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As reformas e os historiadores

• Foi o primeiro e mais forte ataque contra a Igreja


Católica, instituição hegemônica no Ocidente por mais
de um milênio
• Mudança de paradigmas na sociedade, impactando
fundamentalmente os modos de ser e estar no mundo,
possibilitando o surgimento de novas concepções
éticas, estéticas e políticas. Colocou em novos termos
as relações entre liberdade e obediência, entre
consciência e crença, pensamento e ação.
• Há 500 anos intelectuais de diferentes matizes
Martin Lutero em
1529, por Lucas
filosóficas e ideológicas têm se engajado na discussão
Cranach sobre estes eventos históricos e sua importância .
As reformas e os historiadores
• Em debate fundamentalmente espirituais e eclesiástico,
intelectuais católicos e protestantes reivindicaram ser a única
recuperação fiel ou continuação da igreja primitiva,
acusando-se mutualmente de heresia.
• Matias Flacius Illyricus - Centúrias de Magdeburgo
(1559-1574); César Barônio - Anais Eclesiásticos (1588-1607)
• Ao longo do século XIX, com o amadurecimento da História,
buscou-se um tratamento científico das fontes que permitisse
narrar os eventos “como eles verdadeiramente aconteceram”.
• A partir do século XX a historiografia produziu diferentes formas
de abordagem sobre o tema, explorando seus aspectos
culturais, sociais e econômicos.
As reformas e os historiadores
• Carter Lindberg e a pluralidade das reformas
em “The European Reformations”
• Luterano, professor emérito de história da
igreja na Escola de Teologia de Universidade
de Boston.
• Entende que não ocorreu uma única “reforma”
protestante, nem mesmo uma “contrarreforma”
católica. Existiram antes uma pluralidade de
reformas no seio do cristianismo que tinham
diferenças entre si, mas se assemelhavam pela
busca por um novo contato com Deus.
As reformas e os historiadores
• As motivações das Reformas são um ponto em
disputa pela historiografia.
• Historiadores materialistas históricos tendem a
deixar em segundo plano a questão espiritual,
enfatizando os aspectos econômicos e sociais
do período - As Guerras Camponesas, de
Feiedrich Engels (1850)
• Historiadores da religião tendem a mostrar que,
Patrick Collinson (1929-2011), apesar de existir uma motivação de fundo
autor de A Reforma (2003)
defendeu que a corrupção não
econômico, as questões espirituais estiveram
foi causa única da emergência no centro do debate.
protestante
As reformas e os historiadores
• As consequências das Reformas também são
alvo de disputa entre os acadêmicos.
• Em “Reforma: o Cristianismo e o Mundo
1500-2000”, Felipe Fernández-Armesto e Derek
Wilson defendem que os contributos protestantes
tendem a ser superdimensionados pela
historiografia.
• Historiadores influenciados por Max Weber
(1864-1920), por sua vez, defendem que a ética
Christopher Dawson protestante do trabalho e sua influência sobre o
(1889-1970), conhecido por
suas críticas à quebra da
capitalismo são exemplos de mudanças positivas
unidade cristã ligadas à Reforma protestante.
Sentimento de Culpabilidade
• O primeiro elemento que deu condições
favoráveis à Reforma foi o medo, sentimento
vivenciado de maneira aguda pela sociedade
europeia durante os fins da Idade Média.
• Guerra dos Cem Anos (1337 a 1453), Peste
Negra (século XIV), Grande Cisma do
Ocidente (1378-1417); Ameaça Turca (séc. XIV
a XVI).
• O clima difundido de descrença com o futuro da
humanidade refletia na incerteza da salvação
das almas.
• Existia um consenso entre largas camadas civis
e religiosas que Deus havia abandonado ou
Albrecht Dürer – Os Quatro estava punindo a cristandade por seus
Cavaleiros do Apocalipse (1498) recorrentes pecados.
Presença e Temor da Morte
• O temor sobre responsabilidade dos pecados
coletivos cometidos refletiu em um pavor
histérico sobre as consequências da morte.
• O “pecado” passa a ser violentamente
combatido: Malleus Maleficarum (1487) e
acirramento da Inquisição
• Visão difundida de que o Fim dos Tempos,
assim como a vinda do Anticristo, estaria
irremediavelmente próximo
• A arte permite medir como o período que
compreende o século XV e XVI experimentou
“Em memória dos milhares de
judeus vítimas da intolerância e do um aumento agudo do medo: recorrência de
fanatismo religioso assassinados temas infernais/negros e da certeza do
mo massacre iniciado a 19 de Abril
de 1506 neste largo” Apocalispe.
Le Livre de la Vigne Nostre Seigneur - França, Monges da Ordem dos Cartuxos,
primeira metade do XV

Julgamento de Satã;
Vinda de Satã para
Terra na figura do
Papa
Viagem do papa
Anticristo para
Jerusalém; perseguição
aos cristãos
Apocalipse faz os
mortos emergirem de
suas tumbas; Deus
expia o Anticristo e
salva os puros.
Pieter Bruegel, o velho - O Triunfo da Morte (c. 1562)
Detalhes de “O Triunfo da Morte”
Detalhes de “O Triunfo da Morte”
Detalhes de “O Triunfo da Morte”
Detalhes de “O Triunfo da Morte”
O Inferno - Mestre português desconhecido (c. 1510-1520)
A Descida de Cristo ao Inferno – Seguidor de Hieronymus Bosch (final do século XVI)
Cristo no Limbo– Seguidor de Hieronymus Bosch (c. 1575)
A tortura do Inferno – Jacob van Swanenburgh (c. 1586)
Bernt Notke - Danse Macabre (c. 1475-1499)
Guyot Marchant - La Danse Macabre, Cemitério dos
Inocentes, Paris, 1485
Matthäus Merian (1649)
Anônimo (França) - Ars Moriendi
Anônimo (Países Baixos) - Ars Master E. S. - Ars Moriendi (c. 1450)
(c. 1450)
Moriendi (c. 1460)
Tese sobre a Reforma
• Segundo Delumeau, compreender a Reforma passa por uma análise
profunda do contexto histórico não apenas quinhentista, mas também dos
processos desencadeados no seio da Igreja e sociedade europeia durante
os séculos anteriores.
• “A tese segundo a qual os Reformadores teriam deixado a Igreja romana
porque ela estava repleta de devassidões e impurezas é insulficiente”
(DELUMEAU, 1989, 59; grifo meu).
• O autor defende que em outros momentos a Igreja apresentou
características tão ou mais condenáveis que aquelas do século XVI. Por
exemplo, Gregório VII (c. 1020 - 1085) e Alexandre VI (1431-1503) [Rodrigo
Borgia] tiveram seus papados marcados por casos de corrupção, luxúria,
desvio moral e iniquidade; todavia, nenhum dos dois – ou mesmo outros
que povoam a história da Igreja – produziram qualquer ruptura institucional
minimamente próxima da verificada durante a Reforma.
Tese sobre a Reforma
• Assim, Delumeau rejeitou uma análise
personalista da Reforma, baseada
unicamente na trajetória e ações perpetradas
por Martin Lutero ou João Calvino.
• Antes, Delumeau defende que existiam, em um
processo de longa duração, elementos
culturais, econômicos e religiosos capazes de
sustentar a Reforma.
• O homem moderno experimentava a religião de
maneira diferente do homem medieval.
• Como pontuou Patrick Collinson, o próprio
Lutero esteve inserido dentro dessa mudança
Martin Lutero em 1529 por Lucas Cranach
comportamental frente a religião.
Ascensão do Individualismo
• Dentro das estruturas eclesiásticas emergiram figuras
que desafiaram a infalibilidade papal e propuseram
novas abordagens teológicas.
• William Occam [ou William de Ockahm] (1270-1347) foi
um dos exemplos elencados por Delumeau. Frade
franciscano inglês, defendeu ser - em oposição à
doutrina de São Tomás de Aquino - impossível
alcançar Deus pela razão, mas tão somente pela
revelação espiritual.
• “Existiam portanto dois domínios radicalmente separados:
o do divino, em que a razão não penetra, e o dos
fenômenos terrenos suscetíveis de ciência. O primeiro
não podia ser explorado senão pela teologia, mas o
Vitral da Igreja de Surrey segundo devia possuir sua autonomia e por conseguinte
(Inglaterra) com a imagem
de William Occam escapar da inquisição da Igreja.” (DELUMEAU, 1989, p.
68)
Ascensão do Individualismo
• A visão de um individualismo teológico
correspondia a uma nova concepção humana em
curso durante final da Idade Média e início do
século XVI: a emancipação humana da
coletivização medieval.
• Tal condição faz eco nos ideais da emergente
burguesia, que buscava cunhar sua identidade e
legitimar sua existência.
• Assim, o protestantismo possui uma relação íntima
com o avanço da mentalidade capitalista em curso
durante o período. Tal condição foi sublinhada por
Jakob Fugger e um de seus Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do
empregados vistoriando
seus investimentos (1517)
Capitalismo (1904-05)
Depreciação do Sacerdócio
• Delumeau afirma que a Reforma tem como contexto
histórico um longo período de desvio moral dos
membros do clero.
• “(…) Inocêncio VIII e Alexandre VI tinham filhos naturais; Júlio II
não se satisfazia com a guerra, conduzia-a em pessoa, revestido
de armadura e de capacete; (…) grande número de bispos viviam
em cortes e se dedicavam à caça; (…) os bispos de Strasburgo
haviam perdido o hábito de usar mitra e báculo. (…) No baixo
clero, numerosos padres viviam em concubinato e tinham filhos
bastardos.” (DELUMEAU, 1989, p.71)
• Assim, estava estabelecida no seio dos quadros
eclesiásticos uma confusão das hierarquias e valores.
• A Igreja reconhece tais desvios quando,
posteriormente, introduz mudanças significativas na
formação eclesiástica e a imposição de um código de
Piramide papistique (c.1599)
rigidez comportamental aos seus membros.
Os Leigos Socorrem a Igreja
• Dada a ingerência da Igreja nos assuntos religiosos, a
sociedade ocidental observa gradualmente os
monarcas ocuparem o espaço de líderes espirituais.
Henrique VIII, fundador da Igreja Anglicana, é o caso
mais singular.
• Também é disseminado o crescente papel das
confrarias e ordens laicas em esferas de atuação
anteriormente monopolizadas pela Igreja: hospícios,
hospitais e monastérios.
• “(…) os papas se comportavam como príncipes seculares e tinham
cada vez menos influência – espiritualmente falando – sobre os
Retrato de Henrique VIII - soberanos (…). Já se viam ‘leigos melhores que homens da Igreja’
fundador da Igreja – afirmava nos Estados Gerais de Tours de 1484 o porta voz do
Anglicana. - por Hans clero (…). (DELUMEAU, 1989, p.75)
Holbein the Younger (1497)
Papel da Imprensa

• A degeneração moral eclesiástica gerou um vácuo de


liderança espiritual na cristandade ocidental. Ainda que,
para parcela significativa de cristãos, este vácuo fosse
ocupado posteriormente com a Reforma, Delumeau
defende que mesmo antes dela, a imagem de religião
individual e de comunhão privada com Deus esteve
no cerne da religiosidade dos fins da Idade Média e
Renascimento.
• Para isso, o papel da imprensa foi fundamental,
especialmente por permitir a dispersão profusa de
textos religiosos e de Bíblias traduzidas na língua
vernacular.
Johannes Gutenberg
(c.1400-1468)
Papel da Imprensa

• “Calcula-se em 75% pelo menos a proporção de obras


religiosas na produção tipográfica entre 1445 e 1520.
(…) Graças à imprensa, a Bíblia se difundiu mais
amplamente no público letrado desde antes da
revolução luterana. (…) Vinte duas versões alemãs da
Bíblia apareceram entre 1466 e 1520. A primeira
tradução italiana tem lugar em 1471, a primeira
holandesa em 1477. (…) a primeira Bíblia francesa
completa foi editada em 1487. Em Espanha, em 1485.”
(DELUMEAU, 1989, p. 77)

Johannes Gutenberg
(c.1400-1468)
Papel da Imprensa

• Conseguinte, percebe-se que tal condição possui uma


relação direta com o desenvolvimento gradual de uma
religiosidade individual, independente do papel da
Igreja como mediadora do mundo físico e espiritual,
livre da autoridade espiritual eclesiástica.
• Assim, para Delumeau, os Reformadores não deram
livros santos em língua vernacular a uma sociedade
que os desconhecia; ao contrário, eles estavam em
circulação antes das ações de Lutero. Todavia, o
número ainda era baixo, sendo que a Reforma permitiu
aumentar consideravelmente a tiragem de Bíblias
vernaculares na Europa.
Johannes Gutenberg
(c.1400-1468)
Conclusão
• Delumeau defende que a Reforma não pode ser vista
apenas como resultado das ações de Martin Lutero,
João Calvino ou Filipe Melâncton.
• A Reforma somente pode ser compreendida através
de uma análise que privilegia as transformações
ocorridas em um processo de longa duração.
• O sucesso da Reforma deu-se por estar assentada
nas doutrinas da justiça pela fé, sacerdócio
universal e infalibilidade das Sagradas Escrituras,
exatamente os mesmos elementos que há muito
eram base das críticas à Igreja romana.

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