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A TESE DA IRREDUTIBILIDADE DO

NORMATIVO: Kant, Hoppe e a Guilhotina de


Hume

Diante de algumas confusões sobre a


chamada "Guilhotina de Hume" e a relação entre
a mesma e a ética da argumentação de Hoppe,
resolvemos fazer esse texto, extremamente
informal, para explicar:
A- O que de fato se quer dizer com a guilhotina
de hume;
B- O fato de que Hoppe ACEITA a limitação
metodológica da guilhotina de hume ao adotar o
método transcendental;
C- Como Hume de fato comete várias
contradições performativas como Kant mostra (e
Habermas, Apel e Hoppe acordam).
A guilhotina de Hume deve ser distinguida
da posição que Hume adotou para resolvê-la
(ceticismo humeano).
Hume acreditava, de acordo com a interpretação
mais corrente (existem controvérsias), que a
indução não possuía nenhuma justificativa
racional pois, para ele, ela era sempre derivada da
experiência de vários particulares para se chegar
a uma generalização — juízos sintéticos a
posteriori — sobre os mesmos. Como a
experiência é sempre contingente, ou seja,
podemos sempre imaginar ou conceber os
estados-de-coisas na realidade empírica como
sendo diferentes de como, de fato, são, ela não
traz consigo nenhuma necessidade de ser.
Analisando apenas (o erro que Kant vai
encontrar) a experiência da sucessão de
impressões sensórias, não encontramos também
nenhum vestígio da necessidade do princípio da
causalidade. O que ele chama de matérias de fato
não trazem consigo nenhuma necessidade, de
novo, porque são contingentes.
Já as relações de ideias (juízos analíticos a
priori) possuem uma “necessidade” trivial pelo
simples fato de serem verdadeiras, não por conta
da experiência de fatos contingentes, mas pela
relação semântica/sintática tautológica entre os
termos, como juízos da matemática e da lógica. É
importante lembrar que Hume não DERIVA sua
guilhotina de um fato empírico, por isso ele não
cai, da forma como algumas pessoas ignorantes
acreditam que ele cai, na própria guilhotina. Ela
está no campo da lógica. A distinção entre um
campo de ser e um campo de dever-ser é
estabelecida trivialmente através de um juízo
analítico baseado na investigação da diferença
entre dois tipos de raciocínio: dedução e indução.
Na dedução, a verdade da conclusão é
trivialmente alcançada por conta da relação
analítica (continência semântica) entre as
premissas. Na indução, a verdade da conclusão é
limitada na medida em que uma generalização
advinda de uma indução [todos os cisnes são
brancos] pode ser a qualquer momento falseada
por um único contra-exemplo [um cisne negro].
Acreditamos ser consenso que a mera observação
de vários fatos na realidade EMPÍRICA não
justifica a universalidade da generalização
indutiva que se segue — essa assimetria entre
dedução e indução já havia sido apontada por
Aristóteles.
O que isso tem a ver com a ética?
Simples. Hume acredita (e está errado,
como veremos) que não podemos encontrar
nenhuma necessidade na sucessão das
impressões sensórias que recebemos via
experiência. Da mesma forma, ele acredita que
não podemos encontrar nenhuma necessidade
(dever-ser moral — Hume irá apelar não para a
Razão, nem para o utilitarismo, e sim para o
emotivismo) em qualquer ética que se baseie em
considerações empíricas porque, para ele, a
experiência não é dotada de nenhuma
necessidade robusta, apenas as relações de ideias
possuem um dever-ser, o lógico, que é trivial —
em algumas interpretações, Hume nega inclusive
o dever-ser lógico: o que não é justificativa para
negar a coerência da separação entre o campo
normativo e descritivo até aqui e sim mais uma
justificativa para rejeitarmos o ceticismo pueril e,
nas palavras de Kant, escandaloso, no qual Hume
chega.
Pausa para algumas considerações:
O fato de Hume VALORAR as explicações que dá,
não é prova de que a distinção que faz — que já
pode ser encontrada de forma seminal em
Aristóteles, os céticos antigos e escolásticos –que
claro, resolvem esse problema apelando para
causas finais — está incorreta. Afirmar isso seria
uma falácia tu quoque. A questão é: realmente
existe essa assimetria entre dedução e indução?
Entre a necessidade trivial da lógica e da
matemática e a contingência de fatos empíricos?
Entre o campo do que deve-ser e do ser? Na
verdade, até mesmo os racionalistas
concordariam com Hume: não existe NADA na
experiência humana que contenha alguma
necessidade. Os racionalistas, tanto modernos
quanto clássicos, procurariam tal necessidade na
própria razão/intuição intelectiva/sensus
divinatis/e afins. O fato de Hume não encontrar
nenhum dever-ser na sucessão de suas
impressões sensórias decorre de que ele rejeita o
racionalismo radical em favor de um empirismo
radical inaceitável.
A distinção entre necessidade/contingência,
dedução/indução, dever-ser/ser é uma distinção
aceita pela maioria dos filósofos, mesmo que
apenas implicitamente. De fato, chamar essa
assimetria de “Guilhotina de Hume” é apenas
incluir o nome do pensador que mais enfatizou e
que mais utilizou, em sua crítica ao racionalismo,
a ideia de tal assimetria. Então não se deve pensar
que quem menciona o que se CONVENCIONOU
chamar de “Guilhotina de Hume” está aceitando
todo o resto da filosofia ingênua de Hume. Basta
percebermos que o juízo P “4 + 4 = 8” e o juízo Q
“todos os índios vivem em malocas” possuem
status modal distinto, o juízo analítico (para
Kant, sintético) a priori P é necessário enquanto
que o juízo sintético a posteriori Q é contingente,
e basta percebermos que nenhuma apelação a
fatos do tipo “humanos se organizam em
sociedade reconhecendo a posse exclusiva dos
outros” justifica a norma “humanos DEVEM se
organizar em sociedade reconhecendo a posse...”
ou mesmo que “humanos comem carne” justifica
“humanos DEVEM comer carne”. É simples.
Mesmo que o racionalista ou o empirista
moderado acreditassem que a
intelecção/experiência já vêm imbuídas de um
dever-ser presente, de alguma forma, na
realidade, eles ainda distinguiriam entre o
aspecto normativo e o aspecto factual de tal
intelecção/experiência. Para acalmar as
preocupações de quem acredita que o que
chamamos de “Guilhotina de Hume” tem alguma
coisa a ver ou nos compromete com qualquer
parte da filosofia de Hume, chamemos tal
distinção de “tese da irredutibilidade do
normativo”.
O que isso quer dizer? Quer dizer que todos
os filósofos que se preocuparam em pensar
notaram que existe uma diferença qualitativa
entre FATO e NORMA. Os modos como eles
justificaram seus sistemas normativos foram
variados: a norma podia surgir de Deus, da Razão
ou se poderia até mesmo negar que existe
realmente algo “autonomamente” normativo e
que normas são apenas valorações contingentes
baseadas no hábito/emoção (Hume) — percebam
que ele reconhece a assimetria para negar a
existência da outra parte: isso não é o que se quer
dizer por guilhotina, isso se chama CETICISMO.
O filósofo transcendental, Kant, irá enfatizar a
autonomia do normativo para justamente refutar
o cético. Não é à toa que Apel, Habermas e
Hoppe irão encontrar em Kant a refutação do
cético que, como veremos, comete várias
contradições performativas.
Segunda parte:
1) Como Kant aceita a irredutibilidade do
normativo,
2) Como Kant refuta Hume através do método
transcendental;
3) Hoppe aceita a Guilhotina de Hume, apelando
para o método transcendental para não cair nela.
Aqui não temos espaço para discutir
exaustivamente o porquê de rejeitarmos a
solução dos racionalistas clássicos, empiristas
radicais, moderados, céticos, niilistas, etc. para o
problema da irredutibilidade do normativo.
Mostraremos como Kant o resolve e refuta Hume
ao mesmo tempo.
A- Antes de mais nada, é preciso notar que
Kant em nenhum momento acredita que é errado
aceitar que existe uma assimetria entre fato e
norma, como todos os filósofos que conhecemos
aceitam explicita ou implicitamente. É a
constatação dessa assimetria que chamamos de
Guilhotina de Hume — a negação de que é
possível derivar normas de fatos EMPÍRICOS sem
apelar para alguma normatividade originária. A
Guilhotina de Hume não é a posição que o
próprio Hume acredita ser a solução para tal
problema.
B- Os detalhes de como Kant resolve o
problema (muito central para a sua filosofia, e
que serviu de inspiração para Apel, Habermas,
Sellars e Hoppe, dentre outros) são densos e
complexos, mas tentaremos resumi-los sem
entrar em muitos detalhes:
B1- Kant assevera que Hume está erradíssimo em
achar que na “sucessão de nossas impressões
sensórias” não há nenhum dever-ser. Na Crítica
da Razão Pura, Kant vai pela via descensional,
pressupondo (posteriormente provando) que
existem juízos sintéticos a priori e que eles não
são dados pela Razão, que é meramente
regulativa, e nem pela experiência, que nunca
pode nos dar nada de a priori. Os juízos sintéticos
a priori se fundam na unidade sintética da
apercepção transcendental, e toda sucessão do
múltiplo/diverso [manifold] na intuição é fruto
de uma síntese figurativa e intelectiva feita pelo
entendimento enquanto imaginação produtiva.
B2- Toda síntese feita pelo entendimento pode
ser entendida como regras transcendentais, como
condições necessárias para a possibilidade da
própria experiência. Então você tem as formas da
sensibilidade e do entendimento. Na Dedução
Transcendental, Kant “prova” que nenhuma
cognição é possível sem que se aplique tais
formas ao objeto apreendido.
B3- Para quem não entendeu nada, o raciocínio
simplificado fica assim: a FORMA, sendo o único
meio através do qual temos experiência, deve
abranger toda nossa experiência e ser, portanto,
universal (nesse sentido de abrangência]) e
necessária (não poderia ser diferente para seres
como nós). As categorias do entendimento são os
conceitos puros, e conceitos nada mais são do
que regras de aplicação. Quando Kant identifica a
origem da necessidade na forma, ele identifica
uma espécie de “necessidade” e “normatividade”
originária que se funda na unidade da auto-
consciência transcendental que torna a
experiência possível.
C- Agora vamos para Hoppe. Você não
precisa entender muito o que Kant queria fazer,
você só precisa entender que a estratégia que
Kant encontra para solucionar o problema da
irredutibilidade da normatividade apela para o
transcendental, ou seja, para aquilo que é
condição necessária para a possibilidade de algo.
Hoppe, da mesma forma, acredita que a
resolução do problema é transcendental, por
conta de uma inspiração kantiano-habermasiana.
Qualquer um que aceite uma metodologia
transcendental automaticamente aceita a tese da
irredutibilidade do normativo ao factual, ou seja,
aceita a Guilhotina de Hume (Hoppe é explícito
quanto a isso) pois aquilo ao qual o
transcendental se opõe é justamente o
factualmente empírico. Hoppe acredita que um
critério meta-ético para determinar a correção
normativa é se ela contradiz aquilo que é
condição necessária para a possibilidade da
existência daquilo que possibilita qualquer defesa
de qualquer posição para início de conversa: a
argumentação. Alguns dizem que Hoppe está
apenas descrevendo.
Acreditamos que é impossível haver
qualquer análise do normativo sem uma
metodologia de reconstrução racional (o que
Kant faz e o que Apel, Habermas e Brandom
adotam) que já parte do INTERIOR de uma
prática normativa e a DESCREVE em um meta-
vocabulário [Brandom] já normativo. Nossa
demonstração de que Hoppe falha nisso será
postada em breve. O fato é que Hoppe aceita a
Guilhotina de Hume e por aceita-la, sua posição
deve também ser avaliada de acordo com seu
sucesso em evita-la.
Dito isso, é preciso enfatizar que cair na
Guilhotina de Hume não é a única coisa que
invalida a ética da argumentação, temos alguns
artigos com outros argumentos em nossa sessão
“Libertarianismo e Debate Libertário”, linkada ao
final do texto.
Acreditamos que Hoppe, como alguém que
adota o método transcendental, reformularia sua
posição caso fosse convencido de que ela cai na
Guilhotina de Hume. É claro que alguém poderia
negar que existe uma irredutibilidade do
normativo ao factual, mas quem quer que fizesse
isso teria que nos dar uma explicação coerente de
como a assimetria entre a dedução/indução e
norma/fato pode ser diluída, caso não queira
acabar adotando a posição de que todos os fatos
DEVEM SER como são (ou seja, que o empírico
não é contingente), e de que toda generalização
indutiva possui a mesma necessidade modal que
uma dedução lógica.

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