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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LINGUÍSTICA
GRADUAÇÃO EM LETRAS: LICENCIATURA EM LÍNGUA PORTUGUESA

COMPONENTE CURRICULAR: PRAGMÁTICA


PROF. DR. LEONARDO GUEIROS

ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO

Referências bibliográficas utilizadas:

KERBRAT-ORECCHIONI, C. Análise da Conversação. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

Tópicos da aula

a. O campo de atuação da Análise da Conversação e sua relação com os estudos


pragmáticos
b. As dimensões das interações conversacionais e a validação interlocutória
c. O material da interação conversacional
d. O sistema dos turnos de fala

Situando a reflexão...

Sob a aparente “desordem” do oral espontâneo, escondem-se regularidades que são de natureza
diversa das que se observam na escrita, porque as condições de produção/recepção do discurso
são de outra natureza. E, se permanecemos durante tanto tempo cegos a essas regularidades que
a análise conversacional traz hoje à luz, é sem dúvida porque estamos muito acostumados a nos
“acomodar” exclusivamente ao discurso escrito.

É paradoxal constatar que, apesar de as conversações serem, antes de tudo, objetos e linguagem,
a linguística só tenha vindo a se interessar por elas tardiamente e sob a pressão de pesquisas
conduzidas além de suas fronteiras. Mas o fato é esse: até muito recentemente, a linguística se
ocupava essencialmente desse sistema abstrato que é a língua, apreendida a partir de exemplos
produzidos para a circunstância; quando ousados a enfrentar o discurso, geralmente se tratava de
discursos escritos e “monologais”.

Só bem recentemente é que se assiste à reabilitação do empirismo descritivo e se reconhece a


necessidade de conceder prioridade a corpora “autênticos”. Nessa perspectiva as construções
teóricas são inteiramente postas a serviço dos dados, e não o contrário; também se devem
priorizar os discursos orais e dialogados, considerados como a forma primordial de realização
da linguagem.

Catherine Kerbrat-Orecchioni, em Análise da Conversação, 2006.


A linguagem verbal tem, por essência, uma vocação comunicativa. O exercício da interação
oral, nesses termos, implica três processos:

a. Alocução: ação linguística produzida de um interlocutor a outro. O intercâmbio verbal


depende de, pelo menos, um interlocutor físico distinto do falante organizador do
discurso. PROCESSO
b. Interlocução: troca verbal entre interlocutores que, no diálogo, permutam os papéis de
emissor e de receptor. A interlocução representa para os indivíduos “a experiência
linguística por excelência: a comunicação oral face a face, na qual pelo menos dois
falantes (que chamarei de F1 e F2) se exprimem, cada qual em seu turno” (Kerbrat-
Orecchioni, 2006, p. 8). TROCA
c. Interação: dimensão comunicacional da troca verbal, em que interlocutores exercem
entre si influências mútuas, negociam sentidos, processam informações implícitas,
estabelecem cálculo metal e julgam o que devem/podem falar, avaliam os diferentes
contextos e agem orientados por certas intenções. PROCESSAMENTO

AS DIMENSÕES DAS INTERAÇÕES CONVERSACIONAIS E A VALIDAÇÃO


INTERLOCUTÓRIA

Para que haja troca comunicativa, não basta que dois falantes (ou mais) falem alternadamente; é
ainda preciso que eles se falem, ou seja, que estejam, ambos, “engajados” na troca e que deem
sinais desse engajamento mútuo, recorrendo a diversos procedimentos de validação
interlocutória. (Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 8).

Validações interlocutórias nas diferentes dimensões da interação conversacional:

a. No interlocutor emissor (atividade fática)

O emissor em geral sugere estar falando com alguém, pela orientação do corpo, pela direção do
olhar, pelas formas de tratamento.

Aquele que toma a palavra tende a utilizar certas estratégias linguísticas para manter a natureza
dialogal da comunicação oral (“né?”, “entende?”, “sabe...”, “você vê...”, “ok?”, “nem te conto”,
“vou te contar...” etc.).

Chamamos esse tipo de validação de fáticos.

b. No interlocutor receptor (atividade reguladora)

Na interação conversacional, o receptor tende a produzir validações interlocutórias cuja função


é sinalizar a seu interlocutor que está, de fato, participando daquele evento de alocução.

É caso, por exemplo, de

(i) sinalizações não verbais: olhar, balançar de cabeça, franzimento de sobrancelha,


sorriso, mudança sutil de postura etc.
(ii) sinalizações verbais: “sim”, “certo...”, “uhum”, “entendo”, “mesmo?”, “jura?” ou
mesmo retomadas na forma de eco.
Chamamos esse tipo de validação de reguladores (ou sinais de escuta).

“A produção regular desses sinais de escuta é indispensável para o bom funcionamento da troca:
experiências provaram que sua ausência acarreta importantes perturbações no comportamento
do falante” (Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 9).

c. Na sincronização interacional (atividades fática e reguladora em conjunto)

As atividades (a) fática e (b) reguladora funcionam conjuntamente.

Falante e ouvinte, no diálogo conversacional face a face, estabelecem um tipo de negociação


organizada pela relação entre atividades fáticas e reguladoras.

Vejamos como se dá essa negociação:

 em caso de falha do falante (que manifesta um certo embaraço na sua elocução), o


ouvinte tende espontaneamente a multiplicar os reguladores;
 em caso de falha do ouvinte (que produz sinais de “desinteresse”), o falante tende
espontaneamente a multiplicar os procedimentos fáticos.

(Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 10)

Percebe-se que, na interação face a face, o ato conversacional é fundamentalmente


colaborativo, cooperativo. Estabelece-se na dinâmica da troca verbal e não verbal.

AS REGRAS CONVERSACIONAIS
Quando interagimos em práticas de conversação – cumprimentando alguém, conversando
informalmente, participando de uma entrevista de emprego, ministrando uma aula etc. –,
atendemos a algumas regras (ou condutas) gerais, sobre as quais Kerbrat-Orecchioni (2006, p.
14-15) trata nos seguintes termos:

 Essas regras são de natureza bastante diversa, porque as conversações são objetos
complexos que funcionam em diferentes níveis.
 Algumas dentre elas valem para todos os tipos de interação e outras são específicas de
um ou de outro gênero particular.
 Variam amplamente, segundo as sociedades e as culturas.
 Estão em conjuntos relativamente flexíveis (mais flexíveis, por exemplo, que as regras
da gramática das frases).
 São adquiridas progressivamente desde o nascimento, mas não se constituem, em sua
maioria, como o objeto de um aprendizado sistemático.
 São aplicadas de maneira inconsciente (a consciência da existência de tais regras quase
nunca ocorre).

O objetivo da Análise da Conversação é, justamente, explicar como e em que condições


funcionam essas regras conversacionais que regem a troca verbal face a face. Ou, em outras
palavras, “decifrar a ‘partitura invisível’ que orienta (sempre lhe deixando uma ampla margem
de improvisação) o comportamento daqueles que se encontram engajados nessa atividade
polifônica complexa que é a condução de uma conversação.”

(Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 15).

O MATERIAL DA INTERAÇÃO CONVERSACIONAL


A interação conversacional é constituída não apenas por palavras (material linguístico), mas
também por silêncios, entoações, gestos, mímicas, olhares, posicionamento corporal etc.

São mobilizados na conversação, portanto, diferentes sistemas semióticos. Esses sistemas


configuram o material da interação conversacional.

Vejamos três tipos de material da conversação: (a) verbal, (b) paraverbal e (c) não verbal.

a. Material verbal

Elementos linguísticos – recursos fonológicos, morfossintáticos e lexicais de que se apropria o


falante para produzir seu turno. Dimensão linguística da conversação.

b. Material paraverbal

Elementos prosódicos – entonações, pausas, intensidade articulatória, particularidades da


pronúncia, características da voz. Dimensão vocal transmitida pelo canal auditivo.

c. Material não verbal

Elementos não linguísticos – aparência (transmite informações culturais e identitárias sobre o


indivíduo), gestos, olhar, expressões faciais, postura, conduta corporal e controle do espaço.
Elementos apreendidos pelo canal visual.

Em certas situações de conversação face a face, elementos não verbais funcionam como
CONDIÇÃO NECESSÁRIA PARA O INÍCIO, A MANUTENÇÃO E O ENCERRAMENTO DA INTERAÇÃO.
Vejamos alguns exemplos:

a. Para iniciar uma interação conversacional face a face, é preciso que o falante (i)
desloque-se em direção a seu interlocutor, (ii) aproxime-se dele suficientemente, (iii)
vire-se em sua direção e (iv) estabeleça contato visual mínimo.
b. Para manter uma interação conversacional face a face, é preciso que os interlocutores
estabeleçam uma distância física adequada ao tipo de interação (e ao gênero). Também
devem, para bom funcionamento da interação, trocar olhares, produzir validações
interlocutórias fáticas etc.
c. Para encerrar uma interação conversacional face a face, é preciso que os parceiros do
diálogo se afastem fisicamente ou que desviem o contato visual.

Conseguimos claramente perceber que o DIÁLOGO CONVERSACIONAL FACE A FACE vai muito
além da simples troca de palavras.

“Falamos com nossos órgãos vocais, mas é com todo o corpo que conversamos” (D.
Abercrombie)
ESPECIFICIDADES DA MODALIDADE ORAL DA LÍNGUA
A oralidade configura a modalidade mais natural da linguagem verbal.

A língua falada tem uma organização própria, muito distinta da língua escrita.

Comumente, certas características do texto falado são encaradas como vícios ou equívocos que
devem ser evitados.

Exemplos dessas supostas “falhas” que ocorrem no texto falado: interrupções abruptas, lapsos,
frases inacabadas, repetições, reformulações, marcadores de hesitação (é... hmm...), bem como
os marcadores das atividades fáticas de que falamos acima (né? ok? entende? certo? etc.)

Essas supostas “falhas” (ou “vícios”, como se costuma dizer no senso comum) ocorridas no
texto oral não raro exercem certas funções comunicativas no processo interacional. Vide os
marcadores das atividades fáticas.

Vejamos o que diz Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 38-39) sobre frases provisoriamente


interrompidas no momento da interação face a face:

Quando se trabalha com gravações em vídeos, constata-se que as interrupções desse tipo
(“autointerrupções”) coincidem frequentemente com uma baixa de atenção do ouvinte, marcada
por um desvio prolongado do olhar. A interrupção tem, portanto, por função reconquistar esse
olhar e essa atenção; uma vez que o contato se tenha restabelecido, a frase prossegue
normalmente. (...) a interrupção aparece então como uma espécie de estratégia inconsciente do
falante, visando restaurar o bom funcionamento da troca.

O SISTEMA DOS TURNOS DE FALA


OS TURNOS DE FALA E O PRINCÍPIO DA ALTERNÂNCIA
Embora aparentemente descompromissada ou mesmo caótica, a interação conversacional
obedece a certas regras (não rígidas, porém esperadas).

“Essas regras criam para os interactantes um sistema de direitos e deveres, portanto um sistema
de expectativas, que podem ser satisfeitas ou contrariadas” (Kerbrat-Orecchioni, 2006, p. 43).

Toda interação conversacional funciona por meio de um sistema de sucessão de turnos de fala
em que há, implicitamente, certos direitos e deveres subjacentes. Vejamos, a partir de Kerbrat-
Orecchioni (2006, p. 44):

a. O falante de turno (L1: current speaker) tem o direito de manter a fala por certo tempo,
mas também o dever de cedê-la num dado momento;
b. Seu “sucessor” potencial (L2: next speaker) tem o dever de deixar F1 falar e de ouvi-lo
enquanto ele fala; o sucessor potencial também tem o direito de reivindicar o turno de
fala ao final de certo tempo e o dever de tomá-la quando lhe é cedida.
A sucessão dos turnos de fala segue o que em Análise da Conversação entende por PRINCÍPIO
DA ALTERNÂNCIA. São três as máximas que regulam esse princípio geral da conversação:

1. A FUNÇÃO LOCUTÓRIA DEVE SER OCUPADA SUCESSIVAMENTE


POR DIFERENTES ATORES

Idealmente, uma conversa (a depender do gênero) se caracteriza pelo equilíbrio relativo da


duração dos turnos.

2. UMA ÚNICA PESSOA FALA POR VEZ


Espera-se que não existam muitos casos de sobreposição de fala (overlap). Quando de sua
ocorrência, espera-se que não se prolonguem por muito tempo.

Em geral, quando há casos de overlap, os interactantes operam com estratégias de negociação


pela posse (ou pela cessão) do turno de fala.

Essas negociações podem tomar diferentes tons: agressivo (vai me deixar falar?) – cortês (é
rapidinho, me permita só terminar o meu raciocínio).

Essas negociações podem acontecer de modo explícito ou implícito. Vejamos, com base em
Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 45):

 NEGOCIAÇÃO EXPLÍCITA: recorre-se a um enunciado metacomunicativo (“Deixe-me


falar, por favor”, “Espere, eu ainda não acabei”, “Desculpe-me, não quero interrompê-
lo” etc.)
 NEGOCIAÇÃO IMPLÍCITA: um dos falantes em competição abdica em proveito do
outro; e as estratégias para se destacar, em caso de sobreposição, são a repetição do
segmento encoberto e o aumento da intensidade vocal.

3. HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE FALA


Idealmente, os intervalos de silêncio (ou gaps) que separam os turnos devem ser reduzidos ao
mínimo.

Por esse motivo, sentimos desconforto quando, em uma conversa face a face, o silêncio é
predominante. Buscamos tomar o turno de fala, mesmo que sem ter o que dizer, ou tentar
convencer o interlocutor a fazê-lo.

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