Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vontade de exílio
Os Garotos de Fengkuei sabe, de fato, tomar distância dos acontecimentos e, como em nossa
metáfora de abertura, ainda é incapaz de dobrar uma esquina. Vemos um grupo de garotos
encrenqueiros se envolver numa briga com uma gangue rival, e a câmera fixa espera
pacientemente o momento em que o tumulto voltará ao quadro - ela, afinal, já sabe que ele
voltará. E só há o corte quando os jovens começarem a fugir para que, então, os vejamos
agora de frente, num espaço que a câmera também já sabia ser o palco do segundo round. É
algo do instinto, que é dos personagens tanto quanto do cineasta: mesmo quando parecem ter
se acalmado, fugindo das atribulações da vila natal para um retiro na praia, há algo na própria
natureza constitutiva deles com o mundo e com a idéia de sociedade que os impele ao
conflito, e eles seguem para mais uma briga como se dela não fosse possível escapar.
Essa talvez seja a grande diferença de Os Garotos de Fengkuei em relação aos longas
imediatamente posteriores a ele, sobretudo com Tempo de Viver, Tempo de Morrer (A Time to
Live and a Time to Die/ Tong nien wang shi, 1986), uma espécie de seu filme-irmão. Trata-se
não de um filme com bases na História, mas sim na idéia de cultura. O conceito de atuação,
que será tão caro a todos os protagonistas de Hou na década seguinte, atuação diante do
outro, diante do passado, a postura política na relação com os impulsos externos que invadem
esse espaço-tempo conhecido e dominado e transformam a dinâmica dele (as notícias de
guerras e revoluções que chegam pelo rádio, as mortes na família que chamam à ação os que
ficam), este conceito é aqui substituído por outro, o de comportamento - Hou toma inúmeras
seqüências para mostrar simplesmente os garotos sendo garotos, da forma que conheciam a
juventude até ali. Pois antes de estabelecer uma relação entre o campo e a cidade que aponte
para a modernização era preciso perceber que tipo de choque comportamental essa migração
provocaria, sobretudo, naquele que parte da cultura tradicional do campo e precisa lidar com
esse novo modus operandi estabelecido nas relações interpessoais da metrópole.
Levados por um marginal a assistirem uma sessão clandestina de pornografia num cinema
que não existe, os garotos do interior sobem um prédio abandonado apenas para se darem
conta que a imagem proibida que buscavam é substituída pela mais pública delas: a cidade de
Kaohsiung, a segunda maior de Taiwan, vista do alto. "Em cor, tela grande!", como prometera
o marginal, mas apenas a cidade, emoldurada pelo concreto. "Pagamos tanto só por uma
vista", um dos amigos diz, enquanto Ah-Ching se assombra. No plano seguinte lá está o
garoto, com um caderno e um áudio-livro nas mãos, estudando um novo idioma enquanto os
outros fazem troça de sua dedicação. Para participar daquela tela grande, para dominar uma
imagem que não lhe é familiar, e eventualmente fazer parte desta imagem, ser forma e
movimento no interior dela, é preciso falar a língua da realidade desta imagem, e o idioma é
apenas o começo. Os amigos partirão, de volta para o interior ou para o serviço militar, a
menina por quem se apaixona vai para Taipei, cidade ainda maior. O funeral do pai é a última
vez em que o tom sépia colorirá sua memória, e se há uma razão para Hou se aproximar de
um ator para um close-up é essa, para filmar a tomada de consciência que pacifica o passado
em nome de um futuro desejado, obrigatório até. Ah-Ching se propõem ao confronto com a
cidade. Um exílio voluntário, consciente e ativo: na seqüência final, enquanto o caos urbano
grita, o garoto grita de volta. A câmera de Hou Hsiao-hsien divide com Ah-Ching o
maravilhamento e o temor desse presente tenso e irrevogável. Logo se a câmera se perderá
dele em meio à multidão, mas nem Ah-Ching nem ela parecem se importar com isso: há
coisas novas a se ver.
Dezembro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
« Volta