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Revisitando a aproximação

do Serviço Social brasileiro


à tradição marxista
(1960-1982)*

Revisiting the approximation to the Marxist tradition of


Brazilian social work (1960-1982)

Silmai Lazaro Neves Dutra**

Resumo – O presente artigo investiga a aproximação do Serviço Social


brasileiro à tradição marxista no período compreendido entre 1960 e
1982. Desse modo, ao buscarmos compreender o movimento da profissão
no seio do próprio movimento histórico, identificamos os principais
momentos da referida aproximação. A investigação sugere que a
interlocução entre o Serviço Social e a tradição marxista avança no tempo
efetivando saltos qualitativos, donde a produção de Marilda Villela
Iamamoto demarca um importante momento de inflexão para a categoria
dos assistentes sociais.
Palavras-Chave: Serviço Social brasileiro; tradição marxista; Marilda
Villela Iamamoto.

Abstract – This article investigates the approximation to the Marxist


tradition of Brazilian social work in the period between 1960 and 1982.
In this way, as we seek to understand the movement of the profession
within the historical movement itself, we identify the main moments of
this approximation. Research suggests that the interlocution between social
work and the Marxist tradition advances in time, making qualitative leaps,
in which the production of Marilda Villela Iamamoto marks an important
moment of inflection for the category of social workers.
Keywords: Brazilian social work; Marxist tradition; Marilda Villela
Iamamoto.
..............................................................................
* O presente estudo é parte dos resultados da pesquisa Tradição marxista e os problemas da dialética no Serviço
Social brasileiro (1960-1982), do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de
Juiz de Fora (PPGSS/UFJF). O objetivo geral foi demonstrar como se efetivou o movimento de aproximação (e
interlocução) entre o Serviço Social e a tradição marxista entre 1960 e 1982, identificando possíveis problemas.
**
Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atua como assistente social na
UFJF. Correspondência: Rua Pedro Gerhein, nº 69, São Pedro, Juiz de Fora - MG. CEP: 36036-620. Email: <silmai
dutra@hotmail.com>.

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1 Serviço Social e tradição marxista:


ingerências externas e particularidade brasileira

Numa análise diacrônica, o próprio movimento real do Serviço


Social brasileiro nos demonstra como a profissão buscou legitimar sua prática
profissional e sua compreensão de mundo a partir de distintas concepções
ecléticas e conservadoras (IAMAMOTO, 2008, 2012, 2013; IAMAMOTO;
CARVALHO, 2010; NETTO, 2011a, 2011b).

Do ponto de vista da herança intelectual – do modo de ler e conceber a


sociedade e, nela, a profissão –, o Serviço Social cresce no universo cul-
tural do pensamento humanista-cristão e, mais tarde, vai se secularizar
e se modernizar nos quadros do pensamento conservador europeu – do
anticapitalismo romântico, que tende a ler a sociedade como uma grande
comunidade, em que as classes sociais desaparecem da análise – privile-
giando-se a ótica da harmonia, da solidariedade no ordenamento das
relações sociais. Mais tarde, incorporamos a herança das ciências huma-
nas e sociais, especialmente na sua vertente empiricista norte-americana.
A essas fontes de inspiração intelectual alia-se, na década de 70, no au-
ge do movimento de reconceituação, o estruturalismo haurido em Althusser,
entre outros, e também o marxismo vulgar, que vêm temperar uma análise
de cunho marcadamente positivista e empiricista da sociedade, mas aca-
lentada por um discurso marxista, aparentemente progressista e radical.
(IAMAMOTO, 2013, p. 205 – grifos nossos).

Munido de concepções conservadoras e tradicionais, o Serviço


Social, inicialmente, ancora-se em distintas e variadas referências teóricas,
ideológicas e culturais; caminha desde as bases mais doutrinárias e religiosas
(com destaque para a Doutrina Social da Igreja Católica) até a recepção,
frequentemente acrítica, de produtos e subprodutos da corrente positivista
derivada de Auguste Comte e Émile Durkheim (NETTO, 2011b). No entanto,
a partir da segunda metade do século XX, o Serviço Social passa por impor-
tantes transmutações.
Sabe-se que o processo renovador do Serviço Social emerge nos
anos 1960, relacionado a inúmeras ingerências extrínsecas à profissão e
influências de um quadro societário (político, ideocultural e econômico)
singular. Têm-se as “reformas de base”, a “crise e colapso do populismo”, a
“reordenação das posições dos países imperialistas com relação aos depen-
dentes” etc. (QUIROGA, 1991, p. 87). Dentre os distintos processos que
ocorrem na própria dinâmica do capital, Netto (2011a, p. 144) sinaliza três
vetores que, convergidos, atingem (não sem as devidas mediações) a repro-
dução da categoria profissional: a revisão crítica nas Ciências Sociais, “o
deslocamento sociopolítico” das instituições que mantinham ligações histó-
ricas com o Serviço Social (como a Igreja Católica, por exemplo), e, por fim,
um conjunto de contestações do movimento estudantil,

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Além disso, sabe-se também que, a partir da referida década, o


sistema capitalista enfrenta o fim paulatino das conhecidas décadas de ouro
(NETTO; BRAZ, 2010), ao mesmo tempo em que determinados países da
América Latina passam por assombrosos processos ditatoriais (Brasil, Argen-
tina e Peru, dentre outros). Desse modo, no interior da realidade latino-
americana – e por suposto brasileira – o Serviço Social se desenvolve num
ambiente que é marcado pela “crise do padrão de desenvolvimento capi-
talista do pós-guerra, pelo agravamento das desigualdades e pelo acirramento
das lutas sociais e de mobilização das classes subalternas” (BARROCO;
TERRA, 2012, p. 38-39).
Nesta conjuntura, o ambiente é “favorável” às mobilizações dos
subalternos em prol de pautas mais imediatas. Desse modo, juntamente
com as demandas econômicas, outras reivindicações – sociais, culturais e
étnicas, dentre outras, de numerosos movimentos sociais – jovens, mulheres,
negros etc. – são notáveis. É nesse clima de efervescência que as ingerências
mundiais imbricadas ao quadro de efervescência social e de agitação política
na América Latina (além de outras especificidades nacionais) também impac-
tam a profissão e impulsionam um cenário de questionamentos do Serviço
Social tradicional (NETTO, 2011a).
O lapso temporal que abriga tais questionamentos no contexto
latino-americano compreende aproximadamente 10 anos (1965-1975)
(IAMAMOTO, 2008, p. 205), desenvolvendo-se em distintos países da região,
tendo suas vertentes mais progressistas, num primeiro momento, refreadas
pelas ditaduras implantadas com o apoio imperialista estadunidense. De
acordo com Faleiros (1987, p. 51), “[...] a ruptura com o Serviço Social
tradicional se inscreve na dinâmica de rompimento das amarras imperialistas,
de luta pela libertação nacional e de transformações da estrutura capitalista
excludente, concentradora, exploradora”.

Por Reconceituação entende-se todo um processo de questionamento


da profissão do assistente social, que se estendeu pela América Latina e
que, iniciado nos anos 60, tem repercussões e desdobramentos até os
dias de hoje. Esse movimento reuniu diferentes correntes de pensamento,
que tinham entre si um ponto de convergência inicial: o fato de serem
contestarias de um Serviço Social marcado pelo seu posicionamento
mantenedor do status quo. (QUIROGA, 1991, p. 86-87).

Observe-se que o debate latino-americano em torno da Reconcei-


tuação – além de pautar a questão da superação do subdesenvolvimento e
possibilitar uma “grande união” (NETTO, 2011a, p. 146) entre profissionais,
que abriu as vias para a dita renovação (vide o Seminário de Porto Alegre
em 1965) –, reúne profissionais de vários países, como Herman Kruse, Natálio
Kisnerman, Seno Cornely, Ezequiel Ander-Egg, dentre outros da chamada
“Geração 65”. Todavia, novos profissionais também foram inseridos neste
movimento: Leila Lima Santos, Vicente de Paula Faleiros, Boris Lima etc.

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De acordo com Iamamoto (2015), a “unidade desses novos interlocutores,


apesar de suas diferenças internas, é a busca por fundamentos para a análise
profissional no campo dos ‘marxismos” (IAMAMOTO, 2015, p. 236). Note-
se que o “desenvolvimento das ideias de Marx, pós-Marx, foi extremamente
diversificado, o que leva a que não se possa falar de Marxismo e, sim, de
marxismos, implicando diferentes compreensões e incompreensões de sua
obra, com seus matizes variados” (QUIROGA, 1991, p. 93). Neste sentido,
inicialmente o Serviço Social se aproximou de determinadas correntes da
tradição marxista, como o maoismo, o neopositivismo estruturalista, o
marxismo derivado da II1 e III Internacionais2 etc.
Em contrapartida, inserida de modo particular no bojo do
movimento reconceptualizador latino-americano (1965/1975), a realidade
brasileira passa igualmente por inúmeras agitações sociais, culturais, políticas
e econômicas. É neste contexto que podemos encontrar e situar o ponto de
partida da interlocução do Serviço Social com a tradição marxista. Este
encontro tardio em parte pode ser justificado pelo “profundo
conservadorismo que dominava os meios profissionais” (NETTO, 1991, p.
85) desde sua origem (e, “ainda, à ausência de uma definida preocupação
teórica entre os assistentes sociais” – NETTO, 1991, p. 85 – grifos no original).
Entretanto, não prescinde da análise da própria realidade macrossocial na
qual a profissão se insere e, logo, da própria compreensão da inserção da
tradição marxista no Brasil. Neste ultimo caso, até 1950, o acúmulo do
pensamento marxista esteve diretamente ligado ao Partido Comunista do
Brasil (PCB). Quando há a quebra deste monopólio a partir de 1955 e o
rebatimento da tradição marxista em pensadores sem vínculos partidários
(como Florestan Fernandes e Álvaro Vieira Pinto), o processo de
amadurecimento de uma tradição marxista no país é interrompido pelo
regime de abril e sua política cultural. Abriu-se um ambiente propício para
a emersão do “marxismo acadêmico” e de “agrupamentos revolucionários”
(NETTO, 2011a).
Um dado factual a destacar é que, inserida no lapso temporal de
vigência do Movimento de Reconceituação, nas primeiras colisões com a
referida tradição, a descrita aproximação se processa frequentemente junto
a distintos intérpretes de Marx, muitas vezes através de materiais de qualidade
bastante discutível, sobretudo por meio de manuais de divulgação (NETTO,
1991, p. 86). Para Netto (2011a, p. 148-149):

É no marco da reconceptualização (ou reconceituação) que, pela primeira


vez de forma aberta, a elaboração do Serviço Social vai socorrer-se da
..............................................................................
1
O “marxismo vulgar” da II Internacional compreende a obra marxiana como uma “sociologia científica que
desvenda o mecanismo da evolução social a partir da análise econômica” (NETTO, 1991, p. 82). Nele, predomina
a inevitável transformação socialista como corolário evolucionista.
2
A III Internacional, marcada pelo neopositivismo e transformada em instrumento do Partido Russo, promove o
famoso “marxismo-leninismo” (“ideologia oficial do Estado stalinista” (NETTO, 2006, p. 50-51)); o marxismo
institucionalizado que se afirma como a única interpretação correta de Marx (NETTO, 1981).

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tradição marxista – e o fato central é que, depois da reconceptualização,


o pensamento de raiz marxiana deixou de ser estranho ao universo pro-
fissional dos assistentes sociais. O recurso dos reconceptualizadores à
tradição marxista não se realizou sem problemas de fundo: excepcional-
mente com o apelo às fontes originais, no geral valeu-se de manuais de
divulgação de qualidade muito discutível ou de versões deformadas pela
contaminação neopositivista e até pela utilização de materiais notáveis
pelo seu caráter tosco. Mais ainda: a diluição da especificidade do pensa-
mento de inspiração marxiana no cadinho do ecletismo redundou em
equívocos tão grosseiros que se chegou a supor a sua congruência teórico-
metodológica com o substrato das propostas de Paulo Freire. Não se
trata, como se vê, de um ingresso muito feliz da tradição marxista em
nosso terreno profissional; entretanto [...] o principal é que, a partir de
então, criaram-se as bases, antes inexistentes, para pensar-se a profissão
sob a lente de correntes marxistas; a partir daí, a interlocução entre o
Serviço Social e a tradição marxista inscreveu-se como um dado da
modernidade.

Segundo Quiroga (1991, p. 88), também é preciso compreender


que o Movimento de Reconceituação – que não foi homogêneo nem linear
(IAMAMOTO, 2008) – não conseguiu romper radicalmente com o legado
conservador que predominou na história do Serviço Social; “a Reconcei-
tuação levou a uma ruptura política que não foi acompanhada por uma
ruptura teórica com essa herança conservadora” (QUIROGA, 1991, p. 88).
Segundo as análises de Netto (1991), para melhor entender a rela-
ção do Serviço Social com a tradição marxista no cenário brasileiro, é preciso
considerá-la inserida no período de renovação do Serviço Social no país
entre 1960 e 1980. Imerso no quadro de emergência e ocaso da ditadura
civil-militar (1964-1985), o Serviço Social sofre profundas transformações.
Dentre outros impactos, tem-se a ampliação dos lócus ocupacionais; a sua
efetiva inserção no âmbito universitário e, logo, o seu processo de laicização.
Processos impulsionados pelas exigências da “modernização conservadora”,
levada a cabo pelo quadro autocrático burguês (NETTO, 1991, p. 86). Este
quadro, contraditoriamente, impulsiona o “amadurecimento intelectual” da
categoria, embora por vias incertas.
Em linhas gerais, de acordo com Netto (2011a), as principais ten-
dências renovadoras do Serviço Social em relação ao tradicionalismo pro-
fissional foram: a modernização conservadora, a reatualização do conser-
vadorismo e a intenção de ruptura. Sinopticamente, a primeira foi estimulada
pelo regime autocrático burguês e respondeu favoravelmente àquele quadro,
tendo seu ponto alto na sistematização de Araxá-MG (1967) e de Teresópolis-
RJ (1970). Como característica principal, essa vertente buscou contribuir
para o “desenvolvimento” através de seu modus operandi arrimado nas
ditas Ciências Sociais de cariz neopositivista (estrutural-funcionalista). Por
fim, juntamente com a derrocada do regime autocrático burguês, tal perspec-
tiva experimenta seu ocaso.

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A partir do segundo lustro da década de 1970, a vertente de


reatualização do conservadorismo emerge como alternativa à perspectiva
modernizadora, “recusando” essencialmente o seu caráter neopositivista.
Esta nova vertente, com efeito, reivindica-se atrelada à fenomenologia, porém
mantém e/ou busca recuperar os lastros católicos tradicionais da profissão.
Tal perspectiva trava um duplo combate: posiciona-se contra o positivismo
e também repele tacitamente as ingerências marxistas e de segmentos da
Igreja Católica de ala mais progressista, isto é, aquela vinculada à Teologia
da Libertação. Além de resgatar os traços mais tradicionais do Serviço Social
brasileiro, seus objetivos centrais podem ser sintetizados na ampliação das
referências teóricas para subsidiar as intervenções profissionais de
“microescala” (NETTO, 1991, p. 87). Realizando uma aproximação parca e
rasa à fenomenologia, isto é, distanciada das fontes originais – talvez com a
exceção da obra de Merleau Ponty –, cabe afirmar que, de acordo com a
linha interpretativa de Netto (2011a), esta vertente não obteve expressão de
monta no interior da categoria profissional.
Por fim, em 1970 surge a perspectiva que objetiva a ruptura com
o tradicionalismo na profissão. No quadro de agitações sociais do início da
década de 1960, através do movimento estudantil e das demais forças
progressistas da época – além de setores da Igreja Católica afirmando-se
politicamente contrários à ditadura –, os precursores desta vertente buscam
expressar os interesses dos dominados. Porém, a sua afirmação no debate
da categoria profissional realmente só emerge entre 1972-1975, ficando,
entretanto, “insulada” na Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG)
devido ao quadro repressivo imposto pela autocracia burguesa – e também
às próprias resistências a suas ideias no meio profissional. Na transição da
década de 1970 para a década de 1980, no período de “abertura
democrática” e com a expansão das lutas sociais, tal vertente se amplia no
espaço acadêmico, espraiando-se para outras universidades (NETTO, 1991,
p. 88). No decorrer da década de 1980, atesta sua maturidade através da
publicação de Relações Sociais e Serviço Social no Brasil (1982).

2 Os principais momentos de aproximação do Serviço


Social brasileiro à tradição marxista

No intento de resgatar o movimento real de aproximação do Ser-


viço Social brasileiro à tradição marxista, a pesquisa buscou rastreá-la a
partir de 1960. Desse modo, pôde-se concluir que existiram três momentos
centrais da referida aproximação. O “primeiro momento”, portanto, efetiva-
se pela via da militância política no bojo de movimentos político-orga-
nizativos, como o movimento estudantil, e movimentos de camadas médias
urbanas, entre 1964-1968. Este processamento, é obvio, padece das cons-
trições (im)postas pelo regime autocrático burguês, de modo que se instaura

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um ambiente pouco propício para a emersão e desenvolvimento desta “pri-


meva” aproximação à tradição marxista. Para Netto (2011a, p. 268):

Todas as indicações disponíveis convergem no sentido de sugerir que a


interação entre os profissionais originalmente envolvidos no projeto da
ruptura e a tradição marxista opera-se pela via política (frequentemente,
político partidária: mormente via os grupamentos de esquerda influen-
ciados pela igreja, situados fora do leito histórico do PCB). Dadas as cir-
cunstâncias da época, esta aproximação padece de vícios óbvios: ins-
trumentalização para legitimar estratégias e táticas, pouca possibilidade
de reflexão teórica sistemática etc.

Nas conclusões de sua tese de doutoramento, Silva (1991, p. 433)


afirma que não existiram grupos “organizados com a intenção explícita de
introduzir o pensamento marxista no Serviço Social”. Para a autora, “existem
evidências de que esta aproximação se processou basicamente, pela ação
de militantes da chamada esquerda católica, estudantes e/ou profissionais
de Serviço Social [...]”; protagonistas “[...] que na conjuntura dos anos sessen-
ta e setenta, se aproximaram – individual ou coletivamente – do pensamento
marxista” (SILVA, 1991, p. 434). A autora confirma que:
[...] Basicamente, a primeira aproximação do Serviço Social à tradição
marxista ocorreu pela ação de leigos católicos (e alguns religiosos) que
descolando-se da clássica posição da Igreja Católica frente ao marxismo
– porém sem aderir ao comunismo – abriram-se à discussão e crítica das
interpretações religiosas sobre a chamada ‘questão social’ e os métodos
da ‘Ação Social’. (SILVA, 1991, p. 434).

Segundo Silva (1991), grande parte dos docentes por ela entrevis-
tados afirmou ter conhecido escritos althusserianos por indução da Ação
Popular (AP) e/ou da Juventude Universitária Católica (JUC) no fim dos anos
1960. Por meio da AP, o grupo católico também se aproximou do pensa-
mento maoista. Já a menor parcela do grupo entrevistado, vinculada ao
PCB, aproximou-se de insumos marxistas através do próprio partido.
A pesquisa de Quiroga (1991, p. 102) também demonstra que – no
caso dos docentes por ela entrevistados nos anos 1980 – a “aproximação aos
‘marxismos’, deu-se, em muitos casos, através da militância político-partidá-
ria e, só tardiamente, sua discussão foi incorporada ao debate profissional”. Ao
cabo de sua pesquisa, a autora descobre que na maioria dos casos “a tomada
de contato com as ideias marxistas ou marxianas se deu, fundamentalmente, na
juventude, por meio da participação nos movimentos sociais, ou pela vin-
culação à Universidade nos anos mais recentes” (QUI-ROGA, 1991, p. 103).
A autora conclui que ambas as vias de acesso a Marx “se mostraram precárias,
repassando um marxismo cristalizado e limitado” (QUIROGA, 1991, p. 104).

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Abramides (2016) relata uma experiência de professores e alunos


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que ilustra este
momento. Segundo a autora:

[...] em 1968, os estudantes da escola de Serviço Social da PUC-SP parali-


saram as aulas por três meses juntamente com os professores e debateram
um novo projeto de formação profissional. Alguns professores, ao volta-
rem do Encontro de Teresópolis, apresentaram a metodologia baseada
em ‘variáveis e funções’, denominadas ‘situações sociais problemas’. A
vanguarda do movimento estudantil, por influência da corrente marxista
na militância política, criticou a vertente funcionalista e tecnicista, de-
bateu a importância dos campos de estágios junto à população tra-
balhadora, incorporou o método Paulo Freire na pedagogia da ação e
defendeu a participação paritária nas instâncias colegiadas entre pro-
fessores, estudantes e funcionários. (ABRAMIDES, 2016, p. 462).

A “primeira aproximação” nos anos 1960 também consta nas argu-


mentações de Iamamoto (2008, p. 210); segundo a autora, o “encontro do
Serviço Social com a perspectiva crítico-dialética deu-se por meio do filtro
da prática político-partidária. Por meio dela muitas inquietudes foram transfe-
ridas da militância política para a prática profissional”. Contudo, verifica-
se, seguindo as pegadas deixadas por Netto (2011a), que, como não há
sistematização expressiva a respeito desta “primeira aproximação” – própria
da década de 1960 –, o primeiro momento real, efetivo e expressivo de
aproximação do Serviço Social brasileiro à tradição marxista pode ser credi-
tado ao processamento do chamado “Método-Belo Horizonte” (Método-
BH) na década de 19703. Neste sentido, o referido autor observa:

Quando se repõe no marco profissional [e aqui claramente se trata da


experiência de Belo Horizonte], ela [a aproximação à tradição marxista]
é filtrada pela recorrência a autores que de alguma forma chancelaram
as deformações próprias dessa instrumentalização. Neste primeiro mo-
mento, pois, não é de estranhar que a perspectiva da intenção da ruptura
recolha da tradição marxista o visceral empirismo que se ancora em ex-
tratos do maoismo e lhe dê uma iluminação teórica via redução do arsenal
marxiano ao epistemologismo de raiz estruturalista – donde a reiteração
de discussões sobre ‘idealismo’, ‘materialismo’, ‘ciência’ e ‘ideologia’,
‘teoria e prática’, ‘prática teórica’ etc. (NETTO, 2011a, p. 268).

Se a experiência belo-horizontina é efetivamente o primeiro mo-


mento, num segundo momento (aquele “de consolidação acadêmica” da
perspectiva de intenção de ruptura) predomina o chamado marxismo acadê-
mico, que, somente no marco da transição “democrática”, consegue subsi-
..............................................................................
3
Em 1972, Vicente de Paula Faleiros publica, em Buenos Aires, Trabajo social: ideologia y método. Ele realiza
uma peculiar e criticada interlocução com a tradição marxista, porém não o incluímos aqui. Apesar da importância
dessa obra, sua exclusão deveu-se porque não encontramos o livro de 1972; o material original é de difícil
acesso. Além disso, as versões mais recentes sofreram alterações consideráveis, obstando nossa análise.

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diar suas análises através de elaborações originais, inclusive, recuperando


autores “clássicos”. Todavia, Netto (2011a) divide esta segunda aproximação
em dois patamares: o primeiro, no “pós-Método-BH” – que se situa ao cabo
de 1970 e início de 1980 –, e o segundo, que é demarcado pela produção
de Iamamoto (1982), parcialmente publicada em Iamamoto e Carvalho
(2010). Nas palavras de Netto (2011a), no primeiro “patamar desse mo-
mento”, temos que:

[...] insulada e neutralizada a universidade, a referência à tradição mar-


xista, ainda com fortes traços de redução epistemologista, funda um pa-
drão de análise textual da documentação profissional com as dimensões
próprias da política e da história refratadas por uma lente paradigmática
– no entanto, obedecendo a exigências intelectuais rigorosas. (NETTO,
2011a, p. 269).

No segundo momento,

[...] prolongam-se as incidências do ‘marxismo acadêmico’, mas o quadro


da transição democrática repõe política e história como objetos práticos
inelimináveis e possíveis da reflexão – e a elaboração passa socorrer-se
das fontes originais, com recurso a ‘clássicos’ que, à diferença do mar-
xismo estruturalizado, contemplam a historicidade. (NETTO, 2011a, p.
269).

Outra reconhecida autora do Serviço Social brasileiro, Santos


(2007, p. 73), aponta que o primeiro momento de aproximação à tradição
marxista ocorre no bojo do “Movimento de Reconceituação”. Tal apropria-
ção, segundo a autora, efetiva-se por meio da “militância política”, tradu-
zindo-se, contudo, numa “apropriação ideológica do Marxismo”.
Muito próxima à linha argumentativa de Netto (2011a), porém
não aprofundando a reflexão, Santos (2007) certifica que é na década de
1980 que se situa o segundo momento de aproximação do Serviço Social à
tradição marxista. A autora não explicita a mesma distinção cronológica
que Netto (2011a) realiza neste segundo momento, porém concorda em
outro ponto: para a ela, a despeito de um nascente movimento de inter-
locução com os escritos marxianos – e aqui Santos (2007) reconhece o
pioneirismo de Iamamoto [no texto de 1982] – e marxistas de maior rigor
analítico, neste momento ainda se tem uma apropriação predominantemente
marcada pelo “epistemologismo”. Todavia, a denúncia de Santos (2007)
somente confirma parte das proposituras de Netto (2011a), não acres-
centando novidades ao debate.
Quem também contribui pouco à discussão – dadas as limitações
cronológicas de sua pesquisa – é Silva (1991). Segundo a autora, após a
experiência da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Belo
Horizonte (1972-1975), outras “tentativas de implementar o Serviço Social
– teórica e praticamente – a partir das vertentes do pensamento marxista, só

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ocorreram posteriormente a 1975” (SILVA, 1991, p. 437). Nestas, Silva (1991)


ainda destaca que a aproximação de alguns narradores (por ela entrevistados)
à tradição marxista ocorreu nos cursos de pós-graduação – no Brasil e no
exterior –, principalmente nos programas de Ciências Sociais. Por estas trilhas,
os profissionais de Serviço Social foram vinculando-se aos “docentes desses
programas” (SILVA, 1991, p. 438).
Outra autora, Simionatto (1999), seguindo as pistas deixadas por
Netto (2011a) e Silva (1991), também sustenta que aquela “primeva apro-
ximação” à tradição marxista nasce nos anos 1960:

[...] ocorreu através da militância política mediante a articulação com a


esquerda católica especialmente através da Juventude Estudantil Católica-
JEC, Juventude Universitária Católica-JUC, Juventude Operária Católica-
JOC e, posteriormente, através do Movimento de Educação de Base-
MEB e Ação Popular-AP. (SIMIONATTO, 1999, p. 182).

A autora igualmente afirma que esse movimento é interrompido


pela conjuntura (im)posta pela ditadura civil-militar, sendo retomada com
mais afinco somente na década de 1970 – especialmente no segundo lustro
da referida década (SIMIONATTO, 1999, p. 182) –, posto o período de
“redemocratização”.
No que se refere aos momentos mais importantes (não os únicos)
da vertente de intenção de ruptura, Simionatto (1999) concorda com as
análises de Netto (2011a). Isso é perceptível na medida em que a autora
destaca o “Método-BH” e a produção de Iamamoto (1982) como importantes
momentos da referida perspectiva. No primeiro caso, Simionatto (1999) sim-
plesmente repete a tese amplamente difundida no meio profissional de que
a base teórica das proposituras dos formuladores do “Método-BH” “é cons-
tituída essencialmente pelas teses maoistas e althusserianas, enquanto o
segundo centra-se nas fontes originais do pensamento de Marx, com algumas
recorrências a Gramsci de ‘Americanismo e Fordismo’ e, mais especifica-
mente, à questão dos intelectuais” (SIMIONATTO, 1999, p. 184).
Estes dois momentos podem ser destacados como formas de expli-
citar a vertente mais progressista em contraposição ao tradicionalismo na
profissão e evidenciar também o seu amadurecimento. Para Netto (2011a,
p. 275), estes dois ápices demarcam profundamente a vertente renovadora de
intenção de ruptura. Na emergência desta, um primeiro movimento é levado
a efeito com as elaborações documentadas, entre 1972-1975, pelo grupo
da Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG). Tal experiência, então,
efetiva-se através da constituição de um grupo de jovens – composto ma-
joritariamente por profissionais recém-formados após o Golpe de 1964 – li-
derado por Leila Lima Santos e Ana Maria Quiroga. A despeito das pro-
blemáticas que cercaram a sua aproximação a determinadas vertentes da
tradição marxista, tal grupo define uma nova e importante linha renovadora
para o Serviço Social brasileiro, pois defende uma proposta de ruptura com

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o tradicionalismo nos planos teórico-metodológico, técnico-operativo e éti-


co-político. Contudo, de acordo com Netto (2011a), somente com a pro-
dução de Iamamoto (1982) é que se chega à “maioridade intelectual da
perspectiva de intenção de ruptura”.

Trata-se de uma elaboração que, exercendo ponderável influência no


meio profissional, configura a primeira incorporação bem-sucedida, no
debate brasileiro, da fonte ‘clássica’ da tradição marxista para a com-
preensão profissional do Serviço Social. É absolutamente impossível
abstrair a reflexão de Iamamoto da consolidação teórico-crítica do projeto
de ruptura no Brasil. (NETTO, 2011a, p. 276).

Na mesma linha reflexiva de Netto (2011a), Iamamoto (2012, p.


252) afirma que é com o texto publicado em 1982 que se tem, pela primeira
vez dentro da categoria profissional, “uma abordagem histórico-sistemática
sobre a produção e reprodução das relações sociais com base em um trata-
mento da teoria marxiana, apoiada no conjunto de sua obra – O Capital –
até então ausente da produção acadêmica da área no País”.

[...] é a partir da publicação, em 1982, do seu ensaio mais conhecido


que se pode identificar a aproximação do Serviço Social, no Brasil, às
fontes clássicas do pensamento socialista revolucionário. Sem qualquer
dúvida, entre nós foi Marilda quem fundou a análise do Serviço Social
não em tal ou qual vertente marxista, mas na matriz teórico-metodológica
original de Marx. É possível dizer, sem o risco do exagero, que Marilda
inaugurou no Brasil, a interlocução entre os assistentes sociais e a obra
seminal de Marx. [...] aquele trabalho de Marilda, rigorosamente aca-
dêmico, não tem nada a ver com certa produção intelectual que se nutriu
dos modismos em voga. (NETTO, 2013, p. 12).

Contudo, Simionatto (1999) compreende que a produção intelec-


tual que faz referência ao pensamento marxista extrapola os dois momentos
explicitados por Netto (2011a). Presente no final de 1970 e início de 1980,
segundo a autora, tal acervo (sobretudo o segmento conectado ao “aporte
teórico gramsciano”, alvo da tese de Simionatto) não foi analisado pelo
autor de Ditadura e Serviço Social.
Observe-se que, no trabalho de Netto (2011a), não havia a inten-
ção de analisar toda a bibliografia que pudesse ser inserida na vertente de
intenção de ruptura, mas sim sinalizar os momentos mais importantes. Em
suas palavras: “À falta de um levantamento mínimo das várias iniciativas na
linha de ruptura, estamos nos atendo somente àquela explicitação que foi
efetivamente representativa e decisiva” (NETTO, 2011a, p. 263). Em rodapé,
Netto (2011a, p. 252 – grifos nossos) também sinaliza:

Sabe-se que pequenos grupos de profissionais, desvinculados da aca-


demia, esforçaram-se, ao longo do período ditatorial, por desenvolver
práticas alternativas ao tradicionalismo e às exigências sociopolíticas

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da autocracia. Esses esforços e seus resultados ainda guardam pesquisa


acurada – mas é certo que sua gravitação nas representações do Serviço
Social foi débil.

Em outra nota (nº 310), o autor citado assinala:

Não afirmamos nem que a formulação belo-horizontina foi a única, nem


que a ela não se seguiram intentos na perspectiva da intenção de ruptura
(por exemplo, a experiência realizada por assistentes sociais vinculados
à Universidade Federal do Maranhão, na comunidade do Boqueirão, no
final da década de 70). (NETTO, 2011a, p. 263).

Ademais, em sua análise, Simionatto (1999) conclui que, após a


avalancha althusseriana, as recorrências a Antônio Gramsci, então, tornam-
se mais significativas no Serviço Social brasileiro, extrapolando também
para as décadas de 1980 e 1990 (SIMIONATTO, 1999, p. 185).
Segundo a autora, Gramsci chega ao Brasil efetivamente na década
de 1960. Ela identifica que, apesar das constrições ditatoriais – que se am-
pliam com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5) em 1968 –, a partir de
1966 parte da obra gramsciana começa a ser traduzida por Carlos Nelson
Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário Gazzaneo. Assim, o pensamento
do autor sardo de fato começa a transitar no debate partidário e acadêmico.
Além dos corolários do AI-5 para o mundo da cultura, outro obs-
táculo à introdução do pensamento gramsciano no Brasil, para Simionatto
(1999), foi a hegemonia de uma esquerda profundamente marcada pelas
ingerências do chamado “marxismo da Terceira Internacional” ou do “mar-
xismo-leninismo”. Apesar da presença do referencial gramsciano nas Aca-
demias na década de 1970, sua sistematização adquire maior relevo na
transição para 1980, posto o ocaso do Regime de Abril.
Nas escolas de Serviço Social da PUC-SP, por exemplo, existiram
disciplinas que tratavam do pensamento gramsciano: em 1977, na pós-gra-
duação, na disciplina de “Política Social”, e em 1979, na graduação, com a
disciplina “Teoria do Serviço Social”. Na PUC-RJ, a aproximação do Serviço
Social com o pensamento gramsciano emerge em finais de 1970, principal-
mente por meio de divulgadores de outras áreas acadêmicas. Tal aproxi-
mação também é visualizada na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) em finais de 1970, através da interlocução com as Ciências Sociais e
com a Filosofia. Porém, é na década de 1980 que Gramsci aparece com
mais força no Serviço Social brasileiro, com papel destacado nas produções
e aulas de Carlos Nelson Coutinho.
No entanto, Simionatto (1999, p. 233) conclui que Alba Maria Pi-
nho de Carvalho “é [autora d]o primeiro trabalho no âmbito do Serviço So-
cial brasileiro a buscar apreender o pensamento gramsciano a partir das
suas raízes; ele se coloca no debate profissional com uma nova proposta de
reflexão no eixo da tradição marxista”. Segundo Simionatto (1999, p. 201),

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trata-se “da primeira reconstrução cuidadosa e abrangente do pensamento


de Gramsci que recorre às fontes originais”. No fim da década de 1970, o
Departamento de Serviço Social da Universidade Federal o Maranhão era
um importante polo de estudos do pensamento gramsciano. Deste grupo
faziam parte, além de Alba M. P. de Carvalho, nomes como: Franci Gomes
Cardoso, Josefa Batista Lopes, Marina Maciel, dentre outros.
Em sua análise, Netto (2011a) também sinaliza para um terceiro
momento da perspectiva de intenção de ruptura (a partir de 1985). Neste, o
autor afirma que a profissão buscou recuperar as análises da tradição marxista
dos momentos anteriores, com o objetivo de subsidiar sua atualidade
profissional: “[...] da problemática da formação a campos de intervenção e
espaços e políticas de prática” (NETTO, 2011a, p. 269).

Este processamento, não é difícil imaginá-lo, foi atravessado por con-


trafações que não podem passar sem alusão – em boa medida decorrentes
da própria natureza da aproximação incipiente à tradição marxista. A
mais evidente delas é o lastro eclético que percorre as formulações sig-
nificativas desta vertente renovadora: marca presença no empirismo da
elaboração belo-horizontina, é flagrável no primeiro patamar do mo-
mento de consolidação acadêmica e, consolidada a perspectiva, per-
manece dando o tom em formulações nas quais a ele se acresce o novo
irracionalismo [...]. (NETTO, 2011a, p. 269-270).

Até o presente momento, as asserções de Netto (2011a) são as


mais avançadas no que diz respeito à relação entre o Serviço Social brasileiro
e a tradição marxista. Todo material por nós pesquisado (IAMAMOTO, 1982,
2008, 2012, 2013; IAMAMOTO; CARVALHO, 2010; SANTOS, 2007; SIMIO-
NATTO, 1999; SILVA, 1991; QUIROGA, 1991, entre outros) confirmou total
ou parcialmente as ponderações do referido autor. Entretanto, mesmo sendo
uma referência indispensável aos estudos da relação entre o Serviço Social
e a tradição marxista, o livro de Netto (2011a) carece de maior aprofunda-
mento analítico, uma vez que o foco de sua pesquisa era outro.
Numa avaliação a posteriori, nossa pesquisa indicou que ainda
há lacunas a serem colmatadas. Dentre elas, podemos citar a inexistência
de estudos aprofundados acerca das ingerências do estruturalismo althus-
seriano e/ou do maoismo no Serviço Social e, de modo particular, sobre o
“Metodo-BH”; também carecemos de estudos que recuperem as ingerências
da tradição marxista na produção de autores como, por exemplo, Vicente
de Paula Faleiros. Além disso, observa-se a ausência de estudos sobre a tra-
jetória intelectual de muitos autores do Serviço Social e também sobre a
qualidade da retenção que estes detiveram da dialética, dentre outras lacunas.
Recuperar a relação entre o Serviço Social e a tradição dialética supõe revi-
sitar o movimento real da profissão na história recente do país, mas também
trazer à baila as ações e os papéis dos sujeitos que também contribuíram
para a construção do Serviço Social brasileiro.

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Considerações finais

Sinteticamente, observamos que o Serviço Social brasileiro se apro-


xima de “insumos” da tradição marxista nos anos 1960. Esse movimento se
efetiva pela vinculação de estudantes, profissionais e docentes que de algum
modo se conectaram à militância político-partidária, principalmente de ori-
gem católica (JUC, JOC, MEB, AP etc), e, mais tarde e em menor medida,
junto ao PCB. Contudo, é somente com a emersão da perspectiva de intenção
de ruptura com o tradicionalismo profissional, no chamado “Método-BH”
(de 1972-1975 na UCMG), que se tem uma aproximação efetiva, sistemática
e expressiva à tradição marxista, o que não passou sem problemas de fundo.
A despeito dos importantíssimos avanços da experiência de BH
para o Serviço Social brasileiro, “Não se pode omitir [...] as limitações teórico-
metodológicas e as ilusões características de uma parcela da vanguarda
profissional naquele momento” (IAMAMOTO, 2015, p. 238).

Dentre estas, podem ser destacadas: a atualização de marcas messiânicas


– ainda que travestidas de uma roupagem politizada de ‘esquerda’ – no
trato dos objetivos-fins profissionais; ‘a transformação do homem e da
sociedade’ mediada pelos processos de capacitação, conscientização e
organização, e inspirados na perspectiva de Paulo Freire, a pedagogia
do oprimido. Decorre daí uma visão polarizadora da sociedade dividida
entre opressores e oprimidos, alimentada por ingredientes teóricos ex-
traídos do arsenal da vulgarização marxista. (IAMAMOTO, 2015, p. 238).

Nesta experiência, também encontramos “o neopositivismo althus-


seriano com vieses maoistas, valendo-se mesmo de impostações próprias
da dogmática do marxismo-leninismo” (NETTO, 2005, p. 89). A dialética é
retida como modelo que se aplica à realidade tendo em mira a obtenção da
verdade (mas também, e aí sob a forma do método profissional, com vistas
à própria “transformação social”). Neste passo, os formuladores de BH não
percebem que “a dialética só é passível de descobrimento, jamais de apli-
cação” (CHASIN, 2009, p. 236).
Como se sabe, o projeto de ruptura com o conservadorismo (obs-
truído em 1975 por vários condicionantes como, por exemplo, o próprio
regime autocrático burguês) é recuperado em finais de 1970 sob a lente de
inúmeros profissionais, especialmente os ligados à universidade. A partir
desta década, vale observar, vários protagonistas da profissão conhecem a
produção marxiana/marxista através dos cursos de pós-graduação – dentro
e/ou “fora” do Serviço Social.
No entanto, uma pertinente elaboração teórica é divulgada na
literatura profissional em 1982. Se a experiência belo-horizontina havia de-
marcado alguma “evolução” frente às parcas aproximações (aos “mar-
xismos”) da década de 1960, e se a recuperação do “seu” projeto se punha
ao cabo de 1970, diga-se, ainda marcada pelo epistemologismo, um ponto

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de corte entre tudo o que existia de interlocução entre o Serviço Social e a


tradição marxista, de fato, efetiva-se com a produção de 1982 de Marilda
Villela Iamamoto.
Iamamoto se destaca na categoria profissional dos assistentes so-
ciais efetivamente a partir da publicação da obra Relações Sociais e Serviço
Social no Brasil, que contou com a coautoria de Raul de Carvalho. A primeira
parte desta produção é constituída por dois dos quatro capítulos da disser-
tação de mestrado Legitimidade e crise do Serviço Social. Nela, a autora
analisa “a instituição Serviço Social” como profissão inserida na divisão
social e técnica do trabalho no quadro maior da produção e reprodução
das relações sociais capitalistas.
Na obra supracitada, a produção capitalista é compreendida como
produção e reprodução de relações sociais, e não meramente como pro-
dução e reprodução de mercadorias. Nas palavras da autora: “Refere-se à
reprodução das forças produtivas e das relações de produção na sua glo-
balidade, envolvendo, também, a reprodução espiritual” (IAMAMOTO,
1982, p. 90). A questão central para ela é compreender o Serviço Social in-
serido no processo de reprodução das relações sociais, além do modo como
contribui para a continuidade dessas próprias relações (IAMAMOTO, 1982;
IAMAMOTO; CARVALHO, 2010). Para tanto, a autora se ancora em diversos
textos de Marx (e de alguns marxistas como Antônio Gramsci e Henri
Lefebvre), para pensar a gênese, as funções, o desenvolvimento e as “atua-
lizações” do Serviço Social no Brasil (IAMAMOTO, 1982). Nesta análise, a
autora efetivamente estabelece uma interlocução cuidadosa com a literatura
marxiana e marxista, de tal modo que esta referência “Constituiu-se em um
clássico para a profissão, e a partir dessa obra ampliou-se a literatura do
Serviço Social nessa orientação teórico-metodológica” (ABRAMIDES, 2016,
p. 468).

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DOI: 10.12957/rep.2018.36694
Recebido em 31 de agosto de 2017.
Aceito para publicação em 26 de janeiro de 2018.

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