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DIREITO DA EDUCAÇÃO

O DIREITO DE SER, SENDO


DIFERENTE, NA ESCOLA*
Maria Teresa Eglér Mantoan

RESUMO

Alega que a proposta de incluir todos os alunos em uma única modalidade educacional, o ensino regular, tem-se chocado com uma cultura
assistencialista/terapêutica da educação especial e com o conservadorismo de nossas políticas públicas na área. Enfoca a perspectiva de inclusão
social nos âmbitos jurídico e educacional.
Afirma que, se do ponto de vista legal há de se conciliar os impasses entre a Constituição de 1988 — que não permite a diferenciação pela deficiência
– e as leis infraconstitucionais referentes à educação, do ponto de vista educacional, é urgente estimular mudanças, buscar e divulgar novas práticas
pedagógicas e experiências de sucesso nas nossas escolas.
Para a criação da escola inclusiva, aduz ser premente a redefinição da educação, a qual se deve voltar à cidadania global, plena, livre de preconceitos
e disposta a reconhecer as diferenças entre as pessoas. Além disso, entende que a educação especial, apesar de importante, não constitui um nível de
ensino, devendo ater-se aos limites de suas atribuições e complementar o processo de escolarização de alunos com deficiência regularmente
matriculados em escolas comuns.

PALAVRAS-CHAVE
Educação – especial, básica, fundamental, inclusiva; integração; inclusão; Constituição Brasileira de 1988 – art. 208; Língua Brasileira de Sinais -
Librás; sistema Braile; Lei n. 9.394/96.

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*
Conferência proferida no “Seminário sobre Direito da Educação”, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,
de 23 a 25 de junho de 2004, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.

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1 UMA BREVE INTRODUÇÃO nos em geral, ao provocar mudanças O conhecimento transmitido

P
de base na organização pedagógica pelos professores corresponde a ver-
rogramada para atender a um das escolas e na maneira de se con- dades prontas, absolutas, imutáveis,
aluno idealizado e pautada por ceber o papel da instituição escolar e reprovam-se os alunos que tentam
um projeto educacional elitista, na formação das novas gerações. vencer a subordinação intelectual.
meritocrático e homogeneizador, a Com isso, não evoluem as ini- Com esse perfil organizacional,
escola tem produzido situações de ciativas que visam à adoção de posi- podemos imaginar o impacto da in-
exclusão que têm, injustamente, pre- ções/medidas inovadoras para a clusão na maioria das escolas, espe-
judicado a trajetória educacional de escolarização de todos os alunos, nas cialmente quando se entende que in-
muitos estudantes. escolas comuns de ensino regular, cluir é ensinar a todas as crianças,
Pela ausência de laudos peri- assim como as que se referem aos indistintamente, em um mesmo es-
ciais competentes e de queixas es- serviços educacionais especia- paço educacional: as salas de aula
colares bem fundamentadas, há alu- lizados. de ensino regular. É como se esse
nos que correm o risco de ser admiti- Por outro lado, temos avança- espaço fosse de repente invadido e
dos e considerados pessoas com do do ponto de vista legal, e há no- todos os seus domínios tomados de
deficiência e assim encaminhados vos caminhos pedagógicos que nos assalto. A escola se sente ameaçada
indevidamente aos serviços da edu- permitem retraçar a trajetória de nos- por tudo o que ela criou para se pro-
cação especial. Outros são igualmen- sas escolas, norteados pela inclusão. teger da vida que existe para além
te discriminados em programas de de seus muros e paredes. Novos sa-
ensino compensatório e à parte. 2 UM OLHAR SOBRE A ESCOLA QUE beres, novos alunos, outras maneiras
Há de se acrescentar também TEMOS de resolver problemas, de avaliar a
o sentido dúbio da educação especi- aprendizagem, demandam “artes de
al, acentuado pela imprecisão dos tex- O ensino fundamental – nível fazer” que, como nos diria Certeau1,
tos legais que fundamentam nossos de escolaridade obrigatório para to- a contestem e transgridam o seu pro-
planos e propostas educacionais. Ain- dos – é o que mais parece ter sido jeto educativo vigente.
da hoje, é patente a dificuldade de atingido pela inclusão escolar. De fato, a escola atulhou-se do
distinguir a educação especial, tradi- Uma análise dessa etapa da formalismo da racionalidade e cindiu-
cionalmente praticada, da concepção educação básica é importante, para se em modalidades de ensino, tipos
consentânea e vigente dessa moda- entendermos a razão de tanta dificul- de serviços, grades curriculares, bu-
lidade de ensino: o atendimento edu- dade e perplexidade diante da inclu- rocracia. Uma ruptura de base em sua
cacional especializado. são, especialmente quando o inseri- estrutura organizacional, como pro-
Esse quadro situacional perpe- do é um aluno com deficiência. Os põe a inclusão, é uma saída para que
tua desmandos e transgressões ao alunos do ensino fundamental estão ela possa fluir, novamente, espalhan-
direito à educação e à não-discrimi- organizados por séries escolares, o do sua ação formadora por todos os
nação que algumas escolas e redes currículo é estruturado por disciplinas, que dela participam.
de ensino estão praticando, por falta e o seu conteúdo é selecionado pe-
de um controle efetivo dos pais, das las coordenações pedagógicas, pe- 3 CRISE E TRANSFORMAÇÃO DAS
autoridades de ensino e da Justiça los livros didáticos, enfim, por uma ESCOLAS COMUNS
em geral. “inteligência”, que define os saberes
As escolas e as instituições úteis e a seqüência em que devem 3.1 NOVOS PARADIGMAS E
especializadas ainda resistem muito ser ensinados nas escolas. CONHECIMENTO ESCOLAR
às mudanças provocadas pela inclu- Sabemos que o ensino básico
são, alegando motivos que expõem (educação infantil, ensino fundamen- Vivemos um tempo de crise
a fixidez organizacional dos serviços tal e ensino médio) é prisioneiro da global, em que os velhos paradigmas
dispensados a seus alunos e assisti- transmissão dos conhecimentos aca- da modernidade são contestados e
dos. dêmicos, e os alunos, de sua repro- o conhecimento, matéria-prima da
Desconhecimento e interesses dução, nas aulas e nas provas. A di- educação escolar, passa por uma
corporativistas envolvendo pais, pro- visão do currículo em disciplinas como reinterpretação.
fessores, especialistas fazem com Matemática, Língua Portuguesa etc. A inclusão é parte dessa con-
que a educação de alunos com defi- fragmenta e especializa os saberes testação e implica a mudança do
ciências se dê em ambientes segre- e faz de cada matéria escolar um fim
gados, sem se considerarem as no- paradigma educacional atual, para
em si mesmo, e não um dos meios
vas possibilidades de atendimento a que se encaixe no mapa da educa-
de que dispomos para esclarecer o
partir de alternativas educacionais ção escolar que precisamos retraçar.
mundo em que vivemos e nos enten-
includentes. Muitos outros entraves der melhor. As diferenças culturais, so-
desrespeitam o direito de ser diferen- O tempo de aprender é o das ciais, étnicas, religiosas, de gênero,
te, nas escolas. séries escolares, porque é necessá- enfim, a diversidade humana está
Problemas conceituais, des- rio hierarquizar a complexidade do sendo cada vez mais desvelada e
respeito a preceitos constitucionais, conhecimento, seqüenciar as etapas destacada, e é condição imprescin-
interpretações tendenciosas de nos- de aprendizagem, mesmo sendo este dível para entender como aprende-
sa legislação educacional e precon- o básico, o elementar do saber. Uma mos e como entendemos o mundo e
ceitos distorcem o sentido da inclu- escala de valores também é atribuí- a nós mesmos.
são escolar, reduzindo-a unicamente da às disciplinas, em que a Matemá- O modelo educacional já mos-
à inserção de alunos com deficiência tica reina absoluta, como a mais im- tra sinais de esgotamento e, no va-
no ensino regular. Desconsideram os portante e poderosa, enquanto as zio de idéias que acompanha a crise
benefícios que essa inovação educa- Artes, a Educação Física quase sem- paradigmática, surge o momento
cional propicia à educação dos alu- pre não são valorizadas. oportuno das transformações.

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uma visão determinista, mecanicista,
formalista, reducionista, própria do
pensamento científico moderno, que
(...) podemos imaginar o impacto da inclusão na maioria das ignora o subjetivo, o afetivo, o cria-
escolas, especialmente quando se entende que incluir é dor, sem os quais não conseguimos
romper com o velho modelo escolar,
ensinar a todas as crianças, indistintamente, em um mesmo para produzir a reviravolta que a in-
espaço educacional: as salas de aula de ensino regular. É clusão impõe.
Essa reviravolta exige, em ní-
como se esse espaço fosse de repente invadido e todos os vel institucional, a extinção das
seus domínios tomados de assalto. A escola se sente categorizações e das oposições
excludentes – iguais/diferentes, nor-
ameaçada por tudo o que ela criou para se proteger da vida mais/deficientes – e, em nível pes-
que existe para além de seus muros e paredes. soal, que busquemos articulação, fle-
xibilidade e interdependência entre as
partes que se conflitavam nos nos-
sos pensamentos, ações, sentimen-
tos. Essas atitudes diferem muito
daquelas típicas das escolas tradicio-
As interfaces e conexões que maneiras, e quase sempre está em nais, em que ainda atuamos e nas
se formam entre saberes outrora iso- jogo a ignorância do aluno, diante dos quais fomos formados para ensinar.
lados e partidos e os encontros da padrões de cientificidade do saber
subjetividade humana com o cotidia- escolar. A escola se democratizou 3.2 IDENTIDADE X DIFERENÇA
no, o social, o cultural apontam para abrindo-se a novos grupos sociais,
um paradigma do conhecimento que mas não aos novos conhecimentos. As propostas educacionais
emerge de redes cada vez mais com- Exclui, então, os que ignoram o co- que visam à inclusão habitualmente
plexas de relações, geradas pela ve- nhecimento que ela valoriza e, assim, se apóiam em dimensões éticas con-
locidade das comunicações e infor- entende como democratização a servadoras. Elas se sustentam e se
mações. As fronteiras das disciplinas massificação do ensino e não cria a expressam pela tolerância e pelo res-
estão se rompendo, estabelecendo possibilidade de diálogo entre dife- peito ao outro, sentimentos que pre-
novos marcos de compreensão entre rentes lugares epistemológicos, não cisamos analisar com muito cuidado,
as pessoas e o mundo em que vive- se abre a novos conhecimentos que para entender o que podem escon-
mos. não couberam, até então, dentro dela. der nas suas entranhas.
Diante dessas novidades, a O pensamento subdividido em A tolerância, sentimento apa-
escola não pode continuar ignorando áreas específicas é uma grande bar- rentemente generoso, pode marcar
o que acontece ao seu redor, anulan- reira para os que pretendem, como uma certa superioridade de quem to-
do e marginalizando as diferenças nos nós, inovar a escola. Nesse sentido, lera. O respeito, como conceito, im-
processos por meio dos quais forma é imprescindível questionar esse plica um certo essencialismo, uma
e instrui os alunos. E muito menos modelo de compreensão que nos é generalização, vinda da compreensão
desconhecer que aprender implica imposto desde os primeiros passos de que as diferenças são fixas, defi-
saber expressar, dos mais variados de nossa formação escolar e que nitivamente estabelecidas, de tal
modos, o que sabemos; implica repre- prossegue nos níveis de ensino mais modo que só nos resta respeitá-las.
sentar o mundo, a partir de nossas graduados. Toda a trajetória escolar Nessas orientações entendem-
origens, valores, sentimentos. precisa ser repensada, considerando- se as deficiências como fixadas no
O tecido da compreensão não se os efeitos cada vez mais nefastos indivíduo, como se fossem marcas
se trama apenas com os fios do co- das hiperespecializações 3 dos sabe- indeléveis, a partir das quais só nos
nhecimento científico. Como Santos 2 res, que nos dificultam a articulação cabe aceitá-las, passivamente, pois
nos aponta, a comunidade acadêmi- de uns com os outros e, igualmente, nada poderá evoluir além do previsto
ca não pode continuar a pensar que uma visão do essencial e do global. no quadro geral das suas especi-
só há um único modelo de cientifi- O ensino organizado em disci- ficações estáticas: os níveis de com-
cidade e uma única epistemologia e plinas isola, separa os conhecimen- prometimento, as categorias educa-
que, no fundo, todo o resto é um sa- tos, ao invés de reconhecer as suas cionais, os quocientes de inteligên-
ber vulgar, um senso comum que ela inter-relações. Na verdade, o conhe- cia, predisposições para o trabalho e
contesta em todos os níveis de en- cimento evolui por recomposição, outras tantas mais.
sino e de produção do conhecimen- contextualização e integração de sa- Consoante tais pressupostos,
to. A idéia de que o nosso campo de beres, em redes de entendimento; criamos espaços educacionais prote-
conhecimento é muito mais amplo do não reduz o complexo ao simples, gidos, à parte, restritos a determina-
que aquele cabível no paradigma da tornando maior a capacidade de ava- das pessoas, ou seja, àquelas que
ciência moderna traz a ciência para liar e apreender o caráter multidimen- eufemisticamente denominamos “Por-
um campo de luta mais igual, em que sional dos problemas e de suas solu- tadoras de Necessidades Educacio-
ela tem de reconhecer outras formas ções. nais Especiais – PNEE”.
de entendimento e perder a posição Os sistemas escolares tam- A diferença, nesses espaços,
hegemônica em que se mantém, ig- bém estão calcados em um pensa- é o que o outro é — branco, religio-
norando o que foge aos seus domí- mento que recorta a realidade, que so, deficiente. Como nos afirma Sil-
nios. permite subdividir os alunos em “nor- va4, (...) é o que está sempre no ou-
A exclusão escolar manifesta- mais” e com deficiência. A lógica tro, separado de nós para ser prote-
se das mais diversas e perversas dessa organização é marcada por gido ou para nos protegermos dele.

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Em ambos os casos, somos impedi- Se a igualdade é referência, 3.3 INTEGRAÇÃO OU INCLUSÃO?
dos de realizar a experiência da dife- podemos inventar o que quisermos
rença e de conhecer a sua riqueza. A para agrupar e rotular os alunos como A indiferenciação entre os pro-
identidade é o que se é, como afirma PNEE, deficientes. Se a diferença é cessos de integração e inclusão es-
o mesmo autor – sou brasileiro, sou tomada como parâmetro, não fixamos colar é outro grande entrave para o
negro, sou estudante... mais a igualdade como norma e fa- entendimento e a evolução dos pro-
Nossa luta pela inclusão esco- zemos cair toda uma hierarquia das cessos de inclusão escolar.
lar tem uma dimensão ética crítica e igualdades e diferenças que susten- A discussão em torno da
transformadora. A posição é oposta tam a “normalização”. Esse proces- integração e da inclusão cria ainda
à anterior, ao entender que as dife- so, a normalização, pelo qual a edu- inúmeras e infindáveis polêmicas,
renças estão sendo constantemente cação especial tem proclamado o seu provocando as corporações de pro-
feitas e refeitas; pois elas vão diferin- poder, propõe sutilmente, com base fessores e de profissionais da área
do, infinitamente. As diferenças são em características devidamente de saúde que atuam no atendimento
produzidas e não podem ser natura- selecionadas como positivas, a elei- às pessoas com deficiência — os
lizadas, como habitualmente pensa- ção arbitrária de uma identidade “nor- paramédicos e outros, que tratam cli-
mos. Essa produção é sustentada por mal”, como um padrão de hierarqui- nicamente de crianças e jovens com
relações de poder e merece ser com- zação e de avaliação de alunos, de problemas escolares e de adaptação
preendida, questionada e não apenas pessoas. Contrariar a perspectiva de social. A inclusão também “mexe”
respeitada e tolerada. uma escola que se pauta pela igual- com as associações de pais que ado-
Os movimentos em favor da dade de oportunidades é fazer a di- tam paradigmas tradicionais de as-
inclusão, dentre os quais os educacio- ferença, reconhecê-la e valorizá-la. sistência à sua clientela; afeta, e mui-
nais/escolares, devem seguir outros Portanto, temos de reconhecer to, os professores da educação es-
caminhos que não os propostos por as diferentes culturas, a pluralidade pecial, temerosos de perder o espa-
nossas políticas (equivocadas?) de das manifestações intelectuais, ço que conquistaram nas escolas e
inclusão, pois acreditamos nas ações sociais, afetivas, enfim, precisamos redes de ensino, envolvendo grupos
que contestam as fronteiras entre o construir uma nova ética escolar, que de pesquisa das universidades 8.
regular e o especial, o normal e o de- advém de uma consciência ao mes- Os professores do ensino re-
ficiente, enfim os espaços simbólicos mo tempo individual, social e plane- gular consideram-se incompetentes
das diferentes identidades. tária. para atender às diferenças nas sa-
As ações educativas inclusivas Ao nos referirmos, hoje, a uma las de aula, especialmente aos alu-
que propomos têm como eixos o con- cultura global e à globalização, pare- nos com deficiência, pois seus cole-
vívio com as diferenças, a aprendi- ce contraditória a luta de grupos gas especializados sempre se dis-
zagem como experiência relacional, minoritários por uma política identitária, tinguiram por realizar unicamente
participativa, que produz sentido para pelo reconhecimento de suas raízes, esse atendimento e exageraram a ca-
o aluno, pois contempla a sua subje- como fazem os surdos, os deficien- pacidade de fazê-lo aos olhos de
tividade, embora construída no cole- tes, os hispânicos, os negros, as mu- todos 9.
tivo das salas de aula. lheres, os homossexuais. Há, pois, um Há também um movimento
Relações de poder presidem a sentimento de busca das raízes e de contrário de pais de alunos sem defi-
produção das diferenças na escola, afirmação das diferenças. Devido a ciências que não admitem a inclusão,
mas a partir de uma lógica que não isso, contesta-se hoje a modernidade por acharem que as escolas vão bai-
mais se baseia na igualdade, como nessa sua aversão pela diferença. xar e/ou piorar ainda mais a qualida-
categoria assegurada por princípios Nem todas as diferenças ne- de do ensino se tiverem de receber
liberais, inventada e decretada a priori cessariamente inferiorizam as pes- esses novos alunos.
e que trata a realidade escolar com a soas. Há diferenças e há igualdades: Os vocábulos “integração” e
ilusão da homogeneidade, promoven- nem tudo deve ser igual e nem tudo “inclusão”, conquanto tenham signifi-
do e justificando a fragmentação do deve ser diferente. Então, como con- cados semelhantes, são empregados
ensino em disciplinas, modalidades clui Santos 5, é preciso que tenhamos para expressar situações de inserção
de ensino regular, especial, seriações, o direito de sermos diferentes, quan- diferentes e se fundamentam em
classificações, hierarquias de conhe- do a igualdade nos descaracteriza, e posicionamentos teórico-metodo-
cimentos. o direito de sermos iguais, quando a lógicos divergentes.
Por tudo isso, a inclusão é pro- diferença nos inferioriza. O processo de inserção esco-
duto de uma educação plural, demo- No desejo de assegurar a lar tem sido entendido de diversas
crática e transgressora. Ela provoca homogeneidade nos grupos sociais, maneiras. O termo “integração” refe-
uma crise escolar, ou melhor, uma cri- nas turmas escolares, destruíram-se re-se mais especificamente à inser-
se de identidade institucional que, por muitas diferenças que consideramos ção escolar de alunos com deficiên-
sua vez, abala a identidade dos pro- valiosas e importantes, hoje, nas sa- cia nas escolas comuns, mas seu
fessores e faz com que a identidade las de aula e para além delas. emprego é encontrado até mesmo
do aluno se revista de novo significa- A identidade fixa, estável, aca- para designar alunos agrupados em
do. O aluno da escola inclusiva é outro bada, própria do sujeito cartesiano escolas especiais para pessoas com
sujeito, sem identidade fixada em mo- unificado e racional, também está em deficiência, ou mesmo em classes
delos ideais, permanentes, essenciais. crise6. As identidades naturalizadas especiais, grupos de lazer, residên-
O direito à diferença nas es- dão estabilidade ao mundo social, cias para deficientes.
colas desconstrói, portanto, o siste- mas a mistura, a hibridização, a Os movimentos em favor da
ma atual de significação escolar mestiçagem desestabilizam as iden- integração de crianças com deficiên-
excludente, normativo, elitista, com tidades, constituindo uma estratégia cia surgiram nos países nórdicos em
suas medidas e mecanismos de pro- provocadora e questionadora de toda 1969, quando se questionaram as
dução da identidade e da diferença. e qualquer fixação da identidade7. práticas sociais e escolares de segre-

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de paradigma educacional. Na pers-
pectiva inclusiva, suprime-se a sub-
divisão dos sistemas escolares em
(...) a inclusão implica uma mudança de perspectiva modalidades de ensino especial e
educacional, pois não se limita aos alunos com deficiência e regular. As escolas atendem às dife-
aos que apresentam dificuldades de aprender, mas envolve renças, sem discriminar, sem traba-
lhar à parte com alguns alunos, sem
todos os demais, para que obtenham sucesso na corrente estabelecer regras específicas para
educativa geral. Os alunos com deficiência constituem uma planejar, aprender, avaliar (currículos,
atividades, avaliação da aprendiza-
grande preocupação para os educadores inclusivos, mas gem para alunos com deficiência e
todos sabemos que a maioria dos que fracassam na escola com necessidades educacionais es-
peciais).
são alunos que não vêm do ensino especial, mas Pode-se imaginar o impacto da
possivelmente acabarão nele. inclusão nos sistemas de ensino ao
supor a abolição completa dos servi-
ços segregados da educação espe-
cial, os programas de reforço esco-
lar, salas de aceleração, turmas es-
gação. Sua noção básica é o princí- A integração escolar pode ser peciais e outros.
pio de normalização que, não sendo entendida como o especial na edu- A inclusão é uma provocação,
específico da vida escolar, atinge o cação, ou seja, a justaposição do cuja intenção é melhorar a qualida-
conjunto de manifestações e ativida- ensino especial ao regular, ocasio- de do ensino, atingindo todos os alu-
des humanas e todas as etapas da nando um inchaço dessa modalida- nos que fracassam em suas salas
vida das pessoas, sejam elas afeta- de, pelo deslocamento de profissio- de aula. A distinção entre integração
das ou não por uma incapacidade, nais, recursos, métodos, técnicas da e inclusão é um bom começo para
dificuldade ou inadaptação. educação especial às escolas regu- esclarecermos o processo de trans-
Pela integração escolar, o alu- lares. formação das escolas, de modo que
no tem acesso às escolas por meio Quanto à inclusão, esta ques- possam acolher, indistintamente, to-
de um leque de possibilidades edu- tiona não somente as políticas e a dos os alunos, nos diferentes níveis
cacionais, que vai da inserção nas organização da educação especial e de ensino.
salas de aula do ensino regular ao regular, mas também o próprio con-
ensino em escolas especiais. ceito de integração. Ela é incompatí- 4 A ESCOLA QUE QUEREMOS
O processo de integração vel com a integração, pois prevê a
ocorre dentro de uma estrutura edu- inserção escolar de forma radical, Se pretendemos que a escola
cacional que oferece ao aluno a opor- completa e sistemática. Todos os alu- seja inclusiva, é urgente redefinirem-
tunidade de transitar no sistema es- nos, sem exceções, devem freqüen- se seus planos para uma educação
colar, da classe regular ao ensino tar as salas de aula do ensino regu- voltada à cidadania global, plena, li-
especial, em todos os seus tipos de lar. vre de preconceitos e que reconhece
atendimento: escolas especiais, O objetivo da integração é in- e valoriza as diferenças.
classes especiais em escolas co- serir um aluno ou grupo de alunos que Chegamos a um impasse,
muns, ensino itinerante, salas de re- já foram excluídos, e o mote da inclu- como nos afirma Morin11, pois, para
cursos, classes hospitalares, ensino são, ao contrário, é não deixar nin- reformar a instituição, temos de refor-
domiciliar e outros. Trata-se de uma guém no exterior do ensino regular, mar as mentes, mas não se pode re-
concepção de inserção parcial, por- desde o começo da vida escolar. As formar as mentes sem uma prévia
que o sistema prevê serviços edu- escolas inclusivas propõem um modo reforma das instituições.
cacionais segregados. de organização do sistema educaci- Conhecemos os argumentos
Os alunos que migram das onal que considera as necessidades pelos quais a escola tradicional resis-
escolas comuns para serviços da de todos os alunos e é estruturado te à inclusão. Eles refletem a sua in-
educação especial muito raramente se em função dessas necessidades. capacidade de atuar diante da com-
deslocam para os menos segregados Por tudo isso, a inclusão impli- plexidade, da diversidade, da varie-
e dificilmente retornam às salas de ca uma mudança de perspectiva edu- dade, do que é real nos seres e nos
aula do ensino regular. cacional, pois não se limita aos alu- grupos humanos. Os alunos não são
Nas situações de integração nos com deficiência e aos que apre- virtuais, objetos categorizáveis. Eles
escolar, nem todos os alunos com sentam dificuldades de aprender, existem de fato, são pessoas que
deficiência cabem nas turmas de en- mas envolve todos os demais, para provêm de contextos culturais os
sino regular, pois há uma seleção pré- que obtenham sucesso na corrente mais variados; representam diferen-
via dos que estão aptos à inserção. educativa geral. Os alunos com defi- tes segmentos sociais; produzem e
Para esses casos, são indicados: ciência constituem uma grande preo- ampliam conhecimentos e têm dese-
individualização dos programas esco- cupação para os educadores inclusi- jos, aspirações, valores, sentimentos
lares, currículos adaptados, avaliações vos, mas todos sabemos que a maio- e costumes com os quais se identifi-
especiais, redução dos objetivos edu- ria dos que fracassam na escola são cam. Em uma palavra, esses grupos
cacionais para compensar as dificul- alunos que não vêm do ensino espe- de pessoas não são criações da nos-
dades de aprender. Em uma palavra, cial, mas possivelmente acabarão sa razão, mas existem em lugares e
a escola não muda como um todo, nele10. tempos não-ficcionais, evoluem, são
mas os alunos têm de mudar para se A radicalidade da inclusão vem compostos de seres vivos, encarna-
adaptarem às suas exigências. do fato de esta exigir uma mudança dos!

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O aluno abstrato justifica a escola, para muitos alunos, é o único Além disso, ela institui, como
maneira excludente de a escola tra- espaço de acesso aos conhecimen- um dos princípios do ensino, a igual-
tar as diferenças. Assim é que se tos. É o lugar que lhes proporciona dade de condições de acesso e per-
estabelecem as categorias de alunos: condições de desenvolverem-se e manência na escola (art. 206, inc. I),
deficientes, carentes, comportados, tornarem-se cidadãos, com identida- acrescentando que o dever do Esta-
inteligentes, hiperativos, agressivos de social e cultural que lhes confere do com a educação será efetivado
e tantas outras. oportunidades de ser e de viver dig- mediante a garantia de acesso aos
Por essas classificações, per- namente. níveis mais elevados do ensino, da
petuam-se as injustiças. Por detrás Incluir é necessário, primordi- pesquisa e da criação artística, se-
delas a escola se protege do aluno, almente, para melhorar as condições gundo a capacidade de cada um (art.
na sua singularidade. Tais especi- da escola, de modo que nela se pos- 208, V).
ficações reforçam a necessidade de sam formar gerações mais prepara- Tais dispositivos já seriam su-
se criarem modalidades de ensino, das para viver a vida na sua plenitu- ficientes para que ninguém pudesse
espaços e programas segregados, de, livremente, sem preconceitos, negar a qualquer aluno o acesso à
para que alguns alunos possam sem barreiras. Não podemos contem- mesma sala de aula.
aprender. Sem dúvida, é mais fácil porizar soluções, mesmo que seja
gerenciar as diferenças formando alto o preço a pagar, pois nunca será 5.1 A CONVENÇÃO
classes especiais de objetos, seres tão alto quanto o resgate de uma vida INTERAMERICANA PARA A
vivos, acontecimentos, fenômenos, escolar marginalizada, uma evasão, ELIMINAÇÃO DE TODAS AS
pessoas... uma criança estigmatizada, sem mo- FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO
Contudo, como não há mal que tivos. CONTRA A PESSOA PORTADORA DE
sempre dure, o desafio da inclusão Confirma-se, ainda, mais uma DEFICIÊNCIA
desestabiliza as cabeças dos que razão de ser da inclusão, um motivo
sempre defenderam a seleção, a para que a educação se atualize e os Este documento – celebrado na
dicotomização do ensino nas modali- professores aperfeiçoem as suas prá- Guatemala em maio de 1999, do qual
dades especial e regular, as especia- ticas, para que escolas públicas e o Brasil é signatário, aprovado pelo
lizações e especialistas, o poder das particulares se obriguem a um esfor- Congresso Nacional por meio do De-
avaliações, da visão clínica do ensi- ço de modernização e reestruturação creto Legislativo n. 198, de 13 de ju-
no e da aprendizagem. E, como não de suas condições atuais, a fim de nho de 2001, e promulgado pelo De-
há bem que sempre ature, está sen- responderem às necessidades de creto n. 3.956, de 8 de outubro de
do difícil manter resguardados e imu- cada um de seus alunos, em suas 2001, da Presidência da República –
nes às mudanças todos aqueles que especificidades, sem caírem nas veio reafirmar a necessidade de se
colocam nos ombros dos alunos, ex- malhas da educação especial e suas rever o caráter discriminatório de al-
clusivamente, a incapacidade de modalidades de exclusão. gumas de nossas práticas escolares
aprender. mais comuns e perversas: a exclu-
Os subterfúgios teóricos que 5 AVANÇOS DA LEGISLAÇÃO são internalizada e dissimulada pe-
distorcem propositadamente o concei- los programas ditos compensatórios
to de inclusão – condicionada esta à Toda escola, em respeito ao e à parte das turmas escolares regu-
capacidade intelectual, social e cul- direito à educação, deve atender aos larmente constituídas, tais como as
tural dos alunos – para atender às princípios constitucionais, não ex- turmas de aceleração e outras, que
expectativas e exigências da escola cluindo nenhum aluno, em razão de acabam por responsabilizar o aluno
precisam cair por terra com urgência, sua origem, raça, sexo, cor, idade ou pelo seu próprio fracasso.
porque sabemos que podemos refa- deficiência. A Constituição brasileira A importância da Convenção
zer a educação escolar segundo no- de 1988 é clara ao eleger como fun- para o entendimento e a defesa da
vos paradigmas, preceitos, ferramen- damentos da República a cidadania inclusão está no fato de que deixa
tas e tecnologias educacionais. e a dignidade da pessoa humana (art. clara a impossibilidade de diferencia-
As condições de que dispo- 1º, incs. II e III) e como um dos seus ção com base na deficiência, definin-
mos, hoje, para transformar a escola objetivos fundamentais a promoção do a discriminação como (...) toda
nos autorizam a propor uma escola do bem de todos, sem preconceitos diferenciação, exclusão ou restrição
única e para todos, em que a coope- de origem, raça, sexo, cor, idade e baseada em deficiência, anteceden-
ração substituirá a competição, pois quaisquer outras formas de discrimi- te de deficiência, conseqüência de
se pretende que as diferenças se ar- nação (art. 3º, inc. IV). Ela ainda ga- deficiência anterior ou percepção de
ticulem e componham e que os talen- rante o direito à igualdade (art. 5º) e deficiência presente ou passada, que
tos de cada um sobressaiam. trata, no art. 205 e seguintes, do di- tenha o efeito ou propósito de impe-
É inegável que as ferramentas reito de todos à educação. Esse di- dir ou anular o reconhecimento, gozo
estão aí, para promovermos as mu- reito deve visar ao pleno desenvolvi- ou exercício por parte das pessoas
danças, reinventarmos a escola, mento da pessoa, seu preparo para portadoras de deficiência de seus
desconstruindo a máquina obsoleta a cidadania e sua qualificação para o direitos humanos e suas liberdades
que a dinamiza, os conceitos sobre trabalho. fundamentais (art. I, n. 2, a).
os quais ela se fundamenta, os pila- Nossa Constituição é, pois, um O texto da Convenção, no art.
res teórico-metodológicos em que se marco na defesa da inclusão escolar I, n. 2, b, esclarece que não constitui
sustenta. e elucida muitas questões e contro- discriminação (...) a diferenciação ou
As razões para justificar a in- vérsias referentes a essa inovação, preferência adotada para promover a
clusão escolar no nosso cenário edu- respaldando os que propõem avan- integração social ou o desenvolvimen-
cacional não se esgotam nas ques- ços significativos para a educação to pessoal dos portadores de deficiên-
tões levantadas neste capítulo. A in- escolar de pessoas com e sem defi- cia, desde que a diferenciação ou
clusão também se legitima porque a ciência. preferência não limite em si mesma o

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façam restrições e exclusões, como
comumente ocorre, nos programas de
reforço escolar e em outros que se
dizem de apoio, para que alguns alu-
Os subterfúgios teóricos que distorcem propositadamente o nos possam se recuperar dos seus
conceito de inclusão – condicionada esta à capacidade atrasos escolares. Seriam esses atra-
sos de alguns alunos ou da escola,
intelectual, social e cultural dos alunos – para atender às em sua organização pedagógica re-
expectativas e exigências da escola precisam cair por terra trógrada, arcaica e excludente?
Como o acesso a todas as sé-
com urgência, porque sabemos que podemos refazer a ries do ensino fundamental é obriga-
educação escolar segundo novos paradigmas, preceitos, tório e incondicionalmente garantido
a todos os alunos de sete a 14 anos,
ferramentas e tecnologias educacionais. os critérios de avaliação e promoção
com base no aproveitamento escolar,
previstos na LDBEN/1996 (art. 24),
terão de ser reorganizados para cum-
prir os princípios constitucionais da
igualdade de direito ao acesso e per-
direito à igualdade dessas pessoas e te, conquanto já tenha ocorrido a sua manência na escola, bem como aos
que elas não sejam obrigadas a acei- internalização à nossa Constituição. níveis mais elevados do ensino, da
tar tal diferenciação ou preferência. Ela representa um avanço no sentido pesquisa e da criação artística, se-
Como a educação deve visar de se abolirem todas as normas e gundo a capacidade de cada um.
ao pleno desenvolvimento humano e diretrizes educacionais, escolares, Para que se cumpra a Conven-
ao preparo para o exercício da cida- que garantiam às pessoas com defi- ção da Guatemala, os órgãos respon-
dania, segundo o art. 205 da Consti- ciência o direito de acesso e freqüên- sáveis pela emissão de atos norma-
tuição, qualquer restrição ao acesso cia ao ensino regular “sempre que tivos infralegais e administrativos re-
a um ambiente que reflita a socieda- possível”, “desde que capazes de se lacionados à educação (Ministério da
de em suas diferenças/diversidade, adaptar”. Essas situações são típicas Educação, conselhos de educação e
e que serve como meio de preparar a da modalidade de inserção escolar de secretarias de todas as esferas ad-
pessoa para a cidadania, seria uma que tratamos anteriormente — a ministrativas) deverão emitir diretrizes
diferenciação ou preferência que es- “integração”, que ainda é bastante para a educação básica, em seus res-
taria limitando, em si mesma o direito forte, principalmente no Brasil. pectivos âmbitos, com orientações
à igualdade dessas pessoas. Esse documento nos faz rever, adequadas e suficientes para que as
Conforme documento editado também, a Lei de Diretrizes e Bases escolas em geral recebam com qua-
pelo Ministério Público Federal — Pro- da Educação Nacional, LDBEN/1996, lidade todas as crianças e adolescen-
curadoria-Geral dos Direitos do Cida- na parte que prescreve como opcio- tes.
dão – denominado “O acesso de alu- nal o direito das pessoas com Ao defender as pessoas com
nos com deficiência às classes e es- deficiência e de seus pais ou respon- deficiência de situações de discrimi-
colas comuns da rede regular de en- sáveis à “educação especial”. No nação, a Convenção da Guatemala é
sino”12 , e de acordo com o novo geral e na prática, tal direito é des- o brado mais recente em favor do di-
parâmetro relacionado ao princípio da respeitado pelas escolas e por pro- reito de ser, sendo diferente, na es-
não-discriminação, trazido pela Con- fissionais que indevidamente a pres- cola. Mas há ainda outros avanços na
venção da Guatemala, espera-se a crevem e impõem aos alunos com de- interpretação de nossas leis que es-
adoção da máxima (...) tratar igual- ficiência e àqueles que apresentam clarecem e prescrevem a inclusão
mente os iguais e desigualmente os dificuldades de aprendizagem. escolar.
desiguais e que se admitam as dife- Para nos ajustarmos à Conven-
renciações com base na deficiência ção, é indispensável que todos os 5.2 DA NECESSIDADE DE SE “RE-
somente para permitir o acesso aos encaminhamentos de alunos com SIGNIFICAR” A EDUCAÇÃO
direitos, e não para o fim de negar o deficiência a serviços complementa- ESPECIAL
exercício deles. Por esse documento res à escolarização ou a atendimen-
da Procuradoria, caso um aluno com tos clínico-terapêuticos tenham a con- No Capítulo III – Da Educação,
graves problemas motores necessite cordância expressa dos pais/respon- da Cultura e do Desporto, a Consti-
de um computador para acompanhar sáveis ou do aluno, quando possível. tuição diz, em seu art. 208, que o
suas aulas, esse instrumento deve ser Os nossos estabelecimentos dever do Estado com a educação será
garantido ao menos para ele, se não escolares têm, por força da lei, de efetivado mediante a garantia de: (...)
for possível para os outros alunos. adotar práticas de ensino adequadas atendimento educacional especializa-
Trata-se de uma diferenciação, em às diferenças dos alunos em geral, do aos portadores de deficiência, pre-
razão de uma deficiência, mas para oferecendo alternativas que contem- ferencialmente na rede regular de en-
permitir que ele continue tendo aces- plem suas especificidades. Os ser- sino.
so à educação, como todos os de- viços complementares à escola- Esse atendimento é comple-
mais colegas. Pela Convenção, não rização, acima referidos, que se fize- mentar e necessariamente diferente
será configurada uma discriminação, rem necessários para atender às ne- do ensino escolar e destina-se a aten-
se a pessoa não for obrigada a acei- cessidades educacionais dos edu- der às especificidades dos alunos
tar essa diferenciação. candos, com e sem deficiências, pre- com deficiência, abrangendo princi-
A Convenção da Guatemala cisam ser oferecidos, mas com a ga- palmente instrumentos necessários à
não está sendo cumprida, atualmen- rantia de que não discriminem, não eliminação das barreiras que as pes-

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soas com deficiência naturalmente ter substitutivo, pois existe para que verter a situação crítica de nossa es-
têm para relacionar-se com o ambiente os alunos que não cursaram o ensi- cola, marcada pelo fracasso e pela
externo, como por exemplo: ensino da no fundamental na faixa etária pró- evasão de parte significativa de seus
Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS; pria dessa etapa da educação bási- alunos, marginalizados pelo insu-
ensino de Língua Portuguesa para ca tenham uma outra oportunidade cesso, pelas privações constantes e
surdos; Sistema Braile; orientação e de freqüentá-lo e possam dar pros- pela baixa auto-estima, resultante da
mobilidade para pessoas cegas; seguimento aos seus estudos sub- exclusão escolar e social.
Soroban; ajudas técnicas, incluindo seqüentes. Os alunos com deficiência
informática; mobilidade e comunica- A educação especial, em sua constituem grande preocupação para
ção alternativa/aumentativa; tecno- nova concepção, apenas perpassa e os educadores inclusivos, mas a
logia assistida; educação física es- complementa as etapas básica e su- maioria dos alunos que fracassam
pecializada; enriquecimento e apro- perior da educação porque, sendo nas escolas são crianças que não vêm
fundamento curricular; atividades da uma modalidade, não constitui um do ensino especial, mas possivelmen-
vida autônoma e social. nível de ensino. Por esse motivo, os te acabarão nele13!
O atendimento educacional alunos com deficiência, especialmen- Se pretendemos que a escola
especializado funciona em moldes te os que estão em idade de cursar o seja inclusiva, é urgente que seus
similares a outros cursos que suple- ensino fundamental (dos 7 aos 14 planos se redefinam para uma edu-
mentam conhecimentos adquiridos anos de idade), não podem freqüen- cação voltada à cidadania global, ple-
nos níveis de ensino básico e supe- tar unicamente os serviços de edu- na, livre de preconceitos e disposta
rior, como é o caso dos cursos de lín- cação especial (classes especiais, a reconhecer as diferenças entre as
guas, artes, informática e outros. Mas, salas de recursos e outros). Devem, pessoas e a emancipação intelectual.
diferentemente de outros cursos li- obrigatoriamente, estar matriculados Não basta uma educação para a ci-
vres, o atendimento educacional es- e freqüentando regularmente as tur- dadania, é preciso educar para a li-
pecializado foi explicitamente citado mas de sua faixa etária, nas escolas berdade e, nesse sentido, nenhuma
na Constituição Federal, para que alu- comuns. Trata-se de cumprir uma forma de subordinação intelectual
nos com deficiência pudessem ter determinação legal, que diz respeito pode ser admitida.
acesso ao ensino escolar regular. Essa ao direito indisponível de todo e qual- O mito pedagógico do profes-
garantia, além do acesso, propicia- quer aluno à educação e que, não sor como explicador, e o próprio prin-
lhes também condições de freqüen- sendo acatada, pode acarretar aos cípio da explicação, como nos ensi-
tar a escola comum, com seus cole- pais e responsáveis as penalidades nou Jacotot, é a origem da subordi-
gas sem deficiência e da mesma fai- decorrentes do crime de abandono nação intelectual, pois esse princípio,
xa etária, no ambiente escolar, que intelectual de seus filhos. que distingue uma inteligência supe-
nos parece o mais adequado para a Embora existam pessoas com rior, que domina o conhecimento e ou-
quebra de qualquer ação discrimi- deficiências bastante significativas, tra, inferior, que se subjuga a esse
natória e favorece todo tipo de não podemos esquecer que, como domínio, permite ao professor, segun-
interação promotora do desenvolvi- alunos, têm o mesmo direito de aces- do Rancière (...) transmitir seus co-
mento cognitivo, social, motor, afetivo so à educação – em ambiente esco- nhecimentos, adaptando-os às capa-
dos alunos, em geral. lar não-segregado – que os seus pa- cidades intelectuais do aluno, e veri-
A Constituição admite ainda res com deficiências menos severas ficar se o aluno entendeu o que aca-
que o atendimento educacional espe- e os alunos sem deficiência da mes- bou de aprender 14. Temos de inver-
cializado seja oferecido fora da rede ma faixa de idade. A participação de ter a lógica do sistema explicador
regular de ensino, em outros estabe- alunos severamente prejudicados nas porquanto, segundo uma educação
lecimentos públicos e particulares, salas de aula de escolas comuns deve libertadora, (...) é o explicador que tem
dedicados unicamente a esse fim, ser, portanto, garantida para que eles necessidade do incapaz e não o con-
como as instituições especializadas possam se beneficiar do ambiente trário, é ele que constitui o incapaz
em pessoas com deficiência, em ge- regular de ensino e aprender confor- como tal15.
ral, de cunho beneficente ou não. me suas possibilidades. Esses alu- Em todo o mundo despontam,
O direito ao atendimento edu- nos, de fato, provocam mudanças aqui e ali, propostas similares de
cacional especializado está igualmen- drásticas e necessárias na organiza- transformação das escolas que mui-
te previsto nos arts. 58, 59 e 60 da ção escolar e fazem com que seus to nos animam, pois reafirmam a nos-
Lei n. 9394/96 – LDBEN que, para não colegas e professores vivam a expe- sa determinação e de outros educa-
ferir a Constituição, ao usar a expres- riência da diferença nas salas de aula. dores de assegurar o pleno direito dos
são “educação especial” deve fazê- O papel da educação especial, escolares a uma educação de quali-
lo, segundo sua nova interpretação, na perspectiva inclusiva, é, pois, mui- dade16.
baseada no que a Constituição ino- to importante e não pode ser negado, Certamente não existe regra
vou, ao prever o atendimento educa- mas dentro dos limites de suas atri- geral para construir a escola que que-
cional especializado, e não mais a buições, sem que sejam extrapolados remos — uma escola para todos. Mas
educação especial, como constava os seus espaços de atuação específi- podemos nos aproximar cada vez
das legislações anteriores. Dizemos ca. Essas atribuições complementam mais dela, se encararmos a transfor-
uma nova interpretação da educação e apóiam o processo de escolarização mação das escolas que hoje temos
especial, pois esta sempre foi vista de alunos com deficiência regularmen- da forma mais realística possível,
como a modalidade de ensino que te matriculados nas escolas comuns. abolindo tudo o que nos faz pensá-
podia substituir a escolaridade regu- las e organizá-las a partir de mode-
lar, em escolas comuns. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS los que as idealizam, como temos
Das modalidades de ensino feito até então. Já se impõe, mesmo
referidas na LDBEN, a educação de Diante de todo o exposto, a timidamente, uma tendência de
jovens e adultos é a única com cará- conclusão é de que precisamos re- reorientação das escolas, segundo

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uma lógica educacional regida por 5 SANTOS, op. cit. With a view to creating the inclusive
princípios sociais, democráticos, de 6 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- school, she adduces that it is imperative the
modernidade. Trad. de Tomás T. da Silva e education redefinition, which should aim at a
justiça, de igualdade, contrapondo-se global, full citizenship, free from prejudices, and
à que é sustentada por valores eco- Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A,
2000. ready to recognize the differences among
nômicos e empresariais de produtivi- 7 SILVA, op. cit.; SERRES, Michel. Filosofia people. Furthermore, she understands that,
dade, competitividade, eficiência, mestiça: le tiers – instruit. Trad. de Maria despite the importance of special education, it
modelos ideais, que tantas exclusões Ignez D. Estrada. Rio de Janeiro: Nova does not constitute a level of education and
têm provocado na educação, em to- Fronteira,1993. must abide by the limits of its duties as well as
dos os níveis. Temos de acreditar e 8 MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Caminhos complement the handicapped students’
pedagógicos da inclusão. São Paulo: schooling process who are regularly enrolled in
dar uma grande virada na educação ordinary schools.
Memnon – Edições Científicas, 2001;
escolar.
DORÉ, Robert; WAGNER, Serge; BRUNET,
Os desafios para a concre- Jean-Pierre. Réussir l´intégration scolaire: KEYWORDS – Education – special,
tização dos ideais inclusivos na edu- la deficience intellectuelle. Montreal; basic, elementary, inclusive; integration;
cação brasileira são inúmeros, como Québec: Les Éditions Logiques, 1996. inclusion; Brazilian Constitution of 1988 – article
se pode perceber do que aqui expu- 9 MITTLER, Peter. Working towards inclusion 208; Brazilian Sign Language – Libras; Braille
semos. education: social contexts. London: David system; Law n. 9,394/96.
Se, do ponto de vista legal, Fulton Pub., 2000.
10 MANTOAN, Maria Teresa Eglér.
temos de conciliar os impasses entre Teachers’education for inclusive teaching:
nossa Constituição e as leis infracons- refinement of institutional actions. Revue
titucionais referentes à educação, do Francophone de la Déficience
ponto de vista educacional é urgente Intellectuelle. Número spéciale, p. 52-54,
estimular as mudanças, buscando e Colloque Recherche Défi 1999, Montréal/
divulgando novas práticas pedagógi- Québec, Canadá, 1999.
cas, experiências de sucesso, sabe- 11 MORIN, op. cit.
12 Documento editado em 2001. Disponível
res adquiridos em estudos desenvol-
em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pfdc/
vidos no cotidiano das nossas esco- html>.
las. 13 MANTOAN, op. cit.
Há ainda de se vencer os de- 14 RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante:
safios que nos impõe o conserva- cinco lições sobre emancipação inte-
dorismo das instituições especiali- lectual. Trad. de Lílian do Valle. Belo
zadas e enfrentar as pressões políti- Horizonte: Autêntica, 2002. p. 24.
15 Idem.
cas e das pessoas com deficiência, 16 AINSCOW, Michael. Understanding the
ainda muito habituadas a seus rótu- development of inclusive schools. London:
los e a benefícios que acentuam a in- Falmer Press, 1999; ARMSTRONG, Felicity;
capacidade, a limitação, o paterna- ARMSTRONG, Derrick; BARTON, Len.
lismo e o protecionismo social. Inclusive education: policy, contexts and
O essencial é que os investi- comparative perspectives. London: David
mentos atuais e futuros na educação Fulton Pub., 2000; BOOTH, Thomas;
AINSCOW, Michael. From them to us: an
brasileira não repitam o passado e international study of inclusion in education.
reconheçam e valorizem as diferen- London: Routledge, 1998; MANTOAN,
ças na escola. O nosso problema se Maria Teresa Eglér; VALENTE, José
concentra em tudo o que torna nos- Armando. Special education reform in
sas escolas injustas, discriminadoras Brazil: an historical analysis of education
e excludentes, e que, sem solucioná- policies. European Journal of Special
Needs Education, v. 13, n. 1, p. 10-28,
lo, não conseguiremos o nível de qua-
1998; STAIMBACK, Susan; STAINBACK,
lidade exigido de uma escola mais William. A rationale for merger of special
que especial, onde os alunos te- and regular education.: Exceptional
nham o direito de ser (alunos), sen- Children, v. 51, n. 2. p. 102-111, 1984.
do diferentes.
ABSTRACT
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
The authoress claims that the proposal
to include all students in a single educational
1 CERTEAU, Michel de. A invenção do standard, the regular school system, has
cotidiano – 1: artes do fazer. Trad. de opposed not only an assisting/therapeutic
Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. culture of special education, but also the
2 SANTOS, Boaventura de Souza. Entrevista conservatism of our public policies in this area.
She focuses the perspective of social inclusion
com o Prof. Boaventura de Souza Santos.
on both the judicial and educational scopes.
Disponível em: <http://www.dhi.uem.br/
She states that, under the legal
jurandir/jurandir-boaven1.htm> Acesso em:
viewpoint, one must conciliate the dead ends
1995. between the Brazilian Constitution of 1988 –
3 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: which does not allow differentiation based on
repensar a reforma, reformar o pensa- disability – and the infra-constitutional laws
mento.Trad. de Eloá Jacobina. 4. ed. Rio concerning education. On the other hand, under
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. the educational viewpoint, it is urgent to foster
Maria Teresa Eglér Mantoan é pro-
4 SILVA, Tomás Tadeu da. Identidade e changes, search for new pedagogic practices fessora da Faculdade de Educação
diferença: a perspectiva dos estudos and successful experiences and to spread them da Universidade Estadual de Campi-
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. in our schools. nas – Unicamp/SP.

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