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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS - PROFLETRAS

É falando que se escreve: a escrita como uma continuidade da fala

Disciplina: Práticas de Oralidade e Práticas Letradas do 6º ano 9º ano


Docente Responsável: Profa. Dra. Zilda Aquino
Aluna: Gisele Soares da Silva

São Paulo
2018
Introdução

Esse estudo foi realizado na escola EMEF Tenente Alípio Andrada Serpa,
localizada na DRE Butantã, zona oeste de São Paulo, com os alunos do 9º A e B,
porém, foram selecionados os textos apenas de uma aluna do 9º B para análise. O
trabalho consistia em solicitar aos alunos que gravassem um áudio sobre o evento Festa
das Nações, realizado na escola no dia 16 de junho de 2018, relatando o que cada um
contribuiu para a elaboração dos trabalhos, para a montagem das barracas, apoio no dia
da festa e os aspectos positivos e negativos observados.
Esse evento é realizado anualmente como Festa das Regiões, no qual a escola
seleciona uma região do país (Norte, Sul, Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste) para cada
ano (do 1º ao 9º ano) e os alunos, em grupos, realizam pesquisas sobre a cultura,
história, brincadeiras, comidas típicas, relevo, e produzem cartazes, maquetes,
bandeiras, artefatos, mapas, entre outros, que ficam organizados em barracas no pátio,
no dia da festa. Cada sala também seleciona músicas populares da região escolhida e
ensaia coreografias para apresentação.
Nesse evento, que ocorre no mês de junho ou julho, há brincadeiras e venda de
alimentos e bebidas para arrecadação de verbas para a APM (Associação de Pais e
Mestres) da escola, que serão utilizadas para a compra de materiais escolares, melhorias
na escola ou passeios para os alunos.
Este ano, em razão da realização da Copa, ao invés de serem selecionadas as
regiões do Brasil, foram escolhidos países que participariam da Copa, ficando as
barracas, no dia da festa, dividas em continentes, com os trabalhos realizados por cada
sala da escola. Os alunos do 9º B produziram pesquisas e atividades sobre o Japão.
Após a gravação pedi para que os alunos ouvissem os áudios e observassem as
transcrições realizadas pela professora. Muitos não gostaram dos áudios e das
transcrições, pois disseram que havia muitos “erros” e repetições de palavras,
manifestando até o desejo de gravarem novamente. Expliquei que não era necessário, já
que o objetivo do trabalho era justamente observar como a fala e a escrita são
organizadas, identificando que ambas são formas corretas de utilização da língua, como
discute Marcuschi (2001)
A perspectiva da dicotomia estrita tem o inconveniente de considerar a fala
como o lugar do erro e do caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da
norma e do bom uso da língua. Seguramente, trata-se de uma visão a ser
rejeitada”. (MARCUSCHI, 2001, p. 28)
Assim, após observarem as transcrições, os alunos elaboraram a primeira versão
do texto, eliminando as marcas da fala, depois realizaram uma segunda versão,
realizando novas alterações no texto, e, por último, uma terceira versão, para as
correções finais, após análises e comentários da professora.

A transcrição da fala

Dados da participante: V. D. R., 15 anos, sexo feminino.


Aluna do 9º ano do Ensino Fundamental II da EMEF Tenente Alípio Andrada Serpa,
rede pública municipal de São Paulo, localizada no Jardim Claúdia, zona oeste de SP.

A gravação ocorreu no dia 20/06/2018


Tempo de gravação: 1 minuto e 11 segundos

Oi... meu nome é V. D. sou do.... nono ano B e estudo no Tenente Alípio... eu vim falar
um pouco sobre o evento que realizamos no sábado... a Festa das Nações... Foi bem
le/GAL... as comi:::das...as pren:::da...o jeito que a gente organizou as
baRRA::::cas...e::: tudo mais...o que eu gostei bastante foi que...fizeram um::: um:::
bazar...onde a gente teve... uma competição...zinha... onde a gente levava as coisas...
fizeram um bazar vendendo as coisas me::: mais baratas pra quem tem menos
condições... ou até mesmo por/ só vender barato mesmo...o que eu::::.... menos gostei
foi que:::: não tinha o horário certo de cada aluno ficar na barraca... isso atrapalhava
bastante e acabava deixando os professores lá....tomando conta...fora isso foi
tudo...diverti:::do.... foi muito bom... as dança das crian:::ças da::: tarde e da::: manhã
tavam muito lindas... e eu acho que é isso

1ª versão do texto

Foi apresentada à aluna a transcrição da fala, explicados os significados dos


sinais registrados, e solicitado que ela deveria ouvir o áudio, observar a transcrição e
elaborar um texto escrito na norma culta, realizando todas as adequações necessárias a
esse procedimento. Com essas orientações, a aluna elaborou o seguinte texto:
Oi, meu nome é V. D., sou do 9º ano B, estudo no Tenente Alípio, eu vim falar
um pouco sobre o evento que realizamos no sábado, a festa das nações, foi bem legal, as
comidas, as prendas, o jeito que a gente organizou as barracas... E tudo mais. O que eu
gostei bastante foi que fizeram um bazar, onde a gente teve uma competiçãozinha, que a
gente levava as coisas, fizeram um bazar vendendo as coisas mais baratas pra quem tem
menos condições, ou até mesmo só por vender barato mesmo, o que eu menos gostei foi
que... não tinha horário certo de cada aluno ficar na barraca, e isso atrapalhava bastante.
E acabava deixando os professores lá tomando conta, fora isso foi tudo divertido, foi
muito bom... as danças das crianças da tarde e de manhã estava muito lindas, e eu acho
que é isso.

Observamos que a aluna elimina as pausas e introduz as pontuações, como


vírgulas e pontos finais.
Ela também percebe a falta de concordância nas palavras prenda e dança e as
corrige, ficando “as prendas” e “as danças”, inclui o “que” no lugar de “onde”, altera a
ordem sintática de “por só vender barato” para “só por vender barato” e o verbo “tava”
foi escrita como “estava”, porém, sem realizar a devida concordância “as danças das
crianças da tarde e de manhã estava muito lindas”.
Ela mantém algumas reticências, como sinal das pausas, o diminutivo
“competiçãozinha”, algumas expressões da oralidade, como “a gente”, “eu acho que é
isso”, “fora isso”, e repetições como “fizeram um bazar, onde a gente (...)” e “fizeram
um bazar vendendo (...)” e “a gente levava as coisas” e “(...) vendendo as coisas mais
baratas”.

2ª versão do texto

Após a primeira versão a aluna foi orientada a observar as repetições, as


utilizações dos pronomes, as concordâncias, e elaborasse uma versão mais formal do
texto. Segue o resultado desse trabalho, com destaque das mudanças em relação ao texto
anterior:

Boa tarde, meu nome é V. D., sou do 9º ano B, estudo no tenente Alípio. Eu vim
falar um pouco sobre o evento que realizamos no sábado, a festa das nações. Foi bem
legal, as comidas... as prendas, o jeito que nós organizou as barracas, e tudo mais! O que
eu gostei bastante foi que vizeram um bazar, onde tivesemos uma competição que a
gente levava as coisas... Fizeram um bazar vendendo as coisas mais baratas, pra quem
tem menos condições ou até mesmo só por vender barato. Oque eu menos gostei, foi
que não tinha horário certo de cada aluno ficar na barraca, isso atrapalhava bastante e
acabava deixando os professores lá tomando conta, fora isso foi tudo divertido, foi
muito boa, as danças das crianças da tarde e da manhã estavam muito linda.

Percebemos que houve um tratamento estilístico pela aluna, que selecionou


novos léxicos e estruturas sintáticas visando o aspecto mais formal do texto. A aluna
alterou o cumprimento “Oi” pelo “Boa tarde”, também substitui o pronome “a gente”
por “nós”, porém, sem a devida concordância “o jeito que nós organizou as barracas”.
Na tentativa de alcançar maior formalidade utilizou o verbo “tivéssemos”,
porém sem justificativa para o uso, já que também não há concordância “o que eu
gostei bastante foi que vizeram um bazar, onde tivesemos uma competição que a gente
levava as coisas...”.
Houve um trabalho mais elaborado com as pontuações, utilização de mais
pontos finais, a inclusão do ponto de exclamação “e tudo mais!” e mudança de
reticências e vírgulas.
Outra alteração foi a substituição do termo “competiçãozinha” por
“competição”, pois o diminutivo indicaria nesse caso uma informalidade, que não
deveria permanecer em um texto mais formal.
Houve também a mudança da frase final de “foi muito bom” para “foi muito
boa”, o que mostra a intenção de concordar com a palavra festa, que não aparece na
frase. Também foi realizada a concordância do verbo “estava” em “as danças das
crianças da tarde e da manhã estavam muito linda”.

3ª versão: texto final

Nessa última versão a aluna realizou novas mudanças, no sentido de torná-lo


ainda mais formal. Para essa produção a professora leu o texto com a aluna e ambas
apontaram sugestões de melhorias. Segue o resultado também com o destaque das
mudanças observadas em relação ao texto anterior:
Boa tarde, meu nome é V. D., sou do 9º ano B, estudo no Tenente Alípio. Eu
falarei um pouco sobre o evento que realizamos no sábado, a Festa das nações.
Foi bem legal, as comidas, as prendas, o jeito que nós organizamos as barracas, e
tudo mais! O que eu gostei bastante foi que fizeram um bazar, onde tivemos uma
competição que nós levava as prendas. Fizeram um bazar vendendo as prendas mais
baratas, pra quem tem menos condições ou até mesmo só por vender barato.
O que eu fiz na festa das nações foi a maquete do monte-fuji, cartaz sobre sobre
o monte-fuji, cartaz do haicai, ajudei a montar a barraca e ajudei no dia do evento. O
que eu menos gostei, foi que não tinha horário certo de cada aluno ficar na barraca,
porém atrapalhava bastante e acabava deixando os professores tomando conta.
Foi tudo divertido, foi muito boa a festa, as danças das crianças da tarde e da
manhã, estava tudo bem organizado.

A aluna na versão final introduz a paragrafação, a pontuação está mais


elaborada, não havendo mais a ocorrência de reticências. Ela reorganizou as
concordâncias “o jeito que nós organizamos as barracas”, “onde tivemos uma
competição”.
Realizou a mudança de “a gente levava as coisas” para “nós levava as prendas”,
alterando para o pronome “nós” e de “coisas” para “prendas”.
Na tentativa de uma maior formalidade incluiu a conjunção “porém”, mas de
maneira inadequada “(...) não tinha horário certo de cada aluno ficar na barraca, porém
atrapalhava bastante”.
Nesse texto explicita a expressão “a festa”, concordando a frase “foi muito boa
a festa” e acrescentou “estava tudo bem organizado”.
Houve a mudança do “eu vim falar” para “falarei” e a exclusão do “lá” na frase:
“e acabava deixando os professores tomando conta”.
Observamos também que ela incluiu um trecho que não existia no áudio original,
para atender a uma solicitação inicial da professora de relatar a contribuição de cada
aluno para o evento Festa das Nações: “O que eu fiz na festa das nações foi a maquete
do monte-fuji, cartaz sobre sobre o monte-fuji, cartaz do haicai, ajudei a montar a
barraca e ajudei no dia do evento”.
Análise
Ao analisarmos os textos realizados pela aluna verificamos que a escrita não se
opôs completamente à fala, mas houve uma progressão na utilização dos aspectos
informais para os mais formais, como salientam Fávero, Andrade e Aquino (2007)

Após estabelecer os tipos de operação efetuada pelos informantes ao


elaborarem o mesmo gênero de texto, nas modalidades falada e escrita,
podemos afirmar que as diferenças ou integrações entre as duas modalidades
ocorrem num continuum (e não num grau de oposição) que vai do menos
para o mais formal, como já salientamos. (FÁVERO, ANDRADE E
AQUINO, 2007, p. 90)

Os textos orais, então, não são textos caóticos, sem coerência, mas são
organizados de outra maneira, a partir de elementos como os marcadores discursivos, o
olhar, a gesticulação, o tom de voz, as pausas, os alongamentos, entre outros, que não
são registrados na escrita.
Houve, na versão final escrita da aluna, uma nova formulação do texto, com
acréscimos informacionais, substituições lexicais, inclusão das pontuações, da
paragrafação, entre outros, que destaca o fato de que a escrita não representa a fala, e
nem é superior a ela, mas são duas modalidades distintas pertencentes ao sistema
linguístico da Língua Portuguesa, possuindo diferenças, mas também semelhanças.
A aluna manteve algumas repetições de itens lexicais, sintagmas, orações ou
mesmo estruturas, mostrando que ainda não domina todas as normas da modalidade
culta da língua, mas que possui a noção da existência de um padrão que prima por
alguns elementos, como a concordância, por exemplo, que ela consegue utilizar em
algumas frases, como em “nós organizamos as barracas” e em outras ainda não, como
em “nós levava as prendas”.
Essa atividade mostrou a necessidade da continuidade da escrita de novas
versões do texto com a aluna, para melhorar ainda mais a sua produção, e se mostrou
como uma excelente ferramenta para o domínio da produção escrita pelos estudantes,
como destacam Fávero, Andrade e Aquino (2007)

O aprendizado das operações de transformação do texto falado para o escrito


coloca-se como imprescindível para o melhor domínio da produção escrita
que se tem evidenciado muito problemática entre nossos jovens estudantes.
(FÁVERO, ANDRADE e AQUINO, 2007, p. 83)
Conclusão

É necessário destacar que durante a atividade alguns alunos tiveram muita


resistência na gravação dos áudios, pois não se sentiam a vontade de falarem
espontaneamente, e diziam que preferiam entregar um texto escrito. Outros pediram
para escrever o texto primeiro e depois gravar o áudio lendo o que escreveram, e
ficavam muito desapontados quando a professora dizia que não era possível.
Após as gravações dos áudios muitos alunos pediram para que gravassem
novamente, pois estavam insatisfeitos com os resultados, já que percebiam muitos
“erros”, como faltas de concordâncias verbais e nominais, repetições, hesitações, entre
outros, e se sentiam constrangidos de apresentarem esses registros para a professora.
Essas manifestações mostram que as aulas de Língua Portuguesa são baseadas
primordialmente em textos escritos e os estudantes não possuem familiaridade com
atividades a partir de textos orais. Dessa forma, consideram a fala inferior à escrita,
preferindo organizar as suas produções em textos escritos, pois possuem a possibilidade
de uma maior reflexão sobre a língua para a elaborarem as suas produções.
Essa atividade, mostrou assim, a oportunidade de discutir com as turmas sobre a
utilização da língua em suas diversas modalidades, destacando o fato de que a passagem
do texto falado para o escrito não se pretende colocar ordem no texto oral, mas passá-lo
para uma outra ordem, como explica Marcuschi (2001)

(...) Em hipótese alguma se trata de propor a passagem de um texto


supostamente “descontrolado e caótico” (o texto falado) para outro
“controlado e bem-formado” (o texto escrito)”. Fique claro, desde já, que o
texto oral está em ordem na sua formulação e no geral não apresenta
problemas para a compreensão. Sua passagem para a escrita vai receber
interferências mais ou menos acentuadas a depender do que se tem em vista,
mas não por ser a fala insuficientemente organizada. Portanto, a passagem da
fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem de
uma ordem para outra ordem. (MARCUSCHI, 2001, p. 47)

Dessa maneira, foi necessário conversar sobre a organização da fala, que é uma
modalidade de uso da língua, com sua organização própria, que difere da escrita, mas
não está errada ou desorganizada, para que os estudantes pudessem se sentir tranquilos
para enviarem os áudios.
Essa atividade de textualização envolveu operações complexas, que interferiram
no sentido e na compreensão sobre a relação entre a oralidade e escrita e propiciou uma
melhor compreensão das regras formais da língua pelos alunos, a partir de suas próprias
decisões nas reformulações dos textos.
Assim, ficou clara a necessidade de o uso da língua ser o foco do estudo da
disciplina de língua portuguesa, em seus mais variados níveis da língua falada e escrita,
principalmente a partir da utilização dos textos falados pelos próprios alunos, conforme
orientam Fávero, Andrade e Aquino (2007)

É necessário mostrar como a fala é variada, que há diferentes níveis de fala e


escrita (diferentes graus de formalismo), isto é, diferentes níveis de uso da
língua, e que a noção de dialeto padrão uniforme é teórica, já que isto não
ocorre na prática. O professor precisa mostrar, também, que fala e escrita não
podem ser dissociadas e que elas se influenciam mutuamente. Precisa
valorizar a linguagem presente nos textos falados pelos alunos como ponto de
partida para a reflexão sobre sua língua materna. (FÁVERO, ANDRADE e
AQUINO, 2007, p. 116)

Esse estudo mostrou também que a língua não é simplesmente um conjunto de


regras, mas, como afirma Marcuschi (2001, p. 125) é “fundamentalmente um fenômeno
sociocultural que se determina na relação interativa e contribui de maneira decisiva para
a criação de novos mundos e para nos tornar definitivamente humanos”.
Referências:

LEONOR, L. F. ANDRADE, M. L. C. V. O. AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita:


perspectivas para o ensino de língua materna. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2003.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2ª ed. São


Paulo: Cortez, 2001.
Anexos:

1ª versão do texto:
2ª versão do texto:
3ª versão do texto:

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