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Nrcos PouLANTZAS

AS
CLASSES SOCIAIS
NO CAPITALISMO
DE HOJE

Tradução de
ANTONIO ROBERTO NEIVA BLUNDI

ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
Título original:
Le$ classes sociales dans le capitalisme aujourd'hui

Traduzido da primeira edição, publicada em 1974


por EDITIONS DU SEUIL, de Paris, França

Copyright © by Editions du Seuil, 1974

capa de
ÉRICO

Edição para o Brasil

1975

Direitos brasileiros adquiridos por


ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207, ZC-00, Rio
que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil
fNDICE
Advertência 7

INTRODUÇÃO
As CLASSES SoCIAIS E SUA REPRODUÇÃO AMPLIADA 11

A INTERNACIONALIZAÇÃO
DAS RELAÇÕES CAPITALISTAS
E O ESTADO-NAÇÃO

1. A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO E A DoMINAÇÃO DOS


ESTADOS UNIDOS . . • . . . • • . . • • • • • . • • . . . • . • • . • . . . • • • • . • • 45
1. A Periodização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
2. Os Sinais da Dominação do Capital Americano . . . . 54
3. A Socialização Internacional dos Processos do Tra-
balho e a Internacionalização do Capital . . . . . . 62
4. A Divisão Social Imperialista do Trabalho e a
Acumulação do Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
5. As Formas da Dependência Européia 70
II. o ESTADO NACIONAL .•••..•••••. ·- • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • 75
1. O Estado e a Questão da Burguesia Nacional . . . 75
2. O Estado e a Nação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
3. A Internacionalização e o Papel Eco:iômico do Estado 86
4. O Estado na Reprodução Internacional das Classes
Sociais . . . . _. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
III. CONCLUSÃO: A ETAPA ATUAL E SUAS PERSPECTIVAS • • • • 91

- AS BURGUESIAS:
SUAS CONTRADIÇÕES E SUAS RELAÇÕES
COM O ESTADO

1. A ·PosIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA .. .. • • • • • • .. . .. .. .. • • 97


II. As C.0NTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 116
1. O Capital Monopolista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
2. As Fases do Capitalismo Monopol.ista e as Modifi-
cações das Rélações de Produção . . . . . . . . . . . . . . 124
6 As CLASSES SOCIAIS No CAPITALISMO DE HOJE

3. As Contradições no Seio do Capital Monopolista 139


4. As Contradições entre Capital Monopolista e Capi-
tal Não-Monopolista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148
5. O Capital Não--Monopolista e a Pequena-Burgue-
sia Tradicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
--....... 6. As Contradições no Seio do Capital Não-Monopolista 166
...........
"-· III. Ü ~ADO ATUAL E AS BURGUESIAS 169
1. O Debate .. ,. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
2. Sobre o Papel Atual do Estado 178
"" IV. ÜBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 189
'',,, 1. A Questão dos Empresários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
·:·_':,_ 2. Os "Vértices" do Aparelho de Estado 198

A PEQUENA-BURGUESIA TRADICIONAL
E A NOVA PEQUENA-BURGUESIA

- 1. 0 PROBLEMA NA SUA ATUALIDADE TEÓRICA E PRÁTICA 209


1. Observações Gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
2. A Pequena-Burguesia Tradicional e a Nova Peque-
na-Burguesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
li. TRABALHO PRODUTIVO E TRABALHO NÃO-PRODUTIVO: NOVA
PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE OPERÁRIA • • • • • • • . • . . • • • . 227
III. Os CoMPONENTEs PoLÍTicos E IDEOLÓGICOS DA DETERMI-
NAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA • • • • • • • • 243
1. O Trabalho de Direção e de Supervisão . . . . . . . . . . 244
2. A Divisão TrabaLho Manual/T:i;abalho Intelectual: os
Engenheiros e Técnicos da Produção 249
IV. 0 PAPEL DA DIVISÃO TRABALHO INTELECTUAL/TRABALHO
MA.NU~ PARA O CoNJUNTO DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 272
V. A NOVA PEQUENA-BURGUESIA E A BUROCRATIZAÇÃO DO
TRABALHO INTELECTUAL •••••••.•••.••.•••••.••••••••• 295
VI. A NOVA PEQUENA-BURGUESIA E A DISTRIBUiiÇÃO DE SEUS
AGENTES ••••••.••.••••. . ••. •••.••. ••. •••••••. •••••• 307
VII. A DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA PEQUENA-BURGUESIA
TRADICIO·NAL •••••. ••. •••. •. . •••••••••••••••. •••••••• 311
VIII. o SUBCO:--l"JUNTO IDEOLÓGICO PEQUENO-BURGUÊS E A PO-
SIÇÃO POLÍTICA DA PEQUENA-BURGUESIA 313
IX. A SITUAÇÃO ATUAL E A QUESTÃO DAS FRAÇÕES DE CLASSE
DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 328
1. As Transformações Atuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328
2. As Frações de Classe da Nova Pequena-Burguesia . . 344
X. A SITUAÇÃO ATUAL DA PEQUENA-BURGUESIA TRADICIONAL 359

XI. CoNcIJusÃo: As PERSPECTIVAS POLÍTICAS 364


AD·VERTí~NCIA

Ao APRESENTAR ESTE TEXTO aos leitores, devo-lhes algumas infor..


mações preliminares.
1. Trata-se de uma série de ensaios que se refere principal-
mente às classes sociais, e em segundo lugar aos aparelhos de
Estado, na fase atual do capitalismo monopolista-imperialista.
Estes ensaios dizem respeito essencialmente· às metrópoles impe..
rialistas e sobretudo à Europa.
a) Estes ensaios não constitue1n, pois, uma teoria sistemática
dessas formações sociais e·m sua fase atual. Seus limites são im-
postos por razões objetivas: não se poderia recorrer a um pesqui-
sador ou militante, ou mesmo a urn "grupo" de pesquisado~es ou
militantes, para elaborar tal teoria. Esta só pode se-r o produto
das organizações de luta de classe da classe operária.
b) Se estes ensaios têm por objetivo principal as metrópoles
imperialistas, e principalmente as formações européias, é que estas
constituem um campo específico: é o que tento fundamentar desde
. . .
o pnmeiro ensaio.
2. O caráter parcial destes ensaios surge através dos objeti-
vos mais particulares aos quais se referem:
a) Eles tentam envolver as características gerais desta fase
e seus efeitos sobre as formações sociais em questão (primeiro
ensaio), as análises mais precisas relativas à burguesia (segundo
ensaio) e à pequena-burguesia, pequena-burguesia tradic~onal e
nova pequena-burguesia - denom.inada "novas camadas médias"
- (terceiro ensaio): enfim, estas análises referem-se sobretudo
ao inimigo e aos aliados potenciais da classe operária.
Estes ensaios não tratam diretamente da classe operária; no
entanto el~ está neles constantemente presente, sob duas formas:
8 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

1) pelo fato de que as análises referentes à burguesia, suas con-


tradições internas e sua relação atual com o Estado refletem a
permanência da contradição principal, isto é, a relação da bur-
guesia com a classe operária.; 2) pelo fato de que as análises sobre
. a pequena-burguesia, a nova pequena-burguesia principalmente,.
refere·m-se a traços que, ao mesmo tempo, a aproximam e a dis-
tinguem da classe operária, com referência, portanto, às caracte-
rísticas próprias da classe operária.
b) Estes ensaios, apoiando-se nas formas concretas da luta
de classe que se delineia atualmente, não se configuram como um
inventário ou exposição sistemática. Voltei-me mais para as de-
terminações objetivas dessas lutas, determinações estas que são fre-
qüentemente negligenciadas.
3. Deste caráter dos ensaios que se seguem decorrem outras
particularidades do texto:
Estes ensaios, sendo articulados entre si, apresentam, cada
um, uma unidade própria. Isso dá lugar a certas repetições inevi-
táveis. Certos conceitos e análises teóricas, presentes em um dos
ensaios, são por vezes lembrados, por vezes retomados e aprofun-
dados nos outros: trata-se principalmente do caso da relação entre
o primeiro e o segundo ensaio; conceitos e análises concernente·s,
por exemplo, à periodização do capitalismo e às modificações das
relações de produção acentuando seus estádios e fases, já presentes
no primefro, são retomados e sustentados no segundo.
Antes de sua inserção neste volume, somente uma parte da
Introdução (As Classes Sociais e sua Reprodução Ampliada) e o
primeiro ensaio (A Internacionalização das Relações Capitalistas
e o Estado-Nação) foram publicados. Esta parte da introdução
me foi solicitada originalmente pela CFDT, publicada pelo Bureau
de pesquisas e :E:studos Econômicos (BR~Ec) da CFDT (documento
mimeografado) e reproduzido em seguida em l'Homme et la So-
ciété (n. º 24-25, abril-setembro de 1973); o primeiro ensaio surgiu
em Les Temps Modernes (fevereiro de 1973). Entretanto, esses
dois textos foram consideravelmente modificados a partir das ob-
servações e críticas que então me foram feitas, e em consideração
ao conjunto deste volume.
4. Estes ensaios comportam ao mesmo tempo análises teó-
ricas e análises concretas. Optei por um plano, que me parece o
único certo, e que consiste em ligar estreitamente os dois na apre-
sentação. Não fiz apresentação preliminar de proposições teóri-
ADVERTÊNCIA 9

cas cujas análises concretas só seriam ilusfrações, mas introduzi


as primeiras no ritmo (gradativo) das análises concretas.
5. As análises concernentes à fase atual do imperialismo e
que tra1tam também de problemas mais gerais referem-se certa-
mente aos países dominados e dependentes. Mas, o objetivo prin-
cipal do texto sendo as formações imperialistas, e em particular
as formações européias, o material empírico refere-se essencial-
mente· a tais formações. Neste caso, a França re.cebe aqui um
tratamento privilegiado, se bem que suas diferenças em relação
às outras formações sociais em questão sejam marcantes. Nã9
significa que ela seria, pe1o menos sob todos os seus aspectos).
um cas.o exemplar: é, simplesmente, porque é aqui que se situa
minha experiência pessoal. Entretanto, é também evidente que
as análises que faço ·referem-se, em certas particularidades, ao
conjun1to destas formações e, sob certos aspectos, ao conjunto da
corrente imperialista.
6. Por um lado, em virtude: da complexidade e atualidade
dos problemas de que trato e, por outro, das razões que coman-
dam o caráter não-sistemático e parcial desta obra, as análises
aqui expostas são finalmente, a 1neu ver, proposições apresenta-
das para discussão e retificação. Elas não possuem nada de "defi-
nitivo'!', entre outras coisas, ponque não se trata de um texto
acabado, mas de análises abertas à crítica.
Isso explica igualmente o caráter crítico, às vezes mesmo
"polêmico", que freqüentemente assumem minhas próprias aná-
lises. Em vez de me calar sobre as diferenças e ocultar a coloca-
ção de problemas essenciais, preferi insistir nelas, na medida em
que somente a crítica faz avançar a teoria marxista. Isso significa
que as. críticas que faço, em pontos precisos, a certos autores não
tiram, a meu ver, o valor das análises que fazem em outros pon-
tos, análises estas que muito me ajudaram.
Enfim, para não prolongar 0 texto, e sendo muito vasta a
1

literatura marxista sobre os assuntos tratados, voluntariamente


limitei minhas referências ao estritamente· necessário.
7. Numerosos conceitos e análises teóricas aqui apresenta-
dos de maneira relativamente sin1ples e· diretamente concentrados.
em torno de problemas atuais, remontam às minhas duas obras.
anteriores: Pouvoir politique et Classes sociales (Maspero, 1968)
e Fascisme et Dictature (Maspero, 1970), onde· eles são funda-
mentados ,
e explicitados. Não acreditei que devesse retomar o con-
10 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

junto da demonstração, contentando-me em recomendá-las ao lei-


tor. Mas ce-rtas análises e formulações que nelas figuram, em par
ticular ·na primeira, foram retificadas e ajustadas no presente te.:v-
to: o leitor encontrará todos os desenvolvimentos teóricos nece"-
~ários, na obra e na ação das análises concretas.
INTROJDUÇÃO

AS CLASSJ~S so·cIAIS
E SUA REPRODlJÇÃO AMPLIADA
EsTAS OBSERVAÇÕES introdutórias não têm por objetivo constituir
a exposição de uma teoria marxista sistemática das classes sociais
preliminar às análise~ concretas en1preendidas nos ensaios que se
seguem: segundo a linha de exposição seguida neste texto, as aná-
lises teóricas serão intimamente articuladas às análises concretas,
sendo expostas no ritmo destas. Estas observações visam colocar
alguns alinhamentos e pontos de· referência muito gerais que fa-
cilitarão a leitura dos ensaios que se seguem, onde serão retoma-
dos e aprofundados. 1 ,.,

O que significam as classes sociais na teoria marxista?


(; '."(, 1. As classes sociais são conjuntos de agentes sociais deter-
minados principalmente, mas não exclusivamente, por seu lugar
1 Desenvolvo e preciso aqui análises principalmente sobrn Pouvoir
politique et Classes sociales, trazendo as retificações já iniciadas em Fas-
cisme et Dictature. Entretanto, mantenho ao mesmo tempo o quadro
teóriico e as análises essenciais. De fato, ainda que alguns de nossos tex-
tos tenham sido notados e funcioaado amplamente, como dependendo
.de uma "problemática" idêntica, desde o início existiam diferenças essen-
ciais entre alguns desses textos. Assim, no domínio do materialismo his-
tórico, diferenças essenciais já existiam entre Pouvoir politique de um lado
(e igualmente nos textos de Bettelheim, mas falo aqui somente em meu
nome), e por outro lado, no texto, marcado pelo economismo e pelo es-
truturalismo, de Balibar: "Les concepts fondamentaux du matérialisme
historique", em Lire le Capital (1966). As diferenças são agora bem
mais nítidas, tendo feito Balibar sua próprfa crítica, justa em alguns
pontos ("Sur la dialectique historique", em la Pensée, agosto de 1973).
Se o leitor a ela se referir perceberá facilmente que um grande número
de pontos sobre os quais se refere essa "autocrítica" de Balibar (a ques-
tão da luta das classes, o conceito de modo de produção, sua relação
com aquele de formação social, o conceito de conjuntura, a questão das
'i:1stâncias etc.} concerne preci~amente às questões sobre as quais já ex's-
t1am d1f'êrenças essenaiais entre nossos respectivos textos. O que significa
.que ma1:itenho quanto a mim, com certas modificações, as análises essen-
dais de m:nhas obras precedentes.
14 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

no processo de produção, isto é, na esfera econômica. De fato,


não seria preciso concluir sobre o papel principal do lugar eco-
nômico sendo este suficiente para a determinação das classes so-
ciais. Para o marxismo, o econômico assume o papel determinante·
em um modo de produção e numa formação social: mas o político
e o ideológico, enfim a superiestrutura, desempenham igualmente
um papel muito importante. De fato, todas as vezes que Marx,,
Engels, Lênin e Mao procedern a uma análise das classes sociais~
não se limitam somente ao critério econômico, mas se referem
explicitamente a critérios políticos e ideológicos.
2. As classes sociais significam para o marxismo, em um e
mesmo movimento, contradiçãies e luta das classes: as classes so-
ciais não existem a priori, corno tais, para entrar em seguida na
luta de classe, o que deixa SUJ~ __C}.!!e existiriam classes sem luta
das classes. As classes sociai~1brang~ as práticas de classe, isto
é, a luta das classes, e só pod encset ..colocadas em sua oposição.
1

3. A determinação das c:lasses, abrangendo práticas - luta


- das cfasses·--e- s·e e·sJendendo -às_r.elações políticas e ideológicas~
designa os lugares__objetivos oçupados pelos agentes na divisão so-
cial do- trabalho: lugares que s~io independentes da vontade desses
agentes.
Pode-se dizer, assim, que uma classe social define-se pelo seu
<~ fu~ar no conjunto das práticas sociais, isto é, pelo seu lugar no
conjunto da divisão social do trabalho, que compreende as rela-
ções políticas e as relações ideológicas. A classe social é, neste
sentido, um conceito que designa o efeito de estrutura na divisão
social do trabal_ho_ (as relaçpes soélals_e_ãs práticãs sociais). Este
lugar abrange assim o que chamo de determinação estrutural de
classe, isto é, a própria existência da determinação da e·strutura -
relações de produção'.: lugares:,.dle dominação-subordinação política
, .e ideológica - nas práticas d1e classe: as classes -só existem na
luta das classes.
4. Esta determif!ação estrutural das classes, que só existe·
então como luta das classes, deve, entretanto, ser distinguida d-à
posição àe classe na conjuntura: conjuntura que constitui o lugar
onde se concentra a individualidade histórica sempre singular de
uma formação social, e· enfim,. a situação concreta da luta das
classes. De fato, insistir na importância das -relações políticas e
ideológicas na determinação das classes, e no fato de que as çlasses.
sociais só existem como luta (práticas) das classes, não seria redu-
zir, de forma "voluntária", a determinação das classe~ à posição
INTRODUÇÃO: As CLASSES SOCIAis
• . J
15-

das classes: isso assume grande importância nos casos em que se


constata uma distância entre a determinação estrutural das classes
e as posições de classe na conjuntura. A fim de tornar isso mais:
claro, proponho desde· já um esquema simples, que será explici-
tado em seguida:

PRÁTICAS/LUTA DAS CLASSES

DETERMINAÇÃO ESTRUTURAL/ OON'J TJNTURA/


LUGAR DAS CLASSES POSIÇÃO DAS CLASSES

Cl.I IDEOLOGIA
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Relações de dominação/
subordinação ideológica
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r:n relações de exploração u
li.) r:::
!I) o
Cll
til Luta econômica u
u

a) Uma classe social, ou uma,Âração ou camada de classe,


pcxle não ter uma posição de classe correspondente a seus inte-
resses, eles próprios circunscritos pela sua determinação de classe
como horizonte de sua luta. O exemplo típico é a·:iuele da aristo-
cracia operária, que tem precisamente, nas conjunturas, posições
de classe burguesas.· Isso_ não significa contudo que '"ela se torne,
em tais casos, parte da burguesia: ela permanece, pelo fato de
sua determinação estrutural de classe, parte da classe operária,
constituindo uma "camada" da classe operária de acordo com os
próprios termos de Lênin. Por outro lado, sua determinação de
classe não se reduz à sua posição de· classe.
16 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

Mas tomemos igualmente o caso inverso: classes ou frações


·e camadas de outras classes além da classe operária, principal-
mente a pequena-burguesia, podem ter, em conjunturas concretas,
posições proletárias de classe ou que se aproximem da classe ope-
rária. Isso não quer dizer, contudo, que se tornem então parte da
classe operária. Para citar um simples exemplo: os técnicos da
produção têm por vezes posições proletárias de classe, tomando
eventualmente, em greves por exemplo, o partido da classe operá-
ria. Isso não significa que façam parte da classe operária, não
sendo sua determinação estrutural de classe redutível à· sua posi-
ção de classe. Mais ainda: em razão de sua própria determinação
de classe, esse conjunto toma por vezes o partido da classe ope-
rária, por vezes o partido da burguesia (posições burguesas de
classe) : mesmo que não se coloquem como parte da classe ope-
:rária cada vez que tomam o partido desta, os técnicos não se
·colocam como parte da burgue·sia cada vez que detêm posições
burguesás de classe. Reduzir a determinação estrutural de classe
.à posição de classe é abandonar a determinação objetiva doSi Iu..-
.gares das classes sociais por uma ideologia "relacional" de '~mo-
- .
vimentos sociais".
----
b) Pode-se bem observar que as relações ideológicas e polí-
ticas, isto é, os lugares de dominação-subordinação política e ideo-
lógica já se referem a uma determinação estrutural de classe; não
:se trata, pois, de um lugar objetivo que só diria respeito ao lugar
econômico nas relações de produção, só se encontrando os ele-
mentos políticos e ideológicos nas posições de classe. Não se trata,
segundo um antigo equívoco, de uma "estrutura" econômica que
designa, sozinha, de um lado os lugares, e de outro uma luta de
classes que se estende ao domínio político e ideológico: tal equí-
voco toma atualmente coni freqüência a forma de uma distinção
·entre "situação (econômica) de classe" de um lado, e posições
_político-ideológicas de classe por outro lado. A determinação es-
trutural de classe refere-se desde já à luta econômica, política
,e ideológica de classe, expressando-se todas essas lutas pelas po-
:sições de classe na conjuntura.
Isso significa igualmente que as análises aqui apresentadas
não têm nada que ver também com o esquema hegeliano, o da
classe em si (situação econômica de classe, determinação objetiva
<le classe unicamente pelo processo de produção), e o da classe
para si (classe dotada de.,uma "consciência de classe" própria e
<le uma organização política autônoma == luta das classes), ao
INTRODUÇÃO: As CLASSES SOCIAIS 17

qual Lukács, na tradição marxista, ligou seu nome. Isso implica


por sua vez:
a) que· todo lugar objetivo de classe no processo de produção
se traduz necessariamente por efeitos, no que concerne a esta
classe, sobre o conjunto de sua determinação estrutural, isto é,
igualmente· por um lugar específico desta classe nas relações polí-
ticas e ideológicas da divisão social do trabalho. Dizer, por exem-
plo, que existe uma classe operária nas relações ecooômicas impli-
ca necessariamente um lugar espedfico desta classe nas relações
ideológicas e políticas, mesmo que esta classe possa, em certos
países e em certos períodos históricos, não ter uma "consciência
de classe" própria ou uma organização política autônoma. Isso
significa que, em tais casos, mesmo que ela esteja_ f ortem~IJte Sº.!t
taminada pela ideologia burguesa, sua existência econômica tra-
duz-se por práticas polllzco-zdeoló içqS,,](l(/_(c_ria~- esiii:.cíJicas-:.1UJe
·s mam estam sob seu "d1scürso" bur uês: é o que Lênin desig-
nava, a ias -- escrr-1vamente, por i!!:§.!Êlfq_~_4~ ___ çlq§_se. É certo que,
para compreender isso, é necessário rompe: principalmente· com
toda uma concepção da ideologia como "siste.ma de idéias" ou
"discurso" coerente, e concebê-la como um conjunto de práticas
materiais. Tudo isso, que se configura erroneamente contra a
série de ideologias da "integração" da classe operária, quer final-
mente dizer uma coisa: que não _é absolutamente ne·cessª-.rio _1:1_1E..a
"consciência de classe_" Er~pr_ia_ e_ uma o_~g_anização polít!~~--3.:ll!.2-
noma das classes em luta para qi.'e a lute de .elasse.s tenha.lu.gar..e.m
&_âos os domínios _da regJidade social;
b) O que se entende por "consciência de classe" própria e
por orgànização política autônoma, isto é, do lado da classe ope~
rána, uma ideolo ia roletána revolucionár!~ ~--~ni±~-ifid_Q_ _au.tô-
nomo e uta de classe. tem como campo e ap1íca~Q-ª..q_u.fil....das.
osiçôes de classe e da conjuntura, constituindo as condições de
~!1 tervençaQ,_~as classes como _C!f'S_~~- ~ocz°:_zs. ----- -----·------------ -
5. O aspecto principal de uma análise das classes sociais é
bem aquele de seus lugares na luta das classes: não é o dos agen-
tes que as compõem. As classes sociais não são grupos empíricos
de indivíduos - grupos sociais - "compostos" pela adição desses
indivíduos. As relações desses agentes entre si não são, pois, re-
lações interindividuais. O pertencimento de classe dos diversos
agentes depende dos lugares de classe· que ocupam: é por outro
lado distinto da origem de classe - da origem social.-_ desses
agentes. A importância destas questões aparecerá nitidamente no
18 As CLASSES SOCIAIS N_O CAPITALISMO DE HOJE

problema da reprodução das classes sociais e de seus agentes. As-


sinalemos no momento:
a) que a questão pertine:nte que deve ser colocada na relação·
das classes sociais e de seus agentes não é aquela da classe a que
pertence este ou aquele indiv:íduo determinado (o que importa são·
os conjuntos sociais), nem aquela das fronteiras empíricas estatís-
ticas e rígidas dos "grupos sociais" (o que importa são as classes.
na luta das classes); ·
b) que a questão primeira, neste sentido, não é a das "desi-
gualdades sociais" entre grupos ou indivíduos: estas desigualdades·
sociais só são o efeito, sobre os agentes, das classes sociais, isto é,
dos lugares objetivos que ocupam, não podendo desaparecer a não·
ser pela abolição da divisão da sociedade em classes. Para com-·
pletar, não se trata, em uma sociedade de classe, de uma desigual-
dade ,de oportunidades dos "i'ndivíduos", o que deixa entrever se-
guramente que oportunidades existem e que elas dependem (ou
qu-ªse) somente deles, no sentido de· que os mais capazes e os me-
lhores poderiam sempre ultrapassar o seu "meio social".
-
6. O lugar nas relações econômicas detém, entretanto, o
pape1 principal na determina~;ão d_as_.cla~s sociais. O que se en-
tende na teoria marx~sta por(~~~nômico'~)
A--~~f..~:r_~ (ou espaço) econômica-e·· determinada pelo processo
de produção, e/o lugar dos agentes, sua distribuição em classes
·F~ sociais. pe1as relações de produção.
_""'S>-.r;,t•. ' l>-· Naturalmente, o econômico não compreénde somente a pro-
:'.'f!'·'l'· dução, mas também o conjunto do ciclo produção-consum0-repar-

tição do produto social, "mon1entos" que surgem, na sua unidade,


como aqueles do processo de produção. No modo de produção
capitalista, trata-se do ciclo global de reprodução do capital social:
capital produtivo - capital n1ercadorias - capital dinheiro. Mas,
nesta unidade, é a produção que detém o papel determinante.
A distinção, neste nível, das classes sociais, não é, por exemplo,
uma distinção baseada na grandeza das rendas, uma . distinção
entre "ricos" e "pobres", como acreditava toda uma tradição pré-
marxista, ou ainda hoje toda uma série de sociólogos. A distinção,
real, na grandeza das rendas, é somente uma conseqüência das
relações de produção.
Que significam o processo de produção e as relações de pro-
dução que o constituem?
. No processo de produção, encontra-se primeiramente o pr~
cesso de tràbalho, que designa, em geral, a relação do homem
INTRODUÇÃO: As CLASSES SOCIAIS 19

-com a natureza. Mas este processo de trabalho apresenta-se sem-


pre sob uma forma social historicamente determinada. Ele só é
constituído na sua unidade com as relações de produção.
As relações de produç-ª_o são constituídas, numa sociedade
dividida em classes, por uma dupla relação que engloba as rela-
ções dos homens cóm a natureza na produção mate·rial. As duas
relações são relações dos agentes da produção com o objeto e com
os meios de trabalho (as forças produtivas) e, assim, por tal dis-
torção, as relações dos homens entre si, as relações de classe.
Estas duas relações referem-se então:
a) à relação do não-trabalhador (proprietário) com o obje-
to e com os meios de trabalho;
b) à relação do produtor ünediato (ou do trabalhador di-
reto) com ~bjeto e com os meios de trabalho.
Estas duas relações comportam dois aspectos:
a) a propriedade econômica: significa o controle econômi-
co real dos meios de produção, isto é, o poder de afetar os meios
de produção para determinadas u t:ilizaçõe-s e dispor assim dos pro-
dutos obtidos;
b) a posse: significa a capacidade de dinamizar os meios
de produção, isto é, o domínio do processo de trabalho.
6. 1 . Em toda sociedade dividida em classes, a primeira rela-
ção (proprietários/meios de· produção) destaca sempre o primeiro
aspecto: são os proprietários que detêm o controle real dos meios
de produção e, assim, exploram os trabalhadores diretos extor-
quindo-lhes,_ sob várias· formas, o sobre trabalho.
Mas esta propriedade designa a propriedade econômica real,
o controle real dos meios de produção, e se distingue da proprie-
dade jurídica, tal como é consagra.da pelo Direito, que é uma su-
perestrutura. Evidentemente, o Direito ratifica em geral a pro-
priedade econômica: mas é possível que as formas de propriedades
jurídicas não coincidam com a propriedadei econômica real. Neste
caso, é esta última que permanece: determinante para a delimita-
ção do lugar das classes sociais, ou seja, .para aquela da classe
dominante-exploradora.
6. 2. A segunda relação, a dos produtores diretos - dos
trabalhadores - com os meios e com o objeto do trabalho, cons-
titui a relação que determina, \no seio das relações de produÇã°õ";)
a classe explorada. · - --
20 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Esta relação pode assumir várias formas, segundo os dif eren-


tes modos de produção.
Nos modos de produção "pré-capitalistas", os produtores di-
retos - os trabalhadores - não estavam inteiramente "separados"
dos meios e do objet<? do trabalho. Tomemos o caso do modo de
produção feudal: se bem que o senhor detivesse ao mesmo tempo·
a propriedaqe jurídica e a propriedade econômica da terra, o ser-
vo tinha a posse de seu pedaço de terra; encontrava-se protegido.
pelos costumes, e o senhor não podia despojá-lo pura e simples-
mente de seus bens: para que isso se fizesse·, foi necessário, na.
Inglaterra, por exemplo, todo um processo sangrento das enclo-
sures na transição do feudalismo para o capitalismo, que Marx
chamou de acumulação primitiva do capital. No caso desses modos
de produção, a exploração dominante se fazia pela extração dire-·
ta do sobretrabalho, sob forma por exemplo de corvéia ou de tri-
buto natural. Isso significa que a propriedade econômica e a posse·
se distinguiam naquilo em que ambas não dependiam da mesma
relação proprietários/meios de produção.
Em contrapartida, no modo de produção capitalista, os pro-·
dwtores diretos - a classe operária - são totalmente desprovidos·
de seus meios de trabalho, cuja posse pertence ao capital. É esta.
forma consumada de separação dos trabalhadores de seus meios de
produção o que· condiciona a aparição do que Marx chama de·
"trabalhador nu". O operário só possui sua força de trabalho, que
vende (força-trabalho). É esta modificação decisiva do lugar dos
prQº!JtQ@s diretQ.s nas _r_~]_l:!_çõ~-ª-~ ~ro~!!S'.ªQ___ _qq_e.__faz_c..Qm_ :.@~
próprio trabalho se torne uma mercadoria, isto é, que .det~rmina
a generalização da forma comercia]-· e-- não_o .inv:erso: o trabalho·
comoinercadoria não- é-oefeiú) aa.· generalização primeira --aàs
famosas "relações- éo.mercfais''~ -A-- exfração do sobretrabalho é
então feita aqui não diretamente·, mas indiretamente, por meio
do trabalho incorporado na mercadoria, isto é, pela criação e·
açambarcamento da mais-valia.
7. Pode-se então observar:
7. 1 . De um lado, que as relações de produção devem ser
apreendidas na articulação das relações que as constituem, e na
sua unidade com o processo de trabalho: é o que circunscreve a
relação de exploração dominante que caracteriza um modo de·
produção e que determina a classe explorada segundo tal relação
dominante. Não poderíamos somente nos ater à relação de pro-
priedade, designando, de alguma forma negativamente, como elas-
:.,
INTRODUÇÃO: As CLASSES SoCIAis 21

se explorada segundo esta relação dominante, todos aqueles que


não detêm propriedade econômica, isto é, o conjunto dos não-
proprietáriof A classe __e_~_Rlo_r_~g-~-- ~_egundo_~ relação (a classe
explorada fundamental: classe operária n_o mo o de produção ca-
pitalista) é aquela que efetiva o trabalho produtivo deste modo
de produção: assim, no modo de produção capitalista, nem todos
os não91proprietários são operários.
7. 2. Por outro lado, o processo de produção não é defini-
do por ç.lados "tecnológicos", mas pelas relações dos agentes com
os mei6s de trabalI?.o e, assim, entre eles, portanto, pela unidade
do processo de trabalho das "forç:as produtivas" e das relações
de produção. Os processos de trabalho e as forças produtivas, in-
clusive a "tecnologia", não existern em si, mas sempre na sua
relação constitutiva com as relações de produção. Não se pode
então falar, em sociedades divididas em classe-, de trabalho "pro-
dutivo" neutro e em si. É trabalho produtivo, em cada modo de.
produção dividido em classes, o trabalho que corresponde às rela-.
ções de produção de-ste modo, isto é, aquele que dá lugar à forma
específica e dominante de exploração. Produção, nestas socieda-.
des, significa ao mesmo tempo, e num mesmo movimento, divi---
são de classes, exploração e luta d·e classes.
8. Segue-se que, sobre o plano econômico, não é o salário i
que define a classe operária: o salário é uma forma de distribui- \
-çãõ" ..dõ jirodütõ · s-óciat, -ãDrangendo as relações de merc'!_çl-º-~-ªs· \
-ro-rmas do "contrato" de compra ~ ~J1Õã_Oã_f0rçã=frªbª".H10. Se· }
todo operário é assalariado:- todo assalariado não é -forçosamente-
um operário, pois todo assalariado nã·o é forçosamente um tra-
balhador produtivo. Se as classes sociais não são definidas no
plano econômico por uma divisão na escala das "rendas;' - ricosf
pobres - não o são também pela situação de seus agentes na
hierarquia de salários. Esta situação assume, certamente, o valor
de um indício importante da determinação de classe, sendo dela
somente o e/eito, como é aliás o caso do que geralmente se desig-
na como desigualqades sociais: a "divisão dos benefícios", a dis-
tribuição das rendas, a fiscalização etc. Assim como outras desi-.
gualdades sociais, a hierarquia de salários não constitui também
uma escala ou escada unilinear, contínua e homogênea, em pirâ-
mide ou degraus onde se- situarian1 indivíduos ou grupos, grupos
"superiores" aos grupos "inferiores": ela constitui o efeito das.
barreiras de classe;
22 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

8 .1. Em seguida, é preciso sublinhar que estas barreiras de


classe e sua reprodução ampliada têm como efeito desigualdades
.sociais específicas e concentradas em certos conjuntos de· agen-
tes, segundo as diversas classes em cujo seio estão distribuídos:
em especial, os jovens e os velhos, para não nos estendermos ain-
da mais sobre o caso, de uma outra natureza e muito mais com-
plexa, as mulheres. É porque, no caso das mulheres, não se trata
:simplesmente- de efeitos supradeterminados sobre elas da divisão
da sociedade em classes, porém, mais precisamente, de uma arti-
culação particular, no seio da divisão social do trabalho, .da di-
visão em classes e da divisão geral.
9. O processo de produção é pois composto da unidade do
processo de trabalho e das relações de produção. Mas, no seio
desta unidade, não é o processo de trabalho - induindo a tecno-
logia e o processo técnico - que detém o papel principal: são
as relações de produção que dominam sempre o processo de tra-
.balho e as forças produtivas, imprimindo-lhes seu traçado e seu
.modo de proceder. É esta mesma dominação das relações de pro-
.dução sobre as forças produtivas que dá à sua articulação a
forma de um processo de produção e reprodução.
9. 1 . É deste papel dominante· das relações de produção
sobre as forças produtivas e o processo de trabalho que decorre
'º papel constitutivo das relações políticas e das relações ideoló-
gicas na determinação estrutural das classes sociais. As relações
de produção e aquelas que as compõem (propriedade econômi-
ca/posse) traduzem-se sob a forma de poderes daí decorrentes,
e-m suma, pelos poderes de classe: comõ . 'faIS·,- 'esses poderes estão
·Constitutivamente ligados às relações políticas e ideológicas que
os consagram e os legitimam. Essas relações não se sobrepõem
simplesmente ·às relações de produção "já existentes", mas estão
presentes, sob forma específica em cada modo de produção, na
constituição das relações de produção. O processo de produção
,e exploração é, ao mesmo tempo, processo de reprodução das
relações de dominação/subordinação políticas e ideológicas.
9. 2. Isso implica finalmente que, nos lugares das classes
sociais no próprio seio das relações de produção, é a divisão so-
cial do trabalho, tal como se expressa pela' presença específica das
relações políticas e ideológicas no seio do processo de produção,
que domina a divisão técnica do trabalho: as conseqüências serão
amplamente observadas, principalmente na questão da "dire·ção e
INTRonuçÃo: As CLASSES Soc1A1s 23

supervisão" do 1 processo de trabalho, mas também naquela da de-


terminaç·ão de classe dos engenheiros. e técnicos da produção. Assi-
nalemos simplesmente que, considerando-se essas proposições
marxistas fundamentais, é que se· pode apreender o papel decisivo
da divisão "trabalho manual-trabalho intelectual" na determina-
.ção das classes sociais.
10. Eis o momento de lembrar a distinção fundamental
entre modo de produção e f armação social: só farei no momento
.algumas observações sumárias, pois esta distinção tem uma di-
mensão teórica sobre a qual vou me dedicar amplamente nos
.ensaios seguintes.
1O. 1 . Quando falamos de um modo de produção que é um
.objeto abstrato-formal, situamo-nos ainda em um nível geral e
.abstrato, se be-m que o próprio conceito de modo. de produção já
.abranja, como tal, ao mesmo tempo, as relações de produção,
.as relações políticas e as relações ideológicas: por exemplo, os
modos de produção escravista, feudal, capitalista etc. Mas estes
modos de produção só existem e se reproduzem em farmações
.sociais historicamente determinadas: a França, a Alemanha, a
Inglaterra etc., neste ou naquele momento do processo histórico,
tiveram formações sociais sempre originais porque objetos reais
- concretos e singulares.
Portanto, uma formação social comporta vários modos -
n1as também formas - de produção, em uma articulação espe-
cífica. Por exemplo,_ as sociedades capitalistas européias do prin-
cípio do século XX estavam compostas de elementos do modo de
produção feudal, da forma de produção comercial simples e da
manufatura - forma de transição do feudalismo para o capita-
lismo -, do modo de produção capit~lista sob suas formas com-
petitiva e···monopolista. Mas essas formações sociais eram bem as
formações capitalistas: isso significa que era este modo capita-
lista que dominava. De fato, em toda formação social constata-se
·o domínio de um modo de- produção, domínio este que produz
efeitos complexos de dissolução-conservação sobre os outros mo-
dos e formas de produção e que confere a essas formações sociais
·suas características (feudais, capitalistas etc.): à- exceção dos pe-
ríodos de transição no sentido estrito, caracterizados precisamente
por um "equilíbrio" particular dos diversos modos e formas de
·produção.
Voltemos às classes sociais. Se nos dedicarmos unicamente
aos modos de producão, cada um comporta duas classes, já pre·
24 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

sentes no co_njunto de sua determinação econômica, política e


ideológica: a classe exploradora, política e ideologicamente do-
minante, e a classe explorada, política e ideologicamente domi-
nada: senhores e escravos (modo de produção escravista), senho-
res e servos (modo de produção f eu dai), burgueses e operários
(modo de produção capitalista) .
Mas uma sociedade concreta, uma formação social, compor-
ta mais de duas classes, na medida em que ela comporta vários
modos e formas de produção. De fato não existe fo"rmação social
que comporte apenas duas classes. O que é exato é que as duas
classes fundamentais de toda formação social, por onde passa a
contradição principal, são aquelas do modo de produção domi-
nante nesta formação: a burguesia e a classe operária nas for~
mações sociais capitalistas.
10.2. As formações sociais não são, contudo, a simples
concretização ou espacialização dos modos e f armas de produção
existentes em sua forma "pura": não são o produto de seu
"acúmulo" espacial. As formações sociais, onde atua a luta de
classes, são os lugares efetivos de existência e de reprodução dos
modos e formas de produção. Um modo de produção não se reJ
produz e não existe como tal, e não pode também ser historica-
mente periodizado como tal. É a luta de classe·s nas formações
sociais que é o motor da história: o processo histórico tem como
lugar de existência essas f armações.
Conseqüências consideráveis decorrem da análise das classes
sociais: as classes de uma formação social não poderiam ser "de-
duzidas", em sua luta concreta, de uma análise abstrata dos mo-
dos e formas de produção que se encontram presentes, pois não
se encontram na formação social tais quais. Por um lado elas são
afetadas, na sua própria existência, pela luta concreta que se
desenvolve no seio da formação social: é principalmente aqui que
reside o fenômeno de polarização das outras classes e frações de
classe em torno das duas classes fundamentais, a burguesia e a
classe operária nas sociedades capitalistas, o que· provoca efeitos
decisivos e muito complexos sobre essas outras classes, mas tam-
bém sobre as duas classes fundamentais. Por outro lado, as classes
de uma f armação social só existem nas relações desta f armação
com outras formações sociais, e portanto nas relações das classes
desta farmação com aquelas das outras f armações. A isto se cha-
mou o problema do imperialismo e da corrente imperialista: im-
perialismo que, precisamente, como reprodução ampliada do capi~
INTRODUÇÃO: As CLASSES SOCIAIS 25

talismo, tem como lugar de existência as formações sociais e: não


o modo de produção capitalista enquanto tal.
1l . A teotiaJ!larxista das classes sociais distingue igual-
mente frações e camadas de classe, segundo as diversas cl:asses,
a partir de diferenciações no econômiGo e no papel, todo parti-
cular, das relações políticas e· ideológicas. Esta teoria distingue
també1n categorias sociais, deliniitadas principalmente pelo seu
lugar nas relações políticas e ideológicas: é o caso para a buro-
cracia de Estado, delimitada pela sua relação com os aparelhos
de Estado, e para os intelectuais, definidos pelo seu papel de ela-
boraçião e de realização da ideologia. Essas diferenciações, para
as quais a referência com as relações políticas e ideológicas é
sempre indispensável, tem uma grande importância, pois estas
fraçõ<!s, camadas ;e categorias podem freqüentemente, segundo as
conjunturas concretas, assumir um papel de forças sociqis rela-
• A W

t1vam.ente autonomas.
Isso não significa que se trate, contudo, de "grupos sociais"
exteriores, ao lado ou acima das classes. As frações são frações
de class.e: a burguesia comercial, por exemplo, é uma fração da
burguesia; também a aristocraciia operária é uma camada da
classe- operária. As próprias categorias sociais têm um pertenci-
mento de classe: seus agentes dependem em geral de várias clas-
ses SOClaIS. '
Encontra-se aí um dos pontos essenciais de diferença entre
a teoria marxista e as diversas :ideologias da estratificação social,
ideologias dominantes na sociologia atual: segundo estas, as clas-
ses sociais - todos os sociólogos atuais admitem sua existência
- só seriam uma das classificações, parcial e regional (r·ef eren-
tes, sobretudo _e unicamente, ao nível econômico) de uma estra-
tificação----mais geral. Tal estratificação daria lugar, nas relações
políticas e ideológicas, a grupos sociais paralelos e exteriores às
clas~.es, 'os quais a ~las se superporiam. Max Weber já demons-
trara o caminho, e só resta assinalar as diversas correntes das
"elites" políticas.
.. 12 . A articulação da det~:rminação estrutural de classe e as
püSÍ·ÇÕes de classe no seio de mma f OJ]!l~ão SOClai, lúgar (}e exis-
tência das conjuntu.ras, requer conceitÕs paitfC1:Jlaies. Tr.ãta.:se
daquilo que chamarei de conceitos de estratégia, abrangendo
principalmente os fenômenoS<je polarização e de alianças de
classes. É entre outros o caso, ao lado da dominação de. classe·,
do conceito de "bloco no podér", designando uma alianç;a espe-
26 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

cífica das classes e frações de classe dominantes; é também o


caso, ao lado das classes dominantes, do conceito de "povo", de-
~ignando uma aliança específica destas. Esses conceitos não têm
o mesmo estatuto qu~(!_qµ~les ..cru~_ f.Qrfün trªtadQS___a1~-~_ql!_i: uma
. êlasse, frãçao--õu .cãinada pode ou não, segundo as f armações
sociais, seus estádios e fases e suas conjunturas, fazer parte do
bloco no poder, e pode ou não fazer parte do povo. Mas isso
indica também que essas classes, frações ou camadas, fazendo
parte das alianças:; não perdem absolutamente, neste caso, sua
determinação de classe dissolvendo-se num amontoado indistinto
de alianças-fusões. Para citar somente o exemplo do povo, as
classes e frações que dele- fazem parte mantêm sua própria deter-
minação de classe: quando a burguesia nacional faz parte do
povo, permanece entretanto burguesia (contradições no seio do
povo) ; estas classes e frações aí não se dissolvem, como deixaria
entrever certo emprego idealista do termo "massas populares",
ou o próprio termo "classe dos assalariados".

II

13. Pode-se agora colocar a questão dos aparelhos, princi-


palmente dos ramos e aparelhos de Estado, e a de sua relação
com as classes sociais. Só indicarei aqui certos papéis dos apare-
lhos de Estado na existência e reprodução das classes sociais.
'
13 .1. Ds aparelhos de Estado têm como principal papel a
manutenção da unidade e a coesão de uma formação social que
concentra e consagra a dominação de classe, e a reprodução,
assim, das relações sociais, isto é, das relações de classe. As rela-
fções políticas e as relações ideológicas se materializam e se-en-
:carnam, como práticas materiais, nos aparelhos de Estado. Es-ses
aparelhos compreendem de um lado o aparelho repressivo de
Estado no sentiqo estrito e seus ramos: exército, polícia, prisões,
magistratura, administração; de outro lado, os aparelhos ideoló-
gicos de Estado: o aparelho escolar, o aparelho religioso - as
Igrejas -, o aparelho de inf armação - rádio, televisão, impren-
sa -, o aparelho cultural - cinema, teatro, edição -, o apa-
relho sindical de colaboração de classe e os partidos políticos
burgueses e pequeno-burgueses etc., e enfim, sob certo aspecto,
e pelo menos no modo de produção capitalista, a família. Mas,
além dos aparelhos de Estado, encontra-se também o aparelho
econômico no sentido mais estrito, "a empresa", ou a "fábrica",
INTRODUÇÃO: As CLASSES Soc1A1s 27

que, como centro de ap{Opriação da na~ureza,: materializa e ~n­


carna as relações econômicas em sua artlculaçao com as relaçoes
político-ideológicas.
13. 2. Na medida em que a determinação das classes apela
para as relações políticas e ideológicas, e só ~x~stem materializa-
das nos aparelhos, uma análise das classes sociais (lutas das elas~
ses) só pode ser realizada em suas relações com os aparelhos., .e
principalmente com os aparelhos de Estado. As classes sociais
e sua reprodução só existem pela relação classes sociais/apare-
lhos de Estado e aparelhos econômicos: tais aparelhos não se
"sobrepõem" simplesmente, como apêndices, à luta das classes,,
mas detêm um papel constitutivo. Todas as vezes, principalmen-
te, em que se procede à análilse das relações políticcrideológicas,
da divisão trabalho manual-trabalho intelectual para a burocra-
tização de certos processos de trabalho e para o despotismo de
fábrica, estará presente o exmme concreto_..,.dos aparelhos.
13. 3. Isso inão ·significa - observação que é decisiva em
razão das ambigüidades atuais de numerosas análises em torno
dessas questões - que, na relação complexa luta de classes/apa-
relhos, é a luta das classes que detém o primeiro e fundamental
papel. Os aparelhos são apenas a materialização e condensação
das relações de classe; de alguma forma, eles as "pressupõem",
Kcando evidente que não se trata de uma relação de causalidade
cronológica (a galinha ou o ovo). Com efeito, segundo uma cons-
tante da ideologia burguesa das "Ciências Sociais", e que se pode
designar descritivamente como a corrente "institucionalista-fun-
cionalista", são os aparelhos-instituições que determinam os gru-
pos sociais (as classe·s), as rela·ções de classe decorrentes da situa-
ção dos agentes nas relações :institucionais. É essa corrente que
testemunha sob formas específicas o binômio idealismo-empiris-
mo, encoberto por aquele de humanismo-economismo, próprios
da ideologia burguesa. Encontramos este caso principalmente em
Max Weber: são as relações de "poder" que têm como conse-
qüência as relações de classe, I'elações de "poder" que possuem
como campo e primeiro lugar de constituição as relações no inte--
rior de instituições-associações de tipo "autoritário" (Herrschaf ts-
verbiinde). Esta linhagem ideológica (aprofundando um pouco
mais, é sempre Hegel que encontramos) tem repercussões con-
sideráveis, até nas questões mais concretas, estando sempre pre-
sente no conjunto da Sociologia acadêmica sob a forma atual-
mente dominante da "teoria das organizações"; isso não se refere
28 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

somente aos aparelhos de Estado, mas também ao próprio apa-


relho econômico (a questão da "empresa"). /
13. 4. Pode-se assim delimitar a relação, e a distinção, entre
poder de Estado e aparelhos de Estado. Os aparelhos de Estado
não possuem "poder" próprio, mas materializam e concentram
relações de classe, relações abrangidas precisamente pelo conceito
de "poder". O Estado não é uma "entidade" em essência instru-
mental intrínseca, mas uma relação, mais precisamente a con-
densação de uma relação de classe. Isso significa que:
a) as diversas funções (econômicas, políticas, ideológicas)
preenchidas pelos aparelhos de Estado na reprodução das rela-
ções sociais não são funções "neutras" em si, existindo primei-
ramente como tais para serem simplesmente "destorcidas" ou
"desviadas" em seguida pelas classes dominantes; tais funções de-
pendem do poder de Estado inscrito na própria estrutura de seus
aparelhos, isto é, classes e frações de classe que ocupam o ter-
reno da dominação política;
b) esta dominação é solidária com a existência e funciona-
mento dos aparelhos de Estado.
13. 5. Segue-se que um.a transformação radical das relações
sociais não pode limitar-se a uma mudança do poder de Estado,
mas deve "revolucionarizar" os próprios aparelhos de Estado. A
classe operária não pode contentar-se, no processo da revolução
socialista, em tomar o poder da burguesia ao nível do poder de
Estado, mas deve igualmente transformar de forma radical ("que-
brar") os aparelhos de Estado burguês e substituí-los por apare-
lhos de Estado proletários.
13. 6. Mas, ainda aqui, é o poder de Estado, diretamente
articulado à luta das classes, que determina o papel e o funcio-
namento dos aparelhos de Estado.
a) Isso se exprime, do ponto de vista da revolucionarização
dos aparelhos de Estado, pelo fato de que a classe operária e
as massas populares só podem "quebrar" os aparelhos de Estado
amparando-se no poder de Estado;
b) Isso se exprime também ·no conjunto do funcionamento
concreto dos aparelhos de Estado em toda formação social. Se
os aparelhos de Estado não se reduzem ao poder de Estado, não
significa que seja a configuração precisa do terreno da domina-
ção de classe, do poder de Estado (bloco no poder, classe ou
fração hege·mônica reinante etc., mas também alianças de classe
e classe-apoio) que, em última análise, determine ao mesmo
INTRODUÇÃO':
/
As CLAs::,~s SocIAis 29
tempo o papel deste ou daquele aparelho ou ramo do Estadc na
reprodução das relações sociais, a articulação em cada aparelho
.ou ramo do Estado das funções econômicas, políticas e ideológi-
cas e o agenciamento concreto dos diversos aparelhos e ramos do
Estado. Em outras palavras, o papel deste ou daquele aparelho ou
ramo de Estado (escola, exército, partidos etc.) na coesão da
formação social, da representaç:ão dos interesses de classe e da
reprodução das relações sociais, não se prende à sua nat~a
intrínseca, mas depende do poder de Estado. -~-

13. 7. De forma mais geral, toda análise de uma fdrnação


social ·deve levar em consideração, ao mesmo tempo diretamen-
te, as relações de luta de· classe, as relações de poder e os apa-
relhos de Estado que materializam, concentram e refletem essas
relações. Mas, na relação luta das classe·s/aparelhos, é a luta das
classes que detém o papel fundamental. Não são as formas e as
modificações "insti_!.ucionais" que têm por conseqüência os "mo-
vimentos sociais", como o desejaria por exemplo a ideologia atual
da "sociedade bloqueada": é a luta das classes que determina
as formas e as modificações dos aparelhos.
14. Estas últimas observações se-rão mais claras, ao se co-
locar, desta feita, o ponto de vista da reprodução ampliada das
classes sociais. De fato, as classes sociais só existem na luta das
classes, em dimensão histórica e dinâmica. A constituição e mes-
mo a delimitação das classes, das frações, das camadas, das ca-
tegorias, só pode ser feita considerando-se esta perspectiva histó-
rica da luta das classes: o que coloca de uma só vez a questão
de sua reprodução.
14. 1 . Um modo de produção só existe em f armações sociais
quando se reproduzem. Esta reprodução é, em última análise, a
reprodução ampliada de suas relações sociais: é a lutá de classe
que é o motor da história. Marx dirá entã9' que, finalmente, o
capitalismo não produz nada além da burguesia e do proletaria-
do: o capitalismo só produz sua própria reprodução.
14. 2. O lugar do processo de reprodução não é assim, como
deixaria crer uma leitura superficial do segundo livro do Capital,
o único "espaço e-conômico", e: não consiste em um automatismo
auto-regulador da acumulação do capital social. A reprodução,
apreendida precisamente como reprodução ampliada das classes
sociais, significa, em um e mesmo movimento, a reprodução de
relações políticas e ideológicas da determinação de classe.
30 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

14. 3. Os aparelhos de Estado, e principalmente os apare-


lhos ideológicos de Estado, detêm, pois, um papel decisivo na
reprodução das classes sociais: papel dos aparelhos ideológicos
que ultimamente chamou a atenção das análises marxistas. Meu
propósito não será aqui expor o conjunto desta questão, a que
voltaremos nos ensaios seguintes: será mais uma tentativa de
esclarecer alguns problemas preliminares já escolhendo como
exemplo privilegiado o papel do aparelho escolar. Essas observa-
ções permitirão assim ilustrar ás .proposições feitas acima, e
avançar alguns passos suplementares no que tange ao papel dos
aparelhos na reprodução das classes sociais.

III

15. Os aparelhos de Estado, entre os quais está a escola


como aparelho ideológico, não criam a divisão em classes, mas.
contribuem para. tal divisão e, assim, para sua reprodução amplia-
da. É necessário ainda desembaraçar todas as. implicações da
proposição acima: não são somente as relaç_ões de produção que
determinam os aparelhos, mas também não são os aparelhos de
Estado que 'presidem à luta das classes: é a luta das classes, em
'
todos os níveis, que dá comando aos aparelhos.
Realmente, é necessário atribuir a maior importância ao pa-
pel preciso dos aparelhos ideológicos na reprodução das relações
sociais, inclusive as relações de produção, pois é a que domina o
conjunto da reprodução, principalmente a reprodução da força
de trabalho e dos meios de trabalho. Isso é uma conseqüência do
fato de que são as relações de produção, em sua relação constitu-
tiva com as relações de dominação/subordinação política e ideo-
lógica, que dominam o processo de trabalho no seio do processo
de produção.
15. 1 . Esta reprodução ampliada das classes sociais (das re-
lações sociais) comporta dois aspectos que só existe·m em sua
unidade:
- A reprodução ampliada dos lugares que ocupam os agen-
tes. Tais lugar_es, já foi visto, marcam a determinação estrutural
das classes, isto é, o modo de existência da dete-rminação pela es-
trutura - relações de produção, dominação/subordinação políti-·
ca e ideológica - nas práticas de classe.
- A reprodução-distribuição dos próprios agentes entre tais
lugares.
INTRODUÇÃO: As CLASSES SOCIAIS 31

15 . 2. Este segundo aspecto da reprodução, que coloca a


questão: quem, como, em que momento, ocupa este ou aquele
lugar, é ou se torna burguês, proletário, pequeno-burguês, campo-
nês pobre etc. está subordinado ao primeiro, isto é, à reprodução
dos próprios lugares das classes sociais: por exemplo, ao fato de.
que o capitalismo, em sua reprodução ampliada, reproduz a bur-
guesia, o proletariado, a pequena-burguesia sob nova f ~ma na
fase· atual do capitalismo monopolista etc., ou ainda que elimina.
tendencialmente certas classes e frações de classe no seio das for-
mações sociais onde ocorre sua reprodução ampliada - os cam-
poneses parceiros, a pe·quena-burguesia tradicional etc. Por outro
lado, se é verdade que os próprios agentes devam ser reproduzi-
dos - "qualificados-submetidos" - para ocupar certos lugares,.
isso não significa que tal distribuição dos agentes não somente
não se prenda a suas escolhas ou aspirações, mas, além disso, que
seja regulamentada pela própria reprodução desses lugares. Isso
se prende· ao fato de que o aspecto principal da determinação das.
classes é aquele de seus lugares, e não o dos agentes que ocupam
esses lugares.
Portanto, o papel dos aparelhos de Estado, inclusive· da escola
como aparelho ideológico, não é o mesmo quanto a estes dois' as-
pectos da reprodução.
15. 3. Justamente, a determinação estrutural das classes não
se limitando a lugares somente no processo de produção - a uma
situação econômica das classes em si - mas se estendendo
/
a todas
as camadas da divisão social do trabalho, tais aparelhos intervêm,
como encarnação e materialização das relações ideológicas e polí-
ticas, na determinação das classes. Tais aparelhos, e principalmen-
te os aparelhos ideológicos de Estado, intervêm então, pelo seu pa-
pel na reprodução das relações políticas e ideológicas, na reprodu-
ção dos lugares que def ine·m as classes sociais.
Mas, a menos que se percam, numa visão idealista e "institu-
cionalista", as relações sociais, visão esta que apresenta as classes
sociais e a luta das classes como o produto dos aparelhos, é pre-
ciso observar que esse aspecto da reprodução ultrapassa os apa-
relhos e lhes escapa amplamente, determinando-lhes os seus limi-
tes. Pode-se, de fato, falar de uma reprodução primeira - de uma
reprodução fundamental - das classes sociais na e pela luta das-
. classes, onde se desempenha a reprodução ampliada da estrutura,
aí compreendidas as relações de· produção, e que preside ao fun-
cionamento e ao papel dos aparelhos. Para citar um exemplo es-
quemático: não é a existência de uma escola formando proletá-
32 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HOJE

rios e novos pequeno-burgueses que determina a existência e a


repro.9ução - extensão, diminuição, certas formas de categori-
zação etc. - da classe operária e da nova pequena-burguesia. É,
ao contrário, o processo de produção em sua articulação com as
relações políticas e ideológicas e, então, a luta - econômica, po-
lítica, ideológica - das classes que tem por efeito esta escola.
Isso explica por que a reprodução que se serve indiretamente dos
aparelhos não ocorre sem lutas, contradições e choques constan-
tes em seu interior. Finalmente, dessa forma é que se pode com-
--preender o outro lado da questão: como a reprodução ampliada
das relações sociais depende da luta das classes, sua revolucionari-
zação depende igualmente dessa luta.
15. 4. Essa reprodução fundamental das classes socia~s não
se refere somente aos lugares nas relaçõe·s de produção. Não se
trata de "auto-reprodução ecJmômica" das classes em face de uma
reprodução ideológica e política que· se serve indiretamente ape-
nas dos aparelhos. Trata-se realmente de uma reprodução primei-
ra na e pela luta das classes em todas as camadas da ·divisão so-
cial do trabalho. Assim como sua dete-rminação estrutural, essa
reprodução das classes sociais refere-se igualmente às relações po-
líticas e às relações ideológicas da divisão social do trabalho que,
em sua relação (relation) con1 as relações (rapports) de produção,
assumeIIJ um papel decisivo. Isso porque a própria divisão social
do trabalho não se refere s01nente às relações (rapports) políticas
e ideológicas, mas também às relações (rapports) de produção, no
seio das quais ela domina a "divisão técnica" do trabalho: o que
é uma conseqüência da dominação das relações (rapports) de pro-
duç·ão sobre o processo do trabalho no seio do processo de produção.
' Dizer que essa reproduçiio primeira das classe·s sociais depen-
i de da luta de classes é dizer também que suas formas concretas
dependem da história da f armação social. Esta ou aquela repro-
dução da burguesia e da classe· operária, das classes do campesi-
nato, da antiga e da nova pequena-burguesia, dependem da luta
das classes nessa formação: ]por exemplo, a forma e o ritmo espe-
cíficos de reprodução, na França, da pequena-burguesia tradicio-
naJ e do campesinato parceiro, sob o capitalismo, prendendo-se a
formas específicas de sua aliança, durante muito tempo, com a
burguesia. O papel dos aparélhos nessa reprodução só pode por-
tanto situar-se em relação a essa luta: o papel particular, a esse
respeito, da escola na França só se situa principalmente com refa-
ção à aliança burguesia/pequena-burguesia que durante muito
tempa marcou a formação social francesa.
INTRODUÇÃO: As CLASSES Soc1A1s / 33
,
16. Isso significa que, se a reprodução ampliada dos luga::.f--
res das ciasses sociais "apela", principalmente no campo ideológi-
co-político. para os aparelhos ideológicos de Estado, ela não se
limita somente a isto.
16. l. Mencionemos agora, neste sentido, o caso da divisão
entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esta divisão, própria
para a determinação dos lugares na divisão social do trabalho; não
se limita de forma alguma unicamente ao domínio econômko,
onde, digamo-lo de passagem, não tem, intrinsecamente, papel
próprio qµanto à divisão das classes: o trabalhador produtilvo,
aquele ciue produz mais-valia, não é o que cobre· de modo algum
apenas o trabalho manual. A divisão trabalho manual/trabalho
intelectual só pode ser apreendida em sua extensão com as rela-
ções políticas e com as relações ideológicas, ao mesmo tempo: a)
que existem na divisão social do trabalho no próprio seio do. pro-
cesso de produção, o que recorre ao próprio !aparelho econômico,
·e à "empresa": autoridade e direção do trabalho ligadas ao tra-
balho intelectual e ao segredo do saber; e b) que existem no con-
junto da divisão social do trabalho: relações pelíticas e ideológi-
cas que intervêm na determinação dos lugares das classes sociais.
Mas é evidente que não é a escola, ou outros àparelhos ideológi-
cos, que criam esta divisão, ou que são fatü.[es primeiros e exaus-
tivos de: sua reprodução, se bem que· intervenham nesta produ ção,
1

surgindo ao mesmo tempo, sob sua forma capitalista, como o


efeito desta divisão e de sua reprodução na e pela luta das classes.
Por oultro lado, se a escola reproduz em seu próprio seio a divi-
são entre trabalho manual e trabalho intelectual, é que a escola
já está, pela própria natureza capitalista, sit.uada globalmente em
relação a - e reproduzida como aparelho em função de - uma
divisão trabalho manual/trabalho intelectual que ultrapassa a es-
cola, indicando-lhe seu papel: separação da escola e da produção
ligada à separação e à espoliação do produtor direto dos rr1eios
de produção.
16. 2. Mas ainda é necessário observar, pois estamos falan-
do de aparelhos ideológicos, que esses aparelhos, mesmo que não
criem a ideologia, também não são fatores primeiros ou exausti-
vos de reprodução das relações de· dominação/subordinação ildeo-
lógica. Os aparelhos ideológicos, só fazem elaborar e inculcar (ma-
terializar) a ideologia dominante: não é a Igreja, como sustentava
Max \Veber, que cria e pe·rpetua a religião, mas sim a religião
34 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE Ho1E

que cria e perpetua a Igreja. Quanto às relações ideológicas capi-


talistas, as análises de Marx referentes ao fetichismo da mercado-
ria, que se refere precisamente ao processo de valorização do capi-
tal, oferecem um excelente exemplo de uma reprodução da ideolo-
gia dominante que ultrapassa os aparelhos: o que Marx aliás ob-
servava, quando falava freqüentemente de uma correspondência",
que implica uma distinção, das "instituições" e das "formas de
consciência social". Em suma, o papel da ideologia e do político
na reprodução ampliada dos lugares das classes sociais abrange
aqui diretamente a luta das classes sociais, que comanda os apa-
relhos. Aqui se situa principalmente, do lado da classe operária,
o instinto de classe que foi mencionado acima: como não são os;
aparelhos ideológicos do Estado que criam a ideologia dominante,
não são ·também os aparelhos revolucionários - o partido - da
classe operária que criam a ideologia proletária: eles a elaboram
e· a sistematizam, produzindo a teoria revolucionária.
16. 3. A reprodução dos lugares nas relações de dominação
ideológica e política, por mais que recorra aos aparelhos, recorre
igualmente a outros aparelhos além dos aparelhos ideológicos de
Estado, principalmente ao próprio aparelho econômico. Uma.
"empresa", enquanto unidade de produção sob sua forma capita-
lista, constitui igualmente um aparelho, no sentido em que repro-·
duz, pela divisão social do trabalho em seu seio - organização
despótica do trabalho -, as relações políticas e ideológicas refe-
rentes aos lugares das classes sociais. Por outro lado, a reprodu-
ção das relações ideológicas, que detém um papel capital, não é
simplesmente a função dos aparelhos ideológicos, como se tudo o
que se passasse na "produção" só se referisse ao "econômico" e
como se aos aparelhos ideológicos se reservasse o monopólio de
reprodução das relações de dominação ideológica.
16. 4. Enfim, esta reprodução dos lugares das classes socia :s.
recorre não somente 'aos aparelhos ideológicos de Estado e ao
aparelho econômico, como também aos ramos do aparelho re-
pressivo de Estado no sentido estrito. E isso não apenas pelo seu
papel direto de repressão, entendido no sentido rigoroso de força
física organizada. Essa repressão é absolutamente necessária nas
relações de ex;ploração e de dominação de classe, e não está em
geral no capitalismo, diretamente presente como tal nas relações
de produção, só intervindo em geral sob ~ forma de uma manu-
tenção das "condições" de exploração (o exército não está dire-
INTRODUÇÃO: As CLASSES Soc1A1s 35

tamente presente nas fábricas). Encontra-se aqui uma das diferen-


·ças entre o modo de produção capitalista e os modos de produção
"''pré-capitalistas": nestes últimos, como Marx explica muito bem,
o produtor, não estando totalmente separado de seus meios de
trabalho - ele detinha. sua posse -, havia necessidade da inter-
venção direta de uma força "extra:-econômica" para que produ-
zisse o sobretrabalho para o lucro do proprietário (o senhor, por
exemplo). Se os ramos do aparelho repressivo do Estado capita-
lista intervêm ·na reprodução dos lugares das classes sociais, t
porque, tendo por papel principal a repressão, o qlÍe os distingue
dos aparelhos ideológicos, aí não se lin;ritam: eles possuem tam-
bém um papel ideológico, em geral secundário, assim como os
aparelhos ideológicos possuem igualmente um papel repressivo, em
geral secundário. Assim, o exército, a magistratura e as prisões
(a "justiça" burguesa) etc., têm pelo seu papel na materialização
e na reprodução das relações ideológicas (a ideologia burguesa),
um papel eminente na reprodução dos lugares das classes sociais.
17. Voltemos agora nossa atenção para o segundo aspecto
da reprodução, a reprodução dos agentes. Esta reprodução englo-
ba, como momentos de um mesmo processo, a qualificação-sujei-
ção dos agentes de tal maneira que possam ocupar os lugares, e a
distribuição dos agentes entre tais lugares.
É -principalmente apreendendo de forma exata a articulação
dos dois aspectos da reprodução, sob a dominância da reprodução
dos lugares das classes sociais, que se pode compreender a inutili-
dade da problemática burguesa, da mobilidade social, que será am-
plamente discutida nos ensaios seguintes. De fato, esta problemá-
tica da mobilidade social dos "grupos" e dos "indivíduos" supõe:
a) que a questão principal da "estratificação social", e mesmo
sua causa, é a da "circulação..,mobilidade" dos indivíduos entre
esses estratos: enquanto é evidente que, mesmo na suposição
absurda de que, de um dia para o outro (ou de uma geração para
a outra), todos os burgueses ocupassem os lugares dos operários
e vice-versa, nada de essencial mudaria no capitalismo, pois have··
ria sempre lugares de burguesia e de proletariado, o que é o aspec-
to principal de reprodução das relações capitalistas;
b) que a "rigidez social" que se deplora é simplesmente devi-
da às famosas desigualdades sociais dos "indivíduos" e dos "meios",
redutíveis, como o é na essência toda desigualdade, em uma "so-
ciedade capitalista de igualdade de oportunidades".
36 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

17. 1. Os aparelhos ideológicos de Estado, e principalmente.


o aparelho escolar, têm, na reprodução dos agentes, sua qualifica-
ção-sujeição e sua distribuição, um papel decisivo e todo particular.
Aqui impõem-se algumas observações:
17. 2. A reprodução dos agentes, principalmente a famosa.
"qualificação" dos agentes da própria produção, não se refere a
uma simples "divisão técnica" do trabalho - uma formação téc-
nica - mas constitui uma efetiva qualificação-~ujeição que se es- ·
tende às relações políticas e ideológicas: esta reprodução amplia-
da dos agentes abrange aqui um aspecto da reprodução das rela-
ções sociais que imprime seu traçado à reprodução da força de.
trabalho.
Mas, se isso implica um papel particular com relação à escola,
não se pode perder de vista que esta qualificação-sujeição ocorra.
como tal - e não apenas como formação técnica ·"no local de
trabalho" - mas ..também no seio do próprio aparelho econômico,.
não se constituindo a empresa numa simples unidade de produção.
Isso implica aliás o próprio papel da empresa, como aparelho,.
precisamente, na distribuição dos agentes no seu s.eio. Esse papel
do aparelho econômico é mesmo dominante quanto aos trabalha-
dores imigrados, mas não se refere somente a eles. Esquecer esse·
papel do aparelho econômico e apresentar os agentes como desde
já exaustivamente distribuídos na escola - antes do aparelho eco-
nômico - seria c:air no mesmo tipo de explicação regressiva e
unívoca que considera esses agentes como de·sde já exaustivamente
distribuídos na família - antes da escola. Como não são castas.
de origem ou de herança, as classes capitalistas não são também
castas escolares. Como, enfim, essa explicação regressiva não vale
para a relação família-escola, na medida em que a família conti-
nua a exercer sua ação durante a escola, ela não vale para a rela-
ção escola-aparelho econômico, continuando a escola a exercer
sua ação durante a atividade econômica dos agentes: isso se chama
modestamente f armação permanente. Assinalo enfim, a partir do
que foi dito sobre o aparelho repressivo de Estado, o papel, nessa
reprodução dos agentes e de certos ramos deste: é principalmente
o caso do exército, cujo papel em particular na distribuição dos
agentes foi durante muito tempo importante na França.
17. 3. Mas é preciso ir mais além, a fim de afastar os mal-
entendidos da tradição "funcionalista-institucionalista", que sem-
pre falou do papel das "instituições" na formação-distribuição dos
"indivíduos", principalmente sob o termo "processo de socializa-
INTRODUÇÃO: As CLASSES Soc1Ais 37

ção". É preci$o observar, de um lado, que esse aspecto da repro-


dução está indissoluvelmente ligado ao primeiro, estando a ele
subordinado: é porque, e na medida em que, existe reprodução
ampliada de lugares que há esta ou aquela reprodução-distribui-
ção dos agentes entre eles. É necessário lembrar, por outro lado,
que o papel determinante quanto à distribuição dos agentes no
conjunto da formação social retorna ao mercado de traba:ho,
como expressão da reprodução arr1pliada das relações de produ-
ção: e isso, mesmo que não se trate de um mercado unificado,
ou seja, mesmo que o mercado de: trabalho exerça sua demanda
em um campo já compartimentalizado, em razão entre outras da
própria ação dos aparelhos ideológicos do Estado (nã~ é um
estudante desempregado que ocupará o lugar vazio de um os *).
É porque existe, sob o aspecto igualmente de distribuição, uma
reJação constitutiva entre aparelhos distribuidores e relações de
trabalho; relação que, entre outras, impõe os limites da ação dos·
aparelhos ideológicos nessa compartimentalização do mercado de
trabalho. Não é por exemplo a escola que faz com que os lugares
suplementares de operários sejam ocupados principalmente por
camponeses. É o êxodo rural, ou seja, a eliminação dos lugares
nos campos acompanhando a reprodução ampliada da classe ope-
rária, que determina o papel, neste sentido, da escola.
17. 4. Enfim, na medida em. que este aspecto da repr9dução
está subordinado ao primeiro, e- que se trata de reprodução am-·
pliada, é necessário circunscrever os efeitos diretos dos próprios
lugares 90bre os agentes, o que não é senão encontrar aqui o pri-·
mado da luta das classes sobre os aparelhos. Não se trata, pro-
priamente, de agentes originalme:nte (pré ou extra-escolarmente)
"livres" e "móveis'', ,"circulando''' entre esses lugares segundo as:
injunções dos aparelhos ideológicos e segundo a inculcação ideo-
lógica ou a formação que recebem. É verdade que as classes do
modo de produção e de uma formação social capitalistas não são
castas, que a origem dos agentes não os liga a lugares determina-·
dos, e que o próprio papel de distribuidores de escola e de outros
aparelhos dos agentes entre esses lugares é muito importante.
Mas não é menos verdade que esses efeitos de distribuição se ma-
nifestem pelo fato de que, no meio dos aparelhos ideológicos, são
precisamente os burgueses que permanecem - e seus filhos que

• os: ouvrier spécialisé - trabalhador não-qualificado, operário que,


sem ter feito uma verdadeira aprendizagem, executa trabalhos que re-
querem certa formação profissional. (N. do T.)
38 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

:Se tornam - maciçamente burgueses, e que são os proletários que


permanecem - e seus filhos que se tornam - maciçamente pro-
letários. Isso demonstra que não é nem principalmente, nem ex-
.clusivamente em razão da escola, que a distribuição assume essa
forma, mas em razão de efeitos dos próprios lugares sobre os
.agentes, efeitos e_stes que ultrapassam a escola, e aliás a própria
família. Não se trata precisamente, neste caso, como fazem crer
·Certas discussões atuais, de uma alternativa família-escola na or-
.dem de casualidade: não se trata mesmo de um "binômio" famí-
lia-escola como primeiro fundador desses efeitos de distribuição.
Trata-se, isto sim, de uma série de relações entre aparelhos que
mergulham suas raízes na luta das classes. Em outras palavras,
trata-se de uma distribuição primeira dos agentes ligada à repro-
dução primeira de lugares das classes sociais: é ela que determina
a este ou àquele aparelho, ou a esta ou àquela série dentre eles,
e seguindo as etapas e as fases da formação social, o papel próprio
e respectivo que assumem na distribuição dos agentes.
A INTERNACIONALIZAÇÃO
I•AS RELAÇ'õE.S CAPITALISTAS
E O ESTADO-NAÇÃO
A NOVA FASE DO IMPERIALISMO e a emergência da luta das classe~
·nas metrópoles imperi~ listas fizeram surgir uma série de ques--
tões-chaves para a estratégia revolucionária: quais são as nova§
relações entre as . fqrma__çfü~s_ s_uciais imp(!dalísfa.s (Estados Qi;ii--
aos, -EÜropà, Japão) e seus efeitos nos aparelhos de Estado?
Pode-se falar atualmente de um Estado nacional nas mefropoles
imperialistas'! Qliais--sao as -relaçfü;s d~~ses ~sfad__9i-_cº--~ a "inter-
·iiac1 onahzaçao ---dg_f-ªPi1ª-l'_:__ Q!!_ _Jl_s__'·'f{rJl!~-~ !fi_u] ti~~c_ionais"? . ~§.­
formas institucionais supra-estatais tendem ~·- ser subs!~tuídas _pe_-
los Estados--riacfortais bu~ airid(!,____ql}ªl~_SãQ_as__modifi~ações desses
EStaaosque--lhes· perníffem-p:re~_ncher as novas funçõ~s--~ e~{gjci~s
pela reprodução amplfada- do capital no plano internacional?
. Essas questões revestiram-se·;- como-esãõiâo~ de uma- acÚida-
de particular com o proble.ma da CEE * (Mercado Comum), e o
"futuro político" da Europa. Elas são de importância decisiva,
pois é evidente que o Estado atual, núcleo de uma estratégia re-
volucionária, só pode ser estudado em relação à fase atual do
imperialismo e a seus efeitos no próprio seio da zona das metró-
poles. Mas, sabe-se também que c:!ssas questões prenderam menos
a atenção das pesquisas marxistas do que aquelas que se referem,
de um lado, às relações entre as metrópoles e formações sociais
dependentes e, de outro _lado, estas últimas: as posições políticas
e a ideologia "do Terceiro Mundo" não são causas menores.
Assim, quando se começa a ver claramente os efeitos da domi-
nação imperialista atual no seio das formações sociais dominadas
e dependentes, estes efeitos no próprio seio das metrópoles impe-
rialistas são bem menos estudados.
É possível, todavia, esquematizando, revelar as posições quan-
to a esta última questão, em duas tendências principais:
1. A primeira, à qual se ligam, sob diversos títulos, autores
como Sweezy, Magdoff, M. Nicolaus, P. Jalée etc., representa o
* Communauté Economique Européenne - Comunidade Econômica
Européia. (N. do T.)
42 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

que se poderia designar como a atual versão da esquerda do "su-


perimperialismo" kautskiano 1. Esses autores, apesar de terem,
por um lado, contribuído grandemente para evidenciar o papel
atualmente dominante dos Estados Unidos no conjunto dos paí-
ses capitalistas, subestimam as contradições interimperialistas ba-
seadas no desenvolvimento desig1ªal e só retêm, co111g__:1J,mc~­
de demãrcaçãonoseioda corrente imperialista, aquela_ que sepa:
ramêiiópme___e___foriiiaÇêfesaomiíiaôãs-: As análises ref erente~r--ãs
relaçoes das metrópoles imperialistas entre si dependem do prin-
cípio de uma pacificação e integração sob a dominação e explo-
ração incontestes do capital arnericano. Esta dominação é con-
cebida sobre o mesmo modo análogo que a relação entre metró-
poles imperialistas e' pajses dominados e dependentes: ela se
assemelharia assim ao tipo de "neocolonização", cuja imagem
limite, porém exemplar, seria aquela das relações Estados Uni-
dos-Canadá.. Segundo esse ponto de vista, poderíamos assistir a
uma perda rápida, ou talvez a um quase-desaparecimento, dos
poderes dos Estados nacionais das metrópoles imperialistas, seja
sob a dominação do superestado americano, seja sob a dominação
do grande capital americano, ou "internacional", liberado dos "en-
traves" dos Estados 2 • ·

2. Por outro lado, em contrapartida, encontram-se duas


teses cujas análises freqüente1nente divergem, mas que, ao menos
sobre esta questão, dependem de uma base comum. Pode-se assim,
sem nenhuma intenção de amalgamá-las depois, aproximá-las
aqm.
De um lado, autores como .M8:p.del, Kidron, D. Warren, B.
Rowthorn, J. Valier na França 3 • Não se OOITe o rlscõ·-·oe-rrair
seus pensamentos, dizendo que, para eles, a fase atual do impe-
rialismo não é de forma alguma marcada por uma mudança da

1 Sweezy e Baran, Le CapitaUsme monopoliste, 1970, e os nume-


rosos artigos de Sweezy na Month/y Review; Magdoff, L' Age de L'impé-
rialisme, 1970; M. Nicolaus, "U. S. A., The Universal Contradiction"J
em New Left Review,. n. 0 59, 1970; P. Jalée, Le Pillage du Tiers-Monde
et L'lmpérialisme en 1970.
2 R. Murray, "Internationalization of Cap:tal and the Nation-State",
em New Left Review, n. 0 67, 1971.
a E. M.andel, essencialmente, La Réponse socialiste au dé/i américain,
1970; M. K1dron, Western Capitalísm Since the War 1968· B Warren
"How International is Capital?", em New Left Revie~, n.º '68,' 19'11; B~
Rowthorn, "Imperialism in the Seventies: Unity or Riivalry", ibid., n. 0 69,
1971; J. Valier, "Impérialãsme et Révolution Permanente" em Criti-
ques de l'économie politique, n. 0 4-5, 1971. '
INTRODUÇÃO: As CLASSES SOCIAIS. 43

estrutura das relações das metrópoles imperialistas entre si. Aqui


também, admite-se somente como linha de delimitação estrutural
da corrente imperialista aquela .em que existem metrópoles e for-
mações domina~~p.s~ sendo esta dt~limitação apreendida de maneira
uniforme ao longo da história do imperialismo. As contradições
interimperialistas no próprio seio da zona das metrópoles se re-
vestiriam atualmente do mesmo sentido que no passadó: tais con-
tradições se situariam em um contexto de Estados e de burguesias
"autônomas" e "independentes" na luta pela hegemonia. Tratar-
se-ia, assim, de "burguesias nacionais" e de "Estados nacionais"
em relações simplesmente externas, afetando a tendência à inter-
nacionalização, no limite, unicamente as rélações do mercado. O
domínio dos Estados Unidos sobre as metrópoles imperialistas é
apreendido, essencialmente, da :mesma forma analógica que o da
Grã-Bretanha no passado. Assistiríamos mesmo, atualmente, a
um retorno radical a essa hegen1onia pela emergência de "contra-
imperialismos" equivalentes, conno aqueles da Europa do Mercado
Comum e do Japão. A CEE ampliada é principalmente considera-
da como uma "cooperação" e uma "internacionalização" dos ca-
pitais ·europeus a um Estado supranacional europeu para a elimi-
nação da supremacia do capital americano: tese, aliás, relativa-
mente contraditória como aqm~la dos "Estados nacionais autô-
nomos".

Do outro lado, as análises dos PC ocidentais, em particular do


PCF 4 • As relações atuais das rnetrópoles entre si estão inclinadas
a se basear não e·m modificações da corrente imperialista, mas em
modificações do modo de produção capitalista em "capitalismos
monopolistas de Estado" nacionais, justapostos e adicionados; o
processo de internacionalização só está aqui inclinado a atingir,
no limite, as famosas "forças produtivas". Por outro lado, essas
relações são então apreendidas, essencialmente, como "pressões"
mútuas externas entre burguesias e Estados nacionais autônomos
e independentes. A CEE e a "Europa unida" são bem consideradas
como manifestação de uma dominação acrescida do capital ame-

4 O tratado: Le Cavitalisme monopoliste d'Etat; Ph. Herzo~, Poli-


tique économique et planification, 1971, e seu artigo "Nouve-:iux développe-
ments de l'inte-nationalisation du capital", em Econom;e et Pol'tique,
n.º 198, 1971: J.-P. Deliiez, Les !vfonopoles, 1970, e seu artigo: "Interna-
ttionalisation de Ia production", em Economie et Politique, n. 0 212, 1972.
Notar, entretanto, que existem certas divergências, quanto às suas po-
sições em relação à CEE, entre os pr ocidentais.
44 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

rica.no: mas esta dominação é concebida de algum modo sob for-


ma de "transplantes" de corpos estrangeiros cosmopolitas sobre
os capitalismos monopolistas de Estado europeus nacionais, e o
papel dos Estados nacionais com lucro do capital americano ou
cosmopolita sob forma de funções "sobrepostas" às funções "na-
cionais" desses Estados.
Terei ocasião de voltar de forma mais precisa às posições des-
tas correntes e suas implicações políticas. Digo logo que não con-
seguiram apreender as modificações atuais da corrente imperia-
lista e seus efeitos nas relações entre metrópoles, e em particular
nos Estados nacionais. Vou me limitar aqui ao caso das metró-
poles européias, ao mesmo tempo em razão de sua importância
política para nós aqui e agora, e em razão de certas e importan-
tes. particularidades que apresenta o caso do Japão: particulari-
dades que, no entanto, não aparecem absolutamente de forma
tendencial, como exceção à regra .
Para bem encaminhar esta análise da fase atual do imperia-
lismo, será necessário, no estado atual das pesquisas, estudar os
problemas desde suas raízes.
1. A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO
E A DOMINA!ÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS

l . A Periodização
O modo de produção capitalista (MPC) é caracterizado, em
:sua reprodução ampliada, por uma- dufla tendência.: sua repro-
dução no seio de uma formação socfa onde "tomã pé" e esta-
belece sua dominância, e sua extensão no exterior desta forma-
ção, agindo ao mesmo tempo os dois aspectos desta tendência.
O MPC só pode existir, por razões que veremos, ampliando suas
relações de produção, e fazendo assim recuar seus limites. Se esta
dupla tendência caracteriza o MPC desde seus primórdios, ela as-
sume uma importância particular no estádio imperialista. Este
estádio, que acentua a tendência para a baixa da taxa de lucro, é
caracterizado pela preeminência, na extensão para o exterior do
€ ) I a exportação de capitais sobre a simples exportação de mer-
cadorias. Sabe-se que esta característica é decisiva, e constitui o
próprio fundamento da concepção leninista do imperialismo: mas,
de fato, isso não significa absolutamente que à tendência para a
exportação das mercadorias e para a ampliação do mercado mun-
dial "se submeta" ao estádio imperialista, bem ao contrário; isso
significa que a exportação de capitais é a tendência essencial e
determinante do imperialismo. Enfim, o estádio imperialista, cor-
respondente ao capitalismo monopolista, está marcado pelo deslo-
·camento da dominância. ao mesmo tempo na formação so-ciaTe
nacor-renfe imperialista, do econômico ao político (o Estado).
A própria corrente imperTu.lTsta é··-·marEada pelô. ··aesenvolvi-
:mento desigual; esta corrente reflete-se em cada um de seus elos
numa espec1f1cidade de cada formação social. Esta especificidade
·depende das formas de que se reveste o domínio do MPC na escala
:internacio~al sobre os outros modos e formas de produção no seio
46 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

de cada formação social. Com efeito, a reprodução do MPC na sua


dupla tendência testemunha que o MPC só pode existir submetendo
os outros modos e formas de produção, e apropriando-se dos ele-
mentos (força de trabalho, meios de trabalho). É a articulação,.
na sua reprodução, do MPC e dos modos e formas de produçã_o em
formações sociais que produz o desenvolvimento desigual.
Esta dominância do MPC tem efeitos complexos de dissolução-
conservação (pois trata-se de uma luta de classes) sobre os outros
modos e formas. de produção que ele domina 1 • A forma diferen-
cial de que se revestem esses efeitos na escala internacional marca
as fases do estádio imperialista: elas correspondem, pois, a formas
precisas de acumulação do capital, e mesmo a f orma·s precisas de
relações de produção mundiais e de divisão internacional impe-
rialísta do trabalho. -.
Desde os primórdios do imperialismo, uma delimitação fun-
damental marcou a corrente imperialista: aquela que separa, de
um lado, ag metrápo[es im~rialistas e, de outro, as formaçQ.es so-
da.is dominadas e dependentes._ Essa delimitação, baseada na pró-
-pria estrutura da corrente imperialista, difere radicalmente da re-
lação, nos primórdios do capitalismo, do tipo colonial e, depois,
do tipo capitalista-comercial principalmente pela via indireta da
constituição do mercado mundial e da exportação de mercadorias,
se bem que tais relações continuem a coexistir no estádio impe-
rialista, com as características próprias deste último, e sob sua
dominância. Não se trata mais de formações sociais de relações
i relativamente externas. O processo de dominação e de de:2_endên-
! eia imperialista aparece de ~ªgºFª--.~-.Aiª11J~___c.o.mq_-ª· -~~~()_4.!:~sªÕ,
.no proprio seio das formaçõ_~$_s.Qçiai~_AQ_mi.V-ª.4-ª$.___ed s<ib fqrmas-es-
J~ecíficas para cada uma -~§_,___da rd.a.ção_. de _don!!P:_~çãq __.9ll..~ .ai
,iga ~s metrópoles imperialistas. ·
· Pode-se então tentar precisar estâ situação, o que interessa
principalmente ao nosso propósito. Y~.ª-..Jormação social é do-
minada e dependente quando a articulação de sua própria estru-
t1ifâ-eoonôm1ca, po11tica e ideológica exprime relações constitu--
tivas e assimétricas, com uma ou várias formações sociais que·
ocupam, em relação à primeira, uma situação de poder 2 • A orga-
nização das relações de classe e dos aparelhos de Estado na for-
mação dominada e dependente reproduz em seu seio a estrutura
da relação de dominação e, assim, exprime de maneira específica

1 Poulantzas, Fascisme et Dictature, 1970; Bettelheim, Remarquet;


théoriques à A. Emmanuel, em l'Echange Inégal deste último, 1971.
2 M. Castells, La Question urbaine, 1972, pp. 62 sq.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 47

as formas de dominação que caracterizam a (ou as) classe no


poder na ~ou nas) formação social dominante. Esta dominação
corresponde a formas de exploração ao mesmo tempo indiretas.
(pelo lugar da formação dominada na corrente imperialista) e di-
retas (pelos investimentos diretos) das massas populares das for:.
mações dominadas pelas classes no poder das f armações dominan-
tes: exploração conjugada àquela que sofrem por parte de suas
próprias classes no poder. Cada fase do imperialismo está marcada
por formas diferentes de realização desta dominação e dependência.

Considerando tais elementos, podemos chegar à periodização


do estádio imperialista em fases. Preciso então, imediatamente,
que não se trata de uma periodização no sentido de uma "suces~·
são" necessária a partir de um esquema de "etapismo cronológico't
linear. Essas fases. que tentarei. apreender nos traços fundamen-
tais da reprodução ampliada do capitalismo, são o efeito histórico
da luta das classes.
Evoco, por outro lado, um problema suplementar colocado
pela periodização do imperialismo que é um estádio particular do
capitalismo. O imperialismo está justamente situado na reprodu-
ção ampliada do MPC (modo de produção capitalista): mas a pe-
riodização do imperialismo não poderia ser diluída em uma perio-
dização geral do MPC como tal, e deixa de atenuar as próprias
delimitações prod~zidas pelo imperialismo como estádio na repro-
dução do MPC (é o caso, veremos mais adiante, para as concepções
atuais de um MPC "d~sde seus primórdios imperialistas" ou de
uma distinção entre "árqueo-imperialismo" e "neo-imperialismo").
A periodização em fases do próprio imperialismo é legítima, na
medida em que·º MPC apresenta esta particularidade, com respeito
aos modos "pré-capitalistas", de ser assinalado, em sua relação
precisamente com os outros modos e formas de produção que
domina em formações sociais na sua reprodução ampliada, por
dois estádios diferenciados por uma articulação distinta de sua
estrutura. Mas isso indica que a periodização do imperialismo
deve ser apreendida nas-relações do imperialismo (capi.talismo mo-
nopolista) ao mesmo tempo com os modos e formas de produção
"pré-capitalistas" e com o estádio "pré-imperialista" do capitalis-
mo, que denominarei, por simples comodidade, "capitalismo-com-
petitivo": as características desse estádio coexistem de fato com
aquelas do estádio imperialista sob seu domínio, ao mesmo tempo
em cada formação social (relações capitalismo monopolista/ capi-
-48 As CLASSES SOCIAIS No CAPITALISMO DE HOJE

talismo competitivo) e na corrente imperialista (relações da do-


minação e exploração colonial··capitalista comercial/imperialista).
Enfim, as diversas fases do imperialismo são marcadas por
.etapas e voltas: isto é particularmente importante para a análise
da fase atual do imperialismo.
Podem-se então distinguir as seguintes fases do imperialismo:
-
AJ..ase de transição.. do estádio capitalista competitivo ao está-
·dio imperialista que se estende do fim do século XIX até o pl!-
ríodo de entre as duas guerras: compreende, nas metrópoles do
imperialismo, o período de equilíbrio instável entre o capitalismo
competitivo e o capitalismo monopolista na extensão do MPC para
o "exterior" e o estabelecimento da corrente imperialista, abran-
gendo esta fase um equilíbrio relativo entre a forma de domina-
ção capitalista-comercial-exportação de mercadorias das formações
·dominadas, e a dominação pela exportação dos capitais. Durante
este período, as metrópoles imperialistas e as relações metrópoles-
f ormações dominadas são no conjunto marcadas por um equilí-
brio instável entre o domínio do econômico e o domínio do --po-
lítico - do Estado.
_A fase de consolidacão do estádio imperialista: esta se ins-
taura entre as duas guerras, ern particular após a crise de 1930,
·com a estabilização ou instauração dos fascismos e o N ew Deal
rooseveltiano. No seio das metrópoles, o capitalismo monopolista
·estabelece seu domínio sobre o capitalismo competitivo, impli-
·cando o domínio do político -· do Estado - no seio dessas for-
mações. Mas, nos efeitos contraditórios de dissolução-conservação
que o capitalismo monopolista impõe quer sobre as formas pré-
capitalistas (forma de produção comercial. simples, pequena-bur-
guesia tradicional etc.), quer sobre o capitalismo competitivo (ca-
pital não-monopolista), são os efeitos de conservação que predo-
minam ainda sobre os efeitos de dissolução. Na corrente imperia-
lista, é a exportação dos capitais que predomina sobre a exporta-
ção das mercadorias, e é o político que prevalece nas relações
metrópoles-formações dominadas e dependentes.
O que se torna, no entanto, necessário observar é que, du-
rante estas fases, e em graus desiguais, o MPC, que caracteriza a
corrente imperialista, domina as formações dependentes, princi-
palmente por sua inserção nesta corrente. A divisão social impe-
rialista do trabalho metrópoles-formações dominadas é essencial-
_mente aquela existente entre cidades (indústria) - campos (agri-
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 49

cultura). O que permite precisamente uma dominação do MPC


.sobre formações no interior das quais podem freqüentemente pre-
dominar outros modos de produção além do MPc: é sob esta pre-
.dominância (por exemplo, feudal: dominação de grandes pro-
prietários de terras "feudais") que intervém a reprodução na for-
mação dependente da relação de dominação que a liga às me-
trópoles.
Quanto à relação, durante estas fases, das metrópoles impe-
rialistas entre si, trata-se de contradições interimperialistas que
·dão lugar, muitas vezes, a uma predominância alternada de uma
metrópole sobre as outras: Grã-Bretanha, Alemanha, E.U.A. Mas
·esta predominância é essencialmente fundamentada no tipo de
dominação e de exploração que essa metrópole impõe a seu "im-
pério" de formações dominadas, e ao ritmo de desenvolvimento
do capitalismo em seu próprio seio. A única linha de demarcação
polarizada dependente da estrutura da corrente imperialista é aque-
la que separa metrópoles e formações dominadas.
A fase atual do imperialismo., estabelecida progressivamente
após o fim da Segunda Guerra Mundial, é marcada por diversas
etapas de luta das classes. No seio das metrópoles imperialistas, é
durante esta fase, em graus certamente desiguais, por efeitos de
dissolu.ção que predominam sobre os de conservação, que a do-
minação do capitalismo monopolista é exercida sobre as formas
pré-capitalistas e sobre o capitalismo competitivo: o que não sig-
nifica, entretanto, que o MPC, sob sua forma monopolista, tenda
a se tornar "exclusivo" nas metrópoles. As formas em questão
continuam a existir, mas de agora em diante sob forma de "ele-
mentos" (pequena-burguesia tradicional, campesinato parceiro, ca-
pital médio) reestruturados e diretamente submetidos ("subsumi-
dos", segundo o termo de Marx) à reprodução do capitalismo
monopolista.
Esta fase corresponde· a modificações da relação metrópo!es-
f ormações dominadas. O MPC domina de agora em diante essas
formações não simplesmente do "exteriqr" e pela reprodução da.
relação de dependência, mas estabelece sua dominância direta em·
,,seu próprio seio: o modo de produção das metrópoles se reproduz,
sob f arma específica, no interior das f armações dominadas e de-
pendentes. Isso não impede que. em graus desiguais, e ao contrá-
rio do que se passa nas metrópoles, os efeitos de conservaç? r,
possam predominar aqui sobre os efeitos de dissolução na dupla
tendência que impõe· a dominação interna do MPC sobre os outros
modos e formas de produção dessas formações. O que mais ca-
50 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

racteriza esta fase é que esta reprodução induzida do MPC no seio


dessas formações se estende, de maneira decisiva, ao domínio de
_seus aparelhos de Estado e de suas formas i5!?"9lógic~s. Enfim,
esta reprodução interiorizada e induzida, na medlirã-em que re-
monta ·a modificações da corrente imperialista, tem igualmente
efeitos que seguem uma direç:ão inversa das formações dependen-
tes para as metrópoles: isso se manifesta no caso da f orça-traba-
lho pelo papel atual do trabalho-imigrado.
As formas atuais desta dependência, e mesmo o "desenvolvi-
mento do subdesenvolvimento", a industrialização periférica e os
bloqueios da economia, a desarticulação interna das relações so-
ciais etc., foram, nestes últimos anos, amplamente estudadas 3 •
O. que· menos chamou a atenção foram as modificações da cor-
rente imperialista nas relações das metrópoles entre si. Com ef ei-
to, as formas de acumulação do capital e de divisão internacional
do trabalho, que estão na base de·sta reprodução ampliada do ca-
pitalismo na relação metrópoles-formações dominadas, introdu-
zem aqui, nesta fase, uma modificação capital: mesmo que a linha
·de demarcação e de delimitação entre metrópoles e formações
dominadas se acentue e se aprofunde, assiste-se ao est'!!;>·elecimento
de uma nova 1.inha--de--dema:rcação, nó campo da:S metrópoles, en-
tre os Estados Qvidos de urn lado, as outras metrópoles do im_pe-
rfalismo·-e, eín parti_gtlar, a__E!!IQQCl.,_ do outro. A estrutura de do-
. :niinaçao e-ae dependência da corrente "imperialista organiza as
próprias relações das metrópoles do imperialismo. Com efeito,
esta hegemonia do.s Es.tadu.s_J.Jniçlos não é nem análoga àquela de
uma metrópole sobre as outras.nas fases precedentes, e não difere
tampouco de um simples ponto de vista "quantitativo": el~a~~
pelo _estabeleciment_g cJa~__ rd-ªçÕ.~$_de _p_rodução que ca·racterizam
Q__ ~capi§ll J!1QP:_Qp_ü_lis1a-am1e-ricano e _sua dominaçãg no próprio
inreflor_d_as 011tras __me.trópoles, e_ tamhém .. pela_ reprodução éÍJJ_~~u­
seio de~ta nova Felação de--dependência. Ê esta reproduÇãÕ indu-
zida -dÕ capitalismo monopolista americano no seio das outras me-
trópoles e seus efeitos sobre seus modos e formas de produção
(pré-capitalistas, capitalistas-competitivos) que caracteriza a fase
atual: ~mplica j_g_ualm~pte a reproql!_ção ampliada, em seu se_io,
das_ ~_()pdicões _p_olUic~s-e ideo!§_gi_ç?5 dessé desenvq_lyjmerito do. im-
perialismo americano.----- ··· ·· -- ---- -
---· -------·
Entre outros, S. Amin, L'Accumulation à l'écheUe mondiale,
3
1970, e as diversas obras de E. Faletto, Th. dos Santos, A. Quijano, E.
Torres Rivas, F. Weffort, R. Mauro Marini etc. Ver, em particular,
F. H. Cardoso, Notes sur l'état actuel des études de la dépendance,
mimeografado, agosto çle 1977
A _FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 51

Mas trata-se, no entanto, sempre de um desdobramento assi-


métrico das linhas de demarcação. Esta nova dependência não se
identifica com aquela que caracteriza as relações metrópoles-f o:r-
mações dominadas, e não pode absolutamente ser tratada de ma-
neira análoga a esta, na medida precisamente em que essas metró-
poles continuam a constituir centros próprios de acumulação do
capital de um lado, e a dominar as formações dependentes, de
,outro. É pri~Qnalmente a subestima deste último eleme!}_!Q__q~
caractêfE~ã~ concepções __ dQ_~erimperialismo: de fato, o impe-
-rl'ãlismõ-·ãmerrêãiio e o imperialismo dessas mefrópoles se entre-
gam à dominação e exploração dessas formações. Precisamos ape-
nas mencionar aqui o fato de que uma das contradiçõe·s atuais
mais importantes entre os Estados Unidos e a CEE refere-se à ques-
tão dos diversos "acordos preferenciais" concluídos entre a CEE e
-diversos países do Terceiro Mundo: isso demonstra a importância
da dominação das formações dependentes para as relações in-
terimperialistas.

Est:a fase atual do imperialismo está marcada, em função des-


sas características, e através de vários caminhos, por uma en1er-
gência das lutas das massas populares, ao mesmo tempo nas forma-
ções periféricas e nas metrópoles impe·rialistas, principalmente: na
Europa . É a acumulação dessas lutas que confere, -em conjunturas
determi'nadas desta fase, o caráter de~~ do conjunto do innpe-
rialismo. Com efeito, é necessário evitar atribuir ao termo crise
um sentido ao mesmo tempo economista e bastante vago, aplican-
do-o, assim, ao conjunto de uma fase: isso já ocorreu no caso
das análises da Internacional Comunista entre as duas guerras
que, com o "catastrofismo economista" que as caracterizou, con-
sideraram o próprio imperialismo como estádio de "crise genera-
lizada do capitalis.mo", mas observa-se ainda hoje, sob outras for-
mas, nas análises dos PC ocidentais e sua caracterização geral do
"capitalismo monopolista de Estado" como "crise do imperialis-
mo". Neste sentido, poderíamos também dizer que o capitalismo
sempr1e· esteve em "crise". De fato, tais análises implicam, na sua
subestima das conjunturas de luta de classe às quais, s01nente,
pode a.plicar-se o termo "crise", que o imperialismo ou o capitalis-
mo se: desmoronaria de qualquer maneira por si me·smo, ern vir-
tude de suas próprias "contradições econômicas". Então, como é
a luta. de classes que atribui às conjunturas determinadas do capi-
talisrr10 e do imperialismo o caráter de crise·, os caminhos que
52 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

esta crise segue, inclusive sua reabsorção eventual, dependem


dessa luta.
E:sta periodização coloca assim de uma só vez uma série de
pressupostos epistemológicos. Esta periodização, ao mesmo tempo
em estádios e fases, se situa nas formações sociais, ou seja, nas
f armas de existência de um modo de produção, capitalista na cir-·
cunstância; não decorre de pretensas "tendências" próprias ao
modo de produção - que_ designa um objeto abstrato - como tal..
Com efeito, somente podem se-r periodizadas as formações sociais~
pois é aí que age a luta de classes: um modo de produção só exis:..
te em condições - econômicas, políticas, ideológicas - precisas
que de-terminam sua constituição e sua reprodução. Em outras
pa/,avras, a reprodução (periodização) de um modo de produção
não tem como lugar uin "processo" deste modo de produção como
tal: os estádios e as fases referem-se ao mesmo te-mpo a modifi-
cações diferenciais que constituem a existência deste modo de
produção em f ormaçõe·s sociais. Isso implica precisamente uma
periodização em função das relações articuladas deste modo com
os outros modos e formas de produção, articulação constitutiva
de sua existência e de sua reprodução.
Isso implica, também, que as formações sociais não são sim-
ples "concretizações" de um modo de produção que existiria,
"previamente", e·m sentido forte, no abstrato: a diferenciação entre·
modo de produção e f armações sociais não designa lugares de·
existência diferentes, segundo uma analogia topográfica. As f ar-
mações sociais não são assim a espacialização de modos de pro-·
dução existentes como tais e "empilhados" uns sobre os outros.
As formações sociais são realmente os lugares do processo de re-
produção enquanto núcleos do desenvolvimento desigual nas rela-
ções dos modos e f armas de produção no seio da luta das classes.
Isso quer dizer, então, que o lugar de reprodução do MPC (mod~
1 de produção capitalista) em imperialismo é a corrente imperialis-
ta e seus elos. Os estádios e fases da periodização designam assim
modificações do processo de reprodução, mas com a condição de
precisar bem que essas modificações não são mensuráveis em re-
lação a um modelo ideal - o modo de produção não é um mo-
delo, mas um conceito - que lhes preexistiria: trata-se de mo-
dificações do modo de produção tal como existiu em determina-
das condições.

Esses esclarecimentos parecem-me importantes, em razão das


discussões atuais sobre este assunto e das confusões decorrentes;
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 53,

Por um lado, alguns autores 4 situam como local da repro-


dução ·do MPC um pretenso "processo" deste modo como tal -
no abstrato - só observando nas formações sociais uma concre-
tização e espacialização dos "momentos" deste processo, de onde
emerge a luta de classes. Esta posição assume freqüentemente, no-
quadro de suas análises da fase atual do imperialismo, a forma de
uma concepção de um "modo de produção capitalista mundial".
cujas formações sociais só seriam momentos espacializados. Isso.
conduz diretamente à ideologia da "mundialização", ou seja, aque--
la de um processo abstrato cujo desenvolvimento desigual só cons-
tituiria "as escórias" da concretização em formações sociais. Ora,
o desenvolvimento desigual não constitui um "resíduo" ou uma
"impureza" devidos à "combinação" concreta de modos de pro-
dução reproduzidos no abstrato: ele é a forma constitutiva de re--
produção do MPC no estádio imperialista nas suas relações com os
outros modos de produção em formações sociais. De· fato~ a inter-
nacionalização das relações capitalistas só pode ser apreendida em
seu próprio local, ou seja, na existência da reprodução do MPC
em formações sociais (corrente imperialista). É precisamente em
tal sentido que esta internacionalização não é a simples "integrà--
ção" das diversas formações sociais, ou seja, o produto de um·
MPC mundial prévio e de um processo em si concretizado simples--
mente em formações-"momentos", o que conduz a ocultar a cor-
rente imperialista: ela consiste realmente na reprodução induzida
do MPC das Metrópoles no seio das formações dependentes e do..-
minadas, ou seja, nas novas condições históricas de sua reprodução.

Em contrapartida, em autores como Ph. fierzog 5 , encontra-se·


atualmente a antiga concepção empirista de uma identificação·
entre modo de produção e f armações sociais, sendo o MPC, segun-
do os próprios termos de He~zog, somente a "síntese das diversas·
formações econômicas e sociais capitalistas", e até ao limite uma·
noção extraída pela acumulação comparativa de "traços" destas
formações. Esta posição empirista é assim expressamente solidá-.

4 Principalmente C. Palloix, Les Firmes multinationales et !e proces.·


d'internationalisation, 1973, pp. 100 sq. Minhas observações críticas a
Palloix não tiram aliás a importância de seus textos, indispensáveis à com--
preensão do imperialismo atual. Essa tendência do autor é entretanto sig-
nificativa, na medida em que suas análises se apóiam no texto profun-
damente estrutura1ista e economista de Balibar em Lire le Capital.
·5 Politique économique, op. cit., pp. 27 sq. e sua contribuição ao co-
lóquio do CERM, "Mode de production et formation économique et so--
ciale", número especial de La Pensée, outubro de 1971.
54 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

ria com a concepção de um conjunto imperialista composto de


f ormaçõe-s sociais simplesmente justapostas e adicionadas. Ora,
a corrente imperialista, ainda que não seja um modelo-processo
abstrato do .MPC cujos elos não seriam senão a concretização, não
é também a simples soma de suas partes. A corrente imperialista
não passa da reprodução do MPC nas formaçõe·s sociais sob condi-
ções econômicas, políticas e ideológicas determinadas, e os elos
,desta corrente - formações sociais - é que constituem os locais
de existência _deste processo.

2. Os Sinais da Dominação do Capital Americano

É sob este ponto de vista que convém, primeiramente, antes


.de analisar mais a fundo esta situação, expor os traços que a
·Caracterizam.

1. O primeiro fato surpre:endente é o crescimento propor-


·cional regular, após a Segunda Guerra Mundial, no volume glo-
-bal de investimentos de capitais para o exterior, do capital ame-
-ricano. Em 1960, os investimentos externos dos Estados Unidos
já somavam 60o/o do total mundial, ao passo que, em 1930, só se
·elevavam a 35%. Se bem que num ritmo menos espetacular essa
tendência tenha sido confirmada, e o hiato que separa os _Estados
Unidos das outras metrópoles se tenha aprofundado ainda mais,
no período 1960-1968, período para o qual existem elementos es-
tatísticos comparativos 6 • Em números absolutos, em 1960, o valor
contábil real dos investimentos diretos controlados pelas firmas
americanas no mundo era de 30 bilhões de dólares. Em 1972, o
valor desses investimentos americanos foi estimado em mais de
·go bilhões de dólares, cifra aliás deveras subestimada.
Mas o que importa ainda mais são certas características novas
-desses investimentos:

2. Doravante, não são mais as formações periféricas, mas


as metrópoles imperialistas européias que se tornam, de maneira
maciçamente crescente, o local privilegiado de inve-stimento do
-capital americano. Em números absolutos, os investimentos dire-

6 J. Dunning, "Capital Movements in the Twentieth Century", em


lnternational lnvestment, 1972, obra coletiva; G.-Y. Berlin, L'mvestisse-
ment international, 1972, pp. 26 sq.; "Les Investissements directs des
Etats-Unis dans Ie monde", La Documentation française, pp. 7 sq.
A FAS:e ATUAL DO IMPERIALISMO 55

tos americanos quadruplicaram durante o período 1957-67 na Eu-


ropa, enquanto não dobraram absolutamente no Canadá, e apenas
aumentaram na América Latina. A parte proporcional da Europa
nesses investimentos, que era de 15,60"0 em 1955, deu um salto
.que não se interrompeu depois: 20,50/o em 1960, 28% em 1965,
cerca de 31% em 1970. O caso foi particularmente marcante para
a CEE: desde 1963, o capital americano na CEE ultrapassou aquele
que foi investido na Grã-Bretanha, onde sempre foi considerável;
e, em 1970, apenas os investimentos diretos na CEE recuperaram
aqueles que foram realizados no resto da Europa (Grã-Bretanha
inclusive) 7 • Isso, aliás, corresponde à tendência geral de os capi-
tais das metrópoles serem investidos no interior de sua própria
zona.

3. Diferenças consideráveis se instauram paralelamente quan-


to às formas de investimento desses capitais. Trata-se da predomi-
nância crescente dos investimentos diretos sobre os investimentos
em carteira. Ainda que tal distinção seja de fato relativa, ela
:assume uma importância de indício, pois corresponde diretamente
às modificações nas relações de produção. Entendem-se por inves-
timentos diretos ao mesmo tempo os investimentos em capital
fixo e aqueles que· provocam, ou tendem, a curto ou longo prazo,
a uma tomada de controle das firmas e empresas: ainda que as
percentagens variem segundo as estatísticas e as diversas institui-
ções, conside-ram-se em geral como investimentos diretos aque-
les que ultrapassam 25% das ações de uma sociedade. Os investi-
mentos em carteira referem-se à simples compra de obrigação ou
-0perações bursáteis e financeiras a curto prazo. Atualmente, os in-
vestimentos diretos constituem cerca de 75% dâ-s exportaçõe-s- dos
capitais privados dos principais países industriais, co.ntra somen-
te 10% antes de 1914 s.
Ora, mesmo que o conjunto do fluxo de investimentos globais
da Europa para os Estados Unidos equilibre aproximadamente o
dos Estados Unidos para a Europa (argumento privilegiado de Man-
del, Rowthorn etc.), cerca de 70% dos investimentos americanos
na Europa são investimentos diretos, contra apenas um terço
dos investimentos europeus nos Estados Unidos 9 • O que indica
também que o capital americano na Europa é deduzido de fato

7 Goux e Landeau, Le Péril américain, 1971, pp. 24 sq.


s Dunning, The Multinational Enterprise, obra coletiva, 1971.
9 B. Balassa, em La Politique industrielle de l'Europe intégrée, ed.
:por M. Byé, 1968.
56 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

pelo seu valor acumulado e pelo reinvestimento no lugar dos lu-


cros. De fato, ao contrário do que se· passa com as formações
periféricas, uma parte considerável (cerca de 400/o) desses lucros
é aqui reinvestida no lugar ou no seio da mesma zona.

4. Uma parte crescente dos investimentos estrangeiros dos


países desenvolvidos pertence às indústrias de transfarmação
(produtos manufaturados) ern relação às indústrias extrativas
(matérias-primas) e ·aos setores "serviços", comércio etc. Isso é
particularmente claro para o capital americano. Levando-se em
conta as indústrias de transformação, o aumento proporcional do
capital americano na Europa eni relação à exportação global do
capit~l americano neste setor é ainda mais surpreendente: enquan-
to em 1950 a Europa só recebia 24,3o/o do capital americano neste
setor, em 1966 recebia 40,3o/c:). Paralelamente, enquanto a esma-
gadora maioria dos investimentos diretos americanos na Europa
se refere às indústrias de transformação, portanto o capital dire-
tamente produtivo, uma pequena parte (cerca de um terço) dos
investimentos diretos europeus para os Estados Unidos refere-se
ao capital diretamente produtivo, indo a maior parte para o setor
"serviços", seguros etc. 10

5. Esses investimentos americanos na ~uropa estão ligados


à concentração e à centralização do capital. Provêm dos ramos
e setores mais concentrados nos Estados Unidos 11• Dirigem-se na
Europa para os setores e ramos com forte concentração, contri-
buindo aliás para precipitar o ritmo de concentração: as filiais
européias das sociedades arriericanas se situam, para a maioria
dos casos, em ramos muito concentrados, onde a filial ocupa com
mais freqüência uma posiçã.o dominante 12 • Enfim, os setores e
ramos investidos são aqueles. que conhecem a expansão mais rá-
pida e apresentam a tecnologia mais avançada, ou seja, a mais
alta produtividade do trabalho e as características dominantes de
uma exploração intensiva do trabalho pela alta da composição or-
gânica do capital: 85% dos investimentos americanos no domí-
nio das indústrias de ·transformação referem-se à metalurgia e às

liO Documentação francesa, op. cit., Balassa, op. cii.


:Jit St.-Hvmer, "The Efficiency Contradictions of Multinational Cor-
porat:ioi:is", em The Multi-Corporation and the Nation State, obra cole-
tiva, 1972; C.-A. Michalet, L'Entreprise plurinationale, 1969.
112 · J. Dunning, American Investment in British Manufacturing In-
dustry.
A FASE' ATUAL DO IMPERIALISMO 57

indústrias mecânicas, à química e aos produtos sintético~,_ à in-


dústria elétrica, à eletrônica etc. O ritmo de expansão e de cres-
cimento desses capitais se situa entre 9 e 12o/o ao ano, isto é, cerca
do dobro do crescimento do PNB europeu, e mais ainda do que
o dobro do crescimento do PNB americano: o crescimento desses
capitais americanos na Europa é estimado por uma parte conside-
rável das taxas de crescimento e dos ritmos de aumento dos PNB
europeus, que parecem impressionar tanto certos "futurólogos"
'atuais. Enfim, quando se examinam as direções de desenvolvimen-
to desses investimentos, observa-se claramente que parecem, na
maioria dos casos, reservar-se à concessão das licenças e permis-
sões das firmas européias, empreendendo a exploração direta
de-ssas vantagens tecnológicas.

6. A exportação dos capitais e a hegemonia do capnal ame-


ricano referem-se, aliás, igualmente à centralização do capita/,-
dinheiro, aos grandes bancos e aos holdings propriamente finan-
ceiros. O número das filiais dos bancos americanos na Europa,
que aumentou de 15 a 19 entre 1950 a 1960, passou de 19 para 59
de 1960 a 1967. As "sociedades associadas" bancárias americanas
que dominam no mundo passaram, entre 1960 e 1967, de 15 a 52 11'3.
De tal situação de conjunto, decorre, aliás, o papel desempenhado
durante muito tempo, no domínio monetário, pelo dólar, e o qual
é substituído, atualmente, pelo mercado do Eurodólar. Nota-se,
ademais, que essa tendência assume proporções conside-ráveis com
a entrada da Grã-Bretanha na CEE, sendo que Londres é o lugar
financeiro privilegiado das filiais bancárias americanas na Euro-
pa: 50% dos Eurodólares eram, em 1970, detidos por Londres,
na mai9r parte pelos estabelecimentos bancários americanos 14 •
Ora, a tendência para a "fusão" do capital industrial e do
capital bancário em capital financeiro no estádio do capitalismo.
monopolista não considera a diferença, no ciclo de reprodução
ampliada do capital, entre a concentração do capital produtivo
e a centralização do capital-dinheiro. A acumulação do capital
e a taxa de lucro neste ciclo de conjunto são determinadas pelo
ciclo do capital produtivo, aquele que produz a mais-valia, ao·
contrário de uma concepção bastante difundida e que identifica
capital "financeiro" e capital bancário, concluindo daí um domí-

13 Magdoff, op. cit., pp. 73 sq. No plano mundial, as filiais de


bancos americanos passaram de 303, em 1965, para 1.009, em 1972.
11 4 Chr. Goux e J.-F. Landeau, Le Péril américain, pp. 106 sq.
58 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HoJE

nio dos bancos no estádio imperialista-capitalista monopolista.


De fato, o capital financeiro não é, para empregarmos a lingua-
gem própria, uma fração do capital como os outros, mas de·signa
o processo de sua "fusão" e o modo de funcionamento dessas fra-
ções reunidas.
Voltarei amplamente, no ensaio seguinte, a essas questões 15 :
no momento, insisto no fato de que, embora a internacionalização
do capital só possa ser apreendida ao nível do processo de repro-
dução do conjunto do capital social (capital produtivo, capital-
dinheiro, e igualmente, aliás, capital-mercadorias), o capital como
relação social está baseado no ciclo do capital produtivo. Isto é
precisamente a expressão da proposição marxista fundamental,
segundo a qual são a produção e as relações de produção - no MPC
relações de produção e de extração da mais-valia - que determi-
nam a realização da mais-valia e as relações de circulaç·ão, as f amo-
sas "relações de comércio". Sabe-se que Lênin encontrara um
aspecto desta questão na sua polêmica com Rosa Luxemburgo:
a teoria Leninista do imperialismo, e mesmo o papel da exporta-
ção dos capitais, é baseada no papel determinante do ciclo do
capital produtivo. É o que explica o lugar privilegiado que se lhe
dedica na análise das modificações da fase atual do imperialismo.
Não foi inútil assinalar então este problema, dadas. certas
interpretações atuais do imperialismo, de G. Frank e A. Emma-
nuel até Chr. Palloix, G. Dhoquois e P.-P. Rey, todas baseadas,
finalmente, ainda que e·m graus desiguais, na concepção pré-mar-
xista do primado do ciclo e do espaço de circulação sobre aquele
das relações de produção 16 • Recolocando radicalmente em causa
o leninismo, elas conduze·m por um lado a uma impossibilidade
de periodização rigorosa do MPC em estádios sob a forma, com
G. Frank, de um "capitalismo desde os primórdios imperialistas"
e, com Palloix-Dhoquois-Rey, de uma distinção entre "árqueo-
imperialismo" e "neo-imperialismo"; por outro lado, a uma im-
possibilidade de periodização do próprio imperialismo em fàses.

Enfim, essas modificações repercutem, numa certa medida,


na organização atual do comércio exterior mundial no que se
15 Chamo atenção aqui para o fato de que certas análises con-
ceptuais deste ensaio, que coloca um quadro referencial geral, serão
retomadas de maneira detalhada no ensaio seguinte.
1 6 A. Gunder Frank, Le Développement du sous-dévelormement, 1968,
e Capitalisme et Sous-Dévéloppement en Amérique Latine, 1969; A. Emma-
nuel, L'Echange inégal, 1970; Chr. Palloix, op. cit.; G. Dhoquois, Pour
l'Histoire, 1972. P.-Ph. Rey, Les Alliances de classe, 1973.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 59

refere à exportação das mercadorias: tendência inerente do capi-


talismo à extensão do ·mercado e que, se be·m que dominada no
estádio imperialista pela exportação dos capitais, não se submete,
entretanto. A parte, no comércio mundial, do comércio interno
entre "países desenvolvidos" cresce em relação à parte do comér-
cio entre estes últimos países e os da periferia. A parte das trocas
internas do centro passou de 46o/o do comércio mundial em 1950
para 62o/o em 1965, aumentando bem mais rapidamente do que o
+
comércio centro-periferista ( 17 ,5% em 1969). A essa evolução
corresponde, aliás, a parte crescente, no c01:ri'ércio mundial, dos
produtos manufaturados: eles representam, em 1969, cerca de
66% do comércio mundial contra menos de 50% antes de 1963 17 •
Dito isso, é certo que, nos países imperialistas, assiste-se à
um aumento proporcional na exportação de mercadorias por parte
de outros países imperialistas, principalmente da Europa, em re-
lação àquele dos Estados Unidos. Encontra-se aí o argumento
principal da tendência Mandel, no que concerne ao fim a curto
prazo da supremacia do capital americano. Direi duas palavras
sobre a significação deste fenômeno na conclusão, mas pode·mos
observar desde logo:
a) que o papel decisivo no imperialismo cabe à exportação
dos capitais;
b) que as análises de Mandel, de um lado,_ não levam em
consideração as mercadorias produzidas diretamente nà Europa
pelas firmas sob controle americano, mercadorias que são "subs-
tituídas" assim pelas exportações americanas; de outro lado, que
elas contam como exportações "européias" as exportações de fir-
mas sob controle americano nos países da Europa. Isto assume
grande importância se levarmos em conta o fato de que os inves-
timentos americanos na Europa se fazem maciçamente em seto-
res baseados na exportação, inclusive sob a forma de "reimporta-
ção" sob etiqueta de marca européia para os próprios Estados
Unidos. Dunning estima, assim, que um terço do crescimento das·
exporta-ções européias em produtos de tecnologia avançada entre-
1955 e 1964 provinha de empresas controladas pe.Jo capital ame-
ricano, e que, em 1980, cerca de um quarto de todas as exporta-
ções britânicas proviriam dessas empresas. Aliás, uma brochura
editada em 1970 pela DATAR francesa chamava atenção para a im-
plantação do capital americano na França: ela assinalava que os
projetos de investimentos seriam particularmente bem-vindos, se~

!7 S. Amin, op. cit., pp. 85 sq., e igualmente Magdoff.


60 As CLASSES SOCIAIS No CAPITALISMO DE HOJE

entre outros aspectos, "permitissem exportar, ajudando-nos, assim,


a equi1lbrar a balança comercial da França".

Voltemos à questão da exportação dos capitais americanos:


os fatos acima só demonstram sua importância como sinais das
modificações que afetam atualmente, no ciclo do capital social,
a concentração internacional do capital - relações de produção
- e a divisão social imperialista do trabalho no plano mundial -
o processo de trabalho. É sob este ângulo que podem ser estima-
dos no seu valor justo.
Sua significação não pode absolutamente reduzir-se à famosa
questão da "percentagem" do montante dos investimentos dire-
tos americanos nos países europeus em relação ao montante· glo-
bal dofi investimentos - inclusive os autóctones - nesses países,
argumentação cara· à tendência de Mandel e também aos diversos
especialistas burgueses da questão. Se essa percentagem é um in-
dício do fato de que os países europeus não são certamente, longe
disso, simples "colônias" dos Estados Unidos, não é também indi-
cativa do novo processo de dependência se for considerada de
maneira isolada. Mas consideremo-la assim por um instante: essa
percentagem parece, segundo as estatísticas oficiais, relativamente
fraca, situando-se em torno de uma média. de 6,5o/o para a Euro-
pa (cifras comparativas de 1964, mas que aumentaram considera-
velmente depois). No entanto, existem razões para pensar que o
estab~lecimento desses dados tende bastante para um sentido limi-
tativo.
Prim.eiramente, com freqüência - isto depende dos países-,
só levam'os em conta investimentos americanos provenientes seja
do fluxo de novos capitais dos Estados Unidos, seja de reinvesti-
mentos pelo autofinanciamento das filiais americanas na Europa,
negligenciando o recurso do capital americano ao mercado euro-
peu de capitais -remissão de Euro-obrigações - e ao mercado
do Eurodólar,_ recurso que cobre· atualmente os dois ·terços do
montante dos investimentos americanos reais na Europa. Em se-
guida, embora só consideremos em geral como investimentos di-
retos aqueles que· ultrapassam 25% dos ativos de uma firma, com
freqüência bem menos suficientes, no contexto atual de concen-
traçãõ do capital e de socialização do processo de trabalho, para
assim assegurar o controle pelo capital americano. Mas ainda:
essas cifras referem-se aos investimentos diretos no conjunto da
economia, e quando então se considera o único setor industrial
- o capital produtivo -, a percentagem é consideravelmente
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 61

mais elevada. Enfim e sobretudo: tais cifras não levam em conta


investimentos americanos que se fazem na Europa sob a cober-
tura de firmas juridicamente· "européias", mas sob controle e
propriedade econômica americana. É principalmente o caso da
Suíça e seus investimentos nos países da CEE. Damo-nos conta da
importância da questão quando consideramos o fato de que·, de
1961 a 1967, a proporção dos investimentos americanos entre os
investimentos estrangeiros diretos na França erá de 30o/o, mas os
da Suíça de 29%; F. Braun, diretor da Comissão da CEE, adicio-
na os dois para chegar à cifra de 59% de investimentos diretos
americanos 18 • Sabe-se, aliás, que esse fenômeno assume propor-
ções consideráveis com a entrada da Grã-Bretanha na CEE.

Se seguirmos agora o traçado concreto desses investimentos


americanos na CEE ampliada, a lista de premiados cabe ~empre,
em 1970, em volume absoluto, à Grã-Bretanha: as características
da economia desta f armação, que conjuga precisamente os traços
de um poder econômico de primeiro plano e estreitamente,....de-
pendente do capital americano, são bem conheddas. Elas foram
revigorada~ por aqueles que esperam que uma entrada da Grã-
Bretanha na CEE a libertaria desta dependência. A Grã-Bretanha
é seguida de perto pela Bélgica e pela Holanda, a França vindo
com a Itália na última posição, mas recuperando rapidamente seu
atraso neste sentido. Mas é na Alemanha Ocidental que os inves-
timentos americanos apresentam a tendência de crescimento mais
rápida e mais maciça, parecendo a Alemanha suplantar, neste sen-
tido, a Grã-Bretanha. Sem chegar ao ponto de dizer, cO.m C. Goux,
que a Alemanha está prestes a. se tornar, em 1980, o "Canadá da
Europa", isto de·ve ser assinalado, num momento em que a relação
estreita que se· constata atualmente entre as "posições alemãs" e
as "posições americanas" é mais freqüentemente atribuída seja so-
mente à importância das exportações alemãs para os Estados Uni-
dos, seja unicamente· à presença das forças americanas na Ale-
manha: tudo isso parece demonstrar de fato que essa presença
funciona cada vez mais como simples pára-vento à penetração eco-
nômica. Isso é ainda mais interessante· de observar em um mo-
mento em que, precisamente, a dominação econômica da Alema-
nha no seio da CEE está para se afirmar e em que a Alemanha se
apresenta como a campeã da "integração européia".

18 F. Braun, em La Politique industrielle. . . • op. cit.


62 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

Mas a questão é mais do aue uma questão de percentagem.


É necessário: assim, nos atermo-s às modificações atuais na cons-
tituição internacional do capital e na divisão social imperialista
do trabalho. É a ação das novas formas das relações de produção
mundiais nos processos do trabalho quei marca atualmente as mu-
danças na corrente imperialista e nas relações Estados Unido~­
Europa.

3. A Socialização Internacional dos Processos do Trabal,ho e a


lnternacionaUzação do Capital

1. As novas formas de divisão internacional imperialista do


trabalho (socialização das forças produtivas) correspondem à di-
reção que a concentração atual do capital (relações de produção}
imprime aos processos de trabalho e às forças produtivas em es;...
cala mundial. A concentração do capital em escala internacional
e a construção de impérios financeiros datam de fato dos pri-
mórdios da era· imperialista. ·Elas implicavam, como era o caso
para o processo de concentração no interior de uma formação
social, uma distinção entre propriedade jurídica formal e pro-
priedade econômica real (sociedades por açõe·s), que foi tomada:
como figura ideológica de "uma separação da propriedade priva-
da e do controle". Essa distinção é hoje sempre válida: as modi-
ficações importantes predominam sobre a articulação atual da
propriedade econômica e da posse, ou seja, sobre as formas das
próprias relações de produção.
De fato, a forma de concentração que prevalecia com a ex-
tinção progressiva do "capitalista empreendedor" era ou aquela
de cartéis e holdings financeiros internacionais, ou aquela de· um
capital que disponha em um país exterior de uma unidade de
produção (centro de apropriação da natureza) determinada ou.
de diversas unidades de produção "separadas" em diversos países.
A forma dominante implicava então uma distinção e descentrali-
zaÇão relativas entre as relações de posse (domínio e direção de
um processo de trabalho determinado) e· de propriedade econômi--
ca (poder de afetação dos meios de produção e de alocação dos
recursos e lucros para esta ou aquela ·utilização): esta proprie-
dade concentrava sob único COD.trol(1 as dive·rsas unidades de pro-
dução (e posses) separadas. O que, em contrapartida, caracteriza
a fase atual do imperialismo é a constituição, sob propriedade:
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 63

econômica única, de efetivas unidades de produção complexas rn


a processos de trabalho estreitamente articulados e integrados -
produção integrada - cujos diversos estabelecimentos se distri-
buem em vários países: produção integrada que não impede, bem
ao contrário, a diversificação de produtos finais, e que não se
limita a um único ramo. As próprias trocas entre esses diversos.
estabelecimentos não são estabelecidas na base dos preços do mer-
cado, mas constituem trocas "internas" a estas unidades (preço·
de transferência). Por outro lado, constata-se, sob uma nova for--
ma, uma reabsorção do afastamento entre propriedade econômi-
ca e posse: o que não impede novos distanciamentos entre a plu--
ralidade dos poderes que comportam estas relações e seu exercí-
cio por diversos portadores e agentes.
· A reabsorção de tal afastamento deve ser apreendida na
escala do processo de conjunto: ramos, indústrias, inter-ramos,
mas também a montante - matérias-primas - e a jusante --
comercialização - da produção. Essa reabsorção tem, por um
lado, como conseqüência geral, o recuo, e por vezes mesmo faz:
ultrapassar os limites tradicionais das "empresas" no plano inter--
nacional; por outro lado, como um efeito particular, a constitui--
ção das firmas multinacionais industriais (um estudo recente dO'
GATT sublinha que 30o/o do comércio internacional assumiriam a
forma de trocas no seio dessas firmas): isso só é um efeito, pois
essas firmas só recobrem parcialmente a unificação das unidades.
de produção complexas por ramos e indústrias. Mas tais firmas:
constituem um excelente exemplo da integração atual dos pro--
cessos de trabalho. É a essas modificaÇões que corresponde prin-
cipalmente a preeminência dos investimentos diretos sobre os in--
vestimentos em carteira.
A integração d_os processos de trabalho no interior de uma.
firma em escala internacional pode assumir várias formas. Pode-
se tratar de uma integração vertical, cada filial em um país sendo·
encarregada de um estádio de produção ou de uma série de com-
ponentes e partes de um produto ou grupo de produtos: caso
clássico da IBM. Pode-se tratar, igualmente, de uma integração·
horizontal, cada estabelecimento ou filial especializando-se, de
um objetivo a outro, na produção de· produtos que elas trocam
entre si: caso da Ford. Esta produção integrada é, aliás, com
freqüência parcialmente realizada através de vários ramos nas
formas atuais de conglomerado. Seja o que for, estas formas de·

li9 Sobre este assunto, Bettelheim. Calcul économique et Formes de-


propriété, 1971.
64 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

socialização dos processos de trabalho, mesmo se elas não cons. .


tituem ainda a forma dominante da concentração internacional
do capital, constituem em todo caso a tendência mais marcan-
te ;..,,: cia.s fazem, de fato, parte de um processo bem mais amplo
de socialização do trabalho.

2. Esta socialização do trabalho em escala internacional não


é devida principalmente a fatores de ordem "técnica" - a "re-
volução tecnológica" - mas se opera sob o signo de modificações
importantes das relações de produção mundiais. Ela só pode ser
tomada então, em toda a sua amplitude de divisão social impe-
rialista do trabalho, por formas atuais de internacionalização do
capital. Ainda que seja necessário estar bastante atento em razão
.das diVersas ideologias que· gravita,m em torno das interpretações
das firmas multinacionais. Quais são os tráços particulares dessa
internacionalização na fase atual, cujas firmas são somente um
dos efeitos?
a) O desenvolvimento das bases da exploração de um capi-
tal particular, ou de uma reunião de vários capitais, nas várias
.nações, a saber, a extensão do local onde esse capital se consffúii
como relação social;
b) A tendência marcada parà a reunião, sob propriedade
'econômica única, de capitais provenientes de vários países dife-
rentes: esta questão de "proveniência" não remonta a um pro-
blema de nacionalidade 4_0 _ça,pit~l (o capital não é. l.nna-: coT~~),
mas ao lugar onde' se estabelecem as relações sociais originárias
e/ou dominantes que constituem esse capztal. Com efeito, os ca-
sos de capitais que não possuem base dominante, como relações
sociais, em um determinado país, são muito raros.
Seria ainda necessário acrescentar logo que· essa internacio-
nalização se faz, na esmagadora maioria dos casos, onde se en-
contra esta participação jurídica e econômica de capitais de
várias nações, sob a dominação decisiva do capital proveniente
de um determinado país: é este capital que concentra em suas
mãos a propriedade econômica única. Como prova o fato de que
as "joint ventures" - empresas unidas - que se supõe repre-
sentam uma "fusão igualitária" da propriedade dos capitais de

20 É a conclusão da pesquisa de Harvard, exposta por R. Vernon,


"International Investment and International Trade in the Product-Cycle",
em The Economics of Technological Change, obra coletiva, Rosenberg,
1971.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 65

diversos países permanecem, sob suas aparências jurídicas, excep-


cionais (ex.: Royal Dutsch-Shell, Dunlop-Pirelli, Agfa-Gevaert).

Isso se prende à própria natureza das relações de produção


capitalistas, tal como se exprimem no processo de concentração
atual, não sendo o capital (repetimos) uma "coisa", mas uma
relação de produção: é o lugar circunscrito pelas relações de
propriedade econômica e de posse que determina os diversos po-
deres daí decorrentes. A ocupação deste lugar por diversos capi-
tais, que se reproduzem ao mesmo tempo no interior e no exte-
rior de uma formação social, não tem nada de amigável, pois
depende de uma relação de força: as contradições e· a concorrên-
cia continuam •ntre os componentes de um capital concentrado.
Ainda mais que a correspondência estreita que se estabelece
.atualmente entre propriedade econômica e posse, e que é o equi-
valente do processo atual de concentração internacional, trabalha
precisamente para um controle unificado e uma instância central
.dirigente, sob um capital determinado;
c) Essa internacionalização do capital se efetua sob a_._do-
_minação decisiva do capital americano. Nos casos do capital in-
·dustrial produtivo, em 1968, 55o/o dos ativos das firmas multina-
cionais no exterior de seus países de origem pertenciam ao capi-
tal americano, 20% ao capital "britânico", e o resto distribuído
entre capitais europeus e japoneses. Constata-se, aliás, que cerca
de 40 dentre as 50 maiores firmas multinacionais são americanas.
Isso acompanha, ao contrário da argumentação de Mandei,
a tendência maciça de uma fusão extrapolada dos _q1pi(ais efffo-
peus com o capital americano, de preferência a uma fusão-desses
capitais entre si: a CEE só faz acentuar essa tendêncfa. De 1962
a 1968, principalmente·, registraram-se, na CEE, 109 absorções e
fusões, cuja metade c0locava em causa capitais estrangeiros per-
tencentes a "países terceiros"; 1.180 tomadas de participação,
dentre as quais 800 por capitais estrangeiros; 625 criações de fi-
liais comuns a duas empresas do Mercado Comum, mas 1.124
criações de filiais comuns entre uma firma do Mercado Comum
e uma firma de "países terceiros". Ora, esses capitais estrangei-
ros e "terceiros países" são, na esmagadora maioria dos casos, de
maneira direta ou camuflada, americanos 21 • No caso do capital
produtivo, as coisas são ainda mais nítidas: para as chamadas
filiais de produção estabelecidas em 1967 e 1968 na CEE, enume-
21 "L'Europe des communautés" (1972), em La Documentation fran-
çaise.
66 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

ravam-se 202 devidas a capitais do conjunto dos países da CEE,


e 216 de capital americano. Deve-se somente mencionar o fato
surpreendente de· que os investimentos britânicos na França, que
se aceleraram maciçamente com a .entrada da Gr:ã-Bretanha na
CEE, só se referem, essenciahnente·, aos circuitos de distribuição
e ao imobiliário. Enfim, para dar ainda uma idéia dessas propor-
ções, assinalemos que na França, para o primeiro semestre de:
1967 e apenas para o fluxo de investimentos, o montante dos·
capitais estrangeiros investidos era da ordem de 167 milhões de
francos provenientes da connunidade e de 442 provenientes de:
"países terceiros", entre os quais 316 de origem americana direta
e declarada 2 2 : mas vimos aquilo que, freqüentemente, se esconde
por trás dos investimentos formalmente "terceiros" distintos dos:
americanos, ou mesmo provenientes da "Comunidade".
Finalmente e sobretudo: mesmo quando se trata de uma re-
união de capitais europeus entre si, trata-se raramente de uma fu-
são, mais raramente ainda de uma produção integrada, porém mais:
freqüentemente de "acordos" diversos (exemplo: Fiat-Citroen),
de associações limitadas e de operações de carteira, enquanto a si-·
tuação é exatªmente o inverso quando se trata de concentrações
sob a égide do capital americano 23 • Neste último caso, consta-·
ta-se mais amiúde um deslocamento efetivo do conjunto de po-
deres da propriedade econômica e da posse para o capital ame-
ricano, em conseqüência das relações de força entre o capital
americano e os capitais europeus: isto não se explica, natural-·
mente, como sustenta um b01n número de analistas, pelas "obri-
gações jurídicas" que a legislação americana "impõe" a seu ca-
pital (principalmente pelo fato de que uma simples participação
desse capital em uma empresa estrangeira pode fazê-lo cair sob
o golpe da lei "antitruste", quando então as filiais que se encon-
tram sob a propriedade jurídica única desse capital a ela esca-
pam).

4. A Divisão Social Imperialista do Trabalho e a Acumulação


do Capital

São essas modificações que marcam as novas formas de divi-


são social imperialista do trabalho e as relações das metrópoles
122 Y. Morva.1, La Concentration de /'industrie en France, 1972,
p. 397.
123 Dunning, em The Multinational Enterprise. -op. ci1t.. pp. 19,
297 sq.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 67

imperialistas entre si: elas correspondem a novas formas de


acumulação do capita/, em escala mundial. Com efeito, coman-
dando o desdobramento da linha de demarcação metrópoles/for-
mações dominadas pela nova linha de demarcação que atravessa
as próprias metrópoles do imperialismo, e deslocando as bases de
exploração e de acumulação para a zona das metrópoles, estas
modificações devem ser apreendidas como estratégia do capital
em face das condições atuais da baixa tendencial da taxa de lu-
cro. Ao passo que as exportações dos capitais apareciam antes
principalmente ligadas ao controle das matérias-primas e à ex-
tensão dos mercados, elas. respondem atualmente, no essencial,
à _necessidade de valorização do capita/, monopolista imperialista
tirando partido de toda vantagem relativa na exploração direta
do trabalho (isso não quer dizer então que a necessidade de ex-
tensão dos mercados, no caso, por exemplo, do investimento do
capital americano na Europa, esteja ausente). As modificações
que foram aqui questionadas, implicando a dominação do capi-
tal americano sobre as outras metrópoles, tendem essencia/,mente
para um objetivo: a alta da taxa de exploração a fim de contra-
riar a tendência à baixa da taxa de lucro 24 • É aí que reside,
principalmente, a razão profunda da interiorização da reprodu-
ção do capital dominante no próprio seio das bases de explora-
ção "exteriores" e das novas formas de a~ticulação propriedade
econômica/posse, correspondendo às formas atuais de dominação
do capitalismo monopolista sobre os outros modos e formas de
produção em escala internacional, isto é, nas formas atuais de
exploração.
De fato, esta alta da taxa de exploração é a resultante, ao
mesmo tempo, do nível dos salários e da produtividade do traba-
lho -. compreendendo o grau de desenvolvimento das forças
produtivas etc. O nível dos salários e a produtividade do trabalho
são, a longo prazo, ligados. Em outras palavras, a taxa de explo-
ração e de mais-valia não é simplesmente mensurável ao nível
dos salários, mas também ao nível da exploração intensiva do
trabalho: novos procedimentos técnicos, diversificação dos produ-

:24 Sendo entendido que isso não deve ser compreendido como tá-
t:ca a curto prazo concernente às úni~as taxas de lucro, mas como es-
.tratégia a longo prazo da fração dominante do capital bternacional ten-
<lente a se assegurar um domínio social do processo produtivo mundial.
Sotre fste assunto o artigo digno de nota c'e Chr. Leucate: "Les con-
trad.cti ns inte:-imp~rialstes auj:)Urd'hui'', em Critiques d'économie po-
Iitique, outub:·o-dezembro de 1973. Ver igualmente A. Granou: "La nou-
velle crise du capitalisme", em Les Temps Modernes, dezembro de 1973.
68 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HoJE

tos, intensificação do trabalho e dos compassos. Um salário mais.


elevado, em valor nominal e real, pode corresponder, segundo o.·
desenvolvimento das forças produtivas, a uma p-roporção mais
fraca do valor produzido e, assim, a uma exploração acrescida
em relação a um salário mais baixo no contexto de uma menor·
produtividade do trabalho.
Sabe-se, pois, que, se os salários da zona dominada são mais
baixos do que aqueles dos países imperialistas, a produtividade·
do trabalho é consideravelmi~nte mais elevada nas metrópoles.
Mas isso não leva ainda .em conta o deslocamento das bases de
exploração do capital para as metrópoles, que só pode ser ex-
plicado pelo deslocamento, na. fase atual do imperialismo e ao·
nível da acumulação mundial, do peso da exploração para a f!X-
ploração intensiva do trabalho. Este· deslocamento é ele próprio
função do caráter principal da. concentração monopolista: a alta
da composição orgânica do capital, isto é, o aumento do capital
constante em relação ao capital variável (custos salariais), e a
diminuição do trabalho vivo em relação ao "trabalho morto"
(incorporado nos meios de trabalho). Esta alta da composição•
orgânica do capltal sendo inversamente proporcional à taxa de
lucro, é onde· se inscreve a tendência atual para .as inovações
tecnológicas. Mas o trabalho permanece sempre a base da mais-
valia: é o que explica a tendência atual para um aumento da
taxa de exploração pelo desvio principal _de uma exploração in-
tensiva do trabalho, diretamente ligada à produtividade do tra--
balho (mais-valia relativa).

As novas formas de relaçfies de produção mundiais e de so--


cialização internacional do processo de trabalho, que concorrem
precisamente para esta exploração intensiva do trabalho no plano
mundial, concentram-se então nas novas formas da divisão social
imperialista do trabalho. Esta divisão, na ordem da exploração,
não passa mais somente pela linha tradicional de demarcação.
"cidades-indústrias-metrópoles / campos-agricultura-formações do-
minadas". Ela se duplica con1 uma divisão no próprio seio do>
setor industrial do capital produtivo, sem esquecermos, por outro)
lado, o processo de "industrializaÇão" da agricultura no plano,
internacional: -é aí que se inscreve o deslocamento das exporta-·
ções de capitais para os investimentos diretos e para as indústrias
de transformação, assim como a importância, no comércio exte-
rior, dos produtos manufaturados.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 6~

Esta nova divisão social imperialista do trabalho refere-se,


de fato, igualmente às relações metrópoles-formações dominadas.
Ela corresponde ao "desenvolvimento do subdesenvolvimento" e:
produz deslocamentos e def armações de novo tipo nas formações.
dependentes: acantonamento geral dessas formações em investi-
mentos de capitais em formas de indústria leve e de tecnologia
inferior, manutenção da fraca qualificação da força de trabalho,
isto é, exploração do trabalho através principalmente da utiliza-·
ção indireta de baixos salários, mas também existênc;a de "seto-
res" isolados em altas cqncentrações do capital e produtividade
do trabalho. Mas ela se refere principalmente à nova demarca-
ção entre os Estados Unidos de um lado, e as outras metrópoles·
imperialistas do outro. Ela tem efeitos importantes sobre as d· s-
paridades dos salários entre· essas formações, as disparidades dos
salários entre Estados Unidos e Europa desempenhando aqui um
papel próprio; sobre· o nível de qualificação e sobre as disparida-
des no processo qualificação-desqualificação do trabalho no seio-
dessas formações; sobre as disparidades no leque das hierarquias·
salariais nessas formações, sendo o leque muito mais "abe·rto" e·
as diferenciações dos níveis dos salários no seio da classe operá-
ria muito mais importantes na Europa do que nos Estados Uni-·
dos, encontrando-se fenômeno análogo entre, desta vez, as me-·
trópoles de um lado e as formações dominadas de outro; sobre
as disparidades tecnológicas; sobre as disparidades entre as for-·
mas de desemprego, o desemprego europeu correspondendo atual-·
mente, em grande parte, à prodigiosa "reestruturação" em ques-
tão nas economias européias; sobre o papel do trabalho imigra-
do etc.

~ nova divisão do trabalho e o deslocamento da dominante·


em direção à exploração intensiva do trabalho exprimem-se assim,
sob formas diferentes de exploração, segundo as duas linhas de
demarcação. Enquanto a exploração das massas populares das
formações dominadas pelas classes dominantes das metrópoles
se faz principalmente de maneira indireta, isto é, pelo lugar des-
sas formações na corrente imperialista e sua polarização, e secun-
dariamente de maneira direta, isto é, pelo capital estrangeiro
diretamente investido em seu seio, a exploração pelo capital ame-
ricano das massas populares na Europa se faz principalmente de
maneira direta, e secundariamente de maneira indireta.
70 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

5. As Formas da Dependência Européia

Meu objetivo não é aqui, no entanto, analisar os diversos


aspectos desta divisão do trabalho no próprio seio das metrópoles
imperialistas, mas ilustrar a dependência que elas implicam. Le-
vando-se e·m conta precisamente a nova divisão do trabalho, pode-
se observar que a dominação do capital americano não pode ser
avaliada segundo a percentagem dos meios de produção que ele
controla formalmente no seio de cada nação européia, nem tam-
pouco segundo o papel das finnas multinacionais sob controle
.americano. Essas firmas são sonaente um dos efeitos do processo
atual e só refletem muito. parcialmente esta dominação. Pode-
mos contentar-nos com alguns e:xemplos indicativos:
Primeiramente, os investimentos diretos americanos na Eu-
ropa assumem um sentido inteiramente diverso quando se consi-
dera a concentração internacional segundo os ramos, e quando
·é levado em conta o fato de que eles são principalmente calca-
.dos em certos ramos em que há tendências de controle maciço 25 .
Mas esse controle não é simplesmente mensurável pela importân-
.cia das firmas americanas na Europa nesses ramos, não se redu-
zindo a nova divisão do trabalho àquela que foi instaurada ·"no
interior" das firmas multinacionais e de seus estabelecimentos
nos diversos países. De fato, esses rainos são em geral aqueles
em que o processo de socializa1Ção do trabalho e a concentração
internacional do capital são mais avançados. Nesse contexto, as..
siste-se freqüentemente, como no caso patente das indústrias me,
cânicas e elétricas principalmente, a uma "padronização dos pro-
dutos de base" no plano mundial, o que não exclui aliás suas
variações e diversificações em produtos finais. Esta padronização,
que está longe de corresponder a simples necessidades técnicas,
é quase sempre imposta pela indústria americana dominante nes-
:ses ramos. Uma .firma "européia" que pretenda competir nesse
domínio deve "reestruturar" sua produção e seus processos de
trabalho com vistas a esta padronização e basear-se na interna·
cionalização do ramo. Mas, inuito fre.qüentemente, encontra-se
aí a engrenagem de sua inserção no processo de dependência,
conduzindo-a a múltiplas formas de subcontratação em face do
capital americano, mesmo que não seja absorvida por uma firma
americana. Neste· mesmo contiexto, a dependência se estende ao
fato de que, nesses ramos e setores onde o capital americano
2~ Sobre o que se segue, cf. C. Palloix, Firmes multinational.es... , op.
cit.·, o primeiro capítulo, e as numerosas pesquisas do IREP.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 71

imprime seu trajeto no conjunto do processo de trabalho, o ca-


pital europeu passa pe1a compra de concessões e licenças cuida-
dosamente triadas pelo capital americano.
Isso assume maior importância se for levado em conta que
a socialização atual dos processos de trabalho e a concentração
do capital não são simplesmente mensuráveis no seio de um mes-
mo ramo, mas se estendem aos diversos ramos industriais, sendo
bem sucedido o capital americano em estabelecer sua dominação
sobre diversos ramos através, indiretamente, de sua dominância
em um só. O caso é patente no domínio da indústria eletrônica.
E. Janco demonstrou ultimamente que o emprego, na escal~ atual,
de computadores pela indústria européia, domínio no qual a pre-
eminência do capital americano é conhecida, está longe de cor-
responder a necessidades técnicas: seu emprego se· revela de fato
freqüentemente supérfluo ou mesmo antieconômico 26 • Esse em-
prego corresponde à direção pelo capital americano de certos
processos de trabalho, que só fazem acentuar tal dominação e
que não se limita apenas ao domínio dos computadores, mas se
estende, por essa via indireta (emprego de software americano
etc.) a certos setores onde esses computadores são maciçamente
empregados.
A divisão internacional imperialista do trabalho remontando
assim, antes de tudo, à divisão e à organização sociais do con-
junto dos processos de trabalho 27 , vê-s.e como a divisão atual em
proveito do capital americano não sé limita a uma divisão "no
.seio" das firmas multinacionais americanas. Temos, com efeito,
todas as razões para pensar que, em alguns de seus aspectos, as
novas formas de divisão social que se estendem atualmente a se-
tores e ramos da indústria européia, notadamente a reprodução
sob novas formas da divisão trabalho inte1ectual-trabalho manual,
as formas de qualificação-desqualificação do trabalho e o lugar
dos engenheiros e técnicos em relação a uma certa aplicação da
'"tecnologia", as novas formas de "autoridade" e de divisão das
tarefas de decisão e· de execução. nas principais empresas euro-
péias (o famoso problema de sua "modernização"), correspon-
dem a um processo objetivo que reforça -o domínio do conjunto
dos processos de trabalho pelo capital americano.

12 6E. Janco e D. Furjot, lnformatique et Capitalisme, 1972.


127 A. Gorz, "Technique, techniciens et Iutte de classes", Les Temps
Modernes, agosto-setembro de 1971; "Le despotisme d'usine et ses lende-
mains", Les Temps Modernes, setembro-outubro de 1972.
72 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

Enfim, no âmbito da concentração do capital, é suficiente


assinalar que, em certos ramos e setores, a eletromecânica por
exemplo, a internacionalização do ciclo do capital produtivo se
exprime pelo processo - e suas formas - que o capital produ-
tivo americano (Westinghouse:, General Electric etc.) impõe à
concentração do capital produtivo europeu: movimento de rees-
truturação "interna" do capital europeu de acordo com a repro-
dução ampliada do capital americano, o que deve levar a termo
de aí incluí-lo. Isso mostra, aliás, o caráter ilusófio das conside-
rações segundo as quais uma concentração "interior" acrescida
de um país europeu, ou mesmo de capitais europeus, seria o me-·
lhor meio de resistir à penetração americana: essa fuga precipi-
tada só faz lançá-los freqüentemente nos braços do capital ame-
ncano.

Não há provavelmente exemplo mais notável do que· o da


França: veremos no ensaio seguinte que a França acumulou um
atraso característico na concentração do capital e na "moderni-
zação" industrial. Isso encontrou, durante certo tempo, sua ex-
pressão na política gaullista de "nacionalismo", que correspondia
aos interesses de uma burguesia retardatária no processo de in-
ternacionalização: sabe-se que a própria constituição do Mercado
Comum encontrara resistências por parte de certas frações da
burguesia francesa. Mas a concentração do capital apresentou,
estes últimos anos, uma acêleração perfeitamente correlata com
a penetração do capital estrangeiro, principalmente americano 28 .
Essa correlação tomou a forma seja de uma concentração à ins-
tigação direta desse capfral, seja de uma concentração que teve
como efeito a dependência de certos ramos e setores em relação
ao capital americano.
Mas há ainda mais, conforme se pode ver nitidamente com
o atual 6. º Plano: a) tal plano apresenta-se não só como aquele
da concentração acelerada da economia francesa, mas também
como aquele precisamente da "reestruturação industrfol" ·e da
"modernização da produção"; b) ele corresponde à política de
"abertura européia" (entrada da Grã-Bretanha na CEE) e a uma
política de ajuda calcada na expansão financeira internacional
do grande capital francês: uma parte desse grande capital já
adquiriu a envergadura de firmas multinacionais, tendo sua in-
ternacionalização sido acelerada desde 1969.
12 8 Y. Morvan, La Concentration de l'industrie en France, 1972,.
pp. 271 sq.
A FASE ATUAL DO IMPERIALISMO 73 I

E~ preciso, pois, notar ao mesmo tempo a mudança de polí-


tica com respeito aos investimentos americanos na França entre
o 5. º e o 6. º Planos. Para o 5. º Plano: "Não se pode congiderar
como satisfatória a situação atual na qual os investimentos es-
trangeiros na França aumentam de ano para ano. É indispensá-
vel que no decorrer dos próximos anos essa evolução seja condu-
zida no sentido de uma limitação de investimentos diretos do
exterior, de maneira a salvaguardar, a longo prazo, os interesses
fundamentais da economia francesa." Em contrapartida, para o
6.º Plano, cinco anos mais tarde: "No que se refere aos inves-
timentos diretos dos não-residentes, as previsões elaboradas pelo
Comitê supõem a manutenção, e mesmo o desenvolvimento, de
uma atitude muito aberta dos poderes públicos com respeito aos
investimentos estrangeiros na França. Nessas condições, os inves-
timentos diretos dos Estados Unidos poderiam duplicar no período
1964-1967, tomado como base de referência, até 1975."

Os exemplos poderiam ser multiplicados: a dependência


energética da Europa principalmente em relação às firmas pe-
trolíferas americanas. É, aliás, evidente que esses desenvolvimen-
tos só podem aparecer, em toda a sua amplitude, levando-se
igualmente em conta a centralização internacional do capital-di-
nheiro e o papel dos grandes bancos americanos. Mas podemos
resumir, dizendo que, além dos deslocamentos, acobertados pela
manutenção de uma propriedade jurídica européia "autônoma",
pela relação de propriedade econômica para o capital americano
- "controle minoritário" - , assiste-se com freqüência atua1-
mente:
a) a um deslocamento, acobertado pela manutenção de
uma propriedade européia "autônoma", dos, ou de alguns, pode-
res decorrentes da propriedade econômica para o capital ameri-
cano - caso das múltiplas e complexas "subempreitadas": isso
por vezes pode até encobrir efetivas expropriações de f a.to que
não são ainda visíveis e· cujos efeitos só se farão sentir progressi-.
vam~mte;
b) a um deslocamento, mesmo nos casos de uma proprie-
dade econômica européia "autônoma", dos, ou de alguns. poderes
decorrentes da relação de posse - domínio e direção do pro-
cesso de trabalho - para o capital americano: isso, dada a atual
tend1ência de uma reabsorção do afastamento entre propriedade
econômica e posse, conduz, a longo prazo, a um deslocamentD"
da propriedade econômica para o capital americano.
74 As CLASSES Soc1AIS No CAPITALISMO DE HOJE

Esse processo só pode ser então apreendido levando-se em


conta o recuo, ou mesmo o estouro, das fronteiras tradicionais
entre firmas e empresas no plano internacional.

Mas essas coordenadas, que se referem à reprodução am-


pliada do imperialismo dominante no próprio seio das outras me-
trópoles imperialistas, não concernem somente às relações de
produção: elas implicam a extensão das condições ideológicas
desta reprodução no interior dessas metrópoles. Para compreen-
der isso, é necessário observar que a ideologia não se refere às
"idéias" - os conjuntos ideológicos articulados - mas se encar-
na concretamente em toda uma série de práticas, de habilidades,
de modos, de rituais igualmente referentes ao domínio econô-
mico 29 •
Essa observação é duplamente importante, pois se refere
igualmente às diferenças entre a dependência ideológica das for-
mações dominadas com respeito às metrópoles, de um lado, e
aquela das metrópoles com respeit0- aos Estados Unidos, de outro.
No caso das formações dominadas, em razão de sua dependên-
cia original com respeito às metrópoles e da subdeterminação
ideológica de suas próprias burguesias, a extensão das formas
ideológicas das metrópoles e·m seu próprio seio provoca uma de-
sarticulação profunda do conjunto dos setores ideológicos, que foi.
apreendida através de uma imagem falsa de uma "sociedade
dualista".
No caso da relação das metrópoles imperialistas com os Es-
tados Unidos, esta extensão refere-se principalmente às práticas,
aos rituais e à habilidade articulados sobre a produção. Só devem
ser mencionados os famosos problemas do "know-how" - habi-
lidade (savoir-faire): não se poderia dizer melhor! -, do mana-
gement, das técnicas da "organização", do conjunto dos rituais
que gravitam em torno da informática: a lista se-ria longa. Essas
práticas não correspondem de fato a uma racionalidade tecnoló-
gica qualquer. Trata-se freqüentemente, em seus efeitos mencio-
nados sobre a divisão social do trabalho, de formas ideológicas
que encobrem a dependência complexa das metrópoles em rela-
ção ao imperialismo dominante.

129 L. Althusser, "Idéologie et appareils idéologiques d'Etat", em


La Pensée, junho de 1970.
II. O ESTADO NACIO·NAL

Pode·mos agora, depois dessas observações, voltar à questão


do Estado nacional nas metrópol es imperialistas, e ver onde são
1

errôneas as diversas posições sobre esse assunto, assinaladas no


princípio deste artigo.

1. O Estado e a Questão da Burguesia Nacional

É necessário ainda uma vez denunciar aqui os mitos que


custam a desaparecer, mesmo no âmbito de análises marxistas:
as próprias formulações usuais do probfoma do tipo "O que pode
- ou não pode - O Estado em face das grandes firmas multi-
nacionais?" "Qual é o grau (ou a forma) de perda desses pode-
res em face das possibilidades dos gigantes internacionais?" (fór-
mulas do agrado de Servan-Schreiber) etc. são fundamentalmente
falsas, e tanto isso é verdade que as instituições ou os aparelhos·-
não "possuem poder" próprio e só exprimem e cristalizam os po-
deres de classe. A questão então se desloca: ela se torna, em
primeiro lugar, aquela das relaçfies õas·--burguesias européias e
do capital americano. De que burguesias se trata exatamente·?
Sabemos que se coloca aí a questão da burguesia nacional.

A burguesia nacional distingue-se da burguesia compradora


(que definire·mos adiante), não somente no plano econômico:
não odemos delimitar a burguesia nacional sem nos referirmos
aES critérios Eolíticos e 1 eo og1cos de sua determinação estru_:_
turaI de classe. A burguesia nacional não pode simplesmente ser
-ãPreendida como um capital "aultóctone" radicalmente distinto
do c&pital imperialista "estrangeiro" e em referência às únicas
76 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HOJE

contradições econômicas que o separam dele. O estádio imperia-


lista apresenta com efeito, desde seus primórdfos,-ã ferITtêucia-à
íiitêrperieifãÇao ~TiffernacTcfr1àT-âos ·capitais-.--A -distinção burguesitt
Il.'âcfoiial"'e""êomprãaora·Ilãõ'~ffestâca também, como se considera
freqüentemente, a distinçao-ca-p1tal indusfriãttcãp1fiir-cõiifrrciat-
~m·-disso,- ~ª-- búrguésfa--.riacfoiiar -- não- -pode-· "se·r--·siní p1esm e-ffte
apreendida, pela referência dos critérios do mercado, como a bur-
guesia autóctone que age sobre o mercado nacional "interior":
podemos, ao mesmo tempo, descobrir setores da burguesia indus-
trial e dessa burguesia comercial inteiramente enfeudados no ca-
pital estrangeiro, como podemos descobrir, como se tem mani-
festado em certos países da América Latina, burguesias latifun-
diárias exportadoras de produtos de monocultura (café, por exem-
plo) que apresentam, no entanto, as características de burgue-
sias nacionais. Finalmente, e isto é ainda mais significativo, a
distinção burguesia compradora/burguesia nacional não destaca
também a distin~ão capitaLJn.ononolista (grande capital)/ cap1faT
não-monopolista (capital médio): podemos encontrar -gran~
mÕn~Õpólios~fiincíõiiãndo- cÕmobÜrguesias nacionais, e setores de
capital médio inteiramente enfeudados no capital estrangeiro.
Essas observações não significam que as contradições econô-
micas entre capital estrangeiro e capital autóctone não desempe-
nhem um papel determinante na delimitação da burgues!a nacio-
.nal, mas que isto não é suficiente. De fato, entende-se por bur-
,guesia nacional a fração autóctonê da burguesia.que, a partir
)!~~ ê~~~-º tipq e. . gra11 º-~- c()-iíiiª4fÇ-õêS. ...~º-~--2=~~Ç~J>1fª1~Tifij~~-ti~J_1sta
-estrangeiro, ocupa~ na estrutura ideológica e política, um lugar
~el<i;~i.Y.~~~l:!.!.~. _i}u19,n.ori'l9,. ªpre~~~t~ll.ª-º ~as.~-~ uma . unidade pró-
pria. Esse lugar, referindo-se à determinação ·e-strütürãTcfo~-êiãsse,
' !ião s·ereduz à sua posição de classe, mas tem efeitos sobre ·ela:
· a burguesia nacional é susceptível, em conjunturas determinadas
éfe~Tuta ~ãntiimpenalista e de liberação nacional, de ado'far pos1-
Ções "de 'Ciâsse . . êiliê___ã_fri'Ciüeni--n0--"J>ovo ",-e·-·e---en tão ---i:>à.ssívci<le
·ç~r!Q_~flpo de· -·:líafl&ã--cõrrcrur nTassas-·poplltríes=:-,-~:--·=· -~-~-· _...-~
Em ·-contiapartida,-· enternfe~se-tradiciona1mente por burguesia
c.!!._'!!_f!_!:,q._4_qr:çL a fraçãCL=hurg.u.esa ___ 4ue não J~m, ~a~e ~P.!"Ópria ãe
~~~~!l:!~ção do capital, ___que d.age_ de algum modo êomo ____sirripTes
"inte_rmed,iâria" do ___ capital im.perialista e_strangeíro -=
é por isso
que às ve;z:es assimilamos__a_ecS_ta_bu_rguesia a.· ''ourgue"sia burocrá-
~ica" -__ e que é_ assün___, dQJ:!iPlo ponto.ele-vista econ·ô-niico, polí-
tico e ideoló&ico, inteira:i;nente-- enfe~tidadà no capital estrangeiro.
Ü EsTADO ~~ACIONAL 77

Assim, podemos ver claramen1te que esses dois conceitos não


permitem analisar as burguesias das metrópoles imperialistas em
face do capital americano, na fasi~ atual do imperialismo. Pren-
der-se neste caso a esta única distinção condvz fatalmente à sua
redução economista e a conclusões falsas:
a) constatam-se contradições de interesses econômicos en-
tre setores da burguesia autóctone e o capital imperialista estran-
ge-iro, pelo fato, sobretudo, de que esta burguesia autóctone apre-
senta uma camada industrial e bases de acumulação próprias: do
capital, ao mesmo tempo no seio e no exterior da f ormai;ão,
.concluindo-se então que se trata de verdadeiras_ burguesias nacio-
nais (é o caso, veremos, para a corrente Mandel-Pc);
b) ao contrário, constata-se que essas burguesias são aqúe-
las que não podem mais adotar posições de classe que as levem
a fazer parte do povo. Mas conclui-se então, diretamente, que só
se pode: tratar de burguesias "çompradoras", no sentido de que
.elas só seriam simples intermediárias entre a economia nacional
e o capital estrangeiro (é o caso. para a corrente do "superin1pe-
rialismo.").
Seria então necessário introduzir um conceito novo que· p~r­
mita analisar a situação concreta aó menos das burguesias das
metrópoles imperialistas em suas relações com o capital arr1eri-
.cano: é o que designo, provisoriamente· e na falta d~ melhor, pelo
termo l'#';RYf sia interior. Esta b1:rguesia, .que _coexiste com seto-
res propnamente compradores, nao possui mais, em graus certa-
mente desiguais nas diversas formações imperialistas, as caracte-
-rísticas estruturais da burguesia nacional. Em razão da reprodu-
.ção do capital americano no próprio seio dessas formações, é ela
por urrL lado imbricada por múltiplos elos de dependência aos
.processos de divisão internacional do trabalho e de concentração
internacional do capital sob a dominação do capital americ..ano:
o que pode até tomar a forma de uma transferência de uma parte
da mais-valia para o lucro desse capital; por outro lado, além
·disso, em razão da reprodução induzida das condições políticas e
ideológi!cas desta dependência, ela é afetada por efeitos de disso-
lução ele sua autonomia politico--ideológica em face do capital
amencano.
No entanto, por outro lado, não se· trata de uma simples
_Q.urgue~~ill. _çm:npradora: ~ ela . .P.9S~ui ·- urií' Tiindamênto ecónômico--e
uma base_ ~-f?-~~'?u~uJ~çª9 pf_QQrios";2omesmÕ-iempon_"o}nferfoir -·de
:sua formação s~c~al, não afetandõ;··a· ãômirtação ·cto· capital ame-
78 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

ricano as economias das outras metrópoles da mesma forma que


·áquelas das formações periféricas, e no exte·rior. Mesmo no nível
ffü1íticõ=ideologíCo~--·-ê1a continua -a-apresentar especialidades pró-
prias, prendendo-se tanto à sua situação presente e ao seu pas-
·sado de capital imperialista "autocentrado", o que a distingue
das burg1:fesias das formaçõe~ __p~riféricas. M..J!~ pela "industriali-
ia~ão pefíféfiea',_,--·~!!!Ícleo-~~d~~-~µ_rg_uesla1nterior ___ E9E.~~ igualmen-
i~--~.Qarece.!___~ª~JQ!-:ffi-ª.Ç_§es periféricas: se essas burguesias-não
constituem de modo algum as burguesias nacionais das fases pre-
cedentes ao imperialismo, elas não se reduzem forçosamente ao
que G. Frank designa como_ Lumpen-burguesias. Contradições
importantes existem então ~ntre a ,_.Q!!Ig!:l~ª-ͪ ..int~T.i!?E _ .~. ocãpital
ª·
anie~~~~º- __ qQ_~_,__ ___ ~-~m____ ~Qg_eJ_ J~Yá::lªn_ ciorava11te____ ªçloj:_ar pos_iç_§s
õê··-efetiva autonomia ou i:ndepend~~ciª' -~~---_L~_ç_~_<!~.§.!e __ça.Eitar,
-provoca-m,'-eiifreiãnto:eteHo~i sobre os apare-IhQ.~ d~_ Estado dessa&
Tó-riiiaÇõe-s--nassuas._rdaÇões óom--o--·Estãcto americano. --- _.._~------·
---------·--·-----·----------·--·-----·-·-···---------,.··----------~--


É precisamente levando-se em conta formas atuais de aliança
incl~sive contradições -· entre as burguesias imperialistas e
o capital àmericano, sob sua hegemonia, que se pode colocar a
questão dos Estados nacionais. A internacionalização atüal do
capital não suprime e não _:ahala..__,.gs Estadas nacionais, nem no
sentido de uma integração pacífica dos diversos capitais "por
cima" dos Estados - todo processo de internacionalização ope-
rando-se sob o domínio do capital de um país determinado -,.
nem no sentido de sua extinção sob o super-Estado americano,
como se o capital americano digerisse pura e simplesmente· as
outras burguesias imperialistas. Mas esta internacionalização, por
outro lado, afeta profundamente' a política e as formas inst!!Y-
cionais desses Estados pela sua inclusão e-m um sistema de inter-
conexões, que nao-Se limita de forma alguma a um jogo de pres-
sões "exteriores" e "mútuas" entre Estados e capitais justapostos.
Esses Estados encarregam-se eles próprios dos interesses do capt-
ig.z imperíalisia dominante no ·seu desenvolvimento -no próprio-
s.eia da formação "nacional'~,__Çl_ saJ?_e_r, em sua in{ef!àfiiaJ;ãO"- com-
plexa coni a burgue__siª_Jr.z-__(<!_1:Í:í!..~---que_ ele- ·dominá. Esse- si-stemade-
interconexões não tende para a coiisHtuiç'âõ-âe formas ou ins-
tâncias institucionais supranacionais e supra-estatais efetivas, o
que- seria o caso se se tratasse: de uma internacionalização em um
contexto de Estados justapostos de relações externas (contexto
que teria sido necessário ultrapassar), mas que é, primeiramente,
fundado sobre uma reproduçiio induzida da forma do poder im-
Ü EsTADO NACIONAL 79'

perialista dominante em cada formação nacional e seu próprio,


Estado.
Esses Estados se encarregam dos interesses do capital domi-
nante, antes de tudo, ,de forma direta: apoio ao capital ameri-
cano, com freqüência do mesmo tipo (subvenções públicas, dis--
pensas fiscais etc.) daquele que é concedido ao capital autóctone,
mas, ilogualmente, apoio necessário ao capital americano em_ sua_
extens~io ulterior, em cadeia, ao exterior desta formação, servin-
do-lhe assim de reserva. Tal apoio pode ir até o ponto de ajudar
0 capital americano a circundar o próprio Estado americano (a
legislaç:ão antitruste, por exemplo). A reprodução internacional
do capital sob a dominação do capital americano apóia-se s.obre-
os vetores que são os Estados nacionais, tentando cada- Estado,
fixar sobre ele um momento deste processo.
Esse apoio ao capital dominante lhe é também dado de for-
ma indjre.ta: política industrial de cada Estado com respeito ao·
seu- câr>ital autóctone, visando à concentração e à expansão iltlter--
nacional deste capital.

Certamente, contradições importantes existem, em toda uma


série dt~ pontos. entre as burguesias interiores das metrópoles im--
perialistas e o capital americano, contradições assumidas por cada
Estado nacional quando concede seu apoio, como é mais freqüen--
--- J
temente o caso, à sua burguesia interior (este, aliás, um dos as-
pectos da CEE) 1 . Mas é ainda necessário ir mais além e observar
que esses antagonismos não constituem atualmente a contrad'ição
principal no seio das classes dominantes imperialistas. A forma
atualmente dominante das "contradições interimperialistas"- não
é aquela que existe entre o "capital internacional" e o "capital
nacional", ou entre as burguesias imperialistas apreendidas como-·
entidades justapostas.
Com efeito, a dependência do capital autóctone em relação·
ao ~ªJ~ital americano atravessa q,s <!~y-~ria§__ fr_qç_Q.es __ dQ ~ç:api!ªlau­
-tóC:i()Il.e: donde, precisamente, sua - desarticulação interna, constf:
-tu-liiao ·-·as contrad1çoes entrecãpuaTãmetíeãnõ--e-·ourguêsfas"""}iite-
--........___ - --3--------------·-
nor~~ - reqüentemente a forma ~Qmp_lexa ua repróêfiiÇão, no-·se1õ
--'"-f"~·----------------·--·--··---------

_das bur,guesia~-Int~r!ores~ 4asêogJ_r_ªgiǧ~~-prÓprlãs ao capTfaTarrre:-


rkã~o:··põ.r óufro--lado, ãS--cÕntradições do 'c-apifal"autóCtone-são;-,

1 Uma das formas deste apoio do Estado nacional à sua burguesia


interior~ consiste atmrtíUerne-no~sêfOr riacio:rlaíizado. Mas· sena falso acre-
ditai qne este setor furrcinne como capital naczônàT efetho. de fatu eié
é parte fornada âo processo de mtemac10nahzaçao. - ----
·------
80 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HoJE

por mediações complexas, extrapoladas em função do capital ame-


ricano, estando a burguesia intel'ior atualmente composta de ele-
mentos heterogêneos e conjunturais. A distinção burguesia inte-
rior /burguesia compradora não abrange, menos ainda hoje em
dia do que no passado, no caso da burguesia nacional, nem a dis-
tinção entre grande capital monopolista e capital não-monopolista,
nem aquela entre capital produtivo (industrial) e capital bancá-
rio, nem enfim aquela entre uma burguesia limitada ao "merca-
do interior" (podendo setores desta burguesia ser inteiramente
enfeudados no capital americano e constituir sua ponta de lanÇa
neste mercado) e uma burguesia de estratégia expansionista
internacional (setores desta, e até mesmo "firmas multinacionais"
.com predomínio francês - Renault, Michelin etc. -, holandês,
mesmo britânico, podendo elas mesmas apresentar uma autono-
nlia característica, em relação ao, e contradições importantes com,
.o capital americano) : ela as atravessa numa direção qu.t? .cf..e~ride
.da conjuntura, como provam as peripécias da política "gaullista" .
.o··conceito de burguesia interior remonta ao processo de interna-
.cionalizaçã(), e não_ _a Yl'l'lª burguesia "j echada" em um espaço
-~~!l4dPnaJ.'~
O Estado nacional intervém assim, em seu papel de· organi-
zação da hegemonia, em um campo interior já atravessado pelas
.contradições interimperialistas e ondl!. as contradições entre as
frações dominantes no seio de ·süaformação social )á estão.. lnter:.-
.nacionalizadas. A intervenção do Estado em favor de certos gran-
'..~es monopólios autóctones contra outros, em favor de grandes
monopólios ou setores do capital médio autóctone contra outros,
em favor enfim de certas frações do capital europeu contra outros,
só são freqüentemente intervenções indiretas em favor de certas
frações ou setores do capital americano cmitra outros deste mes-
mo capital, de que dependem as diversas frações e setores do '
1 capital autóétone e do capital europeu. A contradição principal
/ n_as burguesias imperialistas se passa então, se-g1mda a canj1mtura,
l no seio das contradkõss do sapital Jm12..erialistL.domioante e da 1
\ iRt.ernacionalizaç~o que ele impõe, -~inda nq __próprio seio da
J
\ b.urguesia interior: e de suas lutas_j_nter.!llls., de._sl_~~~- ndo-se pÕrém, ·
r~ramente, entre a bJ.U:&u_~~ia interiQI como . JqLº. .Q..~a.:pit~~- ªIl!~­
ano
É esta desarticulação e heterogeneidade da burguesia inte.rior
que explica a fraca resistência, com seus diversos desníveis, dos
Estados europeus em face do capital americano. Os novos meios
reais de pressão das firmas multinacionais americanas sobre os
Ü ESTADO NACIONAL 81

Estados europeus - evasões fiscais, especulação sobre as moedas,


afastamento dos obstáculos aduaneiros - somente são elementos
secundários do negócio, ao contrário do qué sustenta a corrente
ideológica dominante, que coloca o problema "Estado nacional
versus firmas multinacionais".
E a partir dessas análises que pode ser colocado o pro-
blema da configuração atual de· classe do bloco no poder, aliança
específica das classes e frações de classe politicamente dominan-
tes, nas metrópoles imperialistas..De lLITIJél.º9,.. e_st~.1Jlo_çg_P:O pode:·
" nJ\.o. _pod~:- quase. ser apreendido -.doravante_ sobre um plap.o:: p-urà.:--
rn~nt.e__ nadQn,111.;_ os Estados imperialistas se encarregam não sim:-
plesil1_~n t~ _g_Q~ __ irit~r.~ªseiJ!~ iü§~briiiüesias"iiilefiõres;--·mas!grrar­
ínen t~__Q.9s _i!1t~r~ªª-~L9º.
_ capital imperialista dommanle e ctaqueles
cfos_ g_~_!ros -~.w_it~is_ -~IDP~:iªJi~_tªs.,.~~rn___su_ª~-~~ffC.üi_~~~CJ.--·_~?~-s~Thelõj
processo -- de -- mternac10nahzªçao~
- ----~ ----- --- Por outro lado, no entanto, ·esses-1
capitais "estrangeiros" não fazem diretamente parte, como tais,
.
isto é, como forças sociais relativamente autônomas, de cada bloco
•no poder em questão: a burguesia americana e suas frações, a.
burguesia alemã e suas frações, não estão diretamente presentes'
como tais no bloco no poder na França, por exemplo (e vice-
versa), mesmo que elas ajam pelos diferentes desvios no seio
dos aparelhos de Estado na França. Sua "presença" no bloco no
poder na França é assegurada por certas frações da burguesia
francesa e pelo estado de internacionalização que afeta estas, e,
enfim, pela sua interiorização e representação no próprio seio da
burguesia francesa e pela reprodução induzida do capital impe-
rialista dominante nas metrópoles imperialistas. É o que explica
toda uma série de def asagens sobre o plano da hegemonia nesses
blocos no poder: as frações hegemônicas dos blocos no poder nes-
sas metrópoles imperialistas não são necessariamente aquelas que
têm mais vínculos com o capital americano, sem que isso que'.ra
dizer, no entanto, nestes casos, que este não esteja presente nesses
blocos no poder.

Podemos levar em conta então a distâncfa que nos separa,


ao mesmo tempo, das concepções do "superimperialismo", e das
concepções da corrente de Mandel e dos PC ocidentais. Quanto
aos dois componentes desta última corrente, podemos dizer que
eles aceitam, todos dois, a existência, nos países. europeus, de uma
burguesia nacional, porém não a delimitam da mesma forma:
para cada um, é óbvio, sua burguesia nacional!
82 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HOJE

- Para Mandel, essa burguesia nacional é produto dos gran-


des monopólios "europeus" ao contrário do que se· passa com o
médio capital europeu: "Hoje não se ultrapassou ainda nas ações
o estádio do grande capital 'nacional'. . . O desejo de fazer frente
à concorrência americana que:! se afirma não somente em um 'ca-
pitalismo de Estado autônomo', mas que exprime também o dese-
jo fundamental das maiores :sociedades européias, age no mesmo
sentido que a consolidação da CEE e que o reforço dos órgãos.
supranacionais em seu seio. . . As sociedades menos sólidas, sobre-
tudo nos ramos da mais fraca expansão, assim como as empresas.
familiares que não chegam a ultrapassar as dimensões médias, vão
preferir com freqüência a solução mais fácil, que consiste em se
deixar comprar ou absorver pelas grandes sociedades americanas.
Em contrapartida, as empresas européias mais ricas e mais dinâ-
micas escolherão, em sua maioria, o caminho da cooperação euro-
péia e da interpenetração européia dos capitais 2 ."
Tudo está dito: não é surpreendente que, depois destas afir-·
mações desmentidas pelos fatos, Mandel reúna toda a propaganda
burguesa atual sobre a "Europa unida". O que não o impede,
aliás, de constatar duas páginas adiante aquilo que denomina um
"paradoxo": "Em virtude da falta de coordenação - sic! - dos
c~pitalistas europeus, são paradoxalmente as sociedades america-
nas que tiram as maiores vantagens da CEE." Mas notemos. para
sermos justos, que Mandel não está só no seu caso. Não vimos,.
ainda recente·mente, --dois--]c)vens -- ''futurólogos,.,--Iranceses 3 que
sustentavam - porém com reservas - a tes-e-rto-finrme!iiliúl:él
e iII1inenfe aa--11e-gémonla___an1ericana em--fac-e--·-cro "poder:io. __ euro-
peu", fecorre-rem~-para expliC-ar--o mesmo "paradoxo", aos segui_n_:-
tes fato-s-:-·'Us-oostáculos lingüísticos (enfré--burguesias européias)
são real~-- Mas os ·mais importantes são os de ordem institucional:
não existe ainda estatuto jurídico para as empresas européias ...
(sic! )!
De fato, se aplicarmos no plano europeu as análises feitas
acima, veremos que não se trata absolutamente de um "paradoxo"
devido a incompetências técnicas, insuficiências jurídicas ou in-
compatibilidades de humor. Se as burguesias européias não "co-
.op.eram."___e. na.o - " em _ f.ac.e_u.o___caplta1-·ªm.~J~_c~no.,__
- se.___" .C.POI.d__e_narn. À • . ---,...
~

.em razão dos efeitos tendenciais .. __


. ..
sobre elas da nova
. ....
estrutura de
---··--------·----·--
·-- ---

dependência em relação ao capital americano. As relações dessas

2 Mandei, op. cit., pp. 66 ,e 69.


3 A. Paire e J.-P. Sebord, Le Nouveau Déséquilibre mondial, 1973,
p. 156.
0 EsTADO NACIONAL 83

burguesias ent~e §L§ão~r.<?.lações descentralizadas, isto é, elas pas-


sam pela distorção da interiorização do___ ~ªPi.1~1 -~111t?1:"!cano em
sêllpróprio seio. É cada Estado nacional europeu que se encár-
rega dos interesses das outras burguesias européias, bem como
de sua concorrência com sua burguesia interior, assumindo assim
seu estado de dependência em relação ao capital americano.
- Em contrapartida, as anális.es dos _PC europeus, e princi-
palmente aquelas do PCF e de seus pesquisadores, insistem (elas
têm este mérito importante) na interpenetração dos grandes mono-
pólios e na dominação do capital americano. Como diz Ph. Her-
zog: "Essas observações demonstram que nós _ nos precavemos bem
ao caracterizar a nova etapa como uma luta do capital 'nacional'
contra o capital trans ou multinacional ... Atualmente os grandes
monopólios nacionais têm interesses comuns com os capitais es-
trangeiros, e a 'resistência' - bem como a 'concorrência' - per-
de seu caráter 'nacional'. São grupos de- interesses parcialmente
ligados, ou em vias de se tornar cosmopolitas, que se defron-
tam 4 ." Mas, de fato, o probJe.ma está ma!~ lo_nge: o PC tem r~~l­
mente sua burguesia nacional, é o capital não-monopolista ou
.capital médio. Não é aqui o lugar de entrar em detalhes, mas
isso aparece nitidamente nas análises do PC, que consideram ser
a única fração dominante atual aquela dos grandes monopólios,
globalmente "cosmopolitas", à exclusão do médio capital, que é
incluído no "pequeno capital" nacional (ver a pequena-burguesia),
méd1o capital em que se procura a aliança - "democratas e pa-
triotas sinceros" - para a instauração de uma "democracia avan-
·çada" que enfrentaria o capital americano 5 • O que, entre outros,
1gnora os efeitos da socialização do processo de trabalho e da
concentração sobre a dependência atual do médio capital em
relação ao grande.

2. O Estado e a Nação

_Sç__Q__Estado atual das. metrópoles imperialistas se mo.ciifika


·conservando sua na ture1ía de-Estad-0- --nacional, .istº-=é]iuãlII!:eJ}te
~aeviÕ() 'ªº..fªtQ de que __o Rstado-nãa_é__a_~imples ferramenta. ou
-instrumento. rriãí;tl.P.!iliv~J. à vontade, das class_es dominantes~- ~rQ~
vocando automaticamenté._toéia · êtàpa de internacionalização do

4 Artigo citado, p. 148.


5 Posição que se destaca do conjunto das análises do Traité já ci-
tado: ver o ensaio seguinte.
84 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE.

capital uma "su pranacionalização" dos. -~s!~dos. O Estado;,. que:


mantém a-·unidàde e a coesão de uma formaçãõ social dividida
em dasses, concientra e· resume as contradições de classe do con-
junto da formação social, consagrando e legitimando os interesse~
das classes e fra•ções dominantes em face das outras classes desta
f armação, ao tempo em que assume contradições mundiais de
classes. O probk~ma que nos ocupa não se reduz então também
a uma contradi1ção simples, de aspecto mecanista, entn~ a base
(internacionalização da produção) e um rótulo superestrutural (o
Estado nacional) que não lhe "corresponderia" mais. As transfor-
mações superest:ruturais dependem das formas assumidas pela luta:·
de classe em u:ma corrente· imperialista marcada pelo desenvol-
vimento de seus. elos.
Acabamos ·de ver, primeiramente, que a internacionaliza';ãor
do capital não dá lugar a uma efetiva "fusão transnacional" do~·
capitais. Mas isto é somente· º-1!1_ dos aspectos do problema. O que-·
se passa do lado das Çfasses operárfas dos países europeus? De·
fato, mesmo quando as lutas das massas populares se desenvol-
vem mais do que nunca sobre uma base mundial de.terminando·
as conjunturas concretas, e mesmo quando a instauraçíio ·de re--
lações de produção mundiais e a socialização do trabalho refor-·
çam objetivamente a solidariedade· internacional dos trabalhado-
res, é alJWzfil!!~ciona!H que prevalece em sua luta, esta sendo, em
suaressenci~ internacional. Isso se prende·, de um lado, ao desên'- ·'
volvimento desigual e às especificidades concretas de cada. forma-
ção social, e há então traços da própría natureza do capitalismo,
ao encontrá do que sustentam as diversas ideologias da "mundia-
lização"; mas, nas particularidades que estas formas assumem
atualmente, isso se prende às organizações - partidos, sindicatos-
- que têm a preponderância nas classes operárias européias.
Finalmente, é necessário também levar muito em considera-
ção, de um lado, a pequena-burguesia - pequena-burguesia que
se reproduz atualmente~.:.:soo·-'-'-rtovasrormas - e as classes do cai}}-·
~o, cujos. Estados procuram o apoio indispensável e cuja.
situação de classe tem como efeito um nacionalismo todo parti-
Cl!lar; por outro lado,. categorias sociâis ·aos aparelhos de Estado-
(bmõcracias administrativas~-1fit~g·iàiires de páftidos poHticos efc~)
para as quais_ .o. .Estad.o permanece uma f?nt~. de privilégios.

Chegamos então ao problema da permanência da nação pelos


efeitos que ela produz sobre as "formas nacionais" das lutas de
0 ESTADO NACIONAL 85·

classe. Acontece que o problema da relação entre Estado e nação,


colocado pelo Estado nacional, não está, no entanto, resolvido.
Com efeito, se a nação está constitutivamente ligada ·à existência
do capitalismo, sem deixar de lado o seu estádio imperialista? o·
marxismo-leninismo não confu~qj,l!_jamais Estado e Nação; ~
somente sustentou, neste· ~eii!J<l2~-~ª-~!~g~---~-ª. em~~-~-ricia -~do~st-;­
ão nacional" e da "formação_ ~_oçiªl __nacional" sob o cãp11ãTisino.
o problema é então reapresentado sobum' outro ângüfo: a inter.::
nacionalização atual da produção e as relações de produção mun-
diais, se não eliminam certamente a. entidade nacional, não modi-·
ficam o espaço da f armação social, o que quer dizer, a configura-
ção dos locais do processo de reprodução, ao ponto de fazer ex-
plodir a formação social nacional e romper assim os vínculos:
entre Estado e nação (Estado supranacional)? Em outras palavras,
os _?.ºçªis. onde...se.dese.tLYQlV:~P! a reprodução ami}Hã<lã cfo-iiP·rns
l}à~leos do des~p,y_QlYi.Il1.~.µt9 desiiu~Ts~oãinda-as· formaçõe·s sociais·~
riãêionais? Questão que remonta diretamente ao problema dâs
condições .políticas e ideológicas da reprodução no campo da luta.
das classes.
De fato, os vínculos entre Estado e nação não estão rompi:..
dos, e os locais essenciais da reprodução e do de·senvolvimento
desigual ~.ontinuam a· ser aigQ_<!..-ª~J.Q.fl.!!~9~~--~~-~i~i.~ .i1ªci9nais, na.
medida em que nem a nação nem. a relação Estado e nação se·
reduzem . â simples vínculos econômicos.. A nação, em toda a·
complexidade de sua determinação - unidade econômica, terri-·
torial, lingüística, simbólico-ideológica ligada à "tradição" -, con-
serva sga entidade própria.. quanto às "formas nacionais" da 1~
das classes, permanecendo -a ·relàÇ;ão Estado e nação, por esse·
meandro, ma_~}Jida. As IJ19d.ifjfaçq~s _atuais só afetam, pelo menos
nas metrópoles imperialistas, certos elemeJ!tOS desta determina-
ção (e isto de forma desiguai):e~las~se· é;istalizam en~ão como·
modificações de um Estado_ que continua send~m seu núcle~
rígido, o Estado nacional. Mas es.sas modificações permanecem,
·contudo, consideraveis,-·e-eias col6cam em causa ·a conceptuali--
zação jurídica _da soberania naciõiial: papel que·=âssuffie cada Es·~·
tado na repressão da ·1uta das da~s no plano internacional (oTAN.
etc.); extraterritorialidade das funç;ões e das intervenções de cada
Estado, estendendo-se estas nas formações exteriores onde se de-
senvolve· seu capital autóctone; rnodificações dos próprios siste-
mas jurídicos internos de cada Estado de maneira a cobrir a in--
ternacionalização de suas interven~;ões; modificações político-ideo-
·86 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

lógicas daqueles aparelhos de Estado baseados por excelência na


estrutura do Estado nacional, principalmente o Exército 6 etc.

Sendo assim, certas distorções manifestam-se atualmente no


caso das metrópoles imperialistas de que nos ocupamos, entre o
Estado e a nação, mas não no sentido geralmente entendido
reorno supranacionalização do Estado. ~·ã.01_~e_.assiste à ...em.ergência
de um novo Estado acilllª-__ç\_as J'.1ª.ÇÕ.~~'-· mª~. a_nt.~s .à!i r-µ,pturas da
.uiiiéfadé. rúicillii~L~~ub.ú~_nd~ncio 9$ Est.ad_Qs_nacionais __ existentes: é
o-'fenômeno atual - de grande importância - do ,regionali~mo,
que se exprime pelas ressurgências de nacionalidades (Bretanha,·
País Basco, Ocitânia etc.), o que demonstra que a in~e~p.ªç~opa­
lização do capital provoca mais um f ra.cionamento da nação, . úiJ
·como é historicamente constituída, do que uma supranacionali-
_zaçã.-o do Estado. Tal fenômeno é muito mais característico por-
que, longe de representar uma pretensa cooperação supranacional
dos capitais europeus contra o capital americano, ele correspon-
de à reprodução ampliada do capital internacional sob a domina-
ção do capital americano no próprio seio dos países europeus,
e à nova estrutura de dependência: o que suscita uma 1&pdência
à desarticulação interna d - sociais européias. e de
-.§..uas economias acentuação dos "pólos de desenvo v1mento") po-
dendo chegar até a fenômenos reais de colomzaçao interior sob
·os diversos rótulos de aproveitamento ordenado do território 7 •
-É sobre esta d~~artienlaç_ã-6---~ _cria raízes a g~sint~.:_~
'::t_f1idaq~ _ ;nªçion~J .f-ª.Pit_~Jist_St·

.3. A Internacionalização e o Papel Econômico do Estado

A internacionalização atual do capital e a emergência de


'"gigantes multinacionais" nas suas relações com o Estado não
podem então se colocar em-termos de duas entidades "possuidoras"
do "poder" que o redistribuem a si próprias: sustentar principal-
·mente que, quanto mais o "poder econômico" aumenta e se con-
centra, mais ele tira poder ao Estado é desconhecer não somente
ql!~ o Esta4Q.l!!Q.. J?_~~su.LP.9s!~J: próprü>~~ também güe ele i_!f
1
6 Alain Joxe, "La crise générale de la stratégie", em Frontieres,
·n. 0 9, setembro de 1973, pp. 71 sq.
·7 M. Rocard e outros, Le Marché commun contre l'Europe, 1972,
·e o debate em torno desse livro em Critique socialiste, outubro-novem-
'bro de 1973.
0 ESTADO NACIONAL 87

ter~ém _ ~e m_aneira decisiva nesta conce11_traç~9_. Este processo


atual não fere em nada o papel dominante do Estado no estádio
.capitalista monopolista. __.,_____ --- ·· - ·· ------------·--·-·--·-··-··--···--·-··-
.-~. •.....• ·-·- 1
· ---·- Esse domínio do Estado corresponde ao crescimento consi.:.
.derável de suas funções econômicas, absolutamente indispensável
.à reprodução ampliada do grande capital. Mas isto só responde a
.uma parte do problema, e não explica, principalmente, por que
.suas intervenções econômicas continuam a ter como portadores
·essencialmente os Estados nacionais. Não se poderia admitir que
essas intervenções econômicas, permanecendo essenciais, troquem
de portador e que o Estado nacional seja atualmente desprovido
de uma larga parte dessas intervenções em favor de instituições
:supra-estatais ou de um embrião de Estado supranacional?
Não há dúvida que formas de "coo~denação" das políticas
econômicas dos diversos Estados se revelam atualmente necessá-
rias (diversas instituições internacionais, CEE). Mas essas formas
institucionais não constituem, de fato, aparelhos que suplantam
os Estados nacionais ou a eles se superpõem. E isso por uma razão
:suplementar àquelas que já assinalamos: essas intervenções econô-
micas do Estado não são, como deixaria crer uma tradição soli-
damente estabelecida, funções técnicas e neutras, impostas· pelas
necessidades de uma "produção" considerada ela própria de ma-
neira neutra. Essas funções econômicas do Estado são de fato ex-
:pressões de seu papel político total na exploração e dominação
de classe: elas se articulam constitutivamente ao seu papel repres-
-sivo e ideõlô'gíêC;f p.o.··-campcf··-a~CTufªde--cla-!Úie--dê·- uma f ormaÇão
·social, o que nos traz de volta precisamente às observações pre-
·cedentes:--N·ão podemos separar as diversas intervenções, e seus
aspectos: do Estado, visando à possibilidade de uma transferência
·efetiva das "funções econômicas" aos aparelhos supranacionais ou
supra-estatais, o Estado nacional só mantendo um papel repressi-
·vo ou ideológico: quando muito, trata-se, por vezes, de delegação
no exercício destas funções.
De fato, olhando nessa direção, perdemos de vista ...~_s..J.~.º_dên_­
:çias reais: a saber, as transformações interiorizadas do próprio
E~iâao· -n"ãêiOnãl em--ifista-ae·-se· -encarregar da inierizaciõiiaiiiâÇão
4a§_ f unÇõêi pú5Tícás.~com...respelto ao capital. Atinge-se assim uma
linha de defesa de seu ''próprio" Estado nacional contra as· "ins-
tituições cosmopolitas". De fato, essas formas institucionais in-
ternacionais não se "superpõem" também (expressão querida do
'PCP) 8 a esses Estados nacionais, mas são precisamente a expressão

8 Delilez, artigo citado, p. 69.


88 A.s CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

de suas transformações interiorizadas. Essas transformações não


se referem somente às intervenções econômicas do Estado nacio-
nal, mas igu3.lmente aos aspectos repressivo e ideológico pelos
quais essas intervenções se realizam.

Aliás, esta concepção das "funções econômicas" neutras e·


técnicas do Estado atual é aquela dos PC ocidentais, e principal-
mente do PCP (o "Estado fator orgânico da produção", o "Esta-
do fazendo parte da base") 9 na teorização do "Capitalismo mo-
nopolista de Estado". Supõe-se que essas funções em si neutra&
sejam "destorcidas", atualmente, em proveito dos únicos grandes.
monopólios e poderiam ser utilizadas, por uma simples mudança do
poder de Estado e sem que seja quebrada a máquina de Estado
em. proveito das massàs populares. Essas análises, diríamos, deve-
riam ter conduzido o PCP a adotar a concepção do Estado supra-
nacional no contexto de uma inte-rnacionalização da produção: se
tal não for (pelo menos ainda) o caso, é porque se situam numa
concepção da: corrente imperialista como justaposição e adição
de CME nacionais. Insiste-se, assim, sobre o fato de que o "capital
internacional" se· insere em cada formação social nacional, "jun-
tando-se e dobrando-se às especificidades de seu CME, quando em
realidade -~ a própria estrutura de cada formação soc~al. que é .
,_reorganizada {(m relação à internacionalização do capital. Consi-
dera-se que as funções do próprio Estado nacional com ·respeito
à internacionalização do capital. na versão do PCP, não transfor-
mam e modificam profundamente esse Estado, mas simplesmente
se sobrepõem às suas funções "nacionais": segue-se então que po-
deriam, por uma defesa do Estado nacional apoiada na "burgue-
sia nacional - médio capital" contra o capital "cosmopolita", ser
utilizadas para uma .efetiva "cooperação internacional" imposta
pelas necessidades da "produção", sem quebrar o aparelho do
Estado.

Voltando ao nosso problema, o capitaL_que-ult-rapassa seus


limites nacionais tem realmente recursos nos Estados nacionais,
não somente no seu próprio Estado de. origem, ~~s·· também nos
outros Estados. Isso produz uma distribuição complexa do papel
dos Estados na reprodução internacional do capital sob a domi-
nação do capital americano, podendo ter como efeitos descentra-

9 Em particular, Herzog, seu livro citado Politique économique..


pp. 35, 65, 139 sq. Ver o próximo ensaio.
Ü EsTADO NACIONAL _89

lizações e- deslocamentos no exercício dessas funções entre seus


portadores, estes continuando a ser, no essencial, os Estados na-
cionais .. .Seg1mdo a conjunty_:rn_,_J1-0de acontecer que incumba a
este ou àquele Estado nacional da:s metrópoles à-tarefa de uma ou -
outra intervenção de alcance internacional, concernentes a esta
·-
reprodução, e a manutençã()
--· ---···
-~·-·
do sistema no seu _çoÜJuQ_fO:-
--.
------

4. O Estado na Reprodução Internacional das Classes Sociais

As diversas funções do Estado que foram objeto de estudo


até agora concentram-se todas na reprodução ampliada do MPC:
o momento determinante desta reprodução refere-se à reprodução
ampliada das classes sociais e relações sociais. Mas o Estado tem
aqui um papel próprio e específico, intervindo, por um lado, na
reprodução dos lugares das classes sociais e, por outro lado, na
"qualificação-sujeição" dos agentes, de tal forma que possam
ocupar esses lugares, bem como na distribuição dos agentes entre
esses lugares. 1

Se, portanto, é ao Estado nacional que atualmente sempre


retorna esse papel, se esse papel depende ainda da especificidade
da formação social e de suas lutas de classe, isso não significa
que esteja atualmente colocado cada vez mais sob o signo da
divisão social imperialista do trabalho, e de uma reprodução ca-
pitalista das classes sociais no plano mundial. O papel dos Esta-
dos nacionais europeus, no que tange a aparelho escolar, forma-
ção permanente etc., consiste, entre outros aspectos, em reprodu-
zir as novas formas de divisão do trabalho instauradas entre os
Estados Unidos e a Europa. As formas, por exemplo, de repro-
dução ampliada da classe operária, de sua qualificação e de sua
composição (trabalhadores braçais, os etc.), as formas e os
ritmos de reprodução da nova pequena-burguesia (técnicos, en-
genheiros etc.), do êxodo rural ou do trabalho imigrado na Eu-
ropa, e o papel dos Estados nacionais europeus nesse sentido de-
pendem estritamente desta divisão do trabalho Estados Unidos/
Europa: afastamentos tecnológicos; afastamentos de níveis e hie-
rarquias de salários; formas enfim de socialização do trabalho na
produção integrada, o aspecto de desqualificaçã'o do trabalho, que
acompanha atualmente seu aspecto de alta qualificação, tendendo
a localizar-se no exterior dos Estados Unidos, restringindo-se por
outro lado a Europa a formas relativamente inferiores de tec-
nologia.
90 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Esses exemplos só fazem assinalar o problema: no entanto.


kva-nos a uma tese mais geral, pois demonstram os limites de
uma concepção muito difundida atualmente (é o caso princiµal-
mente para Sweezy e Baran) que vê, nesse sentido, os Estados
Unidos como o modelo ou imagem prefigurada do futuro para o
qual tenderia inelutavelmente, e de maneira unívoca, a Europa.
T'1.l concepção só te.rp. um va)gr anaJógico, pois negligencia as novas
delimitações de dependência que aí se intercalam. Para tomar
ainda o famoso exemplo da "inchação do terciário" nos Estados
Unidos, e sobre o qual muito se escreveu: é evidente que os rit-
mos e as formas desse desenvolvimento, de fato bem diferentes
nos Estados Unidos e na Europa, são devidos ao lugar que os
Estados Unidos detêm atualmente como centro administrativo
mundial, e não a um simples "atraso" da Europa num caminho
- americano - que ela recuperaria inelutavelmente. Isso· quer
dizer que, por um exame das classes sociais e dos aparelhos de
Estado nos países imperialistas, não poderíamos limitar-nos ao
caso dos Estados Unidos e tratar esta formação da mesma forma
exemplar que Marx o fazia, em seu tempo, para a Grã-Bretanha:
as outras metrópoles imperialist'!s, e principalmente a Europa,
constituem um campo e um objeto específicos.

Mencionemos simplesmente enfim, dada sua extensão e im-


portância, um último aspecto. As modificações do papel dos Es-
tados nacionais europeus com o objetivo de ocupar-se da repro-
dução internacional do capital sob a dominação do capital ame-
ricano, e das condições políticas e ideológicas dessa reprodução,
provocam transfarmações institucionais decisivas desses apare-
lhos de Estado. Não há dúvid-a de que, por um lado, as formas
particulares de "Estado forte" (autoritário-policial) a cujo esta-
belecimento assistimos, muito- ou pouco, por toda a Europa e, por
outro lado, a acumulação das condições de processos eventµais
de fascistização, são a expressão ao mesmo tempo da luta de classes
nessas formações e de seu lugar na nova estrutura de dependência.
Ili. CONCLUSÃO:
A ETAPA ATUAL E SUAS PERSPECTI\JrAS

Algumas observações finais são necessárias 1 :

1. A primeira observação refere-se às etapas da fase atual


do imperialismo, e mais particularmente à sua etapa presente. É
necessário, antes de tudo, voltar ao estabelecimento histórico dessa
hegemonia americana, e às formas por ela assumidas. Datando do
fim da Segunda Guerra Mundial, ela adotou as características
concretas do período. Segue-se, então, que a hegemonia am1erica-
na. instaurada em um período de destruição das economias euro-
péias, apresentou certos traços particulares em via de eliminação
(por e:xemplo, o papel do dólar). Depois, e progressivamente, as
economias européias foram "reconstruídas" e adquiriram um po-
der que não tinham antes. Nesse contexto, é evidente que a .hege-
monia americana está atualmente em "decadência" em relação
às formas excepcionais que assumiram durante a etapa anterior.
Por outro lado, fatores de ordem política se revestem aqui
de uma importância decisiva, na medida precisamente em que o
papel do político é inteiramente particular sob o imperialismo. O
pungente fracasso dos Estados Unidos no Vietnã, a emerg(;ncia
das lutas de liberação nacional nas formações dominadas, contri-
buíram grandemente para a retração atual· de certas formas da
hegemonia americana.

1 O presente ensaio, inclusive a conclusão que se segue, apareceu


de fato no Les Temps Modernes, em fevereiro de 1973 isto é ainda em
plena . "crise do dólar" e antes da "crise do petróleo". Os aco~tecim~~ntos
posteriores confirmaram plenamente as análises.
92 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

2. Mas observemos de mais perto essa retração atual, 1ns1s-


tindo ainda nos fundamentos dessa hegemonia na Europa.
De fato, a retração atual dessa hegemonia só existe, nesse
plano, em relação à etapa excepcional da destruição relativa, com
seus efeitos, das economias européias. Mas tais etapas devem ser
precisamente consideradas na periodização da fase atual, e de seus
traços principais. Em outras palavras: essa retração deve ser sem-
pre apreendida no contexto de uma fase de hegemonia americana.
Não pode ser absolutamente apreendida como reveladora de uma
tendência uni/orme que, observada de forma "exponencial" - ver
os diversos ensaios "futurológicos" atuais - significaria, desde já,
o fim puro e simples da hegemonia americana, ou .seja, seu fim
inelutável a curto prazo.
Com efeito, é necessário saber escolher os critérios determi-
nantes nesse sentldó, os quais só poderiam ser a exportação dos
capitais ref ereíff~s :P~i!!~lRªlJl1~nt.~. ª·º capital produtivo. E, se a
hegemonia· americana em geral se encontra em retraça-o em con-
fronto com as formas excepcionais de que se revestiu, ela não
fez, sob esse ponto de vista, mais do que se consolidar: melhor
dizendo, ela acompanhou a reconstrução das economias européias.
O que já é, certamente, um fator de reativação das contradições
interimperialistas, contradições estas que pareciam relativamente
"calmas" anteriormente. Mas essa reativação não significa de
modo algum, em si, o fim da hegemonia americana. É ~penas a
concepção do superimperialismo que identifica essa hegemonia
com uma ausência de contradições lnterimperialistas e com uma
"pacificação" das metrópoles imperialistas sob essa hege.monia, dei-
xando de falar do fim dessa hegemonia tão logo essas contradi-
ções se reativam 2 • Em contrapartida, tudo parece indicar que essa
reativação das contradições interimperialistas só significa, atual-
mente, uqia guinada na hegemonia americana em relação à etapa
precedent~, a Europa reocupando o lugar de imperialismo secun-
dário que lhe cabe na fase atual.
Seria necessário, enfim, situar esses traços no conjunto do
contexto mundial; assinalarei somente um elemento de impor-
tância considerável: os prodigiosos acordos econômicos recente-
mente concluídos entre os E.D.A. e a U.R.S.S., indício desse for-

2 Nenhum exemplo melhor do que o do próprio Sweezy, que, desde


a primeira desvalorização do dólar, recuou completamente, proclamando
o fim imediato da hegemonia americana .. Sabe-se agora que as sucessivas
desvalorizações do dólar desempenham o papel de máquina de guerra do
imperialismo americano.
CONCLUSÃO: A ETAPA .ATUAL E SUAS PERSPECTIVAS 93

talecimento da hegemonia americana em relação à Europa, que,


-durante muito tempo, deteve o monopólio das trocas econômicas
com o Leste.

Não vou deter-me muito na refutação das diversas análises


"'futurológicas" atuais referentes à "força" ou à "fraqueza" relativa
das "economias" americana e européias, análises que colocam a
questão das contradições interimperialistas em termos de "compe-
titividade" e de "concorrência" das "economias nacionais". Elas
:só retêm, em geral,·· ''critérios 1~conôrii.icos'; ·-·q_üe-;·e:-onsiderádos em
si, não significam grande coisa (taxa de crescimento, ritmos de
acréscimo dos PNB etc.) e os extrapolam de maneira perfeitamente
arbitrária, precisamente na medida em que elas ignoram a luta
das classes. Chego assim à questão da crise atual do imperialismo:
o que está atualmeriie --em --êrlse? não é diretamente a hegemonia
.ãinericmia scrb~~c ·emergênClã.~do -,,p.oder econômico" das· outras
=illetr9n.c{~~~-Çfilergêndã que as erigida automatJq1m.e_lJ!~ e_m "con-
1

tra-imperiª_!j_s_JJJ_Q.L~quiy~lentes" - A "Europa-Terceira força" -,


riuiS_ ..Õ-cÓn_iunto do imperialismo sob o eieito das lutas de classes
·niun_<J.[ªis g_u§~des_(J_~_ já atingiram a própria zona das metrópiJles:·-
1 Nã-fase atual de internadõiiãlização das relações capitalistas, essa

crise não coloca nem automaticamente nem inelutavelmente em


-causa a própria hegemorifa -de>" imperiallsmé) -·arriedêãno-subre·-·as
.º1,itrªs metrópoles, mas-atinge e coniunto. dos --países-Jmperialistas,
e manifesta-se assim _ao.-mesmo-temoo à sua frente e na acentua=-
·Ção das confra<l1Çõ~~ int~rimperiªli_sjas. Em o~tr~-~ Íermos:-~ão é
a hegemonia do imperialismo americano que está em crise, mas
~~~junto do imperialismo sob -~-ssél...h~~.!!!QQ~· --~---·-
Segue-se qüe-·Ilão--pooetiáliãver solução em face dessa crise,
·e as burguesias européias se dão conta perfeitamente, através da
via indireta de uma recolocação, por seu lado, da hegemonia do
capital americano. A questão para elas, em face· da emergência
da luta das massas populares na própria Europa, é simplesmente
remanejar essa hegemonia que das reconhecem, tendo em conta
a reativação e a acentuação das contradições interimperialistas:
·sobre o que se transplanta, naturalmente, a questão da divisão do
bolo. As peripéd_as ..da--c_EE_o demonstraram, ainda ultimamente,
de forma perfeita. Assiste-se há. dois anos, especialmente com a
crise do dólar, a um processo que, todos os observadores são unâ-
nimes, bem parece uma série de recuos sucessivos da CEE diante
das "exigências" americanas; é inútil exoô-las minuciosamente (po-
lítica monetária, atitudes em face da -"crise do petróleo" etc.).
94 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Tais recuos são em geral interpretados como Uflla "ofensiva do


capital americano a fim de estabelecer sua hegemonia vacilante":
e os diversos observadores se perdem em conjeturas e previsões
sobre os "próximos rounds", contando meticulosamente os pon-
tos marcados pelos "adversários". De fato, não há nada, pois as
árvores impedem aqui a visão da floresta: não se trata, para o
capital americano, de restabelecer sua hegem.onia,-JWlt ~L<L ia.lliiiis
㺠perâeu. É justamente sobre essa hegemonia que se baseiam
Todos os desenvolvimentos atuais, que só podem ser explicados.
a partir dela: o processo aparente de um passo à frente, dois pas-
sos para trás, por parte da CEE, não significa nada mais do que
remanejamentos trazidos a essa hegemonia no contexto atual de
intensificação das contradições interimperialistas. Irei mesmo mais
além, sustentando que o que ocorre atualmente, longe de significar
uma tentativa do capital americano em "restabelecer" sua hege-
monia, significa uma ofensiva por ele feita para recolocar em
questão o próprio lugar de imperialismo secundário que a Euro-·
pa ocupara com êxito sob sua hegemonia.
Isso leva-nos diretamente a uma outra constatação: o próprio
caminho que essa crise seguirá, pois há crises que duram muito,_
dependerá da luta das massas populares. No interior des~a luta,
.na fase atual do imperialismo e na presente conjuntura, aquela
luta das massas populares na Europa contra suas próprias burgue-.
sias interiores e contra seus próprios Estados tem um papel
fundamental.
AS BURGUESIAS:
SUAS CONTRADIÇÕES
E SUAS RELAÇõE.S COM O ESTADO·.:
1. A POSl1ÇÃO ATUAL DO PROBLEMA

'Ü ENSAllO PRECEDENTE mostrou que as burguesias da~ metrópoles


imperialistas, e principalmente as burguesias européias, só podem
ser anàllisadas no contexto da internacionalização _gªs r.elaÇoes --ca.:.-
pitalistas no decorr~(9~J~~~~J!t~~l_~qp_jmper1ã11s-mo. Ele não im-
pede que as burguesias interiores dessas metrópoles, mesmo sendo
extrapoladas em relação ao capital americano, apresentem, em
.suas relações com o Estado, um campo próprio de contradi~(Ões
internas. É a esse aspecto que vamos dedicar-nos agora, o que
permitirá esclarecer e aprofundar uma série de questões simples-
mente colocadas no capítulo precedente. Tais questões serão aqui
examinadas sob o aspecto da fase atual do capitalismo monopolis-
ta, oue não é outra coisa senão a fase atual do imperialismo ___.no
próprio seio de ca~_a. .[QI111.~Çãº___s_oc!~l e d.e .se-u--c:ampQ_--4~~~ºn.Jra~
<lições específicas.
Ess:es dois aspectos da questão, a saber, as relações das bur-
guesias interiores e do capital americano, de um lado, e as con-
tradições próprias às burguesias interiores, do outro, levam em
conta somente a realidade de uma formação social em sua con-
jugação e articulação concreta. No entanto, a exposição relativa-
mente distinta desses dois aspectos é legítima: as características
fundamentais da fase atual do imperialismo não são a simples
transposição, no plano da internacionalização das relações capi-
talistas, das características próprias da· fase atual do capitalismo
monopolista em cada metrópole imperialista, nem a simples tra-
dução dessa internacionalização.

_No está.dia do "capitalismo competitivo", o ciclo de repro-


duçao ampliada do- capital social compreendia a diferenciação
98 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

entre frações distintas do capital, dando lugar a "momentos" di-


ferenciados de reprodução: o capital produtivo ou industrial no.
sentido estrito, o capital bancário e o capital comercial. Isso ti-
nha como efeito o fracionamento da classe capitalista em bur-
guesia industrial, burguesia bancária e burguesia comercial. Essa.
situação correspondia a formas determinadas das relações de pro-·
dução capitalistas nesse estádio.
O que importa assinalar, no momento, são as contradições e·
as lutas entre essas diversas frações da burguesia nas formações.
capitalistas marcadas pelo domínio, no seu seio, do estádio com-
petitivo. Ainda mais que, durante esse estádio, encontram-se tam-
bém os grandes proprietários detentores da renda da terra, fre-
qüentemente' presentes no terreno da dominação política: esse es-
tádio é aquele do estabelecimento do domínio do modo de pro-
dução capitalista (MPC) sobre OS outros modos e formas de pro-
dução nas formações sociais capitalistas, o que se manifesta pelo·
fato de que os efeitos de conservação ainda predominam sobre os.
efeitos de dissolução que o MPC impõe a esses modos e formas.
Esses grandes proprietários de terras podem ser classificados, em
geral, sob duas formas: a) seja como ·classe distinta da burguesia~
dependendo do modo de produção feudal coexistente nessas for-
mações (caso clássico da Prússia oriental e da Itália meridional);
b) seja quando os efeitos de dissolução estão, pelo processo de in-
trodução do capitalismo na agricultura, bastante avançados com()
fração distinta da burguesia (caso inglês) 1 .

Primeiramente, isso tem conseqüências no plano da domina-


ção econômica de classe.· É verdade que a partir do domínio d0>
MPC sobre os outros modos e formas de produção em uma forma-
ção capitalista, é o ciclo do capital produtivo-industrial, aquele·
que produz a mais-v(lli_a_ e em c;µjQ_ ~~º- se estabelecem as rela,ções
de produção, que determina o traçad9_ do conjunt~ da reprodução,
do capital nessa formação: é o próprio sentido dos esquemas de
reproduç·ão de Marx no" Capital. Mas issÜ'_ nã5) __i_rrtP~~ ..ql!~ o lugar
preponderante na dominação eç_()__!ll>_miçª- possa ser, segundo as
etapas, ocupado, ,e freqüe-ntemente de maneira alternante, por-

1 Certo número de pessoas e eu chamamos a atenção (Cahiers mar-·


xistes-léninistes, 1967; Pouvoir politique et Classes sociales, 1968, pp. 183,
250) para o fato de que os grandes proprietários de terras, os .quais:
Marx assinalou abusivamente no último capítulo do Capital como uma
classe autônoma e distinta que releva do MPC, na realidade a ela não
pertenciam.
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 99

uma ou outra da~ fJ_~_§(!_~_ da burguesia: a própria burguesia indus-


trial, a burguesia comercial ou a burguesia--bancafia.·:E--ae-ssaâo-
minação que· dependerãu- Cf ca-irtirilio cônc-refi); _a_ _ mãrchã e O rltmo
que seguirá o desenvolvimento do capitalisrjl_ó __:rieisi___formãÇãü:-
Quanto ao terreno da 4l!!11-inação --pÕ!ítica, e-sie----enêoriira-se
igualmente ocupado não por uma só classe ou fração de classe,
mas por várias classes e frações de classe dominantes. Essas clas-
ses e frações constituem, nesse terreno, uma aliança específica,
o bioca no .poder, funcionando em regra geral sob a direção de
-urríá-ôas--ctasse·s ou frações dominantes, a classe ou fração hege-
mônica. Essa classe ou fração, que pode aliás não se identificar
com aquela que detém a preponderância na dominação econômi-
ca, é também variável segundo as etapas: pode ser a burguesia
industrial, a burguesia comercial ou a burguesia bancária. Isso de- ~
pende das voltas e das etapas concrietas da luta das classes.

Seria necessário fazer aqui unia primeira observação, ref e-


rente a certas interpretações atuais da periodização do MPC em
sua reprodução ampliada 2 : essa periodização. se basearia no papel
determinante, no ciclo de reprodução do capital social, do capital
comercial primeiramente, do capital industrial em seguida e, en-
fim, do capital bancário-financeiro. Isso conduz seguramente a
uma concepção de "fases" marcadas pela dominação e hegemonia
necessárias e sucessivas da burguesia comercial primeiramente, da
burguesia industrial em seguida e, enfim, da burguesia bancária,
caucionando neste último caso um antigo equívoco, que consiste
em identificar capitalismo monopolista, de um lado, e dominação
e hegemonia dos "bancos", de outro. Além dessa interpretação
"Ocultar finalmente o imperialismo como estádio específico do ca-
pitalismo 3 , ela leva a admitir a possibilidade de uma determina-
ção do ciclo total de reprodução annpliada do capital social pela
circulação do capital-mercadorias, a saber, durante um certo "pe-
ríodo" dessa reprodução ampliada, pelo ciclo do capital comer-
cial: o que significa recolocar em pauta, de forma radical, as
análises de Marx sobre o papel determinante da produção. Com
efeito, essa interpretação particular se prende a uma característi-

2 Entre outros, Chr. Palloix, L'Economie- capitaliste e Firmes mul-


tinationales et proces d'internationalization, op. cit. Ver igualmente, aliás,
G. Dhoquois, P.-P Rev etc.
ª O exemplo mais caracteríc;;tic~ é aquele de G. Frank e do panei
que. at~:ibui à extensão das "relações comerciais" desde os primórdios do
cap1tahsmo.
100 AS CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

ca mais geral dessas concepções: no papel privilegiado (e ro_esmo·


principal) que, ao contrário de Marx, atribuem à circulaçãÔ:-É.
isso mesmo que as conduz, no capitalismo. monopolista, a ·pnvile-
giar, ainda desta vez, o ciclo do capitãl-díiihefrO._.____ -- -------

O problema é de importância decisiva, e convém nele nos de-


termos. De fato, é verdade qrne o processo de valorização do ca-
pital não pode ser apreendido, como Marx o demonstra no se-
gundo livro do Capital, no processo de produção _"imediato", 0:·
que daria lugar ao "produtivismo" que Marx critica, principal-
mente nas suas observações r eferentes aos fisiocratas. Esse pro-
1

cesso só pode ser apreendido na reprodução do conjunto do ca-


pital social que faz aparecer, pela mediação do mercado, nas di-
versas frações do capital como "momentos" desse processo de re-
produção. O capital como relação social não pode ser apreendido
em um processo de produção considerado de maneira isolada do:
processo de circulação: conversão do capital produtivo em capital-
dinheiro e conversão do capital-dinheiro em capital produtivo
pela mediação do capital-mercadorias.
Dito isso, não é· menos verdade que o conjunto da reprodu-
ção do capital social seja baseado, para Marx, no papel determi-
nante da "produção", entendida como articulação das relações de
produção sobre o processo do trabalho, designando o lugar das
classes sociais e da luta das classes. As classes sociais, tais comO'
aparecem, à primeira vista, na circulação e na realização (algu-
mas frase·s de Marx sobre as classes sociais no Capital, classes colo-·
cadas em relação com renda, lucro e salário) estão baseadas, em
sua determinação estrutural, nas relações de produção. Em outras:
palavras, a exploraçãà capitalista pela produção da mais-valia, que
passa através da via indireta da mercadoria e da constituição da
própria força-trabalho em mercadoria, está fundam.entada nas re-
lações de produção específicas do capitalismo: é aí mesmo que o
lugar dessas classes, sua reprodução e a luta das classes são legíveis
e decifráveis.
O pape] determinante do capital produtivo no processo de
reprodução do conjunto do capital social - como veremos am-
plamente no ensaio seguinte -- tem incidências decisivas na de-
terminação das classes. Com efeito, é na interpretação desse pa-
pel que se podem compreender as análises de Marx sobre a classe
operária, que não está circunscrita pelo assalariado (compra e
venda da força-trabalho, isto é, a "classe assalariada"), mas pelo
trabalho produtivo, isto é. sob o capitalismo, por aquele que pra.
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 10!

duz diretamente a mais-valia. É assim que, segundo Marx, só fa-


zem parte da classe operária os assalariados que dependem do.
capital produtivo, pois é o único que produz a mais-va_lia. Os.
assalariados que dependem da esfera da circulação e da realiza-
ção da mais-valia, isto é, do capital comercial e do capital ban-
cário, não fazem parte da classe operária, pois seus capitais e o
trabalho de que dependem não produzem a mais-valia.
Em compensação, os autores que sustentam o papel principal
da circulação na reprodução do capital social (C. Palloix, P.-Ph.
Rey etc . , que se ligam a A. Emmanuel e A. ·Gunder Frank) são:
forçosarnente levados à conclusão de que as relações de classe: só
surgem finalmente, como tais, na circul~ção do capital, nas re--
lações do mercado (compra e venda da força-trabalho) 4 • É 1;!vi-
dente que essa conclusão conduz, entre outras, à concepção pre-
cisamente da "classe salarial", isto é, a incluir na classe operária
o conjunto dos assalariados não-produtivos. ,

Retomemos nosso problema. O papel determinante do capital'


produtivo prende-se, para Marx, ao fato de ser o único que pro-
duz a mlais-valia. Sabe-se que aí está o resultado de· um procedi-·
mento muito complexo em Marx, pelo qual e1e se separa da es-
fera "superficial" das -relações comerciais e de toda a econornia
política pré-marxista baseada no "espaço da circulação". Marx
fala sobre esse assunto no Capital: "A primeira concepção teórica.
do modo de produção moderno - o mercantilismo - parte ne-
cessariarnente dos fenômenos superficiais do processo de circula-
ção, tais como se manifestam de forma autônoma no movimento
do capital comercial, não levando então em conta esses fenôrne-·
nos. Em parte, porque o capital comercial é em geral a primeira
manifestação autônoma do capital. Em parte por causa da in--
fluência preponderante que esse capital exerce no primeiro pe-·
ríodo de transformação da produção feudal, no período de for-
mação da produção moderna. Mas a verdadeira ciência da eco-

4 Chr. Palloix, Firmes multinationales ... , op. cit., pp. 112 sq.,
146, sq., seguindo nisso P.-Ph. Rey: "O segredo último da relação de
produção cap~talista é estar incorporado como um simples momento de um
subconjunto do processo de circulação" "Sur l'articulation des modes de
productiim~", em Problemes de Planifica~ion, n.os 13-14, p. 95, o que tem
co'!lo efeito, em Rey, sua fixação exclusiva, na periodização do capi-
talismo, sobre a forma-salário. Sabe-se, aliás, que essas confusões t1êm
repercl!ssôes bem maiores: ver, por exemplo, as diversas crífcas atuais
da so~1edade dita de consumo, críticas centradas em tomo da forma-mer-
cadona (principalmente, na França, as análises de Baudrillard).
102 As CLASSES SOCIAIS No CAPITALISMO DE HoJE

nomia moderna só começa no momento em que o tratamento


teórico passa do processo de circulação ao processo de produção."
E ainda: "O capital industríal é o único modo de existência do
capital onde sua função não consiste somente em apropriação,
mas igualmente em criação de mais-valia, em outras palavras, de
subproduto. Eis por que ele condiciona o caráter capitalista da
_produção; sua f arma de existência inclui aquela da oposição de
classe dos capitalistas e dos trabalhadores assalariados. . . (grifado
por mim, NP). Quanto ao capital-dinheiro e ao capital-mercado-
ria, quanto mais aparecem com .suas funções ao lado do capital
industrial comQ suportes de ramos de negócios especiais, só re-
presentam modos de existência de diferentes formas funcionais
'que o capital industrial toma e rejeita alternativamente na esfera
da circulação, modos de existência promovidos à independência e
·desenvolvidos à parte, em razão da divisão social do trabalho". 5
Eu poderia ainda, facilmente, multiplicar as citações, mas as
·coisas estão perfeitamente claras: contudo, notemos o papel par-
ticular que Marx atribui ao ciclo do capital comercial (capital-
mercadôrias) na fase de transição do feudalismo ao capitalismo,
·O que, aliás, Marx designa como período da manufatura. Mas,
precisamente, durante essa fase, não há reprodução ampliada do
·capital; esta só intervém de algum modo nos dias seguintes da
transição, sendo contemporânea e co-substancial ao estabeleci-
mento do domínio do MPC sobre os outros modos e formas de
produção, à passagem da subsunção (submissão) formal à subsun-
ção (submissão) real das forças e meios de trabalho ao capital, e
ao domínio pefo capital das condições políticas e ideológicas de sua
reprodução. Essa reprodução ampliada, que inaugura o primeiro
.estádio do capitalismo, o capitalismo competitivo distinto da fase
transitória manufatureira, conota, como tal, a determinação do
·ciclo total do capital por aquele do capital produtivo.
Mas o papel determinante do capital produtivo na reprodu-
·ção ampliada do capital e na valorização do conjunto do capital
-social não impede que, no estádio competitivo de formações so-
ciais onde o MPC estabeleceu seu domínio, a preponderância na
dominação econômica e a hegemonia política possam ser detidas
pela burguesia comercial. Durante esse mesmo estádio, esse papel
pode igualmente voltar ao capital industrial no sentido estrito.
ou ao capital bancário. Marx o demonstrou em suas obras polí-
ticas e principalmente naquelas referentes à própria França (La

Cí Le Capita/,, Editions Sociales. t. IV, p. 53.


A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 103

Lutte des classes en France, Le 18 Brumaire, La Guerre civile


en France etc.).
Pode-se então medir a distância que separa estas análises da-
quelas:, atuais, que acabo de assinalar. Não é por acaso que estas
conduzem a uma recolocação radical do leninismo, expressa aqui
por uma recolocação da concep~;ão leninista do imperialismo e
do capitalismo monopolista, em .geral sob a forma de uma re-
conciliação amigável entre Lênin e Rosa Luxemburgo, encobrin-
do uma pretensa "volta" a Marx. Certamente, estou bem cons-
ciente ao simplificar aqui problen1as de grande complexidade: as
relaçfü~s ambíguas de Lênin comt Hilferding, suas relações com
as análises de Rosa Luxemburgo, e também os problemas do pró-
prio Marx. São problemas que, sob numerosos aspectos, perma-
necem ainda em aberto, mas sobre os quais, no âmbito deste
texto, não convém insistir. Dessas precauções, que não são sim-
plesmente verbais, manterei, no entanto, o que me parece essen-
cial. As análises -de Lênin, ao contrário das de Rosa Luxembur-
go, quie enfatizam a circulação e o capital-mercadorias, ao con-
trário igualmente, apesar de suas ambigüidades, das de Hilferding,
que enfatizam o capital bancário, identificando-o ao capital fi-
nanceiro, são fundamentadas no papel determinante do capital
produtivo. Lênin fez progredir aqui a teoria marxista, e m{~smo
não apenas a teoria do imperialisnno, mas a teoria marxista, pura
e simples, separando-a completarr.1ente de certa concepção do
"mercado" e das "relações comerciais", que ainda permanece
por vezes ambígua em Marx.
Mas ainda há mais: é conferindo essa importância decisiva
às relac~ões de produção e à divisão social do trabalho que elas
implicam, que se pode colocar o problema fundamental: a re-
produçlío do capital não é simplesmente o ciclo global do capital
social (o famoso "espaço econômlco"), mas igualmente à repro-
dução das condições políticas e ideológicas sob as quais essa re-
produçlío tem lugar. Fazer a crítica de uma concepção tecnidsta
das forças produtivas não quereria dizer restaurar um primado
qualqu€:r da circulação e recair nas concepções pré-marxistas:
isso quer dizer restaurar o primado das relações de produção que
e
remontam diretamente às condições políticas ideológicas de sua
reprodução. Em outras palavras, a reprodução do capital como
relação social não está simplesmente situada nos "momentos"' do
ciclo capital produtivo - capital-m.ercadorias - capital-dinhe:iro,
mas na reprodução das classes sociais e da luta das classes, em
toda a complexidade de sua determinação.
104 As CLASSES SOCIAIS NÓ CAPITALISMO DE HOJE

II

Coloque1nos agora a primeira questão importante concernen-


te ao estádio capitalista já no estádio capitalista con1petitivo, e
sob sua forma mais simples. Em face de um terreno de domina-
ção política ocupado por diversas classes e frações de classe e
atravessado por contradições internas, o Estado capitalista, em-
bora representando de forma predominante os interesses. da classe
ou fração hegemônica - ela própria variável -, assume uma
autonomia relativa com respeito a essa classe e fração e com res-
peito às outras classes e frações do bloco no poder. É, de um /
lado, porque ele assegura o interesse político geral do conjunto
do bloco no poder, "organiz&ndo o equilíbrio instável de com-
promisso" (Gramsci) entre seus componentes sob a direção da
classe ou fraç:ão hegemônica; de outro lado, porque ele organiza.,
essa hegemonia com respeito ao conjunto da formaç~io social, e
então igualmente com respeito às classes dominadas, segundo- as
formas específicas que suas lutas assumem sob o capitalismo.
Essa autonorr1ia relativa, que está inscrita na própria estrutura
do Estado capitalista pela "separação" relativa do político e do
econômico próprio ao capitalismo, e que não se prende de forma
alguma à natureza intrínseca "'da instância estatal ou política'"
como tal, mas está relacionada ·com a separação e a dlespossessão
dos produtore:s diretos de seus meios de produção que especifi-
cam o capitalismo, sendo somente, sob esse aspecto, a condição
necessária ao pªpel do Estado capitalista. na repres;entaÇào · · de
classe e na org~iiaÇao···p-õffiica da hegemonia.
A correspq:11dência entre -0 Estado, que assegura a coesão da
formação soc:ial,-â.o ·m.anter as lutas que aí se desenvolvem nos;
limites do modo de produção e ao reproduzir suas relações so-
ciais, e os intc~resses da classe ou fração hegemônica não se esta-
belece em termos simples de identificação ou de redução do Es-
tado a essa fração. O Estado não é uma entidade instrumental
intrínseca, não é uma coisa, mas a condensação de uma relação
de forças. Essa correspondência ~~--~sJabel~ce em termos de· orga-
nização e 4"e "representação: a classe ou fração liegemônica, aléin
de seus interesses econômicos imediatos, de momento e a curto
prazo, deve assumir o interesse político do conjunto das classes
e frações que compõem o bloco no poder, e, portanto seu próprio
interesse político a longo prazo; ela deve se "unificar" e "unifi-
car" o bloco no poder sob sua direção.. Segundo uma intuição
profunda de Grªms_ci,_ o Estado capitalista, no conjunto de seus
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 105

aparelhos (e não somente os partidos políticos burgueses), ass~­


me um papel de "P~!_0do'', em relaçã?. ao bloco no_ po~er,. ana·
logo àquele do partido aà. classe operana com relaçao a ahança
popular, ao "povo". . . .
As relações de poder no se10 do bl_oco no poder se cns~h-
zam assim pela articulação C()_n-cfr-éta· .do_s ramos do__-a_p~~~- f~­
.pressivo de :gstadq_ e dos aparelhos ideológico_s de Estado, _!l_a_j.
relações parti_cu_la~~~--9,ue entretê.m com as diver~_as class(!_~---~.Jr~­
ções domina11~es. Dessa articulação dependem, entre outras, as.
formas de que se- reveste o Estado capitalista: essas . f Qrll}_ªs de--
pendem então, sob esse aspecto, das relações precisas no seio das:
classes e frações dominantes, também elas efeitos da contradição
principal: burguesia/classe operária.

Mas a ques_~ª()_princi_Q~}/ já está então colocada. Têm essas


características do bloco no poder e do Estado capitalista, e as
análises dos clássicos do ·marxismo a esse respeito, como único
campo de validade o capitalismo competitivo? Portanto, se bem
que modlficaÇoes-coiisiaêraveis intervenham ··n.o estádio capitalis-
ta monopolista, mais particularmente na fase atual, tal não é o
caso:. É o que tentarei demonstrar examinando mais de perfô-
as modificações atuais.

Com efeito, quanto ao papel__ g~!"_ê-1 do Estado, modificações


importantes têm lugar, no estádio do capitalismo monopoÍista,
aquele do imperialismo, que tratam daquilo que se designa como
"funções econômicas', do Estado, a saber, seu papel na reprodu-
ção das próprias relações de produção.
Para um exame mais acurado dessas transformações, é ne-
cessário esclarecer primeiramente algumas questões _p~~yi~~=-

1. Ao contrário de uma concepção simplista do papel do


Estado, que baseia a distinção entre aparelho repressivo de Esta-
do e aparelhos ideológicos de Estado no fato de que o Estado
só teria "papel" repressivo - exercício da violência política -
ou ideológico - inculcação da ideologia dominante -, exercidos
de maneira predominante pelo aparelho repressivo e pelos apa-
relhos ideológicos, é necessário observar que o Estado seinp~e
detém um papel ~-conômico direto_ na reprodução das .relações _de
produção: papel econômico direto já que não se ilIIl.ita, nestê
caso, às simples incidências da repressão e da inculcação ideoló-
106 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

gica sobre o econômico. Mas esse papel econômico não é uma


função técnica ou neutra do Estado: esse papel é comandado
pela dominação políti_c;_ª-_g~_çlªâ.~e. É nesse sentido que eie se exer-
ce sempre ·-sob .º-··aspecto principal da repressão política ou da
inculcação ideológica, pelo desvio do aparelho repressivo ou dos
aparelhos ideológicos, e é precisamente nesse sentido que: se pode
manter, nesse caso, a distinção entre esse·s aparelhos. Falar, então,
de aparelho repressivo e de aparelhos ideológicos de Estado não
quer absolutamente dizer que o Estado tem somente papel re-
pressivo ou ideológico: é ness.e sentido que podemos também
juntar a esses aparelhos umi "aparelho econômico·;; dé-Esiadà~~dis­
tinto dos outros - por exeniprõ:()PlanO,-atuãTiiiente- __-,--o que
deveria ser o caso, a fim de colóc'armÕs. em alguma parte as
funções econômicas do Estado quando consideramos que o apa-
relho repressivo não tem senão um papel repressivo, e os apare-
]hos ideológicos um papel de inculcação ideológica. Isso condu-
ziria precisamente a acreditar que há de um lado funçôes po1í-
t~cas repressivo-ideológicas do Estado e, de outro lado, funções
econômicas técnicas e neutras do Estado: concepção tão falsa
como a que considera que o Estado só possui o papel repressivo
ou ideológico.
2. O Estado capitalista correspondente ao estádio do capi-
talismo competitivo - o Estado _ljberal - deteve sem.p:re..Jnn
papel ~c9n_ômi~~= a imá.ge_Ín___ de. um--Estado liberal, - simples Es-
tadlo guarda ou vigilante de um capitalismo onde a economia
"anda completamente só", foi sempre um mito. Tal mito parti-
cipa do erro, dando lugar a uma leitura economista dos textos
de Marx sobre a reprodução no segundo livro do Capital, e se-
gundo a qual a reprodução do capitalismo se limitaria ao "espaço
econômico", que funciona de algum modo "sozinho", pela sim-
ples auto-regulação. Da fiscalidade à legislação das fábricas, da
proteç~o alfandegária à eonstrução da infra-estrutura econômica
-- estradas de ferro etc. -, o Estado liberal sempre deteve funções
econômicas importantes, certamente em graus desiguais segundo
as diversas formações so:ciais capitalistas:· esse papel foi 1mais im-
portante na Alemanha e na França do que na Grã-Bretanha, por
exemplo. O próprio Marx observa bem, no Capital., a presença
oca das intervenções do Estado liberal no econômico.
Ora, se podemos falar, a propósito desse Estado, de uma
não-intervenção específica no econômico, é de fato p_ara. marcar
a distância com o papel do Estado no estádio do capitalismo
monopolista, o "Estado intervencionista" que Lênin já tinha em
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 107

vista em suas análises sobre o imperialismo. A diferença aqui,


com o Estado do capitalismo competitivo, não está, voltaremos
a isso, numa simples diferença quantitativa. O Estado, no estádio
.capitalista monopolista, .intervém. de forma decisiva na economia
\já que seu papel não se limita, essencialmente, à reprodução do
~ue Engels designa como "condições gerais" da produção da
:mais-valia~ mas se estende ao próprio ciclo de reprodução am-
)pliada do capital como relação social.
J
;

Mas ainda há mais: a partir do momento em que se admite


que a reprodução das relações capitalistas não se limita ao espaço
econômico, é a própria noção de "condições" da produção que
deve ser colocada em questão. Essa- noção corrê o risco de deixar
supor, sob o capitalismo, uma estagnação e exterioridade princi-
pais entre as relações político-ideológicas (as condições: o Es-
tado) e o õspaço econômico (as relações de produção) 6 . De fato,
essa noção deve estar situada no contexto das análises de Marx
que colocam, como especificidad1e do modo de produção capita-
lista (MPC) em relação aos modos de produção "pré-capitalistas"
(feudal, especialmente), a "separação" característica do político
e do econômico, enquanto estes se apresentavam como "estrei-
tamente imbricados" nos modos pré-capitalistas. Mas essa sepa-
ração não desjgna de maneira alguma uma exterioridade de cons-
tituição, sob o capitalismo, inclusive seu estádio competitivo, do
político e da ideologia (condiçõe:s) em relação ap econômico
(relações de produção). Essa separaçao é apenas a forma neces-
sária e específica, na reprodução do capitalismo sob todos os seus
estádios, da presença do político e da ideologia nas relações de
produção.
Essa própria relação de "separação" é modificada, mas não
abolida, no estádio monopolista, estádio que implica deslocamen-
tos dos lim;tes entre o político e. a ideologia, de um lado, e o
espaço econômico, de outro: a reprodução ampliada do capita-
lismo tranl;\forrna os próprios locais de seu processo. Em outras
palavras, essas modificações afetarn a configuração e a constitui-
ção próprias d9s_ campos em··-·questão, a_ saber, respectivamente
aqueles do espaço ec.offômico-·--e-de--8tlaS "condições''. Tima serle
. ·---~-----·~-·--··-------~----------------

. 6 Com efeito, o termo exato empregado por Engels é "condições ge-


rais exte··iores" (die allgemeine iiussere Bedingungen) da produç::io:
A!1ti-Dühring, MEW, t. XX, p. 260. Sobre este assunto ver também J.
~irsch, em Hirsch e altri: Probleme einer materialistischen Staatsthen-
rze, 1973.
108 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

de domínios e de funções que, no estádio competitivo, dependiam


das "condições" da produção (sem que isso queira dizer que fos-
sem realmente exteriores), dependem doravante diretamente da
valorização do capital e de sua reprodução ampliada. As inter-
venções atuais do Estado com respeito às diversas "condições de
vida" fora do trabalho, por exemplo, constttu.em, nesse sentido,
outras tantas intervenções econômicas diretas do Estado na re-
produção das relações de produção. Se assistimos atualmen-
te a uma extensão característica dos domínios do político e das
intervenções do Estado, é na exata medida e1n que recobrem a
extensão do espaço de valorização do capital 7 •

Isso tem precisamente como efeito a modificação do papel


do Estado, modificação que marca, do ponto de vista da estrutura
do MPC, sua periodização em estádios, e o corte entre o capita-
lismo competitivo e o capitalismo monopolista. Eu havia chama-
do a atenção para esse problema quando frisei que o capitalismo
monopolista é marcado pelo deslocamento do domínio, no seio do
MPC, do próprio .econômico ao político, ao Estado, enquanto o
estádio competitivo era marcado pelo fato de que o e·conômico,
além do papel determinante, detinha igualmente o papel domi-
nante 8 •
É claro, no entanto, que esse deslocamento do domínio deve
ser apreendido em relação à própria estrutura do MPC, pois é em
sua própria reprodução que ele surge marcando sua distinção em
estádios. Esse deslocamento não pode ser situado da mesma
forma analógica que a diferenciação entre determinação e domí-
nio no seio de outros modos de produção, co:mo, por exemplo,
o feudal, onde o econômico é determinante, ao tempo em que
domina a região religiosa da ideologia. Esse deslocamento não
elimina principalmente a separação, característica do MPC, entre
o político e o econômico, ao contrário de certas análises dos de-
fensores do capitalismo monopolista do Estado ("O Estado atual
faz parte da base") e cujas implicações veremos em seguida n.

'7Ver adiante. pp. 181-2.


8 Pouvoir politique et Classes sociales, op. 51 sq. Ver fo·ualme'.1.te
Bettelhe;m: Pré faces au Capitali.çme mono poliste, de Sweezy e Baran; e
"Rem~rm1~i;; théoriques", em L'Echan.~e inégal, de A. Emmanuel. op.
cit., p. ?40.
9 É por ii~so, aliás, que se pode manter o termo intervenções do
Estado no econômico, mas desde que esse termo não seja apreendi.do
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 109

Levando-se em conta a estrutura específica do MPC e- as re-


lações de produção que a _caracterizam, o papel dominante é assi-
nalado em função da reprodução ampliada do capital social e
de sua valorização: é a intervenção decisiva do Estado nesse ciclo
.que lhe confere o papel dominante. Em outras palavras: é o pró-
prio funcionamento das relações econômicas do MPC - repro-
dução ampliada do capital - e de suas contradições próprias que
determina, no estádio do capitalismo monopolista, o deslocamen-
to do domínio para o Estado. Isso significa que esse deslocamen-
to e o "papel econômico" do Estado no capitalismo monopolista
estão em relação:
-
a) com as modificações das relações de produção capitalis-
tas que marcam o capitalismo monopolista e suas fases;
b) com o tipo e as formas de dominação intensiva que o
MPC, no estádio do capitalismo monopolista e segundo suas fases,
deve exercer sobre os outros modos e formas de -producão . -
inclusive aquele do capitalismo competitivo - , ao mesmo tempo
em cada - formação social e em escala internacional, a fim de
ultrapassar suas contradições e de assegurar sua reprodução,,
É estudando essas coordenadas que o papel dominante do
Estado no sentido do capitalismo monopolista poderá ser funda-
mentado e· elucidado.

III

Essas transfarmações do papel do Estado são assim articula-


i as às modificações que sobrevêm,. no estádio capitalista mono-
polista, no seio da burguesia. Essas transformações, ao contrário
.de uma tendência muito difundida, não podem ser estudadas
através de um relacionamento "direto" do Estado com o "sistema
·econômico", mas somente pela elucidação das modificações nas
relações de classe. E, nesse sentido, pode-se propor uma série de
·questões: quais são as novas formas de contradições e de fracio-
namentos que surgem no seio dessas burguesias, e em que medida
elas colocam em causa as frações da burguesia no estádio do ca-
pitalismo competitivo? Podemos falar sempre, no estádio mono-
polista, mais particularmente em sua fase atual, de um bloco no
poder composto de· diversas frações burguesas, ocupando o ter-
reno da dominação política? Podemos, em conseqüência, falar
sempre de uma autonomia relativa do Estado atual em face ds
110 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

uma fração hegemônica, Estado que assegura, sob formas novas,..


o interesse político geral dessa aliança no poder?
O interesse político dessas questões é fundamental. Nesse~
sentido, levaremos em conta, passando sucintamente em revista
(o que certamente implica sua esquematização) as teses atuais,
dos PC ocidentais, e principalment~ do PCP, sobre o capitalismo
monopolista de Estado W: teses que servem de base à estratégia
atual da "aliança antimonopolista" e da "democracia avançada''_
Essas análises, consideradas desta vez sob o ponto de vista da bur-
guesia interior e sua relaç·ão com o Estado participam do mes-
mo tipo de erros que aquelas que encontramos, no ensaio ante-
rior, que dizem respeito à internacionalização das relações capi-
talistas. No entanto, esses erros surgem aqui de forma bem mais
nítida, sendo o momento de insistir sobre o assunto. Apresentam
3 bases principais:
a) As transformações atuais, e mesmo a "fusão" do capital
e a dominação maciça do grande capital monopolista, fariam
com que não se falasse mais atualmente de um bloco no poder~
O terreno da dominação política só seria ocupado atualmente
pela única fração do grande capital monopolista, com a exclusão
do restante da burguesia que, por esse mesmo motivo, se veria
colocada do lado das classes dominadas. Com efeito, essas aná-
lises quase que só falam da fração hegemônica, o grande capital'
monopolista, ocultando, praticamente, as outras frações burgue-
sas dominantes. Não distinguindo assim entre fração hegemônica
e frações dominantes, acabamos por considerar que o lugar de
dominação política seja doravante ocupado unicamente pelo
grande capital, e que as outras frações burguesas, especialmente
o capital não-monopolista, sejam daí por diante excluídas.
Certamente, as coisas não são em geral apresentadas de for-
ma tão brusca: não são entretanto menos nítidas, como se pode
constatar no recente Traité marxiste d'économie politique 11 • To-
das as vezes que surge a questão de dominação política, mencio-
nam-se somente os grandes monopólios. Em compensação, sem

1 º Só levarei em consirleração as ~má1ises do PCF. Ma~ essas aná~


Iises se encontram, com ligeiras varhntes, nos textos publicados na RD.\
(Zur Theorie des staatsmonoTJolistischen Kapitalismus, Berlim, 1967), na
Itália pelo PCI etc.
:t,l Essas concepções foram assinaladas rm meu artigo. "Les classes:
sociales'', em L'Homme et la Société (n.os ?4-?5, 1972): ver também,
além des-;e tratado, J. Loj'dne, "Pouvoir noFtioue et lutte de classes".
em La Pensée, n. 0 166, de7embro de 1972 etc.
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 111

pre que surge a questão de um outro capital que não o "grande


capital", a questão refere-se apenas e sobretudo ao "pequeno ca-
pital", cuja aliança se procura. No entanto, é preciso con1preen-
der os termos. Entendendo-se por "pequeno capital" a pequena-
burguesia artesanal, manufatureira e comercial, a busca dessa
aliança é justa, pois, com efeito,. essa pequena-burguesia niio per-
tence ao "capital", isto é, às frações da burguesia: nesse sentido
o termo "pequeno capital" é inteiramente falso enquanto ·se refe-
rir a ela. Entretanto, o uso do termo "pequeno capital" assume·
aqui uma outra função: ao falarmos apenas de "grandes mono-
pólios" e de "pequeno capital", com a conseqüente escamoteação
do capital não-monopolista ou "capital médio", mostramos que
tudo que não pertencesse aos "grandes monopólios", única fração
dominante, faria automaticamente parte do "pequeno capital",
suscetível de aliança com a classe operária, e o médio capital
seria incluído no "pequeno capital", sendo assim assimilado à
pequena-burguesia. Nas poucas vezes em que esse Traité fala do
médio capital, situa-o do mesmo lado que o pequeno, na sua con-
tradição considerada comum ao "grande, capital 12".
Percebemos perfeitamente as implicações dessas análises
quanto à estratégia da "aliança antimonopolista", aliança esta
que se estende a todas as frações da burguesia, salvo aquela dos
"grandes monopólios", que se supõe ocupar, sozinha, o terreno
de d01ninação política. Percebemos também como se opera aqui
a junção, para o PCP, entre essas análises e aquelas que concer-
nem à "burguesia nacional-capital não-monopolista", já assina-
ladas;
b) Essas análises se conjugam com aquelas que se ref 1~rem
ao Estado do capitalismo monopolista de Estado. Dá-se ênfase (o
que é certo) ao papel decisivo de que se reveste no momento
o Estado. Mas o que está aqui em causa é a própria concepção
do "processo de produção", no seio do qual o Estado intervém.
Supõe-se que o processo de produção seja composto, de um lado,
por duas instâncias separadas, as forças produtivas e as relações
de produção e, do outro, baseado no primado das forças produ-
tivas 13 : o que tem como conseqüência necessária a concepção.

12 Traité . .. , t. 1, pp. 223 sq. etc. Igualmente Ph. Herzog, Politique-


économique et Planification, op. cit., pp. 66 sq.
113 "Na ação recíproca entre forças produtivas e relações de produ-
ção, as forças produtivas desempenham no final um papel determi!1a::i-
te ... ", Traité, op. cit., t. I. p. 183. As análises desse Traité falam, cer-
tamente, de uma unidade das relações de produção e das forças procluti-
112 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

de um "nível" de desenvolvimento das forças produtivas neutra


e autônoma. A intervenção do Estado é amplamente apreendida
como uma função técnica e neutra, indispensável como tal ao
'"desenvolvimento das forças produtivas". O Estado é assim con-
cebido, sob esse aspecto, como "fazendo parte da base'~ e como
"fator orgânico do processo de produção social" - ver as aná-
lises do Traité em questão sobre o Plano. Justamente, sempre é
questão da relação do Estado e dos interesses dos "grandes mo-
nopólios", mas tal relação é simplesmente apreendida como uma
distorção de funções econômicas, em si neutras, do Estado para
proveito dos grandes ·monopólios. As i~tervenções do Estado
apresentariam de algum modo, no momento, dois lados: -o bom,
correspondendo à famosa "socialização das forças produtivas",
toda "socialização" - qual? - só podendo ser, como tal, boa;
·O mau, correspondendo à apropriação privada dos meios de pro-
.dução. Os dois lados são aqui dissociáveis, pois correspondem a
.dois níveis considerados como distintos 14 •

vas. Mas só se trataria aí de uma simples fórmula verbal: com efeito,


essa unidade só pode ser baseada no processo de produção, processo que
é _precisamente a figura da dominação das relações ,de produção sobre as
forças produtivas. Em outras palavras, atribuindo o primado às força11
produtivas, é, ao mesmo tempo, e necessariamente, a própria unidade
das relações de produção e das forças produtivas que desaparece.
14 Ph. Herzog, op. cit., pp. 35 sq., pp. 45 sq. Essas posições remon-
tam ainda a outros erros teóricos. Convém e1:itão lembrar: a, que quase
não se pode apreender um espaço econômico em si possuindo limites in-
trínsecos e imutáveis através dos diversos modos de produção, mas oue
esses limites são variáveis segundo esses ~odos de produção e os pró-
prios estádios do modo de produção capitalista; b, que, ao contrário da
ilusão economista de uma "auto-reprodução" do econômico, o Estado ca-
pitalista sempre interveio no econômico; c, que a forma particular e de-
cisiva dessas intervenções atuais não impede a reprodução da "separa-
ção" relativa do Estado e do eco:1ômico no estádio e na fase atuais, com
a condição de precisar que não se trata de uma exterioridade real dÜS
dois. Em compensação, as tese3 relativas ao capitalismo rnonopol!sta de
Estado irnpl~,am: a, que o capitalismo só pode funcionar "normalmente",
de alguma forma, sem "intervenções" do Estado (auto-regulação <lo
econômico) como se admite oara o estádio competitivo: as intervenções
decisivas do Estado no rstrdio monopoFsta seric.m nada mais do que o
i.:i.dício de urna "crise estrutural" necess:'íria do capitalismo; b, que essas
intervenções suprimem a separação relativa do Estado capitalista e do
econômico (o Estado "fator orgânico da produção" e "parte da base").
·ora, essa<> posições são contraditórias, pois, baseadas em presc;upostos errô-
·neos. implicam, de um lado, que ::is intervencões atuais do Estado sejam
·o indício ele urna "crise estrutural" necessária do capitalismo, mas que,
de outro lado, o Estado tenha sucesso em dominar e em organizar-pla-
_nificar a reprodução capitalista: com efeito, considerando que essas in-
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 113

Nã.o seria necessário esconder as conseqüências políticas par-


ticularrnente graves dessa posição, ligada à concepção "econo-
mista-tecnicista" do processo de produção e das "forças produti-
vas". Ela implica, em suma, que a passagem para o socialismo
exigiria a conservação do Estado atual no seu ·lado bom e suas
intervenções econômicas neutras no "desenvolvimento do proces-
so de produção social", depurando simplesmente o seu lado rnau,
e excluindo a distorção dessas intervenções em proveito dos mo-
nopólios por uma simples mudança do poder do Estado. A tese
leninista da necessidade de quebrar o aparelho de Estado capita-
lista está balanceada por cima e vivamente atribuída aos "desvios
esquerdistas". E, como se sabe, a experiência do Chile mais uma
vez dernonstrou, recentemente, que não se trata de questões de
escola;
c) Enfim, e por menos paradoxal que isso pareça à primei-
ra vista, o Estado é paralelamente concebido como uma simples
ferramenta ou instrumento, manipulável à vontade pela única
fração dos grªp.des monopólios, fração considerada como "inte-
grada" e à qual se imputa uma "unidade de vontade". Encon-
tra-se aí a tese da conferência dos 81 partidos, mal aceita em
sua forma exagerada pelo próprio PCF, da "fusão do Estado e dos
monopólios em um mecanismo único 15 ". Na medida em que,
atualmente, não se poderia falar de um bloco no ooder, mas de
uma única fração dominante, os grandes monopólios, considera-
dos como uma entidade metafísica e abstratamente unificada pela
~'fusão" das frações do capital, nenhuma autonomia relativa é
reconhecida ao aparelho de Estado como unificador político,, ao
mesmo tempo da fração monopolista e do conjunto do bloco no
poder. Vê-se claramente aqui o duplo aspecto das incidências
políticas da concepção instrumentalista do Estado necessarian1en-
te ligad3: a uma concepção idealista/economista: uma ferramenta
ou instrumento possui ao mesmo tempo uma utilidade técnica e

tervenções suprimem a separação relativa do Estado e do econom:co, não


se podem apreender os limites dessas intervenções, as formulações dos
autores do capitalismo monopolista de Estado aproximando-se muito, como
veremos,. daquelas dos defensores do "capitalismo org1n:zado" (para cer-
tos aspectos dessas questões, ver igualmente M. Wirth, "Zur Kritik der
Theorie des staatsmonopolistischen Kapitalismus", em Probleme des Klas-
.senkampfs, n. 0 3, 1973).
rn Artigo de Fr. L:tzard, no colóquio de Choisy-le-Roy, reprodu-
zido por Economie et Politique, números especiais 143-144 e 145-146, 1966,
sobre "Le Capitalisme monopoliste d'Etat".
114 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

neutra, e pode ser, como tal, manipulado à vontade por seu


detentor.
Ora, essa tese não somente conduz a análises contestáveis
sobre o aparelho de Estado atual, mas implica igualmente que,
uma vez expulso do poder o punhado de "usurpadoresn que são
os grandes monopólios, esse Estado poderia, quando utilizado de
outro modo, servir da mesma. forma aos interesses do socialismo.

IV

Percebe-se bem, em face: dessas interpretações, que a ques-


tão decisiva concerne atualmente- à análise das relações de classe
no próprio seio das burguesias no estádio do capitalismo mono-
polista, e mais particularmente na sua fase atual. Quais são as
formas atuais das contradições e dos fracionamentos no seio des-
sas burguesias? É dessa questão que depende diretamente· a aná-
lise da autonomia relativa atual dos Estados capitalistas.
Essa questão remonta diretamente ao problema da constitui-
ção, no estádio do capitalismo monopolista, do capital financeiro,
produto do processo de "fusão" entre capital industrial e capital
bancário principalmente, fusão a que se subordina o capital co-
mercial, e que faz nascer os 1nonopólios. Essa questão apresenta
de fato vários aspectos:
1) Esta "fusão" do capital industrial e do capital bancário
constitui uma unificação efetiva dessas frações, ou reproduz, sob
outra forma, suas contradições, fazendo-as parecer novas? Qual
é o estatuto exato do conceito de capital financeiro e de· capital
monopolista?
2) Qual é o estatuto e a dimensão da diferenciação entre
capital monopolista e capital não-monopolista, que são freqüen-
temente, de um modo mais descritivo, designados como grande
capital, de um lado, médio e pequeno capital, do outro? Quais
são as relações desses capitais entre si?
São essas perguntas que analisarei nas páginas seguintes, ten-
tando delimitá-las em seu lugar próprio, e ordenar uma série de
problemas teóricos de que depende a resposta a essas perguntas.
Mas faço uma observação prévia, que deve ser levada em consi-
deração nas análises que se· seguem: as formas de contradições
no seio das classes e frações dominantes dependem, de fato, sem-
A POSIÇÃO ATUAL DO PROBLEMA 115

pre das formas da contradição principal, a saber, aquela que se-


para a burguesia, no seu conjunto, da classe operária.
Issp se refere, primeiramente, às próprias formas constituti-
vas do processo de concentração e de centralização do capital.
Os traços essenciais desse processo, e suas próprias causas eficien-
tes, tais como a baixa tendencial da taxa de lucro, só são a ex-
pressão direta da luta da classe operária e das massas populares)
isto é, da luta das classes. A baixa tendencial da taxa de lucro
é a figura da resistência (da luta) da classe operária contra a ex-
ploração. Do _ponto de vista histórico, o processo de concentra-
ção, "resposta" a essa baixa, é "provocado" e precipitado pelas
lutas populares, sobre o plano ao mesmo tempo nacional e mun-
dial. Em outras palavras, o conjunto das transformações das bur-
guesias, as transformações das relações de produção e da explo-
ração do trabalho, só são, em definitivo, respostas da burguesia
à luta da classe operária e das massas populares. A reprodução
ampliada do capital não é outra coisa senão a luta das classes,
com as contradições no seio das Classes e frações dominantes sendo
somente os efeitos, no campo do bloco no poder, da contradição
principal.
Isso se refere, pois, igualmente, às formas precisas do pro-
cesso histórico no seio de cada formação social concreta. A mar-
cha e o ritmo desse processo, as formas precisas. dessas contra-
dições secundárias, a configuração concreta do bloco no poder
e a hegemonia· desta ou daquela fração sobre as outras, depen-
dem, em definitivo, das formas da .contradição principal nessas
formações rn.

:w Trata-se sempre aqui de um processo dialético. Esses fraciona-


mentos no seio da burguesia, efeitos da contradição principal, podem ter
por sua vez efeitos de fracionamento no seio da classe operária: ver,
por exemplo, as difere..,ciações, importantes principalmente na França,
na classe operária, conforme ela dependa do. capital monopolista (con-
centrado) ou do capital não-monopolista. Sobre tal assunto, M. Castells e
Fr. Godard, Grandes Entreprises, appareils d'Etat et processus d'urbani-
.~tion-, 1974.
II. AS CONTRADl!ÇõES ATUAIS DA~
BURGUESIA

1. O Capital Monopolista

Inicialmente, tratarei da primeira dessas questões, que pro-


põe diretamente o problema das relações e das contradiç:ões no
próprio seio do capital financeiro ou capital monopolista.

Para enunciar de imediato as teses que se tratará de demons-


trar: o que é designado como "fusão" do capital industrial e do
capital bancário não deve oferecer a imagem de um conjunto
estreitamente integrado e isento doravante de contradições e de
fracionamento; aquela e estes se reprodu,.zem de fato, sob uma
nova forma, no próprio seio do capital monopolista. De mm lado,
o capital financeiro não é uma fração do capital da mesma or-
dem que o capital industrial e bancário: é a figura de suas rela-
ções no próprio seio do processo de sua reunião, na sua repro-
duçiio. O que implica, por outro lado, que o capital financeiro
não é, como deixa acreditar uma confusão de terminologia, o
capiital bancário: a fusão do capital industrial e do capital ban-
cário em capital financeiro não designa, em si, uma absorção
das indústrias pelos bancos e uma dominação do setor bancário 1 •

1 Um dos primeiros a assinalar esses problemas, em estudm notá-


veis sobre a história do capitalismo na França, foi, como se sabe, J.
Bouvier; ver então seu artigo: "Rapports entre systemes bancaires et
entreprises industrielles dans la croissance européenne au XJXe ~>iecle",
em Studi Storici, outubro-dezembro de 1970, e sobretudo Un siecle de
banque française, 1973, pp. 116 sq_.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA llT

Digamos, por enquanto, que o processo designado pelo termo


"fusão" implica e reproduz, sob forma específica, a 'distinção
entre capital produtivo e capital-dinheiro, estabelecida por Marx_
no Capita/,, como forma de reprodução ampliada inerente ao ca-
pital social no capitalismo. É um aspecto sobre o qual Lênin, _
falando de "fusão", e em razão precisamente do papel determi-
nante que ele atribui, seguindo nisso Marx, ao capital produtivo,
insiste no lmperialisme, stade suprême du capitalisme 2 ; chega a
dizer: "É próprio do capitalismo, em regra geral, estabelecer uma
separação entre a propriedade do capital e sua aplicação na in- ·
dústria, entre o capital-dinheiro e o capital industrial e produ-
tivo, entre o capitalista que vive exclusivamente da renda que
tira do capital-dinheiro e o indw.strial, assim como todos aqueles
que participam diretamente da gestão dos capitais. O imperialis~-­
mo, ·ou a dominação do capital financeiro, é esse grau supremo
do capitalismo quando essa separação atinge proporções formi-
dáveis."

• De fato, o termo·"fusão" designa um processo desdobrado,


que apresenta dois aspectos, unidos, mas relativamente distintos:
a) O processo de concentração do capital produtivo-indus-
trial, de um lado, o processo de centralização do capital-dinheiro
- do capital Q_ancário - de outro;
b) As formas de interpenetração e de relações entre esses•
dois aspectos.
As "fusões" no seio do capital produtivo - concentração -
ê no seiõ do capital-dinheiro - centralização -, na constituição
do capital monopolista, já são processos "de •fusão" no sentido
em que a centralização já intervém na concentração, e a concen-
tração na centralização. Mas trata-se aqui do ciclo contraditório·
de reprodução conjunta do capital social, no qual se encontram
diferenciações entre o capital produtivo e o capital-dinheiro.
Pode-se falar assim, com todo o rigor, de um ciclo de reprodu-
ção dominante da concentração do capital produtivo, e de um·
ciclo de reprodução dominante da centralização do capital-dinhei-
ro. Observação importante, pois essa diferenciação será encon-
trada sob forma de contradições entre capital monopolista domi-
nante industrial e capital monopolista dominante bancário, o que
designarei, com o fim de simplificar, pelos termos de monop6--

:2 muvres choisies, ed. de Moscou, t. 1, p. 847.


118 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Jios industriais e monopólios bancários. Enfim, o papel determi-


nante nesse processo de fusão retorna à concentração do capital
industrial-produtivo: ocorre que: a reprodução conjunta do capi-
tal está determinada pelo ciclo do capital produtivo. Mas isso
não significa, contudo, e muito menos no caso do capitalismo
competitivo, que esse processo de fusão não possa ser feito sob
a égide econômica e sob a hegemonia poHtica seja do capital
.bancário, seja do próprio capital industrial.

II

A concentração do capital industrial refere-se ao capital pro-


dutivo propriamente dito, o único que produz o valor: ele cons-
titui a base real de acumulação capitalista e de extração da mais-
valia 3 • Esse capital monopolista resulta principalmente da con-
centração do capital industrial, principalmente da reunião de
·várias unidades de produção e' capitais produtivos, referentes a
:um ou vários ramos da produc;ão social, ~ob propriedade econôa
mica única. Ê verdade que o capital que constitui esses mono-
pólios já é, pela via indireta das sociedad~s por ações, um capital
misto onde intervém a ~entralização do capital-dinheiro reagru-
·pado para funcionar como capiltal produtivo único. Mas o aspecto
principal quanto à reprodução do capital produtivo cab_e à con-
centração do capital: a saber, ao traçado que as novas formas das
relações de produção imprimem aos processos de trabalho e à
divisão social do trabalho.
Isso propõe diretamente a famosa questão dos "critérios"
dessa concentração, ou da medida do "grau" dessa concentração:
·questao que· nos interessa em primeiro lugar, pois ela encobre
·parcialmente aquela da posiçã.o dos limites·1 entre capital mono-
polista e capital não-monopolista, e àquela de suas contradições.
'Essa questão não pode ser resolvida por uma simples acumula-
ção de critérios técnicos e isolados: ela só pode ser resolvida so-
-bre o plano das relações de produção na sua relação com o pro-
.cesso de trabalho. Esses div1ersos "critérios" aparecem de fato

a Sobre certos aspectos das questões que examino a seguir, em re-


lação às críticas que formulo em outros lugares, Ph. Herzog, Politique
écanomique et planification, op. cit.; J.-P. Deli!e?, Les Monopoles; P.
·salama e J. Valier, Une introduction à l'économie politique, 1973; Chr.
Palloix, L'Economie mondiale capitaliste, 1911 e Firmes multinationales
.et proces d'internationalisation, op. cit.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 119

como tantos indícios e efeitos das transformações atuais das


relações de produção.
Eis por que essas transf or.mações correspondem diretamente
à baixa tendencial da taxa média de lucro, .característicà do ca-
pitalismo monopolista, e à sua contratendência principal, a alta
da taxa de exploração. O capital monopolista é de fato caracte-
rizado pela alta da composição orgânica do capital. A propor-
ção, na composição orgânica do capital, do capital constante
(capital fixo: equipamentos, e capital constante em rotação) em
relação ao capital variável (custos salariais) é sensivelmente mais
elevada para o capital monopolista, o que indica uma diminuição
relativa do trabalho vivo em relação ao trabalho passado - ou
morto. Mas a alta da composição orgânica do capital é inversa-
mente proporcional à taxa de lucro. Isso implica a necessidade,
para o capital monopolista, de um lado de aumentar a taxa de
exploração atr~vés principalmente da via indireta do nível dos
salários, mas da exploração intensiva do trabalho, inclui_ndo o
aumento da produtividade do trabalho, e de outro lado a neces-
sidade de valorizar o capital, tirando toda vantagem da desigual-
dade das taxas de lucro entre· ramos e setores da produção social.
~ ~ ~sso que corresp~ndem essencialmente as tra~s~~rmaçõ~s nasl
relaçoes de produçao e as novas formas de d1v1sao social do
.trabalho. j

Retornemos à questão dos indícios da concentr.ªç~o- do capi-


tal e do capital monopolista, começando pelo mais visível, o ta-
manho da empresa, expresso na "empresa gigante" ou "grande
firma industrial". Essa concentração pode assumir várias formas.
Na forma de concen.traçaQ .. xe.rtical, ela abrange a reunião, sob
controle unificado, das diversas fases da produção material, e a
extensão da unidade de produção por baixo e por cima dos di-
versos processos de trabalho que depende·m até aqui de unidades
de produção separadas. Essa extensão refere-se, mais amiúde,
igualmente ao ciclo da circulação do capital, o que implica a
subordinação do capital comercial ao capital industrial: os mo-
.nopólios industriais, visando ao controle monopolístico do mer-
cado, possuem suas próprias redes de comercialização. Enfim,
essa extensão refere-se a domínios reservados até aqui ao con-
junto de produção, e que dependiam de um controle econômico
distinto, principalmente os recursos naturais e as matérias-primas,
e da pesquisa. Mas a concentração industrial apresenta-se também
com forma P.91.ÍZ.olltal quando se refere à extensão de uma
120 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

unidade de produção aos diversos processos de trabalho de uma


mesma fase produtiva.
Esses traços já remontam à articulação das relações de pro-·
dução - propriedade econômica e posse - e dos processos de
trabalho em seus efeitos sobre as fronteiras das unidades de pro-
dução. Eles não podem ser diretamente apreendidos por critérios
empíricos quantificáveis, que só assumem um papel bastante re-
lativo de indícios. Ê sobretudo o caso do critério do porte da
empresa avaliado segundo o número dos trabalhadores emprega-
dos., critério que enfatiza as distinções estatísticas entre "grandes",.
"médias" e "pequenas" empresas. Com efe-ito, esse critério deixa
de lado a questão da produtividade do trabalho, correlato à alta da
composição orgânica do capital, segundo os diversos ramos da pro-
dução: uma empresa petroquímica e uma empresa têxtil que empre-
guem o mesmo número de operários podem depender uma do
capital monopolista, outra do capital não-monopolista. Tanto mais.
que o capital monopolista é caracterizado tendencialmente por
un1a diminuição proporcional do trabalho vivo em relação ao
trabalho morto.

Mas não podemos mais basear-nos principalmente sobre uma


medida do grau de concentração segundo os ramos da produção
social, isto é, referir-nos à parte ·proporcional que cabe a certas
firmas na produção por ramos. Dada a socialização dos processos
de trabalho, de um lado, e, de outro, as ne.ce-ssidades para o capi-
tal monopolista de tirar vantagem das taxas desiguais de lucro
por ramos, o capital monopolista se estende mais freqüentemente
sobre- vários ramos: a Pechiney, por exemplo, que produz ao mes-
mo tempo ·-alüriííiiio e produtos químicos. Limitando-nos a uma
visão por ramos, somos forçosamente levados a subestimar o grau
de concentração e a perder as fronteiras entre capital monopo-
lista e capital não-monopolista. Mesma observação no que se· re-·
fere à medida da concentração segundo a parte que pertence às
firmas nos diversos produtos: uma das características da grande
firma industrial sendo precisamente a diversificação constante
dos produtos acabados que ela propõe ao mercado. Podemos ir
ainda mais longe: o critério concernente à percentagem na produ..
ção global de uma economia nacional detido por uma ou certas
firmas é igualmente um indício muito aproximativo. pois não
somente, desta vez, ele omite inteiramente a diferenciação por
ramos, mas ainda negligencia o processo de internacionalização
do capital; aquele da percentagem dos ativos detidos por firmas.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 121

confunde, freqüentemente, propriedade jurídica e propriedade


econômica.
Qual é então, agora, o critério proveniente da posição do
capital monopolista em relação ao mercado? A teoria marxista do
capitalismo monopolista não se situa sobre o terreno das relações
dos capitais sobre o mercado: as coordenadas do mercado e da
circulação do capital são somente um efeito da reproduç~io am-
pliada do capital, baseada no ciclo da produção. A existência de
monopólios que detêm um lugar dominante no mercado não eli-
mina a concorrência comercial, e só faz reproduzi-la en1 uma
escala diferente. As objeções à teoria do capitalismo monopolista
que se colocam do ponto de vista do mercado:, e que sustentam
que não se trata, de fato, de rnonopólios mas de '~oligopólios",
que não se trata de uma abolição da concorrência mas de uma
"concorrência imperfeita", situain-se ao mesmo tempo sobre um
terreno diferente da teoria marxista e lhe atribue.m análises que
lhe são estranhas. Compreende-se assim que o lugar de uma firma
no mercado é apenas um simples indício da concentração do capi-
tal, indício que deve ser manuseado com muitas precauções.
Enfim: a capacidade de realizar sobrelucros que é aquela do
capital monopolista em razão, entre outras, de seu lugar domi-
nante no mercado, e· a necessidade de investimentos seletivos nos
ramos e domínios mais rentáveis, se. refletem na utilização do
lucro. O capital monopolista apresenta possibilidades, realn1ente
dignas de nota, de acumulação e de· reprodução ampliada pela
auto-união do resultado, isto é, pelo autofinanciamento. A taxa de
autofinanciamento é, de fato, corrielativa ao grau de concentração.
Ainda que, igualmente sobre esse plano, os limites. entre· capi-
tal monopolista e capital não-monopolista permaneçam relativos,
dada a intervenção, na concentração do capital produtivo= do 1

capital-dinheiro ou bancário.

III

Antes de chegarmos à anális(~ das relações de produção, é


necessário nos atermos ao papel que cabe, na reprodução do ca-
pital social, à centralização do capital-dJr1b-_f!l.rQ. Tal centraHzação
só pode ser apreendida na sua rerãÇão com a concentração do
capital produtivo, que continua sendo o momento determinante
do processo de reprodução. As possibilidades de autofinanciamen-
to, isto é, a acumulação e a rentabilização dos resultados obtidos
122 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

::!iretamente na produção, apresentam limites em razão das desi-


gualdades entre os fluxos de lucro e a extensão do capital pro-
dutivo 4 : o fluxo de lucro pode revelar-se insuficiente para o lan-
çamento de novos negócios; em outros casos, o fluxo de lucro
permite· a constituição de "reservas" que devem, entretanto, con-
centrar o lucro até que sirvam à extensão da empresa; de qual-
quer forma, mesmo que a constituição, pela concentração, de
complexas unidades de produção transforme o próprio sentido de
trocas entre as unidades de produção que· as compõem, desde que
elas não constituam mais trocas "externas" entre unidades sob
controle separado, mas "internas" no seio da unidade complexa,
as trocas continuam a existir, apresentando irregularidades liga-
das aos desníveis do investimento; finalmente, as desigualdades en-
tre ramos e setores, na tendência à perequação das taxas de lucro,
exigem transferências rápidas dos capitais de um ramo ou setor
a outros, a fim de maximizar o lucro.
É aqui precisamente que intervém o papel do crédito, isto é,
do capital-dinheiro ou bancário, como intermediário de financia-
mento: a centralização do capital-dinheiro, que dá lugar ao capi-
tal-monopolista bancário - aos "grandes bancos" -, está direta-
mente ligada à concentração do capital produtivo. Mas, no pro-
cesso histórico concreto e segundo as formas da contradição prin-
cipal, essa centralização. pode, em seu ritmo, preceder, acompa-
nhar ou seguir a concentração, segundo a égide sob a qual se
efetua - capital industrial, capital bancário - nos diversos países,
a constituição do capital monopolista. Podem-se, segundo as for-
mações concretas e suas etapas, constatar andamentos e graus
diferentes da concentração industrial e da centralização bancá-
ria, a saber, avanços ou atrasos de uma em relação à outra; na
França, principahnente, a centralização bancária tem em geral pre-
cedido, em cada etapa, a concentração industrial. Enfim,- na cons-
tituição do capital monopolista bancário, intervêm, além do apelo
à poupança pública por exemplo, os lucros diretamente reaHzados
pelo capital produtivo.

Já se pode ver, então, que o capital financeiro, que é o modo


de funcionamento, na reprodução do capital social, da reunião
ou "fusão" entre capital industrial e capital-dinheiro, realiza-se
scb uma primeira forma: sob a forma de intervenção da centra-

4 Por exemp!o, a taxa de autofinanciamento dos investimentos in-


dustriais na Fra:1ça situa-se entre 65 e 70o/o; nos Estados Un'.dos, depois
de lim crescimento espetacular, caiu, entre 1965 e 1970, a 75%.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 123

iização do capital-dinheiro na constituição. dos monopólios ind_us-


triais e sob a forma de intervenção da concentração do capital
prod~tivo na constituição dos mor:opólios bancá,ri?s. Esse pro~es~o
de fusão não pára, no entanto, a1: estende-se a 1nterdependencia
crescente do capital monopolista industrial e do capital monopo-
lista bancário, o que dá lugar à emergência daquilo que se desig-
na em geral pelo termo de "grandes impérios financeiros". _Estes
apresentam um momento superior de fusão entre grandes firmas
industriais e grandes bancos. Essa etapa de fusão, que representa
a reunião, sob propriedade econômica e controle únicos, das gran-
des firmas industriais e dos grandes bancos, pode apresentar-se
sob a forma de uma dominante seja do capitai industrial, que cria
ou controla seus próprios bancos, seja do capital bancário, que
cria ou controla suas próprias firmas industriais. Aqui também,
esse momento de fusão pode, segundo os países, preceder, acom-
panhar ou seguir o ritmo próprio à concentração e à centralização.
Em outras palavras, o processo de fusão designado pelo capital fi-
nanceiro abrange ao mesmo tempo as relações dos elementos que
entram em combinação, e, por tal fato, esses _próprios ele.mentos:
mas não implica contudo numa extinção pura e simples desses
elementos pela sua "integração" em uma "entidade" - o capital
financeiro - metafísica. Essas observações são muito importantes
para apreender as contradições que atravessam, em todo rr:oment~
de sua reprodução, o capital monopolista, ·e, em suma, para reve-
lar as fissuras desse processo de fusão.
Mas, ao mesmo tempo, a) a constituição do capital monopo-
lista industrial (concentração) e a constituição do capital mono-
polista bancário; b) os modos e as formas de sua interdependên-
cia; e) as relações entre capital monopolista e capital não-mono-
polista, em suma, as relações e contradições atuais no seio da bur-
guesia, só podem ser compreendidas através do exame da ação
das relações de produção sobre os processos de trabalho.
Esse exame das relações de produção, e de suas transforma-
ções atuais, é o aspecto principal do problema, dado o primado
das relações de produção sobre as forças produtivas: é mesmo, e
muito exatamente, a ação dessas relações transformadas nos pro-
cessos de trabalho oue tem como efeito as formas atuais de so-
cialização capitalista- das forÇãs prÔdutivas. 5 Ê aqui que vou m;

. 5 Esta famosa socialização das forças produtivas, verdadeira fórmula


mágica que ocupa um lugar de explicacão nas numerosas análises mar-
xistas atuais, não é, de fato, uma tendência ima:1ente aos processo~ de tra-
balho como tais: exprime o processo que lhes imprimem as relações de pro-
124 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

deter agora, insistindo, primeiramente, sobre o impacto das trans-


formações atuais das relações de produção no próprio seio do
capital monopolista.

2. As Fases do Capitalismo Monopolista e as Modificações das


Relações de Produção

Se a reprodução ampliada do capitalismo produz transforma-


ções desse modo apreendidas enquanto estádio~ e fases, existe um
núcleo -invariante das relações de produção que ô caracterizam,
e que -faz--com~-que essas transformações sejam somente as "for-
mas transformadas" de um modo de produção que permanece ca-
pitalista. As relações de produção capitalistas são caracterizadas
pelo fato de que, ao mesmo tempo, a relação de propriedade eco-
nômica (poder de afetação dos meios de produção e de alocaÇão
de recursos e lucros para esta ou aquela utilização) e a relação
de posse (direção e domínio relativo de um processo de tra-
balho determinado) pertencem ao lugar do capital: os produtores
diretos (o proletariado) são aqui "despojados" de tudo, salvo de
sua força de trabalho, que também se torna uma mercadoria, o
que dá lugar à extração específica do sobretrabalho sob forma de
mais-valia.

1. Isso coloca um primeiro proble·ma: os estádios compe-


titivo e monopolista, situados na reprodução "ampliada" do ca-
pitalismo, se distinguem do que Marx designa como o período
da manufatura ou da forma comercial simples: eis por que duran-
te o período manufatureiro (submissão formal do trabalho ao ca-
pital), os trabalhadores diretos não estavam ainda despojados de
seus meios de produção, enquanto a propriedade destes já perten-
cia ao capital.
Assim, a relação entre esses dois estádios do capitalismo, com-
petitivo e monopolista, não é absolutamente a mesma relacão que
~existe entre estes de um lado, e o período manufatureiro de outro:
e isso ao contrário, desta vez, das análises dos pesqu;s:'.ldores do
PCP que, baseados principalmente na "socialização" das forças

~ucã?. Isso quer dizer, então, que não há, propriamente, uma "socia-
hzaçao" neutra dos processos de trabalho: sob o capitalismo_ só se pode
tratar de uma socialização capitalista dos processos de trabalho.
As CoNTRADIÇOES ATUAIS DA BURGUESIA 125

produtivas, aprendem a periodização do capitalismo em três "es-


tádios": o período manufatureiro, o capitalismo competitivo e o
capitalismo monopolista 6 • Com efeito, não existem entre o capita-
lismo competitivo e o capitalismo monopolista modificações do
processo de trabalho comparáveis àquelas que distinguem a ma-
nufatura da: reprodução ampliada do capitalismo, a despeito de
toda a verborréia sobre a "revolução científica e técnica". A so-
cialização do processo de trabalho só se faz sob a dom=nação de
relações de produção determinadas que apresentam, para esses
dois estádios do capitalismo, um núcleo invariante. De fato, o
período manufatureiro constitui a transição no sentido estrito. en-
tre o feudalismo e o capitalismo, referindo-se os dois estádios em
questão à reprodução ampliada do capitalismo.
2 . Não é menos verdade que os estádios, e· por vezes as
próprias fases de cada estádio do capitalismo relacionadas ao
processo de dominação das relações capitalistas ou de uma de
suas formas, sobre as outras relações de· produção, ou formas de
relações capitalistas, em uma formação social e no· plano interna-
cional, sejam marcados por f armas diferenciais. das relações capi-
taUstas de produção dominantes. Mais exatamente, em que sen-
tido?
As modificações referem-se aqui às formas de apropriação
da mais-valia: elas não trocam a expropriação e o despojamento
dos trabalhadores diretos de seus meios de produção, isto é, o
lugar dos trabalhadores nas relações de produção. Essas formas
diferenciais ("formas transformadas") referem-se às formas de
articulação precisas das relações de propriedade· econômica e de
posse no próprio seio do lugar do capital: elas têm efeitos muito
importantes sobre a socialização dos processos de trabalho e o
traçado que elas lhe imprimem, mas não modificam sua estrutura.
3. Essas transformações correspondem essencialmente à
alta da taxa de exploração (exploração intensiva do trabalho,
mais-valia relativa) a fim de contrariar a baixa tendencial da taxa
média de lucro. Essencialmente, no sentido em que essa explora-
ção remonta diretamente à contradição principal (burguesia-classe
operária): é por essa razão que me concentro nessa questão. Mas

6 J.-P. Delilez, Les Monopoles ... , op. cit., pp. 117 sq.; Ph. Herzog,
Politique économique .. ., op. cit., pp. 49 sq.; P. Boccara, Etudes sur le
capitalisme monopoliste d'Etat ... , 1973, pp. 21 sq.
126 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

é evidente que as transformações das relações de produção re-


montam de fato a uma rede muito complexa de fatores. u·m único
exemplo, que assume atualmente uma importância particular, será
suficiente: essas transformações visam principalmente permitir ao
capital monopolista contrariar a tendência à baixa tendencial da
e
taxa de lucro, na relação - não somente aumentando a taxa
V
de exploração, mas também desvalorizando uma parte do capital
constante (e). O que precisamente pode ser feito, nas relações
dos capitais entre si, pela via indireta das transformaçõe~ das
relações de produção que constataremos: transformações que vi-
sam então, igualmente, permitir ao capital, e a seus diversos
componentes, o funcionamento nas novas condições de e:stabele-
• monopolista, da taxa média de lucro.
cimento, sob o capitalismo
Mas essa rede complexa de fatores e as transformações que lhe
correspondem referem-s.e, em última análise, à contradiçã.o capi-
tal/trabalho, isto é, à exploração.

Essas transformações da articulação da propriedade econô-


mica e da posse no seio do lugar do capital:
a) exprimem-se pelas relações concretas entre os diversos
poderes que elas comportam;
b) dão lugar a graus diferentes de propriedade econômica
e de posse das diversas frações do capital, segundo os estádios e
fases: do capitalismo.
Essas transformações repercutem então diretamente:
a) em transformações da propriedade jurídica;
1b) em modificações dos limites das unidades de produção. (as
"empre,.:..sas");
e) em diferenciações entre os agentes que, ocupando o lugar
do capital ou diretamente dependente dele, exercem a pluralidade
dos poderes das relações que circunscreve·m esse lugar.

II

As transformações atuais podem ser melhor apreendidas se


nos n~ferimos à figura típica dessas relações no e·stádio do '"capi-
talism~o competitivo". Esse estádio é caracterizado por um enco-
brimento dos limites das relações entre propriedade ecoriômicá
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 12T

e posse: o capitalista individual detinha ao mesmo tempo essa


propriedade e o domínio e direção do processo de trabalho que
se desenvolvia em uma unidade de produção determinada. Tal
encobrimento, que corresponde a um grau de socialização capi-
talista de processos de trabalho separados entre si, dava lugar à
imagem clássica da unidade de produção como "empresa indivi-
dual". Tal encobrimento estendia-se, aliás, à propriedade jurídi-
ca "individual", detida pelo capitalista privado. O próprio exercí-
cio da pluralidade dos poderes da propriedade econômica e da
posse estava concentrado nas mãos do empresario individual e de-
seus agentes diretos.

Em compensação, uma das modificações mais evidentes, ~o~


longo do estádio do capitalismo monopolista, consiste na dis@-:-
ciação _re.lq#yg_ entre propriedade econômica e propriedade-Jurí- ·
dica, introduzida.pela- sociedade__pºr q,ções.
A sociedade por àções,--.:.Jorma de propriedade· jurídica que-
corresponde à concentração e à centralização do capital, é um
dos meios indiretos importantes pelos quais esse processo se rea--
liza. De um lado, no próprio seio da concentração do capital pro--
dutivo - fusão e absorção das firm~s industriais - e da cen--
tralização do capital-dinheiro; de outro lado, na interdependência
crescente entre esses dois movin1entos, isto é, entre monopólios·
industriais e monopólios bancários. Os monopólios industriais,.
criando freqüentemente seu próprio complexo de bancos depen--
dentes e de sociedades de empregos financeiros (holdings), faze.m
parte do capital dos grupos bancários: eles detêm de fato cartei-
ras de ações pelo sistema de participação característica das socie-
dades por ações. Inversamente, os próprios monopólios bancários,
por esse mesmo sistema de participação, fazem com freqüência.
diretamente parte do capital dos m.onopólios industriais. Em suma,
a sociedade por ações implica, como forma de propriedade ju-
rídica, uma socialização - "privada" - desta última nos limites
da classe capitalista.
Trata-se, pois, de uma dissociação relativa entre proprieda-
de econômica e propriedade jurídica: toda ação ou participação
detida por um acionista não corresponde de fato a uma parte
~quivalente ou proporcional de propriedade econômica e de con-
trole real. Essa propriedade· é detida na totalidade por alguns
grandes acionistas, não forçosamente majoritários, que, através
de vários meios indiretos, suficientemente estudados, concentram:
os poderes que daí decorrem.
128 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

Mas isso, que mostra a inutilidade de toda uma série de ve-


lhos mitos do "capitalismo social" (mais próximo de nós, a "par-
ticipação" pelo "sistema acionário") só se refere a um aspecto
da dissociação relativa entre propriedade econômica e proprie-
dade jurídica. Os efeitos mais longínquos só podem ser apreen-
didos por uma modificação tocante à própria propriedade eco-
nômica no estádio do capitalismo monopolista, o qual apenas men-
cionarei no momento: o surgimento da figura do empresário in-
dividual, a saber, a concentração ligada à socialização dos pro-
cessos de trabalho, corresponde a uma dissociação dos diversos
poderes pertencentes à propriedade econômica. No lugar das pro-
priedades econômicas integrais e separadas, assiste-se ao surgi-
' mento dos diversos graus de propriedade econômica, e dos pode-
res correspondentes a esses graus, segundo os diversos momentos
de concentração e as diversas frações do capital. Essa tendência
se realiza pela -dissociação entre propriedade jurídica e QIQJ?_rie-
dade econômica. -- - - ----- - -
Tal dissociação entre essas duas propriedades, articulada na
dissociação entre poderes e graus da propriedade econômica, tem
efeitos que nos interessam aqui diretamente:
a) que os processos de concentração e de centralização, e
sua interdependência, se realizam sob formas fre·qüentemente dis-
farçadas pela propriedade jurídica;
b) que, além disso, essa propriedade jurídica disfarça, de
um modo todo particular, as contradições reais que, sob uma fa-
chada unificada, atravessam o capital monopolista.
Em suma, levar e·m conta essas dissociações é proporcionar-
se o meio de exame das contradições no seio da burguesia no
estádio capitalista monopolista. · ---···-

Isso se refere primeiramente ao próprio processo de· fusã.9_


dos ciclos do capital produtivo e do capital-dinheiro. Esse pro-
cesso pod·e de fato realizar-se, em diversos graus, sob a forma
de uma autonomia jurídica das empresas referidas: a tomada do
controle jurídico de uma firma por outra, a "absorção" jurídica,
é tão-somente uma das formas ou resultados possíveis desse pro-
cesso. Encontra-se aqui, freqüentemente, toda uma gama de mo-
dalidades que tomam o sentido de uma concentração da proprie-
dade econômica, enquanto as Jirmas__ eijl_questão_-_conS'erv-am s·üa
autonomia jurídica.distinta~ a participação minoritárfa·,-ã---Ueteh-
ção de uma parte minoritária das ações de uma firma por outra,
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 129

mas que possa ser suficiente para atribuir a uma dessas firmas
0 controle econômico real, no todo ou em parte, da outra (con-
trole minoritário) é apenas uma dessas modalidades. Por vezes
essa tomada de participação não é mesmo necessária: uma gran-
de empresa industrial pode, indiretamente, por intermédio das
múltiplas subcontratações, apoderar-se· de uma unidade de pro-
dução separada, seja apropriando-se de alguns dos poderes decor-
rentes da propriedade econômica, caso em que esta última vê
retroceder o grau de sua propriedad~ econômica em proveito da
primeira, seja apropriando-se da totalidade desses poderes, caso
em que se trata de uma real expropriação de fato: e tudo isso
sob a cobertura não somente de proprie.dades jurídicas autôno-
mas, mas também de propriedades jurídicas inteiramente sepa-
radas e distintas.
Esses efeitos se manifestam ig!!_alm~me nas formas de inter-
dependência e de contradições entre a concentração do ~apijal
produtivo e a centraliz_aç~Q. çlg __çÊpitaI-dlüfieirO.-A--fim-· de se
apropriar, no todo ou em parte, dã--propneaade econômica de
uma firma industrial, e dos, ou de alguns dos, poderes decorren-
tes, não é necessário a um grupo bancário deter a maior parte
do capital social dessa firma - propriedade jurídica -. nem
mesmo participar dessa propriedade. É suficiente, com freqüência,
que o grupo bancário atue sobre a seletividade no financiamento
e sobre a diferenciação nas condições de crédito para que, em
circunstâncias determinadas de fluxo do lucro, esse grupo impo-
nha seu controle real sobre a destinação dos meios de produção
e alocação dos recursos dessa empresa. Isso se refere tanto às gran-
des firmas monopolistas, tendo em vista seus limites de autofi-
nanciamento e a necessidade para elas de uma rotação rápida do
capital, quanto ao capital industrial não-monopolista. Enfim, é
inútil insistir sobre as dive·rsas formas de "acordos" ou "alianças"
dos monopólios industriais entre si. dos monopólios bancários en-
tre si, ou entre esses dois conjuntos, formas que, sob um disfarce
de propriedade jurídica autônoma, correspondem freqüentemente
de fato a novas etapas dos processos monopolistas.
Os efeitos dessas dissociaçõe~ entre propriedade jurídica e
propriedade econômica, de um lado, e entre a pluralidade dos
poderes da propriedade econômica, de outro, fazem-se if?;ualmente
sentir em u_m_a_ ordem inversa: uma propriedade furídica única
- uma grande firma industrial, um grande banco, um grande
holding financeiro - pode muitas vezes esconder, sob a f<!chada
de elementos "absorvidos", seja propriedades econômicas relati-
130 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

vamente distintas, seja, mais freqüentemente, graus diversos de


propriedade econômica dos capitais que a compõem. Um mono-
pólio industrial ou bancário, ou um grupo financeiro, é atrave:;
s(l.do por contradições intensas entre os capitais que o compõem~
e que, no entanto, apareceml como juridicamente "integrados".
Mas essa dissociação do:s poderes decorrentes da propriedade
econômica é apenas elemento pendente da tendência à concen-
tração e à centralização do capital sob propriedade única. Ela não
significa uma distribuição qualquer igualitária ou proporcional do
poder e da propriedade econômica entre os capitais concentrados:
essa dissociação abrange as contradições entre esses capitais e as
lutas entre as frações do capital, e deve ser apreendida. de fato
como um meio de perda de certos poderes, e de degradação da
propriedade econômica de certos capitais, em proveito de outros~
que concentram esses poderes e esses graus de propriedade. Esse
processo contraditório de dissociação-concentração abrange de·
fato toda a gama de expropriações relativas na reprodução am-
pliada do capital monopolista em direção à reunião dos capitais:
sob propriedade única, e designa assim, igualmente, as resistên-
cias a tal processo: o processo de fusão dos capitais não tem nada
de uma associação ou cooperativa:

III

Mas ainda há mais: sob a fachada de uma relativa permanên-


cia das formas de propriedade jurídica ao longo do processo do
capitalismo monopolista (sociedade por ações), as própri!!§_ ~elaç{J_es
de produção se modificam. Essas modificações constituem outras
tantas novas -f Õrmãs--
das relações de produção capitalistas, cor-
respondentes ao capitalismo monopolista: referem-se em parti-
cular ao processo de dissociação-concentração da propriedade
econômica em suas relações (rapports) com a relação (relation) de
posse nos processos de trabalho. Essas modificações têm então,
como lugar central, o próprio ciclo do capital produtivo, e ma-·
nifestam-se por mudanças importantes na divisão social do tra-
balho e na conformação das empresas.
Seguirei, aqui, a linha de delimitação do capitalismo mono-
polista em fases, a qual foi analisada no ensaio anterior como pe-
riodização do imperialismo: 1 a) a fase de transição do capita-

7 Ver acima, pp. 49 e seguintes.


As CoNTRADIÇÕEs ATuA1s DA BuRGUESIA 131

Jismo competitivo ao capitalismo monopolista; b) a fase de con-


solidação do capitalismo monopolista; e) sua fase atual. Vou ater-
me às modificações das relações de produção "internas" nas me-
trópoles segundo essas fases, o que me permitirá precisar as aná-
lises anteriores.

A relação de posse, estreitarnente articulada ao processo de


trabalho, designa a possibilidade de realização dos meios de tra-
balho em um centro de apropriaç:ão da natureza, e remonta assim
aos graus de domínio de um processo (ou de uma série de pro-
cessos) de trabalho determinados e de condições de sua reprodu-
ção. A relação de posse comporta uma série de poderes particula-
res, distintos daqueles da relação de propriedade, e que têm ca-
racterísticas, principalmente, na direç~--º e na org(]JJ_if:ª_ç-ªo inter-
nas dos processos de tr_ªbalho ná~-c:livisão socíafdo trabaiho. -- --
-uma unidâde-de prodÜÇão -- uma "empresa" -, forma de
articulação das relações de produção sobre o processo de traba-
lho, antes de mais nada está situada em relação à posse. O que
caracteriza, desse ponto de vista, a coesão própria de uma unidade
de produção em relação às outras é a interdependência estreita
dos -processos de trabalho que aí se desenvolvem, e que determina
a capacidade efetiva de utilizar os meios de -produção. Essa inter-
dependência de processos de trabalho que não têm autonomia
própria não tem aliás nada que ver com a proximidade "fís.ica''
dos diversos estabelecimentos: processos de trabalho praticamente
jnextricáveis podem muito bem ser efetuados em diversos estaQe-
lecimentos geograficamente separados. Cada processo de trabalho,
podendo ser centralizado em um estabelecimento distinto, intervém
em uma transformação determinada pela interdependência de·sses
processos. Assim, os produtos que circulam entre esses processos
não constituem trocas "externas'', não são, propriamente·, "ven-
didos" e "comprados", mas constituem trocas internas (preço de
transferência) na unidade de produção, seguindo um fluxo con-
tínuo. A unidade de produção supõe assim) na relação de_posse,
uma instância dirigente central que_é, no modo de produçãQ_ G~­
pitalista, "separada" dos trabalhadores, e que comanda a divisão
social do trabalho. -
No modo de produção capitalista, a relação de posse pertence
ao lugar do capital que igualmente concentra a: propriedade eco-
nômica. Uma unidade de produçãlo - uma "empresa" - capita-
lista supõe igualmente uma propriedade econômica dos meios de
produção utilizados nessa unidade:. Quando o processo de produ-
132 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

ção implica interdependências entre processos de trabalho que se


aplicam a meios de trabalho pertencentes a proprietários dif e ren-
tes, deparamos com relações entre unidades de produção distintas.
Em outras palavras, uma unidade de produção capitalista é a con-
figuração concreta da relação entre uma propriedade econômica
e uma posse pertencentes, todas duas, ao capital.
Dessa análise da unidade de produção, que supõe uma ruptu-
ra radical com todas as concepções "institucionalistas" da empre-
sa, podemos desde já destacar duas linhas principais: a) dada a
socialização crescente dos processos de trabalho correspondentes
ao processo de concentração do capital sob o capitalismo mono-
polista, torna-se evidente que os próprios limites das unidades de
produção se deslocam; b) esse deslocamento dos limites, em re-
lação a essa socialização, é comandado pelo traçado que a con..
centração do capital imprime a essa socialização e, portanto, à
divisão social do trabalho. Ele Iião é devido a uma necessidade
técnica qualquer de um processo de· trabalho em si. Q __f?.i:_Q~~sso de
trabalho só existe nas condições sociais sob as quais ele é exe~cido.
Ora, a articulação precisa da propriedade econômica e da
posse assume formas diferentes segundo as fases· do capitalismo
monopolista 8 •
Durante as fases de transição e de consolidação, o capitalis-
mo monopolista toma pé e estabelece sua dominação nas forma-
ções sociais das metrópoles, em particular nas formas do capita-
lismo competitivo (capital não-monopolista). Essas fases corres-
pondem a formas determinadas de extensão do capitalismo mo-
nopolista. em face das resistências muito fortes do capital não-
monopolista e da pequena produção dependente da forma de pro-
dução comercial simples (pequena-burguesia comercial e artesa-
nal). Nos efeitos contraditórios de dissolução-conservação que a
dominação do capitalismo monopolista impõe a essas formas, são
os efeitos de· conservação que· predominam: o capitalismo mono-
polista não chega ainda a submeter ("subsumir", segundo o termo
de Marx) inteiramente essas f armas. Isso tem conseqüências na
reproducão própria do capitalismo monopolista: na alta da taxa
de exploração, que tende a contrariar a baixa da taxa média de
lucro. não se constata ainda um claro deslocamento em direção
à dominante exploração intensiva do trabalho. A organização dos
processos de trabalho e a divisão social do trabalho não passa-
r~m ainda, enquanto processos de conjunto, sob a direção do ca-
pital monopolista.
8 Ver o quadro das pp. 142-143.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 133

o que se constata, então, é um avanço relativo da concen-


tração da propriedade econômica sobre a .socialização dos proces-
sos de trabalho. Trata-se de urna tendência histórica geral no pro-
cesso de dominação de um modo ou forma de produção sobre os
outros, e que se encontra aqui, sob forma específica, na relação
entre os dois estádios do capitalismo. De fato, será a concentra-
ção da propriedade econ~mica, refletindo-se nas condições sociais
da produção e da _reprodução, que, no caso presente, imprimirá,
com defasagens necessárias, seu traçado e seu.. ritmo à socializa-
ção do processo de trabalho.
li\: 1 1 ; lt
·l. • Essas formas de extensão do 'capitalismo monopolista, reali-
zadas historicamente· por esse avanço, implicam uma dissociação,
desta vez, da propriedade econômica. e.Jia posse. A forma domi-
nante, que "subsfffiii" . á. capitalismo comPctfüvo, isto é, uma pro-
priedade econômica e uma posse do capitalista individual em
uma unidade de produção determinada, é aquela de uma proprie-
dade única e concentrada que se estende sobre várfris···rm:Zãciães--de
produção sepârad"ás: -a· saber, aquela- de· -um.a propriedade~:econô­
mica submetendo - "subsffmindo" - relações de posse relativa-
mente distintas. Encontra-se aqui a forma típica do grupo-holding
e truste que, sob propriedade econômica concentrada, pode con-
trolar unidades de produção extremamente diversificadas, que se
estendem aos mais diversos e afastados ramos, e cujos processos
de trabalho apresentam uma autonomia característica: o império
Stinnes na Alemanha entre as duas guerras é um exemplo clássi-
co. Mesmo no caso de uma concentração no interior de um ramo
(metalúrgico, químico etc.), os limites das unidades de produção,
e mesmo a autonomia relativa de seus processos de trabalho e a
organização desses processos, resistem à concentração da proprie-
dade econômica: não houve ainda passagem para a chamada fase
de "reestruturação". ··
É pririêlpalm-ente nessas fases que se constata maciçamente
o fenômeno de dissociação dos poderes decorrentes da própria pro-
priedade econômica.. Ele corresponde a essas formas de extensão
do capitalismo monopolista, e pern1ite precisamente essa extensão
por um avanco da propriedade econômica: o capitalismo mono-
polista concentra rapidãmente entre suas mãos não somente pro-
priedades econômicas por peças inteiras, mas ainda adiciona po-
deres dependentes de propriedades que permanecem, formalmen-
te, ainda independentes dele.
Entretanto. compreende-se agora que essa dissociação dos po-
deres, que denende da propriedade econômica, que - permite
., a ex-
134 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

propriação real - em graus diversos - em proveito do capital


monopolista, tornou-se possível pela dissociação, durante essas fa-
.ses, entre propriedade econômica e posse. O capital monopolista
se associa a alguns poderes da propriedade econômica de um outro
capital, permanecendo alguns outros poderes, nesse processo de
luta e de resistência, neste último capital, na medida em que a
forma predominante da concentração não quebre ainda os limi-
tes das unidades de produção e se estenda sobre posses s.eparadas;
o capitalista que se vê espoliado de alguns de seus poderes de
propriedade pode reter ainda poderes importantes de posse. Com
efeito, todo grau de propriedade ec9nômica só pode, sob o capi-
talismo, comportar poderes de posse, ficando o lugar do capital
circunscrito precisamente por essas duas relações: a dissociação
entre propriedade econômica e posse, que implica a concentração
de posses separadas sob propriedade única, não implica, em com-
pensação, a possibilidade de· um grau de propriedade, ou de alguns
poderes de propriedade, sem poderes de posse.

IV

Contudo, modificações importantes caracterizam, nesse senti-


do, a fase atual do capitalismo monopolista nas relações interiores
das metrópoles imperialistas. Durante essa fase, são os ~feitos de
dissolução que predominam sobre os de conservaç:ão, nos efeitos
contraditórios que a dominação do capitalismo monopolista impõe
:aos outros modos e formas de produção. O capitalismo monopolista
impõe sua direção ao conjunto dos processos de trabalho e im-
põe uma divisão social do trabalho no conjunto da formação social.
Essa reorganização dos processos de trabalho se manifesta aqui
pela socialização maciça, e toda característica, dos processos de
trabalho: ela corresponde ao deslocamento da dominante em di-
reção à exploração intensiva do trabalho (mais-valia relativa) 9 .
Nessas condições, a forma dominante de concentração do
capital produtivo durante a fase atual é aquela já assinalada da
produção integrada: ela significa uma reestruturação dos proces-
sos de trabalho, no sentido de uma socialização e de uma divisão
·social conforme à concentração da propriedade econômica. Os

9 Mas igualme.~1te à relação de força ent ~e capitais no processo de


desva!or~zação ·constante de uma parte do capital, desvalorização que
contnbm paralelamente para contrariar a baixa tendencial da taxa mé-
·dia de lucro. ·
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 135

processos de trabalho que Sy _desenvolvem no seio ~a~ diver~as uni-


dades de produção sob propriedade concentrada e un1ca articulam-
se estreitamente. O que tem como efeito parcial a constituição
das unidades de produção complexas, cujas diversas subunidades
que a compõem, as unidades de produção elementares, aparecem
como os elementos orgânicos: assiste-se assim à emergência das
grandes firmas industriais ou empresas gigantes. É o caso clássico
da petroquímica, onde as inovações tecnológicas no tratamento
dos derivados do petróleo dão lugar, no próprio seio de uma mes-
ma propriedade econômica, à articulação estreita dos processos de
trabalho das unidades de produção, dependentes originalmente
daqueles dois ramos (petróleo e química). Os limites tradicionais das
unidades de produção recuam até o ponto de recobrir os contor-
nos da propriedade econômica: é o famoso problema da "reestru-
turação" ou da "modernização" das empresas. Essa integração dos
processos de trabalho e o recuo dos limites das unidades de pro-
dução referem-se, em diversos graus, tanto à concentração no
seio de um ramo quanto à concentração inter-ramos: é que, pa-
ralelamente, os próprios limites dos ramos da produção social se
atenuam. As trocas entre unidades de produção elementares de
uma unidade de produção complexa tornam-se trocas "internas_n
a esta última. Observa-se, pois, que essa integraç.ão dos processos
de trabalho· não impede nem a diversificação dos domínios de in-
vestimentos, nem a diversificação constante dos produtos finais
óferecidos pela firma gigante.
Essa direção atual da concentração do capital implica, assim,
uma tendência à reabsorção do afastamento e da dissociação que
caracterizava, nas fases precedentes do capitalismo monopolista,
a propriedade e a posse: o capitalismo monopolista completa a
subsunção real, ampliada dos meios e forças de trabalho pela dis-
solução maciça de suas relações sob outras formas. As diversas
posses submetidas a uma propriedade concentrada se dissolvem,
de forma concomitante ao recuo dos limites das unidades de· pro-
dução, em uma posse única: as unidades de produção complexas
implicam uma instância dirigente central, que comanda a inte-
gração dos processos de trabalho e regulamenta o fluxo contínuo
entre as unidades de produção elementares. Os poderes decorren-
tes dessa posse única se concentram na propriedade econômica
da firma gigante. Essa concentração dos poderes da posse se rea-
liza aliás de várias maneiras: entre outras, pela domihação de
uma unidade de produção elementar sobre as outras no seio da
unidade de produção complexa, quando principalmente esta uni-
136 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

dade fornece produtos de base comuns às outras unidades, que


por sua vez os diversificam.

J\.1as essa tendência à reabsorção do afastamento entre pro-


priedade econômica e posse tem efeitos sobre a própria proprie-
dade econômica. Ao mesmo tempo em que cresce a interdepen-
dência entre processos de trabalho e capitais, ela só faz, por esse
meio indireto, e é o que nos interessa, reproduzir, de maneir~
mais intensa, as contradições entre as diversas frações do capital.
Essa reabsorção conduz a uma reabsorção necessária da dissocia-
ção entre os diversos poderes decorrentes da propriedade econô-
mica e a uma concentração aumentada dos "graus" de proprie-
dade econômica distribuídos nas diversas unidades de produção.
A ausência de uma produção integrada permitia toda uma série
de expropriações relativas, pelas quais um monopólio industrial.
se associava de fato a uma unidade de produção enquanto aban-
donava alguns poderes de propriedade (alguns dos múltiplos casos
de subcontratação) a capitais distintos, no contexto de urna re-
sistência dos limites da posse e das unidades de produçã.o nos
processos de trabalho. Mas a socialização e a integração aumen-
tadas dos processos de trabalho, a concentração da direção e do
domínio desses processos, conduzem necessariamente a uma luta
íntensa para a concentração dos poderes d_e propriedade sob pro-
pried ade única.

Isso não se refere somente às relações entre capital monopo-


lista e capital não-monopolista - voltaremos ao assunto --, mas
também às relações no próprio seio do capital monopolista. Como-
prova temos não somente o repetido fracasso das empresas unidas~
das filiais comuns a vários grupos monopolistas, mas também a
luta intensa entre monopólios para o controle exclusivo e único
de firmas. e setores inteiros. Isso se refere, enfim, às relaçôes no
próprio seio de um capital concentrado ou de um grupo monopo--
lista: as diversas "alianças" que davam lugar, freqüenteme.nte, a
graus diversos de propriedade econômica, distribuídos entre diver-
sos capitais assim reunidos sob a dominação de um dentre eles,
têm cada vez mais tendência a situar-se na concentração exclusi-
va do conjunto de poderes de propriedade nas mãos de umL só.
Em suma, essa tendência, acrescida à fusão dos capitais, en-
tendida, na fase atual, como tendência à reabsorção das dissocia-
ções entre propriedade econômica e posse, de um lado, entre os
diversos poderes e graus da propriedade econômica, de outro, sâ
As CoNTRADIÇÕEs ATUAIS DA BURGUESIA 137

faz aumentar as contradições e as lutc:s entre as _frações do capital:


eis aí a primeira conclusão que nos interessa diretamente.

Terei ocasião de voltar a essas análises no exame da relação


entre. capital monopolista e capital não-monopolista na fase atual:
veremos principalmente que as modificações atuais das relações
de produção monopolistas ultrapassam de longe a simples cons-
tituição das unidades de produção complexas, que não passa de
um efeito muito parcial dessas modificações. Insisto no momen-
to em três observações importantes:

1 . As fases âo capitalismo monopolista analisadas acima não


devem absolutamente ser apreendidas segundo o esquema de um
etapismo unilinear de sucessão cronológica. Segundo as f armações
sociais concretas, e em graus diversos, as relações capitalistas mo-
nopolistas da fase de consolidação coexistem, de maneira muito
particular, com aquelas da fase atual. Na medida em que se trata
aqui de um estádio (capitalismo monopolista) do capitalismo, é
necessário apreender bem a significação da frase de Lênin, se-
gundo a qual esse estádio não é outra coisa senão a "supere,stru-
tura" ou o "rótulo" do "antigo capitalismo": o capitalismo com-
petitivo (o capital não-monopolista) reproduz-se de fato constan-
temente, se bem que de forma dependente, sob o capitalismo mo-
nopolista e suas diversas fases. Isso quer dizer que, mesmo na sua
fase atual, o capitalismo monopolista apresenta ao mesmo tempo
os caracteres das relações de produção que comandam sua "exten-
são" sobre o capital não-monopolista que ressurge constantemente.
Além disso, dada a desigualdade das taxas de lucro oor ramos e
.
setores, e a necessidade -para o capital
-
monopolista
- de maximizar
seus sobrelucros, a tendência de uma concentração do tipo holding,
sem integração efetiva dos processos de trabalho e absorção do
a~astamento entr:e propriedade econômica e posse, é uma tendên-
cia permanente à reprodução ampliada. do capital monopolista.
Não é menos verdade aue essa forma de extensão assume na
fase atual características e;pecíficas, poi~ ela se realiza precisa-
mente segundo as novas coordenadas desta fase: a concentração
em holding assume atualmente a forma principal do conglomerg,-
~ Ora, mesmo que esses conglomerados incluam processos de
trabalho extremamente diversificados, sem efetiva integração en-
138 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tre eles, é necessário todavia notar, como o faz Y. Morvan 10 , que


"os conglomerados não são grupos holding, no sentido tradicional
do termo: com efeito, na maior parte do tempo, os grupos tra-
dicionais se contentam em deter uma parte mais ou menos im-
portante do capital das sociedades que controlam, sem contudo
desejar exercer a responsabilidade total da gestão de todas essas
sociedades. Por seu lado, os conglomerados não se contentapi em
deter uma parte do capital de suas filiais: eles tentam gerlr, de
forma efetiva, essas filiais; em outras palavras, apresentam-se como
verdadeiras firmas industriais".
Em suma, a periodização em estádios do capitalismo e os efei-
tos de dissolução-conservação que o capitalismo monopolista im-
põe ao capitalis.mo competitivo não podem ser apreendidos da mes-
ma forma que as relações entre modo de produção capitalista, de
um lado, e os outros modos e formas de produção, de outro. A
articulação desses dois estádios é específica, na medida em que o
capitalismo monopolista constitui a reprodução ampliada do con-
junto do modo de produção capitalista, e reproduz, assim, sob
uma nova forma, as contradições de conjunto do ciclo de repro-
dução. Isso vale ainda mais para a periodização em fases do pró-
prio capitalismo monopolista: as características das fases "prece-
dentes" do capitalismo monopolista não estão simplesmente con-
servadas na fase atual, que possui características específicas, mas
são nelas reproduzidas constantemente sob nova forma. Tudo isso
faz com que as formas que segue o processo de "fusão" no ciclo
de concentração do capital produtivo e no ciclo,.de centralização
do capital-dinheiro, assim como em suas interdependências e in-
ter-relações, sejam extraordinariamente complexas. Elas só podem
ser elucidadas pela análise concreta da articulação das diversas
fases em uma formação social concreta: o caso é patente princi-
palmente para a França, em virtude do seu atraso, até os últimos
anos, no processo de concentração do capital;
2. A periodização estabelecida no plano mundial de inter-
nacionalização das relações capitalistas -não destaca exatamente,
do ponto de vista cronológico, a periodização das diversas metró-
poles capitalistas: não se pode esquecer aqui que a corrente im·
perialista não é a simples soma das partes que a compõem, e que
o desenvolvimento dos elos dessa corrente é desigual. As de.fasa·

10 Y. ~Iorvan, La Concentration de /'industrie en France, 1972,


p. 112.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 139

gens cronológicas podem assin1 se apresentar ao mesmo tempo en-


tre a fase da corrente imperialista e a fase interna "correspon-
dente" de uma metrópole imperialista, e entre as fases concretas
que atravessam em um mome~nto determinado as diversas metró-
poles. Mas isso indica igualmtente que, no caso de um "'_atraso"
de uma metrópole em relação à fase do conjunto mundial da cor-
rente imperialista, é essa corr ente que impõe a essa metrópole a
1

passagem, do ponto de vista interno, para a fase correspondente:


o caso é ainda aqui patente para a França, com seu atraso carac-
terístico; a França só passou para a fase atual do capitalismo mo-
nopolista de forma recente (5. º e 6. º Planos), sob o impulso, pre-
cisamente, da intemacionaliza~~ão das relações capitalistas;
.
3. A análise feita aqui das relações de produção segundo
as fases do capitalismo monopolista, das comparações entre rela-
ções de propriedade econômica. e de posse e entre os poderes que
daí decorrem, refere-se ao lugar do capital de suas frações. Bem di-
verso é o problema dos agentes que exercem esses poderes, a sa-
ber, aqueles que ocupam esse lugar ou que dependem dele dire-
tamente. Ê evidente que as modificações dessas relações têm como
efeito a diversificação das categorias dos agentes que exercem
esses poderes: as famosas questões dos empresários ou da tecnoes-
trutura só são um dos aspectos do problema. Essas modificações
têm então efeitos sobre a organização institucional da "firma",
o que se manifesta como tendência de centralização-descentrali-
zação da "tomada de decisão" nas firmas gigantes, como buro-
cratização das empresas moden1as etc. Não há dúvida que essas
questões são importantes: mas são, no final das contas, secundá-
rias, pois só são um efeito das modificações das relações de pro-
dução. Era necessário frisá-lo, 1em razão da tendência institucio-
nalista atualmente dominante, que consiste em centralizar o pro-
blema em torno das modificações da estrutura organizacional da
"firma".

3. As Contradições no Seio do Capital Monopolista

Essas análises enfatizam o seguinte fato: sob sua /achada uni-


/ icada, o capital financeiro reproduz de f arma ampliada, sob far-
ma nova, as contradições inerentes ao processo de reprodução do
capital. A "fusão" dos capitais, a qual produz o capital financei·
ro, é, sob as aparências jurídicas~, um processo divergente e con-
traditório: o capital financeiro níio abrange um capital integrado,
140 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HOJE

mas designa o modo de funcionamento e de relações, nesse pro-


cesso, das frações do capital em sua interdependência crescente.
Em outras palavras, o conceito de capital financeiro designa o
processo contraditório de constituição do capital monopolista.
São essas contradições e fracionamentos do capital monopo-
lista, componente da burguesia interior das metrópoles imperia-
listas, que analisarei -primeiramente.

Essas contradições referem-se em primeiro lugar às relações


entre os monopólios industriais, de um lado, os monopólios ban~
cárias, de outro, nos quais dominam respectivamente a concentra-
ção do capital produtivo e a centralização do capital-dinheiro. Já
produzidos, cada um deles, pelo processo de fusão do capital in-
dustrial e do capital bancário, reproduzem, ao me·smo tempo, as
contradições entre capital produtivo e capital-dinheiro. O capita]
financeiro apresenta, assim, em seu próprio seio as contradições
con~titutivas da classe burguesa. Poder-se-ia empregar, nesse sen-
tido, o termo interiorização das contradições no seio do capital
financeiro, mas com a condição de precisar que não se trata nem
de uma totalidade integrada, o capital financeiro, nem de simples
contradições dos "grupos financeiros" entre si, cada um já cons-
tituindo uma totalidade integrada: trata-se realmente de contra-
dições dos próprios ele·mentos que entram no processo do capi-
tal financeiro - capital industrial, capital bancário -, elementos
que já estão modificados no, e· pelo, seu processamento.

Com efeito. o termo capital financeiro não abrange, como se


acredita com freqüência, o capital bancário. De fato, encontra-se
aí o sentido que ele assume, de maneira mais clara, em Hilferding:
mas o próprio Lênin, ao cometer por vezes deslizes a tal respeito
em seu texto sobre o Imperialismo evita caucionar essa confusão.
Eis por que ele mantém sempre, contra Hilferding, o papel de-
terminante do capital produtivo 11 , e a reprodução, sob o impe-

11 Não tenho aqui a inteni;ão de p~ocede~ à análise e ·austiva desta


questão; vou me limitar a um ú:iico exem9lo, mas altamente sign'fica-
tivo, tirado do lmpérialisme, stade suprême. . . (op. cit., p. 823). O pró-
prio Lênin cita Hilferding, pa,.ecendo retomar a definição que este último
"dá ao capital financeiro, identificando-o ao capital bancário: "Hilferding
escreve", diz Lênin, "O capital bancário - isto é, esse capital-dbhei-
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 141

rialismo, da distinção entre este e o capital-dinheiro, seguindo nisso


Marx. Ainda se torna necessário aqui redobrar a cautela, pois o
sentido do capital financeiro em Lênin é diferente daquele que
Marx atribui ao termo capital financeiro: em Marx, este termo
permanece descritivo em relação ao emprego que dele faz Lênin,
·e serve para designar uma série de práticas dependentes tanto do
capital comercial como do capital bancário 12 •

Assim, o capital financeiro, ao designar o processo de fusão


entre capital industrial e capital bancário, e ao conotar um papel
novo e muito importante do capital bancário e do ciclo do capi~
tal-dinheiro, não implica, absolutamente, enquanto tal, que essa
fusão se faça forçosamente sob a égide do capital bancário e pela
dominação do banco sobre a indústria, o que seria o caso, se o
capital financeiro se identificasse com o capital bancário. Essa
confusão é bastante grave e conduz a dois resultados:
a) Os detratores da teoria leninista do imperialismo susten-
tam que essa teoria não se verificou, pois, através indiretamente
do autofinanciamento, a indústria escaparia "doravante" ao con-
trole dos bancos 13 • Não somente atribui-se de certa maneira a
Lênin, pela confusão entre capital financeiro e capital bancário,
:uma concepção do processo monopolista realizado sob a égide ine·
lutável dos bancos, mas ainda se subestima o papel ativo e deci·
:sivo do capital bancário no processo de fusão, mesmo quando este
é realizado sob a égide do capital industrial: o que se torna no
entanto evidente, quando se concebe o capital financeiro como
o modo de funcionamento "global" do capital industrial e do
capital bancário;

ro - que se transforma então em capital-industrial, eu lhe chamo ca-


pital-financeiro ... ,, Ora, acrescenta ·~mediatamente Lênin: "Essa defini-
.ção é incompleta na medida em que om'te um fato da mais alta im-
portância, a saber, a concentração aumentada da produção e do capital,
no ponto em que proporciona e já proporcionou o surgimento do mono-
pólio... Concentração da produção com, como conseqüência., os mono-
pólios, fusão ou interpretação dos bancos e da indústria, e eis então a
história da formação do capital financeiro e o conteúdo dessa noção (gri-
fado por mim, NP) ."
tz Sobre esse assunto, Suzanne de Brunhof, La Politique manétaire,
1973, pp. 113 sq.
13 Entre outros, J. Meynau::I, L''Europe des affaires, 1967, pp. 111 sq.
-Mas, de fato, encontra-se aí a posição da totalidade dos auto:·es bur-
:gueses
~ris1icas
A rticulaçiío do.f.
Propr. jurid
Periodi~
nzudus e /orrnas de Relaçõe.< de pn:xl&li(iio
produção rei. de produ

TRANSIÇÃO l. Equilíbrio instável Dissociações


PARA O entre o MPC e os Proprkdade econômica: capital ( Manu- das ao equil
CAPITALISMO modos de prod. Possc. trabalhadores diretos t fli!Cldra dos modos de 1
··pré-capita listas .. presentes (e
(feudal) clássico da p
2. Forma de produ- da terra)
ção ~omercial sim-
ples

REPRODUÇÃO 1. Estabelecimento do CARACTERÍSTICA l PROl'RIED,\DE H:O..'IÔMJCA


AMPLIADA domínio do ~tPC DORAVANTE '+ J~>SSE =
Lllú,UI' DO
IJO CAPITALISMO 2. Efeitos de conser- CONSrANTE J CAPITAL
\'ação ainda fre-
qüentemente domi- Relaç6es: Identificação e.
I.
E~'TÁDIO nan tcs sobre os ou- talista propr. j.
tros modos de pro- a. Propric1lade econômica· j ident~ dica/propr. eco
CAPITALISfA
COMPETITIVO dução, sobretudo so- b. Posse l ficaçfu.> Capitallii!ta mica.-<:apitalista
bre a forma de effipt"e!;ário. dividual
produção comcrcial indmdwrl
simples Graus de propr. econômica e de
posse: não há dissociação

Poderes decorrentes: não há di~iação

l. Surgimento e ex- CONCENTRAÇÃO/CENTRALIZAÇÃO DO CAPITAL Dissociação ';ªP!'


II.
ESTÁDIO tensão do capitalis- lista propr. JUTM
mo monopolista Relaç6es: dissociação ca/propr. econôn
CAl'ITALIST.\
MONOl'OLl~'TA 2. Equilíbrio instável J. J. ca (sociedade 1
entre o capitalismo Posse L Posse 2. Posse J_ etc. ações)
11.1. Fase de monopolista e o ca- J. J. J.
transição do ca- pitalismo competi-
pitalismo com- tivo Graus: dissociação
petitivo ao ca- 3. Efeitos dominantc..i.;;
pitalismo mono- de dissolução cio ca- Propr. econ. concen Irada Posse cone.
polis ta pitalismo sobre os
outros modos de
J. J.
Pr. Ec. 1 Pr. Ec. 2 Pr. Ec.3
.i. J.
Pos. 1 Pcs. 2!
.i. .
Pos. J _,
produção
4. Efeitos equilibrados Poderes: Pr. econ. .--. Pod. Posse .~Poderes
de dissolução/con-. dissocia- f 1
i--> Pod. '-•Poderes
servação cio capita-
!ismo sobre a for-
ção l concent. --> Pod. concenlr. I-• Pode~
ma comercial sim-
pies

11.2. Fase de 1. Domínio do capita-


consolidação do !ismo monopolista,
capitalismo me>- mas aspecto ainda -
nopolista 1r!ominnntc de sua
1=xtensão
2. ]Efeitos de dissolu-
1;ão dominantes na
f o r m a comercial
!;imples
3. Efeitos de conser-
vação dominantes

l
no capit::tlismo com-
pctitirn

11.3. Fase ativa 1. Exploraçf10 intensi- TENDl~NCIA À REABSORÇÃO DOS AFASTAMENTO:!>


do capitalismo va dominante do ca- SOB NOVA FORMA
monopolista pitalismo monopol.
sobre as outras for-
mas de prod. e sub- Rl'iaçiíes:
1n issão real an1 p/ia-
da de seus elemen- Prop. econômica concentrada
tos no capitalismo t t
monupoli,ta
t
Posse 1. Posse 2. Posse 3.
. 2. Efeitos de dissolu-
ção macit,.·os sohrc Graus:
a forma comercial
simples Prop. econ. concentrada Pos. concentrnda
3. Efeitos de dissolu- t
ção dominantes so-
t t t t 1'
Pr. ec. 1 Pr. ec. 2 Pr. ec. 3 Pos. 1 Pos.2 P'os. 3
bre a forma capi-
talista competitiva_ Poderes:

Prop. econ. ~ Poderes


Posse } ~Poderes
<- Poderes
,
QUADRO SINóTICO: PEIUODIZAÇÃO DO CAPITALISMO
Figura das unidades de Agentes detentores das Estado
Processo de trabalho produção relações e exercendo os
poderes

ies
,;:
i-
equit. i<>
; de . · 1.
!'' Submissão fcrmal do trabalho
ao capitaL manufatura
Proprietários e trabalhadores
diretos
Estado de transição:
Estado
na Europa
"absolutista"

( "'
la ~~~
I
i ~
1
J. Princípios da submissão real
do trabalho ao capital
2 Dominante exploração e:rlen-
CARA<..'T.
1 E:
DORAVANTE CONSTAN-
l'ODERES DECORRENTES DO
lugar 00 CAPITAL
1. Determinação e do-
mínio detidos pelo
•'econômico"
. siva do trabalho 2. Estado liberal
<o 3. Surgimento da exploração in- Unidades de produção simples. Pe><leres concentrados e exer-
pr. tensiva do trabalho: primeiros e "separadas" cidos pelo capitalista empre-
sário individual/ detentor das

Í ~ "·
!Jst ,_ efeitos da cooperação e da
socialização (maquinismo e relações

;"""';u)

__Jj_=~-------------------------------------~
ca~-
J
.._, Reforço da exploração intensiva
- ...., do trabalho
Concentração das unidades de
produção simples, unidades con-
1. Dissociação dos as_entes
capitalistas detentores das
PAPEL
oo
DOMINANTE
ESTADO
•.

:o -m centradas dotadas ainda de altos relações


1cre /z graus de propr. econ. e de pos- 2. Primeira dissociação dos 1. Equilíbrio instável '
'l se e de poderes correspondentes agentes que exercem os entre o domínio do
(trustes) poderes econômico e a do-
: O
~
_.-, minação do Estado
,_·:; z Propr.
.(,
econ.
.(,
concentrada
.(,
(Questão dos empresários) 2. Estado intervencio-
nista
'· n
-.,. UPSl. UPS2.
(urs: un. de pr. simples)
UPS3.

r
'
o
>

Consolidação do p~pcl
dominante do fat~do

'•o

r
e
J,
-i:i

D 1. Deslocamento para a domi- PRODUÇÃO INTEGRADA 1. Concentração dos detento- 1. Papel novo do Es-
nan1e de exploração intensiva res das re!açõcs tado r.a reprodu,·ão
do trabalho Unidade de Prod. Complexa 2. Reprodução da dissociação e acentuação de sua
2. Realização ampliada da sub- t t t dos agentes que exercem dominância
missão real do trabalho ao UPEI. UPE2. UPE3. os poderes 2. Nova forma do Es-
capital (Questão do "centralismo/ tado intervencior.i"-
3. Cooperação e socialização am- (urE: unidades de produção descentralização" da ta
pliada dos pro~essos · de tra- elementcres) "grande firma")
1'1 balho
4. Dominação do "trabalho Unidades de Prod. Complexas
morto" sobre o "tn; balho vi- t t t
UPDI. U!'r.2. uri;.1
vo" (Papel das ino\·ações kc-
nológicas)
(uro: unidades de pre><lução
dependentes)

IO NAS FORMAÇÕES SOCIAIS DOMINANTES/IMPERIALISTAS


144 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

b) Mas essa confusão teve igualmente conseqüências para os


.autores marxistas: eles foram levados a propor uma periodização
do modo de produção capitalista segundo o capital que detivesse
.o domínio na reprodução do conjunto do capital social, conforme
as diversas fases: primeiramente, o capital comercial, o capital
industrial em seguida, e finalmente o capital bancário, identificado
de alguma f arma com o capital financeiro. Além das observa-
ções já feitas antes sobre esse assunto, de um lado essa concep-
ção leva a atenuar a periodização do capitalismo em e&tádios: é
.aqui que surgem a falsa discussão "foi o 'capitalismo, desde os
·seus primórdios, imperialista?" e a distinção entre "árqueo-impe-
rialis.mo" e "neo-imperialismo"; por outro lado, e é o que nos
interessa sobretudo aqui, ela conduz forçosamente a atribuir, no
processo de fusão do capitalismo monopolista, o papel dominante
ao capital bancário 14 •
Ora, ao longo do ciclo da reprodução ampliada do capitalis-
·mo, inclusive o estádio imperialista, a reprodução conjunta do
capital social é determinada pelo ciclo do capital produtivo, o
-único que produz a mais-valia. Mas isso não designa diretament~,
·em nenhum dos estádios e em nenhuma das fases, a fração do
-capital que, em uma formação social concreta, detém o papel
·dominante na economia e, segundo as conjunturas, a hegemoni,a
política.

Essas observações valem exatamente para o estádio imperia-


lista, e principalmente para o capital monopolista industrial e
'º capital monopolista bancário. Segundo as f orrriações concretas,
as fases e as conjunturas, o processo de fusão e seu funcionamen-
to na reprodução podem fazer-se sob a égide e a direção econô-
·mica, seja do próprio capital industrial (caso dos Estados Unidos),
seja do capital bancário (caso clássico da Alemanha) em sua luta
pela repartição da mais-valia.
14 "O imperialismo, com seus traços específicos tais como a e:irpor-
tação do capital, a divisão do mundo, conota-se então com a intena-
cionalização do capital, no papel específico c~escmpenhado- pelo capi-
tal-dinheiro. Daí o domínio do capital financeiro internacional de hoje,
o domínio dos bancos, do mercado fina,:-iceiro ... " Chr. Palloix, lnterna-
tionalisation du capital et Stratégie des firmes multinationales, doe. poL,
1973, p. 19. Cf. igualmente do mesmo autor L'économie mondiale ca-
pitaliste, op. cit., os diversos artigos de G. Dhoquois etc. Acrescento no
entanto que, em outras análises, o próprio Palloix reconhece o sentido
do capital fina,:J.ceiro como processo de reunião do capital industrial e do
.c~pital bancário.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 145

É sob a égide do capital bancário e submetido ao seu papel


econômico dominante que teve lugar esse processo, durante muito
tempo, na França: capital bancário que, ao contrário aliás daque·
le da Alemanha, guardou uma característica especulativa, hesi·
tando diante dos investimentos industriais. Isso provocou o atraso
na França ao mesmo tempo da industrialização e do processo de
fusão do capitalismo monopolista, e deu igualmente lugar a carac·
terísticas precisas desse processo: a saber, durante muito tempo,
a um processo divergente de fusão, que segue principalmente li·
nhas internas a cada fração (concentração e centralização relati·
vamente estanques), e por um avanço, confirmado após a crise
de 1929, da centralização bancária sobre a concentração 1indus·
trial 15 • Ainda hoje encontram·se três grandes bancos franceses
entre os 10 maiores bancos mundiais não-americanos (BNP em
4. º lugar, Crédit Lyonnais em 5. º lugar e Société Générale em
10. º lugar), ao passo que, entre as maiores firmas industriais não-
americanas, a primeira firma francesa, a Renault, só se classifi-
ca em 18. 0 lugar, a segunda, a Rhône-Poulenc, em 27.º e a tercei·
ra, La Compagnie Française des Pétroles, em 32. º lugar.
Assiste-se, pois, nestes últimos anos, a uma aceleração do
processo de fusão, o grau de concentração da indústria francesa
permanecendo entretanto mais fraco do que aquele, na CEE, das
indústrias britânica, alemã, holandesa, e_ mesmo belga. Essa ace-
leração é feita, desta vez, sob a égide do capital monopolista in·
dustrial (ver o 5. 0 e sobretudo o 6. 0 Plano), em uma economia
onde o capital monopolista bancário ainda retém, apesar da evo·
lução de grupos como Suez ou o Banque de Paris et des Pays-Bas,
um caráter especulativo marcante: o papel todo particular na
França da especulação im9biliária não pode ser principalmente
.compreendido sem essa estratégia do capital monopolista bancá-
rio. Isso explica aliás, se bem que a França tenha entrado na
fase atual do capitalismo monopolista sob o efeito da internacio-
nalização das relações capitalistas, e sob a égide do capital mo-
nopolista industrial, por que a tendência para a "produção inte-
grada" permanece ainda menos avançada do que em outras me-
trópoles imperialistas: apesar das mudanças significativas, as ope·
rações de carteira, os holdings clássicos, e as simples tomadas de

15 J. Houssiaux, Le Pouvoir du monopole, essai sur les structures in-


dustrielles du capitalisme contemporain, 1958; B. Gille, La Concentratio11
économique, em La France et les Français, La Pléiade, 1972 etc.
146 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

participação entre grupos de atividades muito diferentes perma-


necem ainda muito importantes 16 •

Essas contradições econômlcas conduzem, segundo as forma-


ções concretas e os momentos do processo, a lutas intensas entre·
o capital monopolista industrial ~ o capital monopolista bancário.
lutas centradas em torno da hegemonia política: é sobretudo evi-
dente que o gaullismo e as evoluções do regime na França, in-
clusive sob Pompidou, não podem se,r explicados sem uma refe-
rência tanto ao .capital monopolista como à sua hegemonia, à luta
intensa, no seio da hegemonia política, entre essas frações do ca-
pital monopolista.
As observações acima vale~m pois, igualmente, para a fase
atual do imperialismo e do capitalismo monopolista: mesmo que
o estádio capitalista não implique necessariamente uma dominân-
cia e hegemonia do capital monopolista bancário, a fase atual não
implica necessariamente uma dominância e hegemonia do capital
monopolista industrial. As tran:sf ormações que se constataram, a
propósito dessa fase, nas relações de produção e na divisão social
do trabalho, não circunscrevem absolutame.nte uma diferenciação,
nesse sentido, dessa fase em relação às precedentes, diferenciação
esta que consistiria na permutação necessária da dominância e
da hegemonia em direção ao capital monopolista industrial.

Finalmente: as contradições para a repartição da mais-valia


no seio do capital monopolista fazem igualmente entrar em jogo
o capital comercial. Se bem que este capital apresente uma ten~
dência marcante a ser subord]inado aos monopólios industriais,.
que freqüentemente têm seus próprios canais de distribuição,,
pode-se igualmente observar que~ ele é afetado por .um ciclo pró-
prio de concentração (monopólios de distribuição, cadeias de
grandes magazines etc.) : ciclo que reproduz, no seio do capital
financeiro, as contradições entre capital industrial, capital ban-
cário e capital comercial. Pode-·se, no entanto, no caso deste úl-
timo, adiantar uma proposição geral concernente ao estádio im-
perialista e, em particular, sua fase atual: a lei da baixa tenden-
cial da taxa de lucro que afeta o conjunto do capital social. e a
autonomização do capital industrial em relação ao capital come,r-
cial, dado o lugar monopolista do primeiro sobre o mercado,

l6 Y. Morvan, op. cit., p. 169,, e sobretudo J. Bouvier, Un siecle ele


banque française, op. cit.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 147

conduzem a uma subordinação característica do capital comercial


no processo do capital financeiro. Se o capital comercial inter-
vém, assim, nas contradições intermonopolistas, ele não pode
deter nem a égide econômica, nem a hegemonia política. Ele
quase só deteve esse papel em certos casos de transição para o
,capitalismo, mais raramente ainda em certos casos e momentos
do capitalismo competitivo.

II

As contradições intermonopolistas no se10 da burguesia mo-


-nopolista referem-se igualmente:
a) às contradições dos monopólios industriais entre si. Elas
remontam primeiramente à concorrência para a conquista e· o
controle dos mercados, na medida em que o monopolismo não
:suprime a concorrência comercial, e não se trata jamais de uma
,divisão monopolista perfeita do mercado. Mas essas contradições
assumem igualmente outras formas: lutas pelos financiamentos
públicos e pelo sustento do Estado; pela absorção do médio capi-
tal e a associação de capitais individuais; pelos investimentos
nos setores e ramos mais rentáveis; pelo acesso às inovações
tecnológicas etc. ;
b) às contradições dos monopólios bancários entre si: lutas
pelo controle do mercado financeiro, pela rotação mais rá-
pida e mais rentável do capital-dinheiro que eles detêm, pela
obtenção da maior parte do bolo na especulação financeira e mo-
netária etc.;
c) enfim, às contradições que atravessam os diversos capi-
tais reunidos e concentrados sob diversas farmas, formas que im-
plicam, freqüentemente, diversos graus de propriedade e·conômica
desigualmente repartidos entre si, e diversos poderes relativamen-
te dissociados sob direção única. Em outras palavras - nunca
insistiremos bastante sobre isso -, as contradições do capital
monopolista não se ·manifestam somente como contradições "in-
termonopolistas", isto é, como contradições dos monopólios, apre-
endidos como entidades integradas, entre si, mas atravessam
igualmente cada monopólio. Ísso é particularmente nítido no caso
dos grupos financeiros propriamente ditos, que, constituindo um
momento adiantado de "reunião" do capital industrial e do capi-
148 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tal bancário, reproduzem ao mesmo tempo, em seu próprio sew,


as contradições dos capitais assim reunidos.

Observa-se então, nitidamente, por essas análises, que o ca-·


pital monopolista, forma de existência "autônoma" do capital no
processo do capital financeiro, não é uma fração da burguesia
da mesma qualidade do que aquelas do capital industrial no sen-
tido estrito do ca ital bancário e· do ca ital comercial. A dif e-
rença decisiva que aqui nos importa é, principalmente, que se
----.. trata de uma fração da classe capitalista (capital monopolista)
atravessada por contradições e fissuras muito mais graves do qu~
a uelas ue atravessam cada. uma dessas outras frações, na me-
did recisamente em ue o ca ital mono olista reproduz em seu
ró rio seio as contradi ões dessas frações entre si: conclusão que
é da maior im ortância ara o exame· do a el atual do Estado.
Tanto mais que essas próprias contradições só podem ser
apreendidas levando-se em conta a dependência complexa da bur-
guesia interior em relação ao capital impe·rialista dominante e a
reprodução induzida de suas contradições em seu seio. A inter-
nacionalização das relações capitalistas dá lugar a toda urna série
de oposições estratégicas no seio da burguesia interior das metró-
poles, que aliás não destacam forçosamente os graus de depen-
dência de seus componentes em . relação ao capital impe-rialista
dominante: principalmente a oposição entre capital monopolista.
na estratégia de expansão internacional e capital monopolista na
estratégia de expansão limitada no campo da e·conomia nacio-
nal, oposição que adquiriu sob o gaullismo uma importância de-
cisiva. Acontece, aind~, e é o que nos interessa aqui. gue o ca-,
pital monopolista na estratégia de expansão internacional pod~
freqüentemente ser aquele cujas contradições com o capital im-
P-erialista dominante são as mais intensas.

4. As Contradições entre Capital Monopolista e Capital


Não-Monopolista

Essas contradições no próprio seio do capital monopolista se


juntam, no estádio do capitalismo monopolista, e segundo suas
fases, às contradições, no seio da burguesia enquanto classe, en-
tre capital monopolista, de um lado, e capital não-monopolista,
de outro.
As CoNTRADIÇÕEs ATUAIS DA BURGUESIA 149·'

É necessário, antes de tudo, explicar os termos que emprego,.


de preferência àqueles, tradicionais, como grande e médio capi-
tal. Esses termos grande e médio capital, que têm um valor des--
critivo quando remontam a análises rigorosas do capitalismo mo-·
nopolistá, podem, entretanto, dada sua imprecisão, e como se·
constata atualmente, encobrir erros políticos graves.
Esses termos, da ordem de "grandeza", podem de fato ser·
apreendidos como remontando a critérios empíricos diretamente
visíveis e mensuráveis, tais como o "porte" da empresa, o número·
de operários empregados etc., que só constituem efeitos e indí-
cios relativos da diferenciação entre capital monopolista e capi--
tal não-monopolista. Mas ainda mais grave: quando parecem
indicar uma escala graduada e homogênea na ordem de reparti~
ção dos diversos capitais, e mesmo num processo de reprodução
e de valorização do capital unilinear e contínuo, eles podem con- ·
<luzir a análises contraditórias, e também falsas, tanto um~s.
quanto outras;
a) de um lado, atenuar as linhas de demarcação, e as con-·
tradições específicas, entre capital monopolista e capital não-mo-
nopolista, e isso, supondo uma linha de passagem progressiva e·
uniforme entre os diversos componentes do capital. Dá,se crédito,
assim, à imagem-mito de uma burguesia como totalidade inte-.
grada, organizada em escalões contínuos; até o limite, conceben-
do o proce·sso de reprodução como espaço e temporalidade homo-
gêneos, tentaremos negar todo um estatuto científico aos concei--
tos de capital m·onopolista e de capital não-monopolista. Reserva-
ríamos apenas, para a burguesia no estádio monc:>polista, uma aná-
lise abstrata em termos de capital industrial ·e capital bancário, o
capital financeiro designando abstratamente sua ~'reunião", conce-
bida como processo uniforme e contínuo. Nesse contexto, aliás,
o próprio emprego dos termos grande e médio capital torna-se·
supérfluo;
b) por outro lado, atenuar, desta vez, as linhas de demar--
cação de classe entre o capital, a burguesia, de um lado, e a
pequena produção manufatureira e artesanal, a pequena-burgue-
sia, de outro. Isso se faz pela introdução sub-reptícia, nessa es·-
cala de grande·za, do termo pequeno capital, encobrindo a peque··
na-burguesia. Conservamos o termo grande capital a fim de de-
si~nar o capital monopolista, ao qual se limita de fato a burgue--
150 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

sia, e empregamos o termo camadas não-monopolistas incluindo


aí, em uma linha de continuidade, o "médio capital" - o resto
.da burguesia - e o "pequeno capital" - a pequena-burgue-
sia -, e de-ixando entender que tudo o que não é "grande ca-
pital" não pertence mais à burguesia. Supomos, assim, que o
médio capital tenha, em face do grande, o mesmo tipo de con-
tradições que a pequena-burguesia em face· da burguesia; ele
apresentaria então as mesmas possibilidades· de aliança com a
classe operária do que, a pequena-burguesia: teremos reconheci-
do, então, a atual linha política do PCF quanto à aliança antimo-
nopolista. Mas encontramos essa_ confusão teórica também em
outros autores, como A. Granou, por exemplo, que não hesitam
em separar expressamente a "média burguesia" da burguesia como
tal, em expressões como: "A burguesia deve ser garantida pelo
sustento sem reserva do conjunto das camadas da pequena e mé-
dia burguesia 17 " etc. ,Acredita-se, assim, no mito de uma unidade
das "pequenas e médias empresas" (PME) que só é de fato um
meio pelo qual o capital não-monopolista se subordina à peque-
na-burguesia apoiando-se sobre ela em sua luta contra o capital
monopolista, e criando-lhe a ilusão de uma comunidade de inte-
resses: só lembraremos aqui que o "sindicato" das PME reüne na
França "empresas" que possuem entre O e 300 assalariados 18 •
Em suma, o emprego de termos que dizem respeito a uma
escala graduada e uniforme pode tanto disfarçar a delimitação,
no seio da burguesia, entre capital monopolista e capital não-mo-
nopolista, como apagar a barreira de classe entre capital como
tal e pequena-burguesia, com referência ao termo pequeno
capital.
Isso pode, na mesma linha teórica, ir ainda mais além: dei-
xa-se entende·r que as contradições, no próprio seio da burguesia,
de um lado e de outro da linha de demarcação entre capital mo-
nopolista e capital não-monopolista, destacam conjuntos definidos
na ordem relativa de sua grandeza e de seu porte. Nada impe-
diria de fato, neste sentido, delimitar contradições entre grandes

17' Les Temps modernes, ja.1eiro de 1973, p. 1.215.


1.s P. Bleto:i., Le capitalisme française, 1966, p. 84. Vê-se bem aqui
que a identificação capital não-monopolista/pequena-burguesia (PME), que,
no caso da "estratégia antimonopolista", dá lugar a um oportunismo de
direita, pode também dar lugar a um oportunismo de esquerda: essa
iidentifiéação pode levar a considerar, sob o termo pequeno capital, a
pequena-burguesia como fazendo parte do capital não-monopolista (bur-
guesia) e excluir, assim, a priori, as possibilidades de aliança com as
forças populares que, segundo as conjunturas, ela pode apresentar.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 151

e pequenos monopólios ou, no seio do capital não-monopolista


entre empresas definidas segundo seus portes e grandezas respec-
tivas.

Quanto à distinção entre capital monopolista e capital não-


monopolista:

1. O movimento de concentração e de centralização do ca-


pital implica um processo constante. Segue-se que os limites entre· ..
capital monopolista e capital não-monopolista são variáveis e re-
lativos. Dependem da fase do capitalismo monopolista· e de suas
formas concretas - por ramos, por setores etc. - em uma for-
mação social. Com efeito, o capital não-monopolista depende do
estádio do capitalismo competitivo, mas de tal forma que ele
continue a funcionar em uma formação dominada pelo capitalis-
n10 monopolista: esse funcionamento é ele próprio transformado,
em função precisamente da dominação do capitalismo monopo-
lista. Não se trata de uma simples "coabitação" de dois setore·s
estanques. Os critérios de delimitação do capital não-monopolista
situam-se sempre em relação ao capital monopolista e às suas
características próprias em uma fase determinada: esses critérios
não são critérios intrínsecos de um capitalismo competitivo tal
como pôde funcionar antes do domínio do capitalismo mono-
polista.
Assim, para retomar alguns exemplos da série de indícios-
ef eitos que já foram acima assinalados, na análise da concentra-
ção do capital: a composição orgânica do capital é se:nsivelmente
menos elevada no caso do capital não-monopolista, não apresen-
tando este de forma nítida o deslocamento da dominante em di-
reção à exploração intensiva do trabalho (mais-valia relativa).
Mas, na medida precisamente em que a reprodução do capital
não-monopolista se situa no contexto geral do capitalismo mo-
nopolista, não seria necessário crer que este capital permaneça
ainda à imagem daquilo que ele foi no estádio do capitalismo
competitivo: se surgem diferenças, nesse sentido, em relação ao
capital monopolista, não é menos verdade que a exploração in-
tensiva do trabalho pela alta da produtividade do trabalho e pelas
inovações tecnológicas afete igualmente o ca.pital não-monopolis-
ta. Ou ainda: o capital não-monopolista não sendo bem sucedido
quanto à e·xtensão de sua propriedade econômica sobre a socia-
lização do processo do trabalho, suas unidades de produção ficam
152 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

freqüentemente limitadas a um só ramo. Mas isso não é geral,


pois essa socialização atinge com freqüência esse próprio capital,.
que pode estender-se por vezes sobre. vários ramos. Enfim: o ca-·
pital não-monopolista não apresenta o tipo de r·eunião do capital
industrial e do capital-dinheiro característico do capital monopo-
lista. Pode ainda suceder que o capital industrial não se apresente
de forma estanque, com a forma jurídica da sociedade por ações
se estendendo principalmente ao próprio capital não-monopolista.
2. A base da diferenciação entre capital monopolista e ca-
l
pital não-monopolista reside nas relações de produção específicas.
que, em sua a.rticulação ao processo de trabalho, caracterizam
esses dois conjuntos do capital. No campo, mais particularmente,.
do capital produtivo, mesmo enquanto cresça, no conjunto da
formação social, a interdependência dos processos de trabalho, o
capital não-monopolista não chega a estender sua integração sob
uma mesma propriedade econôi:nica, limitando-se sua unidade de
produção, em geral, a um processo de trabalho determinado, ou
a uma série de processos circunscritos. As .,relações de proprieda-
de econômica e de posse não apresentam o tipo de dissociações.
próprio do capital m.onopolista: propriedade econômica e posse
recobrem-se estreitamente. A própria propriedade jurídica enco-
bre, mais freqüentemente, a propriedade econômica. Esses traços.
tornam-se pertinentes, quando considerados em relação aos tra-
ços distintivos do capital monopolista: não devem ser apr·eendi-
dos a partir da imagem do empresário individual do período do
capitalismo competitivo.

II

As relações e as contradições entre capital monopolista e


capital nã.o-monopolista dependem assim das fases que o capita-
lismo monopolista atravessa, nas suas formas concretas no se~o
das formações sociais: estão estreitámente solidárias com as for-
mas assumidas pelos efeitos contraditórios de dissolução-conser-
vação, que a dominação do capitalismo monopolista impõe ao
capitalismo competitivo, e mesmo ao capital não-monopolista. Du-
rante as fases de transição e de consolidação, os efeitos de con-
servação predominavam sobre os efeitos de dissolução, ao passo
que, na fase atual, o peso se desloca nitidamente em direção aos
efeitos de dissolução. : •.
As CoNTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 153

Ora a dominância dos efeitos de dissolução na fase atual


não signÍJica a eliminação radical do .capital não-m?nopolista pe!a
a absorção e assimilação pura e szmples no capztal monopolzs-
su . . . 1d
ta: essa dissolução não segue o cammho prmc1pa e uma ex~ro-
priação formal do cal?ital não-.monoi:olis:_a. Pode~se formular isso
dizendo que esses efeitos de d1ssoluçao sao perfeitamente compa-
tíveis nã~ somente com a "manutenção" de um setor "transfor-
madd" do capital não-monopolista - efeitos secundários de con-
servação - mas também com uma reprodução, sob nova forma,
desse setor. A superacumulação global do capital pelo capital
monopolista, e seu papel dominante na valorização do capital,
mantêm uma margem de acumulação própria ao capital não-mo-
nopolista. Isso se exprime, aliás, entre· outros aspectos, pelo fato
de que numerosas empresas do capital não-monopolista apresen-
tam uma taxa de lucro elevada, por vezes mesmo mais elevada
do que aquela do capital monopolista: ainda que as desigualda-
des da taxa de. lucro, concomitantemente entre essas empresas e
o tempo, sejam muito mais marcantes do que no caso do capital
monopolista 19 •

Isso se prende, primeiramente, a uma série de· razões econô-


micas que demonstram a utilidade, para o capital monopolista
a) da manutenção e b) da reprodução de um setor limitado de
capital não-monopolista:
1) esse capital não-monopolista é útil: ele ocupa setores de
fraca rentabilidade· em um dado período e permite ao capital
monopolista escolher o momento de sua extensão, em razão da
seletividade que é obrigado a aplicar em seu investimento, em
um contexto de baixa tendencial da taxa de lucro e de desigual-
dades na tendência à perequação das taxas de -lucro;
2) o capital monopolista deixa freqüentemente ao capital
não-monopolista a possibilidade de explorar novos setores de pro-
dução; ele só intervém minimizando os riscos: foi, numa certa
medida, o caso para a eletrônica e a informática nos Estados
Unidos e no Japão;
3) o capital não-monopolista permite ao capital monopolis-
ta recuperar, com os menores custos, as inovações tecnológicas;
este não tem de financiá-las em sua totalidade: várias inovações
originam-se de fato do capital não-monopolista, inovações que
este capital não pode colocar em aplicação, mas libera, sob forma
l9 J. Parent, La Concentration industriellé; 1970, pp. 172 1q.
154 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

de concessões, ao capital monopolista. O caso clássico é aquele


da United Steel, gigante que domina a metalurgia nos Estados
Unidos, que quase não produziu inovações nesse ramo, mas apro-
veitou as inovações das pequenas firmas;
4) o capital não-monopolista é igualmente útil, em razão
das disparidades do mercado de trabalho .e de sua fraca produ-
tividade de trabalho, porque drena e recupera, numa primeira
etapa, os trabalhadores pouco qualificados provenientes do êxodo
rural ou da proletarização da pequena-burguesia tradicional. Nes-
se caso, o capital não-monopolista funciona como reserva no pro-
cesso de submissão das forças de trabalho ao capital monopolista.
·,/ 5) o capital não-monopolista é útil, finalmente, e em par-
i ticular, no âmbito da produção integrada, naquilo que· tange aos,!
· trabalhos secundários que não se enquadram no fluxo contínuo !.
.de grande série das unidades de produção complexas: é o caso, !
.:por exemplo, dos "acessórios" da produção automobilística; i
J 6) encontram-se aqui, em último lugar, razões dependen-
tes da fixação dos preços: os custos de produção sendo em geral
mais elevados para o capital não-monopolista, em razão da pro-
dutividade mais fraca do trabalho, pode então o capital mono-
polista fixar seus preços monopo1ísticos referindo-se àqueles do
capital não-monopolista, disfarçando assim seus sobrelucros.

Esses exemplos satisfazem amplamente. Seria necessário, no


entanto, lembrar que, afora os casos em que· a manutenção do
capital não-monopolista é vantajosa para o capital monopolista,
a persistência daquele se prende igualmente ao fato de que o ca-
pitalismo competitivo se reproduz constantemente sob a domina-
ção deste: assiste-se a um processo de ressurgência constante e
"espontânea" de novos capitais não-mon.qpoJisiãs-;--pãrãlezãmenle
à dissolução permanente dos antigos. Trata-se de dois estádios -
capitalismo competitivo, capitalismo monopolista - de um mes-
mo modo de produ_ção -- capitalista. Os efeitos de dissolução de
um dos estádios sobre o outro não se manifestam do mesmo
modo que numa periodização de modos de produção diferentes:
esse capital não-monopolista não é uma simple·s forma mantida
ou conservada, como no caso das formas feudais no seio do ca-
pitalismo, mas uma forma reproduzida sob a dominação do capi-
talismo monopolista. Isso faz com que os setores marcados por
uma reprodução característica do capital não-monopolista, esp~­
cialmente onde o número das empresas não-monopolistas novas
ultrapassa aquele das empresas da mesma natureza que são eli-
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 155

minadas, tenha freqüentemente· um ritmo elevado de expansão:


na França, a borracha e as matérias plásticas, a constn1ção elé-
trica etc. Para completar, nada mais falso do que a análise que,
a exemplo da falsa imagem da "sociedade dualista" dos países
dependentes, é com freqüência feita atualmente da sociedade fran-
cesa, aquela dos "dois setores": um setor "atrasado", "retrógra-
do", "tradicional" etc. (PME), de um lado, um setor "m:odemo"
e de "vanguarda", do outro (o setor monopolista). De fato, estes
últimos pertence·m à mesma estrutura de reprodução ampliada
do capital monopolista.

Não é 'verdade que essas razões não bastem absolutamente,


a elas somente, para explicar nem a persistência atual do capital
não--monopolista, nem o fato de que· os efeitos de dissolução si-
gam, sobretudo atualmente, caminhos indiretos de dependência
desse capital em relação ao capital monopolista, e não os cami-
nhos diretos de uma absorção e liquidação pura e simples. De
fato, os ritmos e as formas concretas do processo de concentra-
ção dependem estreitamente das lutas políticas na f armação social
e, especialmente, das formas que aí assume a contradição prin-
cipal.
Quando se considera a história das relações entre capital
monopolista e capital não-monopolista nas metrópoles imperialis-
tas, constata-se que, em face da emergência das lutas das Jnassas
populares e da resistência do capital não-monopolista contra o
capital monopolista, este último foi levado, para evitar fissuras
graves no ,bloco no poder em face das classes dominadas, a uma
estratégia seletiva de formas indiretas de subordinação do capital
não-monopolista: estratégia que tentou limitar os de·sníveis polí-
tico-ideológicos. As formas atuais de dependência contrastam de
fato, como observam com muito acerto Sweezy e Baran 20 , com
as formas de absorção e liquidação "selvagem" do capital não-
monopolista, características sobretudo da primeira fase do capi-
talismo monopolista, formas que fizeram crer numa eliminação
pura e simples, a curto prazo, do capital não-monopolista. Essas
modificações de estratégia, cuja legislação antitruste, nos Estados
Unidos, só constitui um dos aspectos, devem ser interpretadas
como concessões, no próprio seio do bloco no poder, do capital
monopolista ao capital não-monopolista, cuja realidade, longe
:-.---
120 Le Capitalisme monopoliste, op. cit., p. 62.
156 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

certamente de corresponder à sua apresentação ideológica, é


inegável.
Todavia, é necessário ,entender a dimensão principal desses
compromissos estratégicos que não devem ser apreendidos abstrata-
mente, e de modo estático, mas precisamente no contexto geral
da concentração do capital. Assim, eles não significam, é claro,
nem "paradas bruscas" ou "retrocessos" efetivos no processo de
fusão do capital, nem, no sentido corrente e estático, medidas
positivas "em favor" do capital não-monopolista: não represen-
tam medidas reais de preservação da autonomia econômico-polí-
tica do capital não-monopolista, em face do capital monopolista.
Referem-se, essencialmente, ao ritmo (acelerações, diminuições de
intensidade, "pausas" provisórias) e às formas, e em síntese ao
porte do processo de concentração 21 , tendo igualmente e.feitos
sobre a repartição da mais-valia global - a distribuição do bolo
- entre capital monopolista e capital não-monopolista. Por
exemplo, mais do que elimiilações ou absorções puras e· simples,
um ritmo mais lento e mais regulado do processo de concentra-
ção, das formas de dependência, se eles não são "positivos" no
sentido estrito para o capital não-monopolista (pois não podem
ser medidos no abstrato e a concentração tem sempre lugar),
constituem no entanto, freqüentemente, concessões do capital
monopolista ao capital não-monopolista. Eles são positivos no
contexto da relação de força, no sentido em que o processo de
concentração não ,é, para o capital não-monopolista, tão nega-
tivo, como teriam sido com tais compromissos.
Encontra-se um exemplo característico dessa estratégia, esta-
belecida por intermédio do Estado como fator decisivo de organi-
zação da hegemonia, nas discussões preparatórias ao estabeleci-
mento do 6. º Plano. O grande capital monopolista "modernista"
do CNPF *, que domina a Comissão produtora do 6. º Plano, pre-
conizara um ritmo de expansão e de crescimento à "japonesa",
em torno de 7,5 a 8o/o por ano. Uma das conseqüências disso,
como iustamente sublinha M. Bosouet. foi o "fechamento de mi-
lhares - de empresas pequenas e -médias", correspondendo essas
proposições, por outro lado, a uma ofensiva do ca!)ital monopo-
lista contra o capital não-monopolista. Ora, o Estado só manteve
Lembro que a concentração e a centralização do capital não
:2 1
podem absolutamente ser apreendidas, na realidade histórica, como um
processo gradual, unilinear e homogêneo. Esse processo pode mesmo, ,iu-
rante períodos em geral breves, apresentar recuos relativos.
* CNPF: Comité National des Patrom1ts Français (Comitê Nacio-
nal dos Patronatos Franceses). (N. do T.)
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 157

um ritmo de crescimento de cerca de 6o/o ao ano: a razão disso


não foi somente um temor das reações da classe operária, em
face dos efeitos negativos que o ritmo preconizado lhe teria pro-
vocado; ela deve ser igualmente procurada em um compromisso
relativo às pequenas e médias e·mpresas, relativo, em suma, ao
,capital não-monopolista. Sabe-se que o- debate foi particularmen-
te vivo, nesse sentido, entre o CNPF e as PME 22 • Mas isso não
significa absolutamente que a desintegração do capital não-mo-
nopolista tenha sido "detida" pelo 6. º Plano, bem ao contrário!
Essas observações são essenciais para apreender o traçado
concreto do processo de concentração segundo as fases do capi-
1

talismo monopolista e as formações sociais concretas, e, assim,


as relações precisas entre as diversas frações da burguesia. Ê prin-
cipalmente falso que todas as formas de persistência e de manu-
tenção do capital não-monopolista sejam exclusivamente explicá-
-veis pelo fato de que elas se enquadrariam perfeitamente nos
interesses econômicos momentâneos do capital monopolista, ou
.que elas só existiriam na medida exata em que elas seriam eco-
nomicamente úteis ao capital monopolista: isso equivaleria a ir
diretamente no sentido dos economistas burgueses, que levam em
:eonta essa persistência referindo-se· aos "limites técnico-econômi-
.ços" intrínsecos ao proG.esso de concentração. Não se pode esque-
cer que se trata sempre de uma relação política de forças do
próprio seio da burguesia, em face da luta da classe operária
(contradição principal). As modalidades e o ritmo do processo
de concentração, manifestos nas formas de· persistência do capi-
tal não~monopolista, são freqüentemente, no entanto, medidas
estratégicas que serve·m ao interesse político do capital mono-
polista, assegurando-lhe a hegemonia política sobre o conjunto
da burguesia, e mantendo a coesão política do bloco no poder
em face da classe operária. E, entre outros aspectos, essa relação
'C}Ue explica igualmente as defasagens, da ordem do "avanço" ou
do "atraso" do processo de concentração, nas diversas formações
sociais. O atraso da França, durante muito tempo, nesse sentido,
:não pode ser inteiramente e·xplicado pelas fraquezas "econômicas
·estruturais" do capitalismo francês: ou, melhor, o que é apreen-
dido como "fraqueza" do capital monopolista francês não é um
·seu caráter intrínseco, mas situa-se precisamente e·m uma relação
.de força. Essa fraqueza remonta ao tipo particular de compro-
misso que o capital monopolista francês foi obrigado a passar,
prendendo-se, por razões políticas, à luta da classe operária com
22 M. Bosquet, Critique tiu capitalisme quotidien, 1973, pp. 122 sq.
158 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

o capital não-monopolista, mas também, até estes últimos anos~


com a pequena-burguesia.
Essas observações nos conduzem a aprofundar a questão das
relações entre capital monopolista e capital não-monopolista na
fase atual, onde os efeitos de dissolução sobre este último pre-
dominam sobre os efeitos de conservação. Esses efeitos de disso-
lução realizam-se atualmente, em essência, e sempre paralela-
mente às formas de absorção jurídica pela expropriação formal
- falências - pelas formas indiretas e múltiplas de dependência
do capital não-monopolista em relação ao capital monopolista.
Sob a forma, freqüente·mente, de uma manutenção da proprie-
dade jurídica autônoma do capital não-monopolista, são os, ou
alguns dos, poderes dependentes de sua propriedade econômica
que são açambarcados pelo capital monopolista: é principalmente
o caso de numerosas subcontratações, o capital não-monopolista
não detendo aí poucos poderes próprios quanto ao emprego dos
meios de trabalho e à destinação dos recursos de sua empresa.
Isso vai ainda mais além, quando levamos em conta a socia-
lização dos próprios processos de trabalho e a direção e o .domí-
nio do conjunto desses processos pelo capital monopolista na
fase atual: um dos efeitos dessa situação - consiste, como vimos,
na produção integrada e na constituição de unidades de produção
complexas sob a propriedade e posse do grande capital. Mas as no-
vas formas de divisão social do trabalho não se limitam de nenhu-
ma forma ao interior das fronteiras dessas unidades. De fato, além
do que· se passa com a propriedade econômica, constata-se atual-
mente que a dir~ção e o próprio domínio do processo de traba-
lho que se desenvolve numa "empresa" de capital não-monopo-
lista escapa. progressivamente·, a este último, em proveito do ca-
pital monopolista. Assiste-se a um deslocamento dos poderes, ou
de alguns dentre eles, decorrentes da posse, em direção ao capi-
tal monopolista. Isso segue vários caminhos: padronização dos
produtps de base e das normas da organização do trabalho im-
postas ao conjunto dos processos de trabalho pelo capital mono-
polista; dependência tecnológica (patentes e licenças) do capital
não-monopolista em relação ao capital monopolista; submissão do
capital não-monopolista a uma divisão social do trabalho que o
isola, em uma boa parte, nos setores de fraca produtividade e
tecnologia inferior etc. Inútil, aliás, insistir no fato de que as
fracas margens de autofinanciamento do capital não-monopolista
o tornem, no contexto geral de uma necessária rotação rápida
do capital, particularmente dependente do capital-dinheiro e de
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 159

sua centralização, pe1os controles leoninos que· os grandes bancos


lhe impõem a fim de conceder seus créditos.
Esses desenvolviinentos só podem ser apreendidos, em toda
a sua amplitude, levando-se· em conta a tendência atual à reab-
sorção das dissociações entre propriedade econômica e posse, de
um lado, e os poderes decorrentes da propriedade· econômica, de
outro. A despossessão atual do capital não-monopolista do domí-
nio e da direção de seus processos de trabalho conduz diretamen-
te à concentração da propriedade econômica nas mãos do capital
monopolista. De tal maneira que, por detrás da fachada jurídica
ou da fachada da manutenção de propriedades econômicas autô-
nomas do capital não-monopolista, as próprias fronteiras de suas
"empresas", de suas unidades de produção, são progressivamente
Jissolvidas. Pode-se, de fato, no caso de numerosas empresas de
capital não-monopolista, falar de unidades de produção depen-
dentes: se elas se distinguem, certamente, das unidades de pro-
dução elementares que fazem parte de uma unidade de produção
complexa, elas constituem doravante apenas unidadés autônomas
do empresário individual, do estádio competitivo tal como ele
funcionava ainda nas fases precedentes do capital monopolista 23 ~

III

Quando precisamente levamos em conta esses dois aspectos:


do processo, ao mesmo tempo da dependência característica do
capital não-monopolista em relação ao capital monopolista, e a
estratégia deste (que consiste em evitar a eliminação brutal do
primeiro) . é que podemos destacar suas relações na fase atual
do capitalismo monopolista. Esta fase reproduz, em uma escala
ampliada, as contradições entre capital monopolista e capital
não-monopolista: o que mais nos interessa, porém, é apreender
as formas atuais dessas contradições.
Com efeito, durante as fases de transição e de consolidação
do capitalismo monopolista, essas contradições assumiram formas
particularmente agudas, que se expressaram, na cena política, por
fissuras profundas ho bloco no poder, e por graves crises políti-
cas. O capital não-monopolista, servindo-se indiretamente de seus
partidos políticos e das formas de Estado e de regime de então,
funcionou amiúde como força social autônoma, disputando passo•

23 Ver o quadro das pp. 142-3.


160 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

.a passo a dominação econômica, às formas abruptas e selvagens,


do capital monopolista. O capital não-monopolista detinha ainda
posições de força apreciáveis no domínio econômico, e ocupava
então, com freqüência, servindo-se indiretamente de suas organi-
zações políticas, o proscênio político; ele constituía a fração-rei-
nante (foi o caso na França até os primeiros anos do gaullismo),
.quando então o capital monopolista já havia conquistado a hege-
monia política real 24 • No contexto dessa luta intensa, capital
monopolista e capital não-monopolista procuraram sempre o apoio
.das classes populares a fim de contrariar os planos dos adver-
sários.
Mas as coisas não se apresentam mais da mesma forma. A
.~ubordinação e dependência complexa do capital não-monopolista
.em relação ao ·capital monopolista é, atualmente, largamente cum._
.flrida na~ metrópoles imperialistas. A própria reprodução d·e suás
.contradições situa-se doravante no interior dessa relação de su-
bordinação, pelo desenvolvimento e pela consolidação de múlti-
plas redes de dependência. Não somente· a produção e os proces-
sos de trabalho do capital não-monopolista se acham estreitamen-
te imbricados na produção monopolística, como também a grande
r.empresa se apresenta cada vez mais, para o capital não-monopolista,
como a última saída de socorro e de desencalhe. A passagem,
para o capital monopolista, da estratégia de eliminação à estra-
·tégia de dependência do capital não-monopolista indica pre-
cisamente que, se este último retém uma parte progressivamente
·limitada da mais-valia total (transferências de mais-valia em dire-
·ção ao capital monopolista), e se suas margens de acumulação
se limitam em face da superacumulação monopolista, então ele
·Capitulou diante do capital monopolista, no sentido de que, daí
·em diante, só intenta um combate para sua sobrevivência e tenta,
:assim, ajustar sua dependência para com o capital monopoUsta.
··O próprio fato de que toda crise· maior do capitalismo monopo-
-lista se reflete, doravante, direta e principalmente na "zona de
·segurança" que o capital monopolista soube criar a seu redor pela
manutenção de um setor de capital não-monopolista torna ainda

124 Para os conceitos de bloco no poder e de hegemonia, ver p. 99.


Por classe ou fração reinante, entendo a classe ou fração cujos membros
são em geral originários do contingei:ite político e dos "vértic~s" dos
:aparelhos de Estado e que, servindo-se indiretamente de suas organiza-
ções próprias, ocupa o proscênio político. A classe ou fração reinante,
·como o demonstrou Marx, pode ser diferente da classe ou fração hege-
mônica, aquela cujo Estado serve por excelência aos interesses. Analisei
1a:s questões em Pouvoir po/itique et Classes sociales.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 161

mais forte tal solidariedade de classe entre· eles. Em suma, f a-


lando de capital monopolista e de capital não-monopolista na
fase atual, é necessário cpnsiderá-los em ··suas novas relações de
interdependência orgânica. Isso não quer dizer, evidentemente,
que as contradições entre capital monopolista e capital não-mo-
nopolista estejam atualmente "ultrapassadas", bem ao contrário.
Isso quer dizer, simplesmente, que não se pode acreditar numa
expressão política dessas contradições sob forma de ruptura, do
lado de um capital não-monopolista - força social, da frente
política de classe.
Para entendermos bem essa solidariedade de classe que mar-
ca atualmente, mais do que nunca, as relações contraditórias
entre capital monopolista e capital não-monopolista, devemos le-
var em consideração a forma atual assumida pela contradição
principal, entre a burguesia no seu conjunto, de um lado, e, do
outro, a classe operária e as massas populares: uma das caracte-
rísticas principais da fase atual consiste na emergência das lutas
operárias e populares nas próprias metrópoles imperialistas. É
inteiramente observável, nesse sentido, que as lutas operárias se
refletem com freqüência mais duramente sobre o capital não-mo-
nopolista, por causa das suas fracas margens de acumulação e de
manobras no âmbito de sua dependência em relação ao capital
monopolista. De fato, quando consideramos a situação destes úl-
timos anos, sobretudo na França, constatamos claramente que
o capital não-monopolista apresentou resistências mais fortes às
concessões "arrancadas da grande luta" pela classe operária, do
que o capital monopolista: só mencionaremos as transações de
restabelecimento do SMIG * durante e após os acordos de Grenelle.
O capital monopolista tem a possibilidade de fazer repercutir
diretamente os aumentos. salariais sobre os preços, que ele fixa
de maneira monopolística, de compensá-los pelo a.umento da pro-
dução do trabalho etc., possibilidade que nem sempre possui, nem
no mesmo grau, o capital não-monopolista. Mais ainda: sabemos
perfeitamente que o grande patronato se abriga com freqüência,
em nome da solidariedade de classe, atrás das "dificuldades das
médias e pequenas empresas" em sua luta contra a classe operá-
ria, o que, sob os disfarces ideológicos, corresponde a fatos reais.
Não é um dos menores méritos da estratégia do capital monopo-
lista ter chegado a unir estreitamente a ele o capital não-mono-

* SMIG: Salaire Minimum Interorofrssio:inel Garanti - Garantia


de Salário Mínimo Interprofissional. (N. do T.)
1
162 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

polista, empregando-o, pelo seu recuo na "zona de segurança".


como uma tela de proteção e um amparo em sua luta contra a elas--
se operária, e fazendo repercutir_diretamente sobre esse capital os
efeitos das lutas da classe operária contra ele próprio, efeitos
que se encontram no coração das lutas atuais.
Isso não impede o capital monopolista, na sua contradição
com o capital não-monopolista, de jogar de alguma forma, em
conjunturas determinadas, a classe operária contra o capital não-
monopolista: uma das razões de certas concessões à classe ope--
rária para as quais o capital monopolista se mostra "compreen-
sivo" reside no fato de que precipitam a desintegração do capital
não-monopolista, não tendo este os mesmos meios de suportá-las
como teria o capital monopolista. Isso foi observado recentemen-
te _na França·, com a atitude da tendência "modernista e social".
do grande patronato do CNPF * (Ambroise Roux, Martin etc., e·
mesmo a política de Chaban-Delmas e de seus "conselheiros" so-
ciais) que contrasta com aquela dos PME 25 •

Todas essas análises demonstram assim um fato decisivo: a.


dependência acrescida do capital não-monopolista em relação ao
capital monopolista, e a transferência de uma parte crescente da
mais-valia global do primeiro ao segundo, não significam, abso-
lutamente, que o capital não-monopolista seja "explorado" pelo
capital monopolista, assim como já o deixavam entrever G. Mury
e M. Bouvier-Ajam na época em que se afirmava a estratégia da
aliança antimonopolista do PCP 26 : "Toda uma parte da burgue-
sia é rejeitada, diminuída, e mesmo explorada pela outra." Sus-
tentar isso é de fato reproduzir, na escala de uma formulação
social nacional, os erros de análise do tipo daquela de A. Em..:
manuel na escala internacional: análises que situam a- relação
de exploração mundial entre "nações ricas" e "nações proletá-
rias", o que implicaria que as burguesias dos países dependentec;;
fossem exploradas pelas burgu~sias das metrópoles imperialistas.
Essas duas análises conduzem ao mesmo resultado político: aqui,
em uma pretensa solidariedade de classe das massas populares
dos países dependentes com suas burguesias - "nações explora-

* CNPF: Comité National des Patronats Français - Comitê Na-


cional dos Patronatos Franceses. (N. do T.)
25 G. Martinet, Le Systeme Pompidou, 1973.
26 Les Classes sociales en France, 1963, t. I., p. 96 (Editio.1s So-
ciales). Esse livro, que não é encontrado atualmente, contém excelentes
análises.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 163

das" - contra as burguesias imperialistas, e lá, em uma pretensa


solidariedade de classe das massas populares dos países imperia-
listas com suas burgue-sias não-monopolistas - "burguesias explo-
radas" - contra o capital monopolista. Enquanto a exploração
só caracteriza, de fato, a relação do conjunto da burguesia com
a classe operária e as massas populares.

5. O Capital Não-Monopolista e a Pequena-Burguesia


Tradicional

Podemos assim ver bem que essas análises negam aquelas dos
PC ocidentais que, sob os termos "camadas não-monopolistas" ou
"pequeno capital", excluem o capital não-monopolista da burgue-
sia e da dominação econômico-política, identificando-o pratica-
mente à pequena-burguesia manufatureira, artesanal e comercial,
incluindo-o assim nas classes dominadas (camadas não-monopo-
listas). Podemos dizer agora que existe aqui uma diferença deci-
siva, que é· uma barreira de classe: a pequena-burguesia não é
uma burguesia menor do que as outras, não é simplesmente uma
burguesia, pois não explora, pelo menos principalmente, o traba-
lho assalariado. A diferença entre um artesão nas empresas arte-
sanais ou mesmo "semi-artesanais" e um pequeno patrão que ex-
plora 10 operários não é da mesma ordem daquela que existe
entre ele e um patrão que explora 20: existe aí uma barreira de
classe que não se poderia configurar como uma diferença de
"grandeza". Ignorá-la é cair em cheio no mito das "pequenas e
médias empresas". )
Isso tanto é verdade que o próprio tipo das contradições que
separam a pequena-burguesia do capital monopolista não é abso-
lutamente o mesmo que· aquele que separa o capital não-monopo-
lista do capital monopolista. O que se depreende das estatísticas,
que nesse sentido são bastante incompletas, é que, particular-
mente na fase atual, os efeitos de dissolução impostos pelo capital
monopolista à pequena-burguesia tradicional diferem de maneif:a
nítida dos efeitos impostos ao capital não-monopolista: no caso
da equena-burguesia tradicional, esses efeitos assumem as for-
m as de um processo ace era o e 1gu1 açao e e e 1mmaçao.

Assim, as estatísticas francesas, em geral baseadas no núme-


ro de operários empregados por uma "empresa", estabelecem uma
164 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

categoria geral de empresas que vão de O a 5 assalariados, aquela


que nos interessa em particular, e não fazem distinções mais pre-
cisas no seio dessa categoria. Através de diversas verificações.,
podemos dizer, no entanto, que é aí que se situa a pequena-bur-
guesia no sentido próprio, não sendo empregado nenhum assala-
riado, ou trabalho assalariado de forma especial, sendo ainda colo-
cada em uma situação transitória entre formas artesanais e for-
mas semi-artesanais. É precisamente essa categoria que, de maneira
muito mais importante e significativa do que as outras, é afetada
por efeitos de liquidação: para as empresas artesanais, de 1954 a
1966, 127. 500 dentre elas empregando menos de 5 assalariados,.
fecharam suas portas, ao passo que aumentava de 73. 000 unida-
des o número daquelas que empregavam ·entre 6 e 9 assalaria-
dos 27 • Isso se manifesta pela diminuição característica do núme-
ro absoluto das "pequenas empresas" dependentes da pequena-
burguesia em· relação a essa diminuição no caso do capital não-
monopolista: estatísticas por "setores" indicam que aquele que é
designado como reagrupando as atividades manufatureiras apre-
senta uma diminuição em números absolutos: entre 1962 e 1967,
na França, em torno de uma'média anual de 9. 000, enquanto nos
outros setores imediatamente seguintes se situam em torno de
800 a 1. 000 para o têxtil, madeira e móveis. Uma análise da per-
centagem dó total da população ativa empregada por estabeleci-
mentos (o que difere relativamente do cálculo por empresas) in-
dica que, entre 1954 e 1966, essa percentagem caiu de 6o/o para
4o/o para os estabelecimentos de O assalariado, de 130/o a 100/a
- para os estabelecimentos de 1 a 4 assalariados, permaneceu está-
vel ( em torno de 6%) para aqueles que empregam entre 5 e 95
assalariados, e aumentou para o restante 28 • Enfim, no setor "co-
mércio e serviços", constata-se, entre 1954 e 1968, uma diminuição
de 90. 000 dirigentes de empresas (trata-se essencialmente de em-
presas que não empregam nenhum assalariado).
pe fato, pode-se falar atualmente, a propósito dessa pequena-
burguesia, de um processo maciço de pauperização e de assalanzà-·
ção, enquanto as formas de dominação ão capital monopolista
-~obre o capital não-monopolista estão longe de assumtr formas.
semelhantes. J\1~s, mesmo no caso da pequena-burguesia, o ntmo
e as formas de sua submissão ao capital monopolista dependem

21 J. Chatain, "Concentration dans le secteur des métiers", em Eco-


nomie et Politique, outubro de 1970.
28 Morvan, op. cit., pp. 228 e 249.
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 165

do papel preciso do Estado na realização do "equilíbrio instável


dos compromissos": a recente lei Royer na França é exemplo disso.
Ainda mais, quanto às relações entr_e capital monopolista e
capital não-monopolista, isto é, no próprio seio da burguesia, a.
imagem esquemática de uma polarização interna radical entre
alguns gigantes monopolistas, de um lado, e uma massa de pe-
quenas empresas, do outro, não corresponde nem à realidade de
todas as metrópoles imperialistas, nem mesmo à realidade da
formação social francesa que, por razões históricas, comporta no
entanto um número apreciável de pequenas empresas. O capital
não-monopolista cobre de fato, segundo os ramos e setores, uma
gama dispersa que compreende um bom número de empresas d'
porte médio, igualmente afetadas também pelo processo de sua·.
dependência em relação ao capital monopolista. Finalmente, a
imagem de uma burguesia não-monopolista maciçamente polari--
zada por baixo está longe de corresponder à realidade.
Mas, também aqui, verifica-se o caráter falacioso do empre--
go de termos que evocam uma ordem de grandeza: no caso, prin--
cipalmente, da burguesia não-monopolista, a objeção às análises:
do capitalismo monopolista de Estado não pode limitar-se a res--
tringir simplesmente a parte da burguesia que deveria ser consi-
derada como efetivamente pauperizada. Não se pode deixar de·
dizer que, por exemplo, em lugar de considerar o conjunto do,.
capital não-monopolista como fazendo pé!.rte das ·classes domina--
das, só seria necessário considerar então a parte "menor" da bur--
guesia e incluir na classe dominante o "médio capital". O conjun--
to do ·capital não-monopolista situa-se do lado burguês da barreira
de classe: nada prova, aliás, que a intensidade das contradições
·do capital não-monopolista com o capital monopolista destaca,.
exatamente, no seio do capital não-monopolista, delimitações se--
gundo u,ma ordem de grandeza. Uma "pequena empresa" capita--
lista não tem, forçosamente, com o capital monopolista, mais:
contradições do que uma "média empresa" capitalista. O proces-so~
de liquidação e de eliminação não vigia somente o pequeno capi-
talista, mesmo que· a taxa de mortalidade pareça mais importante:
para as pequenas do que para as médias empresas capitalistas. De
fato, é essencialmente o pequeno comerciante e o pequeno artesão,
que nisso são afetados, e a barreira significativa a tal respeit~ ~
todos os elementos empíricos o demonstram - passa aqui entre·
o pequeno capitalista (o burguês), de um lado, e o pequeno bur-;...
• •
guê;. do outro.
166 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

6. As Contradições no Seio do Capital Não-Monopolista

As contradições atuais no seio do bloco no poder não se refe4

rem somente àquelas que existem no seio do capital monopolista,


ou àquelas do capital monopolista e do capital não-monopolista:
elas se estendem igualmente às contradições no próprio seio do
capital não-monopolista: por exemplo, contradições dos capitais
não-monopolistas industrial, bancário ou comercial, entre si.
Observa-se nesse contexto um fenômeno análogo, se bem que
numa outra dimensão, àquele que se pode descobrir nas relações
entre o capital imperialista dominante e as burguesias interiores,
e que releva da própria estrutura de dependência: as contradi-
ções· no seio do capital não-monopolista tendem, cada vez mais..
a reproduzir e repercutir em seu próprio local as contradições np
próprio seio do capital monopolista. Em outras palavras, as con-
tradições no seio do setor dependente, reproduzem, de forma es-
pecífica, as contradições do setor dominante. Partes do capital
não-monopolista, que não são absorvidas pelo capital monopolista,
são entretanto dependentes, muito freqüentemente, desta ou da-
quela firma monopolista, pelas subcontratações obrigatórias e,
freqüentemente, pelo seu próprio processo de trabalho. As con-
tradições dessas firmas monopolistas entre 'si repercutem-se então,
diretamente, pelas contradições entre firmas não-monopolistas de-
pendentes desta ou daquela firma monopolista, que se tornam
assim contradições induzidas e sobredeterminadas.
Isso produz freqüentemente efeitos contraditórios, que resul-
tam em uma extrapolação do capital não-monopolista em relação
ao capital monopolista, centro diretor da acumulação do capital,
a uma ruptura da homogeneidade do capital não-monopolista, em
face do capital monopolista e, enfim, a um recuo de sua resistên:
eia unitáriã em face -de·ste. A contradição do capital monopohstá
e do capital não-monopolista remonta diretamente a essa repro-
dução induzida das contradições próprias ao capital monopolista
no seio do capital não-monopolista. Uma firma não-monopolist~
é ao mesmo tempo solidária do capital não-monopolista em sua
contradição em face do capital monopolista, e do monopólio de
... .
que ela depende nas contradições deste com os outros (de que
dependem outras firmas não-monopolistas). Os efeitos de disso-
lução sobre o capital não-monopolista se manifestam finalmente
aqui por uma dissolução de sua unidade política na sua resistê1!-
1 . eia em face do capital monopolista, o que o impede precisament~
j de funçjonar. doravante, como' força social efetivp.. •
As CONTRADIÇÕES ATUAIS DA BURGUESIA 167

Enfim, as contradições no s.eio do capital monopolista não


se reproduzem somente no seio do capital não-monopolista, mas
também nas relações do capital monopolista e do capital não-
monopolista: esta ou aquela fração do capital monopolista (capi-
tal monopolista com predomínio industrial, capital monopolista
com predomínio bancário), este ou aquele setor do capital mono-
polista tem, com freqüência, estratégias e táticas diferentes com
respeito ao capital não-monopolista. Essas estratégias e táticas
diferentes prendem-se, em grande parte, às contradições que atra-
vessam o capital monopolista, e às relações de força entre seus
diversos componentes. Na França principalmente, o capital mo-
nopolista bancário teve amiúde, levando-se em conta a sua reser-
va geral com respeito à industrialização, uma estratégia mais con-
ciliatória com respeito ao capital não-monopolista, contentando-se
,em controlá-lo de forma indireta pela via indireta da outorga dos
-créditos, enquanto o capital monopolista industrial, pela via indi-
reta das transformações atuais das relações de produção ("indus-
trialização", "modernização" etc.) apresentou uma atitude mais
agressiva a seu respeito. Isso permitiu freqüentemente que o capi-
tal monopolista bancário, pela via indireta de seus representantes
políticos, se apresentasse como defensor das PME (ver o papel sig-
nificativo nesse sentido dos Republicanos Independentes, ligado
:a uma antiga tradição da grande burguesia tradicional na França)
em face das reivinclicações operárias e em face dos "apetites" da
tendência modernista (capital n10nopolista industr.ial) do grande
-patronato francês. Este último tem tentado, em contrapartida,
uma política de compromissos com respeito à .classe operária, em
"Suas contradições específicas corn o capital monopolista bancário
e o capital não-monopolista: ver as contradições entre Giscard
d'Estaing e Chaban-Delmas.

Estas últimas análises já conduzem a uma primeira conclu-


~ão política: mesmo que não possamos considerar o capital não-
monopolista, sob a denominação de "camadas antimonopolistas",
como excluído atualmente da dominação econômico-política e
do bloco no poder, não podemos considerá-lo como uma fração
burguesa susceptível de fazer, em uma metrópole imperialista,
parte do povo, e portanto passível de uma aliança com as classes
populares no processo de transição para o socialismo. Tanto é
verdade que, se isso não valia para as fases precedentes do capi-
talismo monopolista, vale ainda ·rnenos na fase atual, em virtude
tda junção do capital não-monopolista com a frente única da bur..
168 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

guesia, e da .dissolução de sua autonomia enquanto força social.


Tanto mais - como assinalamos no ensaio precedente sobre a
internacionalização das relações capitalistas - que o capital não-
monopolista está longe de representar a burguesia nacional em
face de um capital monopolista globalmente comprador, e quo
as linhas de delimitação entre a burguesia interior e o capital im.;.
perialista dominante atravessam de fato o capital monopolista e
o capital não-monopolista.
O que não quer dizer, naturalmente, nem que, em casos iso-
lados, "pequenos capitalistas" não possam oscilar do lado da ela~
se operária, nem tampouco que a estratégia das massas populare~
na transição para o socialismo deva colocar no mesmo saco e
tratar da mesma forma o capital monopolista, que é o alvo prin-
cipal, e o capital não-monopolista, em suma, o conjunto da bur-
guesia interior. Está bem claro que, segundo os processos concre-
tos, e segundo suas etapas, formas e graus de "compromisso" com
o capital não-monopolista 'se revelarão necessários por parte da
classe operária e de seus aliados, isto é, do "povo". Também está.
bem claro que isso te·m muito pouco a ver com a ~'aliança anti-
monopolista".
III. O F..STADO ATUJ~ E AS BURGUESIAS

1. O Debate

É com relação a essas análises, referentes precisamente às


formas atuais das contradições no seio da burguesia, que é ne--
cessário situar o papel do Estado no capitalismo monopolista,
sobretudo em sua fase atual: mas as observações que se seguem,
e que situam o papel do Estado em relação à burguesia interior,
devem ser consideradas no contexto do papel do Estado, no âm-
bito da internacionalização das relações capitalistas. Enfim, esse
exame do Estado só pode ser feito exaustivamente se considerar-
mos a luta de classes em seu conjunto, aí incluídas, portanto, as
classes dominadas: o Estado, consagrando e legitimando a domi-
nação de classe, constitui o fator de coesão do conjunto da f ar-
mação social e, reproduzindo as relações sociais dessa formação:
constitui a condensação do conjunto de suas contradições.

Podemos logo dizer que as análises dos clássicos do marxismo


sobre o Estado capitalista não se limitam, como se diz freqüente-
mente, ao papel do Estado no estádio do "capitalismo competiti-
vo", ou ao século XIX. Encontra-se aí a crítica fundamental que,
sob várias formas, foi feita às minhas análises de Pouvoir politique
et Classes sociales e Fascisme et Dictature pelos autores do PCF:
de L. Perceval e J. Lojkine, até Ph. Herzog, M. e R. Weyl, A.
Gisselbrech t etc. 1
1L. Perceval, suas duas longas críticas de meus livros, em Eco-
nomie et Politique, n. 0 190, de maio de 1970 e n. 0 204-5, julho-agosto de
1971; J. Lojkine. Pouvoir politlque et Lutte des classes, art. citado de
170 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

Se me refiro a essas análises e a essas críticas, é porque elas


cercaram perfeitamente o próprio núcleo das divergências. Se
bem que haja, entre esses autores, diferenças notáveis que des-
tacam claramente as contradições de difícil resposta, podemos re-
sumir suas críticas: vou apoiar-me nas análises de Marx, Engels,
Lênin e Gramsci que, permanecendo exatas para a realidade con-
creta que tinham em vista, não podem mais se -aplicar ao Estado
no capitalismo rr10nopolista de Estado, Estado este que apresen-
taria,. seguQdo o PCF, as características assinaladas no pr~ncípio
deste ensaio.
Tais críticas não me parecem fundamentadas: e isso não
porque a forma de Estado do capitalismo monopolista, e prin-
cipalmente de sua fase atual, não apresentaria traços específicos.
É porque as análises dos clássicos do marxismo sobre o Estado
capitalista não somente se aplicam a todas as suas formas, inclu-
sive a forma atual, mas são também as únicas que permitem
ápreender as modificações que têm lugar atualmente.

1. Para começar pelo ponto essencial: as an~lises referen-


tes "à fusão do Estado e dos monopólios em um mecanismo único''
na fase atual (Capitalismo monopolista de Estado), que implicam,
de um lado, que· a única fração dominante seja aquela do capital
monopolista e o capital não-monopolista seja excluído do terreno
da dominação econômico-política, implicam, por outro lado, que o
capital monopolista seja uma fração abstratamente "unificada"
por seus próprios meios, são inexatas. Atualmente, o Estado sem-
pre detém o papel de unificador político do bloco no poder e de
organizador político da hegemonia do capital monopolista no
seio do bloco no poder, composto de várias frações de classe
burguesas e atravessado por contradições internas. A relação Es-
tado-monopólios não se coloca mais, atualmente, como no passa-
do, no caso de uma hegemonia de outras frações do capital, em
termos de identificação ou de fusão. O Estado se encarrega, '}Jor
excelência, dos interesses da fração hegemônica do capital mono-
polista, na medida em que tal fração detém a direção do bloco
no poder, e em que seus interesses se configuram em interesse
político do conjunto do capital em face das classes dominadas.

La Pensée; Ph. Herzog, Politique économique ... , op. cit.; M. e R. Weyl,


"Idéologie juridique et Lutte des classes", Cahiers du CERM; A. Gissel-
brecht, "Le Fascisme hitlérien", Recherches internationales à la lumíere
du marxisme, 1973 etc.
o ESTADO ATUAL E AS BURÇJUESIAS 171

Acabamos de ver, com efeito, que o capi~al monopolista, pro-


duto do capital financeiro, não constitui uma fração unificada
ou "integrada": é atravessado de contradições i~tensas já a~ali­
sadas por nós. No âmbito da relação Estado-capital monopolista,
0 Estâdo se encarrega d()S interesses do__ conjunto do capital mo-
nopolista: el~ não se identiffoà con~retamente com nenhum de
seus componentes, nem com este ou aquele monopólio em parti-
cular, na medida em que trabalha, pela via indireta de suas di-
versas intervenções, em favor da organização e da coesão polí-
tica do capital monopolista, e na medida em que tais interven-
ções se impõem de alguma maneira a este ou àquele componente
desse capital. A não ser que admitamos, o que é inteiramente fal--
so, que -o capital monopolista constitua um conjunto "integrada
de fusão" e que possua, extraordinariamente, capacidades próprias
de organização econômico-política, e que concluamos . assim, ne-
cessariamente, por um "enfraquecimento" global do Estado atual
em face do "poder dos monopólios" (Estado e monopólios sendo
concebidos como entidades que intercambiam "poder"), é neces-
sário convir que o Estado atual não é, mais do que pelo passado,
uma simples ferramenta ou instrumento manipulável à vontade
por uma "vontade" única e coerente.
É nesse sentido que podemos sempre falar de urna autonomia
relativa do Estado atual em face do capital monopolista: auforto:
mia relativa inscrita ao mesmo tempo na contradição principal
(burguesia-classe operária) e (o que importa aqui) nas lutas e
contradições no próprio seio desse capital; autonomia relativa qne
é somente a manifestação .do papel do Estado para a coesão polí-
tica e a organização da hegemonia do capital - monopolista.
- Es-
tando entendido que essa autonomia relativa não deve precisa-
mente ser apreendida como· papel de um "Estado-árbitro" das cêm-
tradições intermonopolistas, nem corno lugar de uma política coe-
rente e racional "exterior" ao capital monopolista. Impugnar as
análises de uma "fusão do Estado e dos monopólios em um me-
canismo único" não leva absolutamente a sust~ntar a posição de
uma "independência" do Estado ein face dos monooóEos mas im-
plica negar uma problemática que, seja sob o term~ "fu~ão", seja
sob o termo "independência", coloca as relações Estado-fração
hegemônica como relações de entidades, uma diante da outra, po-
dendo o Estado "possuir" o "poder" próprio, e de que uma ou
" a b sorve " a ou t ra - ret1ra-
. Ih e seu "poder": fusão - ou lhe "re-
siste" - independência ou arbitragem. Além disso, sustentando
que existe atualmente· fusão, deixa-se seguramente entender que
172 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

haveria, antes,· independência ou arbitragem do Estado, o que é


também falso. O Estado não possui "poder" próprio: mas, por
outro lado, constitui o lugar contraditório de condensação de
relações de força que atravessam igualmente a classe dominante,
e principalmente a própria fração hegemônica - o capital mo-
nopolista 2 •
É necessário, aliás, assinalar as contradições próprias aos pes-
quisadores do PCF: indicam os impasses a que conduz a tese oficial
da fusão - ou da "reunião" - e do mecanismo único, expressa
pela conferência dos 81 partidos, pelo Colóquio do PCF de Choisy-
le-Roi, e pelo Tratado do Capitalismo Monopolista de Estado. Se
essa tese se encontra exatan1ente como em certas críticas que
L. Perceval e J. Lojkine me puderam dirigir, percebemos, às ve-
zes, ·entre outros autores, outras opiniões. Assim, por exemplo,
Ph. Herzog, depois de ter expressado a meu respeito as críticas
doravante rituais, pode, entretanto, escrever, sem recuar diante
das incoerências: "Não é pos:sível conceber o Estado dos Mono-
pólios como uma fusão entre os dois termos ... As intervenções
públicas, já dissemos, refleterr1 e consolidam uma relação de for-
ças: para nós, indiscutivelmente, elas refletem atualmente a título
principal, e na sua dinâmica, os interesses da oligarquia financei-
ra. Mas, como vimos, a relaçãlo de forças opõe também os mono-
pólios: se o Estado tende a ser sua coisa comum, ele não pertence
a nenhum ... A ausência de fusão entre o Estado e os monopólios
corresponde a uma tripla realidade: ... de um lado a outro das
lutas internas da oligarquia, a necessária procura de coerência
relativa na intervenção do Estado resulta em uma ação que, em
geral, não reflete diretamente os interesses deste ou daquele gru-
po, e que, então, numa certa medida, se impõe a cada um" 13 • Mas
podemos, nesse caso, formular que·stões sobre o próprio conceito
12 É interessante notar que essa mesma concepção errônea da re-
lação Estado-grupos sociais encontra-se freqüentemente em toda uma série
de autores que colocam o proble~ma em termos instrumentalistas de en-
tidades exteriores em que uma (grupos sociais) influenciaria a outra (Es-
tado), submetendo-a e reatando, por esse intermédio, com uma ant;ga
tradição empirista burguesa. Já foi o caso para o conjunto das con-
cepções dos "grupos de pressão" versus Estado na ..decision making pro-
cess", ver principalmente R. Dahl, Who Governs. Encontra-se atualmente,
na corrente progressista, em G. McConnel, Private Power and Ameri-
can Democracy, N. Y., 1966; W. Domhoff, Who Rules America, N. Y.,
1971; J. I,owi, The End of Liberalism, N. Y., 1969; finalmente, em J.
K. Galbraith, Le Nouvel Etat industriei. Existem aí pontos que foram per-
feitamente esclarecidos por Cl. Offe, Strukturprobleme des Kapitalistís-
chen Staates, 1972, pp. 66 sq.
3 Ibid., p. 68.
0 EsTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 173

do l,apitalismo monopolista de Estado; com .efeito, o próprio H.


Claude, eminente teórico do PCF, não afirmou recentemente que,
dado o papei importante- do Es.tado desde os primórdios do impe-
rialismo, o único elemento novo qµe pode legitimar o conceito
de capitalismo monopolista de Estado consiste de forma muito
exata na fusão do Estado e dos monopólios privados que Claude
considera como terminada 4 ?

2. O segundo aspecto da questão remonta ao fato de que


e~sa fração monopolista, assin1 dividida, não é a única fração
dominante: é a burguesia np seu conjunto que é a classe dominan-
te. O capital não-monopolista, também ele profundamente· fra-
cionado, participa em bloco no poder, constituindo, o capital mo-
nopolista, a fração hegemônica 5 • O que não quer dizer, entre-
tanto, que essa participação do capital não-monopolista na do-
minação burguesa de classe corresponda, mais do que no passa-
do, a uma divisão efetiva do poder entre frações dominantes não-
hegemônicas e fração hegemônica: como no passado, o Estado
serve, de forma maciçamente dominante, aos interesses da fração
hegemônica. Mas isso indica que se trata, em última análise, do
interesse político a l9ngo prazo do capital monopolista. O que
implica, vimos precisamente, urna estratégia de compromisso com
respeito ao capital não-monopolista, e um papel próprio do Esta-
do nesse sentido: ficando entendido que não se trata de uma es-
tratégia explícita, coerente e "racional", mas de uma resultante
da relação de forças.
Assim, as diversas intervenições do Estado, que correspondem
aos interesses do capital monopolista, visam ao mesmo tempo à
reprodução ampliada do capital, isto é, do conjunto do capital
social. Dizer, partindo desse ponto de vista, que o Estado está a
serviço "exclusivo" dos "grand1~s monopólios", à exclusão então
das ~mtras frações burguesas, jiá é falso. Mas é preciso ir mais
além: as intervenções econômicas. do Estado em favor do capital
monopolista não são simples intervenções "técnicas" decorrentes
das necessidades da "produção :monopolista", mas, como toda in-
tervenção econômica do Estado, intervenções políticas: elas le-
vam em consideração, em geral, nas siias formas e ·modalidades

4 H. Claude, "Le Capitalisme mo:iopoliste d'Etat", Cahiers du CERM,


n. 0 91, 1971, p. 21.
li Mas aí também, já foi visto•, é preciso sempre frisar de que com·
ponente do capital monopolista sie trata exatamente:' bancário ou in·
dustria1 '
174 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

concretas, o capital· não-monopolista e a necessidade da coesão


do bloco no poder, manifestando-se o capital não-monopolista,
então, por efeitos pertinentes no próprio âmbito da "poHtica .eco-
nômica" monopolista do Estado '-6 • Enfim, lembremos que podem
ser citados muitos exemplos de intervenções, certamente limita-
das, ·~do Estado "em favor" do capital não-monopolista, até e in-
clusive .no domínio do crédito e dos financiamentos públicos, o
domínio fiscal ·etc.: e não se trata aí, naturalmente, de medidas
efetivas do Estado que contribuem para a sobrevivência ou re--
s1stência do capital não-monopolista em face do capital monopo-
lista, mas de uma resultante da resistência do capital não-mono-
polista em face da sua absorção pura e simples pelo capital mo-
nopolista. Se o Estado não é aqui também o árbitro entre o capi-
tal monopolista e o capital não-monopolista, não é menos verda-
de que·· representa a condensação de sua relação contraditória: o
que, aliás, é uma das razões das contradições internas na "polí-
tica econômica" do Estado.
É igualmente· nesse contexto que se inscrevem os limites atuais
da autonomia relativa do Estado em face do capital monopolista
e do bloco no poder em seu conjunto: ela designa aqui o papel
próprio do Estado e de seus diversos aparelhos na elaboração da
estratégia política do capital monopolista, a organização de sua
hegemonia no âmbito de seu- "equilíbrio instável de compromisso"·
(Gramsci) em face do capital não-monopolista, e a coesão política
da aliança de classe no poder. Autonomia relativa cuja dimensão
é apreendida quando a comparamos, negativamente, com a tese da
fusíio e do mecanismo único: assim como, para parafrasear Herzog,
o Estado não pertence a. este ou àquele grupo monopolista, não
tende a ser sua "coisa comum'', pois o Estado não é uma coisa,
mas uma relação, mais exatamente a condensação de uma
relação de força. A autonomia relativa do Estado deve ser enten-
dida aqui como relação entre Estado, de um lado, capital mo-
nopolista e conjunto da burguesia, de outro, relação que se coloca
sempre em termos de representação e de organização política de
classe 1 .

6 Entendo por efeitos pertinentes a expressão particular, ao nível


político, de uma classe ou fração de classe que existe de forma ,própria,
sem no entanto co:istituir uma força total. (Pouvoir politique, op. cit.,
pp. 80 sq.) '
7 Conceber assim o Estado como uma relação (mais exatamente
como a condensação de uma relação· de fõrçasr -é ·evitar o falso dilern,a.
da discussão atual sobre o Estado, entre um Estado apreendidló como
coisq, e um Estado apreendido como sujeito. Como coisa: a concepção
0 ESTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 175,

Tentei demonstrar isso concretamente, no âmbito do capitalis-·


mo monopolista, a propósito do fascismo. Direi duas palavras
quanto às contradições próprias dos pesquisadores do PCF em suas
críticas: parecem-me particularmente interessantes, pois o conjun-·
to desses pesquisadores considera o fascismo - porém mais es-
pecialmente o nazismo alemão - como um caso "prefigurado",
mas típico, do capitalismo monopolista de Estado. Críticos como,
M. e R. Weyl, L. Perceval, J. Lojkine etc. censuraram-me abun-
dantemente por não ter visto a relação "exclusivá" do Estado e·
do capital monopolista em um período onde o capital monopo-
lista é a única fração dominante, por ter contestado uma concep-·
ção do Estado fascista como simples ag~nte às ordens exclusiva-
mente do capital monopolista, e, em síntese, por ter rejeitado a
tese da fusão e do mecanismo único 8 • Mas, aqui também, percebe-
mos algumas opiniões diferentes, que mostram· os impasses dessa·
tese. A. Gisselbrecht, principalmente, bem advertido dos proble-·
m~s concretos do fascismo, e após as críticas habituais de minhas
análises, constata entretanto: "Seria de fato contraditório com a-
tearia marxista do Estado apresentar o poder fascista como do-
minação 'direta', como 'criatura' dos monopólios, seu órgão de'
exe-cução. O Estado é, bem antes, o 'comitê de gestão' dos in-
teresses de conjunto (grifado por Gisselbrecht) da classe capita-
lista, o que dá lugar não só a contradições entre os grupos que
a compõem, mas também a um certo papel ativo dos órgãos de
decisão estatal 9 ." Gisse.lbrecht irá mesmo mais além, ao afir-·
mar que "a idéia ingênua de um Estado fascista emanação, agen--
te puramente passivo dos monopólios ... é estranha à pesquisa·
marxista 10 ". Não há necessidade que ele o diga. Ê evipente, e isso'·
vale muito exatamente para a tese da fusão e do mecaÍiismo único.

instrum.entalista do Estado, instrumento passivo nas mãos de uma classe


ou fração; como sujeito: a autonomia do Estado, que é considerada nesse
caso como absoluta, é trazida, voltaremos a isso, à sua vontade própria
sob a forma de instância racionalizante da "sociedade civil". Nos dois
casos, a relação Estado-classes é apreendida como relação de exteriori-
dade. Ora, a auto.,omia relativa do Estado, voltaremos a isso igualmente,
está inscrita na sua própria estrutura (o Estado é uma relação), en-··
quanto resultante da luta e das contradições de classe da forma como
se exprimem e se concentram, de forma específica, no próprio seio do
Estado: é o que, precisamente, permite situar de maneira exata o papel
próprio da burocracia.
s Lojkine, ibid., p. 152.
9 Ibid., p. 17, nota 53.
10 Ibid., p. 31.
176 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Finalmente, o próprio Lojkine; quando empreende, por outro


lado, uma análise do papel do Estado no capitalismo monopolista,
.não hesita em se contradizer afirmando principalmente 11 : "O Es-
tado burguês, organização política a serviço da burguesia (não é
.mais simplesmente o capital monopolista), tem uma dupla fun-
ção: 1) manter a coesão do conjunto da f orm.ação social; 2) fa-
.zer prevalecer diretamente a dominação da burguesia. Ora, a pri-
meira função implica a segunda, na medida em que a dominação
'.da classe capitalista supõe a existência de um organismo indepen-
dente da sociedade (grifo de Lojkine), capaz de 'regulamentar',
·de 'normalizar' a luta das classes". Assiste-se de fato aqui a uma
reviravolta completa, notável e significativa das posições de Loj-
.kine: o guardião rígido da tese da fusãó e ·do mecanismo único
não teme arvorar-se .em defensor de um antigo equívoco, que se
·prende às análises do jovem Marx, de um Estado "independente"
,da sociedade, contra o que, no entanto, me precavera, em minhas
análises sobre a autonomia relativa do Estado e seu papel enquan-
to fator de coesão do conjunto da formação social.'
Sendo assim, não se trata aí de incoerências próprias a um
-pesquisador, nem mesmo, de fato, de contr~dições efetivas pró-
prias à tese da fusão e· do mecanismo único: as contradições aqui
·são somente aparentes. A concepção instrumentalista-idealista do
-Estado que subtende essa tese., legitima de fato, perfeitamente; e
ao mesmo tempo, a tese de uma independência real do Estado
em face das classes sociais. Um "instrumento" é ao mesmo tempo
totalmente manipulável por seu detentor (o capital monopolista)
e inteiramente independente dele, no sentido em que pode ser
·utilizado, tal qual, por um detentor diferente (a classe operária).
-Reúnem-se por esse m.eio as outras análises -iá assinaladas -por Her-
zog sobre o Estado-neutro "fator orgânico da produção", e suas
conseqüências inevitáveis quanto à transição para o socialismo,
considerada como possível, sem destruição dos aparelhos· de
Estado.

3. _ A relação complexa entre o Estado e o bloco no poder


na fase atual tem efeitos importantes no próprio seio dos apare-
lhos de Estado das metrópoles imperialistas. É preciso observar
bem, nesse sentido, de um lado, que a tese da fusão do Estado
·e dos monopólios em um mecanismo único, supondo a existência

11 Lojkine, "Contr.ibution à une théorie marxiste de l'urb&'"lisation


capitaliste", em Cahiers internationaux de rociologie, janeiro-junho de
·1912, p. 141.
0 EsTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 177

de uma única fração dominante, ela própria abstratamente unifi- 1


\·cada, bloqueia toda análise das contr_gdições internas do Estaoo 1
11atual; por outro lado, que, em geral, a ·-rese instrumentalista im-
(' plica- que as contradições das frações no poder só se manifestam
como assediamentos externos (influência) das peças do Estado-
instrumento, entidade metafísica, tirando de cada uma dessas fra-
ções "a cobertura". l>e fato, essas contradições estão inscritas na
própria estrutura dos aparelhos de Estado capitalistas. As relações
contraditórias entre frações do bloco no poder sob ~ hegemonia
do capital monopoHsta existem nas relações entre ramos do apa-
relho repressivo de Estado, entre aparelhos ideológicos de Estado, ~
1

\ e____nas x~Iaç_~-~~.!llaça~as no I?~?.P~iº seio de cad~ UQ!_ de~s. As re- [


l 1ações de força no sciôa0'61oco no poder exprimem-se, enquanto 1
precisamente relações de poder, pelas relações contraditórias no
próprio seio do Estado e de seus aparelhos, sedes privilegiadas de-sta
ou daquela fração do bloco no poder, e se manifestam igualmente
como contradições internas entre as diversas intervenções do Es-
tado atual. A autonomia relativa do Estado não significa também,
assim, uma vontade coerente e racion~l dos agentes do Estado-
entidade intrínseca: ela existe concretamente como "jogo" con-
traditório no seio dos aparelhos de Estado, e mesmo como resul-
tante da relação de forças de que o Estado constitui a con-
densação.
Assim, por exempio, as relações contraditórias atuais no seio
(e entre eles) do aparelho político - partidos, parlamento, se-
nado etc. --. do aparelho governamental, do aparelho municipal
e comunal, do exército, dos diversos aparelhos ideológicos - es-
colar, cultural, de informação etc. - não são o simples efeito
da Iu ta das classes dominadas, mas exprimem igualmente as con-
tradições do bloco no poder. No caso deste último, e ao contrá-
i rio do que se passa com os efeitos da luta das classes dominadas

sobre os aparelhos de Estado, as :r.~laçõe~-~!!_tre fraç§~-~-~U.-~8:U~-~ªs


:se exprimem com freqüência como sedes e bll!Eflftes d0õderes
contradÚÓrios nc)_ ~~1cCd~[$~~J~p~f~Th-<iª~ . . -----
Mas é preciso repetir aqui que não se tr~ta,. ..entretanto,----de-
~·peç~s separadas" do Estado, e de urilá divrSão
efetiva do poder :
de Estado -entre-is frações que compõem o bloco no poder. O .
:~Estado capitalista é, atualmente como no passado, caracterizado j
; por uma unidade interna própria de ~e!!_s apar~JhQ~, que é somtm-1·
;te a ex~ressão dos -inter~sses==da- fração h_egemônic~, ~- ~~-. s~-~~a- .
pel precisamente eii._q~anto fator de coesao do bloco no poder. i
-····--·····- ------..__ .

--~ ........
178 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Mas essa unidade do pod·er de Estado, condensada como unida-


de institucional dos aparê1timr de Estado, não se estabelece de
forma simples, seja por uma unidade qualquer da vontade dos
monopólios, ou porque- os monopólios ·operassem um embargo fí-·
sico sobre o conjunto de um Estado-instrumento, de unidade ins--
jtrumental intrínseca. Ela se estabelece de fato, seguindo as con-
/tradições de classe, 9e f or'iiia complexa, e por tôõa uma cadeia.
! de"'suõordmaçôes de ce'ftõSâpa.relhos a oufrõsq\ie condensam por
i ex~-~!~nc~a o pÕÕe~ da fraçá~iiêgemônica; por"-subdeterminaçoês,
l abreviaçoes e duphcaçoes de Cl~rtm-apateihos por outros; por des--
\ locamentos de "funções" entre aparelhos e defasagens entre poder
real e poder formal; por deslizamentos respectivos de aparelhos~
do campo dos aparelhos ideológicos para o campo do aparelho
repressivo e vice-versa; finalmente, pelas delimitações importan--
tes no próprio seio de cada aparelho \1 2 •

2. Sobre o Papel Atual do Estado

1
Todas essas observações e precisões não excluem, naturalmen---
te, que u;1odificações importan~ intervenham não só na forma

12 No domínio de estudos das kistituições políticas, ao qual me li-·


mitarei, dispõe-se atualmente de um número apreciável e crescente de aná--
lises conoretas que atuam nesse sentido. Mas é nece~ário assinalar que·:
estas estão, freqüentemente e de forma direta, imbricadas às análises e
lutas políticas, e, não surgem sempre sob a forma de "livros" ou de arti-
gos de revista. De foqpa indicativa, menciono simplesmente aqui: para
a França, além dos trabalhos de :ML Castells, Fr. Godard, D. Vidal, J. M.
Vincent etc., que cito neste texto, aqueles de M. Amiot sobre a política
cultural e os aparelhos ideológicos, de J. Ion sobre a política urbana,
da equipe CERAT-IEP de Grenoble sobre as i..lstituições comunais etc. No•
plano internacional, e ainda de forma Indicativa, primeiramente, os tra-
balhos acessíveis em francês: aqueles de M. Van Schendel, C. Saint
Pierre, G. Bourques e N. Freneth~ em Québec; aqueles da revista Con-
tradictfon.s (principttlmente de A.. Corten) na Bélgica; aqueles de Ban,azei'll
Roja (recentemente publicados no Temps Modernes) na Espanha. Entre
os trabalhos não traduzidos para o francês, aqueles de G! _Th_er}?or.!1, na
Suécia, aqueles de certos colaboradores da New Lef t Review na Grã-Bre-
tanha,. e da revista Kursbuch na Alemanha; numerosas pesquisas na Itália,.
entre as qua.is principalmente aquelas da equipe da revista lnquiesta.
e na Grécia; os trabalhos de J. Solé-Tura na Espanha; de E. de lpola
na Argentina; de E. Villa no México; de Fr. ....W.~fQrt no Brasil; de
A. Quijano no Peru etc. Enfim., aqueles de numerosos companheiros
nóss.os rio Chile, notadamente em· torno da (ex-) Escola Latino-America-
na de Ciências Sociais de Santiag:o.
0 ESTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 179

de Estado intervencionista em relação ao "Estado Liberal" do


capitalismo competitivo, mas igualmente no seio do Estado inter-
vencionista segundo as fases do capitalismo monopolista. As ca-
racterísticas próprias a essas fases - de transição, de consolida-
ção, e a fase atual -, as modificações, portanto, das relações de
produção capitalistas, seus efeitos sobre os outros modos e for-
mas de produção, os graus de internacionalização que marcam
essas fases e que se traduzem e:m relações particulares no seio
do bloco no poder, têm efeitos sobre· as "funções econômicas"
do Estado, o deslocamento da dominância em direção ao Estado
e a relação do Estado com a hegemonia de classe, segundo as
fases do capitalismo monopolista 13 .
Não há dúvida, pois, de que se assiste, na ·fase atual do im-
perialismo, à emergência, no ·seio das metrópoles imperialistas,
de modificações importantes do Estado intervencionista, que só
podem ser apreendidas levando-se em conta o conjunto das lutas
das classes atuais nas metrópoles. Principalmente, as "interven-
ções econômicas" do Estado nã9 foram nunca tão marcantes, e
o deslocairierito . da- oóminânda ern direção ao Estado tão pronun-
ciado, como na fase ,atual. Esse papel do Estado (em favor do
capital monopolista) prende-se, firnalmente, na fase atual, ao mes-
mo tempo, às suas funções tradicionais e às funções decisivas que
detém:

1) na f ormª atu~l de internacionalização das relações capi-


talistas pela reprodução induzida do capital imperialista dominan-
te no próprio seio das metrópoles, na extensão paralela para o
exterior de sua própria burguesia, e na reprodução das novas

ta Com efeito, tão-somente para o processo ce con:::entração, o


papel intervencicoista do Estado não se reduz a um prócesso gradual,
unilinear e homogêneo: no âmbito do estabelecimento do papel domi-
nante do Estado, algumas de suas funÇões econômicas marcam acele-
rações, desacelerações, por vezes até "retraimentos" relativos. Como
assinala justamente S. de Brunhof: "O poder econômico do Estado não
·está inscrito em um processo irreversível de crescimento. . . Longe de se
estender de forma contínua. o poder do capitalismo de Estado pode
"Sofrer regressões ... " (Capitalisme fina:ncier public; influence économique
de l'Etat en France 1948-1958, 1965,. pp. 202 sq.). J. Bouvier mostrou
principalme~te que o papel financeiro do Estado-banqueiro se encontrou
reduzido na França da IV.ª até a V.ª República e ele precisa justamente:
"'Sig,::iifica sublinhar o peso do qualitativo, isto é, do político, na his-
tória do intervencionismo estatal, da 'planificação', e organismos bancá-
rios e financeiros públicos" (Un siede de banque française, op. cit ..
p. 153.)
180 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

formas de divisão social imperialista do trabalho: funções anali-


sadas no ensaio precedente;

2) nas formas atuais de reabsorção do afastamento entre ro-


prieda e econômica e posse, correspondendo à extensão da expio-
' ração monopolista e às formas dominantes da exploração inten-
siva do trabalho: é aí que reside, entre outros aspectos, o papel
atual do Estado na centralização financeira, mas também na
concentração pela "reestruturação" ou pela "modernização indu~­
trial", papel particularmente claro na França com o 6. º Plano; sob
certo aspecto, seu papel nos comandos públicos, inclusive as des-
pesas militares etc.;

3) nos efeitos atualmente dominantes de dissolução das outra~


f armas de produção pelo capitalismo mono olista: papel do E~-
a o na e 1m1naçao a pequena-burguesia tradicional, na domi-
nação do capital monopolista sobre o capital não-monopolista, na
penetração e extensão do capitalismo monopolista no seio da agri-
cultura e o êxodo rural etc.: é aqui principalmente que se en-
contra o papel do financiamento público;

4) Finalmente, na realização direta das contratendências prin-


cipais à baixa tendencial da taxa de lucro, a sabe~: •
a. nas próprias formas atuais de exploração intensiva do
~rabalho pela via 1ndireta da intervenção do Estado na produti:
vidade do trabalho e na extração da mais-valia relativa: papel do
Estado na pesquisa cientifica e nas inovações tecnofógicas, na
reprodução da força de trabalho pela via indireta de sua "-qualüi-
cação" escolar (escola, educação permanente etc.), da urbaniza-
ção, dos transportes, do domínio "saúde", dos equipamentos
coletivos 14 •
b. na desvalorização paralela de certas partes do capital
constante: nas novas condições de estabelecimento da taxa média
de lucro: encontra-se aí um dos aspectos da "modernização in-
dustrial", dos investimentos públicos etc.

Em suma, trata-se aí de um conjunto de modificações que


indicam o papel e o lugar do Estado e marcam as formas atuais

14 M. Castells, Néo-Capitalisme, consommation collective et con-


tradictions urbaines, Ronéo, Centre d'étude des mouvements sociaux, 1973.
0 ESTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 18I

d~ reprodução ampliada. do capital. Mas não se trata, nas obser--


vações acima, de fazer a lista limitativa das intervenções atuais
do Estado. A questão é estabelecer as modificações estruturais
principais que comandam suas intervenções, e não operar urpa
enumeração descritiva ou um recenseam.ento destas. Poderíamos,.
de fato, mencionar toda uma série de outras intervenções muito
importantes do Estado, desde aquelas sobre o mercado de traba-.
lho (a "política das rendas") até aquelas nos domínios da distri-
buição, do "consumo coletivo" etc. 15 : mas todas dependem e:
decorrem finalmente das modificações que acabo de assinalar.

Isso me conduz a outra observação: as novas intervenções:


do Estado que são aqui questionadas não se manifestam sempre,
diretamente e em seu conjunto, como "intervenções econômicas",
no sentido estreito .que esse termo podia assumir no estádio do
capitalismo competitivo: intervenções sobre o "mercado" e na
construção da "infra-estrutura .econômica" - estradas de ferro,.
por exemplo. Isso levou a numerosas análises segundo as quais
tratar-se-ia, atualmente, de um retraimento das "intervenções
econômicas" do Estado, de que se encarregariam diretamente os
monopólios privados (organização do mercado, construção das
estradas etc.), e de um crescimento de suas intervenções "sociais''
e "políticas" ·116 •
Isso me parece falso no sentido precisamente em que se apli-
cam, nessas análises, termos extraídos como que de um campo
de aplicação que é aquele do capitalismo comQeti!Jy_o 17 • Nesse
estádio, marcado pela dominância ao-·~eêoiiõfiiiêõ e-da exploração
extensiva do trabalho, podia-se ainda estabelecer _Uil1.ª distinção
relq_tiva entre as intervenções do Estado na reprodução àmpliàda
das" cÓndiÇões da produção, de um lado, e as intervenções econô~
micas diretas do Estado, de outro: sem que isso queira dizer que-
essas inte-rvenções fossem, nesse estádio, neutras e dissociadas das.
intervenções políticô-sociais do Estado. Mas, no estádio atual e·
sobretudo na fase atuaL marcados pelq_ p~.L~lo·mtnante ..- do-Es-
tado e_pelo deslocamento da dominância----- _
em --·direção
.. --~ -
à "eXp-tora.ção

15 A. Granou, Capitalisme et Mode de vie, 1973; P. Mattick, Marx


et Keynes, 1972.
16 Entre outros, o relatório geral de E. Maire no último congressO'
da CFDT, pp. 26-27 (junho de 1973).
17 Ver acima, pp. 107 sq:
182 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

intensiva do trabalho, não é mais o caso. As próprias "condlições"


políticas e ideológicas da produção intervem diretamente no pro-
cesso de reprodução ampliada do capital: elas constituem as suas
propnas f armas de existéncia.
Em outras palavras, trata-se de uma nova relação do político,
leologia e do econômico, que transforma o próprio carne.<;>
lteúdo desses termo~, no sentido em que o espaço da produção
se reorganiza "em função" das condições políticas e ideológicas
da reprodução, já se configurando as intervenções do Estado, a
esse respeito, como intervenções econômicas 18 •

É então incontestável que, na medida em que o papel domi-


nante do Estado marca de forma crescente essas formações, e em
-que a dominação econômica e a hegemonia política do capital
monopolista se afirmam de forma maciça, o Estado atual tende
cada vez -mais a refletir essa situação: o jogo ·de sua autonomia
relativa em face da fração hegemônica, o capital monopolista, s-
mscreve em lzmztes muito mais restritos do que no assa4g. Do
"'Põiito - e vista o oco no poder, a restrição desses limit<~s só é,
aliás, o efeito, entre outros, da dependência largamente consu-
mada do capital não-monopolista em relação ao capital n1onopo-
lista, pelo fato de que o capital não-monopolista já cessou, salvo
em raras conjunturas precisas, de assumir o papel de uma força
social autônoma. · ·

II

É assim, situando exatamente a relação atual entre- o Estado


-e o campo das contradições de classe, que podemos resolver uma
série de problemas adjacentes -colocados p~lo_ atual papel do Es-
tado:
1 . De um lado, torna-se evidente que esse atual papel do
Estado não pode absolutamente ser apreendido no sentido de u~
-
1.s Mas, assim como eu havia asi;;inalado, trata-se exatamente de
um deslocamentd dos limites entre o Estado e o econômico, e não de uma
abo1ição de sua sepatãÇãô t~"lativa ·-prõpriá ao· capitalismo. Isso implica,
então, que as intervenções econômicas do Estado atual não podem trans-
gredir certos limites co-substanciais ao capitalismo: limites cujo índice
mais evidente é, principalmente, a crise fiscal e financeira permanente
do Estado atual (sobre este assunto, J. O'Connor, The Fiscal Crisis of
the State, 1973).
Ü ESTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 183

~'capitalismoorganizado" que, pela via indireta de uma "instância


rac1onahzante", tena ultrapassado as contradições próprias ao que
é em geral designado como "anarquia da produção", e que não é,
finalmente, outra coisa senão a cristalização das contradições de
classe. O Estado preenche· certmmente o papel geral de fator de
coesão da formação social, isto é, um papel geral de "organização"
e de "regulação", mas esse papel não é distinto de suas funções
em relação à luta das classe·s: é a expressão concentrada da hege-
monia de classe. O que volta a contradizer toda uma série de
concepções (que já foram aquelas de Keynes) referentes princi-
palmente à planificação capital.ista - ver o Planejamento da
França - apreendida como política "racional" e "coerente" de
um aparelho parcialmente "técnico" e "neutro", tendo chegado a
neutralizar ou a conciliar as contradições capitalistas. Essas con-
cepções, que tiveram repercuss~io no movimento operário por
toda a ~orrente da "revolução d'o alto", isto é, pela crença em
uma passagem para o socialismo pela via indireta unicamente do
Estado (Estado-providência, e mesmo socialismo de· Estado), po-
dem apresentar-se sob várias formas.
Não é suficiente, a tal propósito, lembrar, contra as análises
tecnocratas atuais do tipo Galbraith, que a concorr_~I_lçia capita-
lista se reproduz constantemente sob o éaPiülfismo monopolista,
e que o aparelho adrriinistrativo de Estado (o corpo burocrático)
não poderia ser concebido como dotado de uma vontade e de
um poder próprios, impondo sua política ao conjunto da sociedape.
É necessário ir mais além e enfatizar, contra a própria concepção
do capitalismo monopolista de Estãdo:
~

a) as contradições. no seio do bloco no poder, efeitos da con-


tradição principal, que interdita1m precisamente a apreensão do
terreno de dominação de classe como ocupado por uma única fra-
ção, os grandes monopólios, ela mesma abstratamente unificada
e integrada, que cristaliza, pelo Estado-instrumento, uma política
coerente unívoca;
b) o fato de não se poder falar de nenhum "núcleo racional"
da planificação capitalista enquanto tal, correspondente a um ní-
vel qualquer das forças produtivas em si, que as contradições de
classe viriam simplesmente sobredeterminar, pervertendo o seu
aspecto racional intrínseco. A. __p..lanificação ~Q~taljs,,1ª, no sentido
de um domínio efetivo das contradições da reprodução capitalis-
ta, é convenientemente indispensável (mito do capitalismo orga-
184 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

nizado) 19; o que leva, no entanto, ao risco· de conduzir as análi-


ses do capitalismo monopolista de Estado, mesmo que essa con-
clusão seja expressamente combatida por seus autores. De fato,.
repetimos, o papel atual do Estado e suas intervenções são o con_-
densamento contraditório de uma relação de forças, ao contrário
da antiga mas prodigiosamente persistente, concepção idealista
burguesa que, de Hegel a Weber e a Keynes, vê no Estado o
núcleo racional da "sociedade civil". Para trazer, aliás, um exem-
plo conexo ao apoio dessas análises, contentar-me-ei em assinalar
o funcionam-ento atual, perfeitamente capitalista, do setor nacio-
nalizado-estatizado 20 • -O que não-_q~~r.!ª-fil~_nJ_e dizer que a
~-

planificação seja uma ilusão: ela corresponde ao mesmo tempo à


lógica da reprodução monopolista, e àquela da política atual do
Estado como aparelho político precisamente.

2. Mas, por outro lado, e em parte como reação às teses do


capitalismo monopolista de Estado, encontra-se uma série de aná·
lises atuais da esquerda, às quais já fiz alusão, e que colocam pura
e simplesmente em discussão o papel atualmente decisivo do Es-
tado. O Estado se·ria esvaziado de s.eu "poder" em face do "poder
concentrado" dos monopólios. Não se pode ocultar que isso arris-
ca conduzir a uma posição política muito contestável, parcfaJ..
mente ocultada pelo debate· atual da "autogestão", termo que
compreende numerosos aspectos políticos positivos: o objetivo
principal da luta política não seria mais atualmente o Estado, do'"·
ravante o invólucro vazio do capitalismo, mas o único poder do
.capital nas empresas. E não quero com- isso dizer que as teses so-.
bre a autogestão destacam necessariamente essas posições: a ên-
fase reside, no entanto, em constatar que as posições sobre a "au-
togestão" e aquelas sobre o "retraimento atual" do papel do Es;..
tado, seguem, por vezes, lado a lado.
l9 Ver igualmente entre outros:_ E. Altvater, Zu einigen Problemen
des Staatsinterventionismus, em Janicke: Herrschaft und Crise; J. Hirsch,
Funktionsveranderungen der Staatsverwaltung in spiitkapitalistischen 111-
dustriegesellschaften, em B/atter für deutsche u. intern. PoUtik, fevereiro
de 1969; MuIIer-Neusüss, Die Sozialstaatsillusion. . . em Sozialitische Po-
litik, 1970; U. Jaeggi, Kapital und Arbeit in der Bundesrepublik, 1973;
J. O'Connor, "Scientifüc and ldeological Elements in the Economic Th·~o­
ry~ of Governmental Policy", em A Critique o/ Economic Theory, org.
por E. Hunt e G. Schwartz, 1972; Flatow-Huisken, Zum Problem der
Ab!eitung des bürger/ichen Staates, em Probleme des Klassenkampfs, n. 0 7.
maio de 1973: Braunmühl e altri: Probleme einer materialistischen
Staatstheorie, op. cit., em particular a contribuição de J. Hirsch.
!20 Ph. Brachet, L'Etat-patron, théories et réalités, 1973.
0 ESTADO ATUAL E AS BüRGUESIAS 185

III

Esses elementos, conjugados às formas atuais da contradição
principal (burguesia-classe operária) ~ à emergência. da luta d~s
massas populares na Europa, podem igualmente exphcar uma se-
rie de fenômenos importantes que aí se desenvolvem:
a) Primeiramente, a crise hegemônica latente que· atualmert-
te afeta as burguesias européias. Com efeito, no plano da luta das
classes e do bloco no poder, constatou-se que as burguesias euro. .
péias estão, em suas contradições com o capital imperialista ame--
ricatto, constituídas por conjuntos heterogêneos e conjunturais~
0 que já é um fator importante de instabilidade hegemônica, na
interiorização das contradições do capital imperialista no próprio
seio de cada bloco no poder "nacional" europeu. Paralelamente,
as contradições internas nesses blocos no poder só fazem acen-
tuar-se, em um período precisan1ente onde o papel do Estado é
cada vez mais importante e onde a restrição de sua autonomia
relativa se torna, para o capital 1nonopolista, uma necessidade im-
periosa. Então, se não é verdade que o Estado atual se transforma
em simples instrumento dos monopólios, não é menos. verdade que
é cada vez menos apto, nesse contexto, a desempenhar eficazmen-
te seu papel de organizador da hegemonia. A política estatal re-
torna freqüentemente a uma série de medidas contraditórias e
pontuais que, se testemunham a lógica do capital monopolista, não
revelam menos as fissuras e desarticulações dos aparelhos de Es-
tado, reproduzindo as contradições do bloco no poder, em face
do enfraquecimento das capacidades hegemônicas do capital mo-
nopolista. No momento em que o papel do Estado é mais do que
nunca decisivo, o Estado parece afetado por uma crise de repre-
sentatividade de seus diversos aparelhos (inclusive os partidos po-
In1cos) em suas relações com as frações inclusive do bloco no
poder: encontra-se aí uma das razões das controvérsias, na forma
que pelo menos elas poss·am as.surnir no próprio seio da burguesia,
em relação ao "dirigismo estatal'~', à "regionalização", à "descen-
tralização" etc.
b) A isso se acrescenta um fenômeno suple·mentar, que se
prende à nova articulação estreita que se estabelece entre o eco-
nômico, o Estado, e· a ideologia. Se o Estado atual parece ter che-
gado a "regularizar", em certa m·edida, o aspecto "selvagem" das
crises econômicas do capitalismo (o que nada tem a ver com o
mito do "capitalismo organizado") foi seguindo um caminho apa-
,1 ........
186 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HoJE

rentemente paradoxal: isso só se faz ria medida estrita em que


essas crises econômicas são doravante diretamente extrapoladas
7!fil',crzses das superestruturas -- do Estado, inclusive de seus apa-
ré'iiiios ideológicos. Ê, entre outros aspectos, porque o Estado, en-
carregando-se diretamente da reprodução ampliada do capital e
regularizando as "crises econômicas", assume doravante certas
funções preenchidas por essas "crises": desvalorização de certas
partes do capital, inflação e desemprego diretamente gerenciados
pelo Estado (inflação estrutural ou raste.fra etc.) 2)t.
O Estado-tampão ou válvula de segurança das crises econô-
micas transforma-se, assim, em um Estado-caixa de ressonância das
-crises da reproduç.ão das relaçé5es sociais. Com efeito, a .Pfópria
refa~;ão da luta econômica e da luta política de classe enccmtra-§e
atualmente transformada: toda luta econômica choca-se objetí-
~ente, na fase atual, e de forma mais ou menos direta, com
funções e aparelhos, ramos e sub-ramos do Estado. Além disso,
ãeitensâo do processo de valorização do capital e das inten;enções
do Estado em todo urn conjunto de domínios' ("condições e modo
de vida") dependendo doravante diretamente da reprodução am-
pliada do capital, conduz a unia politização notável das diversas.
lutas pela qualidade da vida: lutas tanto mais importantes quanto
não recolocam em discussão as "condições" da produção mas,· de
forn1a cada vez mais direta, a r1eprodução das próprias relaições de
___.____,, ____
Com efeito, é impossível considerar, como o faz toda a ideolo-
~1
gia burguesa, as "crises eco:Iômicas" do capitalismo como momentos "dis-
funcionais" do "sistema" econômico, que o Estado, instância racionali-
zant1e, teria como simples objetivo "evitar". As crises econômicas do ca-
pitalismo são momentos orgânicos da reprodução do capital social: essas
crises, apresentando possibil.idades de expressão ao nível político em cri-
ses políticas e situações revolucionárias, isto é, possibilidades de revira-
volta do capitalismo, apresentam-se, ao mesmo tempo, como concentra-
ção das contratendências à baixa tendencial da taxa de lucro (desval0;-
rização maciça dos capitais, destruição das forças produtivas etc.): essas
"crises econômicas" desempenham então igualmente o papel de "expur-
go" do capitalismo e se apresentam como as próprias condições de ma
reprodução ampliada e de sua perpetuação. O que é sufic;ente para de-
nunciar os erros economistas, que vêem nas crises econômicas um fator
mec;ânico de diluição do capitalismo. Mas o que é irtmortante aqui é o
papel atual do Estado nesse sentido: o Estado, regularizando numa certa
medida as crises econômicas "selvagens" do capitalismo, deve, então, ao
mesmo tempo, se encarregar diretamente das funções orgânicas dessas
crises na reprodução ampliada do capital. Não se trata, pois, de forma
alguma, c:1e um Estado que tenha conseguido "evitar" as cr:ises, mas de
uma gerência por sobre as crises dlo capitalismo pelo próprio Estado, que
tenta simplesmente regulamentar seu aspecto "selvagem". O que se re-
flete' diretamente em crise interna dos aparelhos de Estado e •~m con-
tradições permanentes entre suas diversas funções econômicas.
0 EsTADO ATUAL E AS BURGUESIAS 187

produção 22 . Assim, um certo consenso político fundamentado em


um Estado-garantia da "expansão", particularmente expresso por
toda a ideologia keynesiana, não funciona mais daqui por diante.
A submissão do Estado à lógica da reprodução monopolista, pois
0 que é vivido como "sua" incapacidade de responder às nece~i­
dades das massas nunca foi tão flagrante como num momento em
que intervém em todos os domínios onde essas ne.cessidades se
manifestam. É inteiramente sintomático que a burguesia se veja,
pela primeira vez, obrigada a apresentar um verdadeiro programa
e-m um momento em que, menos do que nunca, ela não pode
realizá-lo.
Diante dessa situação, o Estado atual parece bem caracteri-
zado pela instabilidade de uma gestão permanente da cris~e he-
gemônica latente da burguesia.
c) A estratégia da burguesi~ frente a esse estado de 1coisas
consistê em proceder, custe o que custar, e .em conjunto corn um
recrudescimento da repressão,. a reajustamentos dos processos de
têg1timaçao, no que tange à relação entre as formas atua.is da
;êieologia dominante e a reorganização dos aparelhos de Esta.do_,23 •
~ão é meu propósito aprofundar aqui este assunto. Indicarei sim-
plesmente que esses reajustes de legitimação, que certamente não
se reduzem a uma simples readaptação das relações parlarr1ento-.
executivo, mas também não se identificam com um processo de
fascistização no sentido estrito,. remontam a transformações e~
deráveis da legitimidade burgues~ conforme foi apresentada até
aqui: aquilo que está lado a lado com a crise ideológica que afeta
atualmente e·ssas formações. Todas essas transformações coinpor-
tam uma gama, que ..vai de um deslocamento da le1gitimidade da
~oberania popular em direção a uma legitimidade da administra-
são burocrática do Estado, até a modificação do papel dos par-
1 tidos políticos e dos aparelhos ideológicos, e a alteraçõe·s bruscas
êlos Ihnites jurídico-ideológicos entre "privado" e "público" (sub-
versão do próprio domínio das liberdades fundamentais, por exem-
plo LParece, assim, que não somente a forma tradicional d~
moera.eia parlamentar, mas mesmo uma certa forma de democra-
cia política pura e simplesmente, tenha vivido desde iá sob as trans-

22 Ver pp. 107 sq.


12 3 Sobre este assunto, cf. J. Habermas, Legitimationsprobleme im
Spiitkapitalismus, 1973; CI. Offe, Strukturprobleme des Kapitalistischen
Staates, op. cit.; 1. Balbus, Politics as sports: an interpretation of the
political ascendency of the sports metaphor in America, R.onéo, 1973;
M. Duverger, Sociologie de la Politique. 1973.

·-··-
/ ,- J
188 As CLASSES Soc1AIS NO CAPITALISMO DE HoJE

j formações estruturais. ~o capita~ismo atua.L .seja ~ q~e for, essas


1 transformações de leg1t1maçao tem um ob1et1vo prmc1pal: o~ultar,
1 aos olhos das massas populares, o papel atual do Estado e _a na-
tureza do poder político que ele cristaliza, sob o disfarce de uma
1
instância técnica e neutra, .2..._tecnocratismo atual suplantando ê.
dominância, no seio da ideologia burguesa, da região jurídico-
.:., Í?Olítica da ideologia. A ideologia do Estado ''pluralista", "árbitro~
, entre os interesses dos "grupos sociais" e portador da "vontade
geral" dos "indivíduos-cidadãos" é suplantada por aquela do Es-
1 tado-instância "técnica" em face das "necessidades" intrínsecas da :'
"produção", da "industrializaçlio" e do "progresso técnico".
Não há dúvida de que o Estado atual consiga ter sucesso,
em certa medida (mas por quanto tempo ainda?), nessa operação
ideológica de reprodução da privação dos "indivíduos" no próprio
seio do novo domínio do "público". Com efeito, se a luta eco-
nômica das massas populares si~ choca doravante diretamente com
o Estado, é necessário ver ben1 os limites atuais dessa politização
objetiva. A contestação violenta do Estado que se observa atual;
mente anda muitas vezes em companhia de uma confiança.,
por parte dos próprios contestadores, na direita que detém os le;-
mes de comando: sabe-se sobretudo que, na França, podem-se
perfeitamente queimar os escritórios da secretaria de impostos ou
quebrar os do CRS, votando ao mesmo tempo no UDR. * Isso signi-
fica que a ideoJogi~. atual do ---teenocratisn;i_() é dominante e que
ela domina ainda com freqüênda, sob forma dê.oposição, as lutas
das massas populares aue contestam um "poder tecnocrático" oni-
presente, sem- revelar~sempre sua nªt:ureza política z4. ... ..
Que a burguesia possa mesmo se apresentar como vanguarda
de·sses movimentos, desencaminhando-os, Servan-Schreiber está aí
para no-lo lembrar.

* CRS: Compagnie R~publicaine de Sécurité - Companhia Repu-·•


blicana de Segurança. UDR: Union Démocratique Républicaine .- Un.iã<l
Democrática Republicana. (N. do T.)
:z4 Encontram-se aí, de fato, os efeitos parciais dessa operação ideo-
IOgica, ao contrário de numerosas análises atuais sobre a "tecnocraCia",
sob uma forma (H. Schelsky, "L'Etat technioue", em Auf der Suche
nach Wirkllchkeit, 1965), ou sob outra (H. Marcuse, L'Homme un:di-
mensionnel, 1967), que consideram que as "transformações tecnológicas"
atuais conduzem a uma efetiva desvolitização (suoeração da lut1 de
classes), e mesmo a uma "alienação tecnológica" -("manipulação") dos
indivíduos. É preciso, aliás, observar nue, apesar de suas conclusões
aparentemente opostas, esses autores têm pressupostos bastante seme-
lha;:1tes àqueles dos defensores da "revolução científica e técnica", que
serão amolamente discutidos no terceiro ensaio.
IV. OBSERVAÇõES SOBRE O CO,NTINGENTE
BURGUf.S

1. A Questão dos Empresários

As análises precedentes foram enfocadas sob o ponto de vista


principal da teoria marxista das classes sociais, aquele dos lugares
.aestinados a essas classes na divisão social do trabalho, ªlugares
iesses já designados, na introdução, pelo termo !1-eterminação es-
trutura/, de classe. No que se refere ao capital, insisti nas formas
{}Ue· assume a articulação das duas relações (propriedade econô-
mica, posse) que circunscrevem de forma determinante seu lugar
{pois este se estende igualmente às relaçõe·s políticas e ideológicas)
e os diversos poderes daí decorrentes. Examinarei agora a ques-
tão dos agentes que ocupam esse lugar; questão ao mesmo tempo
·unida à· primei;a e relativamente distinta dela. Com efeito, a ca-
Tacterização de certos agentes como burgueses não representa um
·simples adjetivo que lhes possa ser adicionado como qualidade
jntrínseca - principalmente sua origem de classe -, mas depen-
de do lugar que esses agentes ocupam: de sua situação relativa às
-relações que circunscrevem o lugar do capitaL e me.smo em rela-
·ção aos poderes que eles exercem e que decorrem constitutiva-
mente dessas relações.

O problema alcança toda a sua importância quando se con-


:sidera uma série de análises de sociólogos e de economistas mo-
dernos que, em seu estudo da "sociedade atual", separam, ao mes-
mo tempo, radicalmente, as relações em questão e os poderes daí
190 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

decorrentes de fato, e· cercam a problemática das classes sociais.


essencialmente em termos de agentes (as classes sociais seriam a
soma dos indivíduos-agentes que as compõe·m).
Essas concepções apresentam-se sob várias formas: aquela
que mais nos interessa está centralizada em torno do tema empre-
sários. Ela fez correr muita tinta nos anos que se seguiram à
Segunda Guerra Mundial, e se renova constantemente, sendo sua
última variante aquela da tecnoestrutura de Galbraith.
A base do assunto é atacar a concepção marxista das classes
sociais que, eterna discussão, seria exata para o século XIX, mas
não corresponderia mais à sociedade moderna, "pós-industrial"~
"tecnoburocrática" etc. Essa concepção está baseada em vários
pressupostos: a big corporation - a grande empresa - atual es-
taria baseada em uma separação radical, entre a "propriedade'~
dos meios de produção e os "poderes de decisão": estes seriam
exercidos por agentes-empresários (tecnoestrutura) radicalmente
distintos dos proprietários, empresários entendidos freqüentemen-
te como a nova "classe" dominante·. Isso teria conseqüências im-
portantes no que tange às motivações de conduta dos empresários,
motivações diferentes daquelas dos proprietários: a mentalidade
empre·sarial não mudaria, como foi o caso dos proprietários, pelo
lucro, ·mas pelo poderio e expansão da firma, não estando mais a
sociedade atual fundamentada na lógica do lucro.

Se é essa, em linhas muito gerais, a problemática dos empre-


sários-tecnoestrutura, seu duplo .pressuposto epistemológico, quer
dizer, a ruptura entre as relações-relações (relations-rapports) de
produção e os poderes, de um lado, e, de outro, a problemática
das classes fundamentada nos agentes, encontra-se em toda uma
série de concepções aparentadas:
a) aquela de R. Dahrendorf 1 cujas fontes remontam a Max
Weber, e cuja crítica fiz em outro lugar: a constituição das clas-
ses ou, antes, dos "grupos sociais" decorria primeira e· fundamen-
talmente de "relações de poder", definidas essencialmente como
relações de· "comando" e de "obediência" ·-nas instituições do tipo-
"autoritário", sendo somente a propriedade uma das conseqüên-
cias possíveis dessas relações de poder. O que significa, no final

1 Atualmente em tradução francesa, Classes et Conflits de classe-


dans la société industrielle, 1973; a propósito de uma crítica marxista de
Max Weber, os artigos fundamentais de J.-M. Vbcent em Fétichisme et
Société, 1973. Ver igualmente M. Lowy, Dialectique et Révolution, 1973.
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 191:

das contas, a objeção tradicional à concepção marxista das classes


SOClaIS.
É, pelo menos em alguns de seus aspectos, a mesma corrente
que realça em definitivo as análises de Touraine 2 , se bem que·
tenha sido um dos primeiros a assinalar que o principal perigo·
ideológico atual reside nas diversas "te~orias da organização", e
que suas análises sejam incontestavelmente de um teor diferente
daquelas de Dahrendorf. Não ·é aqui o lugar de entrar em uma.
crítica exaustiva das concepções pessoais de Touraine: indico sim-
plesmente que essa corrente assume nele a forma conceptual de·
uma divisão em classes da "sociedade pós-industrial" entre aque-
les que comandam e decidem (detentores do "saber" distintos dos.
proprietários) e aqueles que executam.
b) aquela de um exame da classe dominante atual em termos.
de grupos de agentes, a saber, de elites no podet,. Encontramos.
essa concepção principalmente em~Wright Mil!§, J. Meynaud etc.,
para quem, "paralelamente" aos proprietários constituindo um
dos grupos-elites, encontraríamos um grupo-elite distinto e equi-
valente ao primeiro, os empresários: concepção que foi retomada
atualmente, em certa medida, pelo próprio R. Miliband 3 • Encon-
tramo-la, exatamente (o que não é de admirar, dado seu weberis-
mo impenitente), em P. Bourdieu, que se dedicou ultimamente à
questão da classe dominante: e isso, apesar do fato de empregar,
no lugar do termo elites, o termo .frações de classe (o marxismo
obriga), essas frações "recobrindo. . . as categorias socioprofissio-
nais" do INSEE *! Com efeito, Bourdieu nos ensina que "as diferen-
tes frações da classe dirigente" são: "1) Os professores; 2) Os exe-
cutivos dos setores públicos; 3) As profissões liberais; 4) Os enge-
nheiros; 5) Os executivos do setor privado; 6) Os patrões da in-
dústria; 7) Os patrões do comércio." Os empresários, identifica-
dos além dos "executivos", são aqui visualizados como fração da
"classe dirigente" 4 •

12 Les Classes dans une société post-industrielle, 1971.


a L'Etat dans la société capitaliste, 1973. Sobre este assunto, cC
minha controvérsia com MiLiband em Politique aujourd'hui, março de
1970.
* INSEE: Institut National de Statistique et des Etudes Economi-
ques - Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos.
(N. do T.)
4 P. Bourdieu: "Reproduction culturelle et reproduction sociale'~,.
em Informations sur les sciences sociales, UNESCO, abril de 1971, princi~
palmente p. 59. O que não impede Bomrdieu de falar, cinco páginas além
(p. 64), da "fração dominante das classes dominantes: burguesi~
192 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

Essas concepções, apoiando-se em certas transformações pró-


prias ao capitalismo monopolista, já mencionadas por Marx no
âmbito de suas observações sobre as sociedades por ações, esta-
belecem numerosas confusões.
A primeira confusão que surge aqui é aquela da identificação
entre propriedade jurídica e propriedade econômica, sendo, esta
última," a verdadeira relaÇão ae produção. Ora, se é evidente que
se constata sob o capitalismo monopolista uma dissociação relati-
va entre essas duas propriedade·s, sendo que cada "ação" não com-
porta uma parte equivalente de propriedade econômica, não é
menos verdade que a propriedade econômica real pertença ao
1ugar do capital.
Mas isso não é ainda uma resposta à problemática dos em-
presarws: quais são exatamente esses empresários, e aual é sua
·determinaçao estrutural ou pertencimento de classe? Fazem eles
~ou não parte da classe capitalista, a que título e por quê? Se fa-
zem, constituem dela uma fração distinta, e qual seria a base
·dessa distinção? Isso -equivale a colocar o problema da relação
,entre os lugares das classes sociais e os agentes que os ocupam.
Dispomos, nesse sentido, de algumas respostas à problemáti-
·ca dos empresários, baseadas no material empírico, mas que, de
fato, não esgotam a questão. A primeira de·monstra que, em sua
grande maioria, os agentes-portad ores dos poderes decorrentes das
relações de propriedade e de posse (os empresários, os chefes exe-
·Cutivos, os altos executivos e diretores das empresas) se identifi-
cam praticamente com os agentes da propriedade econômica. E
isso não simplesmente porque todos se banhariam no mesmo
·"meio social" ou porque dividiriam entre si o mesmo "capital
cultural", segundo a fórmula cara a Bourdieu, mas porque detêm,
e·m geral, um número apreciável de ações, dotadas de um alto ín-
·dice de propriedade econômica. O pertencimento dos empresários
~-J à classe capitalista seria então baseado, diretamente, no fato de
·que eles seriam os portadores imediatos das relações de proprie-
·dad_~jurídica e econômic{l l'í. •

dos negócios". Isso já me leva a -assinalar um nrcblema aue será e;1.con-


trado em seguida, e que se refere à característica arbitránia da classifi-
cação do INSEE em categorias socioprofissionais (csp) segundo o critério
da profissã0": os empresários princinalmente, e os "vértices" dos apare-
lhos de Estado que serão questionados, não abrangem exatamente os di-
versos "executivos superiores" do INSEE.
5 Ver principalmente o artigo muito interessante, sobre esse assunto,
de R. Blackbum, "The New Capitalism", em ldedlogy in Social Science,
.Blackburn, 1972.
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 193

A outra resposta situa-se diretamente numa problemática dos ~. '::<.


agentes-sujeitos, sendo as classes sociais consideradas precisamen-
te como o conjunto dos indivíduos que as compõem: nessa pro-
blemática, clara sobretudo e·m Miliband, e inclusive em Sweezy e
Baran, o critério de pertencimento de classe residiria finalmente
nas motivações de conduta dos agentes. Esforça-se, assim, por de-
monstrar que os próprios empresários obedecem realmente à ló-
.gica do lucro, "imposta" pelo "sistema": daí toda uma série de
análises muito sábias, que se dedicam, até à exaustão, a demons-
trar a evidência, a saber, que as empresas dirigidas pelos empre-
sários são tão calcadRs no lucro quanto aquelas dirigidas atual-
mente pelos membros das "famílias" que detêm a propriedade. Os
,empresádos, transformados pela "apatia do ganho", tanto quanto
'.os proprietários, pertenoeriam, nesse sentido, à classe dominante.
Mas suas motivações e sua m·entalidad~ apresentando mesmo
assim particularidades em relação àquelas dos proprietários, eles
constituiriam diante deles uma elite - fração - dis~inta da classe
dominante.
Essas duas respostas revelam-se igualmente insatisfatórias. A
primeira, ao esclarecer as relações dos empresários-agente·s com
a propriedade, deixa de lado, entretanto, a distinção certa que
existe atualmente, .em numerosos casos, entre os agentes porta-
dores das relações de propriedade e de posse, de um lado, e, de
·outro, aqueles que exerce·m os poderes daí decorrentes. Se não
há sombra de dúvida que os empresários "faz;em negócios", eles
não são sempre física e pessoalmente identificáveis com os agen-
tes que concentram em suas mãos a propriedade econômica real
das empresas que dirigem.
Quanto à segunda, ela deixa de lado o fato de que o critério
de pertencimento de classe não é fundamentado em motivações
ôe conduta: o próprio Max Weber reconhecera que o critério de
pertencimento à classe capitalista não é a "apatia do ganho". O
lucro não é uma motivação de conduta, mas uma categoria obje-
tiva que esconde uma forma de realização da mais-valia.
Mas é preciso, neste último caso, ir ainda mais além. Fun-
damentada numa problemática dos agentes, essa concepção pro-
ªpõe forçosamente o duplo problema de pertencimento de classe
e das diferenciações no seio da classe dominante·, em termos de
grupos sociais e de indivíduos que a compõem: em lugar de uma
diferenciação da classe dominante em termos de frações do ca-
pital, encontramos aqui uma diferenciação em termos de elite ou
gr npos no poder. Atingimos, então, a base dos cnténos ditos
194 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

"sociológicos", quando considleramos os empresários como uma


elite (fração) distinta da classe dominante·, cujos proprietários -
indiferenciadas - só representariam uma outra fração, parale-
lamente, aliás, a toda uma série de outros grupamentos de agen-
tes. A unidade de·sses grupos·-elites como classe dominante é fi-
nalmente . deduzida de um conjunto de critérios tais como sua
participação comum no processo de "tomada de decisões" -
divisões entre aqueles que decidem e aqueles que executam- sua
"cultura" comum, suas relaçê>es interindividuais etc.

II

Marx já havia assinalado que as modificações corresponden-


tes à sociedade por ações provocam diferenciações entre os agen-
tes que são os portaàores das relações de propriedade e de posse,
e os agentes 'lue exercem os ]poderes que aí estão diretamente li-
gados. Com efeito, enquanto JtlO moao de produção capitalista "o
trabalho de direção. . . torna-se a função do capital" (o capital-
/unção segundo o termo exato de Marx), "a produção capitalista
atingiu o estádio em que o trabalho de alta direção, inteiramente
separado da propriedade do 1capital, passou a ser comum. Tor-
nou-se, pois, inútil ser o trabalho de direção exercido pelo pró-
prio capitalista. Um regente de orquestra não tem necessidade de
ser o proprietário dos instrumentos ... Afirmar a necessidade
desse trabalho como trabalho capitalista e função dos capitalis-
tas não significa outra coisa senão a incapacidade do vulgar -
a grande massa dos .economistas políticos - de se representar
as formas desenvolvidas no se:io da produção capitalista ... 6 ". As
análises de Marx são claras: enquanto os diversos poderes da pro-
priedade e da posse pertencern ao lugar do capital - são "fun-
ções" do capital - .eles não s:ão necessariamente preenchidos P:e:
los próprios agêiifes propnetános -, eles não são "funções" dos
êapitalistas proprietários.

Seria necessário desenvolver as análises nesse sentido: é o


lugar do capita!, definido como articulação de relações compor-
tando poderes, gue determina o pertencimento de classe dos agen;-
tes que preenchem essas "funções:'. O que remonta a dois aspec-
tos, ligados, do problema:

·6 Le Capital, Ed. sociales, t. II, p. 23; t. VII, pp. 51-52.


'"-
'
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 195
.
a) os poderes referentes seja à utilização dos recursos, à
alocação dos me10s•de produção a tal ou qual utilização .etc., seja
à direção do processo de trabalho, estão ligados às relações de
,propriedade econômica e de posse, ê essas relações delimitam um
Ünico e mesmo lugar, aquele do capitaJ;
- a) os agentes dirigentes que exercem diretamente esses po-
deres e que preenchem as "funções do capital" ocupam o lugar
do capital, e possuem, assim, um pertencimento de classe bur-
gues, mesmo que não detenham a propriedade jurídica formal.'
Os émpresários fazem pois, em todos os casos, parte integrante
da classe burguesa. Duvidamos que não se trate aqui de delimitar
de forma estatístico-empírica as fronteiras "numéricas" do "gru-
po" de empresários, ou mesmo deddir a que "categoria sociopro-
fissional" pertencem esses agentes dirigentes, ou ainda dizer quem
exatamente exerce, neste ou naquele caso preciso, essas funções.
Ao falar precisamente dessas funções ligadas ao lugar do ca-
pital, e dos poderes daí decorrentes vemos perfeitamente que esse
lugar se define a partir do con 'unto da divisão social do trãbã_':'
o: e e não se limita às relações de produção, mas estende-se às
relâções ideológicas e políticas que essas relações de produção im-
plicam, e que são, assim, um fator constitutivo da determinação
estrutural de classe. O papel dirigente dos empresários - o fato
de preencherem funções do capital e de exercerem diretamente
os poderes - está ligado à sua situação na autoridade hierárquica
da organização despótica do trabalho na fábrica, à sua situação,
igualmente, .em relação ao "segredo do saber" e ao "segredo buro-
crático" na divisão entre trabalho intele·ctual e trabalho 'manual,
ficando essas situações, pelas formas precisas que assumem em
seu caso, como determinações de classe burguesas. Esse lugar obje-
tivo dos empresários nas relações políticas e ideológicas não se
reduz a simples traços de "cultura" ou de· um "meio social"; ele
se concretiza na ideologia específica desses agentes que, sob sua
forma de "racionalidade econômica", de "eficiência de rendimen-
to", de "expansão" etc., em suma, sob a forma do tecnocratismo,
é a variante atualmente dominante da ideologia burguesa.

Isso nos permite ainda concluir: os e·mpresários, por perten-


cerem à classe capitalista em razão do lugar do capital que
ocupam, não poderiam constituir uma fração distinta desta classe,
principalmente uma fração distinta dos proprietários. Com efeito,
de um lado, os empresários não dispõe·m de um lugár - de uma,.
196 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

relação - própria: as dissociações que principalmente foram


constatadas entre as relações de propriedade econômica e de posse
_ direção do processo de trabalho - não significam absoluta--·
mente que esta última, exercida pelos ·empresários, se separari<:l
do luga; do capital. Por outro lado, quando se constata uma dis-
sociação entre os diversos "agentes" portadores das relações do.
capital e aqueles que exercem seus poderes, não se trata também,
absolutamente, de uma separação qualquer entre o lugar do ca-·
pital e seus poderes (capitalistas contra empresários)· ou, mais
precisamente, de uma separação qualquer entre as relações de
propriedade econômica e de pos.s.e, de um lado, e os poderes daí
decorr.entes, de outro. Este ou aquele empresário, ou coniunto de·
empresários, pertence à fração do capital cujo lugar ele ocupa:
capital industrial, capital bancário, capital comercial etc. Em ou-
tras palavras, os próprios empresários nãp possuem uma unidade
própria de fração de classe, ao contrário do que· sustentam atual-
mente numerosos analistas, principalmente na França, e que apro-
fundam uma "unidade sociológica" dos empresários ou "tecno-
burocratas" mais freqüentemente a partir de sua formação escolar
e de sua comunidade cultural, a saber, sua passagem pelas gran-·
des escolas, Politécnica, ENA *, Central etc.
Mas e.ste último tipo de análise tem repercussões ainda mais
longínquas: não se lê um pouco por toda parte que, para favo-
recer a implantação do capital estrangeiro, principalmente ame-
ricano, em um país europeu, seria necessário saber se os postos
de direção da filial estão ou não confiados a executivos "autóc-
tones"? Supõe-se, por isso, que a origem nacional desses empre-
sários, associada à sua "autonomia de decisão", poderia ter efei-
tos sobre o funcionamento desse capital em favor da economia
nacional: não é inútil mencionar aqui que a política dos "diri-·
gentes autóctones" é uma característica particular da trist·emente
famosa ITT! Na mesma ordem de idéias, não se atribuiu muitas
vezes a política econômica do gaullismo à "escolha industrial'~
dos egressos da ENA?
De fato, as diversas fases do capitalismo monopolista, as f ar-
mas diferenciais de articulação das relações propriedade econô-
mica-posse e dos poderes daí decorrentes, traduzem-se, segundo
essas fases, em formas características de dissociação dos agente~-­
portadores dessas relações e que exercem esses poderes. Processo
~ue é geralmente estudado pelos sociólogos e economist~s atuais sob
* ENA: Ecole Nationale d'Administration - Escola Nacional de
-AdmJnistração. (N. do T.)
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 197'

0 tema de "centralização~descentralização" ou de "burocratização-


desburocratização" da grande firma, como "modelo de organi-
zação", ou forma do "processo de tomada de decisão" na grande
empresa e na firma multinacional. O que seria necessário subli-
nhar é que se trata dos efeitos secundários das formas que· assu--
mem as relações de produção, e o processo de reprodução das
relações sociais, nas unidades de produção: não são devidos a
fatores de ordem técnica - principalmente ao emprego da infor-·
mática. Trata-se aliás, realmente, de efeitos contrários ao que
implica a antiga tradição institucionalista com sua noção de "em-
presa", sob sua forma atual de "teoria da organização", a saber,
finalmente, que é a estrutura própria da empresa-instituição que
determina as relações que aí se estabelecem: relações que se tor-
nam então relações de "poder" entre aqueles que "decidem" e aque-·
les que "executam", independentes das relações de produção e de'.
exploração.

Finalmente, um último ponto: as questões relativas aos indi-


víduos-agentes referentes à sua identificação física e às suas re-·
lações interpessoais podem, no âmbito do limite e do melhor, ser-
vir de simples indicadores dos processos fundamentais, com a
condição de serem claros com respeito ao papel de indicadores
e com respeito a seu caráter freqüentemente deformante. Por·
exemplo, o processo tendencial de reunião do capital industrial
e do capital-dinheiro em capital financeiro tem freqüentemente
como efeito a interpenetração física e pessoal de seus agentes. É
público e notório que os conselhos de administração das grandes
firmas industriais comportam agentes dirigentes e proprietários·
de monopólios bancários, e vice-versa: é igualmente- conhecido o
atual fenômeno de intertrocas e de mobilidade do pessoal dirigen--
te das diversas frações do capital. Podemos assim, certamente,
por um estudo da composição desses conselhos, tirar indicações
sobre as formas concretas, em casos precisos, do processo de fu-·
são do capital (um dos modos sociológicos em voga atualmente
consiste- na contagem e exame dos diversos Who's Who?). Mas
esses indícios podem com freqüência ser enganadores, e sobretudo
ocultar os processos fundamentais e as estratégias das diversas
frações do capital: para citar somente um exe·mplo, a presença
dos representantes dos grandes bancos nos conselhos de adminis-
tração das grandes empresas encontra-se tanto na França quanto,
na Alemanha, mas não se reveste da mesma significação. Na Ale-
manha principalmente, o capital monopolista bancário teve sem--
198 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

_pre uma política direta de intervenção e de investimento na in-


dústria, enquanto o capital[ bancário na F:rança se reveste ainda
.hoje de um caráter altamente especulativo (bolsista ou investido
maciçamente em operações imobiliárias) .

2. Os "Vértices" do Aparelho de Estado

I
Essa mesma problemática dos agentes-sujeitos encontra-se
atualmente em uma série de análises concernentes desta vez às
I
.relações atuais ·entre a elas.se dominante e o aparelho de Estado:
·vâo de algumas análises do PCF referentes ao capitalismo mono-
·polista de Estado àquelas de R. Miliband e de J. K. Galbraith
·sobre o Novo Estado Industrial. Essas análises visam principal-
·mente a demonstrar a relação entre a fração hegemônica do ca-
pital monopolista e o aparelho de Estado pela identidade física,
·pela identidade de origem de classe ou pelas relações interpes-
soais entre os agentes da fração monopolista do capital e os vér-
tices - os altos funcionários, os membros dos gabinetes ministe-
Tiais, o pessoal político em sentido lato - do aparelho de Esta-
do. ·Para o PCF, principalrnente, a prova da fusão do Estado e
dos monopólios em um "naecanismo único" encontra-se na iden-
·~ificação física dos "indivíduos" que os dirigem. O modelo típico
·dessas análises é aquele de "Pompidou-banqueiro" 7 •
Ora, esse aspecto da questão é aleatório e se.cundário. Com
efeito, a lração hegemônicJJ. foi freqüentemente, e o é ainda, se-
gundo as formações sociais, distinta da classe ou fração reinante,
no interior da qual se recnJtam - origem de classe - ou à qual,
·por vezes, pertencem os rnembros superiores e o pessoal político

l
dos aparelhos de Estado. Esse fenômeno não tem, no entanto,
em nenhum lugar, impedido a correspondência objetiva da polí-
tica estatal e dos interesses da fração hl#emônica. Procurar a
todo preço essa correspondência em uma ntidade suposta entre
·a fração hegemônica ·e a classe ou fração reinante leva, nos casos
em que existe um distanciamento claro entre as duas, a conside-
rar a classe reinante como detendo a hegemonia: eis aí o que
·constituiu a base dos erros das análises socialdemocráticas refe-
rentes ao fascismo, considerado como "ditadura da pequena-bur-

Ultimamente, H. Claude, Le Pouvoir et L'Argent, 1972, livro que


7
·contém apreciações notáveis. •
ÜBSERV AÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 199

guesi~" em razão da origem pequeno-burguesa de classe do alto


contingente dos aparelhos de Estado sob o fascismo.
Voltemos ao Estado atual: o argumento exposto, que só as-
sume uma exatidão aproximativa, pode também conduzir à ocul-
tação da hegemonia de classe. Sabe-se que, atualmente, sob al-
:guns governos socialdemocratas europeus (Alemanha, Áustria,
Suécia, Grã-Bretanha de Wilson), a hegemonia do capital mono-
polista se realiza pela utilização indireta de um contingente polí-
tico em grande parte saído das file:iras não somentie do capital não-
rnonopolista, mas também da pequena-burguesia, e mesmo, fre-
qüentemente, da aristocracia operária pelo canal sindicato-partido
socialdemocrata ou trabalhista. É isso que os apologistas desses
governos apresentam como prova de ausência, sob seu regime,. da
hegemonia do capital monopolista 8 •

Entretanto:
a) tudo isso não quer dizer que membros da classe ou fra-
ção hegemônica não tenham diretamente participado dos apare-
lhos de Estado capitalistas (governo, alto pessoal dos partidos
políticos, vértices da administração de Estado) : foi sempre o caso
para toda forma de Estado capitalista, tanto no passado como no
presente. Pode-se mesmo certamente dizer que tal fenômeno é,
no aparelho de Estado da fase atual, mais marcado do que antes:
ao mesmo tempo, em razão do papel decisivo da intervenção eco-
nômica do Estado atual, da ampliação do setor econômico na-
cionalizado em cuja direção o capital monopolista intervém, da
dependência particular do capital não-monopolista em relação ao
ca,pital monopolista e, enfim, em razão das transformações insti-
tucionais do Estado. Mas tal fenômeno, assumindo aqui também
o valor de indicador, permanece secundário e não pode, de toda
forma, ser interpretado como u1n "embargo-físico" dos "mono-
polizadores" sobre um Estado que, antes, conservava ainda uma
"'pureza" virginal de "arbitragem'' por "honestos funcionários".
b) acrescentarei uma palavra sobre o caso francês: o fenô-
meno assinalado, nesta última década, pela presença direta dos
membros da fração monopolista no seio dos aparelhos de Estado
foi sobretudo apreender por comparação com um passado parti-
.cu lar da França, ligado à tradição "jacobina" da terceira ou mes-
s Naturalmente, só se trata aí de um aspecto secundário do pro-
.blema dos governos socialdemocratas, problema que não tenho intenção
.de abordar aqui em profundidade.
200 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

mo da Quarta República. É, além disso, igualmente verdade que>-


ª tal respeito, não somente a Quinta República recuperou o atra-
so mas também ultrapassou alguns outros Estados das metrópo-
le~, apresentando uma tendência real de colonizaçãÓ do Estado
pelos membros diretos da fração monopolista. No entanto, isso
está ligado às particularidades do regime gaullista - e mesmo
ao caráter do movimento-partido gaullista e às instituições da
Quinta República - de modo que funcionou em um país onde
a intervenção econômica do Estado é particularmente importan-
te (o aparelho do Plano foi o verdadeiro serralho de colonização
do Estado pelos membros do capital monopolista) e o setor na-
cionalizado do Estado particularmente extenso;
c) não se poderia esquecer que esse fenômeno está contra-
balançado, na própria França, pelo sistema da /unção pública e
das grandes escolas, que fornecem um pessoal político saído ain-
da, em proporção apreciável, das fileiras do capital não-monopo-
lista, das profissões liberais e mesmo da pequena-burguesia 9 '.
Pode-se dar ainda que esse elemento, que nega a identificação
dos membros da fração monopolista e dos aparelhos de Estado
pela origem de classe, seja recuperado, por outros meios indire-
tos pela corrente ideológica das elites e dos empresários. Insistire-
mos, neste caso, sobre a comunidade de formação e de "cultura'"
dos egressos da ENA, dos normalistas, dos centralistas, dos politécni-
cos que se orientam para a direção dos negócios e aparelhos de Es-
tado, e que apresentam um alto grau de intertrocas e de mobili-
dade de funções através da via indireta do setor econômico na-
cionalizado e dos canais de "simulação". Naturalmente, tudO'
aquilo que examinamos sobre o assunto é simplesmente a hege-
monia do capital monopolista, que está sendo substituído pela
"casta", "elite" ou "classe" tecnoburocrática todo-poderosa e in-
vasora, que· se supõe deter os lemes de comando reais da economia
do Estado.

II

Enfim, as análises que se baseiam na pretensa identificação·


física dos membros da fração monopolista e da classe capitalista
com os membros do aparelho de Estado, ou na sua redução me-
cânica a um denominador comum relativo à sua origem ou me·s-
9 Segundo uma pesquisa do IN&EE (Etudes et Conjoncture, feve-
reiro de 1967).
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 201

mo a um pertencimento de classe, ocultam inteiramente um


problema importante: a existência e o funcionamento particular
da categoria social, dos membros do aparelho de Estado, em suma,
aquele da burocracia de Estãdo. Os funcionános de Estado cons-
tituem uma categoria social: sua determinação depende precisa_:-
mente da relação de seus memDf;os com os aparelhos de Estado
ê" do fato de que eles realizam as funções objetivas pertencentes
1io Estado.
Qual -é o fato essencial a tal respeito, que as análises da fu-
são do Estado e dos monopólios em um mecanismo único ocul-
1

tam? É precisamente que o funcionamento dessa categoria social,ll


não se reduz à origem (ou mesmo ao pertencimento) de classe de
seus membros: se esse fosse o caso, o problema da burocracia,
tão importante então para Marx, Engels, Lênin e Gramsci, não
seria sequer proposto.
Essa categoria social, cujos membros são em geral de origem
e de pertencimento de classe diferentes, apresenta, amiúde·, ape-
sar dessa diversidade, uma unidade interna espedfica, que é
apenas o efeito sobre os agentes da unidade do poder de Estado
e da unidade institucional dos aparelhos de· Estado (principalmen-
te seu "centralismo"). Essa categoria social pode primeiramente
servir, enquanto conjunto, aos interesses de outras classes ou fra-
ções que não aquelas às quais peTtencein sobretudo seus "vérti-
ces". ou de que são originários. O caso clássico analisado por ·
Marx foi o inglês, que era o de uma burocracia de Estado cujos
"vértices" pertenciam à nobreza da terra e que funcionava a ser-
viço da burguesia; o caso analisado por Lênin foi o dos "especia-
listas burgueses", de origem de classe burguesa, a serviço do
Estado soviético. No entanto, só precisamos lembrar igualmente
o caso da burocracia fascista a serviço do capital monopolista, ou
ainda aquele do pessoal técnico de origem de classe pequeno-bur::
guesa na França sob a Terceira República, com sua tradição ja-
cobina, a serviço da burguesia.
Além disso, essa categoria social pode, em conjunturas deter-
minadas, .funcionâr como força social efetiva. Nesse caso, ela in-]

l
tervém no campo político e na luta de· classe com um peso espe-
cífico: ela não está pura e simples1nente "no rastro" nem da clas-
se ou fração hegemônica, nem da classe ou fração da qual ela
·é originária ou à qual pertence.

Observa-se bem, então, que a categoria social dos agentes do


aparelho de Estado, a burocracia no sentido lato, assume um papel
202 AS CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

ri próprio que é desempenhado precisamente nos limites da autona;


ºmia relativa do Estado capitalista 10 • Mas ainda é preciso dizer
f duas palavras sobre o pertencimento de classe dos agentes dessa
categoria social: com efeito, a questão de classe dessa categoria
social não se reduz, simplesmente, àquela da origem de classe de
seus agentes. Uma categoria social, como também uma camada
ou uma fração, não é um "grupo" ao lado, por fora ou· acima
das classes. Seus agentes não têm simplesmente uma origem de
classe, como se, a partir do momento em que pertencessem à
burocracia do Estado, cessassem de fazer parte das classes sociais.
É tanto mais necessário enfatizar isso que as análises atuais do
PCF, por menos paradoxais que pareçam à primeira vista, consi-
deram esses agentes do Estado como "grupo" que e·scapa ao per-
tencimento de classe. Teríamos de alguma forma, nos aparelhos
de Estado, de um lado, a pre,sença maciça e direta dos próprios
"monopolizadores", e de OUltrp, radicalmente distintos dos primei-
ros, os "funcionários" que, enquanto conjunto intrínseco, esca-
pariam às determinações de classe, constituindo uma das famosas
~'camadas antimonopolistas 11 ": suf)Õe-se que estas - voltaremos
ao assunto -· · estão situadas à margem e fora das classes.
De fato, o funcionamento dos agentes do Estado em catego-
ria social não poderia, a me~nos que abandonasse a teoria marxista
das classes sociais por uma concepção qualquer da "estratifica-
I:Jdessa
~ção", suprimir ou ocultar ..a questão da determinação de classe
categoria, e de seus· agentes. Estes dependem, de fato, de
classes diversas: em geral, da burguesia para os "vértices" dos
aparelhos de Estado, da pequena-burguesia para os escalões inter-
mediários e subalternos. Vamo-nos deter, no momento, no caso
dc.s "vértices" desses aparelhos. Esses "vértices" são, em geral, de
pertencimento de classe burguls, não em razão de suas relações
mterpessoa1s com os membros do capital,. mas o'rincipalmente por:-
que, em um Estado capitalista, preenchem a direção das f unçÕe§
Jô Estado a serviço do capital.

Segundo seu próprio papel, a burocracia intervém assim na ~u-


l:O
. tonomia relativa do Estado capitalista: mas esse papel não é nem a
causa nem o fator principal dessa autonomia como o apresenta o con-
junto das concepções idealistas, que apreendem o Esta:lo como sujeito
e que levam sua "autonomia" à sua "vontade racionalizai:ite" cuja buro-

l
crac:a seria a encarnação (Hegel, Weber etc.). É, ao inverso, a autono-
mia re'ativa do Estado, inscrita em sua própria estrutura (ver acima),,
a passive esse pape especifico da burocracia.
e cap1 a zsme monopoliste d'Etat, já citado, t. I,
pp. 233 sq.
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 203

Mas essa determinação de classe dos vértices d~s aparelho!


de Estado na medida principalmente em que está hgada a seu
pape1 com~ categoria social, não é nem direta, nem imediat!: _elã
se serve mdiretamente do aparelho de Estado que os constitui
.paralelamente em categoria social. &egue-se _que, ~e não. P?demo~
~utender esses "vértices" como uma fraçao (ehte) d1stmta da
,classe burguesa, não há lugar também para nos perguntarmos ,J-
QJJ-ªl fração da classe capitalista eles pertencem. Ao contrário dos
,eróprios. empresários que _ocupam o lugar ~o capital e se achaJl1
~ssim diretamente submetidos aos seus fracionamento§, o perten:
cimento burguês de classe· dos vértices do aparelho de Estado é
r·efratado e mediatizado pelo papel do Estado na coesão e ni
reprodução das relações sociais dê uma formação capitalista. Serià
mais exato dizer que os fracionamentos da burguesia se refletem
!ndiretamente no seio dos "verhces" do aparelho de Estado, quer
dizer, através d~ via indireta das diferenciações e defasagens én-
tre os diversos ramos e aparelhos de Estado que (no inferior dà
\lnidade do poder de Estado) reproduzem as contradições do 61 oco
no poder 12•
Assim, mais ainda do que no caso dos empresários, pois sei
trata aqui de uma categoria sociql, a situação desses agentes nas
relações políticas e· ideológicas desempenha um papel importante
Da sua determinação estrutural de classe. Esses agentes estão di:
retamente ligados aos. aparelhos de Estado, comandando a "reali-
zação" do papel do Estado na reprodução da divisão social do

1J2 É a partir desses princípios diretores que podemos analisar corre-


tamente a situação. atual. Com efeito, na medida em que o papeJ atual
do Estado implica um "deslocamento das funções de representação-orga-
nização dos partidos políticos e~ direção à administração de Estado,· as
contradições atuais do bloco no poder se manifestam por excelência
no próprio seio do aparelho de Estado, no sentido estrito: elas assumem
de um lado a forma de contradições internas entre seus diversos ramos.
e instituições (os diversos "ministérios" e "administrações", o aparelho
central e o aparelho comunal etc.), e, de 'outro lado, a forma de con-
tradições e..1tre as diversas intervenções do Estado. Daí o fenômeno.
atualmente carac.terístico, das permutações incessantes das diversas fun-
ções .do Estado de um aparelho ou ramo a outros, e a recuperação cons-
. tante de suas "esferas de competência". Esse deslocamento do papel <lo
Estado na organização da hegemonia em direção ao corpo administra-
tivo tem conseqüências contraditórias: a) uma politização crescente dos
vértices administrativos dos aparelhos de Estado (sobre esse assunto,
J.-P. Chevenement, em Chevenement e Motchane: Clefs pour le socia-
lisme, 1973); b) tendências centrífugas de uma "autonomização" da admi-
nistração de Estado no :interior dos limites estreitos, que a fase atual
impõe à autonomia relativa do Estado: isso dá lugar às reivindicações
da própria burguesia contra o centralismo-dirigismo estatal.
204 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

trabalho, mais particularmel)te na reprodução das relações de do-


minação-subordinação política e ideológica. Ora, o Estado, assu-
mindo esse papel de reprodução da divisão social do trabalho na
formação social, concentra e representa ao mesmo tempo, em e
por seus próprios aparelhos, esta divisão social,: o Estado, diziam
Engels e Lênin, resume em seu próprio seio as contradições so-
ciais. Em outras palavras, esses agentes exercem o papel do Ês--
tado próprio a essa divisão social, ficando, enquanto membros de
seus aparelhos, situ~dos nessa divisão que é institucionalizada pelo
Estado: situação desses agentes na repressão física organizada, o
exercício da autoridade legítima, a institucionalização da divisão
entre trabalho intelectual e trabalho manual e entre as tarefa·s
de "decisão" e as tarefas de "execução" etc. Isso tem efeitos de-
cisivos sobre a ideologia particular desses agentes: para que tal
ideologia se distinga eventualmente, sob "sua forma de serviçb
de interesse geral" e "da autoridade do Estado acima dos inte-
resses particulares" etc., daquela dos empresários, não constitui
menos por isso uma forma de· ideologia burguesa 13 •

Mas essa determinação estrutural de classe burguesa dos


"vértices" do a arelho de Estado se distingue do caso, todo par-
ticular, da urguesia de Estado a qual pode de fato constituir
uma classe ou fração de· classe distinta. Podemos falar de um:a
burguesia de Estado nos casos em que assistimos a uma radical
nacionalização e estatização do setor econômico sem que, para
tanto, os trabalhadores tenham o controle real da produção, per-
manecendo o Estado uma instituição distinta e "separada" das
mass~s populares. Nesses casos, os "vértices" do aparelho de Es-
tado ocupam, pela via indireta do Estado, o próprio lugar de uma
J?ropnedade - estattzada - e de uma posse dos meios de pro-
dução "separados" dos trabalhadores, exercendo os poderes daí
decorrentes: a exploração e o açambarcamento da mais-valia se
deSlocam em direção aos "vértices" do aparelho de Estado. En-
contra-se aí o processo do capitalismo de Estado propriamente
dito.

Voltemos à importante questão do pertencimento de classe


dos membros do aparelho de Estado, pois tal pertencimento in-

::La Ver as contribuições de A. Cottereau, J.-M. Vincent, J. Sallois


etc. no volume l'Administration, sob a direção de J. Sallois, que surgirá
brevemente aa coleção "Les Sciences de l'action".
OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTINGENTE BURGUÊS 205

tervém no funcionamento político da burocracia. O fato de q~e


essa categoria social possa funcionar em conjunturas determina-
das, de forma "unitária", apresentando defasagens características
em relação às classes sociais de que os membros são originários,
mas também em relação àquelas a que eles pertencem, não quer
dizer, por isso, que esse pertencimento de classe seja sem efeitos.
Esses efeitos manifestam-se por cortes característicos no próprip
seio do corpo burocrático do Estado, e or defasa ens entre vér-
tices urgueses, de um lado, e escalões subalternos e inferiores
P&.9ueno-burgueses. do outro. Cortes e defasagens que assumem
toda a sua importância nos casos particulares de crise política.
A PEQUENA-BURGUESIA TRADICIONAL
E A NOVA PEQUE NA-BURGUESIA_
1
1. O PROBLEMA NJ~ SUA ATUALIDADE
TEõRICA E PRATICA

1. Observações Gerais

.A QUESTÃO DA PEQUENA-BURGUESIA está atualmente no centro dos


debates sobre a estrutura de classe das metrópoles imperialistas,
mas também, assim como demonstram as análises centralizadas
em tomo do problema da marginalidade, sobre aquela das forma-
ções dominadas e dependentes da "periferia". A questão da pe-
·quena-burguesia apresenta certaniente um ponto crucial na teoria
marxista das classes sociais. Ela assume uma importância deci-
siva, ao mesmo tempo nas f armações imperialistas e nas f arma-
ções dominadas: sabe-se principalmente que foi essa questão,
entre outras, a causa do fraca~s_o ~o .PI'.Ocesso socialista do_ Chile.

Antes de abordar o exame desse problema, seria conveniente


expor algumas concepções atuais a fim de precisar-lhe os dados.
Essas concepções estão baseadas em um fato real cuja dimen-
são exata vamos apreciar mais adiante: o aumento considerável,
ao longo do capitalismo monopolista e de suas fases, do número
de assalariados não-produtivos, dt~ conjuntos tais como os empre-
gados do comércio e dos bancos., os empregados dos escritórios
e serviços etc., em suma, a quem se costuma chamar empregados
de "colarinho branco" ou "terciários". A partir daí se esboça uma
primeira corrente: é expressamente solidária· a uma tentativa de
refutação da teoria marxista das classes sociais, e mesmo da teo-
ria da luta das classes. Essa con~ente· está em geral baseada na,
210 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

ou manchada pela, concepção geral de uma dissolução das fron-·


teiras de classe, e da luta das classes, na sociedade atual, que
seria marcada por um "aburguesamento" generalizado ou, em.
poucas palavras, pela "integração".
Mas é particularmente interessante notar as diversas formas.
que essa corrente assume, pois elas e-mpalidecem freqüentemente
as análises marxistas atuais da questão. Direi lapidarmente que·
essas análises ligam-se sobretudo para refutar uma das formas
assumidas por essa corrente, aquela da "classe média - terceira
força", sem perceber que essa corrente pode muito bem se ma-
nifestar sob outras formas, que vou expor primeiramente:

1. Essa corrente, sob uma primeira forma, nega a especifi-


cidade de classe desses novos conjuntos salariais, diluindo-os na
burguesia e na classe operária. Considera.:se então que a esma-
gadora maioria desses conjuntos salariais faz parte ou da burgue-
sia, ou da classe· operária, a menos que ela não sirva de árbitro-
entre agentes pertencentes à burguesia e agentes pertencentes à
classe operária. Insisto então no fato, muito significativo, de que,.
sob essa forma, a posição teórica comum a essas concepções pro--
vém precisamente disto: esses conjuntos não teriam determinação'
de classe própria em face da burguesia e da classe operária, estan--
d9 submetidos à determinação de uma ou .de outra. Não é por·
acaso que se supõe que os critérios de determinação de classe,
na maioria dessas concepções, segundo uma antiga tradição bur-·
guesa, estão baseados nas relações de "poder", de "hi_e__rarquia", de-
"au torid:ª-º-~" etc. das quais a "situaÇão--econômica" dos agentes
só seria o efeito.
a) O primeiro aspe·cto dessa corrente consiste aqui em sus-
tentar, a exemplo de Renner, de Croner 1, de Bendix e outros,.
que a esmagadora maioria desses novos conjuntos salariais per--
tence à burguesia: encontra-se aí uma das variantes das concep--
ções do "aoiirgüesamento" da sociedãde industrial adiantada. A
burguesia é aqui definida independentemente das relações de pro--
dução, mas em referência às "funções de empreendedor" e às.
funções de exercício de "autoridade" hierárquica no seio da socie-·
dade. Explicaremos assim que as "funções" - no sentido ex.pres--
samente funcionalista do termo - asseguradas atualmente por

1K. Renner, Wandlungen der modernen Gesellschaft, 1953; F. Cro-


ner, Soziologie der Angestellten, 1962 etc.
ATUALIDADE DO PROBLEMA 211

esses conjuntos emanam diretainente da decomposição das tare-


fas e: dos papéis do "empreendedor", dos "funcionários de escri-
tório" e serviços, outrora assmnidos diretamente pela burguesia
dirigente: esses conjuntos pertenceriam atualmente à buirguesia
por intermédio de um processo de delegação dessas funções e da
autoridade que a ela se liga.
b) O segundo aspecto dessa corrente consiste em sustentar
que, na sua maioria, esses conju.ntos assalariados pertenceriam à
.classe· qp_erária, e isto: 1) seja admitindo, segundo uma antiga
tradii~ão socialdemocrata, que o critério de determinação da clas-
se operária se encontra no modo de retribuiçã.o, o smá.r./Q_ e, por
oposiçã~ à burguesia, na ausência de propriedade dos meios. de
produção: podemos reconhecer aí a concepção da cla_§_S_f! salarial,
.à qual voltaremos mais tarde; 2) seja retendo, paralelamente ao
critério precedente, uma "pluralidade·" de critérios extremamente
diversos para a definição da classe operária, ''a modéstia das ren-
das", a ausência de "estatuto" burguês, a ausência de exercí'cio de
.autoridade monopolizada pelas elite·s no poder etc.: insistiremos,
.assim, a exemplo de Th. Geiger, Wright Mills 2 e outros, sobre
a sen1elhança, nesse sentido, das "condições" da classe operária,
e desses conjuntos assalariados a fim de concluir por sua fusão
na classe operária.
e:) Sob um terceiro aspecto, representado principalmente
por R. DahrendorU\ essa corrente tentará dividir a pêra ao meio,
sustentando que uma J!.ªrt<!_ desses novos conjuntos assalariados
pertencem à burguesia, e a outra à classe ope-rária. O critério de-
terminante reside aqui preCisa:mente no lugar desses conjuntos
em relação ao exercício do "poder" e da "autoridade", no sentido
weberiano dos termos. Assim, segundo Dahrendorf, a linha de
demarcação que atravessa esses conjuntos se situaria, no interior
das ";organizações" sociais atuais distribuidoras das relaçôes de
autoridade "legítima" - Herrschaf tsverbiinde -, entre aqueles
que decidem - burguesia - e aqueles que executam - a classe
.operária.

A operação ideológica dessas concepções é clara e destaca~


finaln1ente, aquela da corrente da "classe média - terceira for-

2 Th. Geiger, Die soziale Schichtung des deutschen Volkes, 1932;


Mills, Les Cols blancs, 1969.
a "The Service Class", em Industrial Man, org. por T. Burns, 1969.
212 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

ça", se bem que essas concepções se apresentem explicitamente-


como críticas desta última.
Com efeito, negando· a especificidade de classe desses con-
juntos assalariados, e diluindo-os na burguesia e no proletariado,
isto é, prendendo-nos à imagem "dualista" da sociedade que com
freqüência, erroneamente, associamos ao marxismo, chegamos
precisamente a uma dissolução dos conceitos de burguesia e de
classe operária, e a uma negação da luta das classes. Ninguém
melhor do que Dahrendorf o expre-ssou: "Segue=se de nossa aná-
lise que a emergência dos empregados assalariados significa prin-
cipalmente uma extensão das antigas classes da burguesia e do
proletariado. Os burocratas pertencem à burguesia, os trabalha-
dores 'de colarinho branco' ao proletariado. Essas duas classes
tornaram-se, em razão de sua extensão, e além de sua decompo-
sição, altamente complexas e heterogêneas. Ganhando novos ele-
mentos, sua unidade tornou-se bastante precária. Os trabalhado-
res de 'colarinhos brancos', be·m como os trabalhadores indus-
_triais, não possuem nem propriedade nem autoridade, mas apre-
sentam, entretanto, características sociais que os distinguem da
antiga classe operária. Os burocratas diferem igualmente da anti-
ga classe dirigente, apesar de sua participação no exercício da
autoridade. Esses fatos tornam o conceito de classe inaplicável
aos grupos conflituais da sociedade 'pós-capitalista'. De qualquer
forma, os participantes, os objetivos e os modelos do conflito mu-
daram, e a simplicidade agradável da concepção marxista da so-
ciedade tornou-se uma construção absurda."
Mas essa operação ideológica pode apresentar-se igualmente
sob outros aspectos: principalmente, aceitando a realidade da luta
das classes, sob o aspecto da recolocação em questão do papel
hegemônico e dirigente da classe operária no seio da aliança po-
pular, em proveito, entre· outros, dos diversos grupos afetados.
pelos "conflitos institucionais". Quando juntamos a isso a con-
cepção das instituições como fundamento das relações sociais,
chegamos diretamente à conclusão de que a luta principal atual-
mente se referiria não à exploração mas às "instituições" (lutas
antiinstitucionais): reconhecemos aí as análíses:IDUitoem voga
atualmente, de um Ivan Ilitch.

2. A segunda forma dessa corrente é, com variantes diver-


sas, aquela da classe média.
Essa formá. apare~t~mente oposta à primeira, preenche de
fato a mesma função ideológica. Sob seu aspecto dominante, ela
ATUALIDADE DO PROBLEMA 213'.

está ligada a uma antiga concepção da teoria política e socioló-


gica tradicional, aquela da "terceira força", ,d~retamente .subst~­
tuída pela tradição socialdemocrata na estrategrn da terceira vza
(entre capitalismo e socialismo). Diante do antagonismo entre
a burguesia e a classe operária, a "classe média" é percebida como·
0 baluarte mediador e o fator fundamental de "equilíbrio" da so-
ciedade burguesa. Não somente 1essa "classe média" é considera-
da no mesmo pé que a burguesia. e a classe operária, como tam-
bém é concebida como o eixo central dos processos sociais, a· sa-·
ber, como o lugar no seio do qual se dissolveria a luta das classes.
O problema essencial aqui nã.o é, portanto, diretamente aque-
le da pertinência de análise desses conjuntos salariais como "uma..-
classe, mas sim a concepção teórico-política que a comanda, e
que rege a própria análise que essa corrente faz da "classe média".
Esta última é considerada como um "grupo homogêneo" ~Qido'
em geral a partir .do critério das rendas, do das atiúiélés-mentais-
o
e das moti~aç9~s__ p~iç-9J9g·i~ª~ e-tc:--E:la seria procfütõ-aeüma:
dissolução progressiva, nas soêiedades capitalistas atuais, da bur-·
guesia e do proletariado em um cadinho comuin: "aburguesa-·
mento" de uma parte cada vez 1naior da classe 1operária, "des-·
classificação" de uma parte cada vez maior da burguesia. Tal
"classe" constituiria o cadinho de uma mistura das classes e de·
dissolução de seus antagonismos, principalmente enquanto lugar
de circulação dos indivíduos em um processo de "mobilidade"·
constante entre a burguesia e o proletariado. Esse grupo aparece
então como o grupo dominante no seio das sociedades capitalis-
tas atuais.
Digo convenientemente grupo, pois efetivamente, tratando-se
de um conjunto que· dissolve a luta das classes, o próprio emprego·
do termo classe torna-se perfeitan1ente inútil: o emprego, nesse·
contexto, do termo "classe média"' quer dizer, para essa corren-·
te, que as classes não existem mais. É o que confessam, aliás ela-·
ramente, prolongando essas análises, os autores cu ios e·studos se·
refere-m à famosa questão do terciário e da "terciarização" da
sociedade atual. Sabe-se que, baseada na distinção "indú~tria",
"agricultura", e o resto ... ! e· acoplada à ideologia das "profissões"·
e das "categorias socioprofissionais" - ver INSEE e o conjunta
das estatísticas burguesas -, essa concepção incluirá desordena-
damente neste "terciário" - os terciários - os grandes magna-
tas do comércio, dos bancos e da publicidade, os grandes e pe-
quenos comerciantes, os artesãos e "profissionais liberais", os PDG
e executivos superiores, os emprega.dos do comércio, dos "escri-
214 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

t:órios" e "serviços", o conjunto dos funcionários (do Presidente


.da República ao carteiro) etc. Confessaremos assim de bom gra-
.do, com R. Fossaert e M. Praderie 4, que esses terciários, desse
imodo delimitados, não constituem uma classe, e poderemos mes-
:mo dizer claramente que, se nos prendermos à antiga concepção
·"'tradicional" - marxista - das classes sociais, esses terciários
deveriam ser considerados como pertencentes a diversas classes:
burguesia, pequena-burguesia, classe operária. Mas a própria exis-
tência dos "terciários" - terceira força - provando que as classes
sociais e a luta das class.es não existem mais, o próprio emprego
,·do termo classe torna-se supérfluo.

II

Insistir nesta última concepção não foi inútil. Com efeito,


podemos retornar agora a uma das soluções do problema, pro-
posta atualmente· pelo PCF, e suas análises do Capitalismo mono-
.polista de Estado. Essas análises, expostas claramente no Traité
- Já assinalado, se expressam como crítica explícita da corrente
·"classe média-terceira força": elas revelam, no entanto, toda uma
série de confusões e de princípios falsos, que trazem no seu bojo,
por outro lado, a estratégia política da "aliança antimonopolista".
Essas análises, ao mesmo tempo em que refutam a dissolu-
ção desses conjuntos salariais na classe operária, negam no en-
.tanto sua especificidade de classe, e mesmo sua vinculação áe
classe simplesmente. Esses conjuntos são, com efeito, entendidos
com a denominação de "camadas intermediárias assalariadas" 5 :
"'As camadas intermediánas nao ·constituem uma ou várias classes
sociais no sentido estrito do termo. Não há classe média, mas um
conjunto de camadas sociais diferenciadas que se situam numa
posição intermediária." Mas a bas.e teórica do assunto está em
supor-se C!ue essas camadas não pertençam a nenhuma classe. De
fato, em um capítulo do Traité em questão, expressamente inti-
tulado "Pertencimento de classe das camadas intermediárias assa-
lariadas", só se encontram formulações do gênero: "De um ponto
de vista de classe, empregados, técnicos, engenheiros, pesquisado-
res etc. encontram-se numa posição intermediária que os aproxi-

4
Fossaert, L'A venir du capitalisme, 1961; Praderie, Les Tertiaires,
1968.
5 · Le Traité, jâ citado, t. I, p. 204.
ATUALIDADE DO PROBLEMA 215

ma cada vez mais da classe operária com a qual eles não podem
entretanto ... confundir-se atualmente~". Mas em nenhuma parte
se responde à questão: de qual classe esses conjuntos são cama-
das ou, por outro lado, qual é o pertencimento de classe dessas
-camadas?
É preciso nos determos aqui, pois trata-se de um problema
muito importante para a teoria marxista das classes sociais e da
luta das classes. O t;nêi_~J.[j~mº- admite, com efeito~ a existência de
frações, de camadas, e mesmo de ca~_eggxj~~ .~-º~i~is ("burocracia
de Estado", "intelectuais"). Mas não se trata absolutamente aí
de coniuntos ao lado, à marge1n ou acima, em _suma,· exterzore~Ç
às clas~es. As frações são frações- dê.cfasse: _a Qu.rgue.$.iá.iii_qµsfriaT
é uma fração da burgueshi; as cama.dêi~. -~ão camadas de da.sse:
a aristocracia operária é uma camada da classe operária. As pró,;;;
prias categorias sociais, como acabamos de observar com a buro-
cracia de Estado, tem um pertencimento de classe.
Encontra-se aí um ponto fundamental de distinção entre a
teoria marxista das classes sociais e as diversas concepções da so-
ciologia burguesa. A grande maioria dos sociólogos não-marxistas
fala igualmente de classes sociais, com o risco de defini-las de
forma freqüentemente bastante fantas.iosa. Mas eles consideram
que tal divisão em classes é unia simples subdivisão, parcial, de
uma estratificação mais geral que dá lugar igualmente a outros
grupos, paralelos e exteriores às classes: já foi o caso para M. We-
ber (classes e grupos estatutários), e atualmente isso se prolon-
ga sob várias formas (princip&lmente sob a forma de classes sociais
e elites políticas). É verdade que, em tais subdivisões, .essas corren-
tes sociológicas, numa sociedade~, atribuem em geral aos outros
grupos um papel mais import·ante do que às classes sociais. Ora,
a resposta marxista a essas correntes não consistiria simplesmente
no fato de sustentar que as classes são os grupos fundamentais
no "processo histórico", admitindo a possibilidade de existência,
pelo menos em um corte "sincrônico" de uma formação social, de
outros grupos paralelos e exteriores às classes. A divisão da socie-
dade em classes significa precisamente, do ponto de vista ao me,
ino tempo teórico-metodol~gico e• da realidade social, que o con-
""ce1to de classe social é pertinente a todos os níveis de análise:
d dtvisao em classes constituz o quadro r~ferenciãl de todo escalo-
namento das diversificações sociais.

6 Op. cit., p. 236.


216 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE

III

Mas é ainda necessário ir mais além, pois, mesmo quando se


admite o que foi dito acima, pode-se, não tendo esclarecido certos
aspectos teóricos da questão, legitimar ~inda a concepção de~
certos conjuntos sociais exteriores às classes 7 •
1 . As classes sociais são um conceito que designa precisa-
mente o conjunto dos efeitos da estrutura no campo das relações
sociais, e até mesmo na divisão social do trabalho. Mas seria in-
teiramente falso conceber as classes sociais como um "modelo":
concebendo-as assim, aceita-se precisamente a possibilidade de.
existência, na realidade de uma formação social, de certos conjun-
tos exteriores às classes, que seriam o efeito de uma "riqueza'7"
do "real-concreto" que ultrapassa seu "modelo abstrato". As clas-
ses sociais só seriam assin1 uma esquematização do real, seu "es-
queleto" de alguma forma. extraído do real por uma simples ope-·
ração de abstração, sendo os conjunto~ exteriores às classes pre-
cisamente a riqueza de determinação do concreto que escapa
à sua "rede" de inteligibilidade. Sabemos tratar-se· aí de uma an-
tiga concepção nominalista das classes sociais, que se destaca, fi-
nalmente, de uma concepção empirista do conhecimento e das:
relações abstrato-concreto.
2. Uma formação ,social é o local de existência de uma ar-
ticulação de vários modos e formas de produção. Isso se manif es-
ta: a) pela existência, em uma formação social, de mais de duas:
classes, ao lado das duas classes que dependem do modo de pro-
dução dominante, classes que dependem dos outros modos e for-
mas de produção presentes nessa formação; b) por efeitos de de-
composição e de reestruturação de classe, de fracionamento e de
reagrupamento de classe, de sobredeterminação e de subdetermi~
nação de classe: em síntese, por efeitos da articulação desses m~
dos e formas de produção sobre as classes que daí se· destacam
em uma formação social.
Mas os efeitos dessa articulação não poderiam consistir n.a
emergência de conjuntos sociais exteriores às classes, de algum~
forma "atípicas" ou "anônnicas". lsS'o seria voltar à concepção em-
pirista dos "resíduos" ou das "impurezas" de um real-concret~·,,
concebido como simples cadinho de empilhamento de modos e

7 Ver, a propósito .do panorama conceptual geral das observações


que seguem, a introdução, p•p. 13 sq. deste livro.
ATUALIDADE DO PROBLEMA 217

f ormas de produção "abstratos"; esses conjuntos·


seriam, entà\J, u:s
" b. d
reszau, ' os do empilhamento. Encontra-se
od aqm,
_ fno am_1to, essa..
das relações entre modos de pr uçao e ormaçoes soczazs,
vez,oncepção errônea do "modelo a b strato " ap1.1cad o agora nos mo-
ad e de produção. As formações sociais não são, de fato, a concre-
os d - .
. ação espacializada de modos de pro uçao que existem em sua
t IZ d . d
pureza abstrata, mas realmente a forma e exzstencza e _e rep~o-
A •

dução dos modos de produção. As classes .de uma formaçao social


não são a concretização das classes dos diversos modos de produ-
ção, podendo dar lugar, ne·ssa concretização, ~ r~caí_das concretas
que lhes escapam, sendo. então a. forma de ex1sten~1a e de repro-
dução das classes dos diversos modos de produçao (a luta das
classes).
3. Chegamos, assim, ao último aspecto da questão. A luta
das classes, em uma formação social, situa-se no âmbito funda-
mental de uma polarização das diversas classes sociais em relação
às duas classes fundamentais, que são aquelas do modo de pro-
dução dominante, e cujas relações constituem a contradição prin-
cipal dessa formação. Não poderíamos admitir quer a dissolução
de classes antigas em conjuntos sociais "exteriores" às classes,
quer a ·emergência de novos conjuntos semelhantes, como efeito
da luta das classes e da polarização em questão? Conjuntos que,
então, seriam situados em relação às duas classes fundamentais,
sem possuir um pertencimento ptróprio de classe, seu vínculo "re-
lacional" a essas duas classes, na luta de classe, tendo precisa-
mente por efeito a ausência - ou a eliminação - de um lugar
própria de classe que eles ocupariam? É por vezes, sob esse aspec-
to, que se apresenta a concepção do PCP relativa às "camadas in-
termediárias" s.
Essa polarização desempenha de fato um papel muito impor-
tante não somente quanto à posição de classe, mas também quan-
to à determinação estrutural de classe. Entretanto, a concepção
acima é insustentável: ela supõe, de fato, que as classes existe·m
primeiramente como tais,, em lugares isolados, entrando em segui-
da nas relações de luta, luta de classe que então, por sua polari-
zação, teria tido como efeito, m·esmo sem subversão das relações
de produção, a dissolução de algumas dessas classes em conjuntos
sociais sem pertencimento de elas.se. É preciso, pois, observar bem:
a) que as classes sociais só existem de qualquer maneira como

8 J. Lojkine, '"Pouvoir politiqm~ et luttes des classes", em La Pen·


sée, dezembro de 1972.
218 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

luta de classe, os lugares das classes sociais encobrindo as práticas


de classe (as relações sociais); b) mas que a determ.inação das
classes na luta de classe não significa, por isso, que estas (ou al-
guns conjuntos sociais) só exfstiriam sob a forma "relacional",
no sentido de que· elas permutariam de "situação" segundo a "luta
de classe", concebida aqui de acordo com o modelo de Touraine
dos "movimentos sociais". Isso seria, de fato, reintroduzir indire-
tamente, sob o disfarce de um "antiestruturalismo" de fachada, a
concepção idealista de uma redução da determinação objetiva das
classes à posição de classe: assim como a- adoção, por uma certa
camada da classe operária (aristocracia operária), de· posições -de
classe burguesa não pode eliminar sua determinação estrutural de
classe e transformá-la "em camada intermediária" - ela perma-
nece uma camada da classe operária -, a adoção, pelos conjuntos
:sociais em questão, de posições de classe que os reaproxime da
-burguesia ou da classe operária, não os poderia situar como cama-
das privadas de lugar - de determinação - de classe.
Em suma, a luta das classes e a polarização não podem cir-
cunscrever conjuntos ao lado ou à margem das classes, sem per-
tencimento de classe, pela simples razão de que tal pertencimento
de classe não é outra coisa senão a luta das classes, e que essa
luta só existe pela existência de lugares das classes sociais: sus-
tentar que existem "grupos sociais" exteriores às classes, mas na
luta das classes, não tem estritamente sentido algum. E, natural-
mente, bem diverso é o problema da eliminação real de algumas
classes ou frações .no desenvolvimento ampliado do capitalismo
(pequena.;burguesia tradicional, pequeno campesinato parceiro) :
nesses casos, não assistimos absolutamente a um processo de reab-
sorção dessas classes em conjuntos sem pertencimento de classe
- "camadas intermediárias não-assalariadas" - mas a um pro-
cesso de eliminação progressiva dessas próprias classes (o restante
constituindo classes).

IV
Essas questões· são bastante importantes para justificar algu-
mas observações suplementares: confttsões manifestaram-se igual-
mente em: a1gurrías_ análises atuais referentes às formações periféri-
cas, articuladas em torno da problemática ga margin!Jli4adg_ (as
"massas marginais"). O que é designadÕ- p0r este termo é, grosso
modo, o fenômeno, nas formações periféricas, de uma "massa de
ATUALIDADE DO PROBLEMA 219

indivíduos", produto do êxodo rnaciço dos campos, indivíduos con-


centrados no espaço urbano, onde vivem de empregos "ditos para-
sitários". Essa concepção está esfreitamente solidária com aquela
da sociedade dualista, a saber, aquela de uma formação social com-
posta de "dois" setores heterog~!neos, um setor agrário-tradicional
e um setor industrial-modernista, de estruturas de classe próprias,
com a marginalidade abrangendo os conjuntos sociais sem pertenci-
mento de classe, que se supõe estejam situados no espaço entre
(à margem de) esses dois setores.
É evidente que tal concepç~io faz a economia de uma análise
rigorosa dos efeitos, na fase atual do imperialismo, da reprodução
induzida das relações capitalistas monopolistas das metrópoles no
próprio seio das formações periféricas, principalmente formas de
transição da força de trabalho e-indireção à sua subsunção a essas
relações, da constituição de um exército de reservã imperialista
dessa força de trabalho, do dest~mprego camuflado etc. O que é
mais interessante é notar quais foram as objeções dos autorea mar-
xistas a essa concepção da margiltlalidade. Elas têm consistido, fre-
qüentemente, em demonstrar os erros da problemática da sociedade
dualista (não se trata de dois setores separados), insistindo no fato,
por um lado, de que essa emergência de conjuntos sociais sem per-
tencimento de classe é um efeito estrutural e co-substanciaf da do-
minação das relações monopolistas sobre os outros modos e for-
mas de produção nas formações periféricas e, por outro lado, que
esses conjuntos ou grupos "atípicos" não são marginais, já que
assumem um papel político eminente 9 • Objeções justas, mas onde
falta ainda um ponto essencial, pois -·também ecoQ9miz~_t}l uma
·• ·--·-'·'·--R---~- ----
análise de classe 4~.s~~-~--_ç_QnjJ.int~Q-~!... O efeito estrutural da fase
atual do imperialismo nas formações dominadas e dependentes
não poderia consistir na emergência de "grupos sociais" ao lado
das classes ou exteriores a elas: ao sustentar isso, permanecemos
sempre na problemática dos grupos à margem das classes sociais,
e ocultamos o verdadeiro problema, ou seja, o processo, certamen-
te de uma extraordinária compl1~xidade·, de decomposição e de
reorganização, de sobredeterminação e· de subdeterminação, das
classes sociais nas formações periféricas.
O que engloba finalmente, ao mesmo tempo, as análises da
marginalidade e as objeções mencionadas, é, do ponto de vista
teórico, a con~_<!_l!.ç_flg_~!J'lpirista das classes socia~s. S...Qt!!:f!_i!:.....§!!!!lª
dos indivídiios- agentes que ascom,pÕem~-- A primeira questão apre-

. 9 Principalmente R. Stavenhage~! Sept Theses erronées sur l'Amé-


rique /atine, 1973.
220 AS CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

sentada às classes sociais coloca-se do ponto de vista não dos lu-


crares na divisão social do trabalho, mas dos indivíduos
b •
concretos
que delas fazem parte. Essa questão torna-se assim: a que classe
pertence este ou aquele indivíduo, ou "massa" de indivíduos, es-
tando entendido que a dificuldade eventual da resposta é aqui
traduzível em uma desqualificação desses "indivíduos" do ponto
de vista de classe, indivíduos catalogados sob forma de "conjun-
tos" à margem das classes, enquanto é a própria questão que está
mal colocada. A estreita conivência epistemológica entre a con-
cepção nominalista-idealista das classes sociais - as classes como
"modelo abstrato" - e essa concepção empirista é patente, sendo
que todas duas chegam aos mesmos resultados: lá, conjuntos so-
ciais que saem da rede-modelo das classes, e aqui, indivíduos-con-
juntos que nãó entram na composição das classes - "somas· de
indivíduos".
Além disso, essa problemática impede que se proponha uma
questão perfeitamente legítima, aquela dos agentes que ocupam
os lugares das classes sociais, mais particularmente ligada àquela
da reprodução das classes sociais. Com efeito, essa questão dos
agentes se distingue daquela dos "indivíduos" cuja soma comporia
as classes sociais, na medida em que ela está colocada em uma
problemática diferente. Esses agentes, especialmente, não são "in-
divíduos" que dão origem a, por reagrupamento, diversos. "con-
juntos", as classes constituindo apenas um desses grupamentos
possíveis, mas são reproduzidos segundo a reprodução dos luga-
res das classes sociais na luta das classes.
o as as o servaçoes que 1zemos acima referem-se ao aspec-
to principal das classes sociais, aquele de seus lugares, e da re-
produção desses lugares na divisão social do trabalho: é nessa
medida que fomos levados a excluir a possibilid~de de existência
de conjuntos sociais ao lado ou fora das classes, que seriam, en-
tretanto, pertinentes no campo da luta das classes. Esse problema
é, no entanto, relativamente distinto daquele da reprodução (qua-
lificação-sujeição-repartição) dos agentes entre esses lugares: é
evidente que, nesse processo de reprodução dos agentes, podemos
circunscrever toda uma gama de fenômenos que vão de situações
transitórias a pertencimentos contraditórios de classe, e mesmo
a efetivas "desclassificações" de agentes. Mas com a diferença ca-
pital de que uma soma de "agentes desclassificados" não faz nun-
ca um conjunto social pertinente no campo da luta das classes:
encontra-se aí, aliás, todo o sentido das análises de Marx sobre
ATUALIDADE DO PROBLEMA 221

Lumpenproletariat. De qualquer forma, é evidente que a ques-


.c>
tão dos novos conjuntos assalariados não pode ser tratada no
plano de uma reunião de agentes desclassificados.

Voltemos às análises atuais d~ PCF• sobre o capitalismo mo-


nopolista de Estado e as "camadas intermediárias assalariadas".
Essas análises abrangem, de fato, uma estratégia política bem
precisa, aquela da "aliança antimonopolista" que se revela ser, por
isso, uma aliança sem princípios. De fato, toda aliança de classe
no contexto das massas populares - do "povo" - implica uma
série de contradições reais entre os interesses das diversas classes
.aliadas, contradições que devem ser seriamente levadas em consi-
deração e resolvidas corretamente: estão aí as "contradições no
:seio do povo". Mas não há dúvida (voltaremos a isso) de que
.atualmente alguns desses conjuntos salariais façam parte do povo,
,e o reconhecimento de seu pertencimento de classe, que os distin-
.gue da classe operária, é essencial para o estabelecimento de uma
!>ase justa da aliança popular, sob a direção e hegemonia da classe
operária. Em contrapartida, negando expressamente o pertenci-
·mento de classe desses conjuntos, omite-se ao mesmo tempo suas
.d1vergenc1as de classe com a class.e operária, ou seja, a ossibili-
dade e interesses de classe relativamente distintos daqueles da
·classe operária. A identidade suputada e o amálgama operado
·~ntre esses mteresses e aqueles da classe operária se fazem, como
·por acaso, pervertendo, a longo prazo, os interesses próprios da
·classe operária, única classe revolucionária até o fim, de forn1a que
se possam confundir com aqueles conjuntos, enquanto todo o pro-
blema reside precisamente em trazer esses conjuntos ao pertenci-
mento de classe específico sobre posições da classe operária. As aná-
lises do capitalismo monopolista de Estado insistiram em vão no
fato de que essas camadas oscilantes aclassistas não pertencem
:à classe operária, elas se reaproximam, ao pon!o de· enganar-se em
seus resultados políticos, daquelas, socialdemocratas, da classe
salarial.

2. A Pequena-Burguesia Tradicional e a Nova Pequena-Burguesia

precisamente a questão desses novos conjuntos salariais


É
que constituirá o objeto principal das seguintes análises: eu lhes
222 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE HoJE

reservarei o termo de nova pequena-burguesia, pois mostrarei que


dependem, com a pequena-burguesia tradicional (pequena produ-
ção e propriedade, artesãos e comerciantes), de uma mesma classe~
a pequena-burguesia. Serei levado então, igualmente, a falar da
pequena-burguesia tradicional e a propor uma série de· problemas
teóricos mais gerais, problemas que assinalo agora:
a) Qual é a natureza exata da pequena-burguesia em sua de-
terminaeao estrutural de· classe, isto é, em seu lugar no interior
da div1sao social do trabalho, que abrange as relações de produ-
ção e também as relações de dominação-subordinação políticas e
ideológicas? Qual é sua situação exata no processo de reprodu-
ção das classes sociais? Tornar-,se-á de fato claro que· a pequena-
burguesia não pode ser, entre outros aspectos em virtude de sua
polarização, colocada no mesmo plano que as duas classes funda-
mentais de uma formação capitalista, a burguesia e o proletariado.
O que levanta uma outra questão: como, e em que bases, funda-
mentar o pertencimento de conjurtlos sociais, que detêm aparen.!
temente lugares diferenciados nas relações econômicas, em uma
mesma classe, a pequena-burguesi~1 '
b) Quais são os princípios que devem reger uma análise d~
pequedã-burguesia em fraçoes de classe'! Essas frações da pegue;
nã-burguesia assumem o mesmo sentido que os fracionamentos
-das cruas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado? As
únicas relações econômicas são suficientes para circunscrever as.
frações de classe da pequena-burguesia? E, ao lado da diferen-
ciação decisiva entre pequena-burguesia tradicional e nova peque-
na-burguesia, quais são as frações de classe no próprio seio da
nova pequena-burguesia?
c) Quais são as posições política~ que atravessam a pequena-
burguesia? A pequena-burguesia pode ter um~ posição de classe
própria e autônoma a longo prazç>? As diversas posições políticas
que a atravessam, destacam, e em que medida, as frações peque-
no-burguesas circunscritas a partir de sua determinação estrutu-
ral de classe, e qual é o papel, a esse respeito, da conjuntura?

Para começar com a primeira questão, retomo aqui uma tese


que já havia defendido, e que concerne mais particularmente ao
pertencimento a uma mesma classe, a pequena-burguesia, da pe-
ATUALIDADE DO PROBLEMA 22~

quena-burguesia tradicional e da nova pequena-burguesia: mas os


princípios que regem essa tese têm, de fato, re·percussões bem maio--
res. Se podemos considerar como pertencimento a uma mesma
classe conjuntos que, à primeira vista, ocupam lugares diferentes:
nas relações econômicas, é porque esses lugares, diferentes, têm, \
no plano político e ideológico, os mesmos efeitos. Essa tese dev;__ !
ria agora, no entanto, ser aprofundada ~~üficada..
Ela só pode sê-lo principalmente--com referência ao fenôme--
no da polarização. A polarização de classe, e·mbora não possa,
certamente, determinar conjuntos sociais sem pertencimento de·
classe, assume, no entanto, uma importância consideráv·el na pró-·
pria determinação das classes: a polarização significa que a luta
das classes, em uma formação capitalista, está calcada em tomo-·
de duas classes fundamentais dessa formação - contradição prin-·
cipal -, a burguesia e a classe operária.
A polarização de classe tem, primeiramente, como campo ele:
aplicação, a própria determinação estrutural de classe da pequena--
burguesia, a saber, o lugar que esses conjuntos ocupam na divisão·
social do trabalho. De· fato, se é verdade que não seria preciso
confundir a posição de classe em uma conjuntura e na determina-
ção de classe, não é menos verdade que mesmo esta abrange prá-
ticas de classe, as classes sociais existindo exclusivamente na luta
das classes. Em outras palavras, o fenômeno de polarização não-
significa que os diversos conjuntos pequeno-burgueses, já determi-
nados em si, tenham simplesmente posições de classe· que• os apro-
ximem seja da burguesia, seja da classe operária (polarização das-·
posições de classe), mas que sua própria determinação estrutural
de classe só possa ser apreendida em sua relação, no seio da divi-·
são social do trabalho, com a burguesia e com a classe operária
(polarização da determinação de classe).
Isso se refere· -agora às· refações econ§miç~l. dessa determina-
ção de classe, relações econômicas que, como é o caso para toda
classe social, detêm aqui o papel principal. De fato, segundo esse
ponto de vista, o ponto comum para a pequena-burguesia tradi-
cional (pequena produção e propriedade) e para a nova pequena-·
burguesia (trabalhadores assalariados não-produtivos), é que elas.
não pertencem nem à burguesia, nem j. _çlasse operária,. ou seja,
um critério comum inteiramente negativo na aparência. Mas fare-
mos de fato uma estimativa de· todo diferente desse elemento se
o considerarmos "em si", isto é, como circunscrevendo lugares
:'isolados" da pequena-burguesia, e se o considerarmos, como é
Justo fazê-lo, no contexto da polarização de classe, caso em que;
224 As CLASSES Soc1AIS NO CAPITALISMO DE HoJE

proporemos a questão dos· efeitos desse critério negativo. A pe-


quena produção e a pequena propriedade, de um lado, e, do outro,
o trabalho assalariado não-produtivo só adquirem sentido em re-
lação ao que se passa, nesse sentido, com a burguesia e com a
classe· operária. Certamente, esse critério comum negativo não
poderia ser trans~ormado, pela sua consideração no âmbito refe:
rencial da polarização, em um critério positivo no sentido estrito:
·:O fato de esses conjuntos não fazerem, do ponto de vista das
relaçõe·s econômicas, parte nen1 da burguesia, nem do proletariado,
não poderia ser suficiente para determinar um lugar comum des-
ses conjuntos nas relações econômicas, isto é, uma determinação
·por simples extrapolação. Mas, por outro fado, s.e nos colocarmos
precisamente dp ponto de vista da polarização, veremos que ess~
critério negativo não tem mais um simples papel de exclusão: ele
produz "semdhanças" econôrr.ticas que terão uma comunidade de
·efeitos políticos e· ideológicos. Em outras palavras, se a exclusão
-desses conjuntos de alguns lugares (burguesia, proletariado) não
é suficiente para situar seu próprio lugar, esta exclusão desobstrui,
entretanto, agora nas relações econômicas, os contornos de seus
1ugares, que serão afirmados nas relações políticas e ideológicas.

II

Esse fenômeno de polarização não se refere· somente às rela-


·ções econômicas, mas tambérn às relações ideológicas e políticas
,da determinação estrutural de: classe desses conjuntos: as caracte-
rísticas comuns desses conjuntos, no plano dessas relações, devem
ser compre·endidas em referência às relações políticas e id~9lógi_­
·cas que especificam os lugares, -na--illviSãõ social do trabalho, da
bÚrguesia e da classe operária. O que assume principalmente toda
a sua importância quanto aos traços específicos do -.~:t:!_~-~~-l}iul!!Q
ideológico pequeno-burgy_ês.
En-ccrntramõs~---no-entanto, aqui problemas particulares:
a) A referência às relações políticas e ideológicas é absolu-
tamente indispensável para circunscrever o· lugar da pequena-bur-
·guesia na determinação estrutural de classe: não somente para
fundamentar o pertencimento da pequena-burguesia tradicional e
·da nova pequena-burguesia a uma mesma classe, mas também e
sobretudo a fim de entender esse lugar da nova pequena-burguesia
"em relação à classe operária, as frações dessa nova pequena-bur-
~guesia etc. Isso não significa que para as duas classes fundam.en ..
ATUALIDADE DO PROBLEMA 225

tais, a burguesia e a classe operária, as relações de produção de-


terminariam exaustivamente seu lugar na divisão social do traba-
lho: a determinação estrutural de· toda classe social, qualquer que
seja, abrange seu lugar ao mesmo tempo nas relações de produ-
ção, nas relações ideológicas e nas relações políticas. Mas a ques-
tão assume uma dimensão toda particular, para as class.es que não
sejam as duas-das-ses-·fu1i"d.ãmeniaiS,--prmcipalmente para a peque-
na-burguesia: esta, não estando no âmago das relações de explo-
ração dominantes de extração direta da mais-valia, sofre· a pola-
rização que produz distorções-adaptações muito complexas nas re-
lações político-ideológicas em cujo seio ,se situa. A atenção par-
ticular, que requer e·m seu caso o exame das relações políticas
e ideológicas, não se prende a que essas relações só assumam im-
portância para ela (e não para a burguesia e a classe operária),
e não é também o sinal de uma dificuldade da ordem do conheci-
mento, a saber, pelo fato de que os critérios marxistas de determi-
nação econômica de classe "não seriam tão seguros", no seu caso,
e que seria necessário dar "um pequeno empurrão" pela "fuga" nos
critérios políticos e ideológicos: se é necessário insistir, rio seu
caso, sobre essas· relações, is.so se prende a sua situação real na
luta da classes de· uma formação capitalista.
b) Essas relações políticas e ideológicas referem-se aqui à de-
terminação estrutural de classe da pequena-burguesia, que deve
:ser diferenciada de suas posições de classe. Referir-se a essas rela-
·ções não significa reduzir a determinação de classe à posição de
classe. Essas relações (lugar na divisão trabalho manual/trabalho
intelectual, nas relações de poder e de autoridade, etc.) têm certa-
mente efeitos, principalmente, nas posições de classe da nova
pequena-burguesia. Mas, se a referência ao político e à ideologia
se reduzisse à posição de classe· na conjuntura, isso quereria
dizer, no final das contas, que todas as vezes que conjuntos pe-
queno-burgueses adotam posições da classe burguesa, eles perten-
cem à burguesia, e que todas as vezes que adotam posições da
dasse operária, pertencem a esta última. Isso seria recolocar em
questão a determinação objetiva das classes sociais. Não se repe-
ârá nunca suficientemente que a distinção entre determinação
·estrutural de classe e posição de classe não recorta uma distinção
.entre o econômico (determinação) e o político-ideológico (posi-
ção). A deter:Q}jnaçãq_fie _çlass~ abrange tanto os lugares político-
ideológicos objeÍivo-s~ como as posições de classe das conjunturas
de luta econômica. A distinção está aqui circunscrita pelo espaço
226 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

da conjuntura (posição de classe) 10• Reencontraremos esse pro-


blema quando do exame dos efeitos da polarização sobre as po--
sições de classe, desta vez, da pequena-burguesia.

III

Enfim, nessa análise da pequena-burguesia, levaremos igual-


mente em conta, como foi o caso para a burguesia, sua repro4.u-
ção, mais particularmente na fase atual do capitalismo monopo-
lista: simultane3:mente com a reprodução 4~..§~lL.lu.gar, aspecto
principal da reprodução, e coni i-reprodução de seus agentes.
Ê necessário somente notar aqui que a questão· dessá-reproduçâo
assume uma importância específica para a pequena-burguesia:
a) do ponto de vista da reprodução de seu lugar, em razão da
eliminação acelerada, na fase atual, da pequena-burguesia tradi-
cional, e em razão da extensão acelerada, nessa fase, da nova
pequena-burguesia; b) do ponto de vista da reprodução dos agen-
tes, em razão das condições, todas particulares no caso da nova
pequena-burguesia, da qualificação-sujeição de seus agentes e de
sua distribuição.

LO Ver a introdução acima, pp. 16 sq.


II. TRABALHO PROD,UTIVO
E TRABALHO N,i(O·-PRODUTIVO·:
NOVA PEQUENA-BURGUESIA E
CLASSE OPEIURIA

Voltemos agora ao exame dos novos conjuntos salariais que


serão designados pelo termo nova pequena-burguesia: n_o~~ no
sentido de que não está absoluta1nente, a exemplo da -primeira,
destinada a perigar, mas é a própria reprodução- ampliada--do-
modo de produção capitalista e sua passagem para o estádiQ do
capitalismo monopólisfa,.~-WJ~~- çºp._Q!~!cm._am -~eu desenvolvimento_ -e
sua ampfü1ç~ã..0. Examinaremos aqui o conjunto dos componentes
de sua determinação estrutural de classe, a fim de chegarmos aos
efeitos dessa determinação no plano da prática política: para isso,
é necessário fazermos referência ao lugar desses conjuntos não
somente nas relações econômicas, mas no conjunto da divisão
social do trabalho.
Vamos deter-nos, no entanto, em primeiro lugar, na questão
do lugar desses conjuntos nas relações econômicas, lugar que
detém o papel principal na sua deierriiinaÇão de cfasse: observa-
mos, primeiramente, que esses conjuntos não pertencem à burgue-
sia, na medida em que não têm nenn propriedade econômica, nem
posse dos meios de produção. Por outro lado, trata-se, no seu
caso, de um trabalho assalariado, iisto é, remunerado sob forma
de salário. A questão fundamental que se propõe aqui é aquela
de sua relação com a classe operária, questão que pode ser f ormu-
lada, sob Um prim.eiro aspecto, como aquela das /tonteiras e da
delimitação da classe operária nas relações de produção capitaUstas.
Com efeito, o critério da propriedade dos meios de produ-
ção só adquire sentido na medida e:m que corresponde a uma re-
lação de explora.ção determinada: irelação de exploração que se
228 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HoJE.

situa nas relações dos produtores diretos - da classe explorada pró-


pria a cada modo de· produção - com os meios e o objeto do
trabalho e, por tal caminho indireto, com seus proprietários.
Ora, na expressão de Marx, para o capitalismo, se t9_c1_Q __-ª_g_ente
que pertence à classe op~~~~i~_ ~ u.~ . ~s_sªJada40, n_em t99<:> ~~sa­
lariado perferice- forÇ6samente à classe operária. A classe operá-
ria é delirriitada hã<:>" põr "liin 'siriipfos"''cifférío"''iiegativo "em si" -
sua exclusão das relações de propriedade -, mas pelo trabalho
produtivo: "Todo trabalhador produtivo é traballiador -iissalãr1ã=-
do, o cfllê não significa que todo trabalhador assalariado seja um
trabalhador produtivo 1 ."
A determinação, em Marx, do trabalho produtivo em sua dis-
tinção do trabalho improdutivo é uma questão particularmente
difícil: essa questão, que ele projetava
. - tratar no livro IV do Ca-
pital, nunca foi exposta de forma sistemática. Encontram-se aná-
lises esparsas no Capital, mas desenvolvidas sobretudo em textos:
que o próprio Marx não -editou: principalmente na Histoire des
doctrines économiques (assinalo aqui os títulos em edições fran-
cesas), Fondements de la critique de l'économie politique, os tex-
tos do Sixieme Chapitre inédit du Capita/.. É evidente que a re-_
constituição da coerência de todas essas análises só pode ser le-
vada a termo situando-as no conjunto da obra de Marx, e de
suas etapas: · toda uma série de pesquisadores a ela se dedicou~
permanecendo abertas, aliás, a pesquisa e a discussão sobre esse
assunto. De minha parte, vou limitar-me· simplesmente aqui a in-
dicar algumas linhas gerais dessas análises de Marx 2 :

O trabalho produtivo designa sempre um trabalho efetuado


sob condições sociais determinadas, e re-mete assim diretamente
às relações sociais de exploração de um dado modo de produção_

1 Marx, Sixieme Chapitre inédit du Capital, em "Karl Marx, ffiuvres"~


Pléiade, t. II, pp. 387 sq.
12 Assinalo igualmente, sobre esse assunto, o notável artigo de E.
Terray, "Prolétaire, salarié, travaiUeur productif", em Contradictions,
n~-r, julho-setembro de 1972; 1'1. '.Freyssenet, Le!J. rapports de production:
travai/ productif-travail improductif, maio de 1971, documento mimeo-
grafado do Centro de Sociologia Urbana; o n. 0 10: "Travail et Emploi",
de Critiq_ues d'économie poUtique, em particular os artigos de P. Salama
e de C. Colliot-Thélene; M. Mauke, Die Klassentheorie von Marx uml
Engel.f, 1970; M. Tro."Iti, Operai ~ capita/e, 1972.
NOVA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE OPERÁRIA 229'·

O caráter produtivo ou não do trabalho não depende nem de


características intrínsecas de· um trabalho "em si", nem de sua.
utilidade. É nesse sentido que é preciso entender as análises de
Marx, segundo as quais, para estabelecer o caráter produtivo ou
não do trabalho, "não nos apoiamos, pois, em resultados mate-
riais do trabalho, nem na natureza do produto, nem no rendi-
mento do trabalho enquanto trabalho concreto, mas. nas formas
sociais determinadas, as condições sociais da produção onde [esse·
trabalho] se realiza" ·3 • Ou ainda: "Deduz-se que o trabalho pro--
dutivo não implica absolutamente a posse de um conteúdo preci-·
so, uma utilidade particular, um valor de uso determinado no qual
se materializa. É o que explica que um trabalho de mesmo con--
teúdo possa ser produtivo ou improdutivo 4 ."
É, portanto, trabalho produtivo, em um modo de produção·
determinado, o trabalho que dá lugar à relação de explor_aç[zg_~
dominante deste modo: o que é trabalho produtivo para um modo-·
de produção pode não ·o ser para outro. Assim, no modo de . nro-·
dução capitalista, é trabalho produ.tiYQ. ªql.!ele que produz dire-·
tamente a mais-valia, que valoriz.a o capital e que é trocadÕ.~~pelÓ:­
capital: "O resultado do processo de produção capitalista não·
é nem um simples produto (valor de uso), nem uma mercadoria~.
isto é, um valor de uso que possui um valor de troca determinado:
É a criação da mais-valia para o capital. . . Com efeito, o que O'
capital, enquanto capitalista, que·r produzir, não é nem o valor
de uso diretamente destinado ao consumo pessoal. nem a mer-
cadoria destinada a s.er transformada primeiro em dinheiro e mais·
tarde em valor de uso. Seu objetivo é o enriquecimento, a produ-
ção da mais-valia, o aumento do valor, isto é, a conservação do'
antigo valor e a criação da mais-valia. -~sse prQQ"l:l!º--~~~íf.i&.o~
o processo de produç~o .. c~1~!~~Jista s.P-º.1'~'!.liza pela troca do. e.api-
tai pelo trabalho que, por- essa "iãzão, se denomina trabalho pro-::
dutivo 5 ." · - · · ·· · ···

Não tardaremos a ver qu~ essa determinação do trabalho pro--


dutivo (capitalista) não é a única em Marx, o que coloca proble-
mas importantes:· digamos simplesmente, por enquanto, que é su--
f iciente para Marx traçar de imediato as fronteiras essenciais da
classe operária. Assim, por exemplo, não é tl'.'abªlhQ .... Pro.d11tive:
aquele que depende da esfera de ···--circulação
·--·---
do capital
---·------~· ···--.
ou que con-

.aHistoire des doctrines économiques, ed. Costes, t. II, pp. 12-13 .r:q:
4 Sixieme Chapitre . .. , ibid. ·
õ Histoire des Doctri'nes ... , -ibíd., p. 199. Ver também Le Capitaf:..
Ed. Sociales, t. Il, pp. 183-184.
230 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE· HOJE

tribui para a realização da mais-valia: os assalariados do comér-


cio, da publicidade, do marketing, da contabilidade, do banco,
.dos seguros etc. não produze·m a mais-valia e não fazem parte
.da classe operária (trabalho produtivo). É que somente o capital
produtivo produz a mais-valia. Principalm·ente: "O capital comer-
cial é apenas o capital que funciona no interior "da esfera de
circulação. O processo de circulação é uma fase do conjunto do
processo de reprodução. Mas nenhum valor, por conseguinte ne-
nhuma mais-valia, é produzido no decorrer do processo de circula-
ção." Assim: "Como o comerciante, enquanto simples agente de
circulação. não produz nem valor, nem mais-valia, é impossível
que os ·trabalhadores de comércio que ele emprega nas mesmas
funções que ele produzam de forma imediata mais-valia 6 ."
Do ponto de vista do capitalista individual,,, esses trabalhado-
res assalariados aparecem, para ele, como fonte de lucro. Mas
do ponto de vista do capital soda! e de· sua r.epr.odução, o lucro
do capital comercial e bancário não resulta de um processo de
criação do valor, mas de uma iransferênda 'dã m"ais-vailà""cdada
_pelo capital produtivo: esses - trabalhadores:· ássafaríados --·coritri-
·buem simplesmente para a repartição da massà da mais-valia enfré
.'.3.s frações do capital, segundo a taxa média de lucro. Certamente,
·esses trabalhadores assalariados são também explorados, e seu
salário corresponde à reprodução de sua força de trabalho: eles
·"contribuem para diminuir os custos de realização da mais-valia,
-realizando em parte trabalho não-pago"; percebem então que são
•extorquidos do sobretrabalho, mas não são explorados diretamen-
te segundo a relação de exploração capitalista dominante, a cria-
ção de mais-valia. Seu trabalho é apenas trocado pelo capital va-
riável no interesse do capitalista individual, ao passo que, do pon-
to de vista do ciclo de conjunto do capital social e de sua repro-
dução, essa retribuição constitui uma despesa improdutiva do
-capital e faz parte dos custos falsos da produção capitalista 7 •
É necessário insistir energicamente no fato de que essa dis-
tinção entre processo de produção do valor e processo de circula-
ção não engloba, aqui, uma distinção qualquer entre "secundário',
.e "terciário", ou uma distinção institucionalista entre o tipo de
·
11
empresas" - industriais, comerciais - nas quais esses trabalhos
.têm lugar. Trabalhos provenientes do process.o de circulação -
venda, publicidade, comercialização - pode-m estar -a cargo das

a- Le Capital, t. VI, pp. 292 e 303; t. IV, p. 117.


7 Le Capi'tal, t. VI, pp. 303 sq.
NOVA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE ÜPERÁRIA 231

próprias empresas industriais: continuam a ser, entretanto, tra-


balhos improdutivos, e seus agentes, assalariados improdutivos.
Em compensação, certos tipos de trabalhos parecem depender do
processo de circulação, e. podem estar a cargo de empresas co-
merciais, enquanto de fato aumentam o valor de troca como mer-
cadoria na base de seu valor de uso capitalista, e são então pro-
dutores de mais-valia, seus agentes fazendo assim parte da classe
operária. "É necessário considerar como processo de produção,
prolongado no interior do processo de circulação, a indústria dos
transportes, a guarda de mercadorias e sua distribuição de forma
consumível [embalagem, estocagem, manutenção etc.] 8 ". Este
último aspecto da questão é particularmente importante na fase
atual do capitalismo monopolista: basta mencionar os trabalha-
dores produtivos dos diversos "serviços depois da venda" (repa-
rações etc.).

São ·enfim considerados como trabalhos improdutivos aque-


les que tomam a forma de servJs2s~ cujos produtos ou ~tividade.ª
são consumidos diretamente como valores de Uso- ·-e-que não se
trocam pelo ca:PHiCiii~j~-Pilª· r.enlia::-''T odás as-vezes-·êiue·-··se
corri:
pra o trabalho, não para colocá-lo como fator vivo no lugar do
valor do capital variável e incorporá-lo ao processo de produção
capitalista, mas para consumi-lo como valor de uso, como ser-
viço, o trabalho não é trabalho produtivo e o trabalhador assala-
riado não é um trabalhador produtivo.... O capitalista não o
enfrenta enquanto capitalista, enquanto representante do capital;
é sua renda que, sob forma de dinheiro, é por ele trocada pelo
trabalho, não seu capital 9 ."
Esses serviços, desde os do cabeleireiro aos do advogado, do
médico, do professor, continuam· a ·se:r-trabalhos improdutivos,
mesmo que, por outro lado, como nos dois últimos casos, contri-
buam para a reprodução da força de trabalho: "A utilidade par-
ticular desse serviço não modifica em nada a relação econômica;
não é uma relação na qual transformo o dinheiro em capital ou
pela qual o autor do serviço, o professor, me transforma em seu
capitalista, seu patrão. Para definir o caráter econômico dessa
relação, não importa absolutamente que o médico me cure, que
ú ensino do professor seja eficaz, que o advogaqo me ganhe o
prccesso. O que pago é o serviço como tal ... 10 " Aliás, as for-
8 Le Capital, ibid., p, 280.
!l Sixieme Chapitre Ínédit, op. cit., p. 389.
10 Histoir.e des doctrines, iJJid.
232 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

mas de retribuição dos serviços ·nada mudam na natureza da re-


lação econômica: "A relação geral não determina se o prestador
de serviço recebe um soldo, uma diária, um honorário, se figura-
rá na lista civil ou se sua categoria é superior ou inferior àque-
la do pagador 11 ." O conjunto dos agentes prestadores de servi-
ços, inclusive os assalariados desse setor, não pertencem assim à
classe operária.
É enfim, essencialm·ente, sob essa problemática de serviços
que Marx considera toda uma série de trabalhos que, no entanto,.
contribuem eminentemente para a reprodução das relações sociais
capitalistas, principalmente aquelas dos agentes dos aparelhos de
Estado, dos funcionários em sentido lato: evidentemente é neces-
sário excluir aqui os trabalhos diretamente produtivos que têm
lugar no seio do Estado, principalmente as empresas industriais:
"nacionalizadas" - como, por exemplo, a Renault -, os transpor~
tes "públicos" - SNCF * -, os agentes operários dos. diversos "ser-
viços públicos" etc. Marx dirá então: "Assim como as mercado-
rias compradas pelo capitalista para seu consumo privado, os ser-
viços que compra voluntária ou involuntariamente ao Estado .. ~
em virtude de seu valor de uso, não se· tornam fatores do capita!.
Em cons·eqüência, não são trabalhos produtivos e seus agentes.
não são trabalhadores produtivos." Trata-se essenci.almente, dos:
trabalhos efetuados pelos agentes dos aparelhos de Estado e que
são pagos pelo imposto, imposto que permanece uma troca na
base da renda: "Alguns trabalhos improdutivos podem-se ligar in-
cidentalmente ao processo de produção; seu preço pode mesmo
entrar no preço da mercadoria, de forma que o dinheiro que· eles
custaram forme uma parte do capital' adiantado. Esses trabalhos.
podem então dar a impressão de serem trocados não pela renda,
mas pelo capital. Tomemos logo o último caso, os impostos, os
preços dos serviços públicos etc. Mas trata-se aí dos falsos custos
da produção ... Se por exe·mplo todos os impostos indiretos fossem
transformados em impostos diretos, não seriam por isso menos.
pagos que antes, ainda que não constituíssem mais um adianta-
mento sobre o capital, mas uma despesa de renda 12 ."
Sabe-se que esses trabalhos efetuados pelos agentes dos apa-
relhos de Estado são essenciais para a reprodução ampliada das
relações sociais capitalistas: ·isso não significa, no entanto, que

l:L Fondements de la critique de téconomie politique, ed. Anthropo~.


t. I, p. 433.
* "Service National des Chemins de Per." (N. do T.)
lJ2 Sixieme Chapitre inédit, ibid., pp. 391 sq.
NovA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE OPERÁRIA 233

esses trabalhos sejam diretamente produtivos, como também não


0 são os trabalhos efetuados no processo de circulação, se bem
que eles sejam tall!bém ~ecessários para a reprodução do ciclo
de conjunto do capital social.

Mas os agentes prestadores· de serviços são também explora-


dos? Em princípio, a troca de valores de uso pela rend,a é uma
troca de equivalentes que não pode dar lugar, como tal, a uma
relação de exploração. É necessário, contudo, fazer intervir aqui
0 elemento essencial da extensão do salariado em todos os seto-
res de uma f armação social onde o modo de produção capitalista
é dominante, e onde o capital tende a submeter ("subsumir") toda
força de trabalho: extensão do salariado particularmente· maciça
sob o capitalismo monopolista e sua fase atual. De fato, a troca
de equivalentes supõe um vendedor e um comprador que, no pla-
no das relações econômicas, permanecem formalmente indepen-
dentes um do outro: ora, a relação salarial e a intervenção direta
do capital tendem a apoderar-se do conjunto dos serviços. Dos
ramos da medicina aos das diversas profissões liberais (advoga-
dos, arquitetos etc.), passando por aqueles dos espetáculos, da in-
formação etc., os agentes prestadores de serviços tornam-se, ma-
ciçamente, assalariados do capital que se apodera dessas ativida-
des. Esses agentes assalariados não se· tornam, no entanto, traba-
lhadores produtivos. Mas vendem, também eles, sua força de
trabalho ao capital, seu salário corresponde à repr9dução dessa
força de trabalho e fornece·m uma parte dq trabalho não-pago:
eles vêem que são extorquidos do sobretrabalho, que permite ao
capital economizar sobre suas rendas para aumentar a mais-valia
acumulada em relação à mais-valia consumida ou despendida em
custos falsos 13 • De fato, esses agentes intervêm aqui na repartição
da mais-valia no seio do capital, dando lugar a transferências da
mais-valia, saída do capital produtivo, em favor do capital que
se apropria de sua força de trabalho: sua exploração se assen1e-
lha assim àquela que sofrem os assalariados da esfera de circula-
ção do capital. -
O caso é relativamente mais complexo para os agentes dos
aparelhos de· Estado e os prestadores de serviços "públicos" -
inc!usive os professores da escola pública, o pessoal médico da
assistência pública etc.: aqui, o capital não intervém diretamente
para subsumir a força de trabalho. O capitalista está presente

ll3 Terray, op. cit., pp. 143-146.


234 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HOJE

nao como capitalista, mas como comprador de serviços. Esses


agentes fornecem também sobretrabalho, que lhes é extorquido,
mas não intervêm em uma transferência da mais-valia em favor
do "Estado-patrão". Sua exploração pela extorsão do sobretra-
balho prende-se essencialmente à situação de desigualdade nos
termos da troca entre eles e o capital, que tem uma po3ição
dominante sobre o mercado: capital que, servindo-se indiretamen-
te do Estado, submete· esses agentes ao salariado e ao seu con-
trole, a fim de realizar economias de rendas e aumentar dessa
forma a mais-valia acumulada. Sendo assim, nos casos prec~sos
ligados às intervenções econômicas atuais do Estado - qualifi-
cação da força de trabalho principalmente - esses assalariados
podem igualmente intervir, usando o Estado como meio indireto,
em transferências de' mais-valia entre as fraçõ-es do capital, segun-
do a -taxa média de lucro e o papel do Estado na perequação das
taxas de lucro;
Um último problema surge, todavia, quanto à situação dos
prestadores de serviços: não somente não são, apesar de assàlaria-
dos, trabalhadores produtivos, como ainda não são todos forçosa-
m·ente, .enquanto assalariados., explorados. Da mesma forma que o
salariado não abrange o traln1J)19. QIQ-ciµ.t!"."~Qi ele não ~b_rang,e·· eXit,~
tamente a exploraÇao;-istÕ é, a extoi:-s~Q. ciõ--sobr-etrabalho: um
grãnde advogado ''assalariado;' de uma empresa que emprega seus
serviços não vê que é extorquido do sobre trabalho. Neste caso,
a forma salarial dissimula uma simples troca de equivalentes, mas,
na direção inversa, desta vez, um agente que vende seus serviço~
sem ser um assalariado pode, em virtude c;a posição dominante
do capital sobre o mercado, ver o sobretrabalho lhe ser extorqui-
do pela desigualdade nos termos da troca. O exame desses casos
depende da própria análise do sobretrabalho em relação ao "tem-
po de trabalho socialmente necessário".

II

Acabo de expor as análises de Marx sobre o trabalho produ-


tivo capitalista, sob sua f o:rma mais simples. Mas permanecem
alguns pontos a propósito dos quais os desenvolvimentos de Marx,
não-sistematizados, apresentam ambigüidades que só podem ser
resolvidas recolocando esses desenvolvimentos na problemática ge-
ral de sua obra. Isso é indispensável para o esclarecimento de
alguns casos particularmente litigiosos de pertencimento de classe.
NovA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE OPERÁRIA 235

Adianto assim a proposição principal e os problemas que ela


coloca: as análises de Marx sobre o trabalho produtivo capitalista
devem ser completadas sobre um ponto decisivo,. que ~pa:ece
como co-substancial à definição do trabalho produtivo cap1tahsta.
Pode-se dizer então que é trabalho prod_~~ivo.z.)10 modo de pro-
dução capitalista, aquele que prüâuz a-mais.:.vali~ reproduz_,·
diretamente os elementos materiais que servem de substrato à re-
lação de exploração: aquele, pois, que intervém diretamente na
produção material produzindo valores de uso que aumentam as:
riquezas materiais.
Mas isso já coloca um problema: qual é o estatuto teórico
exato desse "complemento" de definição? Trata-se de um verda-
deiro "complemento", ou seja, de um elemento realmente ausente
dessas anális.es de Marx? Como é possível que não o tenhamos
visto intervir explicitamente nessas análises, e em que sentido
deveríamos fazê-lo "desempenhar" agora?
A ambigüidade fundamental provém aqui do fato de que não
somente esse elemento parece ausente das análises de Marx con-
cernentes ao trabalho produtivo capitalista, mas chega até a dizer
explicitamente que o conteúdo concreto do -trabalho e o valor de
uso são perfeitamente indiferentes para esse trabalho produtivo.
Quais são as razões ao mesmo tempo dessa ausência aparente e
dessas' afirmações de Marx, e o que isso significa realmente?
Com efeito, Marx dá por outro lado uma definição geral do
trabalho produtivo t·('''No processo de trabalho, a atividade do
homem efetua, pois, com a ajuda dos meios de trabalho uma
modificaçüo desejada de seu objeto. O processo se extingue no
produto, isto é, num valor de uso, uma matéria natural assimilada
às necessidades humanas por uma mudança de forma. Quando
consideramos o conjunto desse movimento do ponto de vista de
seu resultado, do produto, então todos dois, meio e objeto de tra-
balho, se apresentam como meios de produção, e o próprio tra-
balho como trabalho produtivo." E ainda: "Qualquer elemento
da riqueza material não fornecido pela natureza sempre deveu
sua existência a um trabalho produtivo especial que tem por ob-
jetivo apropriar-se de matérias naturais para necessidades huma-
nas." Encontra-se aí o processo de trabalho considerado "sob seu
aspecto mais simples, comum a todas as suas formas históricas,
como ato que se passa entre o homem e a natureza."
Dito isso, deveríamos ver aí quer uma "contradição" em
Marx entre essa definição geral do trabalho produtivo e aquela
H Le Capital, t. I, pp. 61 sq., 183 sq.
236 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

do trabalho produtivo capitalista, quer, como pensam atualmente


numerosos pesquisadores, que Marx abandona pura e simples-
mente a primeira quando tenta definir o trabalho produtivo capi-
talista, sendo que esses pesquisadores só retêm como pertinente
a definição que Marx dá de um trabalho produtivo sob condições
sociais determinadas (capitalista) 15 ? Ou ainda, deveríamos dizer,
como E. Terray principalmente, que se trata aí de duas defini-
ções igualmente pertinentes em Marx, mas que existem nele de
forma "separada", e que se trataria de tentar articulá-las "caso
por caso"?
Vejamos de mais perto. Será necessário ainda insistir que
não podemos falar rigorosamente de processos de produção e de
trabalho produtivo "em si", no sentido de que eles só existem sob
condições sociais determinadas. São exatamente essas condições
sociais que determinam suas possibilidades de existência, o que
formulamos ao insistir sobre o papel constitutivo e dominante
das relações de produção sobre o processo de trabalho, e da di-
visão social sobre a divisão técnica do trabalho. Mas é claro que
isso não nos impede de poder falar sobre algumas características
gerais do processo de trabalho, cujas determinações sociais são
precisamente as condições de existência: isso nos impede simples-
mente de cometer o erro fundamental que consiste em considerar
o processo de trabalho e as "forças produtivas", e portanto o pró-
prio processo de produção, como instância neutra e em si, cujas
"combinações" abstratas e "elementos" produziriam as "formas
sociais" sob as quais ele se "manifestaria". É nesse sentido que
seria necessário entender esta frase de Marx, quanto ao trabalho
produtivo: "O processo do trabalho capitalista não suprime as
de1:erminações válidas para toda forma de trabalho ... "
De onde vem então o fato de que Marx, em suas análises
do trabalho produtivo capitalista, parece por vezes esquecer pura
e simplesmente o caráter geral de um valor de uso diretamente
implicado na produção material (ainda que tenhamos visto este
último despontar no exame que Marx faz dos transportes e da
guarda das mercadorias)? Há uma primeira razão precisa para
isso, que se prende aos textos em que Marx fala desse trabalho
produtivo capitalista, e que são essencialmente textos de. críticas
onde ele combate concepções errôneas: o que Marx quer evitar
a todo preço é a confusão do trabalho produtivo com o trabalho
útil, a utilidade em geral do trabalho e do· produto. O caráter do
valor de uso diretamente implicado na produção material não po-
IJs C. Colliot-Thélene, op. cit.
1

NOVA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE OPERÁRIA 237

deriJ. scf \,;Ul11 unou.10 com a noção de "utilidade": os produtos de


· 1uxv uu a.y_uc1es aas inausLnas de armamentos corresponuem a
traba.uw.:> p1uúuuvos. Mas eretivamente as contusoes contmuam
ainua. iwJc, ~umo provam :::,weezy e Haran, que consideram os
traba.rnu~ u.o armamento como trabalhos improdutivos e portanto
"ÍnULCJ.S ·
lv1as, de fato, a definição geral que Marx dá do trabalho pro-
dutivo nao esta absolutamente "ausente" de suas análises do tra-
balho produuvo capitalista. E isso em dois sentidos:

A) Em um primeiro sentido, ela surge aí explicitamente, ou


talvez de alguma forma destorcida, o que coloca alguns proble-
mas: essa distorção é a mercadoria. É por aí que Marx "encontra"
explicitamente o que de f.ato jamais deixou, a saber, o valor de
uso como substrato ou suporte material do valor de troca, a cria-
ção da mais-valia (trabalho produtivo) supondo o valor de troca-
mercadoria, o que já remete a um trabalho efetuado sob condições
sociais determinadas. Assim: "Pelo fato de produzir mercadorias,
o trabalho permanece produtivo: materializa-se em mercadorias
que sao ao mesmo tempo valores de uso e valores de troca ...
Também só é produtivo o trabalho que se exterioriza em merca-
dorias 16 .•• " Ou ainda: "Considerando o caráter essencial da pro-
dução capitalista, podemos então supor que todo o mundo das
mercadorias, todas as esferas da produção material, da produção
das riquezas materiais, são submetidos, em teoria ou de fato, ao
modo de produção capitalista ... Podemos então dizer que a ca-
racterística dos operários produtivos, isto é, dos operários que
geram capital, é que seu trabalho se realiza em mercadorias, em
riquezas materiais. E já encontramos assim, para o trabalho pro~
dutivo, um segundo carátér secundário distinto de sua caracteTís-
tica determinante· e absolutamente independente do conteúdo do
trabalho 17."
Mas essa distorção da mercadoria, pela qual Marx encontra
explicitamente o caráter geral do trabalho produtivo como tra-
balho que intervém diretamente na reprodução dos elementos ma-
teriais da produção, sob as formas sociais sobretudo do capita-
lismo, coloca no entanto um problema: é que se, como Marx o
observa por outro lado, todo trabalho que intervém diretamente
na produção material tende, sob o capit-alismo, a tomar a forma
de mercadoria e a ser subsumido (submetido) ao capital,' em
16 Sixieme Chapltre inédit . .. , p. 387.
17 Histoire des doe trines . .. , Costes, t. II, p. 210.
238 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HOJE

contrapartida, na generalização da forma mercadoria sob o capi-


talismo, trabalhos podem tomar a forma mercadoria sem por
isso produzir mais-valia para o capital. É principalmente o caso
para o trabalho de pintores, artistas, escritores, concretizado em
uma obra de arte ou livro, isto é, sob forma mercadoria,
quando, de fato, se trata aí de serviços trocados pela renda: Marx
assinala com efeito que produtos podem tomar a "forma preço''"
e a "forma mercadoria" sem por isso terem valor. Em outras
palavras, se todo trabalho produtivo capitalista assume a forma
mercadoria, nem toda mercadoria corresponde a um trabalho
produtivo 18.
B) Se está aí a forma destorcida, conseqüentemente lacunar~
pela qual Marx opera explicitamente a junção da definição geral
do trabalho produtivo (trabalho diretamente implicado na pro-
dução material) e da definição do trabalho produtivo capitalista,
irei mais além para afirmar que de fato a primeira foi sempre
implicitamente incluída na segunda, o que faz precisamente com·
que ela não tenha sido obrigada a intervir como tal. Afastar-me-ei
então aqui de Terray, o qual, principalmente, ao manter (justa-
mente) a pertinência da definição geral do trabalho produtivo
para o trabalho produtivo capitalista, verá aí duas definições real-
mente distintas em Marx: o que o levará a tentar vencer a difi-
culdade que surge, "classificando" tipos de trabalhos que seriam
produtivos segundo a determinação geral do trabalho produtivo,.
de um lado, e, de outro, aqueles que· seriam produtivos segundo
a determinação propriamente capitalista do trabalho, pronto a ten-
tar restabelecer a articulação "caso por caso", segundo as situa-·
ções contraditórias nas quais se encontrariam, segundo esse ponto
de vista, os diversos agentes. Para só dar um exemplo, aquele dos
assalariados da circulação: Terray será levado a excluí-los dos
trabalhadores produtivos porque não completariam trabalho pro-
dutivo no sentido da definição geral (não fazem parte do proces-
so de produção material), enquanto seriam trabalhadores. produ-
tivos segundo a definição capitalista do trabalho ("pois que pro-·
<luzem mais-valia para um capitalista, seja quais forem as origens
dessa mais-valia e o papel des·se capitalista 19 ").
Penso que se trata de um caminho errado. Não somente não
vemos a co-substancialidade da definição geral do trabalho pro-
dutivo nas análises de· Marx sobre o trabalho produtivo capita-

118 Le Capital, t. 1., p. 112.


1.9 Terray, ibid., p. 133.
NOVA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE ÜPERÁRIA 239'

lista, mas, além disso, caímos no mal-entendido que acabo de


assinalar: conceber a determinação geral do trabalho produtivo
como primeira,, isto é, válida "em si", ao lado das formas sociais
que desempenhariam o papel de "suple·mento", enquanto elas cons-
tituem as suas condições efetivas de existência. De fato, a deter-·
minação geral do trabalho produtivo não teve a princípio de in-
tervir, como tal, nas análises de Marx sobre os trabalhos improdu-
, tivos capitalistas. Para retomar o exemplo dos assalariados da
circulação, não tivemos de fazer intervir, como tal, a definição.
geral do trabalho produtivo (a saber, o fato de não dependerem
diretamente de um processo de produção material): se estes não:
são produtivos, é porque, segundo a determinação capitalista do
trabalho produtivo e conforme· o ponto de vista do capital social,
não criam mais-valia. Vale dizer que isso é "insuficiente" e que·
seria necessário lhes "adicionar" a determinação geral do trabalho
produtivo, que ivlarx teria esquecido no caminho, ao falar do·
trabalho produtivo capitalista?

Não se trata disso: apesar das formulações ambíguas de Marx,


sua determinação capitalista do trabalho produtivo (criador di-
reto de mais-valia) já inclui a determinação geral, tal qual existe·
no modo de produção capitalista. Em outras palavras, se e·ssa de-
terminação 2eral não interveio, é porque já se encontrava pre-
sente em essência. Marx nos dá, nas Teorias da mais-valia, a ra-·
zão disso, ao referir-se à rep!'odução ampliada do capitalismo: é
que, nessa reprodução, todo trabalho que intervém diretamente·
na produção material tende, estando realmente subsumido (sub-
metido) ao capital, a se tornar produtor direto de mais-valia: "À
medida que caminha a submissão do conjunto da produç·ão a~
capital ... é claro que os trabalhadores improdutivos, cujos servi-
ços são trocados diretamente pela renda, não realizam mais, para
a maior parte dentre eles, do que serviços pe·ssoais e não produ-
zem mais do que uma ínfima porção dos valores de uso mate-·
riais. . . Por isso, somente uma parte inteiramente insignificante
desses trabalhadores improdutivos pode, no modo de produção
ca,t.>italista desenvolvido, estar imediatamente engajada na pro-
dução material 20."
Em outras palavras, falar de trabalho produtor de mais-valia
é falar do processo de produção material na sua existência e re-·

20 Histoire des Doctrines . .. , t. II, pp. 210 sq.


240 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE HoJE

produção capitalista. A subsunção (submissão) real do processo


de trabalho ao capital, isto é, sua reprodução ampliada (que há
que distinguir de sua subsunção formal, contém, e reúne dire-
tamente, a definição geral do trabalho produtivo, pois ela nada
mais é do que a forma desta última na reprodução capitalista
do trabalho.

III

Estas últimas observações assumem sua importância, na me-


dida precisamente e·m que a discussão marxista em, torno do tra-
balho produtivo foi amiúde excfüsivamente calcada no valor de
troca, negligenciando o processo de produção materiàl. Assina-
lemos agora uma conseqüência prática, que concerne principal-
mente ao exame do papel da "ciência" e de seus diversos "por-
.tadores" no processo de produção material, e na criação da
mais-valia.
Com efeito, se o relacionamento do tràbalho produtivo e do
processo de produção material, que de fato está implicado no
·exame de todo trabalho produtivo, deve ser feito explicitamente
no caso da "ciência" e com uma insistência particular, isso se
,deve à expansão que tiveram atualmente as diversas ideologias
referentes ao papel da "ciência" no processo de· produção atual:
supõe-se que esta intervenha cada vez mais "diretamente" como
tal, no processo de produção - "a revolução científica e técnica"
-, supondo-se que o conjunto dos "portadores da ciência", em
um sentido amplo, faça parte dos trabalhadores produtivos e
pertença, então, à classe operária. É principalmente o caso ·de
Radovan Richta, para que·m, "no decorrer das alterações bruscas
atuais da produção, a ciência se torna a força produtiva central
da sociedade e praticamente o fator decisivo do crescimento das
forças produtivas 21 ".
Voltaremos aos pressupostos dessas concepções, principal-
mente aquele da ciência como força neutra nas suas relações com
as força~ produtivas, concebidas de forma puramente tecnicista.
Mas as anális.es acima, referentes ao trabalho produtivo, já per-
mitem, antes de qualquer outra consideração, limpar o terreno.
Elas implicam desde,já a necessidade de uma distinção importan-

21 Richta, La Civilisation au carrefour, 1969, p. 17. Ver a crítii.ca


dessas concepções no Cahiers du cinéma, n. 0 242-3, janeiro de 1973,
pp. 24 sq.
NOVA PEQUENA-BURGUESIA E CLASSE OPERÁRIA 241

te entre os "portadores da ciência": aquela que existe entre a


"pesquisa" e a "produção e difusão de informações" (a "infor-
mática") e seus agentes, de um lado, os engenheiros e técnicos
que intervêm diretamente em um processo de trabalho material
por meio, indiretamente, do trabalhador coletivo produtivo, de
outro. O caso destes últimos apresenta certas particularidades.
Mas as análises anteriores são suficientes para excluir claramen-
te o trabalho dos primeiros do trabalho produtivo capitalista.
Com efeito, mesmo que o capital submeta de fato a suas exigên-
cias o conjunto do trabalho científico, alistando, na expressão de
Marx, a ciência "para o seu serviço" (não há, nesse sentido, ciên-
cia "neutra"), e mesmo que o papel das inovações técnicas assu-
ma atualmente uma função mais importante do que no passado
(exploração intensiva do trabalho), isso não é suficiente para
transformar o trabalho dos primeiros em trabalho produtivo. Seu
trabalho, atualmente não mais do que no passado, não intervém
diretamente no processo de produção material. A ciência, no ca-
pitalismo, permanece separada dos trabalhadores diretos ("ciên-
cia independente. . . do trabalho"), e intervém nesse processo
não como tal, mas, como diz Marx, pelas suas "aplicações tecno·
lógicas",' incorporando-se a um ou outro dos fatores do processo
de trabalho material, força de trabalho ou meios de produção 22 •
Esse trabalho de pesquisa ou de produção de inf armações
não é assim um trabalho que produz mais-valia. Não são aliás
os agentes desse trabalho que produzem, no sentido próprio, a
ciência: esta, não sendo localizável em um processo delimitado
no tempo e no espaço, envia finalmente ao trabalho e à experiên-
cia inumeráveis trabalhadores diretos, engajados, estes sim, nos
processos de trabalho materiais mais diversos, mas separados da
"'pesquisa". Esse trabalho permanece improdutivo mesmo que seus
produtos assumam a forma-mercadoria (patentes, licenças) e te-
nham um "preço", pois, tanto como uma obra de arte, não pro-
duzem, como tais, valor: esses "produtos" científicos não são re-
produzíveis como tais 23 . Isso não impede que esses agentes pos-
sam trazer a mais-valia a um capitalista individual, quando prin-
cipalmente, como é a tendência notada atualmente, este investe
diretamente nesse domínio, transformando tais agentes em assa-
lariados (sociedades de software e de engineering, por exemplo):
co ponto de vista do capital social, só se trata aqui de transfe-

22 Le Capital, t. II, pp. 49 sq., 58 sq.


23 Ver igualmente, neste sentido, Janco e Furjot, lnformatique et
Capitalisme, 1972, pp. 72 sq. e a nota de Bettelheim.
242 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

rências de mais-valia. Enfim, o fundo do problema permanece


imutável quando esse trabalho e as atividades que lhe são liga-
das têm lugar no lieio das próprias empresas industriais, o que
se dá com freqüência na fase atual de· concentração (cerca de
dois terços do pessoal científico trabalham atualmente na França
no seio das empresas), da mesma forma que· as atividades ligadas
à circulação e à realização da mais-valia não são transformadas
em trabalho produtivo quando têm lugar no seio do quadro ms-
titucional de uma empresa industrial.
III.
OS COMPONENTES POUTICOS E
IDEOLóGICOS DA DETERMINAÇÃO DE
CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA

Acabamos de ver as determinações propriamente econômi-


cas de classe da nova pequena-burguesia em relação ao trabalho
produtivo e ao trabalho não-produtivo, determinações que já
marcam as fronteiras que a separam da classe operária.
Mas a determinação estrutural de classe estende-se iguaímen-
te às relações políticas e ideológicas que cercam seu lugar no
conjunto da divisão social do trabalho. A referência a essas re-
lações é aqui, com efeito, duplamente importante:
1. As relações econômicas da ordem da distinção entre tra-
balho produtivo e trabalho improdutivo são insuficientes para
delimitar as próprias fronteiras de classe entre, de um lado, a
classe operária e, de outro, certas imprecisões dessa nova peque-
na-burgu_esia, imprecisões essas que estão diretamente implicadas
em um processo de produção material: é o caso dos supervisores
do processo de trabalho e dos engenheiros e técnicos.
2. Essas relações políticas e ideológicas são decisiva~,
igualmente, iJara os conjuntos já analisados da nova pequena-bur-
guesia cujas. relações econômicas e a distinção trabalho produ-
tivo/traqalho improdutivo, no entanto, traçam claramente as
fronteiras que a separam da classe operária. Essas relações são
decisivas, pois intervêm nas relações desses conjuntos entre si e
no seu pertencimento comum de classe (nova pequena-burgue-
sia), em suas relações com a pequena-burguesia tradicional, en-
fim no fracionamento da nova pequena-burguesia em função da
polarização que a atravessa.
244 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HoJE

1. O Trabalho de Direção e de Supervisão

Comecemos pelo primeiro ponto, que remete à questão da


organização do próprio processo do trabalho produtivo: vou limi-
tar-me, primeiramente, à questão do pertencimento de classe de
certos agentes, tais como, por exemplo, os "contramestres", a
fim de apresentar o problema teórico geral do "trabalho de dire-
ção e de supervisão", que tem de fato uma dimensão bem mais
ampla. Encontra-se aqui, diretamente·, o problema da articulação·
entre as relações de produção e o processo de trabalho sob n
forma da relação entre divisão técnica - "divisão manufaturei-·
ra" é o termo preciso de· Marx - e a divisão social do traba-
lho, que é somente a forma em. que se coloca a questão da arti-
culação entre trabalho produtivo em geral e trabalho produtivo
capitalista na própria organização do processo de trabalho. Po-
demos ainda uma vez resumir as proposições fundamentais que
regeram o conjunto de nossas análises:
1. O processo de trabalho não existe em si como nível au-
tônomo das forças produtivas, mas sempre sob formas sociais
determinadas, principalmente articulado a relações de produção
determinadas: é a dominação das relações de produção sobre °'
processo de trabalho que confe.re. à sua articulação a forma de
um processo de produção.
2. Na própria organização do processo de trabalho, é a di-
visão social do trabalho, diretamente dependente das relações de
produção, que domina a divisão técnica.
3. A divisão social do trabalho remete diretamente às con-
dições políticas e ideológicas de determinação das classes sociais
e de sua reprodução. Sob sua forma de divisão social do traba-
lho no próprio seio do processo de produção, ela remete direta-
mente a essas "condições" políticas e ideológicas tais como exis-
tem neste processo.
4. Se nos reportamos agora aos agentes que ocupam os lu-
gares das classes sociais, diremos que· é a divisão social do tra-
balho no seio do processo de produção que domina seu fogar na
divisão técn.ica do trabalho~

Essas observações são, pois, particularmente importantes


para a análise de certos trabalhos diretamente implicados no pro-
cesso de produção material e de criação de mais-valia. Elas per-
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 245

mitem esclarecer as análises de Marx, principalmente sobre o


trabalho de direção e de supervisão no processo de produção.
Afirmo desde já que essas análises apresentam determinadas am-
bigüidade;, na medida principalmente em que Marx examina
"separadamente" o aspecto de divisão técnica e. o ~specto d~ di-
visão social, não mostrando sempre como a pnmeira se articula
com a dominação da segunda. Inútil iludirmo-nos sobre o fato
de que essa ambigüidade, prendendo-se em larga escala à ordem
da exposição de Marx, prende-se igualmente· a escórias "econo-
mistas-tecnicistas" presente-s em sua obra, encontradas em toda
uma série de problemas, e sobre as quais aqui não insistiremos:
mas o marxismo não é um dogma estereotipado, e sabemos, prin-
cipalmente, que a revolução cultural proletária na China permi-
tiu, a tal respeito, avançar de forma decisiva.

No entanto, convém reter as análises de Marx sobre a "dupla


natureza" do trabalho de direção e supervisão (de um lado ... de
outro lado ... ) e a importância que atribui à divisão social do tra-
balho:
''O trabalho de supervisão e de direção aparece, necessaria-
mente, todas as vezes que o processo de produção imediato toma
a forma de um processo socialmente combinado e que não é o
trabalho isolado de produtores independentes. Mas possui uma
dupla natureza.
"De um lado, em todos os trabalhos para os quais muitos.
indivíduos cooperam, a conexão geral e a unidade do processo·
exprimem-se necessariamente em uma vontade diretora, em fun-·
ções que não se referem aos trabalhos parciais, mas à atividade
global de um setor de trabalho, como é o caso para um regente
de orquestra. Trata-se aí de um trabalho produtivo que deve ser-
realizado em todo sistema combinado de produção.
"De outro lado ... esse trabalho de supervisão é nece;ssário,
em todos os modos de produção que repousam sobre a oposição
entre o operúrio, enquanto produtor direto, e o proprietário dos
meios de produção. Quanto maior essa oposição, mais importan-
te é o papel que desempenha o trabalho de supervisão. Alcança,
em con.seqüência, o auge no sistema escravista. Mas é igualmen-
te indispensável em regime de produção capitalista porque o pro-
cesso de produção é aí ao mesmo tempo [grifo meu] o processo
de consumo da força de trabalho pelo capitalista 1." Sob e-ste úl-·

1 Le Capital, t. VII, pp. 48-49.


246 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

timo aspecto, ele corresponde aos "falsos custos" da produção


capitalista.
Recoloquemos essas análises no contexto das relações de pro-
dução capitalistas. O lugar do capital é aí caracterizado, de for-
ma específica em relação aos outros modos de produção, pelo
fato de acumular ao mesmo tempo a propriedade econômica
-dos meios de produção e sua posse: os trabalhadores dfretos -
os operários - são inteiramente separados, e mesmo despossuí-
dos, de seus meios e objeto de· trabalho. Na divisão social capi-
talista do trabalho, Marx nos dirá que a direção do processo de
trabalho tende a se tornar "/unção do capital'', e que o capital
.a submete inteiramente. Isso não é produzido pelo acaso: é que,
.sob as relações de produção capitalistas (propriedade e posse de-
pendendo do capital), a organização do conjunto do processo
de trabalho é dobrada às exigências do capital. A separação e
-despossessão dos trabalhadores dos meios de produção, figura de
sua exploração capitalista, significa que não existe divisão e co-
·Ordenação das tarefas. correspondendo a necessidades puramente
"técnicas" da "produção", e existindo como tais. O trabalho de
direção e de supervisão capitalista não é uma tarefa mais técnica
do que a divisão do trabalho no próprio seio da classe operária,
principalmente o trabalho parceiro, não é o efeito do "maqui-
nismo" e da "grande indústria" como tais, mas o efeito de sua
existência capitalista.
É desta dominação da divisão social do trabalho sobre a di-
·visão técnica que depende a organização particular do trabalho
capitalista, que Marx designa como despotismo da fábrica: "Se,
portanto, a direção capitalista, no que tange ao seu conteúdo,
tem uma dupla face, porque o próprio objeto daquilo que se
trata de dirigir é, de um lado, processo de produção cooperativo
e, de outro lado, processo de produção de mais-valia, a forma
.dessa direção torna-se necessariamente despótica. As formas par-
ticulares desse despotismo desenvolvem-se na medida em que se
desenvolve a cooperação 2 ." Aqui também, Marx parece fazer a
mesma coisa -- de um lado ... de outro - nesse despotismo,
para a socialização das "forças produtivas" e para a extração da
·mais-valia (nas relações de produção). Na última frase, ele pa-
rece mesmo atribuir uma importância decisiva ao primeiro ele-
mento, insistindo na relação entre o desenvolvimento do despo-
tismo e aquyle da cooperação. De ,fato, não se trata disso, e é
o que pode ser notado na citação precedente sobre a direção e
2 Le Capital, t. II, p. 24.
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA 1~0VA PEQUENA-BURGUESIA 247

a supervisão do processo de trabalho. Marx as relaciona dire-


tamente com a oposição do "proprietário" e do "produtor dire-
to", dizendo-nos assim que ele "atinge seu máximo no sistema
escravista", onde a "socialização das forç_as produtivas" é, no
entanto, bem menos desenvolvida do que no capitalismo.
Em suma, o despotismo da fábrica constitui predsamente a
figura da dominação da divisão social do trabalho sobre a divi-
são técnica, tal qual existe no capitalismo. Esse trabalho de di-
reção e de supervisão capitalista é a reprodução direta, no pró-
prio seio do processo de produção,. das relações políticas entre
a classe capitalista e a classe operária 3 •

O que é então a determinação de classe dos agentes cu3a


função essencial traz o selo desse trabalho de direção e de su-
pervisão, tais como os contra.mestres: e outros "suboficiais da pro-
dução"? Apresentar essa determinação sob a forma de um duplo
pertencimento de classe, referindo-se à "dupla natureza" de seu
trabalho, e dizer que fazem parte da classe operária (trabalho
produtivo) na medida em que efetuam o trabalho necessário a
todo processo cooperativo de um lado, e, de outro, que1 não fazem
parte na medida em que realizam a.s relações políticas de explo-
-ração, é falso na medida em que são se apreende, em
seu lugar, a articulação da divisão técnica e da divisão social do
trabalho sob a dominação desta última. Essa análise não seria
menos falsa se a aplicássemos aos próprios capitalistas, pois Marx
dirá igualmente: "Sabendo-se que 1~le representa o capital pro-
dutivo engajado no processo de valorização, o capitalista preen-
che uma função produtiva, que consiste e·m explorar o trabalho
produtivo ... Como dirigente do processo de trabalho, o capita-
lista pode efetuar o trabalho produtivo, no sentido em que seu
trabalho, sendo integrado no processo de· trabalho total, se en-
carna no produto." Mesmo que não possamos falar, no entanto,
de um duplo pertencimento de classe para os próprios capitalis-

3 Marx J.irá assim, a pLopósito da grande indústria (reprodução


ampliada do capital) : "Em todos esses casos, os produtores perdem sua
:autonomia, tendo a instauração do modo de produção especificamente
·capitalista por resultado um regime de dominação e de subordinação no
seio do processo de produção" (grifo de Marx), Chapitre inédit, tradu-
ção francesa de Dangeville, p. 207. Trata-se então aí de relações polí-
ticas, mas de relações políticas tal como existem e se reproduzem no
-processo de produção: estas não se identificam àquelas, que se estabe-
lecem em torno e no seio do Estado e de seus aparelhos, local principo.l
idas relações polítícas.
248: As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tas (operário e capitalista), não o podemos fazer para esses


agentes.
De fato, esses agentes não pertencem à classe operária, pois
sua determinação estrutural de classe, e o lugar que ocupam na
divisão social do trabalho, estão marcados pela dominância das
relações políticas que realizam sobre o aspecto trabalho produtivo
na divisão do trabalho. Sua função principal consiste em extrair
a niais-valia aos operários - para "coletá-la". Eles exercem po·
de·res que decorrem do lugar do capital, capital que açambarca
a ":função de direção" do processo de tr'!balho, poderes que não
são forçosamente exercidos pelos próprios capitalistas: "O capi-
talista começa por dispensar o trabalho manual. Depois, quan
o seu capital cresce, e com ele a força coletiva por ele explorada,,
demite-se de sua função de supervisão imediata e assídua dos
üperários e dos grupos de operários e a transfere para unia e·spé-
c1e particular de assalariados 4 • "

Mas, de outro lado, é preciso distinguir esses executantes dos:


~'err1presários". No desenvolvimento do capitalismo monopolista,
esses "empresários" podem exercer os poderes decorrentes das
re.Jações de posse - domínio e direção de um processo de trabalho
- mas igualmente alguns daqueles que decorrem da relação de
propriedade econômica, exercendo, aliás, diretamente esses pode-
res no vértice: eles ocupam então o próprio lugar do capital,
pertencendo como tais à burguesia. Em compensação, os agentes
de que se trata aqui são dominados pelo capital, não passando
de executantes subalternos. Esses agentes subalternos são igual-
mente, em face do capital, explorados: eles também fornecem
o sobretrabalho, isto é, o trabalho em parte não-pago (falsos.
custos), e vendem sua força de trabalho, enquanto a remunera-
ção dos empresários depende, essencialmente, do lucro da em·
presa.
Essa que·stão de barreira de classe entre os agentes que pre-
enchem tarefas de direção e de supervisão do processo de traba-
lho é indiretamente marcada pelos próprios termos de Marx
"trabalho de direção e de supervisão". Esses termos conjugados
não poderiam remontar a uma distinção clara entre tipos de
trabalho, pois todo trabalho de direção é ao mesmo tempo um
trabalho de supervisão e vice-versa (daí a conjunção), porém
remetem implicitamente a uma diferenciação na divisão social

4 Le Capital, t. II, p. 24.


DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 249

do trabalho. entre instâncias dirigentes e instâncias subalternas


(daí a dualidade dos termos "direção" e "supervisão") .
Lembremos enfim, se necessário for, o que separa radical-
mente essas análises daquelas da corrente institucionalista-fun-
cionalista e de seus conceitos de poder e de autoridade. As rela..
ções (rapports) políticas em questão são aqui analisadas somente
como lugares na divisão social do trabalho, ficando os diversos
poderes daí decorrentes constitutivamente ligados às relações
(relations) nas relações (rapports) de produç·ão. O despotismo de
fábrica constitui a configuração das relações políticas na repro-
dução ampliada das classes sociais. no próprio seio do lugar em
que se estabelecem as relações de produção e de exploração: os
poderes daí de·correntes não dependem em nenhum sentido das
relações "organizacionais" no seio de uma "empresa" enquanto
"instituição". A empresa capitalista nada mais é que a articula-
ção das relações de produção, das relações políticas e das rela-
ções ideológicas no seio de uma unidade de produção como cen..
tro de apropriação da natureza e de exploração.

2. A Divisão Trabalho Manual/Trabalho Intelectual: os


Engenheiros e Técnicos da Produção

1
Chegamos assim à questão das relações ideológicas na divi-
são social do trabalho no seio da- produção material,, e de sua
articulação nas relações políticas: significa engajar o problema
da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, que va-
mos examinar, primeiramente, na determinação estrutural de ..
classe dos engenheiros e técnicos diretamente implicados na pro-
dução material. Mas a divisão trabalho manual e trabalho inte-
lectual ultrapassa de longe seu único caso, e refere-se de fato
ao conjunto da nova pequena-burguesia em suas relações com
a classe operária.
De fato, a teoria .marxista manifestou durante muito tempo
um certo "rnal-estar" com respeito à questão da divisão entre
trabalho manual e trabalho intelectual. De um lado, os clássicos
do marxismo sempre enfatizaram quer (Marx, Engels) o papel
decisivo dessa divisão na "aparição histórica" da divisão das clas-
ses, quer (Lêiiin, Mao) a relação estreita entre a abolição da
divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e a supres-
são da exploração de classe, e mesmo a divisão da sociedade em
250 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

classes. De um outro lado, entretanto, essa divisão entre trabalho


mtelectual e trabalho manual é aparentemente ocultada todas as
vezes que se trata de definir a determinação de classe ern uma
formação social, principalmente capitalista. Ê claro que estamos
diante de um problema muito importante, que foi novamente
proposto na revolução cultural chinesa: se levarmos em conta
agora a importância decisiva do avanço da divisão trabalho ma-
nual/trabalho intelectual no caminho socialista, não nos podemos
doravante contentar com simples afirmações, e evitar a questão
do papel exato dessa divisão na própria determinação das classes
de uma formação capitalista.
Direi sucintamente que a própria base desse "mal-estar" vem
primeiramente do fato de que, para o marxismo, a divisão tra-
balho manual/ trabalho intelectual não destaca absolutamente a
divisão trabalho produtivo/ trabalho não-produtivo no modo de
produção capitalista. As numerosas análises esparsas de Marx
parecem claras nesse sentido: referem-se ao trabalhador coletivo
produtivo no próprio desenvolvimento da produção capitalista:
"Dada a medida em que se desenvolve a subsunção real do tra-
balho sob o· capital, isto é, o modo de produção especificamente
capitalista, não é mais o trabalhador individual porém, cada vez
mais, uma capacidade de trabalho socialmente combinada que se
torna o funcionário real do processo de trabalho coletivo; e que
as diferentes capacidades de trabalho que concorrem para a for-
mação da máquina pFodutiva no seu conjunto participam, de
_maneira muito diferente, no processo imediato de produção das
mercadorias ... , um de preferência com sua m·ão, o outro de pre-
ferência com sua cabeça, um. como empresário, engenheiro, téc-
nico, o outro como supervisor, o terceiro como operário manual
direto ... , um número cresce:nte de funções das capacidades de
trabalho arruma-se sob o conceito imediato do trabalho produ-
tivo e seus portadores sob o conceito do trabalhador produtivo,
diretamente explorado pelo capital e subordinado a seu processo
de valorização e de produção 5 ." Para definir então o trabalha-
dor produtivo capitalista "é totalmente indiferente saber se a
função do trabalhador individual, que é -somente um membro do
trabalhador coletivo, está mais afastada ou mais próxima do tra-
balho manual imediato" ... '·'para ser produtivo, não é mais ne-
cessário colocar individualmente sua própria mão no trabalho,
é suficiente ser um órgão do trabalhador coletivo 6 . . . "

5 Sixieme Chapitre inédit .. . , ed. Pléiade, op. cit., pp. 388 sq.
6 Le Capital, t. II, p. 183.
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 251

Essas análises de Marx foram diretamente empregadas pelos


defensores da "nova revolução científica e técnica", a fim de es-
tender as fronteiras da classe operária aos novos conjuntos de
engenheiros, técnicos etc. Isso nem sempre foi feito da mesma
forma, mas a base permanece a mesma: de Richta ao "novo
bloco histórico" de Garaudy, passando pela "nova classe operá-
ria" de Mallet, às te·ses atuais do PCF sobre o capitalismo mo-
nopolista de Estado. Estas últimas teses apresentam-se de um
modo muito mais matizado, mas introduzindo uma distinção de
fato inexistente em Marx: aquela entre trabalhador coletivo e
trabalhador produtivo 7 • Supõe-se que esses agentes façam parte
do trabalhador coletivo sem fazerem - ainda não nos foi pre-
cisado - parte do trabalhador produtivo: surgem, enquanto
quase-operários, como uma dessas famosas camadas ant~monopo­
listas de que o PCF detém o segredo. Inútil repetir, outros já o
inostraram suficientemente, que são com freqüência, de fato, na
prática do PCF e da CGT, assimilados à classe operária.
Ora, por muito tempo o debate ficou centralizado em torno
da questão de saber se, sim ou não, esses agentes cumpriam "tec-
nicamente" o trabalho produtivo. Os pressupostos desse debate
eram aqueles: a) de uma redução economista-tecnicista do pró-
prio conceito üo processo de produção como processo neutro, e
em si; b) da ciência e da tecnologia como forças neutras corta-
das de suas condições políticas e ideológicas; e) de uma redução
economista da determinação de classe desses agentes, como se o
caráter de seu trabalho como trabalho produtivo capitalista bas-
tasse, independentemente de suas determinações políticas e ideo-
lógicas, para que pertencessem à classe operária.
Desses pressupostos decorre a conclusã_o a que infalivelmen-
te se chega: a aparição do trabalhador coletivo produtivo, fazen-
do "portadores da ciência" dos operários (trabalho· produtivo),
conduziria a um avanço, pela famosa "socialização" do trabalho,,
da divisão trabalho intelectual-trabalho manual. É aqui que se
implanta precisamente toda a verborréia atual sobre a automa-
ção como avanço dessa divisão.

Essas análises são inteiramente· falsas. Se nos referirmos,


com efeito, aos numerosos textos de Marx sobre esse assunto,
perceberemos ~rfeitamente que, apesar de certas ambigüidades,

7 Traité . .. /e capitaUsme monopoliste d'Etat, op. cit., t. 1, pp. 211 sq.


252 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

insistem sobre a unidade dos dois aspectos da questão, isto é, so..


bre as condições políticas e ideológicas sob as quais se estabelece
o trabalhador coletivo produtivo. Sobre esse assunto, a constante
das análises de Marx é a seguinte:
1) é a socialização (cooperação ampliada) dos processos de
trabalho sob o capitalismo que faz emergir o trabalhador coletivo
produtivo;
2) é essa mesma socialização que, ao mesmo tempo, apro..
funda a divisão trabalho intelectual/trabalho manual.
Trata-se, pois, sempre e·m Marx da socialização capitalista do
trabalho.
Só tomo aqui, como exemplo da posição do problema, uma
única passagem do Capital sobre o trabalhador coletivo produ..
tivo, aquela que assinalei acima, e que traduzo diretamente da
edição alemã. Essa passagem é digna de nota, pois mostra como
Marx entende, em um e mesmo movimento da exposição, os dois
aspectos da questão:
"O processo de trabalho foi até aqui considerado abstrata·
mente. . . sob sua forma mais simples. . . como processo entre o
homem e a natureza. . . Mas já foi assinalado que essa definição
do trabalho produtivo não é em absoluto suficiente para o exame
do trabalho capitalista. Vamos examinar isso mais de perto.
"Tanto te·mpo quanto o processo de trabalho seja puramente
individual, ele próprio reúne funções que, em seguida, se sepa·
ram. . . como em um sistema natural a cabeça e a mão estão
unidas, o processo de trabalho reúne o trabalho manual e o tra·
balho intelectual. Mais tarde, estes se separam em urna contra·
dição antagônica (feindliche Gegensatz). O produto se transfor·
ma de um produto imediato dos produtóres individuais em um
produto social e comum do trabalhador coletivo, isto é, de um
contingente de trabalho combinado cujos membros participam,
de perto ou de longe, do manuseio da matéria. Com o caráter
cooperativo do processo de trabalho, o conceito do trabalho pro·
dutivo e de seus portadores necessariamente se amplia. Para que
alguém seja produtivo não é mais necessário meter a própria mão
na obra: basta ser um irmão do trabalhador coletivo 8 •.• "

8 MEW, t. 23, pp. 531-2. Assinalo que esse texto da edição ori-
ginal difere daquele da tradução francesa por J. Roy (t. II, p. 183,
Ed. Soaiales) em um ponto decisivo: é que a frase grifada por mim:
"Mais tarde, estes se separam ~m uma contradição antagônica" foi pura
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 253

Esse texto é digno de nota, pois, em um único e mesmo mo-


vimento de exposição, e em um único e mesmo parágrafo, Marx
assinala: a) que os portadores do trabalho intele-ctual têm ten-
dência a fazer parte do trabalhador coletivo produtivo, mas b)
que ao mesmo tempo, também pelas mesmas razões (socializa-
ção' capitalista), o trabalho intelectual se separa em uma "con-
tradição antagônica" do trabalho manual. Como entender essa
~'contradição" entre portadores desses trabalhos (intelectuais/ma-
nuais) separados no próprio seio do trabalho produtivo? Eis aí
toda a questão.

É necessário, assim, examinarmos mais de perto a divisão


.trabalho manual/trabalho intelectual, pois ela está de fato no
centro do problema. Adianto desde já· a tese principal a esse res-
peito: essa divisão trabalho intelectual/ trabalho manual não so-
,mente se limita a uma divisão técnica do trabalho, mas constitui
.de fato, em todo modo de produção dividido em classes, a ex-
pressão concentrada da _correspondência das, .rela_ções políticas -e
.ideológicas (político-ideológicas nesse sentido) na sua ariicul(z.Çãó
com as relações de produção: isto é, tais como existem e se re-
produzem, sob a configuração precisamente de sua correspondên-
cia (político-ideológicas), no próprio seio do processo de produ-
.ção e, mais além, no conjunto da formação sacia}. Essa divisão
trabalho intelectual/trabalho manual assume formas específicas
no modo de produção capitalista, caracterizado pela "separação"
toda particular dos dois.

II
/

Isso exclui, antes de tudo, qualquer tentativa de apreender


a divisão trabalho manual/trabalho intelectual, e o próprio con-
teúdo desses termos, por critérios gerais que se tornam forçosa-
mente, nesse caso, critérios empfricos inadequados: principal--
mente critérios descritivos de ordein biofisiológica - "gestos na-

e simplesmente pulada no texto francés. O que dá precisamente a im-


pressão de que a aparição do "trabalhador coletivo produtivo" s:gnifi··
caria o avanço, em um "momento" da produção capitalista, da separação
·trabalho manual/trabalho intelectual. Incompetência de J. Roy ou sinal
das amb.igüidades do próprio texto de Marx, que revisou pessoalmente
a tradução francesa?
254 As CLASSES- SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

turais" e "pensamento" - ou do gênero: trabalho das "mãos'",.


e trabalho da "cabeça", "mãos sujas" e "mãos limpas", aqueles
que colocam a "mão na massa" e aqueles que não a colocam etc.
O que permite aqui tirar todas as conclusões da proposição
segundo a qual a divis·ão trabalho nianual/trabalho intelec.tual
não destaca a distinção trabalho produtivo/trabalho não-produti-·
vo. Se ela não a destaca é que ela não depende do mesmo esta-
tuto: não é suficiente dizer, como para a distinção trabalho pro-
dutivo/trabalho não-produtivo, que ela só existe sob condições
políticas e ideológicas determinadas - tais ou quais -, pois ela
é apenas a configuração concentrada dessas condições. De fato,
embora encontremos em Marx uma definição geral de trabalho
produtivo e improdutivo, cujo estatuto examinamos, não encon-
tramos nenhuma, da mesma ordem, parà o trabalho manual e
intelectual, mas simples frases descritivas. Bem ao contrário, to-
das as vezes em que Marx dá a própria definição geral do tra;-
balho produtivo como trabalho que intervém diretamente no pro-
cesso de produção material, toma o cuidado de precisar que ela
não se identifica ao trabalho manual, de que não encontramos,.
por oposição, nenhuma definição geral (aliás, o trabalho inte-
lectual não se reduz absolutamente, em Marx, ao que ele desig-
na como produção imaterial). Mais ainda: quando Marx fala de
um trabalho produ_tivo determinado, é ainda sempre para acen'.""
tuar que ele não destaca o trabalho manual, seja porque, inos
modos de produção pré-capitalistas, o trabalho intelectual estava
diretamente presente no trabalho manual - não estava por isso
"separado", mas sabemos por outros textos de Marx e Engels
que a divisão trabalho manual/trabalho intelectual existia aí real-
mente -, seja porque o trabalho intelectúal, sob o capitalismo,.
pode fazer parte do t_rabalhador coletivo. Ora, se, vista ao lado do
processo de produção e do processo de trabalho, tal definição
geral não existe, é precisamente porque, quanto a esse processO',.
a divisão trabalho manual/ trabqlho intelectual é somente a con-
figuração das condições políticas e ideológicas desse processo
nesse mesmo processo.
Retenhamos por enquanto essas análises cujas conseqüências;
aparecerão claramente em se·guida; a reprodução da divisão tra-
balho manual/trabalho intelectual cobre um domínio considera-·
velmente mais extenso do que aquele que é apreendidQ descri·
tivamente pelas expressões "mãos sujas" e "mãos limpas", e
assume formas muito mais complexas.
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 255

III

A divisão trabalho manual/trabalho intelectual, e seu próprio


conteúdo, dependem então de u:m modo de produção determina-
do. Que dizer do modo de produção capítalista, e como a tese
geral que acabamos de adiantar se verifica, em particular no
caso dos engenheiros e técnicos?
As principais análises de ~1arx referentes à divisão capita-
lista do trabalho manual e do trabalho intelectual situam-se no·
contexto da análise da socialização capitalista do trabalho, aquela
do maquinismo e da grande indústria, e estão diretamente liga-.
das à famosa questão do trabalho parceiro (trabalho simples/
trabalho complexo). Sabe-se que essas questões foram com fre-
qüência consideradas como ligadas a uma necessidade puramente
técnica da "grande indústria" como tal, enquanto estão ligadas.
à sua forma capitalista: o próp:rio Lênin não é, aliás, isento de
ambigüidades graves nesse sentido, principalmente em suas apre-
ciações referentes a9s aspectos técnicos "positivos" do tayloris--
mo, aspectos aplicáveis, segundo ele, na "empresa" socialista. De
fato, o maquinismo e a grande indústria constituem para Marx,
depois do estádio da manufatura, que é a forma de· transição do,
feudalismo para o capitalismo (subsunção - submissão - for-
mal do trabalho ao capital), a forma precisa da reprodução am- -
pliada das relações de produção capitalistas (subsunção - sub-
missão - real do trabalho ao capital). A divisão capitalista
trabalho manual/trabalho inteliectual está assim diretamente li-·
gada à espedficidade dessas relações, principalmente à separa-
ção e despossessão do produtor direto de seus meios de produ--
ção, tal qual se reproduz pela subsunção real do trabal_ho ao·
capital: "As forças intelectuais da produção desenvolve·m-se num'
único lado porque desaparecem de todos os outros. O que os ope-
rários parceiros produzem concentra-se diante deles no capital.
A divisão manufature-ira lhes opõe as forças intelectuais da pro--
dução .como a propriedade de outrem e como poder que os do-
:mina. Essa cisão. . . completa-se. . . na grande indústria que faz·
da ciência uma força produtiva independente do trabalho e a
alista a serviço do capital 9 ." Para acentuar a forma particular--
mente importante que assume assim essa divisão capitalista, Marx
chegará a dizer: "É próprio do modo de produção capitalista se--
parar os diferentes trabalhos, e portanto também os trabalhos:
manuais e intelectuais ... "
9 Le Capital, t. II, p. 50.
~256 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Nessas análises, Marx começa por colocar inicialmente em


.relação o trabalho intelectual e a ciência, ambos estando "sepa-
rados" do trabalhador direto e opostos a ele. Como podemos
encontrar por esse meio, na determinação de classe dos enge-
_nrieiros e técnicos, as relações políticas e ideológicas?

l . Antes de tudo pela relação entre ciência e ideologia.


O assunto é muito vasto e importarifo-para -qtie e·ntremos aqui
:no fundo do problema. Digamos simplesmente· que a "ciência"
,em questão, apropriada pelo capital, não é encontrada jamais
de forrr..n. pura ou neutra, mas sempre sob sua forma de apro-
priação pela classe dominante, isto é, sob forma de saber estrei-
tamente imbricado na ideologia dominante. É o mesmo caso que
se designa como "pesquisa fundamental": é a ciência como tal
;que está submetida às condições sociais, políticas. e ideológicas
de sua constituição, e não somente suas "aplicações tecnológi-
cas"; tanto mais que não existe separação essencial, ao menos
-depois da revolução industrial (maquinismo e grande· indústria),
entre ciência e técnica. Mas as coisas vão, no entanto, mais além,
-pois, no caso dos engenheiros e técnicos, trata-se precisamente
·das "aplicações tecnológicas" dos conhecimentos científicos ao
processo de produção material. é o desenvolvimento maciço desse
aspecto que condiciona atualmente a extensão desse conjunto de
agentes. Essas aplicações tecnológicas da ciência estão a serviço
direto da produção capitalista, no sentido em que serve·m ao de-
senvolvimento das forças produtivas capitalistas, pois as ·forças
produtivas só existem dominadas pelas relações de produção.
·Essas aplicações estão assim imbricadas nas práticas ideológicas
correspondentes à ideologia dominante: a própria ideologia do-
minante não existe somente nas "idéias", nos conjuntos ideoló-
gicos articulados, mas se encarna e se realiza em toda uma série
de práticas materiais, rituais, de habilidades etc., que existem
inrnlmente no seio do processo de produção. As aplicações tecno-
1ógicas da ciência estão imediatamente pre-sentes aqui como ma-
terialização da ideologia dominante.
Disso podemos tirar uma prime-ira conclusão quanto à ques-
tão dos en9'enheiros e técnicos. Seu trabalho de aplicação tecno-
1ógica da ciência encontra-se situado sob o selo da ideolo~ia do-
minante que eles materializam em seu próprio trabalho "cientí-
fico": eles são assim os portadores da reprodução das relaçõe.s
ideológicas no próprio seio do processo de produção material.
·seu papel nessa reprodução, através da via indireta das aplica-
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 257

ções tecnológicas da .c~ê:ici~~ toma precisa~ente a configuração


~apitalista de uma div1sao entre trabalho mtelectual e trabalho
manual, que manifesta as condições ideológicas do processo de
produção. capitalista.
De fato, não há nenhuma razão "técnica" intrínseca da
"produção" para que essas aplicações assumam a forma de uma
divisão trabalho intelectual/trabalho manual, enquanto sabemos
.de forma pertinente que a ciência é em última análise o resul-
tado da experiência acumulada dos próprios trabalhadores dire-
tos. Certamente, o processo científico não é somente isso: com-
porta um trabalho próprio de sistematização (o "trabalho geral"
segundo a fórmula de Marx) e de experimentação científicas ir-
redutível à "experiência imediata". Mas é somente sob a forma
capitalista que esse trabalho próprio existe na divisão trabalho
manual/ trabalho intelectual. Essa divisão está assim diretamente
ligada ao monopólio do saber, forma de apropriação capitalista
dos conhecimentos científicos e de reprodução das relações ideo-
lógicas de dominação-subordinação, pela perene exclusão do lado
subordinado daqueles que não sabem, ou que se supõe não "sa-
berem".
Trata-se aí de um aspecto da questão que Gramsci percebeu
muito bem, ao caracterizar esses engenheiros-técnicos como inte-
lectuais modernos. Lembremos, por enquanto, que, para Gramsci,
esses engenheiros e técnicos são intelectuais, isto é, "funcionários
da ideologia" segundo seu próprio termo, na medida em que têm
uma relação particular com o saber e com a ciência no modo
de produção capitalista, e em que participam da divisão capitalista
trabalho manual/trabalho intelectual. Gramsci irá mesmo mais
longe ao considerar a grande maioria dentre eles como intelectuais
orgânicos da burguesia 10.

2. Essas análises conduzem diretamente a uma segunda obser-


vação, que se refere ao próprio conteúdo do trabalho intelectual
capitalista no seio do processo de produção, e que reúne· as aná-
lises precedentes. Se a aplicação tecnológica da ciência está liga-
da, sob suas formas ideológicas capitalistas, ao trabalho intelec-
tual, daí não se segue absolutamente, entretanto, que todo traba-
lho intelectual capitalista na produção vá abranger aplicações se-
melhantes. A divisão capitalista trabalho intelectual/trabalho ma··
~---

1;0 Gramsci, Gli Intellectuali e l'organizzazione della cultura, Einau-


di, 1966, pp. 5 sq. Ver pp. 273 sq.
258 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITAUSMO DE HOJE

nual não é o produto de uma separação ciência-trabalhadores di-


retos: essa própria separação só é um dos efeitos parciais da se-·
paração doo trabalhadores diretos de seus meios de trabalho, que.
condiciona diretamente a relação entre o trabalho intelectual e:
a reprodução das relações ideológicas capitalistas. Ora, de um:
lado, não encontramos nunca aplicações tecnológicas da ciência.
como tais, mas constitutivamente ligadas à materialização da ideo-
logia dominante sob forma das diversas habilidades; por outro
lado, encontramos igualmente do lado do trabalho intelectual uma
série de práticas que nada têm que ver com essas aplicações;
dos diversos rituais do "knaw-how" às "técnicas do empresariado",
passando pelas diversas práticas "psicossociotécnicas" da empresa~
a lista seria longa.
Já se observa o surgimento da questão da articulação das rela--
ções políticas e das relações ideológicas na figura do trabalho in te-
lectual; chamemos a atenção, no entanto, somente para es.tes1 últ i-
mos: se essas práticas não têm nada a ver com as aplicações tecno-
lógicas - mesmo "ideologizadas" - da ciência, elas no entanto se
legitimam: o que não é por acaso, enquanto investidas de um saber
que os trabalhadores não possuem. Poderíamos assim dizer que
cai "para o lado" do trabalho intelectual no próprio processo de
produção capitalista, e de fora de toda apreciação empírico-natu-
ralista de seu "conteúdo", todo trabalho que toma á forma de
um saber cujos trabalhadores diretos estão excluídos, seja porque
saibam fazê-lo mas não o fazem de fato (e ainda não por acaso)~
seja porque não saibam efetivamente fazê-lo (pois são mantidos
sistematicamente a distância), seja porque não haja aí simplesmen-
te nada para saber fazer.

Essa relação entre ideologia dominante e saber, que se ma-


nifesta como legitimação do trabalho intelectual, separado do tra-
balho manual e detendo esse saber, é inteiramente particular ao
modo de produção capitalista e à ideologia burguesa: ela se pren-
de, e-ssencialmente, à necessidade para a burguesia de "revolucio-
nar" constantemente os meios de produção, necessidade que Marx
analisa no Capital. Essa relação se exprime em todos os domínios
da ideologia burguesa. Para só citar um exemplo significativo:
mesmo durante a transição do feudalismo para o capitalismo, e·
depois para o estádio do capitalismo competitivo, todos dois mar-
cados pela constituição do Estado burguês e pela dominância, no
seio da ideologia burguesa, da região ideológica jurídico-política,
esta - a política, o direito - legitimou-se explicitamente, de Ma-·
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA Nü\'A PEQUENA-BURGUESIA 259

quiavel e Thomas More até .em suas conceptualizações ulteriore:~


(Montesquieu, B. Constant etc.) no modo de técnica científica,
isto é, enquanto fundamentada no modelo das epistemes apodíti-
cas. Ao contrário de um saber legitimado sobre o modo "natura\"
ou "sagrado", este saber é aqui legitimado sob a forma de "práti--
ca científica racional", e se constitui, no âmbito da própria ideo-
logia jurídico-política, por oposição ao que ele designa como
"utopia". Isso manifestou-se diretamente pelos efeitos da ideolo-
_gia jurídico-política na constituição do corpo dos funcionários e
da "burocracia" centralizada do Estado burguês. A separação toda
particular trabalho intelectual/trabalho manual que implicava a
constituição do Estado burguês (separação do "público" e do "pri-
vado") e de seus agentes como corpo "separado" da sociedade,
foi fundamentada no investimento do saber na ideologia jurídico-
:política sob a forma de "ciência".
Mas essa relação entre ideologia burguesa e saber se refor-
·ça consideravelmente, ao assumir formas particulares, no estádio
do capitalismo monopolista, marcado pelo deslocamento da domi-
nância, na ideologia burguesa, em direção à região econômica des-
:sa ideologia: encontram-se· aqui as diversas formas do "tecnocra-
Jismo". Essa relação reforçada encontra-se, de forma invertidaT
!em certos aspectos de revolta contra essa ideologia, revolta vivida
sobre o modo exatamente oposicional (e sob forma moral), por-
tanto ainqa dominada pela ideologia burguesa: o que leva às di-
versas formas de "anticientificismo" naturalista, de retorno "eco-
lógico" às fontes da "natureza" etc.

IV

Mas aí só temos um d9s aspectos da questão dos engenheiros


e técnicos, por enquanto apenas concernente às relações ideoló-
_gicas. De fato, esses engenheiros e técnicos, inserindo-se, pelas
:aplicaç0es tecnológicas da ciência, no processo de produção ca-
pitalista, estão, por isso mesmo, implicados, ao menos na sua
grande maioria, nas relações políticas de direção e de supervisão
.do processo de trabalho.
O que se faz primeiramente de forma indireta, pelas própriàs
aplicações tecnológicas, na medida em que· elas são precisamente
aplicáveis em um processo capitalista do trabalho que já compor-
ta em si essas relações: uma "aplicação tecnológica" feita para
ser incorporada no trabalho da cadeia capitalista, já materialista,
260 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE HOJE

os poderes implicados pelo trabalho de direção e de supervisão:


"No seio dessa combinação (capitalista) o trabalho serve a uma
vontade e a uma inteligência estranhas: são elas que o dirigem.
A unidade que anima o trabalho existe fora dele. Está subordi-
nado à unidade material que existe entre as máquinas, está sub-
metido ao capital fixo. Este é o monstro vivificado que materiali-
za o pensamento científico e domina praticamente todo o proces-
so n ... " Mas isso se faz igualmente de forma di~eta: esses enge-
nheiros e técnicos estão freqüentemente encarregados do traba-·
lho de dire·ção e de supervisão: controlam diretamente a "eficá-
cia'~' do trabalho operário, o cumprimento das normas dt! rendi-
mento etc. 12
Além disso, cumprem esse trabalho de direção e de super-·
visã:o na medida em que se encontram investidos de funções em
relação ao saber. Seu trabalho intelectual, separado do trabalho
manual, representa o exercício das relações políticas no despotis-
mo da fábrica legitimadas pelo, e articuladas ao, monopólio e
segredo do saber, isto é, à reprodução das relações de d01ninação
e subordinação ideológicas. É essa articulação estreita qm! carac-
teriza o trabalho intelectual dividido com o trabalho manual no
processo de produção capitalista. As relações políticas são de fato
sempre legitimadas e investidas de ideologia dominante, e é essa
f onna de ideologia - relação ao "saber" - que prevalece nas
relações capitalistas no seio do processo de produção. É no mo-
mento, mais do que nunca, o caso na medida em que a l1egitima-
ção dos poderes na fábrica se desloca de um "saber natural" do
modelo de direito divino para uma legiiimidade técnica.
Se a relação com o saber "separado" dos produtores. diretos
con1porta então tarefas de direção e de supervisão na fábrica, ao
inverso, as tarefas de direção e de supervisão se legitimam pela
sua relação com o saber. É certo que podemos sempre evocar os
antilgos legionários que controlam militarmente as cadeias da Ci·
tro(!n. Mas não são os casos mais correntes: e não é por acaso
que os agentes das diversas categorias de contramestres, que, no
entanto, têm uma tarefa direta de supervisão, se apresentam, eles
também, como portadores de um saber particular em relação aos

11 Marx, Grundrisse, t. II, p. 292 (trad. francesa de Dangeville,


col. 10/18).
112 Sobre esse assunto, A. Gorz, "Technique, techniciens et lutte
des classes", em Les Temps modernes, agosto-setembro de 1971, e os tex-
tos escolhidos e apresentados por Gorz, Critique de la division du tnz·
vai!, 1973.
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQU:f!NA-BURGUESIA 26l

perários que controlam. É nessa medida exata que esse trabalho;


~e direção e de controle. necessário a todo "processo cooperativo",
se situa na divisão social capitalista do trabalho, ao lado do tra-
balho i~telectual: "A grande indústria mecânica termina enfim
a separação entr,e o trabalho manual e as f?rças intelectuais da
produção que ela transforma em poder do capital sobre o trabalho.
A habilidade do operário parece frágil diante da ciência prodigio--
sa, das enormes forças naturais, da grandeza do trabalho social,
incorporadas ao sistema mecânico que constituem a força do Pa-
trão ... A subordinação do operário cria uma disciplina de ca-
serna perfeitamente elaborada m> re·gime de fábrica. Aí, o pre-·
tenso trabalho de supervisão. . . é empurrado ao seu último
grau rn."

Qual é pois a determinação estrutural de classe dos enge~·


nheiros e técnicos? Estes não pertencem à classe operária, se bem
que seja exato que, pelas aplica1ções tecnológicas da ciência ao·
processo de produção na fase atual do capitalismo monopolista
(dominant e da mais-valia relativa), tendem cada vez mais a fazer
1

parte, nas relaçõe·s econômicas, do trabalho produtivo capitalista


(trabalhador coletivo produtivo).
Essa tendência é efetiva, mas, como tendência precisamente,
ela se realiza, em relação ao próprio trabalho produtivo, de for--
ma contraditória: contradiÇ"ão que assume a forma de limites dessa
tendência. Não é inútil lembrar que uma parte das aplicações da
ciência visa, sob o capitalismo, não a um aumento das forças pro-..
dutivas capitalistas, mas a uma destruição dessas forças produti-
vas existentes, principalmente sob a forma capitalista de "subs-
tituição" e de "modernização" dos meios de trabalho e dos bens.
de equipamentos existentes. Isso _depende da luta da burguesia
contra :;is formas atuais da baixa tendencial da taxa média de
lucro. luta que consiste por um lado, e principalmente, em au-·
mentar a taxa de exploração pela exploração intensiva do traba··
lho (produtividade do trabalho: papel das aplicações da ciência),
e por outro lado em desvalorizar,, e mesmo destruir, uma parte·
do capital constante existente (papel paralelo das aplicações da
ciência). Mas, se esses engenheiros e técnicos não fazem parte
da classe operária, não é em virtude desse aspecto "destruidor'~

13 Le Capital,, t. II, pp. 105-106 .


262 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HoJ E

das aplicações da ciência, pois a tendência, para eles, de fazer


parte do trabalho produtivo capitalista funciona sempre, ainda
que dle forma contraditória.
~vias ainda: se esses engenheiros-técnicos não fazem parte da
classe operária, não é também porque essas aplicações da ciência,
como se diz freqüentemente e de forma exata, servem de fato às
orientações e prioridades do crescimento monopolista e· não à "pro-
dução" como tal: "Em resumo, uma parte apreciável das forças
produtivas iniciadas pelo modo de produção capitalista, e mais
particularmente, uma parte apreciável dos conhe·cimentos, das
competências e da pesquisa científica e técnica só é "produtiva"
e funcional em relação às orientações e às prioridades particula-
res do crescimento monopolista. Uma boa parte desse pessoal
científico e técnico e uma boa parte dessas pesquisas seriam de
fraca ou nenhuma utilidade em uma sociedade onde a tarefa prio-
ritária fosse satisfazer as necessidades sociais e culturais das
massas 14 ". Seria então cair na definição errônea do trabalho pro-
dutivo baseado na utilidade, (poderíamos dizer a mesma coisa para
·OS operários das indústrias de luxo ou de armamentos). _
Então, esses técnicos e engenheiros têm tendência a fazer
parte do trabalho produtivo capitalista, pois valorizam diretamen-
te o capital na produção da mais-valia. Se não pertencem, em seu
conjunto, à classe operária, é que, no seu lugar no interior da
.divisã.o social do trabalho, realizam as relações políticas e ideoló-
gicas de subordinação da classe operária ao capital (divisão tra-
balho intelectual/trabalho manual), e que esse aspecto de sua de-
termiração de classe. é o aspecto dominante.

VI

Certamente, podemos fazer diferenciações entre esses enge-


nheiros e técnicos, principalmente segundo a sua situação nos
ramos ou indústrias em cujo interior dirigem e comandaq1 operá-
rios manuais, ou em ramos em que eles próprios constituem <
princitpal mão-de-obra, e onde, portanto, não exerceriam tarefas
de direção e de supervisão sobre outros trabalhadores. Aliás, as
análises do próprio S. Mallet a propósito dessa "nova classe ope-
raria .., (engenheiros e técnicos) estavam fundamentadas na hipó-
tese de Touraine das "três fases" (A, B, C) do processo de traba-
1ho capitalista, hipótese que se situa numa perspectiva tecnicista do
--·---
1·'1 Gorz, . op. cit., p. 151.
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 263

processo do trabalho. A fase A. corresponderia ao "trabalho


qualificado polivalente" (manufatura); a fase B ao maquinismo
e·· à grande indústria estudada por Marx, a saber, ao "trabalho
parceiro" com forte maioria de os *; a .fase· C à introdução da
automação, à dominância maciça dos engenheiros e técnicos que
controlam máquinas automáticas e que te·riam uma visão global
do processo de trabalho, e ao desaparecimento tendencial do tra-
balho parceiro e dos os (do "trabalho manual"). De tal forma
que esses engenheiros e técnicos seriam a principal, senão a única,
força de trabalho. Daí decorrem algumas análises de Friedrnan,
-segundo as quais o estádio C da automação teria suprimido a di-
visão trabalho intelectual/trabalho manual no processo de pro-
dução :us.

É sabido que essas análises dos anos 50-60 se revelaram f al-


i.as. Elas não levavam em conta, de fato, o duplo processo de
qualificação-desqualificação do trabalho sob o capitalismo mono-
polista, colocando um "processo te.enológico" em si, fora das re-
lações de produção capitalistas. Isso não quer dizer que dif eren-
ças importantes não existam na fase atual do capitalismo monopo-
lista: mas as novas transformações do processo de trabalho e o
aumento importante dos engenheiros e técnicos não corresponde-
ram a uma diminuição dos os, be~m ao contrário, antes a uma
estagnação e diminuição dos operários qualificados ( OP). Certa-
mente, isso deve ser entendido no plano internacional, não sendo
representativa a situação dos Estados Unidos, que expulsam o as-
pecto "desqualificação" do trabalho principalmente nos países eu-
ropeus. Mas, se tomarmos esses pafaes europeus, e em particular
a França, constataremos, através das simples estatísticas descriti-

* Vier nota do tradutor, p. 37.


:W Encontram-se essas análises de Touraine e de Friedman, entre
outras, em suas contribuições à Sociolo1~ie du Travail, em dois volumes,
ed. por Friedman e Naville, 1967. Aliás, só citarei aqui, quanto às JPO-
siçõe:; do PCF sobre a "revolução científica e técnica", algumas linhas do
Traité mencionado (t. 1, p. 189), e sem qualquer comentário: "Sociedade
dos traballhadores, o socialismo dará necessariamente um impulso e cc>n-
teúdos novos a essa mudança profunda das forças produtivaJ. A intro-
dução em larga escala da automatizaç:ão complexa, acompanhada do
desenvolvimento das redes de informaçiio, de novos progressos na am-
plitude das possibilidades dos sistemas das máquinas automatizadas, apro-
fu.,dará a diVrisão social do trabalho e então a variedade das necessidades
sociais satisfeitas, ao mesmo tempo em que 3e apagard no fim da! con-
tas a separação entre o trabalho intelectual ~ o trabalho manual, est~
desaparecendo sob sua forma parceira."
264 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

vas do INSEE, que a famosa "modernização" e "reestruturação'"


industrial, que teve efetivamente lugar a partir dos anos 60, não
corresponderam absolutamente, bem ao contrário, a uma dimi-
nuição dos os quer no conjunto da formação social francesa, quer,.
com algumas exceções mais próximas, nos ramos e indústrias onde
essa "reestruturação" teve lugar.

1954 1962 1968

OP 2. 837.442 2.345.080 2.506.180

os 1. 815 .265 2.465 .080 2.650.380

Operários braçais 1.125. 323 1.405 .140 1.489 .140


(Mão-de-obra bruta)

Técnicos 193.220 343.986 533.940


(Setor privado)

Contramestres 141.480 306.142 360.120


(Capatazes) (Setor privado)

Engenheiros 81.140 138.061 190.440


(Setor privado)

FoNTE: Recenseamentos do INSEE.

Vamos mencionar mais abaixo o caso particular da categoria


"engenheiros" do INSEE, cuja grande maioria pertence de fato à
burguesia, pois ocupa o lugar dos agentes dirigentes do capitaL
mas concentremo-nos nas relações entre técnicos e classe operária.
Observemos primeiramente que· a categoria operários qualificados
( OP) está amplamente sobreclassificada nessas estatísticas, isto é,
ela compreende cada vez mais agentes que, de fato, em seguida à
desqualificação do trabalho, cumprem simples tarefas de os. Em
seguida, que a diminuição rápida dos operários braçais depois de
1968 corresponde para uma certa parte não a uma mudança de
suas tarefas, mas a um deslocamento na escala, depois dos aconte-
cimentos de maio, obtendo essa mão-de-obra bruta maciçamente·
a qualificação de os. Mas vamos mais além assinalando que:
a) a proporção de os é consideravelmente mais .importante
nas empresas concentradas, passando de 17 ,6o/o do conjunto dos
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 265

operários nas empres~s com menos d_e 10 assala~iados, a 40.60'0


nas empresas com mais de 500 assalanados: em virtude do atraso
da França nesse sentido e da tendência maciça atual para a con-
centração "reestruturada", é principalmente· o número de os que
vem aumentando ainda, consideravelmente;_
b) a famosa introdução da ';'automação" está longe de pro-
vo~ar um aumento necessário dos técnicos e uma diminuição dos
os. Segundo uma pesquisa do CNRS *, foi somente em 36o/o dos es-
tabelecimentos que a .automação provocou um aumento dos téc-
nicos e engenheiros 16 : P. Naville frisa que "o pessoal que -traba-
lha com instrumental automático compreende cerca de 80o/o de:
não-qualificados". Na Renault, por exemplo, entre 1965 e 1969,.
a percentagem dos técnicos aumentou cerca de 60o/o, mas a per-
centagem de os também aumentou 60%i17 , e isso a expensas so-
bretudo dos operários qualificados. Mesmo em certos ramos ex-
cepcionais e privilegiados, como a petroquímica por exemplo, que
parece, em razão da própria natur1eza do processo de trabalho ef e-
tuado, já haver atingido agora um alto grau de automação, os
engenheiros-técnicos somam em 1968 cerca da décima parte dos
assalariados empregados - química - ou um quarto - petróleo 118 •
Em suma, apesar - das imprecisões e das diversas confusõe·s
estatísticas nesse sentido, observa-se bem que as transformações,
na fase atual do capitalismo monopolista, fazem-se sob o signo
não de um proce-sso técnico qualquer em si, mas sob o signo da
exploração e de um deslocamento da dominante para a exploração
intensiva do trabalho (mais-valia relativa). O que, se bem que
acompanhado de um aumento do número dos técnicos, manifes-
ta-se principalmente, nos seus efeitos sobre a class.e operária, por
uma desqualificação maciça do trabalho.

* CNRs: Centre National de Recherches Sociales - Centro Nacio-


nal de Pesquisas Sociais. (N. do T.)
16 "L'automatisme, les travailleu:rs et les syndicats", em La Do-
cumentation f rançaise.
17 P. Naville, L'Etat entrepreneur, 1971, pp. 182 sq., 195 sq. Obser-
var que N aville foi um dos raros "sociólogos do trabalho" que não caiu
nos diversos mitos da "nova classe op1~rária".
18 Ph. d'Hugues e M. PesLier, Le-s Professions en France, ed. INED,
1969; e também G. Rerat e .Cl. Vimont, "L'incidence du progres techni-
que sur Ia qualification professio:melk", em Population, janeiro-feverei-
ro de 1967. Sobre esses assuntos, ver igualmente: C. Berger, "Non au
révi~lonnisme sénile", em Cahiers du CERES, janeiro de 1972; G. Pottier,
"Electronique: quelle nouvelle classe ouvriere?", em Politique aujourd'hui,
outubro-novembro de 1972.
266 As CLASSES Soc1AIS No CAPITALISMO DE HOJE

Assim, enquanto conjunto, os engenheiros e técnicos encon-


tram-se sempre em uma situação em que comandam e controlam
o trabalho dos produtores diretos. A isso seria necessário acres-
centar que o relacionamento, por Marx, da divisão trabalho inte-
lectual/trabalho manual capitalista com o trabalho parceiro do
maquinismo, não deve ser considerado no sentido tecnicista destes
últimos termos. Refiro-me a isso em razão do debate atual, e das
experiências. a propósito da "recomposição das tarefas" do tra-
balho dos os. Essa "recomposição" não poderia, no âmbito das
relações de produção capitallistas, questionar a divisão trabalho
intelectual/trabalho manual e o lugar dos engenheiros e técnicos
a tal respeito, pois essa divisíio se reproduz, no âmbito dessas re-
lações, constantemente sob novas formas:

VII

Essa barreira de classe entre engenheiros, técnicos, de um


lado, .e classe operária, de outro, verifica-se enfim em toda uma
série de pontos particulares.

1. Retomemos a divisfüo trabalho manual/trabalho intelec-


tual. De fato, essa _divisão fundamental tende a se reproduzir, de
forma específica, "d.e um lado" e "de outro" da barreira de divi-
são: ela tende a se reproduzir, sob f armas específicas, no próprio
interior do "campo" do trabalho intelectual, e sob formas especí-
ficas igualmente, no próprio interior "do campo" do trabalho ma-
nual. O trabalho intelectual e o trabalho manual tendem a inte-
riorizar e a desacelerar em seu seio a barreira que os divide. No
que se refere ao trabalho n1anual, aquele da classe operária, é
claro que sua organização capitalista em "qualificações" não é
uma simples divisão técnica, mas sim que as qualificações OP, os,
mão-de-obra bruta etc. estão marcadas por uma reprodução da
divisão trabalho intelectual/trabalho manual (esbarra-se aqui, in-
diretamente, na questão da aristocracia operária). A reprodução
induzida dessa divisão é aqui, sob esse aspecto, apenas a confi-
guração dos efeitos das relaçiÕes ideológico-políticas capitalistas no
próprio seio da classe operária, e mesmo no próprio seio do pro-
cesso de trabalho capitalista.
Entretanto, a barreira de classe dessa divisão existe: os OP não
exercem absolutamente sobre os os, nem estes sobre a mão-de-
obra bruta, a direção e a supervisão acopladas à legitimação do
..,
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 267

segredo do saber e de seu monopólio, que os engenheiros e técni-


cos exercem sobre o conjunto da classe operária. E isso ao contrá-
rio precisamente de toda a tendência institucionalista-funcionalii-
ta de análise da "empresa" (a empresa-burocracia), e que vê
nela uma "instituição" caracterizada prioritariamente pelas rela-
ções de "poder" no sentido quase psicossociológico do termo, po-
der-autoridade circulando por escalões contínuos de delegação "hie-
rárquica" do vértice até a base: empresários-executivos médios-
técnicos-con tramestres-operários qualificados-os-mão-de-obra bruta.

2. A existência dessa barreira de classe verifica-se igual-


mente em uma série de indícios significativos: aquele do montan-
te dos sa/,ários em primeiro lugar. Certamente, diferenciaçõe·s sa-
lariais existem igualmente no seio da classe operária. Mas obser-
va-se precisamente um salto muito importante, que contrasta com
as gradações da escala dos saláirios no seio da classe operária,
entre os operários qualificados ·"'melhor pagos", de um lado, os
técnicos "menos pagos" desse conjunto, do outro. De fato, quan-
do há referência aos sa/,ários líquidos médios anuais em francos,
para os assalariados em tempo integral no setor privado ·-e semi-
público, em 1969, constatam-se as seguintes cifras: mão-de-obra
bruta: 8.854; os: 10.467; operárlos qualificados: 13.116; porém:
contramestres: 20. 667; técnicos: 22. 272; quanto aos engenheiros:
45. 756 1 '9.
Sabe-se que se os salários correspondem, de forma "abstrata"
e na escala do conjunto do trabalho social, ao custo de repro-
dução e de manutenção da força-trabalho, isso não significa- abso·
lutamente. porém, que toda diferenciação concreta da hierar-
quia dos salários corresponda, ao menos em sua totalidade, a di-
ferenciações reais desses custos: componentes políticos estão sem-
pre presentes na hierarquia dos salários. É também o caso para a
hierarquia salarial no próprio seio da classe operária, o leque con-
creto dos salários correspondendo aqui, para uma parte impor-
tante, a uma política da burguesia para fins de divisão da classe
operária. É claro assim que a dis1tância significativa entre os salá-
rios dos operário~ e os salários dos engenheiros e técnicos não cor-
responde, a não ser para uma parte somente, às diferenças reais

19 Essas informações, assim como aquelas que se seguem, sobre os


salários, têm por fontes: "Les salaires dans l'industrie, le commerce et
les services en 1969", por N. Chabanas e S. Volkoff, em Les Collections
de L'INSEE, M. 20, janeiro de 1973. Ver também: P. Ranval, Hiérarchies
des salaires et luttes des classe1, 1972.
268 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

nos custos de fonnação e de reprodução de suas forças de tra-


balho respectivas: uma parte importante corresponde aos "falsos
custos" do capital para a reprodução das condições ideológicas
da extração da mais-valia e para as tarefas de direção e de super-
visão do processo de trabalho, ocultando por esse meio a barrei-
ra de classe.

3. A existência dessa barreira verifica-se enfim igualmente


do ponto de vista da reprodução dos agentes que ocupam respec-
tivamente os lugares da classe operária e aquele dos engenheiros
e técnicos, o que pode ser compreendido pela distribuição e cir-
culação dos agentes entre ess es lugares: embora esse aspecto da
1

reprodução seja secundário en1 relação à reprodução dos próprios


lugares, ele assume aqui, no entanto, o valor de um indicador
importante.
Do ponto de vista do deslocamento unigeração, isto é, agen-
tes que trocam de lugar no decorrer de sua vida profissional, o
que se constata? No próprio seio da classe operária, há uma certa
ventilação entre operários J:>raç:ais que passam a os, os que passam
a operários qualificados (OP), ainda que seja necessário insistir
ligeiramente na rigidez · da distribuição dos agentes no próprio
seio da classe operária. Mas essa percentagem cai de forma apre-
ciável e perfeitamenter significa.tiva quando se trata, para um agen-
te, de passar de operário qualificado a técnico, o que indica a
existência de um obstáculo praticamente intransponível, que em
última análise é o efeito sobre os agentes da barreira de classe.
A proporção entre homens de mão-de-obra bruta que (no decor-
rer de sua vida profissional) se deslocam, e aqueles que se tor-
nam os é de 48,5o/o; entre os homens os que se deslocam e
aqueles que se tornam operários qualificados é de 43,7%; ao passo
que, entre os OP que se deslocam e aqueles que se tornam técni-
cos, a proporção só é de· cerca de 10 a 14% 20 • A grande maioria
desses raros agentes operários que, no decorrer de sua vida pro-
fissional, deixam o lugar da classe operária (uma média de 4 a 5
operários em cada 100 por período de 5 anos; uma vez operário,
sempre operário) desloca-se do lado dos assalariados da distri-
buição, dos serviços, e sobretudo em direção ao setor artesanal
- "independentes". É ínfima a parte daqueles que, permanecen-
do na produção, se deslocam em direção a um domínio- no senti-

20 Insisto no fato de que essas percentagens não se referem ao


conjunto da mão-de-obra bruta, os e OP, mas somente àqueles dentre
eles que se deslocam.
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 269

do amplo: cerca de 1 OP em 100 por período de 5 anos, o caso


sendo praticamente inexistente para os os e para os de mão-de-obra
bruta e, logicamente, para as mulheres, tudo isso ao contrário
daquilo que afirma a ideologia burguesa da "mobilidade social".
As coisas se modificam um pouco no deslocamento intergerações
(os filhos desses agentes), permanecendo, no entanto, a mesma
a tendência inicial 21 •

VIII

Mas a determinação de classe desses agentes (engenheiros e


técnicos) depende igualmente de seu lugar em relação ao capital.
Fazendo parte, cada vez mais, do trabalhador coletivo produtivo
capitalista, e servindo cada vez mais à valorização do capital
pela produção da mais-valia, eles são também explorados pelo ca-
pital, sendo uma grande parte do seu trabalho trocada pelo capi-
tal. Sua situação em face do capital depende igualmente ·das rela-
ções políticas e ideológicas nas quais estão inseridos. De fato, assim
,como a empresa como aparelho não se constitui em uma pirâmi-
de hierárquica por escalões contínuos, do vértice à base, até o in-
terior da classe operária, ela não consiste em uma hierarquia se-
melhante para todos os agentes exteriores à classe operária: ao
·contrário do que sustentam as famosas ideologias da "tecnoestru-
.tura", os agentes "não-operários" não se situam todos da mesma
forma com respeito ao capital. É por essa razão (voltare·mos a
·esse ponto) que é necessário estar muito atento no emprego do
termo hierarquia que, em numerosos autores, supõe uma conti-
nuidade linear entre esses agentes e oculta as barreiras de classe 22 •
Assim, nas relações políticas de direção e de supervisão do
-processo de trabalho. esses agentes representam as instâncias su-
balternas desse trabalho, enquanto as diversas categorias de "em-
presários" que ocupando diretamente o lugar do capital e exer-
icendo diretamente os poderes daí decorrentes representam as ins-

21 Baseei-me, no reagrupamento desses dados e na reorganização


·dessas cifras, nas pesquisas do INSEE concernentes à qualificação de 1964 e
tle 1970, às qua:s dou referências mais precisas abaixo. Essas oesquisas
-participando de fato (o que é claro na sua apresentação) da ·ideologia
da mobilidade, fui levado a recorrer às "cifras brutas" e a operar sua
reorganizacão.
22 V~r as justas obse:-vaçõcs sobre esse assunto de C. Gajdos, "Cul-
·ture et impasse de la technique: les cadres de !'industrie", em Cahiers
Hntern. de soc'nlogie, m)l. 1972, e minhas otser::aç~es ataixo, pp. 301 sq.
270 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO-DE HOJE

tâncias dirigentes. Em relação a estas, os engenheirõs e técnicos


da produção estão em uma situação de subordinação (são domina-
dos pelo capital), e se vêem impor as finalidades da produção
monopolista.

Mas é ainda mais interessante notar a situação desses agentes


na articulação das relações políticas e das relações ideológicas,.
isto é, no próprio seio do trabalho intelectual. Assim como a
divisão trabalho intelectual/trabalho manual tende a se reprodu-
zir sob formas específicas, no seio do canapo do trabalho manual,.
ela tende a se reproduzir, sob formas específicas, no próprio seio
do trabalho intelectual. Pqde-se mesmo dizer que, do lado do tra-
balho intelectual em seu conjunto, essa reprodução é muito mais
intensa do que no seio do .campo do trabalho manual, encontran-
do de alguma forma aqui os canais f antasmáticos do segredo do
saber, seu terreno de .eleição. Esses técnicos estão subme~idos di-
retamente ao segredo e ao monopólio do saber detidos pelas ins-
tâncias dirigentes. Seu próprio trabalho intelectual tende a apre-
sentar os caracteres de parcialização próprios ao trabalho manual,
até assumir às vezes o port~ de um verdadeiro trabalho intelectual
em cadeia. O que se traduz diretamente na diferenciação das fi-
leiras de formação: são as grandes escofas, de um lado (X, Cen-
trale, Mines, Ponts et Chausées etc.), diversas subescolas especia-
lizadas (Arts et Métiers), do outro lado. As primeiras preparam
para um trabalho considerado como "polilvalente", que exige uma
"visão de conjunto" da economia; seus agentes, tendo recebido a
"qualificação" de "engenheiros", são e1npregados na produção
apenas numa frágil percentagem, e ocupam em geral rapidamente
postos de dire~~ão e de administração de e:mpresas: pertencem, en-
tão, com freqüência as instâncias dirigentes do capital (burguês)'
enquanto os outrqs permanecem em geral diretamente calcados
na produção. ,,

O que nos conduz a algumas observações suplementares:


a) Em virtude da imprecisão e confusão das estatísticas ofi-
ciais do INSEE por "profissões" e, no caso dos "engenheiros", sua
caracterização em "categoria socioprofissional" pela sua qualifi-
cação escolar, alguns agentes designados nas estatísticas como "en-
genheiros" fazem de fato parte, em suas: funções reais, dos em-
presários e instâncias dirigentes do capital e pertencem assim à
burguesia;
DETERMINAÇÃO DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 271'

b) A reprodução da divisao trabalho intelectual/trabalho ma-


nual no seio do trabalho intelectual refere-se de fato ao próprio
conjunto pequeno-burguês "engenheiros-técnicos" e se manifesta
aqui como fracionamento desse conjunto em frações pequeno-bur-
guesas, principalmente ao lado dos técnicos e de certos casos de
engenheiros subalternos (desenhistas, técnicos químicos, agentes.
técnicos de construção etc., ou ainda engenheiros mecânicos, en-
genheiros de transportes etc.) cujo próprio trabalho é constante-
mente desqualificado-parcializado em relação àquele da fração
superior. Fracionamento cujos efeitos se encontram na hierarquia
salarial no seio desse conjunto.
Encontra-se nesse caso, nas estatísticas oficiais do INSEE, um
erro simétrico e exatamente contrário ao precedente. Certos "téc-
nicos" e "engenheiros inferiores", classificados como tais a partir
de sua formação profissional-escolar e de sua qualificação formal,
ocupam de fato postos de operários e deve·m ser assim considera-
dos como pertencentes à classe operária, não se servindo indireta-
mente do famoso operário coletivo-produtivo, mas simplesmente·
porque, de fato, não ocupam absolutamente um lugar de engenhei-·
ro-técnico (de "domínio" ou de "camisas brancas").

_R~-ªumindo: os engenheiros e técnicos não pertencem à classe


operária,-se bem que tenham cada vez mais a tendência de fazer
parte do trabalhador coletivo-produtivo, em razão do aspecto do-
minante das relações políticas e ideológicas de que são portadores.
Essas relações referem-se à sua determinação estrutural de classe·
na divisão social do trabalho (trabalho intelectual/trabalho ma--
nua!) e não se identificam em sua posição de classe na conjuntu-
ra. De fato, em razão da polarização de sua determinação relati--
vamente à classe operária e ao capital, esse conjunto adota, segun--
do suas próprias frações, por vezes, posições de classe da burgue--
sia, por vezes também posições da classe operária. Mas, neste·
último caso, esses agentes não se tomam, contudo, operários: di-
vergências continuam a marcá-los, nessas próprias posições de
classe, e·m relação à classe operária e só mencionaremos aqui,.
além de numerosos casos em maio de 1968, o recente exemplo das;
lutas empreendidas pelos trabalhadores da Lip.
IV. O PAPEL DA DIVISÃO
TRABALHO INTELECTUAL/TRABALHO
MANUAL PARA O CONJUNTO DA
NOVA PEQUENA-BURGUESIA

Acabamos de constatar, até aqui, certas características co-


muns da determinação de classe dos conjuntos da nova pequena-
burguesia: trabalhadores assalariados que, não pertencendo à clas-
se operária, são também explorados pelo capital, seja porque ven-
dem sua força de trabalho, seja pela posição dominante do capi-
tal nos termos da troca (serviços). Trata-se de uma determinação
·decorrente, principalmente., das relações econômicas (trabalho
não-produtivo). Mas essa situação econômica comum não é cla-
ramente suficiente para nos fazer considerar esses diversos con-
juntos como pertencendo a. uma mesma classe, a nova pequena-
-burguesia. É preciso nos referirmos igualmente ao seu lugar nas
relações políticas e ideológicas da divisão social do trabalho, lu-
gar que revelará de fato a extensão das determinações comuns
·desses conjuntos.
Ora, a propósito dos conjuntos dos supe-rvisores do processo
de trabalho e dos engenheiros e técnicos, vimos a importância do
papel da c}ivisão trabalho intelectual/trabalho manual. Esse papel
pareceu decisivo, pois, pela primazia da divisão social sobre a di~
visão técnica do trabalho, excluiu esses conjuntos da classe ope-
rária, apesar do aspecto "trabalho produtivo capitalista" de que
são igualmente portadores. Mas o papel da divisão trabalho inte-
lectual /trabalho manual é igualmente muito importante para os
outros conjuntos da nova pequena-burguesia, que· as relações eco-
nômicas excluem desde já da classe operária (trabalho não-pro-
'dutivo da esfera de circulação do capital e de realização da mais-
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 273

valia, dos funcionários de Estado e:tc.). Direi, com efeito, que a


divisão trabmho intelectual/trabalho manual marca o conjunto da
nova pequena-burguesia que se situa nessa divisão, e em relação
à classe operária, "do lado" ou no "campo" do trabalho intelec-
1ual, seja de forma direta, seja de forma indireta. Essa nova pe..
quena-burguesia, produto da própria reprodução ampliada do ca-
pitalismo monopolista, está situada em relação à divisão ampliada
trabalho intelectual/trabalho manual que caracteriza o modo
de produção capitalista. Isso significa que está situada de forma
muito particular na reprodução das relações político-ideológicas
capitalistas.

II

Mas é necessário .fazer imediatamente algumas observações


essenciais para evitar os mal-entendidos a que essa propos1çao
pode dar origem, podendo parecer, à primeira vista, paradoxal e,
para compreender bem o aspecto "intelectual" de trabalhos como
aqueles dos empregados de contabilidade, de bancos, de publicida-
de, do marketing, dos seguros, do setor comercial no sentido am-
plo, bem como aqueles da grande· maioria dos funcionários de
Estado, dos agentes dos diversos "serviços" (saúde, hospitais, assa-
lariados dos estudos das profissões "liberais"), e dos agentes dos
diversos escritórios (secretárias, datilógrafas), dos "funcionários
de escritório" em geiral, em relação àquele da classe operária.
Essas observações permitirão sistematizar as análises precedentes.
Vou apoiar-me aqui em certas análises do único marxista ociden-
tal que aprofundou a questão, Gramsci 1 .

1 . Se digo que e·sses diversos trabalhos se situam, em rela-


·ção àquele da classe oper4ria, do lado do trabalho intelectual e
são, de forma direta ou indireta, impregnados por ele, isso não
.quer dizer que seus agentes se}am todos "intelectuais".
A questão dos "intelectuais" é muito vasta, e não a exami-
na rei aqui. Direi simplesmente que é preciso reservar o termo in-
telectuais como categoria social a um conjunto determinado des-
ses agentes, que preenchem funções sociais específicas em relação
à ~laboração das ideologias de classe. Esses agentes, sendo "fun-

1 As refe!"ê,:1cias a Gramsci que se se~uem são tiradas de Gli ln-


lel/ectua/i e l'organizzazione della cultura, Einaudi, 1966.
274 As CLASSES Soc1Ais NO CAPITALISMO DE HoJE

cionarzos da ideologia" (termo de Gramsci), não formam um:


"grupo social" acima, ao lado ou à margem das classes sociais, mas,
têm um pertencimento de classe, dependendo de sua relação com-
plexa com,as diversas ideologias de classe ("intelectuais orgânicos'"
das classes sociais, segundo o termo de Gramsci). Nesse sentido,
Gramsci tem um duplo mérito: a) ter baseado suas análises rela-
tivas aos intelectuais em uma divisão historicamente determinada·
- trabalho intelectual/trabalho manual, em que suas análises se
distinguem daquelas, célebres, de Kautsky; b) ter assim baseado,
a extensão do conceito de "intelectuais" no papel social que esses.
agentes desempenham nas diversas formações sociais. Gramsci foi
justamente levado a estender o conceito de intelectuais sob o ca--
pitalismo ("intelectuais modernos") a uma série de agentes, cujo·
papel social no funcionamento das ideologias de classe não tinha
sido até então claramente percebido: é o caso principalmente para
os engenheiros e técnicos.
Mas é claro que esse conceito de intele·ctuais, mesmo assim,
extenso, não pode abranger o conjunto dos agentes da nova pe-
quena-burguesia: o que não quer dizer, entretanto, que esses agen-
tes se_ situem em graus muito diferentes, do lado do trabalho in--
telectual. Não são somente os inteleGtuais, como categoria social,
que cumprem o trabalho intelectual, ou, antes, que se situam do'
lado do trabalho intelectual: os intelectuais como categoria sociaf
específica são somente um produto da divisão trabalho intelectu·al/'
trabalho manual que os ultrapassa de longe.

2. A divisão capitalista trabalho intelectual/trabalho ma-;·


nual, baseada na especificidade das relações de produção capita-
listas (separação dos trabalhadores diretos de seus meios de pro-
dução), tem de fato tendência a se reproduzir no conjunto das
relações de uma formação social capitalista, e extravasa os locais
onde se estabelecem as próprias relações de produção (a fábrica),
como é aliás o caso para a "forma salarial".
a) É preciso repetir que o conteúdo dessa divisão e de seus
termos não pode absolutamente ser reduzido a critérios empíricos
do gênero "aqueles que trabalham com as mãos" e "aqueles que
trabalham com a cabeça", aqueles que estão em contato direto
com as "máquinas" e aqueles que não o estão etc.: essa divisão
remonta às relações ideológicas e políticas que marcam os lu-
gares ocupados pelos agentes. Com efeito, quando nos prendemos
a critérios semelhantes, pode parecer estranho poder classificar
do lado do trabalho intelectual uma série de agentes não-produti·
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 275

vos que trabalham também com as "mãos", por exemplo os agen-


tes que estão submetidos ao desenvolvimento do "maquinismo" no
trabalho não-produtivo, ou ainda os vendedores e vendedoras de
grandes lojas. Mas, além do fato de Marx nunca ter reduzido o
trabalho intelectual à "produção imaterial", poderíamos negligen-
.ciar assim a dimensão exata, e 1considerável, da reprodução com-
plexa, nas relações político-ideológicas dessa divisão.
Certamente, somos assim levados a uma extensão do concei-
to de trabalho intelectual. Gramtsci já havia encontrado esse pro-
blema, quanto à questão, diferente, desta feita dos "intelectuais",
quando assinala: "Essa posição do problema conduz a uma ex-
tensão muito grande do conceito de intelectuais, mas é somente
assim que se pode operar uma aproximação concreta da realida-
de 2 ." Direi, quanto à questão do trabalho intelectual, que é so-
mente compreendendo a própria constituição do conceito de tra-
·balho intelectual na reprodução de sua divisão complexa de seu
trabalho manual, que podemos aproximar-nos da realidade.
b) Isso vale também, e muito exatamente, do lado do tra-
balho manual, isto é, do lado da classe operária: a divisão político-
ideológica trabalho intelectual/trabalho manual não deve em caso
algum fazer crer que a classe operária - trabalho manual - só
trabalha com as "m·ãos" e que: esses "infelizes" operários não
fazem trabalhar sua "cabeça", '';bestificados" que estão pelo tra-
balho parcelado. Grams.ci assinala então: "Pode-se encontrar um
critério único para caracterizar da mesma forma as diversas e dis-
paratadas atividades intelectuais e para distingui-las ao mesmo
tempo e de forma essencial das atividades dos outros conjuntos
sociais? O erro metodológico mais difundido parece-me ser ter
procurado esse critério de distinção intrinsecamente nas ativida-
des intelectuais e não, em contrapartida, no conjunto do sistema
das relações onde estas (e os conjuntos que as personificam) se
situam num complexo geral das relações sociais. De fato, o pro-
letário também não é especificamente caracterizado pelo traba-
lho manual ou instrumental mas por esse trabalho em condições
determinadas e em relações sociai[s determinadas. . . Qualquer que
seja o trabalho físico, mesmo ornais mecânico e degradante, exis-
te sempre um mínimo de atividade ·intelectual criadora. . . não
existe atividade humana em que se possa excluir toda intervenção
intelectual e separar o homo f aber do homo sapiens." E Gramsci
foi levado a dizer lapidarmente-: "Todos os homens são intelec-

12 lbid., p. 9.
276 As: CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tuais, mas nem todos os homens têm. na sociedade, a função de


intelectual 3 ." Direi, quanto a mim, que todos os trabalhos com-
portam "atividades intelectuais"; mas nem todos os trabalhos se
situam, na divisão político-ideológica trabalho manual/trabalho
intelectual, do lado do trabalho intelectual.

3 . A divisão trabalho intelectual/ trabalho manual não po-


deria ser reduzida a uma identificação entre portadores do tra...
balho intelectual e detentores da "ciência". A relação trabalho
intelectual-cWncia "separados" do trabalhador direto só é um dos:
efeitos da divisão capitalista trabalho inielectual/trabalho manualJ.
e a forma principal que ela assume no próprio processo de pro
dução.
a) Isso explica que se possa considerar do lado do trabalho>
intelectual toda uma série de trabalhos que não têm nada de:
científico. Nã.o são somente os engenheiros e técnicos que fazem
trabalho intelectual. O que não quer absolutamente dizer que os.
trabalhos de dimensão científica se identifiquem com outros tra-
balhos que se: situam do lado do trabalho intelectual, na mesma
medida em que tendem a fazer parte do trabalho produtivo.
b) Retornemos . agora à classe operária, ao próprio trabalho
manual: a divisão trabalho intelectual/trabalho manual não sig-
nifica absolutamente que o trabalho manual comporte elementos
científicos. Já a propósito da diferenciação engenheiros-técnicos.
e classe operária, vimos, por um lado, que o assunto efetivo da
ciência é em última análise o próprio trabalho manual, re·mon-
tando a ciênda finalmente à experiência acumulada pelo trabalho
manual; e, por outro lado, que essa dilferenciação não destaca:
uma fronteira real e intrínseca entre aqueles que "sabem" e aque-
les que "ignoram" (a classe operária). Trata-se de um investi:..
menta ideológico da ciência em toda umta série de rituais do sa-
ber ou do que se supõe ser o saber, de que se acha excluída a-
classe operária, e é nesse sentido que funciona aqui a divisão
trabalho intel1ectual/trabalho manual.
c) Estendamos a observação precedente: de fato, a própria
classe operária (trabalho manual), e não somente os únicos ope-
rários qualificados ou profissionais para quem isso é evidente, é
muito mais portadora de elementos de "ciência" do que a esma,
gadora maioria dos assalariados questionados aqui. Sua diferen-

a Ibid., p. 56.
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 277

ciação com a classe operária no sentido da divisão trabalho inte--


lectual/trabalho manual prende-se essencialmente às relações po-
lítico-ideológicas: seu trabalho está legitimado em relação ao sa-
ber que se supõe intrinsecamente deter (trabalho intelectual),
encontrando-se valorizado em relação ao trabalho da classe ope-
rária, cujo saber efetivo participa na desvalorização, por oposi-
ção, do trabalho manual.

4. Esses conjuntos de agentes, estando situados do lado do


trabalho intelectual na sua separação do trabalho manual, não,
mantêm todos a mesma relação com o trabalho intelectual: é que
a divisão trabalho intelectual/trabalho manual se reproduz, sob·
formas específicas, e tendencialmente, de um lado e de outro da
fronteira fundamental de divisão, principalmente no próprio seio:·
do trabalho intelectual.
É um ponto essencial em que falharam totalmente alguns·
estudos atuais, provenientes sobretudo de sociólogos "progressis-
tas" britânicos, especialmente os trabalhos de D. Lockwood, de·
J. Goldthorpe, de W. Runciman 4 • Esses trabalhos são interessan-
tes em dois sentidos: a) porque esses autores combateram expli-
citamente as ideologias, que causavam polêmica nos anos 50, de·
uma_ identificação e assimilação dos assalariados não-produtivos
com a classe operária, seja no sentido de um "aburguesamento"·
da classe operária (caso típico de Crozier na França) 5 , seja no
sentido de uma "proletarização" efetiva desses assalariados (caso,
de Wright Mills), e isso insistindo e contribuindo para demons--
trar concretamente a barreira de classe que· existe entre esses con-
juntos e a classe operária; b) porque eles foram dirigidos pre-
cisamente pelo fio condutor da divisão trabalho manual/"traba--
lho não-manual" naquilo que designam como a "situação no tra--
balho" - work situation - desses agentes. Mas, além da igno-
rância do problema do trabalho produtivo que esses trabalhos tes-
temunham, essa divisão é concebida sobre o modo tecnicista e·
empírico como separação das "mãos sujas" e das "mãos limpas",
entre aqueles que trabalham diretamente nas máquinas da fábri..-
ca e "todos os outros": daí precisamente o termo "trabalho não..
manual", que tenta contornar as incongruências de uma defini-
ção empirista dos trabalhos segundo seu conteúdo intrínseco. O

4 Goldthorpe, Lockwood et. ai., L'Ouvrier de l'ahondance, 1972; J.


Lockwood, The Blackcoated Worker, 1958; W. Runciman, Relative De-
privation and Social Justice, 1966 etc.
5 Les Employés àe bureau, op. cit., p. 42.
278 A.s CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

que, por un1 lado, não permite cercar de forma rigorosa a fron-
teira ·entre a classe operária e a nova pequena-burguesia, e leva
a incluir nesta uma série de agentes que, de fato, pertencem à
classe operária; por outro lado, não permite precisamente com-
preender ~s delimitações e diferenças, do ponto de vista da divi-
são trabalho· intelectual/trabalho manual, no próprio seio do tra-
balho assalRriado não-produtivo.

Vou precisar então minha proposição fundamental:


a) a divisão trabalho intelectual/trabalho manual é uma
.divisão reproduzida tendencialmente, no sentido de, que não se
trata de urr.La "classificação" tipológica de casos rígidos para este
.ou aquele a.gente preciso, e de que aquilo que nos importa aqui
é seu funciionamento social na existência e na reprodução das
.classes sociais;
b) o aspecto trabalho intelectual não afeta absolutamente
-da mesma farma o conjunto da nova pequena-burguesia: algu-
mas de suas partes são então afetadas diretamente; outras, sub-
metidas à reprodução da divisão trabalho intelectual/trabalho
manual no seio do trabalho intelectual, só são afetadas indireta-
mente: enqlllanto essas partes sofrem a hierarquizaçfio. nesse sen-
tido, no seio do trabalho intelectual, elas permanece~m entretanto
-afetadas pelos efeitos da divisão fundamental.
É um ponto sobre o qual Gramsci insistiu, a propósito, prin-
.cipalmente, da questão dos agentes dos aparelhos dt~ Estado, dos
funcionários. Só vamos nos ater à questão teórica que acabo de
propor: "É ve·rdade que essa mesma função organizadora de he-
_gemonia social e de dominação estatal dá lugar a uma divisão
do trabalho e assim a toda uma gradação de qualificações, algu-
mas dentre elas não apresentando nenhuma atribuição de dire-
ção e de organização: no aparelho de direção social e estatal
·existe toda uma série de tarefas de caráter manual e instrumen-
tal (de ordem e não de concepção, de agente e n:ão de oficial
ou de funcionário etc.): evidentemente, é necessário fazer dis.-
tinções. De fato, a atividade intelectual deve ser distinguida em
graus, graus que em momentos de oposição extrerna dão lugar
a uma verdadeira e adequada diferença qualitativa, do grau mais
:alto aos mais humildes 'administradores' cs ... "

e lbid., p. 9.
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 279

O que nos permite acrescentar:


a) O lugar diferencial dos agentes da nova pequena-bur-
guesia na reprodução da divisão trabalho intelectual/trabalho
manual no próprio seio do trabalho intelectual (portanto nas re-
lações ideológico-políticas) aparece-rá assim como um fator im-
portante na diferenciação da nova pequena-burguesia em frações
de classe. Mas veremos que esse lugar diferencial não destaca
pura e simplesmente as diferenciações ___dos conjuntos da nova
pequena-burguesia nas relações econômicas: agentes dos serviços,
por exemplo, pode-m ocupar, segundo esse ponto de vista, luga-
res oue os aproximem dos agentes da circulação e da realização
da ~ais-valia, de· forma muito mais significativa do que podem
aqueles agentes do conjunto do setor "serviços" entre si, ou
aqueles do conjunto da esfera de circulação entre si;
b) a propósito das transformações atll'ais do setor do tra-
balho assalariado não-produtivo no seu conjunto: essas transfor-
mações têm como efeito principal acentuar o fracionamento e
a polarização interna da nova pequena-burguesia. Ao acentuar
a reprodução da divisão trabalho intelectual/trabalho manual no
·seio do trabalho intelectual, elas aproximam certas frações da
nova pequena-burguesia da barreira que as separa do trabalho
manual e da classe operária. Mas essas transformações não reco-
locam em questão a barreira fundamental da divisão trabalho
intelectual/trabalho 1manual, pois, ao mesmo tempo, a repro-
duzem sob nova forma. É por isso que insistiremos sobre essas
transformações no caso do exame das frações da nova pequena-
burguesia, cercando primeiro aqui seu lugar comum na divisão
fundamental trabalho intelectual/trabalho manual.

III

É levando-se em conta essas observações que· se pode inferir


o aspecto "trabalho intelectual" de trabalhos como aqueles dos
empregados da contabilidade, da publicidade, do marketing, da
comercialização, dos bancos, dos seguros, dos diversos "serviços",
dos "escritórios", da grande maioria dos funcionários de Esta-
do etc.
De fato, esse trabalho intelectual está investido de toda uma
série de rituais, de habilidades, de elementos "culturais", que o
distinguem daquele da classe operária, isto é, do trabalho pro,
280 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

du tivo no seio do processo de trabalho material. Se esses sím-


bolos ideológicos só têm então pouco a ver com uma diferencia-
ção real na ordem dos elementos de ciência, eles legitimam essa
distinção como se ela se baseasse sobre si mesma. Essa simboli-
zação cultural é bastante conhecida para que lhe dediquemo~
mais atenção: el~ vai da valorização clássica do "trabalho de
escrita", dos "funcionários de escritório" em geral (saber escre-
ver e expor as "idéias") até aquela de um certo uso da "pala-
vra" (é preciso saber "falar bem" - falar bonito - para bem
vender e comercializar os produtos - a "arte da venda") etc.~
e destaca, finalmente, as diferenciações ideológicas entre a cul-
tura geral e o traquejo nobre de um lado, e o saber técnico
(trabalho manual) do outro. Todas as coisas que, certamente,.
demandam uma certa aprendizagem: aprender a escrever de certa
forma, a falar de certa forma, a vestir-se de certa forma no pró-
prio trabalho, a inserir-se nos usos e costumes de c·erta forma.
Esta "certa forma" é sempre a outra forma, em relação oposicio-
nal àquela da classe operária: esta forma se dá, além disso, como
própria de um certo "traquejo" particular, apreciado positiva-
mente por oposição àquele da classe operária. Sabemos sempre,,
aqui, o que os outros (a classe operária.) não sabem ou não po...
deriam, por defeito de origem, saber, e o que sabemos é o "saber
que conta", o "saber nobre", o "verdadeiro saber": somos os in-
telectuais dos outros (da classe operária). De fato, a principal
coisa que sabemos é como nos "intelectualizarmos" em relação
à classe operária: sabemos em nossas práticas que somos mais.
"inteligentes", que temos mais "personalidade·" do que a classe
operária, a qual sabe apenas ser "hábil" 7 • E temos, realmente, o
monopólio e o segredo desse "saber".
Essa divisão trabalho intelectual/trabalho manual e suas im-
plicações ideológicas atingem, em um grau desigual e sob formas.
muito complexas, o conjunto da nova pequena-burguesia em suas
relações com a classe operária. Essa divisão tem repercussões
ideológicas diretas e consideráveis, que não se podem mais de-
monstrar, na percepção que têm de seu próprio trabalho e do
trabalho dos "outros" os agentes respectivos da nova pequena-

7 Tanto melhor o sabemos porque é o que mostram os lúgubres


"testes" psicológicos de "inteligência" (os 01: quociente de inteligência),.
que são atualmente uma das formas ori,:1cipais da seleção escolar: tes-
tes moldados sob medida e inteiramente caicados na le,gitimação da di-
visão trabalho manual/trabalho intelectual. De fato, as estatísticas basea-
das nos "testes de inteligência" mostram o decréscimo constante dos QI
dos mais altos executivos aos trabalhadores braçais. Realmente! ...
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 281

burguesia e da classe operária. Em todo o discurso (o que é sem-


pre apenas um indício, mas um indício importante) dos agentes
da nova pequena-burguesia, o traço recorrente e principal que
sobressai, quando se trata para eles de caracterizar sua relação
com a classe operária, é aquele de uma distinção de seu traba-
lho e·m relação ao "simples trabalho manual", aquele que está
diretamente situado no processo de produção material. Este úl-
timo não é simplesmente considerado como um trabalho mais
penoso, mas como um trabalho que requer, na ordem de sua va-
lorização do trabalho intelectual, menos "conhecimentos", menos
"aptidões", um trabalho ao qual falta o "não sei quê" que faz
a "qualidade" e a "superioridade intelectual", em suma a "res-
peitabilidade" de seu próprio trabalho contra o qual podem, aliás,
muito bem se· insurgir. Mas a classe operária, na sua própria
percepção do "mundo dos empregados e dos funcionários", in-
troduz, ela também, como elemento principal, a distinção traba-
lho intelectual/trabalho manual com uma valorização deste últi-
mo. Tudo concorre de fat€> para demonstrar que essa divisão
trabalho intelectual/trabalho manual contip.ua a ter um papel
próprio na barreira de classe entre a nova pequena-burguesia e·
a classe ope·rária: dependendo ela própria das relações ideológicas
capitalistas, e de uma política precisa da burguesia, tem por sua
vez efeitos consideráveis na f armação da ideologia de classe da
nova pequena-burguesia.

IV

O lugar particular dessa nova pequena-burgliesia na divisão


trabalho intelectual/trabalho manual reflete-se diretamente na
"formação-qualificação" da força de trabalho de seus agentes no
seio do aparelho escolar: apare1ho que -desempenha um papel
próprio na reprodução dessa divisão e na distribuição dos agen-
tes nos diversos lugares das classes sociais. A escola capitalista,
situada em relação à, e reproduzida como aparelho em função
da divisão trabalho inte1ectual/trabalho manual que a transcende
e lhe determina o papel (separação da escola e da produção, li- /
gada à separação e_ à despossessão dos trabalhadores diretos de
seus meios de produção), de-sem penha um papel próprio na qua-
lificação do trabalho intelectual, papel particularmente caracte-
rístico, e inteiramente específico, no caso da nova pequena-bur-
guesia. É que essa escola. situada -em relação ao trabalho inte-
282 As CLASSES SOCIAllS NO CAPITALISMO DE HOJE

lectual, reproduz em seu seio, sob formas específicas. a divisão


trabalho intelectual/trabalho manual, e é ela própria dividida.
Fui assim levado a falar do livro de Baudelot e Establet,
L'Ecole capitaliste en France 8 , o que constitui um passo decisivo
no esclarecimento dessa questão. Esses autores insistiram prin-
cipalmente no fato de que a escola está dividida em duas redes
essenciais, uma se situando ao lado do trabalho intelectual, a
outra ao lado do trabalho 1nanual. Isso me parece fundamental-
mente jrtsto, mas com a condição de bem precisar que se trata
aí de uma divisão "bipolar" tendencial, que se exprime· de forma
específica no que concerne às diversas classes sociais.
Pois é aí que as análises desses autores parecem não dar
uma volta completa. Sua conclusão conduz diretamente a ocultar
o lugar específico da nova pequena-burguesia no aparelho esco-
lar. Isso adquire, em B~udelot e Establet, a forma de uma afir-
mação de que não existe "terceira rede" escolar específica para
a nova pequena-burguesia 9 , que as duas redes se compõem de
uma reçle específica para a burguesia e de uma rede específica
para a classe operária e para as massas populares: a nova pe-
quena-burguesia é diluída emt um aparelho que, no seu seio, pro-
duz quer agentes das "classe:s superiores", qúer agentes de "clas-
ses inferiores"·. Essa conclusão, que me parece errada, apóia-se
em premissas contestáveis às quais se subordina o tratamento do
material empírico:

1 . Ela se apóia primeiramente de forma parcial em um


exame institucionalista do a]parelho escolar, a saber sobre uma
identificação das duas redes com um número dado de· ramos ou
sub-ramos escolares (o PP: primário/profissional - e o ss: se-
cundário/superior): o que não permite precisamente que se
apreendam as formas de reprodução da divisão trabalho intelec-
tual/trabalho manual no próprio seio dos diversos aparelhos es-
colares, situados como tais de um lado e de outro da linha de
divisão da escola (para aceitar a terminologia dos autores, no
próprio seio do PP e do ss). E) bem evidente, não se trata aqui
de simples matizes na medida em que minhas observações se
referem à reprodução das classes sociais e principalmente àquela
da pequena-burguesia. Deslocando globalmente o terreno da ins-

s Maspero, 1971.
9 lbid., pp. 81-82.
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 283

tituição escolar para as classes sociais, observamos claramente,


quanto à pequena-burguesia:
a) que é verdade que não existe "re~e_" escol~r ~spec~f~c.a­
mente pequeno-burguesa, sob a única cond1çao de nao 1dent1f1car
redes e aparelhos institucionais, mas apreender as redes como
tendencialidade bipolar de reprodução da divisão trabalho inte-
lectual/ trabalho manual no seio da escola;
b) que a nova pequena-burguesia é maciçamente escolariza-
da sob formas que ou pendem para o lado do "trabal.ho intelec-
tual" da divisão escolar, ou são fortemente impregnadas por ele,
e isso, inclusive e sobretudo, no caso em que ela é escolarizada
na rede dita "primária-profissional". Em outras palavras, tudo se
passa como se, mesmo quando os agentes pequeno-burgueses são
escolarizados em aparelhos que aparecem formalmente como
destinados maciçamente à classe operária, suas formas de
escolarização se distinguem radicalmente das formas desta
última;
c) que, sendo tudo isso levado em consideração, podemos
falar de uma forma de escolarização especificamente pequeno-
burguesa.
2. O encobrimento desses problemas prende-se igualmente,
em Baudelot e Establet, a uma interpretação contestável do ma-
terial empírico fornecido pelas estatísticas oficiais. Principalmen-
te, a dissolução do lugar específico da nova pequena-burguesia no
aparelho escolar prende-se, em grande parte, ao reagrupamento
que esses autores fazem das diferentes CSP (categorias sociopro-
fissionais) das estatísticas francesas em classes sociais, chegando
assim esses autores a um reagrupamento em "classes superiores"
(burguesia) e "classes inferiores" (classes populares) .
3. O material empírico sobre o qual essas análises estão
fundamentadas refere-se exclusivamente à origem social dos alu-
nos nas duas "redes" (o pertencim,ento de classe do pai). A la-
cuna consist,e aqui no fato de que nem sequer uma ve~ é levada
em consideração uma análise das formas da escolarização que
os agentes seguiram segundo os lugares reais que eles próprios
ocupam nas relações de produção, isto é, uma vez .egressos da
escola (relações entre "escolarização" e "qualificação"). A idéia
subjacente é que o aparelho escolar constitui o principal, senão
o único, aparelho de distribuição dos agentes nos lugares daY
classes sociais, tudo sendo desempenhado na escola. Então, quan-
284 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

do se considera este último elemento, as diferenças entre classe


operária e nova pequena-burguesia aparecem de forma perfeita-
mente clara.

Essa escolarização inteiramente específica da nova pequena-


burguesia do lado do trabalho intelectual na divisão escolar pode
ser apreendida através de toda uma série de indicadores.
Primeiramente, a nova pequena-burguesia tem, no seu con-
junto, e para retomar aqui o próprio critério de Baudelot e Esta-
blet, consideravelmente mais possibilidades de ser escolarizada
no ss do que a classe operária.
Com efeito, os próprios autores estabelecem 10 que um filho
de operário tem 54 possibilidades em 100 de ser escolarizado no
PP e somente 14 de o ser no ss, enquanto um filho de "burguês"
- segundo os próprios termos dos autores - tem 54 po~sibilida­
des em 100 de ser es.colarizado no ss e somente 14 de o ser
no PP.
Ora, tendo em mente a probabilidade para os filhos de ope-
rários, observa-se com nitidez a distinção relativamente aos fi-
lhos dos que são somente "empregados": estes últimos têm mes-
mo assim 33o/o de possibilidades de ser escolarizados no ss, e 27%
de o serem no PP. Em outras palavras, considerando somente
os empregados, como o fazem esses autores, seus filhos têm mai~
possibilidades de ser escolarizados no ss do que no PP, o que
não é absolutamente o caso para a classe operária.
No entanto ainda há mais: quando esses autores estabele-
cem tais probabilidade·s, classificam na burguesia, e isso em con-
tradição com o que haviam declarado no princípio de sua obra,
não somente os diversos "executivos superiores" do INSEE, map
igualmente, e na sua totalidade, os "executivos médios" 11 • Da-
to Ibid., pp. 79 sq.
11 Com efeito, os autores declaram na página 67, nota 9, onde
estabelecem sua posição em rehção à csr: "Grosso modo, as profissões
liberais, executivos superiores, grandes industriais, gra.:1des comerciantes
conespondem aproximadamente à cl"sse burguesa, isto é. a todos aqueles
que, por Sl!l!l ideologia e seu modo de vida, estão objetivamente asso-
ciados à classe capitalista." O que não os impede, em todo o segui-
mento de seu texto, de considerar os "executivos médios" como fazendo
parte da burguesia: "As classes médias não têm escolaridade específica:
para os empregados, a probab!lidade da rede ss é ~ntermediária entre
aquela das profissões liberais, executivos superiores, executivos médios e
aq~ela dos operários (p. 81)." Essa é, aliás, igualmente, a posição de
Grignon (e da escola Bourdieu . em geral); cf. Grignon, L'Ordre des
choses, 1972. ·
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 285

remos conta da arbitrariedade do procedimento s~ iembrarmos


.que, para o INSEE, são considerados como fazendo parte dos "exe-
cutivos médios", entre outros, o conjunto dos professores primá-
rios, dos enfermeiros diplomados, dos assistentes sociais etc. (que
fornecem o grosso do efetivo dos "executivos médios"). Isso sig-
nifica, muito claramente, que, para esses autores, são classifica-
dos como "filhos de burgueses" os filhos do simples professQl"
primário ou da assistente social: o que, evidentemente, leva a
ocultar o critério de classe.
O desacordo é grande. De fato, como veremos, a grande
maioria dos "executivos médios" pertence à nova pequena-bur-
guesia. Se os considerarmos assim, constataremos: a) de um lado,
.que os filhos dos burgueses efetivos têm muito mais possibilida-
des de ascender ao ss do que dizem esses autores, pois sabemos
de fato que os filhos dos "executivos médios", incluídos pqr eles
na burguesia, têm bem menos possibilidades de ascender ao ~
do que os filhos dos "exe.cutivos superiores"; b) mas, por outro
lado, que os filhos dos pequeno-burgueses ("executivos médios"',
incluídos desta vez) têm ainda mais possibilidades do que a classe
operária de ascender ao ss, o que não aparece na classificação
desses autores, que só incluem na" pequena-burguesia os empre-
gados: sabemos, com efeito, que os filhos dos "executivos mé-
dios" têm mais possibilidades de aí ascender do que os dos em-
pregados (ainda que haja diferenças importantes nesse sentido
no seio dos empregados segundo a fração de classe de que depen-
dem). Digamos, grosso modo, que se as probabilidades de acesso
das crianças da classe operária ao ss são exatamente aquelas es-
tabelecidas por Baudelot e· Establet, em compensação, a proba-
.bilidade para os filhos dos pequeno-burgueses é consideravelmen-
te superior àquela que eles indicam: cerca de 40 possibilidades
'em 100 de serem escolarizados no ss e 20 de serem es.colarizados
no PP 12 •

1.2 As probabilidades estabelecidas por Baudelot e Establet de


º<'.Cesso ao SS e ao PP somente para OS empregados estão na base de sua
afirmação a propósito das duas únicas "redes": "Constata-se por outro
lado que as probabilidades de escohrização das crianças das classes ditas
médias (empregados, patrões de indústria e de comércio) no ss e PP são
·bastante próximas: 0,33 e 0,27 para os empregados e 0,27 e 0,35 para
'OS patrões (pequenos e grandes). O que demonstra claramente que não
existe escolaridade específica, própria às classes méd:as" (p. 81). Obser-
vemos incidentalmente que, para as necessidades da causa, Baudelot e
Establet incluem aqui nas "classes médias" os patrões,_ pequenos e gran-
des, da ind'ústria e do comércio, isto é, uma grande parte da burgues'.a
:simplesmente! M~ o aspecto principal da questão refere.,se de um lado
286 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Mas vamos mais além: um indicador que se pode enfatizar


aqui quanto à natureza de escolarização da classe operária e da
nova pequena-burguesia consiste na diferença entre o ensino ge-
ral e o ensino técnico (ou "profissional"). Se bem que essa dis-
tinção não designe absolutamente duas "fileiras" de escolarização
distintas, pois uma parte .do técnico depende da rede superior,
uma outra da rede primária, sendo a mesma coisa para o ensino
geral, ela é significativa: é que o ensino geral exprime a repro-
dução complexa, de um lado e de outro, da linha principal de
demarcação da divisão escolar, do trabalho intelectual - cultura
geral - em sua distinção do trabalho manual - ensino das "ha-
bilidades técnicas".
Segundo tal ponto de vista, as diferenças entre a nova pe-
quena-burguesia e a classe operária aparecem claramente: quan-
do se consideram unicamente os "empregados',, somente 18,So/o
de filhos de empregados seguem um ensino técnico-profissional,
enquanto 480/o dos filhos de operários segue.m um ensino seme-
lb.ante 13 •

Retomemos agora o caso que Baudelot e Establet denomi-


nam PP, considerando-o de forma "unificada" para o conjunto
das "classes populares". Só me refiro aqui à distinção entre o
BEPC, diploma de ensino geral que se pode obter aos 15 anos,
e o CAP, diploma de ensino técnico que não se pode obter antes
de 17 anos no mínimo: em 1962, em 100 titulares do CAP, 70
filhos de operários e de camponeses, e somente 30 crianças da
nova pequena-burguesia. Em compensação para o BEPC (ou títu-
lo superior), em 100 titulares: 72 crianças da nova pequena-bur-
guesia, e 14 somente da classe operária e do campesinato.
Isso se exprime igualmente em diferenças essenciais dos esta-
belecimentos pertencentes ao PP. As pesquisas de Grignon u
mostram de fato que esses próprios estabelecimentos destacam
diferenças fundamentais e de classe. Sobre as diferenças entre a
classe operária e a nova pequena-burguesia: para os alunos de

a que essas probabilidades não são consideradas em relação àquelas da


classe operária; por outro lado, que as probabilidades que indico, quanto
a mim, feita a correção, não estabelecem, a meu ver, uma terceira
"rede" escolar para a pequena-burguesia mas, tendo em vista as obser-
vações que fiz sobre esse assunto, sobre a escolarização da nova pe--
quena-burguesia do lado do trabalho intelectual, e a existência de uma
forma de escolarização específica desta.
lJ3 M. Praderie, op. cit., p. 94.
::w L'Ordre des choses, op. cit., pp. 35, 45.
p APEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 287

um CET (colégio de ensino técnico), 48,So/o são filhos de operá-


rios e cerca de 32% da nova pequena-burguesia, enquanto para
um cEG (colégio de ensino geral), cerca de 600/o têm pais per-
tencentes à nova pequena-burguesia, e somente 22o/o à classe
operária.
Em outras palavras, as divisões no próprio seio do PP não
somente não constituem "matizes", como sustentam Baudelot e
Establet, mas se mostram decisivas como barreiras de classe. Mas
ainda há mais: essas barreiras aparecem aqui, onde se desempe-
nham as diferençâs decisivas entre a classe operária e a nova
pequena-burguesia, de forma bem mais clara quando não surgem
no aparelho secundário e superior propriamente dito, onde se
desempenham as diferenciações entre nova pequena-burguesia e·
burguesia: e isso ao contrário do que sustentc;tm Baudelot e Es-
tablet, que só vêem esses "matizes" no secundário-superior. A.
razão é simples: o objetivo do primário-profissional é, entre ou--
tros, dividir e separar as classes populares, principalmente a elas--
se operária e a nova pequena-burguesia, enquanto aquele do
secundário-superior é, distinguindo a nova pequena-burguesia da
burguesia (grandes escolas por exemplo), reunir .estreitamente
sua aliança, permitindo uma penetração muito mais importante
das instituições destinadas ao pessoal burguês por parte das crian-
ças de certos conjuntos pequeno-burgueses (executivos médios por
exemplo).
Além disso, diferenças claras surgem entre os tipos de ensino
seguidos no seio de um mesmo aparelho. aparentemente técnico,
principalmente o· CET, e os diplomas obtidos, principalmente os:
CAP, entre os agentes que se destinam à nova pequena-burguesia_
e aqueles que se destinam à classe operária, diferenciações muit~
mais importantes, de fato, do que aquelas que separam, por exem-
plo, os bacharelados clássico e técnico. As formas de escolariza-.
ção no próprio CET, e os CAP aos quais elas dão lugar. (CET que
faz por excelência, e justamente, parte do PP para Baudelot e,
Establet), diferem radicalmente, conforme essa escolarização seja
aquela de agentes destinados à pequena-burguesia, ou ainda a de-
agentes que se destinam à classe operária: o fato de que os diver--
sos ensinos que são aí dispensados aos "empregos de escritório",.
"contabilidade" etc. (existem CET "comerciais", "contábeis" etc.}
pendem para o lado do trabalho intelectual, enquanto aqueles que
são dispensados a um CAP de operário torneiro do lado do traba-
lho manual, é demasiado evidente para que seja necessário insis-
tir. Mas isso vai ainda mais além: e dou a palavra a Orignon.
:288 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

.que assinala: "Os ofícios que a maioria das moças desejam apren-
der quando de sua entrada no CET e os ofícios que lhes são efeti-
vamente ensinados têm em cornum não serem precisamente ofí-
cios 'técnicos': os ofícios da n1oda e da decoração (vendedora,
·cabeleireira, esteticista, desenhilsta de moda, vitrinista ... ) e os
.ofícios do vestuário ou os ofícios comerciais que lhes são efeti-
vamente ensinados, apelam para seu 'gosto', sua 'sensibilidade'
seu 'discernimento' ... mais do que para conhecim~ntos técnicos
;particulares; para as secretárias aprendizes, a 'tecnologia' se reduz,
em uma boa parte, à aquisição de conhecimentos de ortografia,
de vocabulário e de gramática. É a mesma coisa para os ofícios
sociais, para pedagógicos ou paramédicos. . . ofícios que não são
em verdade nem "manuais" ne.m "técnicos". Enquanto o sucesso
,dos gestos profissionais de um operário depende da estrita apli-
cação de receitas ou de regras técnicas ... (esses ofícios) podem
1depender em larga medida da :maneira como são realizados. . . A
prática profissional (desses agentes) lhes dá oportunidade de ad-
1quirir competências urbanas, senão mundanas, que faltam à jo-
·vem operária sujeita a tarefas puramente manuais 15 ."

Mas as coisas só se tornarr1 claras se levarmos em conta rela-


'ções entre a escolarização e as tarefas efetivas que esses agentes
preenchem em seu trabalho e mesmo em seu lugar de classe. Nesse
sentido, o papel do aparelho escolar na "qualificação" e na "for-
:mação" da força de trabalho da nova pequena-burguesia é consi-
·deravelmente diferente daquele que ele representa para a classe
•operária. Com efeito, só se pode dizer de forma totalmente aná-
loga e aproximativa que a escola "forma" trabalho intelectual, de
·um lado, e trabalho manual (formação técnica). do outro. Nume-
rosos estudos têm amplamente: demonstrado que a escola capita-
lista não pode, globalmente situada como está do lado do traba-
lho intelectual, formar o essencial do trabalho manual. A forma-
ção profissional operária e essencialmente o "saber técnico" ope-
rário não se ensinam (não podem ser "ensinados") na escola ca-
pitalista, nem mesmo em suas fileiras e aparelhos de ensino téc-
nico. O que se ensina principalmente para a classe operária é a
<lisciplina, o respeito da autoridade, a veneração de um trabalho

115 lbid., p. 97. Certamente,. essas observações de Grignon perma-


necem descritivas: o que ele náo vê, de fato, é que essas diferenças não
"6ão devidas finalmente a um "capital cultural" diferente (receitas técni-
·cas versus ••maneira") mas. às diferenciações entre trabalh.os diretamente
:implicados no processo de prod·w;ão material e os outros.
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 289

intelectual que se encontra sempre "fora" do aparelho escolar.


Sabe-se que um dos aspectos dessa. questão é a famosa inadequa-
ção entre a formação que, segundo se supõe, os agentes da classe
operária recebem da escola ("qualificação" formal pela formação
profissional ~ escolar), e o lugar real que eles ocupam nos pos-
tos de trabalho na produção: encontra-se aí a distância da "esco-
la" para a "fábrica", distância que ganha atualmente dimensões
consideráveis 16 .
As coisas não se apresentam absolutamente da mesma forma
para a nova pequena-burguesia e o trabalho intelectual, sendo sua
força de trabalho, no seu lado trabalho intelectual, efetivamente
formada pela escola.
A escola reproduz em seu seio a divisão trabalho intelectual/
trabalho manual ao formar o trabalho intelectual: a "formação"
do trabalho intelectual consiste essencialmente, em seu seio. em
excluí-lo do trabalho intelectual, sendo essa exclusão interiorizada
do trabalho manual (seu encasernamento) a própria condição da
formação do trabalho intelectual pela escola. O papel principal da
escola capitalista não é "qualificar" diferentemente o trabalho
manual e o trabalho intelectual:, é, bem mais, desqualificar o
trabalho manual (sujeitá-lo) qualificando apenas o trabalho in-
telectual. O papel do aparelho escolar na formação da nova pe-
quena-burguesia é, conforme esse ponto de vista, considerável, e
mesmo bastante típico em seu caso: só precisamos mencionar o
papel dos diversos diplomas e pergaminhos no seu mercado de
trabalho. Isso representa uma tendência marcante atualmente,
onde o "aprendizado no local de trabalho" é, para uma grande
parte dessa pequena-burguesia, substituído pela formação escolar.
Já se pode ver isso no nível mais baixo do próprio aparelho
escolar: em 1964, para os agentes nascidos em e após 1918, a pro-
porção de operários sem nenhum diploma (nem mesmo o CEP -
certificado de estudos primários) se elevava a cerca de 40o/o, en-
quanto ela era somente de lOo/o para a nova pequena-burguesia
(executivos médios não-incluídos, ou a diferença seria ainda mais
considerável). Mas ainda: 27% dos operários qualificados não
possuíam nenhum diploma, contra somente 3% dos empregados
de escritório "qualificados" (executivos médios também não-in-
cluídos) 17 .

1'6 Ver principalmente· o número especial do Temps modernes,


agosto-setembro de 1971, sobre L'Usine et /'Eco/e.
17 Fontes: INSEE, a pesquisa de 1964 sobre "a formação e a quali-
lificação dos franceses", resultados na Economie et Statistique, n. 0 9,
290 As CLASSES SocIAis No CAPITALISMO DE HOJE

Enfim: o papel desses graus escolares é muito mais impor-


tante do que no caso da classe operária, na ventilação interna da
nova pequena-burguesia, na "promoção" de seus agentes, ~ma
"carreira" etc. Assinalo simplesmente que em 1968, entre os agen-
tes masculinos que tinham entre 25 e 34 anos (portanto em uma
época· em que se supunha uma "democratização" escolar avan-
çada), somente cerca de 44,6'o/o dos operários qualificados (e 19%
dos os) possuíam um diploma superior no CEP, inclusive os exa--
mes de final de aprendizado que são de fato exteriores ao apa--
relho escolar e realizados "no local de trabalho"; em contrapar--
tida, tal foi o caso para 53,3% de simples empregados e para cer--
ca de 90% dos diversos executivos médios, sendo as disparidades,
como se sabe, ainda mais importantes na população feminina 1 ~.
Se aprofundarmos a análise, combinando principalmente as diver-·
sas categorias de agentes, as quotas de salários às quais eles per--
tencem (relação "qualificação" e "hierarquia salarial") e os tipos.
e graus de diplomas escolares, veremos, de forma extremamente-
clara, o papel totalmente específico do aparelho escolar na ven-
tilação e nas relações internas dos agentes pequeno-burgueses 19 •
Convém notar, enfim, que os elementos que aqui utilizo em apoio-
à minha tese não se referem absolutamente. à famosa questão da
duração dos estudos nas diversas classes sociais, critério que,
como Baudelot e Establet demonstraram perfeüamente., supond0>
uma escola unida e uniforme em "degrau", é inteiramente fala-
cioso.

Poderíamos, no entanto, objetar que a inadequação entre a


formação escolar e o mercado de trabalho, entre outros os postos
realmente ocupados pelos agentes dessa pequena-burguesia, encon-

1970. Esses resultados são corroborados pela nova pesquisa semelhante,


de 1970, cujos resultados, ainda não publicados, se encontram no INSEE
à disposição do público.
L8 Fontes: INSEE, "Résultats du recensement général de 1968", tomo
Formation. 1971, pp. 52 sq., 116 sq.
19 Assinalo incidentalmente o papel todo diferente que assume, para
a nova pequena-burguesia e para a classe operária, a formação perma-
nente atual: é para a nova pequena-burguesia que ela funcicx.1a de modo
relativamente importante, no próprio seio dos lugares e aparelhos esco-
lares, situada diretamente sob o signo da promoção. Para a classe ope-
rária, ela é ao mesmo tempo importante e, pela "reciclagem" que ela
abrange, opera essencial.mente como uma simples redistribuição da força
de trabalho na "reestruturação" industrial atual (os operários, em massa,
não "ascenderão" mais 'J)ela formação permanente e eles o sabem). Ver
sobre esses ~untos INED, Travaux et Documents, caderno n. 0 50.
p APEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 291

ua-se no caso do trabalho intelectual, na desvalorização ou "ina-


daptação" dos diplomas no mercado de trabalho intelectual, o que
é· atualmente uma das forma~- dessa inadequação. Ora, se não há
dúvida que o processo qualificação-desqualificação da força de
trabalho se reproduz atualmente, '~ maciçamente, no próprio seio
do trabalho intelectual (o que desempenha um papel no fraciona-
mento interno e nas posições de classe da nova pequena-burgue-
~ia), tal processo assume aqui formas específicas. Ele se traduz,
como para a classe operária, pela parcelização do saber e das
tarefas que afetam certos processos de trabalho intelectual, mas
-não assume diretamente a figura de uma inadequação do apare-
lho escolar e do processo de trabalho intelectual, como aquela
que traduz a "separação" da escola e da produção.
Com efeito, essa "inadequação" remonta aqui a uma imagem
que só pode ser analógica, pela sirnples razão de que a formação
do trabalho intelectual não corresponde, essencialmente, a dife-
renciações reais entre os "conhecimentos" efetivos, requeridos
para ocupar este ou aquele posto "especializado". A formação do
trabalho intelectual corresponde essencialmente, e em graus di-
versos, à inculcação de uma série de rituais, de segredos e de
simbolizações da ordem, entre outras, da "cultura geral", cujo
principal objetivo consiste em distingui-la do trabalho manual.
Assim diferençado, esse trabalho intelectual é, numa grande parte,
universalizável, pois está situado na ordem do '·universal: como
provam as tentativas feitas para estabelecer uma "escala de quali-
ficação" - escalões do trabalho intelectual do funcionalismo, dos
escritórios e dos serviços -, que se desejaria objetiva, isto é, cor-
respondente a conhecimentos pre:cisos adquiridos na formação
desse trabalho, e cujo aspecto fantasmático aparece claramente,
estando essa escala de qualificação diretamente fundamentada na
relação com o segredo do saber 20 • Dizer assim atualmente que
um diploma universitário de Ciências Sociais, de Letras, de Di-
reito, um bacharelado qualquer etc. não oferece saídas correspon-
dentes à "qualificação" que ele representa, é relativamente falso
no sentido em que ele não tem por objetivo principal sancionar
·esta ou aquela especialização de conhecimento, mas situar seu
portador no campo do trabalho intelectual em geral e na sua
própria hierarquia, isto é, reproduzir a divisão trabalho intelec-
tual/trabalho manual.

20 Entre outros, sobre um dos aspectos pessa questão, Benguigui e


Monjardet, "La mesure de qualification du travail des cadres", em So-
cio/ogie du. Travai/, n ..o 2, 1973.
292 As CLASSES soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

E se insisto aqui, é para dizer que essa reprodução obtém


resultados numa certa medida, isto é, que a escola é verdadeira-
mente adequada ao seu fim e, nesse sentido, formadora, através
das "inadequações" da formação escolar do trabalho intelectual
e dos postos ocupados realmente pelos seus portadores. Para só
citar um exemplo: o fato, atualmente ponderável, de portadores
de altos diplomas escolares serem colocados em lugares subalter-
nos da nova pequena-burguesia, se teste.munha o aspecto de de~­
qualificação do trabalho intelectual e tem efeitos sobre as posi-
ções de classe desses portadores, reproduz ao mesmo tempo a di-
visão traba1ho intelectual/trabalho manual entre esses lugares e
a classe operária. Esses próprios lugares subalternos são assim in-
vestidos de um quociente "trabalho intelectual" que os afasta ain-
da mais, sob certo aspecto, da classe operária. Se uma secretária-
datilógrafa bacharelada se sente frustrada em suas esperanças,
isso não evidencia que ela se aproximará automaticamente da
classe operária: é também muito possível que sua "proximidade'~
da classe operária, articulada à sua qualificação escolar, reforce,
nela, suas práticas de distinção da classe operária.
O papel do aparelho escolar é assim inteiramente caracterí~­
tico para a nova pequena-burguesia, cujo próprio lugar na forma-
ção social ele contribui diretamente para reproduzir. Isso se re-
flete diretamente no papel que esse aparelho desempenha na dis..
tribuição dos agentes entre os lugares das classes sociais, sendo
esse papel muito importante para a nova pequena-burguesia, ao
passo que permane,ce secundário para a burguesia e para a classe
operária. Os agentes dessas duas classes fundamentais. eles pró-
prios ou seus filhos, não são distribuídos no sentido literal pela
escola ou, mais ainda, eles permanecem no lugar, passando-se tudo
como se fossem ligados a esses lugares, a escola consagrando e
legitimando essa ligação. Em contrapartida, os agentes pequeno-
burgueses apresentam, como veremos, um deslocamento digno de
nota, que se liga diretamente ao aparelho escolar. Trata-se de
processos reais, que têm repercussões consideráveis sobre· a ideo-
logia da nova pequena-burguesia, ideologia diretamente ligada à
sua relação particular com o "saber", "instrução", "cultura", e
aparelho escolar.
Essas observações levam-me assim a formular uma proposição
teórica suplementar. Com efeito, a partir de suas premissas, e se-
guindo suas análises concretas, Baudelot e Establet foram leva-
dos a adiantar a proposição de que o aparelho escolar constitui
o aparelho ideológico de Estado dominante, do ponto de vista da
PAPEL DA DIVISÃO DO TRABALHO 293:

reprodução-distribuição-qualifioa~ão dos agentes, no ~odo de pro-·


dução ieapitalista, suplantando msso o papel da lgreJa no rr10do,
de produção feudal. Essa proposição me parece, em sua própria
generalidade, errônea, não somente pelas razões assinaladas na.
introdução, mas principalmente porque o aparelho (ou os anare-
lhos) dominantes dependem da luta das classes nas forma•rões.
sociais concretas, e ainda também por uma razão suplementar:
0 aparelho dominante nesse sentido pode, em uma mesma forma-·
ção social, variar segundo as diversas cl<iSses sociais dessa f arma-
ção. As análises acima tendem a mostrar que, se o aparelho esco-·
lar está em ordem, na França, o aparelho dominante para a pe--
quena-burguesia (o que remonta ao apoio específico que durante
muito tempo trouxe a pequena-burguesia à burguesia francesa),
não o está mais, na França como também em outros países capi-·
talistas, para a classe operária: parece então que, para esta, esse
papel dominante r~toma de fato diretamente ao próprio aparelho·
econômico, à "empresa".

Resumindo: a nova pequena-burguesia depende, pelo seu lugar


nas relações ideológicas e diante da classe operária, do trabalho·
intelectual. Esse lugar ratifica diretamente a divisão trabalho in-·
telectual/trabalho manual a que se sujeita, do outro lado da bar-·
reira, a classe operária, e é parte que toma a si, sob formas com-·
plexas, o monopólio e segredo do saber dos quais a classe ope-
rária es1tá excluída.
Mas, em relação ao capital e aos agentes que lhe ocupam·
diretamente o lugar, essa pequena-burguesia ocupa ela própria,
na orde1n do trabalho intelectual, um lugar dominado-subordina-·
do. O segredo e o monopólio do saber, que se tornam "funçfies
do capital", traçam por sua vez linhas de dominação-subordina~;:ão
no próprio seio do trabalho intelectual onde eles se reproduzem.
Essas linhas escondem aqui a divisão fundamental exploradores-
explorados, sendo os agentes assalariados não-produtivos, também
e na sua grande maioria, explorados pelo capital. Essa dominaçfio/
subordinação de classe assume a f arma de uma diferenciação ·~n-·
tre as funções dirigentes e seus portadores (o pessoal burguês:
agentes empresariais, dirigentes do setor público e privado), de
um lado, e, de outro, funções subalternas, o que é particularmen-
te claro no aparelho escolar. Este, reproduzindo globalmente a
294 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

divisão trabalho intelectual/trabalho manual, entre a classe ope-


rária e "as outras", reproduz ao mesmo tempo, por canais e filei-
ras específicas (caso típico das- grandes escolas na França), a se-
paração dos lugares da burguesia e da nova pequena-burguesia.
1

Enfim, essa divisão trabalho intelectual/trabalho manual, re-


produzida, sob forma específica, no próprio seio do trabalho in-
telectual, traça por esse meio delimitações internas para a nova
pequena-burguesia, que são nesse sentido delimitações hierárquicas
e não delimitações de dominação: parcelização do saber e padro-
nização das tarefas do trabalho intelectual que afetam certos se-
tores e escalões _submetidos à "racionalização" capitalista, proces-
so de qualificação-desqualificação i11tema no trabalho intelectual.
Essas delimitações remontam a diferenciações internas na ordem
da exploração sofrida: os agentes da nova pequena-burguesia não
são, em sua totalidade, explorados no mesmo grau. É o que se
depreenderá com maior clareza das análises que se seguem.
V. A NOVA PEQUENA-BURGUESIA
E A BURO·CRATIZAÇÃO' DO·
TRABALHO INTELECTUAL

O que é preciso observar agora, nesse trabalho intelectual


dos assalariados não-produtivos, é a articulação entre essas rela-
ções ideológicas e as relações políticas que determinam igualmen-
te seu lugar, ficando somente o trabalho intelectual como a confi-
_guração da articulação estreita dos dois.

Ora, excetuando-se os assalariados diretamente ramificados


no processo de produção e no processo de trabalho capitalista
em sentido estrito, como os diretores e supervisores do processo
de trabalho, os engenheiros e 'técnicos da produção, a nova pe-
quena-burguesia não exerce, ao menos diretamente, funções de
dominação política sobre a própria class.e operária. A articulação
de relações ideológicas e de relações políticas, situando esses assa-
lariados no seio da divisão social do trabalho, segue desvios muito
particulares.
Antes de examiná-los, assinalemos, no entanto, o caso de
assalariados não-produtivos que, não fazendo parte nem dos su-
pervisores do processo de trabalho nem dos engenheiros e técni-
cos - do domínio lato sensu -. estão, entretanto, situado' no
próprio seio das empresas industriais: o que é o caso para 320"0
dos "empregados de escriiório" e para 13o/o dos "empregados de
,
comercio'" 1
. Sb
a e-se que esse fenômeno assume atualmente im-
portância, em razão do processo de concentração do capital, e

1 M. Praderie, Les Tertiaires, 1968, p. 46.


296 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tem como efeito a extensão do aparelho da empresa aos agentes


que preenchem atividades (acima da produção: pesquisa, e abai-
xo: comercialização) em que ela se anexa. Se esse fato não modi-
fica em nada o caráter não-produtivo de seu trabalho, ele tem
efeitos sobre as relações desses assalariados com a classe operária:
esses agentes, estando então submetidos a uma subordinação e
dependência aumentadas pela relação ao capital e à direção da
empresa, encontram-se freqüentemente ao mesmo tempo, e em
relação à classe operária, associados à legitimação dos poderes
que essa direção exerce sobre os operários.
Dou a palavra .a D. Lockwood, que descreve, depois de nu-
merosas pesquisas, e certamente em seus termos, este último ag..
pecto da situação 2 : "A situação de trabalho dos 'auxiliares de
escritório' forma um contexto social no qual os empregados de
escritório (no seio das empresas) ... tendem a ser estreitamente
identificados, como indivíduos, com os executivos de direção e de
supervisão da indústria ... O resultado da cooperação entre a di-
re·ção (management) e esses empregados é o isolamento social entre
o empregado de escritório e o trabalhador manual. A separação
completa desses dois grupos de trabalhadores é provavelmente a
característica mais marcante da organização industrial. Em razão
da divisão rígida entre 'os escritórios' e 'a produção', não é exa-
gerado dizer que, do ponto de vista do operário manual, o 'mana-
gement' da empresa elimina o grau menos elevado do 'auxiliar de
escritório' de rotina. O assalariado de escritório está associado à
autoridade empresarial, se bem que ele não se situe geralmente
numa relação autoritária com o operário manual, sendo as or-
dens que governam o processo de trabalho transmitidas da dire-
ção. antes por intermédio dos contramestres do que por meio do
staff (os empregados) . . . Essa separação administrativa do em-
pregado de escritório e do operário. . . está baseada primordial-
mente na concepção do caráter secreto e confidencial do trabalho
de escritório ... "
Conhece-se a propensão desses agentes, nas lutas atuais que
ocorrem nas fábricas, a serem particularmente influenciados pelo
"domínio" em sentido amplo e a se "identificarem" com os ca-
misas brancas. Podemos sempre apostar, sem muito risco de en-
gano, que uma grande parte dos "não-grevistas" entre o "pessoal"
de uma e·mpresa em greve refere-se no seu seio a esses empregados.
Se, agora, nos referirmos às relações políticas no seio da for-
rnação social no seu conjunto, podemos também apreender o lu-
12 The Blackcoated Worker, op. cit., p. 81.
BUROCRATIZAÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL 297

gar particular, nesse sentido, do corpo dos "funcionários" e dos


agentes do aparelho de Estado. Não há necessidade de nos referir-
mos ao caso bem patente do pessoal intermediário e subalterno
dos ramos do aparelho repressivo, para entendermos o papel des-
ses agentes na realização e materialização das relações de domi-
nação/subordinação política que a classe dominante exerce sobre
o conjunto das classes dominadas por intermédio do Estado. Poi·
certos aspectos de suas funções, uma grande parte dos agentes dos
aparelhos repressivos e ideológicos de Estado (professores, jorna-
listas, assistentes sociais etc.) participam, somente como simples
executantes (o que os distingue dos "vértices" burgueses dos apa-
relhos aos quais eles próprios estão submetidos e subordinados),
das tarefas de inculcação ideológica e de repressão política sobre
as classes dominadas, e principalmente sobre a vítima principal,
a própria classe operária, mesmo que esses agentes não comandem
sempre diretamente a classe operária: um funcionário dos impos-
tos não tem diretamente, em seu serviço administrativo, operários
sob suas ordens.

II

Mas, para entendermos o lugar preciso dos assalariados não-


produtivos nas relações políticas da divisão social do trabalho, em
relação ao trabalho intelectual "separado" do trabalho manual,
nos casos em Que eles não exercem forte dominação sobre a classe
operária, é necessário irmos mais além. De fato, o aspecto princi-
pal dessa questão depende da interiorização e da reprodução in-
duzida, no próprio seio dessa nova pequena-burguesia, das relações
políticas dominantes de uma farmação social capitalista. O lugar
da nova pequena-burguesia é, essencialmente, caracterizado por
essa reprodução induzida, exercendo seus agentes sobre si próprios,
isto é, uns sobre os outros, relações políticas à semelhança (des-
figurada) das relações de dominação preponderantes em uma for-
mação social. A nova pequena-burguesia faz, sob esse aspecto,
parte de uma classe "intermediária", não porque ela seja direta-
mente o intermediário efetivo (um "elo" ou uma "reserva") da
relação de dominação da burguesia sobre a classe operária, sobre-
tud_o yorque ela constitui um tubo de ensaio, e um exemplo me-
tafonco do funcionamento interiorizado (portanto específico)
dessa relação em seu próprio seio: seu lugar não legitima tanto a
298 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HoJE

dominação ou a subordinação; legitima, sim, a relação dominação/


subordinação capitalista, realizando o concentrado desfigurado 3 •
É aí que se inscreve, de fato, a tendência marcante, e sobre
a qual insistiram num,erosos autores, para uma burocratização
pronunciada que afeta a organização do trabalho da grande massa
dos assalariados não-produtivos. O problema é muito vasto, e não
vou tratá-lo aqui profundamente. Não vou tentar tampouco re-
futar toda uma série de· concepções da "burocracia" que, decor-
rendo de uma problemática "institucionalista" da "organização"
em geral, vêem o fenômeno principal das "sociedades industriali-
zadas", associando-lhe a organização das próprias unidades de
produção (a "burocratização das empresas"). Lembrarei simples-
mente 4 que a burocratização não abrange uma simples organiza-
ção técnica do trabalho, que corresponde a uma "racionalidade"
ou "irracionalidade" qualquer intrínseca ao capitalismo. Somente
no sentido rigoroso, essa burocratização é o efeito, na divisão so-
cial do trabalho no plano institucional, de uma conjunção da
ideologia burguesa e do subconjunto ideológico pequeno-burguês
(relações ideológicas), e de uma reprodução metafórica e desfi-
gurada das relações políticas burguesas de dominação/subordina-
ção. Suas características, estudadas entre outros por Marx, Engels,
Lênin, mas também por M. Weber, consistem na axiomatização
de um sistema de regras e de normas que distribui os domínios
de atividade· e de competência; o caráter "impessoal" das diversas
funções; o modo de sua retribuição em tratamentos fixos; o re-
cru tamento por designação a partir do vértice sobre concurso ou
sobre a base de "diplomas"; as formas patticulares de ocultar o
saber no seio da organização pelo "segredo" burocrático; as for-
mas particulares de funcionamento da "hierarquia", por delega-
ção em cascatas sucessivas da "autoridade" (voltaremos a esses
termos); o centralismo pelo qual todo escalão "comunica" com
os outros através, indiretamente, do escalão superior, o que dá
lugar a um isolamento específico dos agentes etc.
Mas o que está em questão aqui é realmente a burocratiza-
ção, como tendência materializante· dos efeitos ideológico-políticos
sobre o trabalho não-produtivo, e não a "burocracia" no sentido
de uma "organização" com relações principalmente contínuas e
uniformes do "vértice" até a "base", como o entende a esmaga-

8 Ver adiante, pp. 316-7.


" Tratei amplamente essa questão em Pouvoir politique et ClasJeJ
sociaJes, t. II, último capítulo.
BUROCRATIZAÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL 299

dora maioria dos sociólogos que falam desse fenômeno 5 : distin-


ção entre burocratização e burocracia cujos efeitos práticos ve-
remos.

Essa burocratização não se limita mais, atualmente, apenas


ao setor público do aparelho de Estado no sentido estrito, mas
marca precisamente, em graus certamente desiguais, os lugares
"privados" onde se localiza uma grande maioria dos assalariados
não-produtivos: bancos, seguros, empresas de publicidade e de
marketing (os "empregados de escritório"), as empresas comer-
ciais, o setor "serviços" (hospitais, laboratórios de pesquisa etc.).
A extensão atual da burocratização é devida, essencialmente, ao
processo de concentração e de centralização do capital, às novas
formas de divisão social do trabalho que ele impõe·, e à generali-
zação e extensão do sistema salarial no setor dominado pelo tra-
balho intel·ectual. Essa burocratização tem efeitos consideráveis,
se bem que contraditórios, sobre os agentes que lhe são submetidos.
Quando nos referimos principalmente às características essen-
ciais do "segr·edo do saber" (segredo burocrático) e à delegação
da autoridade, percebemos perfeitamente que esses agentes, estan-
do submetidos em seu conjunto aos "vértices" e à direção, repro-
duzem, em suas próprias relações internas, essas características.
Os diversos pequeno-burgueses detêm, em relação àqueles que
lhes são subordinados, uma parcela desse segredo fantasmático do
saber que legitima a parcela de autoridade delegada que eJe.s exer-
cem. Encontra-se aí todo o sentido da hierarquia. Toda instância
burocratizada subordina e se subordina: somos sempre, ao mesmo
tempo, o "superior" e o "inferior" de alguém. Mas não devemos
considerar essa burocratização como um "modelo de organiza:-
ção", e identificá-la assim a um certo tipo ideal de "burocracía",
principalmente como aquele dos aparelhos de Estado ou mesmo
aquele, tradicional, do aparelho de Estado napoleônico ou bis-
marckiano. As formas de burocratização são complexas e subme-
tidas, também, a transformações. Podemos mesmo dizer que uma

5 É principalmente o caso, além das anál:ises bem conhecidas de


Parsons, e aquelas de Dahrei:1dorf, para P. Blau, Bureaucracy in Modern
SoctetJ!, 1956: A. Gouldner, Patterns of Industrial Bureaucracy, 1964; A.
Etz1om, Modern Organization, 1965; e enfim M. Crozier, Le Phénomene
b.ureaucratique, 1963. Chamo a atenção, no entanto, para as numerosas
discussões que tiveram lugar na França, em tomo desse assunto, a partir
dos anos 50, as excelentes observações críticas a essas correntes por
Claude Lefort (reproduzidas atualmente em Critique de la bureaucra-
tie, 1972).
300 As CLAS.SES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE .HOJE

certa forma de burocratização, calcada em um tipo centralizador-


militar, viveu no passado e a ele pertence. O que não impede qu~
os traços essenciais da burocratização se reproduzam atualmente.

É inútil prosseguirmos na descrição de fatos bem conhecidos.


Mas podemos dizer que, pela articulação das relações ideológicas
-- segredo e monopolização interiorizada do saber - e das re-
lações políticas, a burocratização aparece de fato, essencialmente
como a materialização específica, na divisão social do trabalho,
de um trabalho intelectual -"separado", no sentido capitalista, do
trabalho manual.
Com efeito, essa burocratização se distingue do despotismo
de fábrica que é próprio da organização social do trabalho ma-
nual, e isso ao contrário do que sustenta a maioria dos "sociólo-
gos do trabalho" (a burocratização da "empresa"), ao seguir, nisso,
o próprio M. Weber. Nesse despotismo de fábrica baseado na
extração da mais-valia, isto é, na relação de exploração domi-
nante, a burguesia domina e oprime a classe operária: mas a
classe operária não reproduz absolutamente em seu próprio seio
essas relações de dominação/subordinação. Mesmo no caso de uma
tendência à reprodução da divisão trabalho intelectual/trabalho
manual no seio do trabalho inanual, essa reprodução não assume
absolutamente as mesmas formas que· no seio do trabalho intelec-
tual. Em suas relações internas, as diversas camadas de operá-
rios (operários qualificados -- profissionais, os, mão-de-obra bru-
ta e os diversos: escalões dessas camadas - os 1, 2, 3 - OP 1, 2, 3
etc.) não exercem sobre as outras (as camadas "inferiores") a
monopolização do saber e as relações de autoridade, e certamen-
te não da mesma forma co1no ocorre nas relações internas da
pequena-burguesia burocratizada. Desse ponto de vista, isto é, na
própria organização do trabalho da fábrica no seio da classe ope-
rária, aqueles que exercem de fato poderes são os executivos de
supervisão e de· direção, a saber, os contramestres, os técnicos etc.
Ao passo que, para a nova pequena-burguesia burocratizada, e se-
gundo a própria interiorização das relações ideológico-políticas
que a caracterizam na própriia organização de seu trabalho, todo
agente tem tendência a exercer relações induzidas de àutoridade
e de segredo do saber sobre os agentes subalternos.
Certamente, a política da burguesia consiste precisamente· em
fazer interiorizar esse tipo de: relações no seio da classe operária:
mas ela se· choca aqui contra o núcleo irredutível da socialização
do processo de trabalho produtivo, que conduz constantemente a
BUROCRATIZAÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL 301

classe operária à subversão dessas relações, e encontra-se precisa..


mente aí o sentido próprio das reivindicações anti-hierárquicas da
classe operária e que se distinguem em geral, em seu conteúdo,
daquelas da nova pequena-burguesia. Não é por acaso que a bur-
guesia deve passar, para introduzir essas relações político-·ideoló-
gicas no seio da classe operária, pelo caminho todo particular da
"aristocracia operária" e das "burocracias sindicais de colabora..
ção de clãsse" (L1ênin). Essas coordenadas permanecem, natural-
mente, co-substan.ciais à dominação da burguesia sobre a classe
operária, mas elas: são constantemente subvertidas pelas r,elações
de trabalho no seio da classe operária (o "instinto de classe~·"), ao
passo que a interiorização dessas relações no seio da nova peque-
na-burguesia burocratizada decorre da reprodução de seu próprio
lugar na divisão social do trabalho. De fato, nesse sentido·, a re-
produção burocrática só funciona na empresa, para as relaç:ões in-
ternas dos empregados no seu seio.
Vemos, assim,, como essas relações estabelecidas na organiza-
ção burocrática do trabalho são somente a reprodução induzida
e, além disso, a reprodução desfigurada, das relações político-ideo-
lógicas de dominação/ subordinação de classe. Todo agerite pe-
queno-burguês não exerce sobre seus subordinados uma domina-
ção idêntica (isto é, uma dominação de classe) àquela do <;apitai,
e dos agentes que ocupam seu lugar, no conjunto da pequena-
burguesia. Os pequeno-burgueses não exercem, uns sobre os ou-
tros, efetivos poderes (o poder escondendo as relações de classe),
mas autoridade (a autoridade designando precisamente a repro-
dução induzida dc~sses poderes). Com efeito, esse capital existe
sempre, sua existência determinando efetivamente essa organiza-
ção social do trabalho, não sendo a dominação de classe absoluta-
mente substituída por uma dominação/subordinação uniforme,
que decorreria da "própria" natureza da "organização". Contudo,
há mais, pois essa dominação -- o exercício do poder·~ da bur-
guesia sobre a parte burocratizada da pequena-burguesia assume,
no processo de trabalho, formas completamente diferentes da do-
minação - o exercício do poder - que ela exerce sobre a classe
operária pelo despotismo de fábrica na extração da mais-valia.

Podemos assina esclarecer agora certas questões relativas aos


aparelhos:
1. As diversas "empresas" nas quais se organiza o trabalho
desses assalariados constituem realmente aparelhos: elas materia-
302 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

lizam e encarnam as relações ideológico-políticas articuladas à ex-


ploração específica que sofrem esses agentes. Esses aparelhos, ex-
ceção feita aos aparelhos de Estado, dependem dos aparelhos
econômicos. De fato havíamos visto que o conceito de aparelhos
não poderia ser reservado somente aos aparelhos de Estado (apa-
relho repressivo e aparelhos ideológicos de Estado).
2. Vemos perfeitamente que, ao contrário das análises ins-
titucionalistas da "teoria das organizações", os diversos aparelhos
não são definidos pela sua estrutura organizaciond intrínseca, mas
segundo suas funções sociais. Principalmente, a materialização
das relações político-ideológicas burguesas ("aparelhos capitalis-
tas") não se faz aí da mesma forma: a própria estrutura interna
dos aparelhos depende das classes que estão aí presentes, portanto
da luta das classes que neles se situa. Um aparelho no qual a
classe operária está maciça e principalmente presente se distingue
sempre dos outros. Isso vale não somente para o aparelho econô-
mico - unidade de produção -, mas também para os aparelhos
ideológicos de Estado por excelência destinados à classe operária.
Mesmo um partido de tipo socialdemocrata ou um sindicato
"operário" de colaboração de classe, que no entanto materializam
de forma muito particular a dominação da ideologia burguesa e
pequeno-burguesa sobre a classe operária, não são jamais assimf.
láveis aos outros: a presença da classe operária manifesta-se aí
sempre por efeitos específicos, situando-se então efetivamente aí
o centro das análises de Lênin sobre os "partidos operários" so-
cialdemocra tas.
3. Esses pressupostos conduzem à distinção radical das aná-
lises marxistas e das diversas concepções institucionalistas do
"poder", da "autoridade", da "hierarquia", em relação aos apa-
relhos. Os conceitos de dominação e de poder só podem de fato
ter como campo de aplicação, dentro e fora dos aparelhos, as
relações de luta de classe, isto é, das classes entre si (da burguesia
sobre a pequena-burguesia, da burguesia sobre a classe operária).
Os termos autoridade e hierarquia designam de fato a re-
produção induzida dessas relações - dominantes - no próprio
interior de cada classe, e de forma específica para cada uma delas:
principalmente no próprio seio da pequena-burguesia situada nos
aparelhos. Os aparelhos são o efeito· da dominação e dos poderes
de classe, mas materializam e encarnam, ao mesmo tempo. essa
reprodução induzida. 1
BUROCRATIZAÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL 303 ·

4. Vemos então assim que os próprios aparelhos estão di--


vididos:
a) primeiramente segundo as barreiras de classe: não somen-
te cada empresa está verticalmente dividida pelos lugares de bur-
gueses, os lugares de pequeno-burgueses e os lugares de operá-
rios, mas ela própria é freqüente e horizontalmente cindida; uma
"empresa-unidade de produção" complexa é de fato dividida em
dois aparelhos, a fábrica e seu despotismo (classe operária), o,
aparelho "administrativo", escritórios etc. (pequeno-burguesia);
b) segundo os fracionamentos internos das diversas classes.
que aí estão situadas em seguida, o que é por excelência, e· de:
forma muito específica, o caso para a pequena-burguesia. Ao en-
tender precisamente a autoridade e a hierarquia como reprodu-
ção induzida dos poderes de classe, vemos perfeitamente que seu
próprio campo de aplicação, isto é, essa rõprodução induzida no·
seio da pequena-burguesia, não tem também uma configuração .
linear e unívoca em "degrau".

III

A interiorização, toda particular para os setores burocratiza-·


dos da nova pequena-burguesia, das relações político-ideológicas
de dominação/subordinação abrange efeitos ainda mais longín-
quos para os agentes que ocupam esse lugar. Ela corresponde mui-
to concretamente ao fato de que esses agentes pequeno-burgueses-.
fazem carreira. Um agente pequeno-burguês semelhante pode com
freqüência esperar razoavelmente, no decorrer de sua vida profis-·
sional, "galgar os escalões" e aumentar, aos cinqüenta anos, de:
15, 20 ou 50o/Ô o salário que ganhava aos vinte anos. Certamente·,.
isso não é um fenômeno geral e, de fato, a arma estratégica dessa
carreira está relativamente limitada para uma grande parte dos
escalões subalternos, afetados pela parcelização das tarefas no
próprio seio do trabalho intelectual. Mas as simples estatísticas
mostram, entretanto, a diferença com a classe operária. A esma-
gadora maioria dos operários atinge o máximo de seu salário entre
vinte e trinta anos, salário este que decresce em seguida. Daí as
diferenças no que se refere à aposentadoria (e à base de seu cál-
culo) para os agentes da nova pequena-burguesia e para aqueles
da classe operária, mesmo quando estes adquiriram esse "direito",
e quando não morrem durante o período de trabalho: sabe-se que
as possibilidades de vida são muito mais importantes para o con~
304 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

junto da nova pequena-burguesia do que para a classe operária.


Contudo, .é sornente uma camada pouco significativa da classe
operária que é atualmente "mensalista", consagração de toda
uma vida passada no trabalho, e que é o caso da grande maioria
desses assalaria.dos.

A importância que assumem aqui a '·'carreira" e a "promo..


ção" em relação à classe operária é nítida,, primeiramente no des..
locamento dos agentes no decorrer de sua vida profissional (intra..
geracional). Entre os operários homens que mudam de lugar, não
há senão l 4o/o dos operários qualificados que se tornam técnicos,
sendo essa percentagem praticamente nula para os os e a mão-
de-obra bruta; o que, além disso, prevalec:e aqui, é o processo de
desqualificação maciça: cerca de 34% dos operários qualificados
deslocam-se então, tornando-se os ou mão-de-obra bruta. Em con..
trapartida, entre os simples empregados de escritório que se des-
locam no decorrer de sua vida profissional, 48% dos homens tor-
nam-se executivos médios e superiores (250/o tornam-se operários),
57% das mulheres tornam-se executivos rnédios e superiores (6o/o
tornam-se operárias); entre os homens empregados de comércio
que· se deslocam, 290/o tornam-se técnicos especializados (28%
tornam-se operários). O deslocamento interno ascendente dos
agentes pequeno-burgueses no próprio selo da nova pequena-bur..
guesia é igualmente observado pelo seguimento das gerações:
para. citar sonaente o caso dos homens, cerca de 23% dos filhos
de empregados tornam-se executivos médios, ao passo que para
os filhos de operários a percentagem é so1nente de cerca de 10% 6 .

Enfim: no caso de agentes pequeno-burgueses afetados pela


burocratização (privada ou pública), o leque da hierarquia sala-
rial, interna é muito mais elevado e aberto do que no seio ·da
classe operária e de suas camadas. Para somente se referir ainda

6 Fontes, INSEE: Enquête sur la qualification professionnelle de 1964,


refedndo-se aos ativos entre 1959 e 1964. Os resultados foram apresen-
tados para os deslocamentos no decorrer da vida profissional em Etudes
et conjonctures, outubro de 1966, e para os deslocamentos intergerações
em Etudes et conjonctures, fevereiro de 1967. Para este último caso,
dispomos· dos• trabalhos exemplares de D. Bertaux: entre outros "L'héré-
dité sociale en France" em Economie et Statistique, fevereiro de 1970;
"Nouvelles perspectives sur la mobilité sociale en France", em Quality
and Quantity, vol. V, junho de 1971 etc. Esses dados são confirmados
essencialmente pela nova pesquisa feita em 1970, e cujos resultados não
foram ainda publicados.
BUROCRATIZAÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL 305

aos setores privado e semipúblico, os salários líquidos anuais mé-


dios em francos, em 1969, que, para a classe· operária, são de
8. 854 para a mão-de-obra bruta, 10. 467 para os os e 13 .116 para
os oP, são aqui: empregados de comércio: 12. 344; empregados
de escritório: 13. 350; executivos de administração médios: 27. 958
(não são levados em consideração os executivos superiores que,
mais freqüentemente, pertencem de fato à burguesia). Observar
que a distância que separa esses assalariados de base dos "executi-
vos médios" é ainda maior do que aquela que separa a classe ope-
rária dos técnicos. Certamente, tais cifras são ainda pouco signi-
ficativas. As coisas tornam-se mais claras quando se comparam
essas cifras para a distribuição dos assalariados por atividade eco-
nômica e por quota de salário líquido anual médio. Se tomarmos
de um lado as "atividades econômicas" que nos interessam aqui
(comércios diversos, serviços, bancos, seguros, agências, higiene,
serviços administrativos privados) e, de outro lado, as "atividades
econômicas" industriais, constatamos nítidas diferenças: enquan-
to a esmagadora maioria dos operários atinge rapidamente o teto
de uma quota, os outros assalariados apresentam, com desigual-
<lades que veremos em seguida, uma distribuição mais equilibrada
em um grande leque de quotas de salários 7 • O caso é ainda mais
patente para os funcionários.
De qualquer forma, o· que é preciso notar aqui é que o sen-
tido da hierarquia é profundamente diferente na classe operária
e na carreira pequeno-burguesa, mesmo quando um os 1 passa
para os 2, 3 ou 4, ou um OP 1 para OP 2 etc., o que não te.m
.absolutamente o mesmo sentido para ele, nas relações ideológico-
políticas de autoridade e de segredo do saber, que tem para um
pequeno-burguês que, mesmo sem se mostrar mais elevado (para
a maior parte· deles, só há uma ventilação, mesmo interna
para a pequena-burguesia, bastante limitada), exerce sobre os
agentes imediatamente subalternos uma autoridade específica.
Disso resultam efeitos consideráveis sobre a ideologia, muito
particular, da promoção social desses agentes: efeitos articulados
sobre o isolamento competitivo desses agentes entre si nas rela-
ções ideológico-políticas "burocratizadas", iisolam~nto quet con-
trasta com a solidariedade de classe no seio da classe operária,
o que tem rtpercussões na luta de classe, constatando-se diaria-
mente, de forma particular, rtas dificuldades e particularidades ca-
racterísticas dos movimentos de greve dessa nova pequena-bur-
guesia.
7 Op. cit., em Collections do INSEE, p. 58.
306 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

IV

Essa burocratização do trabalho dos assalariados não-produ-


tivos, se bem que seja atualmente uma tendência marcante, não.
afeta, como veremos, o conjunto desses assalariados, e, além disso,
não os afeta da mesma forma. Seja como for, já se compreende
que esse elemento de burocratização, materialização e encarna-
ção das relações político-ideológicas e as diferenciações nesse sen-
tido no seio da nova pequena-burguesia são um fator importante
de fracionamento da nova pequena-burguesia em frações de clas-
se. Essas diferenciações, e os fracionamentos da nova pequena-
burguesia, não destacam forçosamente suas diferenciações nas re-
lações econômicas - assalariados da circulação, serviços, apare-
lhos de Estado - , estendendo-se essa burocratização transversal-
mente entre esses diferentes conjuntos.
Eis por que essa mesma burocratização apresenta efeitos con-
traditórios no seio da nova pequena-burguesia. De fato, muitos
autores, entre os quais Wright Mills, D. Lockwood etc., susten-
taram que essa burocratização aproxima as condições de trabalho
desses assalariadc;>s daquelas da classe operária: impessoalidade
das funções, relações autoritárias - hierárquicas etc. Essas afir-
mações, aplicadas ao conjunto da pequena-burguesia burocratiza-
da, são falsas. na medida em que assimilam essa burocratização
no despotismo de fábrica. O problema é outro: essa mesma buro-
cratização contribui, no seio dos setores da nova pequena-bur-
guesia que lhe são submetidos, para novas delimitações internas
entre a massa de agentes subalternos, progressivamente despos-
suídos do "saber" (funcionamento interno do "segredo" burocrá-
tico) e do exercício de autoridade, e dos agentes intermediários.
O que, sempre articulado às diferenciações internas na ordem de
exploração sofrida, tem efeitos importantes (voltaremos a esse
asunto) sobre as posições de classe dessa fração subalterna da
pequena-burguesia. ,
VI. A NOVA PEQlJE.NA-BURGUESIA
E A DISTRIBUI1ÇÃO .DE SEUS AGENTES

Enfim, um último elemento que diz respeito à · distribuição


dos agentes na nova pequena-burguesia e a sua reprodução em
relação a seu lugar: trata-se, desta feita, não mais da ventilação
desses agentes no próprio ·seio da pequena-burgue·sia, mas das
formas de seu deslocamento para outras classes sociais. Se bem
que as estatísticas oficiais do INSEE sejam, aqui também, conside-
ravelmente desordenadas em razão das classificações que elas uti-
lizam - as famosas "categorias socioprofissionais" -, podemos,
entretanto, delas tirar certos elernentos 1 .
Os agentes da nova pequena-burguesia parecem apresentar
bem - embora de forma desigual segundo os diversos conjun-
tos -, nas formações capitalistas atuais, ao mesmo tempo no
decorrer da vida profissional dos agentes e das gerações que os
sucedem (seus filhos), um indício inteiramente particular de des-
locamento em direção a outras classes sociais: concomitantemen-
te pela importância e pelas formas específicas desse deslocamen-
to. De fato, constatamos:
a) a proporção de deslocarnentos desses assalariados, no
decorrer de sua vida profissional, em direção a outras "categorias
socioprofissionais" que indicam uma mutação de classe, é consi-
deravelmente mais elevada do que para a burguesia ou a classe
operária;
b) nas gerações seguintes, a proporção de crianças desses
agentes pequeno-burgueses que pertencem à me,sma classe de seus
pais é consideravelmente menos elevada do que para a burgue-
sia e a classe operária: mais d(~ 700/o dos filhos de operários
1 Fontes citadas acima.
308 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tambêm se tornam operários, e mais de 450/o dos filhos de bur-


gueses igualmente se tornam burgueses, enquanto somente cerca
de 27% das crianças do conjunto dos agentes da nova pequena-
burguesia continuam a pertem.cer a essa classe 2 •

Contudo:
1) Enquanto o próprio lugar dessa pequena-burguesia se es..
tende na fase atual do capitalismo monopolista, seus agentes
apresentam uma instabilidade característica quanto à ocupação
desse lugar. Instabilidade característica porque, de um lado, ela
diferencia esses agentes dos agentes da burguesia e da classe ope-
rária, pois, por outro lado, ela é diferente daquela, formalmente
semelhante, das classes pobres do campesinato e da pequena-bur..
guesia tradicional: nestes últimos casos, os deslocamentos maci-
ços de agentes que constatamos são devidos à própria eliminação
de seu lugar no desenvolvimento do capitalismo monopolista 3•
2) Uma parte importante- desses agentes que se deslocam
"cai" na classe operária: é principalmente o caso dos "emprega-
dos". Entre os empregados homens que, no decorrer de sua vida
profissional, se deslocam, 20% de empregados de comércio e
250/o de empregados de escritório caem na classe operária. Nas
gerações seguintes, 40% dos filhos e 17% das filhas dos empre-
gados tornam-se operários e operárias.
3) Em contrapartida, a proporção dos agentes pequeno-bur-
gueses que se deslocam para o lugar da burguesia é sem medida
comum, isto é, consideravelmente mais elevada, do que para a
classe operária, se bem que este transbordamento burguês só se
2 Obtém-se essa perca.1tagem considerando as crianças (de ambos
os sexos) ao mesmo tempo dos executivos médios e dos diversos em-
pregados que se tomam quer executivos médios, quer empregados. Fun-
damentei-me para esses reagrupamentos nas cifras "brutas" da pesquisa
citada do INSEE, reagrupamento que, em virtude da ideologia da "mo-
bilidade" que dirige essas pesquisas nunca foi aí analisado. Para as cria1\-
ças da burguesia que se tornam elas próprias burguesas, observa-se que
a cifra de 43% é enganadora: de fato, a pesquisa só se refere aos agen-
tes quando muito com 45 anos no momento da pesquisa (nascidos em e
após 1919, pesquisa de 1964). Ora, um número apreciável de filhos de
burgueses não teve ainda tempo, no momento da pesquisa, de herdar
(não no sentido da herança cultural de Bourdieu, mas em moeda so-
nante) e de se tornar assim diretamente burgueses, isto é, de se recolocar
em seu lugar: a1contra-se aí o fenômeno da "contramobilidade" que as
pesquisas de Girod na Suíça esclareceram.
3 Sobre esse assunto, ver os artigos citados de D. Bertaux.
DISTRIBUIÇÃO DOS AGENTES 309

refira de fato a uma minoria de mutantes pequeno-burgueses e


que, considerado em si, seja muito fraco. Não há quase operá-
rios que, no decorrer de sua vida profissional, se deslocam para
a burguesia, caso que ocorre para cerca de lOo/o entre os mutan-
tes empregados homens (que se tornam executivos superiores),
sendo a proporção ainda maior para os executivos médios. Nas
gerações seguintes, cerca de 10,50/o dos filhos da burguesia trans-
bordam para a burguesia, enquanto, no caso dos filhos de ope-
rários, a proporção é de cerca de 1% .

Ê sobre este último aspecto da questão que precisamos nos


deter. Vamos insistir primeiramente sobre a inutilidade· da pro-
blemática burguesa da mobilidade social, lembrando simplesmen-
te que o aspecto fundamental da reprodução das relações sociais
- das classes sociais - não é o dos "agentes", mas aquele da
reprodução dos lugares dessas classes. A ventando uma hipótese
perfeitamente absurda de que, se nas gerações seguintes os bur-
gueses se tornassem os proletários e os proletários os burgueses,
os burgueses os pequeno-burgueses e vice-versa, ou os pequeno-
burgueses os proletários e vice-versa, a estrutura de classe da
formação capitalista não mudaria em nada de essencial, pois ha-
ve.ria s.empre lugares do capital, da classe operária, da pequena-
burguesia etc.
Mas essa hipótese é, naturalmente, absurda, pois embora as
classes sociais de uma formação capitalista não s.ejam "castas" ou
"ordens" fechadas, a reprodução dos lugares e a reprodução dos
agentes que os ocupam só são de fato dois aspectos, ligados,
da reprodução das relações sociais.
Essa ligação é inteiramente· particular no caso da nova pe-
quena-burguesia. Esses agentes têm efetivamente muito mais "pos-
sibilidades", se assim podemos dizer, de ascender ao lugar da
burguesia, o que não é o caso para os agentes da classe operária.
E o aparelho essencial de passagem é ainda o aparelho escolar
que, sob esse ângulo, pela formação-qualificação do trabalho in-
telectual, runciona igualmente como distribuidor de certos agen-
tes da nova pequena-burguesia para a burguesia.
Pode-se dizer, certamente, abreviando a complexidade dol}
fenômenos, que se ·trata de uma política precisa da burguesia,
particularmente clara nas f armações em que ela teve necessidade
de se assegurar um apoio da pequena-burguesia diante da classe
operária, principalmente na França: apoio esse que foi durante
muito tempo selado pela natureza e pelo papel particularmente
_310 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

dmportante da escola capitalista na França (sistema particular dos


"concursos", por exemplo). Pois, efetivamente, esse estado de
coisas tem efeitos ideológicos consideráveis sobre a nova peque-
na-burguesia: ideologia da "promoção social" e da "ascensão"
para a burguesia, substituta do papel atribuído nesse sentido à
"instrução" etc. Esses aspectos ideológicos correspondem a um
substrato real, mesmo que esse substrato esteja longe de ser aque-
le feito de· imagens ilusórias pela peque.na-burguesia: considera-
dos em si e para o conjunto dessa classe, essas passagens são
de fato muito limitadas, mas continuam a nutrir as ilusões e as
·esperanças desses agentes, para si próprios e sobretudo para seus
filhos.
Mas este último fenômeno também não afeta, da mesma
forma e no mesmo grau, o conjunto da nova pequena-burguesia:
existem no seu seio·. diferenciações apreciáveis, diferenciações que
=intervêm igualmente, como veremos, na sua divisão interna em
,!rações de classe.
VII. A DETERMINAÇÃO DE CLASSE
DA PEQUENA-BURGUESIA TRADICIO·NAL

Antes de abordar a questão da ideologia pequeno-burgu~sa,


'Seria necessário determo-nos sobre a determinação de classe da
pequena-burguesia tradicional. Serei aqui bem mais sucinto: essa
determinação de classe, que sobretudo Marx, Engels e mesmo
Lênin tinham em vista, cria menos problemas do que aquela da
nova pequena-burguesia.
Limitando-nos ao lugar da pequena-burguesia tradicional nas
relações de produção, podemos dizer que esta compreende a
pequena produção e a pequena propriedade.
a) Pequena produção: trata-se essencialmente de formas de
artesanato ou mesmo de pequenas empresas familiais, onde o
mesmo agente é simultaneamente proprietário/possuidor dos
meios de produção e trabalhador direto. Não encontramos a ex-
ploração econômica propriamente dita, na medida em que essas
formas de produção não empregam, ou só o fazem muito oca-
sionalmente, operários assalariados. O trabalho é fornecido prin-
cipalmente pelo proprietário real ou pelos membros de sua fa-
mília, que- não recebem retribuição sob forma de salário. Essa
pequena produção retira lucro da venda de suas mercadorias e
.através da distribuição total da mais-valia, mas não extorque
diretamente o sobretrabalho.
b) Pequena propriedade: trat.a-se principalmente do peque-
no comércio da esfera da circulação, onde o proprietário de bens
·de comércio, ajudado por sua família, fornece o trabalho, empre-
gando apenas ocasionalmente trabalho assalariado.
O lugar comum desses dois conjuntos da pequena-burguesia
:tradicional nas relações de produção reside no fato de que o
312 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

trabalhador direto é o próprio proprietário dos meios de traba-


lho, isto é, na existência da propriedade e· na ausência de explo-
ração direta de trabalho assalariado. Essa pequena-burguesia não
depende do modo de produção capitalista, mas da f arma de pro-
dução comercia/, simples, que foi, historicamente, a forma de
transição do modo de produção feudal para· o MPC. A existência
atual dessa pequena-burguesia nas formações capitalistas desen-
volvidas depende então da permanência desta forma na repro-
dução ampliada do capitalismo, e das formas políticas que essa
reprodução assumiu. Marx e Engels já haviam enfatizado a ten-
dência dessa pequena-burguesia a periclitar em virtude do esta-
belecimento da dominância do modo de produção capitalista e
sua reprodução.
VIII. O SUBCONJUNTO IDEOLóGICO
PEQUENO-BURGUts
E A POSIÇÃO POUTICA
DA PEQUE.NA-BURGUESIA

A determinação estrutural da nova pequena-burguesia na


divisão social do trabalho se concentra por efeitos na ideologia
de seus agentes, o que influi diretamente nas suas posições polí-
ticas de classe. Podemos logo dizer que esses efeitos divergem
segundo as frações da nova pequena-burguesia, frações que essa
determinação permite delimitar segundo suas transformações
atuais: isso não nos impede de poder retirar um bem comum
desses efeitos ideológicos, característica do conjunto da -nova
pequena-burguesia. Enfim, essd efeitos ideológicos na nova pe-
quena-burguesia apresentam um parentesco digno de nota com
aqueles que a própria determinação de classe da pequena-burgue-
sia tradicional tem sobre está última, justificando assim por esse
meio seu pertencimento a uma mesma classe, a pequena-bur-
guesia.

É necessano expor primeiramente algumas linhas diretrizes


no exame da ideologia pequeno-burguesa. De fato, a pequena-
burguesia, pelo lugar que ocupa na determinação de classe de
uma formação capitalista, não tem posição política de classe
autônoma a longo prazo. As duas classes fundamentais são a
burguesia e o proletariado: existem então somente, no sentido
forte de ideologias de classe, aquelas duas classes fundamentais
314 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

politicamente opostas até o fim. Vale dizer, então, que· somente


existem, como conjuntos de coerência própria e de sistemática
relativa, a ideologia burguesa dominante e a ideologia ligada à
classe operária.
É por isso que só se pode falar, quanto à pequena-burgue-
sia, de um subconjunto ideológico pequeno-burguês. No contexto
da luta ideológica de classe (as diversas ideologias não existindo
"em si" num campo fechado da "ideologia em geral") esse sub-
conjunto é constituído pelos efeitos da ideologia burguesa (domi-
nante) sobre as aspirações próprias dos agentes pequeno-burgue-
ses relativamente à sua determinação específica de classe. Certa-
mente, os efeitos da ideologia burguesa (ela não s.eria dominante
sem isso) exercem-se igualmente na classe operária. Mas aí, cho-
cando-se com as práticas da classe que está no cerne da explo-
ração capitalista, eles assumem outras formas que não assumem
no caso da pequena-burguesia: sob os próprios efeitos da ideolo-
gia burguesa na classe operária, surge sempre o que Lênin de-
signava como "instinto de classe" e que nada mais é do que a
ressurgência constante, nas práti~as, de uma determinação de
classe que suporta, na fábrica e na produção material, a extra-
ção da mais-valia 1 .
Nessa torção-adaptação da ideologia burguesa às aspirações
próprias da pequena-burguesia, esta insere "elementos" ideológi-
cos específicos que dependem de sua própria determinação de
classe: classe também explorada e dominada pelo capital, mas
de forma completamente distinta da exploração e dominação so-
fridas pela classe operária.
Contudo: em uma formação capitalista, existe ao mesmo
tempo uma ideologia ligada à classe operária. Como assina~ava
Lênin, a própria ideologia dominante (a "cultura" de uma for-
mação capitalista) comporta em seu discurso "elementos" depen-
dentes dessa ideologia: isso pode até tomar as formas, indicadas
por Marx no Manifesta, de um "socialismo burguês" ou mesmo,
nos primórdios do capitalismo, e para a classe dos grandes pro-
prietários de terra "feudais", de um "socialismo feudal''. No caso

1 Esse papel particular da ideologia burguesa na constituição do


subconjunto ideológico pequeno-burguês permite compreender um fato de-
cisivo, que assume atualmente toda a sua importância: toda crise ideo-
lógica da burguesia repercute diretamente no seio da pequena-burguesia e
influi, assim, diretamente sobre suas posições de classe.
IDEOLOGIA PEQUENO-BURGUESA 315

da pequena-burguesia, tal situação é, naturalmente, diversa:


também ela classe explorada e dominada, exprimindo-se essa si-
tuação para ela pelo fato de que sua i,de~logia comporta, e_m
articulação estreita com os elementos propnos dessa exploraçao
e dominação particulares, elementos próprios da ideologia operá-
ria, estando esta presente efetivamente no subconjunto 'ideológi-
co pequeno-burguês de forma n1uito mais direta e importante do
que no caso da ideologia dominante. Essa presença da ideologia
operária no subconjunto ideológico pequeno-burguês preenche
funções particulares, pois ela corresponde à efetiva polarização
da pequena-burguesia.

O que indica duas coisas:


J. De um lado, que· esta presença da ideologia operária nó
subconjunto ideológico pequeno-burguês sempre teve tendência a
ser dominada ao mesmo tempo por elementos ideológicos espe-
cificamente pequeno-burgueses, e pela ideologia burguesa consti-
tutivamente presente, também ela, no subconjunto ideológico
pequeno-burguês. Em outras palavras, o subconjunto ideológico
pequeno-burguês é um terreno de luta e um campo de batalha
particular entre a ideologia burguesa e a ideologia operária, mas
com a in~ervenção própria dos elementos especificamente peque-
no-burgueses. Esse terreno de luta não é um terreno vago: é um
terreno desde já circunscrito pela ide.ologia burguesa e pelos ele-
mentos ideológicos pequeno-burgueses. Prosseguindo na metáfora
militar, as conquistas e avanços da ideologia operária, em uma
formação capitalista, nesse terreno, para que tenham uma im-
portância decisiva, não são menos investidas constantemente por
esses elementos ideológicos pequeno-burgueses. Simplificando,
mesmo quando setores pequeno-burgueses adotam posições da
classe operária, eles o fazem com freqüência inve·stindo-se de
suas próprias práticas ideológicas. Mas isso se faz de forma desi-
gual pois, embora esse terreno seja um terreno vago, ele não é
um terreno uniforme, em razão dos fracionamentos/polarização
que atravessam a pequena-burguesia e·m sua determinação de
classe: o que não exclui, pois, que porções inteiras da pequena-
burguesia não somente adotem posições de classe da classe ope-
rária, mas, além disso, possam. colocar-se no próprio terreno
da ideologia operária. Encontra-·se aí um dos papéis das organi-
zações revolucionárias da classe operária.
316 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE Ho.JE

2. Mas tudo isso indica, por outro lado, que os elementos


ideológicos específicos da pequena-burguesia podern, também
eles, ter efeitos sobre a ideologia da classe operária,, e isso em
razão da determinação própria de classe da pequena-burguesia,
de forma particular, em relação aos efeitos _específicos da ideo-
logia burguesa. Está então, aí, o principal perigo que espreita
permanentemente a classe operária: ele pode· tomar a forma de
uma convergência amalgamada desses elementos e ela ideologia
operária, principalmente sob a configuração do sociali'smo peque-
no-burguês no seio da classe operária, mas sabe-se que ele havia
assumido igualmente, no passado, a forma do anarco-sindicalis-
mo e do sind.icalismo revolucionário.

Convém assim ter essas observações em vista nas análises que


se seguirão. De fato, elas dependem de pressupostos irnportantes:
as diversas ideologias e subconjuntos ideológicos só e·xis.tem cons-
titutivamente numa luta ideológica de classe, e devern ser prin-
cipalmente considerados não sob a forma de conjuntos concep~
tuais constitufdos, mas e·m sua materialização e·rp. práticas de
classe 2 • É a partir desses princípios que se deve considerar a
questão dos efeitos de uma sobre a outra. Não se trata de con-
juntos pré-constituídos que agiriam "em seguida" sobre os "outros"
como intermediários-reservas, segundo a imagem simplista de uma
série de elos ideológicos "veiculando" em direção aos outros suas
interações, en1 suma, de· uma cadeia de "influências". A própria
concepção de "veículos-reservas" ("de influências recíprocas") na
constituição do campo ideológico é fundamentalmente falsa: a
luta ideológica está presente como tal na constituição de toda
ideologia de classe, isto é, em seu próprio seio. Isso é singular-
mente o caso para o subconjunto ideológico pequeno-burguês, que
não é nem urr1a "reserva" nem uma correia de transmissão para
a "influência" da ideologia burguesa sobre a classe operária. Se ele
intervém nesses efeitos. é nisso que ele é o próprio lugar de uma
co--presença particular da ideologia burguesa, da ideologia operá-
ria e dos elem:entos ideológicos pequeno-burguese·s.

2 L. Althusser, "ldéologie et appareils idéologique& d'Etat", em La


Pensée, 1970. Encontra-se aí, como se sabe, o erro de base das diversas
"pesquisas sociollógicas" que teotam apreender a "consci · nci'l" das di-
versas classes sociais ou frações de classe a partir de "perguntas" e de
"'respostas" de seus agentes, e cujos e:~emplos abundam. Ve'· sobre esse
~nto as observações certas de D. Vidal, Es.w:ú sur l'idéologie, 1971.
IDEOLOGIA PEQUENOl""BURGUESA 317

II

Levando-se em conta assim a determinação de classe da nova


pequena-burguesia, encontram-se nela os seguintes traços ideoló-
gicos principais:
a) Um aspecto ideológico anticapitalista, mas que so inclina
fortemente em direção às ilusões ref ormistãs. A e·xploração dessa
nova pequena"'.'burguesia é principalmente vivida sob a forma do
salário, enquanto a estrutura do modo de produção capitalista
e o papel, na exploração, da propriedade, também da posse e dos
meios de produção, permanecem. com freqüência ocultos (salaria-
do não-produtivo). As reivindicações estão essencüdmente. ligadas
à questão das rendas, concentrando-se com freqüência sobre um-a
redistribuição de rendas pela via indireta de uma "justiça social"
e de uma política "igualitária" d.a fiscalidade, base constantemen-
te recorrente do socialismo pequeno-burguês. Se bem que hostis à
"grande riqueza", os agentes pequeno-burgueses estão, por outro
lado, freqüentemente ligados à manutenção de hierarquias sala-
riais, insistindo na necessidade de uma "racionalização" mais jus-
ta. Encontra-se aqui o medo permanente· da profotarização, medo
que se exprime em resistências no sentido de uma transformação
revolucionária da sociedade, em razão da insegurança vivida ao
nível dos salários, e sob a forma do fetichismo monetário. Isso,
acoplado ao próprio isolamento desses agentes na concorrência do
mercado de trabalho capitalista e, nas suas próprias condições de
trabalho, não desempenha para eles a socialização do processo
de trabalho (e então a solidariedade de classe), própria à classe
operária engajada diretamente na produção, o que dá lugar às
formas corporativistas particulares da luta sindical: esse isolamen-
to competitivo está na base de um processo ideológico complexo
que assume a configuração do individualismo pequeno-burguês.
b) Um aspecto de contestaç:ão das relações políticas e ideo-
lógicas às quais esses agentes estão submetidos, que se inclina
fortemente não em direção à subversão dessas relações, mas em
direção a seu remanejamento pela "participação". Reivindicações,
em relação ao capital, para assurnir uma parte maior de "respon-
sabilidade" nos "poderes de decisião" e para uma "requalificação",
em seu "justo valor", do seu trabalho intelectual: o que não vai
em geral até o questionamento da própria divisão trabalho inte-
lectual/trabalho manual nas sua$ relações com a classe operária.
Bem ao contrário, isso se exprime freqüentemente por reivindica.
318 As CLASSES Soc1A1s NO CAPITALISMO DE HOJE

çôes de uma "racionalização" da sociedade, que deixaria o "tra-


balho intelectual" se expandir plenamente sem os "entraves" do
lucro e, em suma, sob a forma de um "tecnocratismo de esquer-
da". Conhece-se principalmente a forma ambígua, para só citar
um exemplo, que assumem as reivindicações da "autogestão" em
certos conjuntos pequeno-burgueses (técnicos, por exemplo), rei-
vindicações que significam para eles tomar, sob uma forma nova,
o lugar da burguesia, enquanto elas recobrem, para a classe ope-
rária, o controle operário. Reivindicações que tomam então a
forma de uma fixação sobre as formas de "organização", de exi-
gências de "descentralização" do processo de decisão, de remane-
jamento do quadro "autoritário" do trabalho etc., mas sem se apro-
fundar. A luta antiautocrática que se· desenvolve aqui, sob a for-
ma de revoltas contra a burocratização e a parcelização do tra-
balho intelectual, está longe de atingir a dimensão e o conteúdo
da luta anti-hierárquica operária. Os agentes pequeno-burgueses.
são, por outro lado, fortemente ligados a uma hierarquia, certa-
mente "remanejada", ao mesmo tempo em suas relações internas
e em sua~ relações com a classe operária.
Inútil assinalar, finalmente, que esse· aspecto não é geral, nem
constante para o conjunto da nova pequena-burguesia. O aspecto
paralelo de uma submissão e interiorização dos "valores morais',.,
da ordem, da "disciplina", da "autoridade", da "hierarquia legí-
tima" da direção etc., pode, com freqüência, estar presente em
conjuntos submetidos à divisão social do trabalho que se assinalou,
e que, contestando suas condições de existência e oferecendo bases
de apoio apreciáveis a Governos socialdemocratas, fornecem ao
mesmo tempo uma base, também apreciável, à famosa maioria
silenciosa.
c) um aspecto ideológico de uma transf oqnação de sua con-
dição, ligada não à mudança revolucionária da sociedade, mas ao
mito da passarela. Te·merosa de cair na proletarização, seduzida
por ascender à burguesia, a nova pequena-burguesia aspira com
freqüência à "promoção", à "carreira", à "ascensão social", em·
suma, a se' tomar burguesia (ver os aspectos ideológicos do mi-
metismo burguês) pela passagem "individual", rumo ao alto, dos
"melhores" e dos "mais capazes": encontra-se ainda o inélividua-
lismo pequeno-burguês. Para essa nova pequena-burguesia, isso se
concentra em particular no aparelho e·scolar, dado o papel que
ele desempenha nesse sentido. Crença, portanto, na "cultura new-
tra" e no aparelho escolar como escala de passage·m e corredor
de circulação para promoção e ascensão dos "melhores" à con._
IDEOLOGIA PEQUENO-BURGUESA 31~

<lição burguesa, ou, em todo caso, a uma condição superior na


própria hierarquia do trabalho intelectual. Reivindicações, pois,
de uma "democratização" dos aparelhos, para que eles ofereçam·
uma "igualdade de oportunidades" aos "indivíduos" mais aptos
para participar da "renovação das elites", sem colocar em questão·
a própria estrutura do poder político: a concepção elitista da
sociedade, sob a forma da "me:ritocracia", está intimamente arti-·
culada às aspirações de justiça social da pequena-burguesia. Essa.
atitude não se limita apenas ao aparelho escolar: ela pode esten-·
der-se, em graus desiguais, segundo as formações sociais, ao con--
junto dos aparelhos de Estado (o que é por vezes o caso para üt
próprio exército) concebidos como escalas de promoção de seus
agentes subalternos e intermediários, freqüentemente saídos do,
seio da pequena-burguesia. Pode:-se. traduzir essa atitude da peque-·
na-burguesia dizendo que, para ela, não se quebram as "escadas'"
pelas quais ela imagina poder elevar-se.
d) Um aspecto ideológico desse "fetichismo do poder" de·
que falava Lênin, e que se refere desta vez à atitude com respei-
to ao poder político do Estado. Em virtude da situaç·ão dessa.
pequena-burguesia como classe intermediária, polarizada entre a'.
burguesia e a classe operária, em virtude também do isolamento
de seus agentes (individualismo pequeno-burguês), ela tem uma
forte tendência a considerar o Estado como uma força neutra em
si, cujo papel seria ope-rar uma arbitragem entre as classes sociais;
presentes. A dominação de classe que ela sofre pela via indireta.
do Estado, por parte da burguesia, é freqüentemente percebida
como uma deformação "técnica" do Estado, remanejável por urna
"democratização" que o tornaria conforme a ·sua Verdadeira na-
tureza: reivindicações fixadas na- "humanização" e na "racionali-
zação" da "administração" contra o "centralismo tecnocrático"·
do Estado etc., que não revelam a própria natureza do poder-
político.

Mas, além disso: é preciso levar em consideração, de um


lado, essa situação intermediária e o individualismo pequeno-bur-
guês, que condicionam a impossibilidade para a pequena-burgue-
sia de se organizar, a longo prazo, em um partido político próprio
e autônomo; por oútro lado:
a) a situação da pequena-burguesia em' relação ao trabalho
intelectual e o fato de que o próprio aparelho de Estado, consa-
320 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

grando a divisão trabalho intelectual/trabalho manual, esteja si-


tuado ao lado do trabalho intelectual;
b) o fato de a organização estatal apresentar a consagração
da hierarquia e autoridade burocratizada à qual está submetida
uma grande parte dos agentes pequeno-burgueses;
c) enfim, o papel dos aparelhos de Estado na distribuição-
qualificação dos agentes pequeno-burgueses.
Esses fatos det~rminam com freqüência uma atitude com-
plexa de identificação da pequena-burguesia com um Estado que
ela considera como sendo de direito seu Estado e seu representan-
te e organizador político legítimo. Sabe-se que isso foi expresso
durante muito tempo, na França, pelo jacobinismo republicano de
esquerda, que está longe d.e ter desaparecido. O papel do Estado
como aparelho de dominação de classe foi vivido como "perver-
são" de um Estado onde seria necessário "restaurar a autoridade",
"democratizando-o", isto é:, abrindo-o para a pequena-burguesia,
fazendo-o respeitar "o inte.resse geral", ficando entendido que o
"interesse ge.ral" corresponde ao seu como classe inte-rmediária, me-
diadora entre a burguesia e o proletariado: é aqui que· se encon-
tra uma tendência à concepção do "Estado corporativo", forma
degradante do famoso socialismo de Estado. Seria então preciso
acrescentar que esse aspe·cto ideológico é particularmente surpre-
endente nos escalões pequeno-burgueses de funcionários, eles pró-
prios submetidos diretamente a essa ideologia interna que marca
o Estndo como aparel.ho: o aspecto ideológico do Estado neutro e
representante do interesse geral desempenha, mais particularmen-
te aqui, seu papel enquanto elemento essencial da ideologia inter-
na dos aparelhos de Estado.
Sabe-se que esses aspectos ideológicos assumem freqüente-
mente a forma de reivindicações de um "socialismo" pela via in-
direta do "Estado do bem-estar" (o "Estado social"), regulador
e corretor das "desigualdades sociais". Mas sabe-se também que
elas podem articular-se, paralelamente, a certos aspectos do "Es-
tado forte", sob a forma de "cesarismo social": isso foi expresso,
no passado, .na relação específica entre os diversos fascismos e
bonapartismos e nos grandes setores dessa nova pequena-bur-
guesia.
e) Mas esses aspectos se conjugam também às formas parti-
culares da revolta desses agentes pequeno-burgue·ses contra suas
condições de existência, formas essas também ligadas a suas de-
terminações de classe: a questão é vasta e junta-se ao problema
IDEOLOGIA PEQUENO-BURGUESA 321

das pos1çoes de classe: indicarei somente que as explosões vio-


lentas de revolta assumem, por vezes, com eles, formas de "jac-
queries * pequeno-burguesas", ligadas ao individualismo pequeno-
burguês: culto da violência con10 tal, aliada ao desprezo da
questão da organização; reações globalmente antiestatais, desta-
cando diretam.ente as formas do "anarquismo pequeno-burguês"
etc. Revoltas características de situações onde esses agentes, pri-
vados de projeto político autônon10 a longo prazo e não tendo
incorporado as posições da classe operária, agem de forma sime-
tricamente oposta às atitudes que os determinavam anteriormen-
te, através, portanto, de uma revolta ainda determinada, por opo-
sição, pela ideologia burguesa. Encontra-se aí, como se sabe, o
centro do "ultra-esquerdismo pequeno-burguês".

III
-,
Voltemos agora à pequena-burguesia tradicional. Esta, se bem
que ocupando um lugar diferente daquele da nova pequena-bur-
guesia nas relações econômicas., é no entanto caracterizada, ao
nível ideológico, e apesar de certas diferenças, por traços análo-
gos àquela. Isso porque as relações econômicas que são próprias
ao lugar da pequena-burguesia tradicional a situam, também, e
por traços específicos, numa polarização em relação à burguesia
e à classe operária. Essa comunildade de efeitos ideológicos se
traduz em. analogias das posições desses dois conjuntos, afetados
pela polarização de classe.
Podemos mesmo sustentar que esses dois conjuntos dependem
da mesma classe, a pequena-burguesia. Mas, com a condição de
esclarecer imediatamente que a pequena-burguesia não é uma
classe como as duas classes fundamentais da formação social
capitalista - a burguesia e o proletariado -, não apresen-
tando principalmente a unidade que caracteriza aquelas. A pe-
quena-burguesia tradicional (pequenos comerciantes, artesãos)
não é assimilável à nova pequena'."burguesia da mesma forma, por
exemplo, que o capital bancário o é ao capital industrial, no caso
da burguesia. As heterogeneidades nas relações econômicas dos
conjuntos pequeno-burgueses perrnanecem. Se podemos conside-
rar a pequena-burguesia tradicional e a nova pequena-burguesia

* "Jacaueries": nome dado a revoltas de cnmnoneses (os Jacques).


A mais céiebre eclodiu em 1358, na França. (N. do T.)
322 As CLASSES Soc1A1s No CAPITALISMO DE Ho~rn

como dependentes de uma mesma classe, isso signi:f ica que as


classes sociais só podem ser determinadas na luta das classes, e
que esses conjuntos estão polarizados precisamente em relação.
à burguesia e~ ao proletariado 3 •
Esses efe:itos ideológicos, no caso da pequena-burguesia tra-
dicional, que dependem essencialmente da forma de produção co-·
mercial simples, foram amplamente estudados por Marx, Engels
e Lênin. Eles se prendem neste caso ao fato de que, no níveL
econômico, a pequena produção e a pequena propriedade: 1)
distinguem-se ao mesmo tempo da burguesia (elas não fazem
parte do capital e são progressivamente esmagadas por ele) e da
classe operária (seus agentes são proprietários dos meios de pro-·
dução e dos bens de comércio e, se bem_que trabalhadores diretos,.
não cumprem, o que é importante para o artesanato, o trabalho·
produtivo capitalista - mais-valia); 2) aproximando-se ªº'
mesmo tempo da burguesia (propriedade à qual se ligam feroz-
men te) e da classe operária (eles próprios são os trabalhadores.
diretos) 4 • Essa polarização tem CO:ql freqüência, ao nível ideoló--
g1co, os seguintes efeitos:
a) Um aspecto ideológico anticapitalista de "status quo":
contra a "grande riqueza" e as "grandes fortunas", 1nas temor,.

3 É principalmente a tese que· eu havia defendido e tentado de--


monstrar em Fascisme et Dictature, embora provavelmente de forma muito,
abrupta, pois da não fazia parte do objeto essencial de minhas aná-
lises. Ela me parece, no entanto, fundamentalmente certa. Assinalo que~
depois, a mesma tese foi defendida, embora indiretamente, por Baudelot
e Establet: "A pequena-burguesia... é composta de camadas sociais he-
terogêneas herdadas de modos de produção anteriores. . . e de camadas
novas produzidas pelo desenvolvimento do modo de produção capita-
lista. . . A unidade dessas diferentes camadas ao nível da instância eco-
nômica é feita de negações (nem burgueses, nem proletários); essa uni-
dade não é somente aquela de um resíduo que a teoria teria dificuldade
em integrar: ela repousa sobre as contradições objetivas nas condições
materiais de ex:istência de cada pequeno-burguês. O cimento de sua uni-
dade se situa no nível ideológico e se exprime em formaçêíes constan-
temente renovadas, mas idênticas em sua estrutura, entre a ideologia
burguesa e a ideologia proletária". (L'Ecole capitaliste en France, p. 169,
nota 28.)
4 Observemos aqui, ainda, incidentalmente, que o papel da divisão
trabalho intelectual/trabalho manual é secundário para a determi-
nação de clas:se desses agentes, pois, prec;samente, dependendo da
forma de produção comercial simples, não estão diretamente submeti-
dos, em suas refações com a burguesia e com a classe operária, a essa
divisão sob sua forma· esfH!cificamente capitalista (caso patente para o
artesão).
IDEOLOGIA PEQUENO-BURGUESA 323

:muitas vezes, de uma transformação revolucionária da sociedade,


pois esse conjunto prende-se ferozmente à sua (pequena) proprie-
dade e teme sua proletarização. Reivindicações fortes contra os
monopólios, sendo essa pequena-burguesia progressivamente es-
magada e eliminada pelo capitalismo monopolista, mas com fre-
qüência sob a forma de uma regressão para a "igualdade de opor-
tunidade" de uma "justa concorrência", tais como aque1as que
a fantasmagoria dessa pequena-burguesia se representa em seu
passado no estádio do capitalismo competitivo. Essa pequena-bur-
guesia deseja freqüentemente mudanças sem que o sistema mude:
nisso se revela também a aspiração a uma "participação" na "dis-
tribuição" do poder político, sob a forma de um Estado corpo-
rativo, e nas resistências características quanto à transformação
radical desse poder.
b) Um aspecto ideológico fortemente ligado não à transfor-
mação radical da sociedade mas ao mito da passarela: este se
articula no isolamento econômico desses agentes pequeno-burgue-
ses no domínio da concorrência, o que dá também lugar ao indi-
vidualismo pequeno-burguês. Medo de cair na proletarização,
atração em ascender à burguesia: .esses agentes pequeno-burgue-
ses também aspiram a se tornar burgueses, ascendendo "indivi-
dualmente" (tornando-se pequenos empresários) os "melhores" e
os Hmais capaze·s". Esse aspecto toma com freqüência, aqui tam-
bém, formas elitistas, de uma renovação das "elites", de uma
substituição da burguesia "que não cumpre o seu papel" pela
pequena-burguesfa, e· isso indiretamente por uma "democratiza-
.ção" da sociedade capitalista.
c) Um aspecto ideológico do fetichismo do poder. Por causa
de seu isolamento econômico (individualismo pequeno-burguês),
e de sua distinção da burguesia e da classe operária, uma crença
no Estado neutro acima das classes: essa pequena-burguesia es-
pera que esse Estado, devidamente "democratizado", traga-lhe
por "cima" a influência e o poder, em suma, suste· seu declínio,
o que não exclui as pressões virulentas contra o Estado. Contu-
do: o isolamento pequeno-burguês, conjugado à incapacidade ge-
ral dessa pequena-burguesia de se organizar em um partido pró~
prio e autônomo, o fato de que ela considere também os apare-
lhos de Estado (a administração, o exército, a polícia etc.) como
passarelas de ascensão, dão freqüentemente lugar a uma idolatria
de status. Essa pequena-burguesia também se· identifica nesses
casos com o Estado, cuja neutralidade reuniria a sua, conceben-
324 As CLASSES SocIAIS NO CAPITALISMO DE HoJE

do-se como classe neutra entre a burguesia e o proletariado, ba-


luarte portanto de um Estado que seria "seu" Estado: ela aspira
sempre à "arbitragem" social. Esse Estado aparece então como
o "organizador" político direto dessa pequena-burguesia, através
indiretamente dos ramos e aparelhos. Essa pequena-burguesia, que
foi freqüentemente um dos baluartes da ordem "democrático-re-
publicana" e também uma peça essencial de um "jacobinismo" de
esquerda, e mesmo de um socialismo pequeno-burguês, tem tam-
bém trazido üm apoio de massa aos diversos fascismos e bona-
partismos.
d) Essa atitude complexa da pequena-burguesia tradicional
em relação ao Estado prende~se aliás igualmente à ideologia que
lhe é inculcada pelos aparelhos ideológicos de Estado: o papel
principal nesse sentido retorna aqui não tanto ao aparelho esco-
lar (trabalho intelectual), mas a este aparelho específico que é
a família: o que se prende ao papel da exploração familiar na
forma de existência econômica desses agentes. Encontra-se aí,
para essa pequena-burguesia, um dos loc~is mais seguros de in-
culcação da ideologia burguesa, em razão do papel decisivo de
resistência a uma transformação radical das relações sociais que
a família desempenha, mas que é particularmente eficaz para
esses agentes, que reúnem então a nova pequena-burguesia no
binômio família-escola.
e) Enfim, um último elemento, que é bastante conhecido
e sobre o qual não insistire·mos: as formas de revolta violenta
que, em conjunturas determinadas, caracterizam essa pequena-
burguesia são, privada que está de uma posição política autôno-
ma de classe a longo prazo, e quando não adotou posições de
classe operária, freqüentemente aquelas das "jacqueries pequeno-
burguesas", marcadas pelo "anarquismo" próprio do individua-
lismo pequeno-burguês.

IV

Essa comunidade de efeitos ideológicos para o conjunto da


pequena-burguesia se traduz no plano das posições de classe.
Com efeito, a pequena-burguesia não tem posição política de
classe própria e autônoma a longo prazo. Isso significa, simples-
mente, que só há, em uma formação social capitalista, o cami-
nho burguês e o caminho proletário (o caminho socialista): não
IDEOLOGIA PEQUENO-BURGUESA 325

existe "terceiro caminho", ao contrário das diversas concepções


da "classe média". As duas classes fµndamentais são a burguesia
e a classe operária: não pode existir, principalmente, "modo de
produção pequeno-burguês". O que faz, entre outras coisas, com
que a pequena-burguesia não tenha sido jamais, em lugar ne-
nhum, a classe dominante politicamente. O que por vezes se
apre-senta é:
J) que ela tenha, em conjunturas e regimes determinados,
detido osimples lugar de classe reinante, recobrindo a domina-
ção política e a hegemonia da burguesia. Foi principalmente o
caso para o primeiro período dos fascismos, mas também, ainda
atualmente, em certas ditaduras militares e bonapartismos de paí-
ses dependentes, seja sob a forma "progressista", recobrindo então
a dominação política de certos setores da burguesia com veleida-
des "nacionais" (Peru, por exemplo, ou, no passado, o populismo
peronista); seja sob a forma "reacionária", ocultando então a
dominação política da burguesia compradora. Mas o caso ·Se apre-
sentou também, sob outras formas, nos países europeus: mencio-
naremos somente a forma dos primórdios da Terceira República
na França ou, ainda atualmente, certos regimes socialdemo-
cratas;
2) que ela tenha conseguido, servindo-se indiretamente de
certos regimes e crises particulares, desalojar uma grande parte
da antiga burguesia e tomar, por processos econômico-políticos
complexos, seu lugar (caso do Egito de Nasser, por exemplo),
ou mesmo substituir, sob a forma principalmente de burguesia
de Estado, a burguesia colonialista estrangeira (é o caso para
certos países africanos): mas, nesses casos, ela é classe politica-
mente dominante enquanto burguesia precisamente (burguesia
cujo valor ela ocupou), e mais que tudo enquanto pequena-bur-
guesia.

Retornemos ao nosso problema: o fato de ela não ter posi-


ção política de classe autônoma a longo prazo significa que as
posições de classe da pequena-burguesia só podem situar-se na
relação de força burguesia/ classe operária, e reunir por esse meio
(atuar a favor ou contra) quer as. posições de classe da burgue-
sia, quer as posições de classe da classe operária.
Certamente isso se faz de forma complexa: primeiramente·,
porque a pequena-burguesia pode, entretanto, intervir, em con-
326 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

junturas determinadas, e a curto prazo, na cena política como


autêntica força social, com um peso próprio e de uma forma
relativamente autônoma: elemento essencial que terr1 freqüente-
mente escapado à análise marxista e à prática dos partidos co-
munistas no tempo da Terceira Internacional. Mas, mesmo nesses
.casos bastante raros (pois implicam o fato excepcional de uma
,organização da pequena-burguesia em um partido p'equeno-bur-
guês específico) essa posição conjuntural relativaménte autôno-
ma atua, ela também, situada na perspectiva histórica num prazo .
mais longo, seja para a burguesia, seja para a classe operária.
Essa complexidade é também devida ao fato de que, freqüente-
mente, quando as posições pequeno-burguesas reúnem as posições
de uma ou de outra classe fundamental, isso se realiza de forma
indireta: é antes de tudo o caso quando essas posições reúnem
a posição de classe burgue·sa. O processo só toma raramente a
forma de uma aliança direta, explícita e declarada burguesia-pe-
·quena-burguesia, porque tal aliança é de fato extremamente cón-
traditória e explosiva, realizando-se pelo artifício de um apoio
particular oferecid~ pela pequena-burguesia ao Estado, que ela
considera como "seu" Estado. Enfim, é igualmente o caso, sob
·uma forma diferente, quando essas posições re-únem a posição de
·classe proletária: elas o fazem continuando a ser marcadas pelos
.aspectos ideológicos pequeno-burgueses.
Essa polarização da posição de classe da pequena-burguesia,
·devida à sua polarização intermediária), se traduz pt~lo fato co-
nhecido de sua instabilidade política, e de sua "oscilação" ou "ba-
.lanceamento" de uma posição de classe burguesa numa posição
,de classe· proletária. Ess·es conjuntos pequeno-burgrieses po.dem
com freqüência "oscilar", segundo as conjunturas, e por vezes_
·em _períodos de tempo muito curtos, de uma posiçãto de class-e
proletária a uma posição de classe burguesa, e vice-·versa (lem-
'bramos aqui o processo recente, na França, em maio e julho de
1968). Estando bem entendido que este termo "oscilação" não
·deve ser tomado no .sentido de um traço de natureza ou de essên-
cia da pequena-burguesia, mas re·monta à sua situa1ção na luta
:das classes. Essa oscilação não é uma queda livre, n1as depende
·dos limites colocados pelos estádios e fases do capitalismo e das
·conjunturas que os marcam.

Ora, essa polarização das posições de classe atravessa, de lado


a lado, e seguindo linhas complexas, a- pequena-burguesia no seu
conjunto, ao mesmo tempo a pequena-burguesia trcuficional e a
IDEOLOGIA PEQUENO-BURGUESA 32í1

nnva pequena-burguesia. O que se traduz pelo fato de que, na


esmagadora maioria das conjunturas de uma formação capitalis-
ta, em particular na sua fase atual, existem "partes" da pequena-
burguesia que adotam a posição de classe burguesa, e "partes"
que adotam a posição de classe proletária.
O que remonta assim diretamente a uma outra série de ques-
tõe·s que se rerere em primeiro lugar, dada sua importância atual,
à nova pequena-burguesia:
J) Em que medida sua polarização de posição de classe para
a classe operária encobre transformações atuais que afetam suas
condições de existência?
2) Em que medida a polarização diferencial das posições
de classe no próprio seio da nova pequena-burguesia ("partes"
desta que adotam posições de classe burguesa, e outras, pos,ições
de classe proletária) destaca diferenciações em frações de classe?
E, em tal caso, como delimitar essas frações?
3) Qual é a situação atual, nesse sentido, da pequena-bur-
guesia tradicional?
IX.
A SITUAÇÃO ATUAL
E A QUESTÃO DAS FR~ÇõES DE CLASSE
DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA

1. As Transformações Atuais

Tratarei, pois, primeiramente do problema que se refere à


nova pequena-burguesia. Cons·iderando que se encontra aí de fato
o problema principal, não prolongarei a famosa questão do au-
mento atual dessa pequena-burguesia em relação à classe operária
nos países capitalistas desenvolvidos, contentando-me apenas com
algumas observações muito sucintas.
·As diversas concepções da "terciarização" do mundo, que já
haviam aparecido entre as duas guerras e que se multiplicaram
depois de 1945, fundamentavam-se de fato principalmente em:
a) uma concepção tecnicista dos "progressos tecnológicos" (au-
tomação etc.), supondo uma "revolução técnica e científica" que·,
desenvolvida independentemente das relações de produção, impli-
caria, como tal e por si, uma diminuição radical da classe ope-
rária; b) uma prodigiosa manipulação das estatísticas, cujo exem-
plo ideológico mais patente é aquele da distinção entre setores
"primário", "secundário" e "terciário", em face da qual mesmo
as "categorias socioprofissionais" do INSEE aparecem como um
exemplo de rigor, o que não é pouco; c) o caso dos Estados Uni-
dos como exemplo prefigurado do caminho unívoco que as outras
metrópoles imperialistas seguiriam inelutavelmente, principal-
mente a Europa, mas também os "países subdesenvolvidos".
A falácia dos dois primeiros pre·ssupostos é muito evidente
para aí insistirmos. Mas, aproveito a ocasião oferecida pelo últi-
FRAÇÕES DE CLASSE DA N"ovA PEQUENA-BURGUESIA 329

mo ponto para dizer primeiramente que, na fase atual da inter-


nacionalização das relações capitalistas, o aumento absoluto e
relativo da classe operária deve ser em primeiro lugar apreendido
no conjunto da corrente imperialista, e não unicamente na zona
das metrópoles, nesta ou naquela. metrópole. E, indo mais além,
é claro que a situação dos Estados Unidos sobre esse @.Ssunto não
pode·ria ser considerada como ex1emplar para a Europa. A dimi-
nuição importante, absoluta e re:lativa, da classe operária ame-
ricana em relação ao aumento dos assalariados não-produtivos nos
Estados Unidos, expressa especialmente depois da Segunda Guer-
ra Mundial, é devida essencialmente, ao mesmo tempo, à impor-
tância da exportação do capital americano e ao fato de que os
Estados Unidos tornaram-se de alguma forma o centro adminis-
trativo mundial (caminho que nã~o poderia prefigurar aquele da
Europa). Trarei aqui apenas um argumento a contrario: a situa-
ção da Grã-Bretanha, onde o núme·ro de assalariados nãci-produ-
tivos, que acusara um aumento considerável, sofreu uma· regres-
são característica a partir do m01mento em que esse país cessou
de desempenhar o papel de uma força imperialista de primeira
ordem.
Isso não significa que o aumento rápido dos assalariados não-
produtivos permaneça um fato n~al e importante nos principais
países capitalistas desenvolvidos. :Não me arriscando a adiantar
cifras precisas (o que demandaria um trabalho rigoroso e con-
siderável que ao meu ver não foi ainda bem tratado 1 ), direi o
seguinte para a França: a classe operária, que está em aumento
absoluto e relativo, cresceu, de 1954 a 1968, cerca de +
5-6o/o
(situando-se atualmente entre 41 e 420/o da população ativa),
tendo os assalariados não-produtivos apresentado um ritmo de
aumento mais importante, cerca de +
10%. Ainda que seja ne-
cessário ter sempre em vista as cifras absolutas às quais se apli-
cam tais proporções: o + 5-6% da classe operária representa
uma cifra absoluta de indivíduos consideravelmente supenor ao
+ 10% dos assalariados não-produtivos.

Seja o que for, as principais :razões desse fenômeno, efetua-


da a "abstração" das particularidade·s de cada formação social,

1 Assinalo aqui os artigos muito dnteressantes, tendo-se em conta


a~ reservas feita~ com respeito às cu.-icepções do Capital.isme monopoliste
d Etat, de CI. Qu1i..-i e Ch. Lucas em Economie el Politique, junho de 1973.
330 As CLA~ES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE Hon~

são devidas às características do capitalismo monopolista, prmc1-


palmente em sua fase atual:
a) o deslocamento da dominante, na exploração da classe
operária, para a exploração intensiva do trabalho (que inclui a
questão da produtivic!ade do trabalho e dai transformaçõe·s tecno-
lógicas), e que conota uma diminuição da parte proporcional do
trabalho vivo em relação ao trabalho morto;
b) a extensão do salariado pela submissão (subsunção) radi-
cal da força de trabalho dos setores não-produtiva.. ao capital mo-
nopolista, acoplada aos efeitos de dissolução atual, pelo capitalis-
mo monopolista, das outras formas de produção (diminuição dos
diversos "independentes");
c) o aumento considerável, mas subordinado, das atividades
que possuem característica de comercialização dos produtos e de
circulação das mercadorias (diversificação dos produtos acaba-
dos), mas também de realização do capital (capital-dinheiro, ban-
cos, seguros etc.) ;
d) o aumento, igualmente considerável, do número dos
funcionários de Estado (inclusive serviços públicos), que entra
em grande parte no aumento ge·ral do salariado não-produtivo,
e que se prende à~ funções de intervenção acrescidas pelo Estado
próprias ao capitalismo monopolista e principalmente e·m sua fase
atual.
Mas assinalo que, uma vez afastadas as diversas ~deologias
da "terciarização do mundo", esse aspecto do problema não é
o mais importante: de um lado, porque o papel hegemônico da
classe operária não poderia ser apreciado em uma base estatística
de cifras: de outro lado, porque a questão essencial, hoje mais
do que nunca, é aquela das alianças da classe operária.

II

Volto assim à questão das frações de classe da nova peque-


na-burguesia. De fato, as coordenadas comuns, e seus efeitos
ideológicos, da determinação de classe da nova pequena-burguesia
demonstram iimplesmente (mas o que já é muito importante)
que esta, e seus conjuntos, se distinguem da classe operária: eles
podem assim, de um lado, ser sempre polarizados para a burgue-
sia e, de outro lado, mesmo quando são polarizados i>ara a classe
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 331

operária, permanecem freqüentemente marcados, em suas posi-


ções, pelos efeitos ideológicos próprios à sua cla~se. _
Mas já havíamos observado que essa determ1naçao de classe
na divisão social do trabalho, seja na ordem da exploração, na
ordem da divisão trabalho intelectual/trabalho manual, na ordem
da burocratização de seu processo de trabalho (reJações ideoló-
gico-políticas), e na ordem de reprodução dos agentes. se be·m
que delimitando um lugar comum para o conjunto da nova pe-
quena-burguesia, não o marcava, de um lado, no seu conjunto,
exatamente da mesma forma, e· introdU1Zia, por outro, ao mesmo
tempo, delimitações no seio da nova pequena-burguesia.
É sobre e·ssas delimitações que vamos agora insistir, intro-
duzindo alguns elementos particulares que se referem à situação
atual. Mas não convém perder de vista:
a) que, se insistimos agora sobre esses elementos, é para
sublinhar precisamente que não mudam em nada quanto ao per-
tencimento de classe dos conjuntos da nova pequena-burguesia,
permanecendo, estes, pequeno-burgueses (o que é essencial para
a questão das alianças);
b) que esses elementos não surgem pela primeira vez na
fase atual do capitalismo monopolista, sendo somente a acentua-
ção de tendências já em realização durante o período compreen-
dido entre as duas guerras, aquele da fase de consolidação do
capitalismo monopolista: o que é uma resposta indireta aos que
sustentam que os elementos "atuais" conduziriam inelutavelmen-
te a transformações automáticas das posições de classe desses
agentes em relação a posições de classe "anteriores".

Isso não significa que essas transformações atuais sejam


muito importantes: elas se articulam às delimitações traçadas no
seio da nova pequena-burguesia por sua determinação de classe,
e acusam essas delimitações. Essas delimitações já esboçam os
contornos de frações da nova pequena-burguesia, apresentando
algumas condições objetivas, atualmente nítidas, para a adoção
de posições de classe proletárias. É de fato a recuperação parcial
dessas delimitações desdobradas que marca as condições objetivas
particulares de uma aliança dessas frações com a classe· operá-
ria: .essas transformações, no sentido principalmente de uma "de-
gradação das condições de vida" dessa pequena-burguesia~ con-
ce.ntram-se precisamente, e não por acaso, em certas frações desta
última, já referenciadas em sua determinação estrutural de classe.
332 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Esse desdobramento indica precisamente que não se trata, nessas


formações atuais, nem de ele1nentos conjunturais, nem de ele-
mentos que marcam indistintamente, como se sustenta com fre-
qüência, o conjunto da nova pequena-burguesia. Se essas trans-
formações não significam assin1 a polarização objetiva do conjun-
to da nova pequena-burguesia para a classe operária, eles só f a-
zem reforçar mais ainda, visto que se concentram maciçamente
sobre elas, a polarização de certas frações dessa pequena-burguesia.
Essas transformações se traduzem assim por formas diferen-
ciais do subconjunto ideológico pequeno-burguês, fundamental-
mente comum ao çonjunto da pequena-burguesia, nessas frações.
Com efeito, a articulação da ideologia burguesa e da ideologia
proletária aos elementos ideológicos pequeno-burgueses não se
manifesta da mesma forma no conjunto da nova pequena-burgue-
sia: as transformações atuais reforçam os elementos proletários
que, já pelo fato de sua determinação estrutural de classe·, são
mais fortes nessas frações.
Insistir, pois, nesse fracionamento é duplamente importante.
Mencionaremos somente as análises do PCF no contexto geral do
capital.ismo monopolista ·de Estado 2 • Com efeito, essas análises,
além do que já foi dito, não introduzem praticamente nenhuma
diferenciação, nesse sentido, no seio das famosas "camadas mé-
dias assalariadas". A dife·renc:iação dessas camadas entre si está
baseada em critérios empíricos (comércio, serviços, função pú-
blica etc.), e as delimitações introduzidas pela polarização obje-
tiva no próprio seio da nova pequena-burguesia são quase total-
mente ausentes. Supõe-se que o conjunto dessas camadas sejam,
de seus vértices até seus escallões subalternos, igualmente atingi-
dos, e da mesma forma, pela polarização objetiva do lado da
classe operária, do engenheiro até a vendedora de grandes orga-
nizações comerciais, do professor titular de universidade ao pro-
fessor primário eventual, do executivo ao simples empregado
(camadas médias == camadas antimonopolistas). Análises que
têm efeitos inversos àqueles que assinalamos até aqui: não situan-
do a diferença de classe entre a nova pequena-burguesia e a classe
operária, deixando entender que o conjunto dessas "camadas mé-
dias" errantes "caem" do lado da classe operária, somos forço•
samen~e levados a subestimar~, ao mesmo tempo, as delimitações
que aí se intercalam, e a perder então, procurando a maior das
2 Os fatos são extremamente claros no Traité já mencionado, t. 1,
po. 226-51.
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 333

alianças, as possibilidades reais de aliança nova entre a classe


operária e certas frações dessa pequena-burguesia.

Entretanto, insistir sobre esse fracionamento da nova peque-


na-burguesia é também importante por uma outra razão. Sabe-se
que a própria classe operária não constitui um conjunto "homo-
gêneo", e que diferenciações com freqüência importantes existem,
para só citar um exemplo característico, entre os operários qua-
lificados franceses e os os imigrados. Portanto, certas condições
de existência de certas frações pequeno-burguesas se degradam em
relação àquelas de certas camadas operárias. Mas isso não de·ve
disfarçar o fato de que entre uma vendedora de grande loja e um
operário qualificado existe uma diferença decisiva, se bem que
este possa, sob certos aspectos (salário principalmente), ser con-
siderado como "privilegiado" em relação àquela: uma diferença
de classe, um sendo operário e a outra pequeno-burguesa, o que
tem efeitos consideráveis sobre as possibilidades de adoção efeti-
va de posições de classe proletárias. E, se insisto, é para mostrar
os erros de toda uma série de concepções atuais de esquerda que,
por um certo emprego inteiramente idealista do termo "povo" ou
''massas populares", ocultam as delimitações de classe, e segun-
do as quais certos agentes pequeno-bur.sueses "proletarizados"
apresentariam atualmente mais possibilidàdes "revolucionárias"
do que certos agentes operários, considerados como pertencendo
globalmente à aristocracia operária (o que não é pertinente, não
sendo a aristocracia operária determinada pelos únicos critérios:
econômicos da importância dos salários etc.: se fosse o caso, os
trabalhadores da Lip deveriam ser considerados como fazendo
parte, por excelência, da "aristocracia operária"!).

III

As mais importantes transformações atuais no setor do tra-


balho assalariado não-produtivo são: ·

1 . A feminização pronunciada do trabalho assa/,ariado não-


produtivo, ligada a vários fatores, entre os quais o aumento con-
siderável dos assalariados não-produtivos e a entrada maciça das
mulheres na "vida ativa" submetida à exploração do trabalho ca-
pitalista. Na França, de 1946 a 1968, a percentagem de mulheres
permaneceu quase constante na classe operária, enquanto aumen-
334 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

tou cerca de 400/o no setor dito "terciário". Dada a imprecisão


prodigiosa desse setor "terciário", podemos levar a proporção a
dimensões mais certas referindo-nos às categorias socioprofissio-
nais, assinalando que em 1954, em 1 . 000 mulheres ativas, 486 de-
pendiam de uma categoria do salariado não-produtivo, para 563
em 1962. Feitas todas as correções, e considerando desta vez o
conjunto dos ativos (homens e mulheres inclusive), esse fenôme-
no aparece sob uma dimensão mais modesta: entretanto, estamos
diante de· uma tendência muito clara 3 •
Mas isso não foi feito, nem está em vias de se fazer, de ma-
neira uniforme. Essa penetração das mulheres teve lugar, e isso
continua sendo verdade, em graus desiguais, para o conjunto dos
países capitalistas, nos empreg9s dos assalariados não-produtivos
que são os menos qualificados (os "empregados" de comércio, de
escritório, de serviços, enquanto a proporção das mulheres entre
os "executivos médios" pern1anece, aproximadamente, pratica-
mente estável), situando-se nc>s lugares relativamente subalternos
nas relações hierárquicas de autoridade (e isso, em graus ainda
desiguais, no conjunto dos ramos de atividade dos assalariados.
não-produtivos), e enfim são os menos pagos na ordem da hierar-
quia salarial. Se não é diretamente· a penetração das mulheres
nesse trabalho que é a causa primeira, como o sustentam os teó-
ricos do "prestígio" e do "estatuto" social, de uma desqualifica-
ção social do trabalho intelectual, de uma burocratizaçã_o desse
trabalho e da diminuição atual das diferenças relativas dos salá-
rios desses trabalhadores em relação àqueles da classe operária,.
não é menos verdade que: a) são as mulheres que· são as suas
principais vítimas, e isso. naturalmente, não se -dá por acaso;
b) que a penetração maciça das mulheres nesses setore·s tem acen-
tuado consideravelmente, por sua vez, essas tendências, em virtude
da exploração, dominação e opressão particulares que caracteri-
zam o trabalho feminino como tal, e que somente são a expressão
de uma divisão sexual do trabalho bem mais ampla.
Não somente as mulheres são as principais vítimas da repro-
dução da divisão social do trabalho no próprio seio do trabalho
assalariado não-produtivo, mas isso se soma, e·m seu caso, às di-
versas formas de repressão sexual em seu próprio trabalho, nas·
relações de exploração e de dominação político-ideológicas. Ele-
mento que de·sempenha um papel próprio~ bastando apenas men-

3 Fontes, Recenseamentos da população do INSEE de 1954, 1962 e-


1968. Ver também R. Leparce, "Capitalisme et patriarcat", em Critiques
de l'économie politique, n.os 11-12, pp. 154-59.
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 335

cionar o fenômeno, análogo, do racismo de que são vítimas os


trabalhadores imigrados.
Mas a questão dessa feminização maciça do salariado não-
produtivo só pode ser tratada, em toda a comp~~xidade ~e .seus:
efeitos, com relação à estrutura do aparelho fam1har, e pnnc1pal-
mente com relação à classe, mas também à fração de class~, de
que dependem os maridos das mulheres. que pertencem a esta o•
àquela fração da nova pequena-burguesia. Conhece-se por exem-
plo a importância negativa que pode assumir, para as lutas das.
mulheres nesses setores, o fato de seus salários poderem ser con-
siderados, no aparelho familiar, como salários de ajuda do "casal".
Seja o que for, esse elemento, situado no contexto da emer-
gência das lutas das mulheres, terá certamente repercussões con-
sideráveis em futuro próximo: exemplos como aqueles, recentes,
na França. das greves das Nouvelles Galeries em Thionville, dos
Centros de cheques postais e da Segurança Social, são sinais evi-
dentes disso.

2. A relação que se estabelece atualmente entre os salários


dos trabal.hadores produtivos {as salários operários) e os salários
dos trabalhadores não-produtivos. Isso é geralmente entendido por
numerosos autores como tendência para a redução dos afastamen-
tos entre os salários "médios" operários e os salários "médios" do
tereiário, e como perda dos "privilégios salariais';, em relação à
classe operária, do conjunto do "terciário". Mas sabe-se de forma
pertinente que essas comparações entre os famosos "salários mé-
dios" não querem dizer grande coisa.
Ce·rtamente, trata-se aí de uma tendência geral para a redu-
ção dos afastamentos entre salários do trabalho não-produtivo e
aqueles do trabalho produtivo no desen~olvime~o ampliado do
capitalismo, e para a baixa dos salários do trabalho não-produti-·
vo, sobre a qual Marx já chamara a atenção, em particular para
o setor da circulação (mas suas observações podem ser generali-·
zadas): "O trabalhador comercial propriamente dito pertence à
categoria dos assalariados mais bem pagos, cujo salário médio se
encontra acima do trabalho médio. Entreta~to, com o progresso·
do modo de produção capitalista, seu salário tende a abaixar mes-
mo em relação ao trabalho médio. Isso se deve primeiramente à
divisão do trabalho no interior do escritório. . . Em seguida, seu
salário tende a abaixar pelo fato de que a formação profissional,
os conhecimentos comerciais e lingüísticos etc. se difundem de
forma sempre mais rápida, mais fácil, mais geral, em melhor
336 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

conta. Isso aumenta a afluência e, conseqüente·mente, a concor-


rência, desvalorizando. . . à medida que a produção capitalista se
desenvolve, a força de trabalho desses empregados de comércio 4 ."
Poderíamos acrescentar outros fatores que acentuam essa tendên-
cia, prendendo-se às formas~ atuais de extensão da exploração do
capitalismo monopolista, às formas atuais de distribuição da mais-
valia entre as diversas fra~;ões do capital e da perequação das
taxas de lucro etc.

Mas essa tendência geral, levando-se em conta também fato-


res políticos que ·entram ern jogo na hierarquia dos salários, não
se realiza absolutamente da ;mesma forma para o conjunto da nova
pequena-burguesia. Essa tendência à redução dos afastamentos en-
tre salários "médios" operários e salários "médios" pequeno-bur-
gueses, já iniciada, com altos e baixos, após a Primeira Guerra
Mundial e entre as duas guerras, e que, após um período de re-
gressão da tendência na França entre 1945 e 1950 5 , afirma-se
atualmente, .e se realiza sobretudo por uma redução importante
dos afastamentos entre os agentes que ocupam certos lugares des-
qualificados e subalternos da pequena-burguesia (empregados in-
feriores de comércio, dos s1;,rviços,- dos escritórios, pequenos fun-
cionários) e certas camadas da classe operária.
De fato, trata-se bem da forma principal de realização dessa
tendência, e cujos caminhos concretos dependem dos fatores po-
líticos que intervêm na hierarquia dos salários. É a forma prin-
cipal de realização dessa tendência, mesmo nos países capit~listas
(Grã-Bretanha, Alemanha etc.) onde ela se· exprime também por
uma fraca redução das arnaas estratégicas da hierarquia salarial
no seio do conjunto da nova pequena-burguesia, indicando assim
uma redução relativa do afastamento do conjunto desses salários
em relação aos salários operários 6 (o que não inclui pois, natural-
mente, as formas de remuneração dos empresários e dos agentes
dirigentes do capital). Mas as coisas se apresentam de modo di-
verso na França, o que· é demonstrado claramente pela interven-
ção dos fatores políticos. Com efeito, como indica a história re-
cente da evolução dos salários até 1968, são os diversos executivos

Le Capi'tal. t. VI, p. 309.


4.
5H. Mercillon, La Rémunération des employés, 1954. Ver igual-
mente a série de artigos consagrados aos empregados no a. 0 228, julho
de 1973, de Economze et Politique..
6 D. Lockwood, op. cit.• pp. 43 sq.; R. Hamilton, Einkommen und
Klassenstruktur in BRD. in De.r "neue" Arbeiter, hgb. K. Hõming, 1971.
FRAÇÕES DE CLASSE DA N~OVA PEQUENA-BURGUESIA 337

médios que têm, no seio da nova. pequena-burguesia, sido benef i-


ciados, entre 1952 e 1968, com aumentos relativos dos salários,
bem mais que os outros conjun1tos pequeno-burgueses ("os em-
pregados") e que a classe operária 7 • Isso faz que, na França, a
classe operária seja menos bem paga do que· em outros países
europeus (principalmente a Ale1nanha e a Grã-Bretanha), mas
que os escalões superiores da nova pequena-burguesia (diversos
executivos médios, mas também o conjunto engenheiros-técnicos)
sejam mais bem pagos 8 : em outras palavras, o afastamento entre
os salários operários e os salários desses. escalões tem de fato, du-
rante estes últimos anos, aumentado· na França. O que se cons-
tata de forma empírica na extensão, inteiramente característica
na França, do leque do conjunto dos salários operários e peque-
no-burgueses é devido a esse aurnento relativo particular dos sa-
lários dos "executivos médios", pois, entre 1962 e 1968, o salário
nominal anual médio aumentou, para os operários, 52o/o e, para
os empregados, somente 49,6%.
É preciso observar então, es.sencialmente, um traço da polí-
tica geral da burguesia francesa e que a marcou ao longo de sua
história: aquele de uma procura muito particular de um "apoio"
da pequena-burguesia em face da combatividade e da luta da
classe operária. Essa estratégia já fora aquela da burguesia fran-
cesa com respeito à pequena-burguesia tradicional após a Revo-
lução de 1789, pela via indireta do "jacobinismo-radicalismo" 9 :
o que se manifestou por muito tempo através de um ritmo con-
sideravelmente mais lento de elirninação dessa pequena-burguesia
em relação aos outros países me:ncionados. Essa política prolon-
gou-se em relação à nova pequena-burguesia: ela teve como pri-
meiro efeito o ritmo de diminuiçião dos afastamentos dos salários
entre os próprios escalões subalternos da nova pequena-burguesia
e a classe operária, ritmo muito mais lento do que· para outros
países capitalistas. Mas nestes últimos anos, essa política assume
uma forma diferente: ela se concentra sobre os escalões superio-
res dessa nova pequena-burguesia ("executivos médios"). Dada a
exploração necessariamente acrescida do capital monopolista sobre

7 Fontes, INSEE, "Données statistiques sur l'évolution des rémuo.é-


rations. salariales de 1938 à 1964", Etudes et Conjonctures, agosto de 1965;
"Salaires, prestations sociales et pouvoir d'achat depuis 1968", coleções
do INSiEE, M 9, abril de 1971; "Les salaires dans !'industrie le commerce
et les services en 1969", Coleções do INSEE, M 20, janeir~ de 1973.
8 Le Monde, dossiê e documentos: "L'inégalité des revenus en
France", maio de 1973.
9 Pouvoir po/itique et Classes ~ociales, op. cít.
338 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

a pequena-burguesia, essa política assume formas particularmente·


seletivas, mas acentua por isso mesmo as delimitações no seio da
nova pequena-burgue·sia, aumentando aí as armas estratégicas da
hierarquia salarial: em contrapartida, pesquisas tendem a demons-
trar que, durante o mesmo período de tempo, essas armas estra-
tégicas da hierarquia salarial diminuíram no seio da classe ope-
rária. em particular depois do aumento do SMIG quando dos acor-
dos de Grenelle em 1968.
Seia o que for, observa-se perfeitamente a importância da
diminuição dos afastamentos relativos entre os salários de certas
frações da nova pequena-burguesia e aqueles da classe operária:
um - ou melhor, uma - empregado' de comércio, de escritó-
rio de serviços, dos escalões subalternos da função pública, tem
freqüentemente, sobretudo nos princípios de sua vida profissional,
um salá_rio base inferior àquele de muitos operários qualificados
(ainda que a duração de trabalho seja 2,4 horas inferior em mé-
d:ia para os empregados em confronto com a dos operários). O
aspecto mais importante da questão não é aqui simplesmente o
processo de pauperização relativa (relações salários/lucros) qutt
sofrem essas frações (pois a classe operária é por isso também
afetada), mas o que designarei como processo de pauperização
relacional (em relação à classe operária).

Mas. indo ainda mais longe e reunindo então a questão da


f(~minização dos assal~riados não-produtivos, percebe-se claramen-
te: essa estratégia seletiva da burguesia no próprio seio das frações
d1~ polarização objetiva proletária da nova pequena-burguesia, e
seus efeitos, o que é ne·cessário levar muito em consideração. Se
é exato por exemplo que uma assalariada de comércio, de escri-
tório etc., recebe, sobretudo no início, um salário inferior àquele
d1;, muitos operários homens, isso não significa que ela receba em
geral um salário consideravelmente superior àquele de uma ope--
rária mulher, isto é, àquele que ela obteria se estivesse na pro-
dução. Enquanto os afastamentos entre os salários médios dos
operários e aqueles dos empregados são de cerca de 8 a 1Oo/o,
eles são de cerca de 20% entre as empregadas e as operárias. Em
outras palavras, essa pauperização relacional afeta muito menos
as mulheres assalariadas não-produtivas comparadas às operárias
rnlulheres, com todos os efeitos que isso pode ter sobre essas assa-
lariadas. Para falar de forma descritiva, é bem possível que, nas
posições de classe de uma empregada, o fato de ganhar menos do
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 339

que um operário conte menos do que o fato de ganhar· bem mais


do que uma operária.

3. A reprodução da divisão trabalho intelectual/ trabalho


manual no próprio seio do trabalho intelectual que assinalei. É uma
transformação que marca delimitações no próprio seio da nova
pequena-burguesia: parcialização do saber e padntnização das ta-
refas em alguns de seus setores e escalões, divisões internas da
pequena-burguesia burocratizada entre escalões de decisão e es-
calõe·s de execução, processo. de qualificação-desqualificação in-
terna no trabalho intelectual ligado à "racionalização" de seu
trabalho etc.
De fato, essas delimitações são devidas somente, por um lado,
à introdução direta do maquinismo no trab-alho desses assalariadm;,
e assim a uma mecanização de seu trabalho (trabalho parceiro).
Já em 1930, sustentava-se que tal mecanização "consumava a pro-
letarização técnica" do trabalho desses assalariados. Ora, essa me-
canização assume, de um lado, formas específicas no caso do tra-
balho intelectual e, de outro, está longe de apresentar a extensão
que se lhe atribui freqüentemente: as máquinas são aqui, em ge-
ral, "auxiliares" do trabalho (calculadoras, máquinas de escrever,
máquinas contábeis, etc.). Os casos de uma mecanização do tra-
balho onde o trabalhador se torna, como diz Marx, "o apêndice
de carne da máquina", são bastante raros (certos casos de em-
prego de computadores por exemplo).
Segundo Lockwood 1º. esse maquinismo que introduz um tra-
balho em cadeia no sentido próprio (cadências ligadas a um ritmo
"autonomizado" da máquina) só s·e referia, na Inglaterra, em 1952,
a 3,So/o do número total dos empregados. Certamente, esse fenô-
meno estendeu-se depois, ficando claro que não poderia ser com-
parado. mesm-o de longe, com o que se passa com o trabalho
-Operário: a introdução no trabalho operário do "progre-sso técnico",
e a "revolucionarização" constante dos meios de produção, são -es-
treitamente ligadas à produção e à extração da inais-valia (mais-
valia relativa). Mas conhecem-se, mesmo aqui, os obstáculos sociais
- relações capitalistas - com que se chocam os progressos técnicos
que estão de fato sempre submetidos às condições sociais da ·pro-
dução. Não há nenhuma razão para pensar que, nas condições
sociais atuais do trabalho dos assalariados não-produtivos (divisão
social trabalho intelectual/manual, com a baixa dos salários desses

10 The Blackcoated W orker, op. cit., pp. 87 JQ.


340 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

empregados permitindo a born termo sua exploração pelo nível dos


salários, abundância crescen1te dessa mão-de-obra etc.), essa ten-
dência de transformações tecnológicas tome jamais proporções
consideráveis. O elemento principal da questão é, aqui também,
a taxa de exploração e a taxa de lucro: a produtividade do traba-
lho não assume aqui o mesn10 sentido que na produção da mais-
valia.
Sendo assim, não se pode também subestimar esse fenômeno.,
pois efetivamente, lá onde se reproduz, ele acentua, sobretudo de
forma indireta, a parcelização das tarefas e do saber, e a desqua-
lificação do trabalho intelectual.
Entretanto, mesmo fora desses casos, o mesmo fenômeno se
produz, embora sob formas diferentes, principalmente no âmbito
da burocratização. Ao contrário de certas análises que oj>õem
burocratização e mecanização, e que só admitem desqualificação
do trabalho intelectual para esta última, é necessário observar que
a burocratização, que em tal caso só é o efeito da "separação"
trabalho intelectual/trabalho manual, reproduz no seu seio essa
divisão: é aqui que se articula a "racionalização" atual desse tra-
balho, que tende a aumentar sua produtividade.

Essa desqualificação do trabalho intelectual manifesta-se en-


fim, de forma maciça, pelo eimprego desses agentes em postos de
trabalho desqualifica.dos, na ordem do trabalho intelectual, em
relação à sua formação, levando-se em conta, no entanto, obser-
vações que foram feitas sobre: a qualificação do trabalho intelec-
tual pelo aparelho escolar. Essa forma nos inte·ressa particular-
mente: ela se refere principalmente aos jovens e interessa a certos
conjuntos da nova pequena-burguesia (empregados de comércio
e de escritório e escalões subalternos desta), pela via indireta
dos agentes que nela se inserem e· que esperaram, pela sua "qua-
lificação escolar", encontrar um trabalho "superior". Constatam-
se aqui fenômenos significativos: na distribuição dos diplomas
dos ativos de menos de 25 anos por categoria socioprofissional em
1962 e 1968 na França, observa-se que a proporção, entre os em-
pregados, daqueles que possuíam o bacharelado, passou de 10,5
para 21,6% (para os operários, de 3,5 para 6,2o/o), daqueles que
possuíam um diploma superior ao bacharelado de 4,8 para 8, 1o/o
(para os operários, de 2,5 para 4%). Quando se levam em conta
outros elementos da pesquisa, observa-se claramente que mesmo
um jovem titular de diploma universitário tem muito menos pos-
sibilidades em 1968 de ser executivo superior, ou mesmo e:5ecuti-
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 341

vo médio, do que em 1962 11 • Essa depreciação dos diplomas, li·


gada de fato à desqualificação do trabalho intelectual, contribui
também para limitar as possibilidades na promoção interna desses
agentes.

4. Uma ,coordenada suplementar refere-se às condições


atuais de desemprego no trabalho intelectual. Não possuímos ain-
da, sobre isso, informações suficientes: esse fenômeno constitui,
em suas formas e importância maciça, um fenômeno relativamen-
te· novo, surgido nestes últimos anos na maioria dos países capita-
listas. De fato, o fenômeno de desemprego dos assalariados não-
produtivos começou a assumir proporções importantes após a cri-
se de 1930, tendo entrado então nas condições de existência desses
agentes no mercado de trabalho ·ui. Mas esse fenômeno em ne-
nhum lugar assumiu, no passado, e· de longe, a importância que
tem na classe operária como exército de reserva industria/,.
Ora, tudo se passa como se assistíssemos, nestes últimos anos,
e para a maioria dos países capitalistas desenvolvidos, à constituição
de um exército efetivo de reserva intelectual que ultrapassa os
simples fenômenos conjunturais: o que não surpreenderia, dado
o investimento maciço dos setores do trabalho não-produtivo pelo
capital monopolista. Na França, segundo uma pesquisa sobre o
empre·go em 1972, a percentagem de desempregados era de 2, 1O/o
para os operários, de 2,3% para os empregados, de 1,4% para os
executivos. Em 1971 e 1972, essa proporção era estável para os
operários, mas passava de 2,0 a 2,3% para os empregados, e de
1,1 a 1,4o/o para os executivos médios lJ3.
Mas a extensão recente desse desemprego faz com que ele
se manifeste principalmente, sob suas novas formas, nos jovens
particularmente destinados, pela sua formação escolar, ao salaria-
do do trabalho intelectual. Certamente, não podemos perder de
vista que esse desemprego dos jovens (os de menos de 25 · anos,
além daqueles que entraram recentemente na vida ativa), mais
importante do que para os adultos, surpreende ao mesmo tempo
operários e as frações da nova pequena-burguesia. Entretanto, já

11 Cl. Delcourt, "Les jeunes dans la vie active", em Economie et


Statistiques, INSEE, n. 0 18, dezembro de 1970, pp. 10 sq.
12 R. Ledrut, La Sociologie du chômage, 1966.
113 Coleções do INSEJ:, "Démographie et Emploi", n. 0 19, pp. 76
e 87. Naturalmente, dada a prodigiosa manipulação oficial das cifras sobre
o desemprego, estas só devem ser gua·:dadas como simples indicadoras de
tendência.
.342 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

·ao nível do desemprego puro e simples, constatamos fenômenos


significativos. Na pesquisa do INSEE, entre o conjunto dos jovens
desempregados de menos de 25 anos em 1972, a proporção por
exemplo dos titulares do CAP era 17 ,6o/o, a dos titulares de bachare-
lado 3o/o, a dos diplomados do ensino superior 0,6o/o. Em 1968, a
proporção, no conjunto da população ativa (inclusive· os desempre-
,gados) de menos de 24 anos, de titulares do CAP era 19%, a dos
titulares de bacharelado 3,3o/o e a dos diplomados do ensino supe-
rior 0,8% 14 • Certamente, se,ria necessário levar em conta a de-
Jasagem das datas dessas duas séries comparadas, mas destaca-se,
no entanto, como tendência, que os titulares do bachare.lado e
de diplomas do ensino superior estão super-representados entre
os jovens desempregados, em relação aos titulares do CAP. O que
constitui uma modificação digna de nota em relação ao passado
ainda recentt!.
Mas, o que intere·ssa ainda mais são as diversas e múltiplas
-formas de desemprego camuflado que prevalecem entre os jo-
vens: diversos tipos de subtrabalho, de trabalho clandestino, de
trabalho temporário e "eventual" etc. Inútil insistir sobre o fenô-
meno, considerável atualmente, de jovens que escapam a todo
complexo estatístico, cujo número está avaliado, na França, entre
300 e 500. 000, vivendo de diversos expedientes artesanais ou de
diversos serviços menores, que são de bom grado apresentados
.pelos diversos ideólogos como "marginais" (drop-outs) e que re-
jeitam, por convicção íntima, o "trabalho alienado" atual.

5. Enfim, transformações importantes surgem nas condi-


ções de vida desses empregados assalariados fora de suas relações
de trabalho 11>. O capital investe atualment~, de forma direta, no
conjunto dos setores "fora" das relações econômicas de trabalho
no sentido estrito, referente seja à reprodução da força de tra-
balhd (urbanização, habitação, transportes etc.), seja ao domínio
do não-trabalho (lazeres, "tempo livre" etc.). Além disso, dada
a subordinação atual, no processo de concentração do capital, da
esfera de circulação- ao capital financeiro, este impõe modos de
<=onsumo coletivo dos produtos-mercadorias. Portanto, é necessá-
rio levar em conta, de um lado, que a submissão direta dessas
relações ao capital ~e faz sob a dominação das relações ide oló-
H Economie et Statistiques, n. 0 18, op. cit.
15 Entre outros, Fr. Godard, •ne .ta notion de besoin au co..,cept
de pratique de classe", em La Pensée, n. 0 116, dezembro de 1972; M.
Castells, Luttes urbai.nes, 1973.
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 343

gico-políticas, pelas quais o capital reproduz as divisões no seio


das classes exploradas e dominadas (na urbanização, na habita-
ção. nos lazeres etc., tendo o capital como objetivo político a
separação dessa nova pequena-burguesia da classe operária); mas,
por outro lado: a) que certas frações da nova pequena-burguesia
perdem maciçamente, e de forma acelerada, seus privilégios sala-
riais em relação à classe operária; b) que a nova pequena-bur-
guesia é particularmente sensível, na medida em que vive suas
próprias relações no trabalho fora da produção, nas condições
questionadas aqui: conhecemos principalmente a importância dos
modelos de consumo para a nova pequena-burguesia; c) que as
mulheres apresentam uma particularidade nesse sentido, na me-
dida em que sua exploração no trabalho é dobrada pela acumu-
lação das "tarefas domésticas" no aparelho familiar.
Temos então todas as razões para pensar, e análises mais
precisas tendem a demonstrá-lo, que a articulação dessas coorde-
nadas reforça atualmente as delimitações, no seio da nova peque-
na-burguesia, em outros setores que suas relações de trabalho,
agindo no sentido de uma polarização objetiva reforçada por cer-
tas frações desta em direção à classe· operária: as condições de
vida - a "qualidade da vida" - são progressivamente degrada-
das, sempre de forma relativa, isto é, relacional, para essas fra-
ções. Constatamos assim que as lutas de classe nesses setores, e
em torno dos objetivos referentes (lutas urbanas, por exemplo,
estando a nova pequena-burguesia maciçamente concentrada,
como a classe· operária, em aglomerações urbanas), materializam
freqüentemente, e de forma particularmente clara hoje em dia,
alianças de classe entre essas. frações e a classe· operária.
Entretanto, por mais importante que seja, não entrarei no
exame desse aspecto da questão: se é evidente que essas coorde-
nadas só existem em unidade com as relações de produção e as
relações do processo de trabalho, unidade esta que reside não
simplesmente na reprodução da força de trabalho, mas no pro-
cesso de reprodução do conjunto das relações sociais (relações de
classe), não é menos verdade que o papel determinante retorne
às relações de produção. '16
16 Enfim, não entrarei. aqui também, no exame dos elementos da
conjuntura que afetam atualmente a nova pequena-burguesia. Mas as aná-
lises acima, que situam sua determhacão de classe e as transformações
atuais no conjunto da divisão social do trabalho, permitem precisamente
apreender a importância dos diversos elementos da conjuntura nesse sen-
tido. Um dos elementos decisivos, dado o lugar especí''ico da nova pe-
<Quena-burguesia nas relações político-ddeológicas e nas particu 1 aridades do
344 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

2. As Frações de Classe da Nova Pequena-Burguesia


Levando-se então em conta, ao mesmo tempo, delimitações
induzidas no seio da nova pequena-burguesia por sua própria
determinação de classe, e essas transformações atuais (as duas
se encobrindo mais freqüentemente), é possível delimitar as fra-
ções da nova pequena-burguesia.
A nova pequena-burguesia estando precisamente polarizada,
na luta das classes, entre a burguesia e a classe operária, é em
relação a essa polarização que é preciso apreender seu fraciona-
mento: vou ocupar-me, pois, somente em apreender as frações
da nova pequena-burguesia que estão claramente polarizadas, em
suas determinações de classe e as transformações atuais que as
afetam, em relação à classe operária, limitando-me, para as ou-
tras frações, às análises ac:ima. O que não significa, portanto,
que as outras frações pequeno-burguesas façam, por esse motivo,
parte da burguesia, nem tampouco que as frações que serão aqui
questionadas se tornem, por isso, parte da classe ope~ária; isso,
pois, não quer absolutamente dizer que as outras frações devam
se-r consideradas como consagradas, uma vez por todas, às trevas
exteriores.
As frações que serão questionadas são, pois, aquelas que apre-
sentam as condições objetivas mais favoráveis para uma aliança
inteiramente particular com a classe operária e sob sua direção,
aliança que é atualmente d1~ importância decisiva. Suas determi-
nações de classe as incíuem no campo pequeno-burguês objetiva-
mente polarizado e, de forrna clara, em direção à classe operá-
ria .. Mas esse campo pequeno-burguês de polarização proletária
não é ele próprio unificado; ele é precisamente fracionado: ele
próprio se polariza em direção à classe· operária, em razão da
heterogeneidade das condições de vida e de trabalho dos agentes
pequeno-burgueses, freqüentiemente por reivindicações específicas
e por aspectos particulares. É nesse sentido que seria necessário
falarmos de frações de polarização proletária da nova pequena-
burguesia, esboçadas pelo conjunto de suas determinações de
classe, e não pura e simple·smente, como o fazemos por vezes,
da parte de polarização p~ole:tária desta, mesmo que essas frações
subconjunto ideológico pequeno-burguês, consiste na crise ideológica que
afeta atualmente a burguesia, crise esta que se repercute diretame..,te
nessa pequena-burguesia (e que tem efeitos próprios em suas posições de
classe). Mas essa crise ideológica não afeta também o conjunto da nova
pequena-burguesia de maneira uniforme: seus efeitos seguem as delimi-
tações internas de sua determinação de classe.
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA' 345

apresentem, em seu conjunto, uma delimi~ação principal com ~s


outras frações pequeno-burguesas, na medida em que elas se si-
tuam no campo de polarização proletária. Essa situação se expri-
me ao nível das posições de classe na conjuntura: essa "parte"
da nova pequena-burguesia não poderia ter unidade política pró-
pria na conjuntura; contudo, só pode ser unificada unindo-se à
classe operária sob a hegemonia e a direção desta.
É precisamente nesse sentido que se torna necessário enten-
dermos essas frações-delimitações no campo de polarização pro-
letária da nova pequena-burguesia, isto é, no sentido de caminhos
específicos dessa polarização. De fato, não se trata também, como
se faz por vezes atualmente, de empreender uma classificação
tipológica, onde se procurariam essas diferenças por uma "me-
dida" ou "grau", no sentido estrito de sua polarização objetiva
proletária. Não que não existam "desigualdades" entre essas fra·
ções: mas a questão se regula diretamente pela luta de classe
em conjunturas determinadas, não podendo as posições de classe
efetivas dessas frações ser reduzidas a essas desigualdades, pois
essas frações já estão situadas no campo de polarização objetiva
proletária. Em suma: se é verdade que. um pequeno professor pri-
mário e uma vendedora de grande loja, fazendo parte do mesmo
campo, pertençam entretanto (e é importante) a frações dife-
rentes deste, e sejam polarizados por caminhos específicos para
a classe operária, é entretanto inútil disso deduzir, mecanicamen-
te, "mais possibilidades" para um do que para o outro de obte-
rem posições proletárias seguindo as desigualdades na sua pola-
rização objetiva.
O que me leva a lembrar que nem a delimitação principal
no seio da nova pequena-burguesia entre as frações de polariza-
ção proletária e as outras, nem sobretudo os contornos das pri-
meiras, destacam pura e simplesmente as relações econômicas nas
quais seus agentes se situam :1·1 . ·um executivo médio comercial
da esfera da circulação, remunerado sobre falsos custos do capi-
tal, está separado pela delimitação principal de uma vendedora
de grande loja, fazendo ela também parte da esfera de circula-
ção, dependente do mesmo capital (comercial) e remunerada so-
bre esses falsos custos, enquanto ele não está separado por essa
mesma delimitação de um outro exe.cutivo, dos serviços por exem-
plo, remunerado, no entanto, pela renda. Mais ainda: se· uma
vendedora de grande loja não depende da mesma fração que um
. 17 Ao contrário do que sustenta, por exemplo, P. Salama, em Cri·
tiques de l'économie politique, op. cit.
346 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

pequeno professor primário, isso não ocorre porque· ela é remu-


nerada sobre falsos custos e ele, no sentido estrito, pela renda-
impostos. Enfim: uma mesma fração da nova pequena-burguesia
de polarização objetiva proletária pode abranger assalariados
que dependem da circulação comercial, da realização bancária
e dos serviços. ,
De fato, são as coordenadas do conjunto da divisão social
do trabalho que esboçam essas frações: certamente, o que· elas
têm em comum, do ponto de vista das relações econômicas, entre
si e em relação às outras frações pequeno-burguesas, é que elas
sofrem uma exploração particularmente intensa. Todavia, seria
completamente errôneo:
a) de um lado, tentar determinar seus contornos simples-.
mente pelas formas econômicas de exploração (circulação do ca-
pital, serviços, funções públicas do Estado etc.), que elas sofrem.
Não há, deste ponto de vista, senão uma única diferença deci-
siva, aquela que separa esta exploração daquela que sofre a classe
operária na extração da mais-valia, o que remonta às nossas aná-
lises do trabalho produtivo e do trabalho não-produtivo;
b) de outro lado, limitar-se a uma medida estrita do grau
de exploração que elas sofrem: um pequeno funcionário, uma
vendedora e uma secretária podem ser explorados no mesmo
grau, sem que isso quefra dizer que não existam delimitações
entre eles.

Enfim, essas frações pequeno-burguesas devem ser .conside-


radas no sentido de certas tendencialidades esboçadas pela deter-
minação de classe e pelas transformações atuais, e não como
fronteiras empíricas e rígidas, principalmente no sentido de uma
classificação "estatística". Observe·mos em particular que as esta-
tísticas do INSEE, com as suas diversas "categorias socioprofissio-
nais", se já são consideravelmente enganadoras quanto à fron-
teira de classe, são ainda mais inoperantes no caso que nos in-
teressa: elas englobam mais freqüentemente, nas categorias "pe-
queno-burguesas", conjuntos de agentes que, de fato, dependem
de fracionamentos muito diversos.

A primeira fração de assalariados não-produtivos compreen-


de a grande maioria dos assalariados de base do setor comercial
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 347

~ os "empregados de comércio" -, submetidos principalmente


à concentração do setor comercial - por exemplo, grandes áreas;
os assalariados mobilizados, no próprio seio do setor não-pro-
dutivo, pela introdução do maquinismo e que são afetados d~
forma intensa pela mecanização do trabalho (que pertencem a
esfera de circulação e de realização do capital, ao setor serviços,
ou ao contingente dos aparelhos de Estado); enfim, os empre-
gados de certos setores de serviços.- empregados de restaur~n­
tes cafés, cinemas, teatros, assalariados de base do setor saude
(a~xiliar de enfermagem dos grandes hospitais) etc. Com efeito:
a) Na divisão social trabalho intelectual/trabalho manual~
esses assalariados não-produtivos são aqueles que mais se apro..-
ximam da barreira que separa a nova pequena-burguesia da
classe operária, na ordem do saber e do ritual simbólico-ideológico
em que ele é investido. Quanto aos assalariados submetidos direta-
mente à introdução direta do maquinismo no trabalho não-produti-
vo, são afetados de forma toda particular pela reprodução da divi-
são trabalho intelectual/trabalho manual no próprio seio do traba-
lho intelectual (parcelização das tarefas). O conjunto desses agen-
te·s é nitidamente polarizado em direção ao trabalho manual, o que
se manifesta diretamente no processo de escolarização: se bem
que essa escolarização difira daquela à qual a classe operária está
submetida, esse processo é, para a massa desses agentes, relati-
vamente diferente do que para as outras frações pe·queno-burgue-
sas. O caso é particularmente nítido para as mulheres: para
aquelas nascidas em e após 1918, 21 o/o de empregadas de comér-
cio em 1964 não possuíam nem mesmo o CEP, contra 8% somente
para as empregadas qe escritório; cerca de 20% das empregadas
de comércio possuíam um diploma superior ao CEP, contra mais
de 55% para as ·empregadas de escritório, pendendo estas muito
mais fortemente para o ensino geral. Para os homens, a situação
não é tão marcante, cerca de 39% dos empregados de· comércio
possuindo um diploma supe-rior ao CEP, contra ainda cerca de
55% para os empregados de escritório ·1 8 . É que os lugares de
enquadramento (executivos médios) são, nos casos do setor co-
mercial, praticamente monopolizados pelos homens;
b) Esses agentes são, em relação às outras frações pequeno-
burguesas, os menos afetados pela tendência à burocratização do
trabalho não-produtivo: isso se prende ao fato de eles se apro-
18 Pesquisa já citada do INSEE, em Economie et Statistique, n. 0 9,
fevereiro de 1970, p. 55.
348 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

ximarem mais da barreira do trabalho manual. No caso dos agen-


tes diretamente submetidos à introdução do maquinismo, o fraco
indicador de burocratização que os afeta é devido à reprodução
da divisão trabalho intelectual/trabalho manual no campo do
trabalho intelectual. Poderíamos dizer, de forma descritiva, que
mesmo quando esses agentes dependem de· setores de forte buro-
cratização, eles se situam relativamente à margem da hierarquia
burocrática privada e pública e de seus "escalões": o que só pode
ser compreendido com o rompimento de uma concepção inititu-
cionalista da burocratização-burocracia como "teoria das organi-
zações". Uma grande loja ou um grande hospital, por exemplo,
apresentam a tendência à burocratização, enquanto as vendedo-
ras e enfermeiras escapam relativamente à própria hierarquia, à
qual pertencem outros agentes presentes, que são no entanto
afetados pelos e/eitos dessa burocratização e da reprodução da
divisão do trabalho intelectual/trabalho manual: observou-se fre-
qüentemente o isolamento particular dos vendedores/vendedoras
de uma grande loja, através indiretamente, entre outras, da re-
produção fantasmática das distinções/isolamentos dos diversos
raios na ordem da "nobreza" dos produtos que vendem (as ven-
dedoras de produtos de "luxo" fazendo figura de "intelectuais"),
as diferenciaçpes entre as apresentadoras e as manuais etc. Assim,
é nesse conjunto que o enquadramento do processo de trabalho
assume as f armas mais abertamente repressivas.
c) O problema de "carreira" e de "promoção" apresenta-se
de forma relativamente diferente do que para os outros conjuntos
pequeno-burgueses, se bem que a situação permaneça sempre dis-
tinta daquela da classe operária.- As possibilidades reais dessa "car-
reira" são limitadas, em virtude da organização do trabalho e
de sua parcelização, mas também em virtude da instabilidade
do emprego, característica de·sse setor. O leque salarial e hierár-
quico permanece, mais particularmente, quanto aos empregados
de comércio, relativamente comprimido, isto é, marginalizado em
relação à hierarquia burocrática 19 • As percentagens de agentes
que, no decorrer de sua vida profissional, ascendem ao próprio
seio de sua classe (tornam-se "executivos médios", por exemplo),
é mais limitada para os empregados de comércio do que para
aqueles que são catalogados, nas estatísticas, como "empregados

19 Elementos fornecidos por pesquisas do CFDT Serviços, em In-


form' action. Ver também J. Chatain, "L'évolution de l'appareil commer-
cial", em Economie et Politique, julho de 1973.
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 349

de escritório", e mais limitada também, do que para os funcio-


nários.
Primeiramente, isso sobressai de certos destaques estatísticos
referentes aos salários: a) na distribuição percentual dos assala-
riados por atividade econômica e por quota de salário líquido
anual (em 1968), aqueles que dependem dos diversos comércios
e da higiene apresentam a distribuição menos importante entre
as quotas de salários e a fração máxima e maciça de uma certa
quota; b) quando nos referimos a esses mesmos salários por ida-
de, observamos que os salários desses assalariados atingem o má-
ximo, em sua massa, em torno de 45-50 anos, enquanto esta meta
é mais tardia para as outras frações da pequena-burguesia (55
a 60 anos). Conclui-se, igualmente, que os empregados de comér-
cio se deslocam para os "executivos médios" numa proporção
consideravelmente menor (28,70/o dos mutantes tornando-se exe-
cutivos, 280/o tornando-se operários) que, por exemplo, os "em-
pregados de escritório" (47,7% dos mutantes· tornando-se executi-
vos, 25% tornand~se operários), por exemplo. Enfim: enquanto
os salários líquidos anuais médios são, em seu conjunto, menos
elevados para os empregados de comércio (12.344) do que para
os "empregados de escritório" (13. 350), os salários por sexo
apresentam uma imagem inversa: os salários masculinos dos "em-
pregados de comércio" são mais elevados (16.071) do que os
salários masculinos dos "empregados de escritório" (15. 028). A
diferença total é produzida pelos salários femininos, onde é con-
siderável: para as "empregadas do comércio" (9. 283), para as
"empregadas de escritório" (12. 336). Isso confirma que os em-
pregos de executivos são, nos assalariados de comércio, pratica-
mente monopolizados pelos homens 20 •
Retomando a questão da reprodução dos agentes dessa fra-
ção, constatamos, guardadas todas as proporções, um fenômeno
análogo com os filhos desses agentes na ventilação intergerações.
Ao que se junta o papel menos importante do aparelho escolar
e da escolarização, ao mesmo tempo sobre o mercado de traba-
lho desses agentes e na sua ventilação no se.io de sua classe.
Isso se exprime no caso dos deslocamentos que conotam um
transbordamento de classe, tanto durante a vida profissional des-
ses agentes quanto nas gerações seguintes. Os transbordamentos
para a burguesia são mais limitados do que para os outros con-
juntos pequeno-burgueses de polarização objetiva proletária.

20 Nas. coleções do INSEE, op. cit., pp. 52, 54, 56, sq.
350 As CLASSES Soc1A1:s NO CAPITALISMO DE HoJE

Ao contrário, é interessante notar as formas consideráveis


de grupamento distributivo desses agentes com a classe operária,
o que tem um duplo sentido:

J) a proporção desses agentes e de seus filhos que caem da


pequena-burguesia na classe· operária é mais importante do que
para as outras frações pequeno-burguesas;
2) é precisamente em direção a essa fração que parecem
dirigir-se maciçamente as frações dos operários que, no decorrer
de sua vida profissional, se deslocam para a nova pequena-bur-
guesia. De fato, é sobretudo com as mulheres que se manifesta
este fenômeno maior: os operários homens que deixam a produ-
ção vão, principalmente, para o setor "independentes", enquanto
as operárias que deixam a produção dirigem-se sobretudo para
aqui (empregadas de comérc:io e, também, dos diversos serviços) .
Enfim, é aqui que se encontram, em sua maioria, as mulheres
de operários que ocupam lugares da nova pequena-burguesia.
Certamente não podemos perder de vista nem a rigidez que
caracteriza a classe operária em seu conjunto, nem o fato de que
a grande maioria das mulheres ativas (cerca de 8Wo) perten-
cem à mesma classe que seus maridos: o que não impede, no
nosso caso, que um grande número seja de· empregadas de co-
mércio casadas com operários (cerca de 400/o das empregadas
casadas e que, em 1968, tinham menos de 55 anos). Em suma:
é principalmente de forma i'ndireta, pelo trabalho feminino, que
essa aproximação característica ocorre com a classe operária~
Elemento que começa a ter ,efeitos nas formas de luta nesse con-
junto, efeitos que só podem acentuar-se no futuro.
d) A essas coordenadas de determinação polarizada de
classe juntam-se a redução dos afastamentos, e também a dimi-
nuição absoluta dos salários em relação à classe operária: é fre-
qüentemente nessa fração que· se encontram os mais baixos salá-
rios no conjunto da pequena-burguesia de polarização objetiva
proletária. Mas isso não é sempre verdade no conjunto: desco-
bre-se, ao mesmo tempo, uma tendência à igualização, por baixa,,
dos salários das outras frações semelhantes à pequena-burguesia:r
principalmente pequenos funcionários, com aqueles dessa fração.
Mais importantes são, aqui, as diversas formas de· salários no
rendimento, pelos diversos prêmios que os acompanham, mesmo
que o antigo sistema de "co1missões" seja substituído atualmente
pelos prêmios diretamente integrados ao salário: ainda que a si·
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 351

tuação difira sempre, segundo esse ponto de vista, daquela da_


classe operária, da qual uma pequena parte é atualmente "men-
salista". Em contrapartida, esse. setor comercial é provavelmente
0 único hoje em dia, nas formações capitalistas desenvolvidas.
onde a duração real do tempo de trabalho tem tendência a au-
mentar (serviço noturno, domingo etc., "para se colocar à dispo-
sição do consumidor") .
Quanto à feminização dessa fração, ela é particularmente
nítida· entre os agentes submetidos à introdução da mecanização.
do trabalho não-produtivo: na estatística assinalada, enquanto a
percentagem para o conjunto da nova pequena-burguesia, na Grã-
Bretanha, diretamente submetida a tal mecanização, era, em;,
1952, de cerca de 3,5o/o, elevou-se para 9,5% para a população.
feminina dessa pequena-burguesia.

Mas poderíamos também, segundo o que foi dito, circuns-·


crever nessa fração camadas particulare·s: o que é importante·
aqui é a distinção entre os setores fortemente concentrados (gran-·
des lojas), de um lado, e aqueles que são submetidos a uma-
concentração muito fraca, do outro (empregados do pequeno co--
mércio, cuja proporção permanece sempre apreciável: cerca de·
40% dos empregados de comércio dependem de uma empresa
com de O a 5 assalariados). Es:tes últimos, se bem que submeti-
dos também a uma exploração tão considerável quanto os pri-
meiros, tendem entretanto a se identificar com seus patrões; são-)
igualmente submetidos a um clientelismo personalizado, próprio'-
da ideologia pequeno-burguesa tal qual ela caracterizavà os an-
tigos empregados de comércio. Sabemos que o setor dos empre--
gados do pequeno comércio é aquele em que as lutas são menos:.
te 12.1.
desenvolvidas, e onde a sindicalização é, por assim dizer, ausen-·
Chamou-nos a atenção, até aqui, essa distinção que foi sobre-
tudo calcada em torno da emt~rgência das lutas, entre as duas
guerras, nas grandes lojas: lutas coroadas, na França, pela parti--
cipação ativa de seus ag:entes nas grandes greves de 1936 22 • Há,
porém, uma diferença ainda mais importante do que a primeira,.
diferença essa que ainda não chamou suficientemente a atenção,.
e que foi recentemente analisadla pelos militantes da Fédération-

21 P. Delon, Les Employés (Ed. sociales).


~2 Fr. Parent, Les Demoiselles de magasin, 1970.
352 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

Services da CFDT 23 • Com efeito, observam-se atualmente diferen-


ciações efetuadas no próprio seio do setor comercial concentrado,
entre, de um lado, as grandes lojas tradicionais e, de outro, os
supermercados e hipermercados (diversos auto-serviços, lojas po-
pulares, Euromercados, galerias comerciais etc.) . É esse tipo de
concentração que prevalece nas tendências que se esboçam: em
1972, assistia-se à abertura de cerca de 62 hipermercados (30
em 1971) e de 265 supermercados (253 em 1971), enquanto o
número das grandes lojas aumentava num ritmo menos rápido,
algumas delas preparando, aliás, sua transformação em super-
mercados.
Esses super e hipermercados modificam o serviço dos empre-
gados de comércio de forma significativa. Com o sistema de
"auto-serviço", a maior parte desses empregados foi levada a rea-
lizar simples tarefas de manutenção, de embalagem, de armaze-
namento das mercadorias (a "distribuição de uma certa tonela-
gem de artigos num mínimo de tempo", que substituem aqui a
"arte da venda"): tarefas que, como vimos na análise do tra-
balho produtivo, pertencem, segundo o mais rigoroso ponto de
vista marxista, ao trabalho produtivo de mais-valia no sentido
estrito. Seus agentes tendem então a fazer parte da classe ope-
rária. Observa-se aqui o único setor da nova pequena-burgue·sia
no qual se encontra uma proletarização efetiva, no sentido rigo-
roso do termo, em seu próprio trabalho. A desqualificação das
tarefas que aí se manifestam maciçamente dá uma conotação de
pertencimento desses agentes ao trabalho manual. Esses agentes
escapam ao famoso çontato direto com a clientela, responsável
em muito pelo mimetismo burguês, combinado com o fetichismo
do objeto-mercadoria, característico do aspecto "recepcionista"
das vendedoras de grandes lojas tradicionais ("arte" de se vestir,
de falar, o "gosto" etc.). As próprias vendedoras que ainda sub-
sistem são, cada vez mais, simples demonstradoras, sem nenhuma
garantia de salário e de segurança de emprego. Finalmente, cr
nhece-se o trabalho repetitivo e parcelizado das caixas, que re-
presentam, nesse setor, a verdadeira ponta de lança da luta 24 •

23 Entre outras, as brochuras Inform' action e M. Appert, Situation


Professionnelle des vendeuses de grands magasins et magasins popu-
laires .. ., 1967.
24 Observar, no entanto, que esse próprio tipo de concentração
provoca modificações consideráveis na estrutura do emprego do salariado
comercial: os empregos e efetivos proletarizados (encarregados da manu-
tenção etc.) diminuem fortemente, enquanto aumenta o pessoal admini9-
trativo.
FRAÇÕES DE CLASSE DA NOVA PEQUENA-BURGUESIA 353

É ainda muito cedo para fazer previsões sobre a evolução


dessa tendência, mas trata-se dos setores mais efervescentes da
luta nestes quatro últimos anos no setor comercial, que foi rela-
tivamente calmo, em seu conjunto, durante as greves de 1968:
esse tipo de grandes áreas desdobrou-se nos últimos anos, sendo
os empregados desse setor, em sua maioria, muito jovens.

II

A segunda fraçij.o da nova pequena-burguesia de polarização


objetiva proletária compreende os agentes subalternos dos setores
burocratizados públicos e privados: é aqui que se encontram,. entre
outros, os diversos "empregados de escritó'rio". E isso porque esses
agentes dependem da esfera de circulação do capital e do capital
comercial (escritórios de venda, de publicidade, de marketing etc.),
da esfera de realização do capital e do capital bancário e finan-
ceiro (bancos, companhias de seguros etc:), do setor serviços (di-
versos setores de pesquisa ou de produção de informações), ou
dos aparelhos de Estado (serviços públicos, pequenos -funcioná-
rios etc.).
Essa fração distingue-se da precedente. Podemos encontrar
nela uma imitação mais nítida no aspecto "intelectual" do traba-
lho desses agentes e·m relação ao trabalho manual, e conseqüên-
cias importantes, nas relações a que estão submetidos, da buro-
cratização. Essa fração é bastante atingida pela "promoção" e
pela "carreira", desempenhando a qualificação escolar, para ela,
um papel mais importante: papel dos diplomas e dos graus esco-
lares, sendo aqui a promoção por antiguidade, além disso, rnais
importante do que no caso dos empregados · de comércio. Pode-
mos observar também tendências relativamente mais importantes
na ventilação e nos deslocamentos desses agentes, ao mesmo tem-
. po no curso de sua vida profissional e nas gerações seguintes, no
seio de sua classe e em direção à burguesia. Enfim, as diversas
fórmulas de "participação", de "participação nos lucros", de "gra-
tificações", assumem aqui um papel particular.
Observa-se, pois, que a delimitação principal, no sentido da
polarização objetiva proletária, atravessa, também aqui, os setores
onde se localizam esses agentes. Constata-se diretamente que, de
fato, nada mais falso do que distinguir (a exemplo de Dahren-
dorf), na nova pequena-burguesia em geral, o conjunto daqu "'les
que, de cima para baixo, dependem das burocracias públicas e
privadas (e que, fariam, segundo Dahrendorf, parte da burgue~:
354 As CLASSES SocIAIS No CAPITALISMO DE HóJR

de um lado, e, do outro, o conjunto dos que dela não dependeríam


(e que fariam, sempre segundo esse autor, parte da classe operária).
De fato. a polarização objetiva proletária desse setor segue
caminhos específicos. Ela passa, no conjunto das determinações
de classe, pelos plágios, no próprio seio da nova pequena-burgue-
sia, entre os escalões subalternos e a massa dos agentes dela de-
pendentes, ocupando os escalões pequeno-burgueses um lugar hie-·
rárquico mais elevado. Além disso, a "burocracia" não constitui
uma cascata piramidal, contínua e uniforme, entre os vértices.:
burgueses e os escalões pequeno-burgueses (onde passa uma de-·
liimitação real de classe, imediata e claramente perceptível), além·
d'~ não constituir uma "organização" semelhante para os próprios;
escalões pequeno-burgueses (que são atrave-ssados pela linha de~
polarização objetiva).

Essa fração objetivamente polarizada para a classe operaria:


é afetada, mas de f ornia particular em relação à precedente, pela
reprodução da divisão trabalho intelectual/trabalho manual, no
se:io do trabalho intelectual, tendência co-substancial de fato à
própria burocratiza_ção, e que se manifesta atualmente de forma
pronunciada: parcelização e padronização das tarefas da grande.
m.assa dos agentes subalternos, dissimulação particular do saber
(segredo do saber) que afeta essa massa, tarefas repetitivas de:
execução que desqualificam seu trabalho (exemplo clássico dos.
"pools" de datilógrafas), com o corolário de uma acentuação das;
relações autoritárias-hierárquicas que· essa massa sofre no enqua-
dramento de seu processo de trabalho. Nos bancos e companhias
de seguros, por exemplo (para não dizer nada do setor cheques
postais que recentemente chamou a atenção), o tratamento do~
processos pelos agentes subalternos consiste, cada vez mais, em
preencher pura e simplesmente os casos estereotipados com cruzes,
observando-se aqui o efeito indireto do emprego das "técnicas"'
da informática: a tal ponto que esses agentes podem ser chamados
de os da papelada.
Ao mesmo tempo que ocorrem a expansão do salariado entre
esses agentes e o crescimento de seus efetivos, as possibilidades
de "carreira" e de "promoção" são restringidas: é a partir de um
limiar que se pode ascender, mas esse limiar (diversas categorias
de executivos médios) é cada vez mais raramente atingido pela
grande massa desses agentes. Esse limiar do leque de ventilaçãr~"
desloca-se ele próprio para o alto. Podemos observar um indício
atinente no fato de que o aumento nestes últimos anos dos dive-r-
' '
FRAÇÕES DE CLASSE DA l'lOVA PEQUENA-BURGUESIA 355

:sos quadros do setor privado foi bem menor do que aquele dos
empregados de base. Se os empregados de escritório se distinguem,
quanto à ventilação hierárquica interna em sua classe e ao trans-
bordamento burguês, ao mesmo tempo no curso de sua vida pro-
fissional é nas gerações seguintes, dos empregados de comércio
uma delimitação muito import~nte os separa das diversas catego-
rias dos executivos médios.
E aqui, enfim, onde mais se· encontra a desvalorização atual
dos diplomas e graus escolares, dada a importância que desem-
penham no mercado de trabalho e na promoção dos agentes dessa
fração: o que se .manifesta pe]la ocupação, maciça atualmente,
dos postos subalternos por agentes cuja qualificação escolar lhes
permitiria outras esperanças. De fato, é para essa fração que se
dirigem maciçamente os jovens titulares de diplomas superiores
desvalorizados. O que se traduz pelas formas de d.esemprego ca-
muflado que grassam nessa fração: diversas formas de trabalho
clandestino, trabalho eventual, interino e' auxiliar, que atingem o
conjunto das frações de polarização objetiva proletária, mas que
são aqui particularmente pronunciadas. É essa fração que apre-
senta também, nestes últimos anos, a tendência mais marcada e
acelerada à feminização (bancos, companhias de seguros. admi-
nistração): encontra-se, pois, a questão da ênfase consideráve 1
das delimitações hierárquicas entre os escalões subalternos maci-
çamente feminizados e seu enquadramento.
Ê preciso também observar que o fenômeno de uma degra-
dação geral da situação desses empregados nos países capitaÍistas
avançados, após a Segunda Gmerra Mundial, não se manifestou
uniformemente para esses agentes, e· sobretudo para aqueles que
já estavam engajados na vida ativa nessa época: uma grande
parte dentre eles, -em razão do crescimento desse setor e de sua
feminização, passou para tarefas de enquadramento, enquanto
essa degradação afetou principalmente as mulheres, acentuando
as delimitações internas. Estas, atualmente, pela acumulação das
diversas coordenadas, atingem esse setor e, principalmente. os jo-
vens e as mulheres.

É necessário todavia precisar os seguintes pontos:


1) as delimitações concretas que atravessam esses setores de
trabalho da nova pequena-burguesia, ao demarcarem essa fração
-de polarização objetiva proletária, dependem da própria divisão
social do trabalho por ramos, setores etc. É dessa divisão que de-
pende a fronteira· concreta de tal delimitação: um funcionário,
356 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

por exemplo, que, considerado abstratamente, é "formalmente"


assimilável a um "executivo médio" dos bancos, e não a um sim-
ples "empregado" dos bancos, pode, entretanto, como este último,
depender, em virtude da divisão social do trabalho que caracte-
riza o aparelho de Estado ao qual ele pertence, da fração de po-
larização objetiva proletária, enquanto o "executivo médio" dos
bancos disso não depende. Com efeito, é preciso lembrar: a) o ar-
bitrário todo particular e característico, bem conhecido dos sindi-
calistas, das "redes" e "qualificações" no seio do trabalho inte-
lectual que, de um setor a outro, podem cobrir situações total-
mente diferentes, ao passo que a qualificação operária oculta um~,
"lógica" capitalista da produção; b) o arbitrário da classificação
do INSEE por "profissões" e categorias socioprofissionais, as fra-
ções aqui questionadas não recobrindo as classificações do INSEE
que só podem ser utilizadas como um simples indicador: precisa-
mos somente lembrar que um simples professor primário é consi-
derado pelo INSEE como fazendo parte dos "executivos médios"
da mesma. forma que um "executivo administrativo médio", en-
quanto o primeiro está abaixo da hierarquia do corpo docente,,
e o outro, em compensação, ocupa um lugar privilegiado em re-
lação aos simples empregados, dependendo do processo de traba-
lho a que pertence. Enfim, os diversos "executivos médios'-' do
INSEE estão longe de exercer, todos e no mesmo grau, uma real
/unção de enquadramento;
2) nessa fração, podemos ainda, seguindo as mesmas linhas
diretrizes, circunscrever camadas particulares. É principalmente o
caso para a pesquisa e o ensino. No caso da pesquisa e de seus
agentes que não estão diretamente presentes no seio do trabalho
produtivo, descobrimos atualmente, além da extensão caracterís-
tica desse setor, sua assalarização e burocratização pronunciadas
e as novas formas de desemprego acentuado (trabalho esporádico,
por exemplo) : situação dos laboratórios de pesquisa, que foi am-
plamente estudada ne·stes últimos anos 25 • Os agentes subalternos
de um setor que antes gozava de reais privilégios de casta são
afetados pela desqualificação e parcelização do trabalho intelec-
tual, que assume formas particulares, entre as quais ,a verdadeira
pilhagem intelectual de seu trabalho pelos escalões superiores (os
diversos "patrões"), e sua submissão agravada pelos objetivos
diretos da produção monopolista. O que se combina com a baixa
considerável dos salários dos escalões subalternos e com a limi-
25 J.-M. Lévy-Leblo."ld e A. Jaubert, (Auto)critique de la science,
1973, que reúne toda uma série de análises 11.obre esse assunto.
FRAÇÕES DE CLASSE DA r~oVA PEQUENA-BURGUESIA 357

tação atual de suas possibilidades de promoção: é nesse verdadei-


ro exército de reserva inteleétua.l que a contestação do trabalho
intelectual capitalista assume provavelmente as formas mais avan-
çadas. É sabido que fenômenos análogos surgem no próprio seio
do corpo docente do lado de se:us escalões subalternos (agentes
contratuais e auxiliares), com a desqualificação e a parcelização
do trabalho intelectual, que acentua suas delimitações com os es-
calões superiores (diversos professores concursados e outros pro-
fessores). Enfim, além dessas coordenadas, é necessário atribuh
a maior importância ao papel qüte desempenha para esses agentes,
dadas suas funções sociais, a cri.se ideológica atual da burguesia;
3) uma menção especial deve ser feita aos pequenos funcio-
nários, agentes subalternos da função pública. É que fazem parte
da categoriq social dos agentes dos aparelhos de Estado; têm, com
os escalões intermediários, um pertencimento de classe pequeno-
burguês, enquanto os "vértices" desses aparelhos têm um perten-
cimento de classe burguês. Enquanto membros dessa categoria so-
cial, os agentes subalternos da função pública estão particular-
mente submetidos à ideologia inter~a própria desses aparelhos.
No entanto, a degradação da situação dos escalões subalter-
nos pequeno-burgueses dessa catc~goria social é clara. Os salários
foram igualados relativamente aos outros conjuntos pequeno-
burgueses de polarização objetiva proletária, dada a compressão
geral dos salários do setor público em relação àqueles do setor pri-
vado, e foram afetados pela diminuição do afastamento entre eles
e aqueles da classe operária. A renda fiscal anual média por ca-
sal, segundo a categoria socioprofissional do "chefe da casa", era,
em 1962, de 15.637 para os executivos médios da função pública
(categoria B), mas de 23.210 para executivos administrativos mé-
dios do setor privado; de 10. 588 para os empregados da função
pública (categorias C e D), mas de 11. 755 para os empregados dó
setor privado 2'6. Após 1968, o atraso dos salários do setor público
em relação aos salários do setor privado aumentou consideravel-
mente 27 • Paralelamente, os "privilégios" tradicionais da função
pública, que contribuíam para o caráter de casta do famoso
"Beamtentum", acham-se em retração, e isso num duplo sentido:
de um lado, certas vantagens da segurança de emprego, da apo-
sentadoria etc., foram relativamente estendidos às outras cama-
das e frações pequeno-burguesas; por outro lado, permanecendo,
26 Quadro apresentado por Cl. Seibel e J.-P. Ruault, em Darras:
Le Partage des bénéfices, 1966, p. 91.
27 Le Monde de 31 de maio de 1973.
358 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

apesar de tudo, ainda característicos da função pública,. foram re-


.questionados em seu próprio seio para seus escalões subalternos.
Encontra-se também a multiplicação do trabalho auxiliar e c01a-
tratual (ausência de títulos), paralela ao crescimento considerá-
vel dos efetivos, prendendo-se à extensão das funções intervencio-
nistas do Estado em todos os setores da vida pública (o que vai
dos agentes subalternos de diversos serviços públicos, aos "anima-
dores de bairro"*, assistentes sociais, integrantes de associações
juvenis e culturais, agentes da segurança social etc.).

III

A última fração da nova pequena-burguesia de polarização


,objetiva proletária é aquela, acima examinada, dos técnicos e en-
genheirós subalternos, diretamente implicados no trabalho produ-
tivo, na prodUlção da mais-valia. Essa fração teve sempre um per-
:tencimento de classe pequeno-burguês, mas as delimitações que
esboçam seus contornos atravessam o próprio conjunto dos famo-
sos ITC (Engenheiros-Técnicos-Executivos). Seu caso é:, no entan-
to, particular em relação às outras frações pequeno-burguesas de
polarização objetiva proletária: estando diretamente in1plicada na
produção da mais-valia, e apresentando assim certas condições
·objetivas para uma tomada de consciência dos mecanismos essen-
·ciais da exploração capitalista, ela permanece entretanto marcada
pelo seu lugar nas relações político-ideológicas da empresa como
:aparelho. As formas de luta dessa fração, nestes últimos anos,
mostraram ao mesmo te·mpo sua distinção dos diversos conjuntos
·de engenheiros e executivos intermediários, mas também a ambi-
güidade de suas relações (enquanto "domínio" e "carnisas bran-
·cas") com a classe operária. Não vou insistir dàqui em diante em
:aspectos bastante conhecidos: observarei, simplesmente, que uma
das razões) além daquelas que assinalei (verborréia sobre "a auto-
mação" e o "desaparecimento dos os"), que contribuíram para
·designar a essa fração um papel inteiramente desproporcionado
nas lutas dos anos 60 (a nova classe operária) consistia nas pos-
·sibilidades particulares que, segundo as diversas concepções ·tec-
·nicistas, nós lhes atribuíamos no bloqueio da produção. Soubemos,
·depois, que as novas possibilidades de luta (greves-paralisações ou
greves-tromboses) oferecidas pela organização capitalista do tra-
balho na realidade existem, mas do lado precisamente dos os.

* "Animateurs de quartiers". (N. do T.)


X. A SITlJAÇÃO ATUAL
DA PEQUENA-BURGUESIA TRADICIONAL

Finalmente, seria necessário lembrar o processo atual de li-


mitação progressiva da pequena-burguesia tradicional. Essa limi-
tação prende-se ao domínio dos efeitos de dissolução que o capi-
talismo monopolista, na sua fase atual, impõe às formas comer-
ciais simples.
De fato, entre 1954 e 1968, constata-se, na França, um ritmo
característico de diminuição dessa pequena-burguesia 1 :

1954 1962 1968

Artesãos 734.280 637.897 619.808


(9b sobre o conjunto da
população ativa) (3.3) (3.0)

Pequenos comerciantes 1.268 .. 740 1.133 .965 1.026.216


(% sobre o conjunto da
população ativa) (5.9) (5,0)

O que provoca algumas observações:


1. Esse processo, se está atualmente marcado por uma ace-
leração particular,· não é de fato novo: já apareceu, e se afi_rmou,
em todos os países capitalistas adiantados, inclusive na França,
entre as duas guerras, isto é, já durante as fases de transição e

1 Fontes: Recenseamentos do INSEE.


360 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

de consolidação do capitalismo monopolista. Mas, na França, ele


se apresentou de forma mais lenta e padronizada, dado o apoio
característico da burguesia francesa a essa pequena-burguesia,
diante da classe operária;
2. Esse processo de limitação atual, se assume certamente
proporções importantes, está, mesmo assim, longe de atingir, para
essa pequena-burguesia, as proporções e as formas de efetiva eli-
minação que atinge principalmente para o campesinato pobre (a
parte do conjunto dos agricultores na população ativa tendo pas-
sado de cerca de 190/o em 1954 para cerca de llo/o atualmente);
3. Uma parte dos agentes, relativamente fraca é verdade,
expulsa dessa pequena-burguesia, não está pura e simplesmente
proletarizada, mas passa dessa pequena-burguesia ao capital não-
monopolista, dada a constante ressurgência deste sobre o capita-
lismo monopolista. Se, entre 1954 e 1966, no setor das "e·mpresas
artesanais" principalmente, o número daquelas que empregam de
O a 5 assalariados diminuiu de 127. 500, o número daquelas em-
pregando de 6 a 9 assalariados foi acrescido de 73. 000, provindo
uma parte desse crescimento da passagem de pequeno-burgueses
ao estatuto de pequenos capitalistas;
4. Mas essas constatações deve·m ser ponderadas por uma
outra: a passagem de certo número de operários, na maior parte
jovens, para essa pequena-burguesia. Entre 1.959 e 1964 princi-
palmente, 40. 000 operários qualificados e 20. 000 os se definiram
"por sua própria conta" como artesãos (um terço dentre eles sen-
do filhos de artesãos), um número mais fraco como pequenos co-
merciantes e no setor serviços (sendo este igualmente o caso,
mas para um número bem menor, no que concerne aos pequenos
campone·ses que se evadem da terra). Quando se toma isso em
consideração, observa-se que o ritmo de expulsão desses agentes
pequeno-burgueses é mais importante do que o ritmo de restrição
do lugar dessa pequena-burguesia, tal como aparece nas estatísti-
cas de recenseamento geral: essas entradas de· novos agentes na
pequena-burguesia tradicional disfarçam outras tantas saídas de
agentes antigamente pequeno-burgue·ses, que caem em sua grande
maioria na classe operária, e que se encaminham, em menor pro-
porção, em direção aos empregados. Assim, a duração de vida das
"empresas" que dependem da pequena-burguesia tradicional é bem
mais curta do que no passado, o que tem efeitos importante·s pela
insegurança característica que atinge esses agentes em suas con-
dicões de e·xistência.
SITUAÇÃO ATUAL DA PEQUENA-BURGUESIA 361

Mas a questão da limitação da pequena-burguesia tradicional


não é a única. Ê necessário levar em consideração suas condi-
ções de vida, que se degradam regularmente, principalmente pela
transferência crescente do lucro, nesse setor, para o capital mo-
nopolista: o que está claro nas relações entre o pequeno comércio
e as grandes áreas do capital comercial concentrado. Mas essa
degradação deve sempre ser considerada em relação às condições
de vida da classe operária, e mesmo àquelas das frações da ·nova
pequena-burguesia, já questionadas anteriormente (os emprega-
dos principalmente). Dada a pobreza das estatísticas francesas so-
bre a questão das rendas não-assalariadas principalmente, não se
podem adiantar cifras precisas. Observemos, no entanto, a polí-
tica, muito clara atualmente, da burguesia francesa sobre a ques-
tão do fisco, que dá privilégios consideráveis a essa pequena-bur-
guesia e, em particular, ao pequeno comércio, em relação à classe
operária e às frações em questão da nova pequena-burguesia, fa-
zendo estas últimas pagarem o preço das tentativas desesperadas
de manutenção do apoio da pequena-burguesia tradicional: entre
outros aspectos, pelas comportas da f(aude fiscal, nos últimos tem-
pos grandemente abertas a esta, pela abolição dos corretivos que
existiam anteriormente, em favor das rendas salariais não-dissi-
muláveis da classe operária e das frações da nova pequena-burgue-
sia. Não deveríamos esquecer também os mecanismos políticos da
inflação e o aumento dos preços pelos quais a burguesia, recupe-
rando as vantagens salariais arrancadas da alta luta pelas massas
populares assalariadas, cede migalhas ao pequeno comércio sobre
as costas dessas massas.

Podemos finalmente estabelecer, também aqui, diferenciações


em frações de classe dessa pequena-burguesia: sabemos especial-
mente que os artesãos, por parte da própria natureza de seu tra-
balho e da permeabilidade particular do artesanato aos agentes
da classe operária, sempre apresentaram uma polarização objetiva
proletária muito mais definida do que o pequeno comércio: o ar-
tesanato foi o berço do sindicalismo revolucionário e as tradições
de luta encontram-se nele particularmente vivas.
Quanto ao pequeno comércio, sabemos sobretudo que a pre-
cariedade de sua situação traduziu-se ultimamente por lutas mui-
to vivas (cm-Unati, movimento de G. Nicoud etc.) que parecem,
provavelmente, pela primeira vez depois de 1920 na história desses
movimentos na França, romper com o apoio tradicional à bur-
guesia, manifestado, entre outros aspectos, pelo artifício da
362 As CLASSES Soc1A1s NO CAP-ITALISMO DE HoJE

recuperação burguesa "interclasses" do tipo PME (pequenas e mé-


dias empresas). Màs é necessário observar bem: a) de um lado
que, dadas as modificações :atuais da situação desse setor, seria
certamente falso identificar 1~sses movimentos ao "poujadisme" *
tradicional, e deixar pesar a priori sobre eles a suspeüa, justifica-
da pelo passado, ~e movimentos que trazem consigo germens de
fascistização, assim como a nuvem traria a tempestade; b) mas,
por outro lado, que essas modificações "atuais" não se traduzem
automaticamente, longe disso, por posições de classe que aproxi-
mam esse setor da classe operária. Ê evidente que as dificuldades
características dessa pequena-burguesia comercial não são intei-
ramente novas; já pesavam consideravelmente sobre elas quando
dos movimentos fascistizantes desta na Europa, e eram mesmo, mui-
to exatamente, uma de suas causas: foi também o caso na Fran-
ça para o movimento "poujadista". Certamente as bases objetivas
de um apoio dessa pequena-burguesia à burguesia tornam-se, ape-
sar de sobressaHos tais como a recente "Lei Royer", cada vez
mais fracas: mas isso seria ignorar que, também nos casos de fas-
cismos, tal apoio da pequena-burguesia à burguesia não foi mar-
cado por concessões ·reais desta àquela, ficando a pequena-bur-
guesia (com o campesina to pobre) como a principal vítima eco-
nômica do fascismo: os fatores ideológicos e políticos assumem
aqui um peso decisivo.
Com e.feito, é preciso le:mbrar, dada á importância atual do
problema, que não se trata aqui do capital não-monopolista e
outros "pequenos patrões", mas dos agentes que não exploram, ao
menos principalmente, o trabalho assalariado, e que não se pode
identificar essa pequena-burguesia com o capital puro e simples,
considerando-a como uma burguesia "menor" do que as outras
(diferenciações que são de fato omitidas pelas estatísticas oficiais 2 ).
Seria cometer o erro exatam1~nte inverso àquele do PC que. consi-
dera, praticamente, o capital não-monopolista como fazendo parte
dessa pequena-burguesia. Sob o signo do amálgama do tipo PME-,
e sob o termo "pequeno capital", somos conduzidos aqui a uma
extensão das alianças da classe operária. com o capital não-mono-
polista (a certas partes da burguesia), incluindo esse capital na
pequena-burguesi~: aí, numa restrição a priori. das alianças, in-
cluindo essa pequena-burguesia no capital, e negligenciando suas
possibilidades, segundo as conjunturas, de aliança com a classe
·'

*"Poujadisme'' refere-se ao movime:ito político criado por Pierre


Poujade (1920- ), em 1956. (N. do T.)
2 Ver acima, ·pp. 163 sq.
SITUAÇÃO ATUAL DA PEQUENA-BURGUESIA 363

operária. Não é menos verdade que, no caso dessa pequena-bur-


guesia (pequeno comércio em particular), essas possibilidades pa-
reçam certamente mais limitadas do que no caso de frações de
polarização objetiva proletária da nova pequena-burguesia, e do
salariado não-produtivo: e isso não somente por razões econô-
micas (pequena propriedade), mas igualmente por razões político-
ideológicas que se prendem, entre~ outras, à tradição histórica das
lutas de classe na França.
XI. CONCLUSÃO:
AS PERSPECTIVAS POLíTICAS

Podemos assim tentar tirar certas conclusões. Começarei pelo


primeiro ponto importante: é necessário constatar que, até aqui
e nos países europeus, para só nos referirmos a eles, a polarização
das posições de classe d.essas frações pequeno-burguesas não escon-
de a polarização objetiva que, conjugada às transformações atuais,
marca sua deter,minação de classe. Em outras palavras, não se
constata ainda materialização de uma aliança de partes impor-
tantes dessas frações com a classe operária em objetivos precisos
de uma revolução socialista: o que é claro, já que não se confun-
dem o processo revolucionário e os diversos Governos social-
democratas.
A questão é decisiva, principalmente na França, e re.fere-se
de fato, basicam.ente, à nova pequena-burguesia. Em vão repeti-
mos de forma fantasiosa os dogmas da aliança "privilegiada"
operários-camponeses; os fatos e·xistem, e é necessário enfrentá-
los: de um· 1ado, trata-se de setores que ainda estão destinados a
aumentar consideravelmente nos países capitalistas desenvolvidos,
e a ter um papel muito importante na reprodução das relações
sociais, e também, pois, em sua revolucionarização; por outro
lado, as classes populares rurais, em particular o pequeno cam-
pesinato parceiro, estão inelutavelmente condenados, no conjun-
to dos países europeus adiantados, e em graus certamente desi-
guais, a uma diminuição rápida ao mesmo tempo de seu peso
social e de seus agentes: a França forneceu nestes últimos anos
o exemplo prodigiosamente precipitado dessa diminuição.
Poderei mesmo afirmar, livrando-me de ser tachado de he-
rege, que se trata aí de uma possibilidade histórica de revolução
socialista, particularmente na França. De fato, é necessário ainda
lembrar o fenômeno evidente, que marcou a histórfa das lutas de
CONCLUSÃO: As PERSPECTIVAS POLÍTICAS 365

classes na França: o campesinato francês, inclusive o pequeno


campesinato parceiro, foi um dos principais baluartes da ordem
burguesa, e um dos principais obstáculos para a revolução socia-
lista emL um país marcado pela combatividade excepcional e exem-
plar da classe operária. O mérito histórico (para ela) da bur-·
guesia francesa foi ter sabido, por uma série de compromissos·
importantes, apoiar-se na pequena propriedade campe·sina, cujo
apoio, nas voltas decisivas da luta das classes, quase nunca lhe fez
falta. Dos dois Bonapartes, até à Comuna, à cris.e após a Primei-
ra Guerra Mundial, à Frente Popular e ao "gaullismo", a lista.
seria longa. Por outro lado, o jracasso histórico das direções da
classe operária foi por não ter podido, ou sabido, forjar e cinaen-
tar uma aliança revolucionária operário-camponesa na França,.
exceção feita, provavelmente, para uma parte do pequeno c:am-
pesinato, durante a Segunda Guerra Mundial e a Resistência. :Não
se trata aqui, em nenhum caso, de definir responsabilidades, mas
de constatar os fatos. O pequeno campesinato francês pagou pe-·
sado, e ainda não acabou de pagar, seu apoio à burguesia contra
a classe operária: mas a classe operária pagou também. Há certa-·
mente razões para se pensar que o que resta desse pequeno cam-
pesinato chegará a ter consciência de seus verdadeiros intere~sses
de classe, ainda que sua atitude, precisamente ao longo do pro-
cesso d1~ sua eliminação precipitada nestes últimos anos, demons-
tre que o peso do passado, com algumas recentes exceções, pesa
ainda muito sobre ele. Mas, embora essa aliança permaneça sem-
pre muito importante, pode-se dizer que, de qualquer maneira, os:
jogos ei;tão desde já, de alguma forma, armados. A perspectiva
nesse sentido não envolve mais tanto o próprio campesinato par-·
ceiro como classe rural, mas os filhos dos camponeses que, ex-
pulsos da terra, trabalham nas fábricas e nas cidades, como "cam-
. poneses trabalhadores".

Assim, o desenvolvimento maciço do salariado das cidades


e da nova pequena-burguesia, articulado à polarização objetiva
proletária de suas frações, que englobam a grande maioria de:sses
assalariados, constitui a nova possibilidade histórica da revolução
socialista na França. Não que a burguesia francesa não tenha
tentado e não tenha chegado, durante muito tempo, a se apoiar
tambémL na pequena-burguesia das cidades: o fenômeno, entre ou-
tros, do jacobinismo-radicalismo é disso testemunha. Mas essas
tentativas foram coroadas de sucesso sobretudo no que· se refere
à pequ ena-burguesia tradicional, o que participa do fen&neno
1
366 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

geral do apoio, durante muito tempo, da burguesia francesa sobre


; pequena· produção e a pequena propriedade. O apoio que ela
se assegurou ao lado da nova pequena-burguesia, e que foi sem-
pre relativamente limitado, traduziu-se de forma específica: sob
a forma do radicalismo republicano precisamente, não tendo a
nova pequena-burguesia francesa sido quase atingida .por movi-
mentos de massa fascistas, como foi o caso de certos países capi-
talistas avançados.
Ora, no processo atual do capitalismo monopolista, são as
próprias bases objetivas desse apoio que estão minadas, e isso
de .forma radical para as frações mencionadas da nova pequena-
bur,guesia, frações que apresentam precisamente um desenvolvi-
mento importante. Encontra-se aí uma causa fundamental da cri-
se hegemônica latente que afeta atualmente a burguesia francesa
(e, aliás, não somente a ela) e que pode ter e.feitos decisivos.
Ela pode traduzir-se por uma aliança da classe operária com
essas frações da nova pequena-burguesia num processo prolonga-
do,. isto é, ininterrupto e por etapas, de revolução socialista: isso
quer dizer claramente que ela não terá necessariamente esses efei-
tos. É preciso abandonar de uma vez por todas as ilusões que têm
freqitientemente acalentado o movimento revolucionário, ao longo
de Sllla história, e segundo as quais uma polarização objetiva pro-
letária da determinação de classe somente poderia levar necessa-
riamente a termo uma polarização das posições de classe.
Chegamos assim ao segundo aspecto da questão: essa polari-
zação da nova pequena-burguesia em direção a posições de classe
proletárias depende, em um sentido, da relação de força entre a
burguesia e a classe operária. Uma das características da "oscila-
ção" própria da pequena-:burguesia é que ela é polarizada, na re-
lação estratégica das duas forças principais das formações capita-
listas,, em direção à burguesia e ao proletariado, e que· ela tem
mais tendência em adotar as posições de classe proletárias. do
que a própria classe operária, mais forte em sua relação com a
burguesia. Mas o cerne do problema é que, precisamente, a rela-
ção das forças entre a burguesia e a classe operária só .pode ser
radicalmente modificada na medida do estabelecimento das alian-
ças da classe operária com as outras classes, e frações de classe,
populares, e portanto na medida da sedimentação do "povo"' con-
tra a burguesia.
O que nos leva a uma segunda constatação: essa polarização
da nova pequena-burguesia em direção às posições de classe pro-
letárias depende essencialmente da estratégia da classe operária,
CONCLUSÃO: As PERSPECTIVAS PoLíncAs 367

e de suas organizações de luta de classe, nesse sentido. Com efeito,


a pequena-burguesia não tem posição de classe autônoma a longo
prazo e não pode, em geral, a ,história o demonstrou, ter organi-
zações políticas próprias: partidos políticos pequeno-burgueses no
sentido rigoroso, isto é, partidos que representam efetivamente,
a longo prazo e de forma dominante, os interesses específicos da
pequena-burguesia, raramente existiram. Em compensação, o que
se encontra mais freqüentemente são partidos burgueses de clien-
tela pequeno-burguesa (mas também operária), ou seja, partidos
que representam, de forma predominante, interesses burgueses
mas que sabem assegurar-se o apoio da pequena-burguesia.
Esses elementos são de grande importância. De fato, a pola-
rização da pequena-burguesia em direção a posições de classe pro·
}etárias depende da representação, e nã~ simplesmente da "toma-
da de encargo" - como uma obrigação penosa -, da pequena-
burguesia pelas próprias organizaÇões da luta de classe· da classe
operária. Essa polarização depende assim, essencialmente, da es-
tratégia dessas organizações, unificando o povo no processo de
luta das classes e das alianças, sob a hegemonia da classe operá-
ria: ela depende, pois, da direção da classe operária na aliança
populat.
Trata-se, com efeito, de um processo ininterrupto e por eta-
pas: nã.o se trata do "grande dia" em que a classe operária pro-
vocaria sozinha, com o risco de esperar que nesse momento a pe-
quena-burguesia, na melhor das hipóteses, perdesse seu equilíbrio,
ou, na pior das hipóteses, fosse neutralizada. Isso implica que essas
frações pequeno-burguesas não devam ser consideradas como na-
tural e essencialmente imutáveis, podendo ser somente engaja.das
nesse sentido na causa da classe operária sob a forma simples de
"compromisso" e de "concessões".
Por um lado, isso quer dizer que a unidade popular sob a
hegemonia da classe operária só pode ser baseada na diferença de
classe das classes e frações que fazem parte da aliança: essa uni-
ficação é contemporânea à solução, por etapas, das "contradiç6es
no seio do povo". Mas, por outro lado, trata-se bem de um pro-
cesso de unificação e de um processo de estabelecimento da he-
gemonia da classe operária no seio dessas classes e frações, sendo
estas próprias transformadas nas lutas que, por etapas, marcam
esse processo, colocando-se assim nas posições de classe da clas:se
operária. Essas próprias posições são somente constituídas na m_e-
dida do estabelecimento dessa aliànç:a e dessa hegemonia, e não,
no sentido próprio, sobre o modo de concessões da classe ope-
.368 As CLASSES SOCIAIS NO CAPITALISMO DE HOJE

rária a seus aliados tomados tais como são, mas pelo estabeltkir-
mento de objetivos que, nas lutas ininterruptas e por etapas, sob
sua direção, as podem transformar, levando-se em conta sua pró-
pria determinação de classe e sua polarização específica que são
por elas caracterizadas.
Tenho consciência do caráter indicativo e lapidar dessas ob-
servações; mas elas visam somente a acentuar o verdadeiro pro-
blema, sem contudo pretenderem responder à pergunta: então,
·que e como fazer? Com efeito, não me cabe fornecer a resposta
a essa questão que está no centro do debate atual sobre a estraté-
gia revolucionária, o que também não foi o objetivo deste texto.
De fato, teria sido necessário, entre· outras coisas, empreender
um estudo, sob esse aspecto, da história e das experiências do
movimento operário e revolucionário internacional, de suas or-
ganizações, das concepções e de suas voltas sobre as questões do
processo revolucionário, da organização (partido-sindicatos), das
alianças etc., enfim, cercar de mais perto o sentido e os funda-
mentos da ideologia e das correntes socialdemocratas. Meu obje-
tivo, neste· texto, foi contribuir para o conhecimento mais preciso
desses aliados, de suas determinações objetivas e das lutas que se
travam atualmente, tentando, na m·edida do possível, aproveitar
os ensinamentos e me precaver contra certas concepções teórico-
políticas atuais. É porque estou convencido de que ainda há tem-
po para aprofundar-me ainda mais nesses conhecimentos e pes-
·quisas precisas, por mais árduo que seja o caminho. Sem esses
conhecimentos, as diversas estratégias elaboradas arriscam-se, na
melhor das hipóteses, a permanecer mortas; e, na pior, a conduzir
:a graves derrotas.
A ESTRUTURA DE CLASSES
DAS SOCIEDADES AVANÇADAS
ANTHONY GIDDENS

da Unive-rsidad6 de Cambridge

Está a teoria sociológica em condições de responder à própria


questão central da Sociologia, que é a das classes sociais e dos
conflitos de classe? Ou será necessária a elaboração de uma nova
teoria social que possibilite à Sociologia dar resposta adequada
àqueles problemas? A ruptura dos padrões de consenso político
nas sociedades capitalistas, o aumento de nível das tensões sociais
nessas mesmas sociedades, refletido no crescimento do número
de greves operárias e nos movimentos estudantis de protesto, e
os conflitos que irromperam no mundo socialista, fizeram a Teoria
Social adernar num "momento de transição", e a Sociologia de-
sembocar numa crise, que impede a justa explicação daqueles
eventos.
1
ANTHONY GIDDENS procede ao exame das principais teorias
de classe, como as de MARX, WEBER, DAHRENDORF, ARION, e Os-
::'.OWSKI. Submete a implacável crítica os críticos de M.ARx, para,
em seguida, deter-se em outros problema.S como o das classes e
da dl'v1sào ao trabalho, da gênese de conflito de classes, das formas
que assumem as relações de classe, da consciência de classe, e
o das elites e o poder. A análise do desenvolvimento capitalista
leva GIDDENS a abo,Tdar a questão do aparecimento das novas
classes, média e operária, do trabalho produtivo e improdutivo,
do mercado, da empresa e o seu gerenciamento e do crescimento
da intelligentsia. Do seu espectro analítico fazem parte ainda os
problemas da tensão e da mudança sociais, e o do futuro da
sociedade de classes. A redução da classe operária e o cresci-
mento . da classe média nas sociedades capitalistas avançadas é
uma das características da estruturação social contemporânea, des-
tinada a mudar a perspectiva da teoria da luta de classes, fa-
zendo com que a mediação institucional de poder, separando o
"político" e o "econômico", represente o maior desafio ao atual
pensa~ento socialista e às formas de organização política que
ultrapassam esta ideologia.
A riqueza de idéias de A Estrutura de Classes das Sociedades
·Avançadas constitui uma das mais importantes contribuições já
oferecidas ao desenvolvimento da cultura sociológica brasileira.
A.NTHONY GIDDENS, professor de Sociologia na Universidade de
Cambridge, é um dos nomes mais conhecidos e respeitados do
moderno pensamento social europeu.

ZAHAR

~ A cultura a serviço do progresso social


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