, l)eus não seria tão estrito a ponto
de invejá-los por seus bailes, caçadas e corridas. 1'ais prín-
cipes logo descobriria1n, porérn, que se devessen1 cuid~r
de seus súditos con10 exige seu ofício n1uitas danças, cor-
ridas e jogos terian1 de ser descartados.
Etn segundo lugar, un1 príncipe deve acautelar-se en1
relação àqueles vigorosos potentados, seus conselheiros.
Sua atitude para com eles deveria ser a de não desprezar
nenhutn deles, mas tan1hém não confiar em nenhun1 de-
les, pelo n1enos a ponto de deixar tudo a seu cargo. Pois
Deus não pode tolerar nem um nern outro [o desprezo ou
a confiança total]. Ele certa vez falou por intern1édio de
un1 asno, e portanto nenhum ser humano , por mais hu-
n1ilde que seja, deve ser visto com desprezo. Mas ele dei-
xou igualmente que o maior dos anjos caísse do céu, e
portanto não se deve confiar [totahnente] em homen1 al-
gutn, por mais sábio, piedoso e grande que possa ser.
.l\1as todos deve1n ser ouvidos, e o príncipe deverá espe-
rar para ver através de qual deles Deus falará e agirá. Isso
porque o n1aior dos males, nas cortes dos príncipes, se dá
quando urn príncipe entrega prisioneiro seu entendimen-
to aos grandes hon1ens e aos aduladores e omite-se de
supervisionar pessoalmente as coisas. Se um príncipe se
1nostrar carente nesse ponto, e perder ten1po, não apenas
urna pessoa mas toda a região sofrerá. E desse modo u1n
príncipe deve colocar sua confiança nos poderosos e dei-
xá-los agir, mas de tal n1odo que conserve as rédeas e1n
suas próprias n1àos. Ele não deve considerar-se seguro
e pennítir-se adorn1ecer, mas verificar por si n1es1no, cru-
zando seus territórios a cavalo (con10 fezJosafá) e vigian-
do seus governadores e juízes. Dessa maneira ele desco-
brirá por si n1esrno [389:l que ninguém é merecedor de
S8
_ _ _ _ __ _ Lutero: Sobre a autoridade secular_ _ _ _ _ __
59
t· port,HHO t;onpot 1co confia n~i o ,n1plera1nentt~ern você.
P< >i h dt·vv n \Os depos itar nossa con fían '6·~l t?xcf usí va rnen ~
h~ ti ll\ U0us.
<Jt1t~1H.. nhu1n pdncíp<.! inwgine ,4;er :;ua condirão 1ne-
lhor que a de J)~tví, o tnodelo para todos os príncipes.
Tinha ,~le u,n con~elheiro de no,ne Aquícoft~f, tüo s~hio
qtte, segtindo as Escrilurus, aquilo que Aquilofel dizia ti-
nha tanto peso quanln se o próprio [)eus rive~se :-,ido
r onsultado. E, no entanto, ele ,nergulhou t:1o haixo que
tr.tiu e lt:'ria niatado I )avi, seu próprio rei. E des~e rnodo
I)avi Leve de aprender que n,lo se devtt confiar ern abso-
hHarntnll: ningué1n. Por que hnagina,n que f)eus perrni-
tíu que u,n episódio üio assustador acontecesse e fosse
regi.strado, a nlerH>S que
fosse para alertar os príncipes e
governantes sohre 0 rnaíor dos perigos e infortúnios que
pode lhe,i., st1<..:eder e para en~íná-los a não confiar en1 nín-
guénl?"1 f~ usna coí'.<)a ignóbj{ quando os lbonjeadores rei-
narn nas cortes e quando os príncipes confiarn ern tercei-
ros e se cntregarn pri~ioneíros a estes, deixando-os agir
corno lhes apraz.
Vocês podem objetar, porén1, que, se não se pode
<.:onfiar crn pessoa algun1a, <le que modo um território e
seus habitantes dcvern ser governados? A resposta é que
vocês precharn a.~surnír o risco de atríbuír cargos a pes-
soa!-,, ruas não dcvern contar com elas ou confiar nelas,
rna.-, cxclu">iva,nente ern Deus. (390;} Vocês devem tratar
:..tqueles ao:-; quaLs conce derarn cargos con10 pessoas que
deve castigar e
os n1aus de tal modo que ·'ao apanhar a co-
lher ele nJo pise no prato e o quebre·~ e não afunde no
cao ~ to<lo o seu território e seu povo por causa de un1a
cabeça {u1na pessoa] e encha a terra con1 viúvas e órfàos.
Pela n1esn1a razão, ele não deve dar ouvidos àqueles con-
-elheiros e -soldados de gabinete que o en1purrariam • •'j~
62
_ _ _ _ _ _ _ _ Lutero: Sobre a autoridade secular_ _ _ _ _ _ __
63
()s súditos, por sua vez, devern obediência, ben1 corno
dedicar a isso suas vidas e propriedades17 • I~so porque,
nutn caso desses, cada um deve arriscar seus bens e até a
;jl n1.<:~mo, ern hcnefício de seu próxin10. E, ern tal guerra,
é urn ato crist;1o, e urn ato de arnor, matar ini1nigos sen1
hesitaçót~sJ saquear e incendiar e fazer tudo aquilo que
c·ause dano ao inimigo, segundo os usos da guerra, até
que ele seja derrotado. Cuidado, porérr1, com os pecados
e corn a violação de mulheres e donzelas. E, quando o
inimígo estiver derrotado, deve-se mostrar nüsericórdía e
garantir a tranqüilidade a todos aqueles que se rendere1n
e se submeterem. Em outras palavras, aja de acordo com
a máxima ''Deus ajuda o mais forte". Abraão agiu assitn
quando derrotou os quatro reis (Gn 14 (15]). Naturalmen-
te, ele matou muitas pessoas e não mostrou misericórdia
até que a vitória fosse sua. Um caso co,no esse deve ser
visto como algo enviado por Deus, de modo que, por essa
vez, a terra ficou livre de patifes.
Mas e se um príncipe estiver errado? Ainda assim os
súditos estarão obrigados a obedecer-lhe? Não, porque
ninguérn tem o dever de agir de maneira injusta; devemos
obedecer antes a Deus ( que deseja que a justiça prevale-
ça) que aos homens [At 5,29]. Mas e se os súditos n_ã0
souberem se seu governante tem uma causa justa ou in-
justa? Enquanto náo souberem e não conseguirem desco-
brir, apesar de terem feito todos os esforços para canto,
eles poderão obedecer sem risco para suas al n1as. Isso
. . . · · ~ e1n
porque, em tais casos, deve-se seguir a Lei de ~1oises
Êxodo 21 [13], em que ele escreve que um assassino que
........................ ··se
~7 - O sentido aqui requer algum ek·mento de ligação do gênero:
uma Rtlcrra pr<..'<.:' n cher todas essas precondições .. : ·. ·
64
---- Lutf:'ro: Sobre a autoridade secular _________
65
-------- Sohre a autoridade s e c u l a r - - - - - - - -
tará correta exterior e interiormente, agradável a Deus e
aos hon1ens. Ele deve esperar, porém, uma grande quanti-
dade de inveja e sofrirnento. Um hon1em tão nobre quanto
esse logo sentirá o peso da cruz sobre seu pescoço.
Para tenninar, um adendo en1 resposta aos que escre-
veratn tratados sobre restitution 58, isto é, a restituição de
bens injustamente adquiridos. Essa é uma tarefa para a
Espada secular, acerca da qual muito já se escreveu, mui-
tas vezes con1 desnecessária severidade. Mas apresentarei
rapidarnente a coisa toda e elin1inarei de um só golpe to-
das as leis e toda a severidade. Não se encontra lei para
isso, à exceção da lei do an1or. Se você for charnado a
decidir un1 caso en1 que uma parte deve restituir alguma
coisa a outren1, e an1bos são cristãos, a questão logo esta-
rá solucionada. Pois nenhuma das partes negará ao outro
o que é dele e tan1pouco o exigirá do outro. Mas, se ape-
nas un1 deles for cristão, a saber, aquele a quem é devida
a restituição, a decisão 1nais un1a vez será fácil, pois ele
não exigirá sua devolução. Igualmente, se quen1 deve de-
volver algo é o cristão, ele por certo o fará. Mas seja ou
não cristão qualquer um deles, é assirn que você deve de-
cidir. Se o devedor é pobre e não ten1 tneios de fazer a
devolução, ao passo que a outra pessoa não é pobre, você
deveria dar livre curso à lei do a1nor e desobrigar o deve-
dor. Pois a outra parte tan1bé1n se vê na obrigação, pela
lei do arnor, de perdoar o débito e até n1esn10 de dar n1ais,
58. Ern seu texto, Lutero havia deixado a palavra em latim, clJí o ele-
m1.:nto explicaUvo. O tópico era. e continuou a ser, um dos favoritos dos c.:.>S-
C~>lásricos, no rmalme nte tratado em comentários sobre Tomás de Aquino,
S~imma 77Jeo!op,fca. Secunda Securn.be, qu. 62 e qu. 78, e aqui é :i tais disn1$-
so<.:s qL11c• Lutero S" f ""' , l ·l '. . - ,
_ · " , it"rc . n<. u1a a controve1t1da questao de pedir emprc~r~~-
do OL1 c-mprestar dii',heiro a iuros.
66
- - - - - - - - - luteru. Sol>rt> a autondode _,;•c,dar _ __ __ _ _
67
partir <lo 601n senso livre, como se não existis~crn livros.
Mas é o arnor e ·a lei natural, corn os quais está repleta
toda a razão, que proporcionatn urn tal bon1 senso. I )o~
livros vên1 decisões opressoras e incertas. Deixern-n1e dar-
lhes un1 exen1plo.
Conta-se uma história a respeito do duque Carlos da
Borgonha. Certo nobre capturou seu inimigo. A nnilher
do cativo veio para pagar seu resgate. O nobre disse que
lhe entregaria o hornetn se ela dormisse com ele. A 1nu-
lher era virtuosa mas queria seu marido libertado, e por
esse motivo procurou o esposo e perguntou-lhe se deve-
ria fazer isso para conseguir sua libertação. O hotnem que-
ria ser libertado e salvar a vida, e o permitiu. Contudo, un1
dia depois de o nobre ter dormido com a mulher, ele or-
denou a decapitação do esposo e o devolveu morto à mu-
lher. Ela se queixou do sucedido ao duque Carlos, que
intirnou o nobre e ordenou-lhe que desposasse a n1ulher.
l)epois do dia das núpcias ele ordenou a decapitação do
nobre, colocou a mulher na posse dos bens do marido
e restaurou sua honra. Uma punição verdadeiramente
principesca para a peIVersidade.
Ora, nenhu1n papa, nenhum jurista e nenhum livro
poderiatn tê-lo ensinado a dar um tal veredicto. Antes, ele
se originou <la razão desacorrentada, que é n1aior que to-
das as leis nos livros; trata-se de un1a sentença tão justa
que todos se vêem obrigados a aprová-la e encontran1 es-
crito en1 seus corações que ela é correta. Agostinho escre-
ve a n1esn1a coisa em seu De sermone Dominí in mor1te.
E, portanto, a lei escrita deve ser tida e1n n1enor apreço
do que a razão, pois com efeito a razão é a fonte de todas
as leis, aquilo de onde elas brotam. A nascente não deve
· ser repriniida pelo córrego► e a razão não deve ser apri-
sionada por letras.
68