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ensaios

Os Garotos de Fengkuei (Feng gui lai de ren),


de Hou Hsiao-hsien (Taiwan, 1983)
por Rodrigo de Oliveira

Vontade de exílio

A se contar de sua estréia na direção de


longas-metragens, foram necessários
dezesseis anos até que a câmera de Hou
Hsiao-hsien finalmente dobrasse uma
esquina. É a famosa seqüência do passeio
de moto em Adeus ao Sul (Goodbye South,
Goodbye/ Nan guo zai jian, nan guo, 1996), e
ainda assim vemos os personagens de frente, guiando na direção da câmera, que sempre faz
as curvas antes deles e, portanto, já sabe o que espera os motoqueiros do lado de lá - a
câmera passou por ali antes. A sensação real de descoberta do que se coloca nesse espaço
imaginado que é o lado de lá de uma esquina, o lugar que não se domina, a geografia ainda
inabitada, essa sensação passa ao largo do cinema de Hou até a segunda metade dos anos
90.

A idéia de uma memória histórica (seja ela coletiva/nacional ou individual/familiar) pressupõe a


experiência prévia, e ela diz menos respeito à simples consciência espaço-temporal e mais ao
domínio da própria dinâmica dos corpos e dos movimentos no interior desses quadros, a um
conjunto quase matemático das reações possíveis, das trajetórias usuais e, eventualmente,
até daquilo que se mostra como exceção apenas para reafirmar a regra. É apenas assim que
Hou consegue nos fazer participar desses universos que cria com esmero muito mais
arquitetônico que espiritual: há espaço para observadores, há objetos a se olhar, mas
dificilmente há matéria bruta disposta a se deixar moldar e construir por esse que observa.
Não raro, os protagonistas de seus filmes se encontram no momento da realização de seus
destinos, sem espaço para a ilusão. Eles lamentam, muitas vezes reagem, mas não se
espantam, não se surpreendem: também sabiam o que os esperava do lado de lá.

É por isso que Os Garotos de Fengkuei (The


Boys From Fengkuei/ Feng gui lai de ren,
1983) surge com tamanho frescor numa
revisão, depois de saber tudo o que Hou foi
capaz de fazer depois dele. As sementes
estão todas lá: a trama inspirada na trajetória
pessoal e a coincidência desta com a
trajetória coletiva de Taiwan, os jovens
protagonistas masculinos em um momento de transição, os enquadramentos à japonesa, os
planos fixos e longos. É neste filme que Hou conta ter insistido com o fotógrafo Chen Kun-Ho
para sempre "trazer a câmera mais para trás", para descobrir este ponto justo na relação com
o espaço cênico, de onde o cineasta pudesse alcançar o olhar panorâmico ideal sobre esses
excertos do cotidiano.

Os Garotos de Fengkuei sabe, de fato, tomar distância dos acontecimentos e, como em nossa
metáfora de abertura, ainda é incapaz de dobrar uma esquina. Vemos um grupo de garotos
encrenqueiros se envolver numa briga com uma gangue rival, e a câmera fixa espera
pacientemente o momento em que o tumulto voltará ao quadro - ela, afinal, já sabe que ele
voltará. E só há o corte quando os jovens começarem a fugir para que, então, os vejamos
agora de frente, num espaço que a câmera também já sabia ser o palco do segundo round. É
algo do instinto, que é dos personagens tanto quanto do cineasta: mesmo quando parecem ter
se acalmado, fugindo das atribulações da vila natal para um retiro na praia, há algo na própria
natureza constitutiva deles com o mundo e com a idéia de sociedade que os impele ao
conflito, e eles seguem para mais uma briga como se dela não fosse possível escapar.

Essa talvez seja a grande diferença de Os Garotos de Fengkuei em relação aos longas
imediatamente posteriores a ele, sobretudo com Tempo de Viver, Tempo de Morrer (A Time to
Live and a Time to Die/ Tong nien wang shi, 1986), uma espécie de seu filme-irmão. Trata-se
não de um filme com bases na História, mas sim na idéia de cultura. O conceito de atuação,
que será tão caro a todos os protagonistas de Hou na década seguinte, atuação diante do
outro, diante do passado, a postura política na relação com os impulsos externos que invadem
esse espaço-tempo conhecido e dominado e transformam a dinâmica dele (as notícias de
guerras e revoluções que chegam pelo rádio, as mortes na família que chamam à ação os que
ficam), este conceito é aqui substituído por outro, o de comportamento - Hou toma inúmeras
seqüências para mostrar simplesmente os garotos sendo garotos, da forma que conheciam a
juventude até ali. Pois antes de estabelecer uma relação entre o campo e a cidade que aponte
para a modernização era preciso perceber que tipo de choque comportamental essa migração
provocaria, sobretudo, naquele que parte da cultura tradicional do campo e precisa lidar com
esse novo modus operandi estabelecido nas relações interpessoais da metrópole.

E assim a história de Ah-Ching, o jovem de


boa família dado a arroubos violentos e
metido com pequenos marginais, é no fim a
história do acuamento diante da grandeza do
mundo para além dos limites da vila de
Fengkuei. Mas este é um mundo que Hou, no
cinema, ainda não dominava em 1983. Eis a
descoberta, e o espanto, a esquina nunca
dobrada: o filme experimenta, junto de seus garotos protagonista, a sensação de habitar pela
primeira vez um espaço desconhecido e, por vezes, repelente. Há o perigo da polícia, a
ausência de uma família que cuide de seus ferimentos depois de uma briga, irmãs
emancipadas atendendo a porta só de toalha e ficando noivas de sujeitos que parecem
desconhecer o pudor matrimonial da província, trânsito e gente apressada que impeçam a
câmera de encontrar seu lugar ideal, mas apenas o lugar possível.

Levados por um marginal a assistirem uma sessão clandestina de pornografia num cinema
que não existe, os garotos do interior sobem um prédio abandonado apenas para se darem
conta que a imagem proibida que buscavam é substituída pela mais pública delas: a cidade de
Kaohsiung, a segunda maior de Taiwan, vista do alto. "Em cor, tela grande!", como prometera
o marginal, mas apenas a cidade, emoldurada pelo concreto. "Pagamos tanto só por uma
vista", um dos amigos diz, enquanto Ah-Ching se assombra. No plano seguinte lá está o
garoto, com um caderno e um áudio-livro nas mãos, estudando um novo idioma enquanto os
outros fazem troça de sua dedicação. Para participar daquela tela grande, para dominar uma
imagem que não lhe é familiar, e eventualmente fazer parte desta imagem, ser forma e
movimento no interior dela, é preciso falar a língua da realidade desta imagem, e o idioma é
apenas o começo. Os amigos partirão, de volta para o interior ou para o serviço militar, a
menina por quem se apaixona vai para Taipei, cidade ainda maior. O funeral do pai é a última
vez em que o tom sépia colorirá sua memória, e se há uma razão para Hou se aproximar de
um ator para um close-up é essa, para filmar a tomada de consciência que pacifica o passado
em nome de um futuro desejado, obrigatório até. Ah-Ching se propõem ao confronto com a
cidade. Um exílio voluntário, consciente e ativo: na seqüência final, enquanto o caos urbano
grita, o garoto grita de volta. A câmera de Hou Hsiao-hsien divide com Ah-Ching o
maravilhamento e o temor desse presente tenso e irrevogável. Logo se a câmera se perderá
dele em meio à multidão, mas nem Ah-Ching nem ela parecem se importar com isso: há
coisas novas a se ver.

Dezembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br

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