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DIREITO CONSTITUCIONAL I

AULA 3 – NORMAS CONSTITUCIONAIS. APLICAÇÃO E


EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

3.1 NORMAS CONSTITUCIONAIS

Em uma primeira análise, “normas constitucionais” seriam aquelas que


integram o texto da Constituição, entre os seus artigos 1 a 250. Mas será que é
tão simples assim? Passemos ao estudo.

3.1.1 NORMAS CONSTITUCIONAIS DO TEXTO ORIGINÁRIO DA


CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição de 1988 foi redigida entre fevereiro de 1987 e outubro de


1988. Quando promulgada1, contava com 245 artigos.

Este texto foi escrito por 559 Constituintes. Como a Constituinte não foi
exclusiva2, todos os Constituintes eram também deputados federais ou
senadores eleitos pelos seus Estados, condição que continuaram ocupando
após a promulgação do texto.

Os Constituintes criaram dois tipos de normas constitucionais originárias: as


comuns e as cláusulas pétreas.

As normas constitucionais comuns são a imensa maioria do texto. São normas


de topo do ordenamento jurídico brasileiro, a que devem se submeter toda a
legislação nacional, de qualquer espécie. No entanto, e nisso se distinguem
das cláusulas pétreas, podem ser modificadas, acrescidas ou mesmo retiradas
do texto da Constituição pela atuação do Poder Constituinte Derivado, por
meio de Emendas Constitucionais (destas, trataremos abaixo).

Sobre as Cláusulas Pétreas Constitucionais, já mencionadas na aula passada,


voltamos a elas agora.
1
Promulgar uma Constituição é um ato do Congresso Constituinte, que a coloca em vigência em um
determinado país. Quando não há Congresso Constituinte e ela é imposta por um poder autoritário, diz-se que
ela foi outorgada.
2
Diz-se exclusiva a Constituinte para a qual os congressistas são eleitos apenas e tão somente para a escrita
da Constituição, dissolvendo-se o Congresso Constituinte com sua aprovação.
1
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Elas não são identificadas expressamente no texto constitucional, que se
limita a dizer sobre os assuntos relativamente aos quais elas versam, no texto
do artigo 60, §4º da Constituição:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a


abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.

As normas constitucionais que tratem desses assuntos não podem ser objeto
de revogação, ou de qualquer tipo de modificação que retire o seu
sentido.

Mas quais são essas normas, entre os artigos 1 a 250?

Como visto acima, não há identificação dos dispositivos, mas dos assuntos.

Alguns assuntos são facilmente identificáveis a dispositivos específicos, como


a forma federativa de Estado3 ao artigo 1º, caput. O voto direito, secreto,
universal e periódico, ao artigo 14, caput.

Mas os outros dois demais temas trazem mais discussão.

A separação dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) é tratada de


forma esparsa em todo o texto constitucional, não sendo fácil identificar
quanto uma nova norma apenas reforça o controle recíproco entre eles (o que
é benéfico e desejado) e quando rompe a separação entre eles (o que não é
admitido).

Relativamente aos direitos e garantias individuais, há também muita


divergência sobre o alcance.

Há consenso que tudo o que está no artigo 5º da Constituição está protegido


como cláusula pétrea.

3
Forma federativa de Estado é a divisão dos poderes deste Estado entre unidades de governo nacional, e
subnacionais (Estados e Municípios).
2
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Fora disso, há grande divergência, havendo decisões judiciais que consideram
tudo até o artigo 17 como cláusula pétrea (todo o título “Direitos
Fundamentais” da Constituição), o que incluiria os direitos sociais, os direitos
da nacionalidade e os direitos eleitorais.

E, por fim, há uma decisão do STF4 indicando o princípio da anterioridade


tributária5 como cláusula pétrea, mesmo ele não estando no artigo 5º da
Constituição ou mesmo no Título ampliado dos Direitos Fundamentais, que
vai do artigo 5º ao 17.

Todas as normas do texto originário da Constituição (cláusulas pétreas ou


não) devem ser consideradas como compatíveis entre si, cabendo à
interpretação harmonizar alguma divergência aparente.

3.1.2 O PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição brasileira tem um preâmbulo, um texto preliminar que anuncia


a sua promulgação. Trata-se de uma reflexão da Assembleia Constituinte
sobre seus próprios trabalhos e sobre a sociedade e o momento político em
que se encerraram os trabalhos.

Muito se discutiu se este texto tem valor normativo, ou seja, se uma lei
ordinária pode ser considerada inválida por contrariá-lo. O argumento
favorável a isso lembra que este texto foi devidamente aprovado pela
Assembleia Constituinte, tanto quanto o restante dos dispositivos do corpo da
Constituição. Uma segunda posição, um pouco mais moderada, é que ele não
traria normas exigíveis, mas uma orientação para interpretação daquelas a
partir do artigo 1º.

A questão foi solucionada pelo Supremo Tribunal Federal em 2002 (ADI


2.076-5), quando examinou a constitucionalidade do preâmbulo da
Constituição do Estado do Acre, que não faz referência à proteção de Deus. A
decisão da Suprema Corte foi que o preâmbulo não tem valor normativo,
pelo que as Constituições Estaduais (ou quaisquer outras normas) não
precisam se adequar a seus termos.

4
ADI 939
5
A impossibilidade de se cobrar ou aumentar um imposto no mesmo ano de sua criação/majoração
3
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Alguns autores de direito sugerem que ela deveria ser levado em conta como
diretriz para interpretação, mas, tendo em conta a decisão acima mencionada,
acreditamos que nem isso.

3.1.3 O ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS


TRANSITÓRIAS (ADCT)

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi promulgado junto com


o texto principal da Constituição de 1988.

Relativamente às normas que foram promulgadas junto com o corpo principal


da Constituição sua natureza também é a de norma constitucional originária e
comum (não há cláusulas pétreas ali).

O ADCT foi pensado como uma “ponte” entre o ordenamento jurídica da


Constituição de 1967 e o atual6.

Seu texto, que se encontra ao final das disposições permanentes da


Constituição de 1988, é uma verdadeira colcha de retalhos: há normas
exauridas (ou seja, que já cumpriram no tempo seu objetivo) e há normas que
se encontram ainda vigentes.

Inicialmente era composto por 70 artigos, hoje conta com 120. As inclusões e
alterações havidas posteriormente a 05 de outubro de 1988 têm natureza de
emenda constitucional, tipo que será estudado abaixo.

De transitório, o ADCT se converteu em um verdadeiro repositório de


normas constitucionais provisórias, ou seja, dispositivos normativos a que o
Congresso Nacional resolveu atribuir dignidade constitucional formal, com
prazo limitado de vigência (ainda que, às vezes, muito extenso).

3.1.4 AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

6
Ver o artigo “De transitório a provisório: a perenidade estratégica do ato das disposições constitucionais
transitórias”, de Eduardo Araújo Couto, publicado na Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR,
Vol. 6, n.2, disponível em https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/
209/196, acesso em 15 de agosto de 2022.
4
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O Congresso Nacional, no exercício do poder constituinte derivado, pode
emendar a Constituição.

Emendar a Constituição significa acrescentar, suprimir ou modificar textos da


Constituição que não se incluam entre as cláusulas pétreas.

Relativamente às cláusulas pétreas, há uma discussão sobre a possibilidade de


inclusão de novos dispositivos entre elas por meio de emenda constitucional.

Filiamo-nos à posição de Paulo Gustavo Gonet Branco, no texto “Cláusulas


Pétreas”, da Enciclopédia Jurídica da PUCSP7, segundo a qual apenas o
Poder Constituinte originário, por superior ao Poder Constituinte Derivado,
poderia instituir cláusulas pétreas, não havendo sentido em que o exercício
atual deste último imponha limites a si próprio no futuro.

O texto da Constituição de 1988 já foi emendado, entre outubro de 1988 e


agosto de 2023, 129 (!) vezes8.

As Emendas Constitucionais utilizam-se de duas técnicas para criação de


novas normas constitucionais.

A mais comum é a alteração/criação de novo texto no próprio corpo definitivo


da Constituição ou no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

No entanto, mais recentemente, elas têm passado a veicular novas disposições


constitucionais apenas e tão somente no texto da próprio Emenda, sem
incorporá-los no texto definitivo ou provisório da Constituição de 1988 9.
Reputamos isso uma péssima técnica, que rompe com a unidade
constitucional e torna a compreensão do conjunto das normas constitucionais
cada vez mais difícil.

As emendas à Constituição sujeitam-se ao controle de sua própria


constitucionalidade apenas e tão somente por confronto com as cláusulas
pétreas da própria Constituição. Esta é a posição do Supremo Tribunal

7
Disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/21/edicao-1/clausulas-petreas, acesso em 14 de
agosto de 2022.
8
As emendas podem ser consultadas em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/quadro_emc.htm, acesso em 09 de agosto de
2023;
9
A Emenda Constitucional 103/19, que trata de questões previdenciárias, é o exemplo mais evidente dessa
nova técnica, com dezenas de normas constitucionais não incorporadas nem ao texto definitivo da
Constituição nem ao ADCT
5
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Federal desde 199310, quando a questão lhe foi posta a exame pela primeira
vez.

Ou seja, se o texto de uma Emenda Constitucional é incompatível com


alguma cláusula pétrea, ele pode ter sua inconstitucionalidade declarada pelo
Poder Judiciário e deixar de ter aplicação. Se o texto da Emenda
Constitucional é incompatível com qualquer outra norma constitucional, ele
prevalece sobre aquela última.

3.1.5 O BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE

Na aplicação da Constituição de 1988, vem se firmando a ideia,


principalmente a partir da interpretação de seu artigo 5º, §§2º e 3º, de que a
Constituição não se resume exclusivamente ao texto constitucional, mas que
também deve incluir as decisões judiciais do STF que identifiquem princípios
delas decorrentes, bem como os tratados internacionais sobre direitos
humanos assinados pelo Brasil. Esta soma (texto + decisões do STF + tratados
de direitos humanos) resultariam no chamado “Bloco de
Constitucionalidade”, servindo qualquer dos seus elementos para futuros
controles da constitucionalidade das normas.

É preciso dizer que não se trata de uma ideia ainda unanimemente aceita,
embora ela seja cada vez mais posta em prática pelo Supremo Tribunal
Federal, por meio de suas decisões.

Deste modo, ideias como um “direito à busca da felicidade11”, ou que


“ninguém é obrigado a produzir prova contra si”12, ou “direitos mínimos das
minorias parlamentares13”,e mais recentemente, “racismo em sua dimensão
social”14, já foram utilizadas pelo STF para decisões como princípios
constitucionais não explícitos, conforme entenderam autorizados pelo artigo
5, §2º da Constituição.

As críticas a esta posição do STF concentram-se no excesso de poder que a


Corte se autoconferiu, de ampliar a interpretação do texto constitucional,

10
ADI 939, já mencionada em outro contexto acima.
11
Usadas nas decisões do STF nas ADPF 1232 e ADI 4.277 (uniões homoafetivas) e no Recurso
Extraordinário 898.060 (paternidade bioloógica/paternidade sociafetiva)
12
Habeas Corpus 119.941
13
Mandado de Segurança 26.441
14
ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão) 26/DF, que criminalizou a homofobia por
equiparação ao racismo. Voltaremos extensamente a ela em nosso curso, pelas inúmeras perspectivas de
estudo que ela proporciona.
6
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quando não incluir novos direitos no texto constitucional, sem a intervenção
do Poder Legislativo.

Quanto aos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos, sua


incorporação ao bloco de constitucionalidade é bem menos controversa,
estando bastante bem delineada no artigo 5º, §3° da Constituição, que define
também os requisitos formais para tanto.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem


aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Até o momento, os tratados que cumpriram todas as etapas, e podem ser


considerados incorporados ao texto constitucional são:

a) a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com


Deficiência, que entrou em vigor no Brasil em agosto de 2009;

b) o tratado de Marraqueche para facilitar o acesso a obras públicas às


pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para
ter acesso ao texto impresso, que entrou em vigor no Brasil em outubro
de 2018;

c) A Convenção Interamericana contra o Racismo, a discriminação racial


e formas correlatas de intolerância, que entrou em vigor em janeiro de
2022.

O texto destes acordos internacionais está disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/quadro_DEC.htm, acesso
em 09 de agosto de 2023. Importante destacar que são apenas estes que
cumpriram o requisito do artigo 5º, §3º da Constituição. O Brasil é signatário
de vários outros acordos internacionais relevantes, mas que, por não haver
cumprido as formalidades acima destacadas, não são considerados norma
constitucional.

Hierarquicamente, tratam-se de normas constitucionais, como já explicado


acima. Isso significa que não pode haver legislação ordinária ou atos
administrativos contrários a eles. É bastante controversa, no entanto, se seu
texto seria incorporado como cláusula pétrea ou não.

7
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3.2 NORMAS CONSTITUCIONAIS. APLICAÇÃO E EFICÁCIA

A atual Constituição Brasileira foi promulgada em 1988, três anos após o


encerramento do último período ditatorial ocorrido no país.

No momento de sua elaboração e subsequente promulgação, ela era percebida


como um marco fundamental para estruturar a redemocratização política do
país, por meio do restabelecimento e ampliação dos direitos aos cidadãos
brasileiros.

Mas, naquele momento, claramente era compreendida pelas forças políticas


que participaram da sua elaboração como um “marco de chegada”, como o
limite máximo do que poderia ser alcançado na esfera jurídica. Por isso, todos
os grupos sociais envolvidos esforçaram-se arduamente para estabelecer
naquele documento, de modo abrangente e com o maior nível de detalhe
possível, suas pretensões e objetivos nesta nova ordem político-jurídica que
ela viria estabelecer.

A Assembleia Constituinte convocada para sua elaboração durou um ano e


oito meses, sem a presença de uma força política hegemônica que tivesse uma
maioria evidente e coerente a controlar os assuntos que seriam tratados. O
resultado foi um texto longo, difícil de ser alterado (em geral mediante
maioria qualificada de 3/5 do Congresso, mas há extensas partes que sequer
podem ser objeto de emenda), mas com dezenas de dispositivos sujeitos a
posterior regulamentação por legislação ordinária.

Entre sua promulgação e os primeiros anos da década de 1990, o debate


acadêmico no Direito Constitucional Brasileiro, por seus principais autores
daquela época tinha por pressuposto os mesmos raciocínios que permearam a
disputa política durante a Assembleia Constituinte: o texto de 1988 era o
limite último do que fora concedido ao povo brasileiro, e mesmo em relação a
este texto haveria dúvidas severas sobre a eficácia de todas as normas
positivadas.

Neste sentido, destacamos a obra de José Afonso da Silva, que chegou


a desenvolver uma classificação extensa e algo bizantina das normas
constitucionais segundo sua eficácia, classificando-as empiricamente em
normas de eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada, de acordo com a
possibilidade de sua aplicação no mundo real.

8
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Mesmo autores reputados como mais progressistas, como Paulo
Bonavides, não alcançavam o conceito de aplicação plena e imediata da
totalidade da Constituição, limitavam-se a adaptar o conceito de Constituição
Dirigente do autor português Canotilho, indicando que todas as normas
constitucionais seriam eficazes, mas parte delas não seria invocável pelos
cidadãos como destinatários, mas se dirigiriam apenas ao legislador ordinário,
para que este tomasse as providências para sua implementação, sem maiores
esclarecimentos sobre o que aconteceria no caso em que este legislador
insistisse em ignorar o comando constitucional.

Retrospectivamente, vemos que os teóricos brasileiros de então praticamente


negavam a autonomia do Direito Constitucional em relação à política e à
economia.

Do ponto de vista institucional, a postura do Supremo Tribunal Federal,


tribunal que acumula as funções de corte de vértice e tribunal constitucional
no Brasil, não era distinta: nos primeiros anos seguintes à promulgação da
Constituição de 1988, a postura de seus integrantes era claramente de auto
restrição de seus poderes decisórios, com a preservação da historicamente
tradicional hegemonia do Poder Executivo na condução da vida jurídico-
política do país. Certamente contribuía para isso a circunstância de a Corte,
composta por 11 membros, ainda ter em sua composição naquele momento
histórico, 9 ministros nomeados durante o período de exceção militar 15,
composição que chegou a se recusar a declarar inconstitucional até mesmo
um confisco da poupança da população realizado pelo Governo Central em
199016.

Neste contexto, a conclusão que se impõe é que a doutrina e a prática


constitucional brasileiras no período imediatamente após a promulgação da
Constituição de 1988 permanecia quase no mesmo nível de
subdesenvolvimento em que se encontrava no período ditatorial que
antecedeu a mudança de regime jurídico-político: a questão central ainda era
dizer se direitos expressamente indicados na Carta tinham ou não eficácia,
eram ou não exigíveis. E como não se estabelecia com clareza sequer a
supremacia jurídica e social da Constituição já positivada, nem
longinquamente se pensava em se deduzir novos direitos do texto
constitucional, sendo expressões hoje corriqueiras, como “judicialização” ou
“mutação constitucional” inteiramente desconhecidas então.

15
Informação disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoMinistroApresentacao/
anexo/linha_sucessoria_tabela_atual_mar_2017.pdf. Acesso em 11.04.2017
16
ADI 534
9
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O ponto de inflexão desta postura foi a intensa crise econômico e política
ocorrida no Brasil entre 1991 e 1994: neste curto espaço de tempo o país foi
varrido por uma hiperinflação acompanhada de uma recessão profunda,
denúncias variadas de prática de corrupção por parte de agentes do Poder
Executivo e Legislativo, tudo culminando com o impeachment do presidente
eleito e o expurgo de mais de uma dezena de deputados.

Simultaneamente, o Poder Judiciário de primeiro grau expandiu


formidavelmente sua presença no primeiro grau de jurisdição, com a
contratação de novos juízes (que também eram juízes mais novos em idade,
formados já na democracia que sucedeu à ditadura) para novos órgãos
jurisdicionais.

Estes juízes, a partir do pressuposto teórico da supremacia formal e material


da Constituição de 1988 no ordenamento jurídico nacional, e interpelados
diretamente pelos cidadãos, pouco hesitavam em exercer os poderes que
acreditavam que a Carta conferia a eles: reconhecer e declarar
incidentalmente a inconstitucionalidade de ações e omissões dos Poderes
Executivo e Legislativo, tanto em nível local quanto em nível nacional,
independentemente da consideração de conveniências políticas ou
econômicas.

Paulatinamente, durante o correr da década de 1990 e o início da primeira


década do século XXI, com a adesão tardia porém decidida da Suprema Corte
Brasileira17, tanto na jurisdição constitucional difusa quanto naquela de
caráter concentrado, foi sendo estabelecido um novo padrão de
relacionamento entre os Poderes, em que a antiga auto restrição, e porque não,
reverência do Judiciário ao Executivo e Legislativo no Brasil, cedeu lugar às
tentativas do primeiro de impor aos outros o efetivo e integral cumprimento
da Constituição de 1988, mediante a “constitucionalização” de todas as áreas
do direito, em todos os conflitos relevantes.

Do ponto de vista metodológico, o que a Suprema Corte Brasileira fez foi


abandonar ideias que sustentaram seus votos por décadas, como a utilização
da subsunção exegética e o da completude do ordenamento jurídico, dogmas
que lhe reservavam apenas o papel de legisladora negativa.

17
Finalmente renovada de modo integral após a ditadura militar, com aposentadoria em 2003 do último
julgador nomeado durante aquele período de exceção, conforme
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfComposicaoMinistroApresentacao/anexo/
linha_sucessoria_tabela_atual_mar_2017.pdf. Acesso em 11.04.2017

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Sob alegações genéricas de estar agindo de acordo com as teorias do
“neoconstitucionalismo” ou “pós-positivismo”, que serão examinadas na
próxima aula, o Supremo Tribunal Brasileiro passou a combinar em suas
decisões doses variáveis pragmatismo, teorias da argumentação formuladas
por autores variados, e teorias relativas à integridade dos precedentes na
interpretação da Constituição. Seu veículo principal para conduzir esta
mudança completa de posição foi o amplo catálogo de Direitos Fundamentais
previstos na Constituição de 1988, redigido pela Assembleia Constituinte
como um conjunto de princípios vagos e indeterminados.

Suas decisões acerca do tema neste século XXI têm como ponto em
comum atribuir densidade a estes princípios, levando em conta as
transformações estruturais sociais ocorridas desde a promulgação da
Constituição de 1988, independentemente de qualquer nova intermediação
legislativa.

Este processo não foi isento de crítica por diversos atores sociais brasileiros,
que, no início deste século XXI, enxergavam algo de patológico nesta atuação
expansiva do Poder Judiciário a partir da interpretação expansiva do texto
constitucional, em processo denominado pejorativamente por vezes de
“judicialização da política e das relações sociais”, ou simplesmente de
“ativismo judicial”.

Afirmava-se que, na ânsia de se impor, o Poder Judiciário estaria


constantemente invadindo as atribuições dos demais Poderes, substituindo
inteiramente partidos e instituições políticas na mediação social e adjudicação
da cidadania.

Esta crítica havia se esvaziado completamente no início do século XXI,


quando o principal partido de oposição no momento imediatamente
subsequente à promulgação da Constituição de 1988, o Partido dos
Trabalhadores (PT) tornou-se governo. Como ele, quando na oposição, fazia
uso sistemático do questionamento judicial dos atos do governo da época, ao
assumir o Poder Executivo central não lhe restou nenhum argumento que
justificasse questionar coerentemente a intervenção do Poder Judiciário na
política e nas relações sociais, fosse a partir da iniciativa dos integrantes do
governo anterior, ora na oposição, fosse pela iniciativa direta dos cidadãos.

Somando-se a isso a desconfiança estrutural dos brasileiros em relação à


política tradicional, vista pela população, não de todo equivocadamente, como
corrupta e autocentrada, e alcançamos as condições ideais institucionais para

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um papel de protagonismo político do Poder Judiciário brasileiro na
sociedade nacional, capitaneado pela sua Suprema Corte.

No entanto, nos últimos tempos, estas críticas retornaram, principalmente por


parte do Executivo Federal entre 2019-2022, com a frequente afirmação de
que os juízes estariam a interpretar com demasiada liberdade o texto
constitucional, interferindo constantemente nos Poderes Executivo e
Legislativo, e, no limite, corrompendo o próprio texto da Constituição sob o
pretexto de efetivá-la.

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