Você está na página 1de 391

A Solidão do Duque

(Cavalheiros I)

Dama Beltrán
Sinopse

A vida libertina do futuro duque de Rutland finaliza


após bater-se em um duelo de honra com um marido
enganado. Envergonhado pelas sequelas do dito desafio,
decide abandonar Londres e partir para Haddon Hall, o
aprazível lugar onde cresceu, albergando a esperança de
encontrar a paz que tanto lhe urge obter, entretanto, a
chegada de uma notícia inesperada altera essa suposta calma
e provoca que o duque se embebede. Face aos conselhos de
seus próximos decide montar a cavalo e galopar por seus
domínios. Quando abre os olhos depois de uma
desafortunada queda, descobre que uma mulher o esteve
cuidando em algum lugar afastado e escondido de suas
terras. Seu nome, Beatrice, e seu único desejo, viver em
solidão o resto de sua vida.
Querido(a) leitor(a), quero explicar que o duque de
Rutland existe, embora acredite que nenhum se chamou
William até agora. Também quero comentar que Haddon Hall é
real e que se encontra no condado de Derbyshire. Todo o resto
é produto da minha imaginação. Esclarecido isto, espero que
desfrute com a leitura que guardam estas páginas.

Atenciosamente,
Dama Beltrán.
Para Almudena com muito carinho.
Obrigada por tudo.
«O amor tudo pode, tudo cura, tudo transforma».

Dama Beltrán.
Prólogo

Londres, 1865. Clube de cavalheiros Reform.

― Desafio-o, senhor!
Com essas palavras, um homem de baixa estatura, com
um pouco de peso a mais e vestido com um imaculado traje
cinza, atirou uma luva sobre a mesa em que se jogava uma
partida de cartas. William arqueou as escuras sobrancelhas e
olhou a quem o desafiava com certa incredulidade. Deu-se
conta o pobre infeliz que se se levantasse de seu assento o
superaria em altura um pouco mais de 30 centímetros?
― Pela honra de quem? ― Perguntou William
redirecionando seus olhos para as cartas e apertando o
charuto em seus lábios. Estavam sendo tão habituais esses
desafios que já não lhe produziam alteração alguma.
― Pela honra de minha esposa, lady Juliette Blatte ―
respondeu o homem cheio de cólera ao ver que o aristocrata
não parecia se afetar pelo que ele esperava morrer de
vergonha e de dor.
― Juliette?
A familiaridade com a qual o futuro duque de Rutland
falou de sua mulher fez com que o pequeno corpo vibrasse de
desespero e fúria. William, sem apartar a vista das cartas que
tinha em sua mão esquerda, franziu o cenho e levou a outra
palma para a escassa barba que cobria seu rosto.
― Disse-me que enviuvou faz algo mais de um ano ―
continuou com voz serena e sem interesse por continuar a
conversação.
― Acusa-a também de mentirosa? ― As bochechas do
desonrado se encheram de um vermelho intenso.
O homem inclusive se elevou nas pontas dos pés para
tentar, em vão, captar a atenção do amante de sua esposa.
Entretanto, ninguém fez nada, nem William nem os outros
jogadores. Se a cólera que o tinha conduzido até ali era
inimaginável, observar que o próximo duque de Rutland
continuava com sua pose de tranquilidade enquanto alegava
que se deitou com sua esposa por ter sido enganado,
provocou-lhe tal demência que esteve a ponto de equilibrar-se
sobre este e lhe golpear com força.
― Acredito que sua querida Juliette mentiu a ambos ―
disse William após manter-se em silêncio uns minutos. ― O
duelo deveria se dirigir a ela. Mas se me permite um
conselho, antes de enfrentar uma possível morte, agarraria
sua esposa e lhe daria uns bons açoites com o cinturão. Não
se pode enganar com falácias a homens como nós, sobretudo
porque nestes momentos cavalheiro, encontro-me
tremendamente aflito… ― comentou com zombaria e sem
subir nenhuma nota em seu tom de voz.
Tomou outra intensa imersão do charuto e depois de
jogar o ar esperou que o desventurado homem fosse sensato e
partisse com a cabeça baixa, mas respirando.
― Amanhã, em Hyde Park, à alvorada. Levarei as
minhas testemunhas e um médico, você apareça com quem
desejar. ― O homem golpeou suas botas, girou-se e
inclinando-se ligeiramente se despediu dos pressente antes
de afastar-se.
Durante um bom momento o sigilo foi reinante naquele
lugar. William seguia concentrado na mão que estava a ponto
de ganhar. Sorria meio de lado e a fumaça do charuto saía da
boca como se fossem as chaminés que tinha sobre o telhado
de seu lar.
Ninguém queria fazer alusão à cena vivida, talvez porque
fosse muito habitual que às sextas-feiras daquele mês vários
maridos indignados irromperam no clube ao saber da
presença do futuro duque no salão.
― Senhores…, ― disse enfim após depositar as cartas
sobre a mesa e descobrir a última jogada ― já podem ir
despedindo-se de seu dinheiro.
― É incrível! ― Exclamou Federith Cooper, um dos
melhores amigos de William e futuro barão de Sheiton. ―
Como pode ter tanta sorte?
― Nosso querido Manners nos depena os bolsos e seduz
desoladas esposas, acaso estamos loucos por seguir
mantendo sua amizade? ― Roger Bennett, quem algum dia
chegaria a possuir o título de marquês de Riderland, falou
com seu típico tom sarcástico ao mesmo tempo em que se
reclinava no assento e tomava um sorvo de brandy.
― A sorte sempre está comigo, ela é minha única esposa
― respondeu William colocando as moedas em seu lado da
mesa e sorrindo de satisfação. Pouco depois os outros
jogadores partiram deixando os três cavalheiros na habitação.
― Entretanto, meu amigo, alguma vez mudará e serei eu
quem mostrará um sorriso descarado em meu rosto ―
continuou zombador Roger.
― Não pode zombar assim de um homem que amanhã se
debaterá entre a vida ou a morte. Se for meu amigo desejará
que a sorte permaneça no mínimo umas horas mais ao meu
lado ― falou com dissimulação e sem deixar de mostrar no
semblante uma atitude cômica.
William se levantou do assento e caminhou para o
cabideiro para pegar o chapéu e a capa. Federith e Roger o
imitaram. Em umas horas voltariam a serem testemunhas de
outra inevitável loucura. Quase não tinham se recuperado da
exaltação que lhes tinha provocado o último duelo e já
sofriam a agonia do seguinte.
― Essa mulher… ― disse William pensativo enquanto
caminhavam pela tranquila rua que lhe conduziria até
Southwark.
― Quem, lady Blatte? ― Inquiriu Federith levantando a
bengala até conseguir tocar a aba de seu chapéu.
― Juro-lhes que me disse que não estava casada. O
perguntei mais de um milhão de vezes… ― respirou com
profundidade e logo jogou o ar devagar. ― Cada vez que a
visitei olhei-a nos olhos e lhe perguntei por seu marido. Ela
respondia o mesmo: «Sua Excelência tem má memória, sou
viúva» ― comentou com desdém. Logo levantou o olhar do
chão e exclamou: ― Mulheres!
― Sim, Rutland, mulheres. ― Roger interveio com voz
zombadora. ― Mas está falando de uma mulher que nasceu
com um corpo digno de um duelo.
― Nisso tem razão. Lady Blatte é uma deusa ― comentou
William com palavras cheias de luxúria. ― Possui uns seios
lindos… suas coxas sempre estão quentes e quando me
introduzia em seu interior...
― Basta! ― Interrompeu-lhe Federith. ― Acaso não
recorda o que significa ser um cavalheiro?
― Não se zangue, Federith. Deve compreender que
preciso recordar como era o corpo da mulher pela qual
amanhã estarei a ponto de morrer… ― comentou entre
risadas. Os olhos negros de William se elevaram para olhar o
céu. Era uma noite com muitas estrelas, pouco habitual em
Londres.
― Falando de morrer… escutou o trágico final da filha do
barão de Montblanc? ― Perguntou-lhes Roger fazendo com
que parassem bruscamente na metade da caminhada. Ao não
responder nenhum dos acompanhantes, prosseguiu. ― Ao
final a moça decidiu pôr fim à sua tormentosa vida. Esta
manhã era o único tema de conversação que se escutava em
todo Richmond.
― O barão não foi há alguns dias à sua casa para uma
auditoria? ― Federith idolatrava seu amigo, posto que ambos
tivessem crescido juntos, mas utilizava esse privilégio para
recriminar sua Excelência por não ser capaz de adotar a
posição que devia na sociedade. Aos seus trinta anos
continuava sendo o mesmo cavalheiro libertino, insensato,
despreocupado e farrista que foi com vinte.
― Sim ― respondeu com tom firme. Abaixou levemente a
cabeça e continuou o passeio. A notícia o surpreendeu e,
embora jamais o tivesse admitido, sentiu dor pela família.
Tinham padecido bastante com o ocorrido à jovem e talvez,
com a morte desta, descansariam enfim em paz.
― O barão foi visitar-te? ― Roger avançou atrás de
William e arqueou as sobrancelhas em sinal de desconcerto.
― O que desejava de ti esse pobre homem?
― Pensou que se utilizasse minha posição conseguiria
esclarecer o caso de sua filha… ― respondeu sem querer
mostrar aquele sentimento de culpa que, por outro lado, não
devia sentir.
― O que pretendia? ― Roger, animado pela curiosidade,
seguiu com seu interrogatório.
― Como já sabem, a filha do barão tinha que ter sido
apresentada em sociedade há dois anos, quando ela cumpriu
os dezoito, mas a jovem sempre estava doente para a
temporada social.
― Conforme tenho entendido, tais enfermidades eram
inventadas. Comenta-se que a moça não desejava vir à
Londres porque desfrutava de uma vida tranquila e aprazível
no campo ― acrescentou Federith.
― Quando foi anunciado como merecia ― continuou
William ― na última festa que nossa adorável senhora
Baithlarin deu em sua residência em Marylebone, nenhum
homem conseguiu fazer a jovem se apaixonar. Conforme
escutei foi uma das mulheres mais belas da temporada. Mas,
apesar da grande quantidade de propostas matrimoniais, ela
as rechaçou com veemência. O barão e a baronesa decidiram
retornar ao seu lar e fazer-se à idéia de ter sob seu teto uma
filha solteirona.
― Mas? ― Roger escutava com entusiasmo toda a
conversação e desejava saber como uma jovem que vivia
placidamente e a quem não faltavam propostas de
matrimônio terminou dando fim a uma vida próspera.
― Conforme tenho entendido, a moça foi desonrada na
festa ― prosseguiu William. ― A família da jovem mantém que
o conde de Rabbitwood abusou dela. Segundo o conde, com o
qual tive a oportunidade de falar há algumas noites no clube
durante uma intensa partida de cartas, a moça se esteve
insinuando todo o serão até que conseguiu o que desejava.
Rabbitwood lhe advertiu que tinha esposa e que só podia lhe
outorgar a posição de uma amante. Como a esta não
interessou a ideia, começou a divulgar que tinha sido violada.
― E claro está, depois do escândalo e de não conseguir
seu propósito, desaparece para sempre… ― asseverou Roger.
― Bom, nenhum de nós entenderá jamais o que
escondem as mulheres em suas cabeças. Embora se essa
aspirante à harpia não obteve aquilo que ansiava e entendeu
que era uma mancha indelével em sua família, o mais lógico
era que terminasse fazendo o correto: suicidar-se ―
argumentou William sem mostrar nenhum tipo de
sensibilidade em suas palavras.
― Manners! Como pode ser tão frívolo? E se de verdade
foi violada? Acaso não contemplou essa possibilidade? ―
Federith se mostrou tão alterado que William chegou a
perguntar-se se seu amigo tinha sido um dos que lhe tinham
proposto matrimônio e foi rechaçado.
Durante uns instantes o futuro duque tentou que a
mente lhe oferecesse algumas lembranças da moça, mas não
achou grande coisa: uma jovem morrena de estatura pequena
com umas bonitas curvas. Não foi capaz de descrever nem
como estava vestida nem a cor de seus olhos. Sorriu para si
ao rememorar que a maioria do tempo que passou naquela
festa brincava de correr atrás das saias de uma suposta viúva
desejosa de calor masculino e a satisfação que achou
escondido atrás das cortinas de alguma janela do lar de lady
Baithlarin.
― Confio na palavra de um cavalheiro como Rabbitwood
― disse cortante. ― As mulheres como puderam observar
durante este tempo ao meu lado, causam problemas e uma
terrível dor de cabeça. Olhe lady Juliette, jurou-me que não
estava casada, que enterrou seu marido no ano passado e…
acaso viu um fantasma me lançando a luva? Não sinta
piedade por elas, meu amigo, são a outra parte do mundo.
Foram criadas só e exclusivamente para nos dar prazer… ―
sorriu de lado.
― Algum dia, William Manners, futuro duque de
Rutland, apaixonar-se-á, e essa mulher te fará pagar por todo
o mal que causou às suas amantes e aos seus maridos ―
retrucou Federith com tom desafiante.
― Apaixonar-me? Jamais! ― Sentenciou após jogar o
braço sobre o ombro de seu amigo e apertá-lo com força. ― O
que fariam todas essas damas se o futuro duque se casasse?
O que seria desses pais que, com tanta amabilidade,
oferecem as suas bonitas e carinhosas filhas para que as
converta em minha duquesa? Não, meu amigo, não posso
entristecer toda essa gente. Devo a eles… ― Federith soltou
um impropério enquanto que Roger e William não paravam
de gargalhar.
Seis horas mais tarde, depois de ter descansado em sua
residência de Southwark, William, perfeitamente embelezado
para a ocasião, apareceu em Hyde Park. Depois de jogar uma
rápida olhada aos arredores para certificar-se de que o duelo
não era uma patranha para ser detido, distinguiu entre a
pequena multidão as figuras de seus dois bons amigos. Com
passo firme avançou para eles.
― Parecem aborrecidos ― disse a modo de saudação.
― Seus duelos já não causam interesse. Todo mundo
sabe como terminarão ― respondeu Roger tomando a capa
que o recém-chegado lhe oferecia.
― E como terminarão? ― Arqueou as sobrancelhas e o
olhou aos olhos.
― Contará os passos, girará e, justo quando seu
desafiador disparar, todos nós veremos que ele foi vítima dos
nervos e que ele não alcançou o seu propósito. Então
levantará a pistola e disparará ao ar. Seus amigos sabem que
no fundo é uma boa pessoa e que se compadece de seu
adversário. Imagino que o sofrimento que vive o marido
depois do descobrimento da infidelidade é mais que
suficiente. Equivoco-me? ― Roger arqueou as sobrancelhas e
sorriu, assim como fez William.
― Espero que seja assim… ― interveio Federith. Ambos
os cavalheiros giraram à volta dele e o observaram com
interesse ― até agora lhe desafiaram homens aos que de
verdade não lhes importava a afronta e se conformavam
recuperando sua honra, entretanto, o senhor Blatte é um
bom atirador e parecia necessitar do seu sangue para
restaurar sua honra.
― Senhores…, ― interrompeu-os um dos padrinhos do
competidor ― o senhor Blatte já escolheu a arma. Serão as
pistolas, dez passos e... a morte.
― A morte! ― Exclamou Roger atônito. ― Não podemos
permiti-lo!
― Não importa, ― William interrompeu seu amigo
alarmado pela gravidade do assunto ― tem direito a escolher
a forma em que sua honra será restaurada.
― Bem, pois quando sua Excelência estiver preparado
daremos início.
Os três ficaram calados durante uns instantes.
Pareciam refletir sobre as possibilidades existentes de sair
ileso depois da informação obtida. Quando reclamaram a
presença do cavalheiro, este olhou seus amigos, sorriu-lhes e
caminhou para o lugar onde o senhor Blatte, embelezado com
uma camisa branca e umas calças muita estreita esperava-
lhe com os olhos injetados em sangue.
― Senhor… ― William o saudou com cortesia, mas este
não se dignou nem a olhá-lo.
― Quando estiverem preparados… ― a testemunha
olhou a ambos os homens e estes assentiram. ― Contem dez
passos e girem-se. Que Deus os proteja.
William sentiu as costas de seu competidor na cintura.
Riu ao notá-lo tão pequeno e com tanta coragem. Enquanto
contava os passos recordava Juliette sob seu corpo. Viu de
novo os grandes seios fazendo círculos maravilhosos quando
cavalgava sobre sua ereção. Tinha lhe encantado ver o cabelo
revolto depois do ato sexual e como ela albergava o enorme e
duro falo na boca. Em vez de concentrar-se no que estava
acontecendo, pensou que, quando o senhor Blatte voltasse a
ausentar-se, faria uma visita à delatora para lhe recriminar o
engano e fazê-la pagar por seus indecentes atos.
De repente escutou que alguém dizia dez. Virou-se com
desconcerto e olhou seus amigos, que abriram os olhos de
par em par enquanto cravavam seus olhos no senhor Blatte,
ele fez o mesmo. Tinha curiosidade por saber como atuaria
aquele pequeno homem e a cara que faria após falhar o tiro.
Sorriu ao escutar o eco do disparo. Ato seguido, uma
escuridão o rodeou e notou como seu corpo desabava para o
chão fazendo com que sua cabeça batesse um par de vezes
sobre algo bastante duro.
I

Londres, seis meses depois.

O ajudante de câmara o estava vestindo enquanto ele


permanecia rígido e com o cenho franzido. Não era de seu
agrado ter que depender de alguém para realizar uma tarefa
tão singela. Antes do duelo, o criado se ocupava de lhe
preparar a roupa, colocá-la sobre a cama e esperar que sua
decisão coincidisse com a do duque. Entretanto as sequelas
do duelo o tinham convertido em um ser dependente.
Obstinou-se à crença de que transcorridos alguns meses seu
corpo seria o mesmo de antes, mas não foi assim. A gravidade
de suas feridas tinha sido tal que tinha que dar graças a
Deus por continuar respirando.
Sem alisar sua testa refletiu sobre o destino e todas as
jogadas que este lhe podia reservar enquanto o servente lhe
punha a camisa e lhe abotoava, definitivamente, aquele
calvário era o pior que tinha sofrido em toda sua vida.
Seus escarcéus amorosos tinham sido vingados por
alguém que não levantava do chão mais de um metro e meio.
Por que não girou para a direita para evitar o terrível
impacto? Se em vez de estar pensando no prazer que lhe
tinha dado o corpo de Juliette e a condenação que receberia
por desvelar o segredo, teria prestado mais atenção à direção
do projétil e hoje seguiria sendo o mesmo William de sempre.
Entretanto, já não o era. Não ficava rastro da pessoa que foi.
Agora era um deficiente, um homem ao qual lhe resultava
impossível mover a mão esquerda e cuja incapacidade tinha
azedado seu afável caráter para converter-se em um ser
antissocial e desprezível.
― Excelência… ― o criado cravou os olhos no chão e lhe
fez uma reverência antes de deixá-lo sozinho.
O duque caminhou para a janela apoiando-se na
bengala. Amanhecia outro dia chuvoso e, como nas jornadas
anteriores, não poderia sair da mansão. Isso lhe provocava
mais ira do que a necessária. Não era igual passar as
penúrias encerrado entre quatro paredes do que tomando o
ar do exterior.
Apoiou a testa na moldura de madeira e suspirou.
Merecia-o. O estado no qual se encontrava era o resultado da
tormentosa vida que tinha levado e agora devia aguentá-lo
com orgulho. Com grande esforço conseguiu chegar até a
porta. O delicioso aroma do café da manhã fez com que seu
estômago se manifestasse e, sem mediar palavra, desceu as
escadas, uma proeza que três meses atrás lhe tinha resultado
difícil executar por si mesmo. Chegou até o salão e esperou
que um dos criados lhe apartasse a cadeira, sentou-se e se
acomodou para começar a tomar o suculento café da manhã
que havia sobre a mesa.
― Sua Excelência… ― o mordomo se aproximou e,
depois de uma breve reverencia, continuou: ― o senhor
Federith Cooper acaba de chegar e deseja falar com você.
Federith, um de seus melhores amigos a quem não
tinha quebrado, ainda, sua amizade com ele, tinha lhe
visitado quase diariamente durante sua convalescença. Foi o
mesmo homem que lhe advertiu em reiteradas ocasiões que o
rumo de vida que tinha decidido não era o apropriado para
um duque.
William tinha rido dele, zombado de seus incessantes
discursos sobre o dever e a lealdade para com o título que lhe
seria concedido por nascimento. Mas, apesar das
brincadeiras, dos sátiros comentários, Federith continuava ao
seu lado como se o passado não tivesse existido.
― Deixe-o entrar… ― disse calmamente.
Quando sua voz deixou de mostrar a personalidade de
um homem com caráter? Desde quando seu tom se apagou
tanto? Possivelmente desde que descobriu numa manhã em
frente ao espelho que William Manners se convertera em um
monstro que poderia assustar aos meninos inquietos. Porque,
embora todo mundo de seu entorno lhe oferecesse palavras
de consolo, ele se via um ser disforme e sem utilidade. Como
poderia suportar o peso de um título tão respeitável quando
nem ele mesmo conseguia respeitar-se?
Levou a xícara de café aos lábios com a mão sã e tomou,
depois de um leve sopro ao líquido, um bom sorvo. Escutou
enquanto isso como o mordomo informava ao seu amigo que
era bem recebido e, depois de finalizar a conversação, os
passos deste para a sala de café da manhã. Antes que
Federith abrisse a porta e aparecesse com seu peculiar
sorriso, William já tinha seu olhar cravado em sua direção.
― Bom dia, querido Rutland, que tal se levantou nesta
horrenda manhã? ― Caminhou para ele e, ao compreender
que não podia saudá-lo com um apertão de mãos posto que
estivesse utilizando a mão útil, agarrou a cadeira, apartou-a e
se sentou ao seu lado.
― De péssimo humor… ― murmurou com
aborrecimento.
― Está acostumado a ocorrer quando o inverno está a
ponto de terminar. Por muito que desejemos evitá-lo, azeda-
nos o caráter ― continuou mostrando um leve, mas gentil
sorriso.
― A que se deve sua visita, Federith? ― Grunhiu.
― Não se alegra de me ver? ― Respondeu à sua vez.
― Já sabe a que me refiro. O que aconteceu para que
esteja em meu lar antes do meio-dia? ― Voltou a beber do
café sem apartar o olhar de seu amigo.
― Sua astúcia não diminuiu nem um ápice, não é? ―
Soltou uma pequena gargalhada. Depois de observar que
William pousava a xícara sobre o pires e pegava o garfo para
dirigir a comida que lhe tinham preparado para a boca,
prosseguiu: ― Queria te dar uma notícia antes que lhe
cheguem os rumores: decidi pedir a mão de lady Caroline.
― Matrimônio? ― Arqueou a sobrancelha esquerda
abandonando com brutalidade o garfo sobre a mesa e se
reclinando sobre as costas do assento. ― Diz-o a sério? De
verdade que vem me informar, antes de ter o estômago cheio,
que decidiu se casar? ― Abriu tanto seus olhos que Federith
por fim conseguiu averiguar a cor destes.
― Chama-se amor, William, e embora te pareça mentira,
Caroline me ama tanto quanto eu a ela ― disse sem mostrar
remorso algum pelo comentário mordaz de seu amigo. Não
esperava que lhe desse os parabéns. Não William. Ele o
evitaria contribuindo com argumentos nefastos sobre a vida
que teria uma vez que sua prometida obtivesse o anel. ―
Decidi que ― prosseguiu Federith aferrando suas mãos como
se tivesse a intenção de começar a rezar ― retornarei a
Hemilton depois das núpcias. Esse será o lugar adequado
para formar uma família respeitável.
― Então… ― William entrecerrou os escuros olhos e os
cravou em seu amigo. Notava como a respiração deste era
agitada, nervosa. Esses sinais de preocupação e incerteza
apareciam no jovem Federith sem ele desejá-lo. O duque
pigarreou. Tinha refletido, ao mesmo tempo em que seu
amigo expunha sobre o infinito amor que o casal se
professava, a verdadeira razão pela qual Federith tomava
uma decisão tão importante. ― Então… ― repetiu para captar
a atenção de seu camarada. ― Ela está grávida e precisam se
afastar de Londres para que não se descubra a verdadeira
razão desse precipitado enlace matrimonial, não é?
― Santo céu, Manners! ― Exclamou Federith
empurrando com as panturrilhas o assento e elevando-se
com rapidez. Ficou rígido, sem saber que passo dar. Esperava
que William fosse sensato e retificasse, mas conhecendo-o
como o fazia, sabia que isso seria impossível.
― Calma, sabe que de minha boca não sairá nada que
possa te prejudicar ― continuou com o cenho franzido
enquanto observava a crescente tensão de Federith.
― Espero que não tenha esquecido o que significa ser
um cavalheiro. ― Seus punhos se apertaram. As palavras
brotaram dele com um tom repleto de ameaças.
Mas... que perigo poderia ter uma pessoa que vivia
detento de suas más decisões? Ante tal reflexão Federith se
zangou consigo mesmo. Ele não era assim. Jamais desejava o
mal a ninguém. Sua filosofia de vida era muito distinta.
Embora a raiva que William tinha despertado nele superasse
qualquer crença sensata.
― Há valores que nunca se perdem ― respondeu William
ao pequeno ataque.
― Não estou muito seguro disso. Apartartou-se do
mundo. Apenas se relaciona com seus amigos, escondeu-se
entre estas paredes e há mais de três meses não recebe
visitas. Crê que esse tipo de vida não faz rachaduras na
mente do cavalheiro mais racional?
O duque o observava com atenção. Federith seguia com
os punhos fechados, mas em nenhum momento foi capaz de
olhá-lo aos olhos para lhe cuspir o pouco veneno que devia
sentir após descobrir seu pequeno segredo.
― É o melhor lugar para habitar um monstro, não
acredita?
― Monstro? Assim é como se considera o duque de
Rutland? Desaponta-me William, acreditei que tinha mais
coragem…
Federith o olhou com atenção. Na verdade, William tinha
um pouco de razão. Ali onde no passado tinha existido um
cavalheiro bonito, agora se encontrava um homem com umas
horrendas marcas no rosto. Além disso, já não era só a
fealdade, mas sim que depois de ser operado de urgência pelo
médico que o zangado marido de Juliette conduziu até o lugar
do duelo, o duque ficou incapacitado de uma mão. Essa que,
nesses momentos, tinha colocado sobre a mesa aparentando
ter uma função. Suspirou com suavidade e meditou sobre a
passada temporada social. Seu amigo partiu antes do
acostumado deixando lady Baithlarin desolada pela ausência
repentina de um homem tão importante. Supôs que tal
marcha se deveu à imensa pressão que William estava
sofrendo depois do falecimento de seu pai e a posse do título.
Entretanto, a fuga à sua residência em Southwark tinha
outra razão: desaparecer. Odiaria ver a cara de espanto que
mostrariam as jovens casadouras quando seus progenitores
as apresentassem ao novo duque. Ali onde antes encontrou
sorrisos pecaminosos e olhos frágeis pela possibilidade de
jazer sob a esbelta e robusta figura, agora encontrava
repugnância, asco. Que dramático final para um homem que
acreditou ser possuidor de todos os encantos divinos!
― Perdi-a depois do disparo ― respondeu em tom vazio,
sem entusiasmo. Entretanto, em seu interior crescia de novo
aquela ira a qual começava a acostumar-se. Era hora de
cortar a conversação e deixar que seu amigo tomasse o rumo
marcado. ― Voltando para o motivo pelo qual me visita…
― Como lhe disse, tomei uma decisão firme a respeito. A
futura baronesa de Sheiton será muito feliz em Hemilton.
― Não o duvido. Com certeza será muito feliz com esse
filho que te dará e imagino que será o pai mais maravilhoso
do mundo.
― Sim ― respondeu ignorando a ironia de sua afirmação.
― É óbvio que serei feliz ao lado da minha esposa e da família
que criarei. ― A visita estava chegando ao seu fim. Federith
tinha vontade de partir e afastar-se de seu camarada.
Estirou-se a jaqueta do traje, estendeu a mão para seu amigo
para que este a tomasse e disse: ― Veremos-nos em outro
momento. Possivelmente em um no qual tenha recuperado o
sorriso.
― Antes de ir…, ― aferrou com força à mão de Federith e
olhou-o nos olhos ― eu gostaria de te fazer uma última
pergunta, se me permitir isso o futuro barão de Sheiton, é
claro.
― É óbvio.
― Estou me perguntando… que classe de inconsciente
pode chegar a ser para se casar com uma mulher que leva em
seu seio o filho de outro? ― Soltou sem tomar ar.
O assombrado homem não respondeu a impertinente
pergunta. Partiu do salão erguido e com passo firme.
William ficou calado refletindo durante um bom
momento. A decisão de Federith a nível social era a mais
correta se ele amava de verdade a mulher. Entretanto,
quando falou dela e de seu futuro projeto juntos, não
mostrou o entusiasmo próprio de um homem apaixonado, um
homem que, tal como tinha proclamado, amaria para sempre
a sua esposa.
Muito a seu pesar sabia que cedo ou tarde seu amigo
seria infeliz e isso, embora não quisesse reconhecê-lo, doía-
lhe. Sempre albergou a esperança que, dos três, Federith
obtivesse a vida que merecia.
― Deseja algo mais, Excelência? ― Um dos criados lhe
fez despertar de sua letargia mental ao mesmo tempo em que
entrava no salão e esperava o próximo mandato.
― Preparem a bagagem. Amanhã ao amanhecer
partiremos para Haddon Hall.
II

Tinha viajado quatro dias intermináveis com suas noites


incluídas, pernoitando em miseráveis e fedorentas estalagens,
mas por fim, aquela horrenda viagem se acabara.
Chegara ao seu lar.
O imenso arvoredo lhe dava as boas vindas com suaves
movimentos de folhas. William colocou a cabeça pela janela
da carruagem e observou a sobriedade dos grandes e altos
muros da mansão. Era, sem dúvida, o melhor lugar onde
poderia esconder-se pelo resto de sua vida. Uma fortaleza em
que poderia passar os dias inteiros caminhando pelos
intermináveis corredores, salões e estadias. Moveu o lábio
superior para a esquerda tentando desenhar um sorriso, mas
fazia tanto tempo que não movia os músculos para essa
função que foi impossível fazê-la como era devido. Apesar
desse fracassado esforço por sorrir, William se sentia
contente em retornar à casa de sua infância.
Rememoraria as aventuras que seu irmão e ele viveram
quando meninos. Se a mente não lhe falhava, ambos tinham
enfurecido até ao servente mais paciente do mundo. Logo,
com o tempo, aqueles que correram atrás deles para que não
terminassem se machucando, converteram-se em pessoas
dignas de sua confiança.
Olhou de novo ao seu redor. Tinham passado dez anos
desde que decidiu abandonar Haddon Hall para dedicar-se ao
desfrute da vida londrina, e nada tinha mudado em
Derbyshire, o tempo parecia deter-se.
O cocheiro diminuiu o passo quando chegaram ao
jardim principal. Com a cabeça apoiada na almofadinha da
carruagem podia ver a fonte. Ela foi à causadora de sua
primeira aposta e de sua primeira derrota. Não tinha que ter
desafiado Lausson a saltar, as probabilidades de que
perdesse eram escassas, entretanto precisava provar-se a si
mesmo. Necessitava estimulação, emoção e um sem-fim de
sentimentos que depois encontrou entre as pernas de suas
amantes.
William fechou os olhos. A palavra amante se converteu
em sinônimo de monstruosidade, posto que pela língua de
uma delas ele tinha o rosto desfigurado e uma mão inerte. De
repente se perguntou como atuaria o serviço ante sua
chegada. Para eles tinha que ser bastante impactante
recordar a marcha de um bonito homem e receber ao mesmo
convertido em um monstro. Esperava que Brandon, seu fiel
mordomo, tivesse lhes posto à corrente do acontecido e
indicado a melhor forma de atuar quando ele estivesse
presente: nada de olhá-lo ao rosto, tão somente servir e
manter os olhos cravados no chão.
Repentinamente uma terrível dor se apropriou de sua
cabeça. Notava nas têmporas o pulso de seu coração. Estava
nervoso? O duque de Rutland começava a sentir ansiedade
por seu futuro? Não se tinha respondido quando a porta da
carruagem se abriu e alguém estendeu uma mão para lhe
facilitar a descida. Até o momento, não o tinha necessitado: o
normal era que se aferrasse com a mão sã à porta e descesse
devagar. Mas depois de quatro dias de viagem, de mal dormir,
de fadiga e inclusive de uma péssima alimentação, essa ajuda
era necessária. Depois da custosa façanha, liberou a mão e
continuou sozinho.
Quando elevou o olhar para a entrada principal advertiu
que todos os criados tinham saído para saudá-lo e cravavam
seus olhares no chão. Em efeito, Brandon tinha falado com
eles.
― Milord… ― o mordomo se colocou com sutileza atrás
de suas costas e começou a lhe informar. ― Sua habitação
está preparada para que descanse. Imagino que depois da
viagem precisará refrescar-se, assim ordenei ao seu ajudante
de câmara que o espere. As criadas lhe prepararam um
banho de água quente.
― Obrigado, Brandon ― disse com tom suave.
― Não tem por que me agradecer, Excelência. É uma
honra trabalhar para você. ― Brandon, sem afastar-se do
senhor nem um metro, caminhava com firmeza esperando
que este requisitasse sua força para subir as escadas. Mas
não a necessitou. O duque de Rutland caminhava com
orgulho para o interior do lar, saudando brandamente com a
cabeça seus novos empregados. ― Tenho que lhe comentar
que na biblioteca tem sobre sua mesa vários convites.
Embora tenha anunciado que deseja descansar uma
temporada antes de encher Haddon Hall de convidados, todo
mundo deseja conhecê-lo e falar com você.
O duque fez um leve som gutural e o criado entendeu
que aquele esforço era mais do que podia suportar. Tentou
alargar a mão para aferrar-se ao braço inerte de seu senhor e
acalmar o esforço, mas este o negou. Tinha suficiente orgulho
para não se mostrar fraco ante aqueles que estavam sob suas
ordens.
Tal como lhe informou Brandon, quando acessou seu
quarto o ajudante esperava pacientemente. Depois de fechar
a porta, o criado lhe fez uma reverência e lhe pediu permissão
para despi-lo. William a aceitou com rapidez. Desejava
inundar-se na banheira o antes possível. Precisava introduzir
seu cansado corpo em água quente e que esta acalmasse as
doenças que lhe açoitavam sem piedade.
― Necessita que lhe ajude em alguma outra coisa, sua
Excelência? ― Inquiriu o criado ao finalizar sua tarefa com
habilidade.
― Diga ao Brandon que suba, preciso falar com ele ―
respondeu o duque.
O criado se dirigiu para a porta com rapidez e antes que
William pudesse suspirar, Brandon apareceu no meio do
quarto.
― Não está tudo como deseja, Excelência?
― Tudo está perfeito, obrigado. Chamei-te porque quero
que me faça um favor. Necessito que procure o antes possível
uma cortesã capaz de manter encontros esporádicos comigo
― ordenou sem olhá-lo. Movia as pernas devagar, deixando
que se acostumassem ao calor do banho, à tranquilidade de
um ambiente sereno e aprazível.
― Com o mesmo salário, sua Excelência?
― Com o mesmo salário… ― repetiu.
― Alguma petição especial? ― Quis saber.
Em Londres o duque tinha procurado durante muito
tempo uma amante que se parecesse fisicamente à lady
Juliette. Não encontrou a réplica perfeita, mas sim a uma
jovem que tinha feições parecidas. Esta o satisfez até que dias
atrás teve que partir. É óbvio, deu-lhe a opção de escolher:
podia viajar para Haddon Hall para continuar seu ofício ou,
pelo contrário, podia declinar seu convite. A jovem, alegando
que sua mãe se encontrava bastante doente, decidiu não
continuar. Algo que entristeceu ao senhor por que… como
conseguir outra agulha em um palheiro?
― Já sabe quais são os requisitos ― disse com grosseria.
― É óbvio. Deseja que diga ao seu ajudante de câmara
que pode acessar ao dormitório?
― Não, diga-lhe que esteja atrás da porta e que o
chamarei quando o necessitar.
― Como desejar… ― disse antes de retirar-se.
William olhou ao seu redor. Encontrava-se no quarto de
seu pai, o santuário do anterior duque de Rutland, o único
lugar proibido de todo Haddon Hall quando era menino.
Ambos os irmãos se enchiam de entusiasmo quando o pai
aparecia pelo lar, e só pensavam em despertá-lo com risadas
e conversações sobre as mil anedotas que tinham acontecido
em sua ausência. Entretanto, com o tempo descobriram que
o duque não retornava para passar tempo com seus filhos e
sim para esquentar a cama com sua legião de amantes.
William franziu o cenho. Tinha odiado com todo seu
coração a atitude de seu pai e não deixava de ser irônico que
se convertera em uma réplica perfeita. O que primeiro tinha
ordenado ao Brandon ao chegar? Uma amante. Uma mulher
que o saciasse sexualmente, sem escrúpulos e desejosa de
encher seus bolsos de moedas.

Só gozou de dois dias de solidão para descansar antes


que os primeiros bisbilhoteiros aparecessem. O reverendo
Brace e sua esposa eram um jovem casal que tinham
retornado a Derbyshire depois que faleceu o pai deste,
anterior pastor da comarca. Quando acessaram ao salão
principal, lugar onde receberia a todos seus convidados,
William se desculpou por não lhes dar as boas vindas de
maneira correta.
― Não se preocupe, Excelência, informaram-nos de suas
incapacidades ― explicou o reverendo com um sorriso. Ao
qual o duque desejou fazer desaparecer com um murro, se
pudesse.
― Veio ao melhor lugar para descansar. ― A senhora
Brace, com uma suave e harmoniosa voz, misturou-se na
conversação para salvar as inoportunas palavras de seu
marido.
― Isso espero ― comentou o duque esboçando um leve
sorriso. ― Segundo minha lembrança, Derbyshire é um lugar
tranquilo e aprazível.
― As pessoas que habitam aqui são gente de paz, nós
não gostamos dos escândalos nem tentamos destacar mais
do que nossas possibilidades nos oferecem.
― Entretanto, às vezes sofremos certos
constrangimentos. ― Outra vez a encantadora mulher tentava
salvar a desafortunada reflexão de seu cônjuge. ― Virá à
Igreja, sua Excelência? É linda e aos domingos está
transbordante de crentes.
― Se puder, estarei encantado de admirá-la ― respondeu
William com uma amabilidade estranha. Quanto tempo fazia
que uma mulher não lhe agradava? Muito, devia ter
transcorrido no mínimo uma eternidade, porque se não fosse
assim, por que via atraente a volumosa esposa do reverendo?
― Visitou-lhe já algum de nossos vizinhos? ― Perguntou
o impertinente homem antes de dar um sorvo ao chá.
― São vocês os primeiros. Meu mordomo me informou
sobre a montanha de convites que recebi, mas temo que até
que não consiga me pôr em dia com a contabilidade de
Haddon Hall, não poderei aceitar a nenhum. ― Parecia uma
desculpa? Esperava que assim fosse, porque não tinha
vontade de explicar nada ao pároco, nem que não era
responsável pela quantidade de convites que lhe tinham
enviado nem se os aceitaria.
― Deve descansar, Brennet. Sua Excelência fez uma
longa viagem e como deseja assentar-se neste lindo lugar pelo
resto de sua vida, tem muito tempo para assistir aos eventos
onde seja requerido – sorriu-lhe.
De verdade que um simples gesto de piedade podia
interpretar como uma paquera feminina? De verdade que não
podia apartar o olhar dos seios da esposa de um pastor? O
duque tentou manter a calma e deixar de pensar no prazer.
Essa noite, assim que pudesse falar com Brandon, pediria-lhe
que esquecesse os requisitos solicitados para a cortesã e
empregasse a primeira que gostasse do pagamento.
― Já é tarde, Lídia ― disse o reverendo olhando com
ternura para sua esposa. ― Milord… ― levantou-se e moveu a
cabeça devagar para diante. ― Voltaremos em outro
momento, se lhe agradar.
― É óbvio, sempre serão bem-vindos.
Lídia, como a tinha chamado o senhor Brace,
aproximou-se do duque, fez-lhe uma reverência e, aferrando-
se ao braço de seu marido, ambos saíram do salão. Minutos
depois apareceu Brandon. Esse homem parecia lhe ler a
mente.
― Conseguiu a cortesã? ― Perguntou de mau humor e
impedindo que o servente começasse alguma conversação
que o distraísse de seu verdadeiro propósito.
― É óbvio, milord. Começará o trabalho quando você
quiser ― explicou o mordomo com certa preocupação.
Era certo que a jovem tinha aceitado com rapidez seu
novo encargo, mas não estava muito seguro de que o fizesse
corretamente. Não parecia ser uma mulher com experiência,
por muito que ela tivesse insistido no contrário.
― Pois não a façamos esperar. Informe-lhe que esta
noite provarei seus serviços. ― Levantou-se com vigor e
caminhou ansioso até a sala de jantar. Era a primeira vez em
muito tempo que desejava com prontidão a chegada da noite.
Depois do jantar, que durou a metade do acostumado,
decidiu refrescar-se. Queria estar limpo para sua nova
amante. Que estivesse lesado ou impedido para fazer certas
coisas no ato sexual não queria dizer que se comportasse
como um mendigo, nunca o tinha sido e nunca o seria.
Odiava escutar as conversações de certos homens que se
denominavam cavalheiros e alardeavam suas experiências
com as prostitutas que encontravam nas ruas. Ele jamais
precisou ir a uns serviços tão desagradáveis. Só de pensar lhe
produzia asco. No meio da rua? Sem assear-se? Como
animais? Não, ele não pertencia a essa classe de homens.
Não lhe cabia dúvida que Brandon a teria conduzido até
alguma das habitações da residência, teria-lhe devotado uma
boa banheira de água quente e a teria preparado para o
momento. Enquanto seu ajudante lhe colocava com
habilidade a camisola, pensou em como seria a mulher. Alta?
Teria pernas longas? Adorava esse tipo de mulheres,
possivelmente porque sua estatura era bastante considerável
para albergar em seu corpo uma concubina de pequeno
tamanho. William franziu o cenho.
Nesse preciso instante, em vez de pensar mais na
mulher que entraria em seu dormitório para lhe agradar,
recordou de novo o marido de Juliette. Subestimou-o por ser
baixinho, riu dele e inclusive pensou que seria um bom
palhaço para um desses circos que visitavam a cidade.
Embora resultasse muito ao seu pesar, que esse pequeno
homem provocou o maior desastre de sua vida. Sim, esse tipo
de conclusões lhe reforçava com esforço a crença de ter ao
seu lado uma mulher alta, muito alta.
Andou pela habitação durante uns minutos. Estava
ansioso pela iminente chegada. Olhou com rapidez ao seu
redor. Havia muita luz para seu gosto. Possivelmente devia
apagar alguma vela e deixar um ambiente mais íntimo. A
jovem de Londres soube antes o que encontraria ao acessar o
quarto, o periódico The Daily Gazetteer se encarregou de
difundir uma foto de seu antes e seu depois. A fatalidade de
uma vida promíscua tinha intitulado o artigo. Entretanto, em
Derbyshire, as notícias se conheciam pela difusão dos
habitantes. Deu por certo que, salvo os que estivessem fora
de seus lares, já tinham algum conhecimento do novo rosto
do duque de Rutland. Não lhe cabia dúvida de que o
reverendo teria se encarregado disso.
Olhou de novo as velas acesas e decidiu apagar um par
delas. Pareceu-lhe que a melhor forma para começar uma
relação especial era sob a intimidade da penumbra. Logo se
aproximou da cama e se sentou sobre ela, esperando-a.
Tremia-lhe a mão e o coração palpitava sem poder controlá-
lo. Zangado por não controlar sua ansiedade, repreendeu-se
em voz alta.
― Basta! Controla sua emoção! Nem que fosse conhecer
sua futura esposa!
Terminou esse pequeno e escandaloso monólogo quando
escutou o suave som da porta. Se antes o coração estava
agitado, agora tinha parado em seco.
― Pode entrar ― disse com tom aparentemente sereno.
Uma pequena figura apareceu na penumbra. William
franziu o cenho ao ver que Brandon não tinha conseguido
uma concubina de grande altura. A mulher tinha o cabelo
solto cobrindo grande parte de seu rosto e de seus ombros.
Nesse momento se repreendeu por ter criado tanta escuridão
posto que mal distinguisse as feições da moça. Embora, se
fosse boa em seu trabalho, o que importava como era seu
rosto?
― Aproxime-se ― sussurrou o duque estendendo a mão
direita para ela. A moça caminhou para a cama e o olhou.
Nesse momento suas sobrancelhas subiram uns milímetros e
William entendeu que se surpreendeu. ― Não acredito que
deva te explicar para o que veio, não é? ― Ela assentiu. ― Não
albergue em seu coração a possibilidade de que entre nós
exista uma relação afetuosa, só quero prazer. ― Seu tom se
endureceu. Por que havia se zangado com tanta rapidez?
― Só prazer… sua Excelência ― murmurou a mulher
sem querer voltar a cravar seus olhos no rosto dele. Como se
tivesse mais pressa do que se requeria naquele tipo de
encontros, a mulher se desfez das vestimentas e se colocou
frente ao duque nua. Deu uns pequenos passos até que a
mão deste pôde alcançar um seio.
― Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e
faça por merecer o salário que obterá quando partir ―
continuou com tom duro, firme e inclusive insolente. Mas… o
que pretendia? Que ela se lançasse sobre seus braços e
beijasse aquelas horrendas cicatrizes? Ficou tão impactada
ao vê-lo que não sabia nem como atuar.
A mulher se ajoelhou em frente ao homem. Levantou
com suavidade a camisola e procurou com a boca o falo.
William jogou a cabeça para trás e suspirou. Estava tão
necessitado que essa noite se contentaria com o pouco que a
concubina estivesse disposta a dar. Se ela tinha decidido
utilizar sua boca para saciá-lo, relaxaria e desfrutaria do
momento. Fechou os olhos e fez com que as imagens de
Juliette retornassem à sua mente. Voltava a tê-la ao seu lado
lhe sussurrando palavras obscenas. Mostrando sem pudor o
desejo que sentia o bonito corpo ao tocá-la e como a mulher
respondia com um sem-fim de deliciosos ofegos. Rememorou
o baile de seus seios ao sentar-se sobre ele, seus gemidos,
seus beijos e o abundante fluxo que emanava do sexo para
conseguir banhar o seu. Úmida e aberta para suas carícias.
Quente e ardente sob seus toques. William franziu o cenho.
Estava a ponto de gozar na boca da cortesã. Não quis abrir os
olhos e observar o rosto da jovem. Preferia imaginar Juliette.
Preferia escutar os ofegos daquela mulher que os seus
próprios. O sexo vibrou, endureceu-se com força e notou
como a semente brotava de seu interior banhando a língua da
moça a quem não tinha perguntado nem seu nome. Não lhe
importava, para que saber o nome de uma mulher que,
depois de olhar seu rosto, tinha-lhe dado tanto medo que não
foi capaz de levar a cabo um trabalho tão singelo? Quando o
sexo retornou ao seu estado normal, baixou-se a camisola,
girou-se para dar as costas à petrificada moça, agarrou-se
com força ao dossel em espiral de madeira e lhe disse com
tom sério e furioso:
― Vá! Meu mordomo te pagará o convencionado.
A moça agarrou com rapidez o vestido que tinha deixado
no chão e se vestiu. Fez uma reverência ao duque e partiu
velozmente. Quando a porta se fechou e William soube que
por fim estava sozinho, começou a chorar como tantas vezes
tinha feito depois do duelo. Sentia-se cada vez mais no fundo
do poço e com menos força para seguir vivendo. Ninguém
desejaria ter ao seu lado um monstro inútil. Nenhuma
mulher deveria ser condenada a viver sob seu mesmo teto.
Tremendo, recostou-se na cama e continuou chorando até
que adormeceu.
III

Nada. Já não tinha nada que levar à boca. Já há um


tempo que as reservas que tinha guardado para poder
sobreviver naquele paradisíaco lugar tinham desaparecido.
Enrugou a testa e levou as mãos ao quadril. Como era
possível que aqueles malditos lobos tivessem comido, em uma
noite, uma peça tão grande? Enfurecida pela fome, pensou
em apanhar aqueles que a tinham deixado sem alimento e
comer-lhes.
«Malditos animais!», gritou para si entre lágrimas.
Ela chutou uma pedra, e depois de sentir uma terrível
dor nos dedos, sentou-se sobre ela. O que devia fazer agora?
Tinha investido as últimas moedas comprando galinhas,
coelhos e um casal de porcos. Acreditou que eles a ajudariam
a subsistir todo o tempo que fosse necessário até decidisse-se
retornar e fazer frente à situação que não pôde dirigir no
passado. Entretanto, agora não ficava nada, nem sequer um
pedaço de pão para levar à boca. Depois de meditar durante
muito tempo na melhor maneira de sobreviver naquelas
circunstâncias, saltou sobre o chão e sorriu. Não lhe tinha
ocorrido com antecedência porque o desprezava com toda sua
alma, mas dada a situação teria que deixar estacionado o
ódio que sentia por esse homem e pensar no melhor para ela.
Todo mundo falava com entusiasmo da chegada do
atual duque de Rutland. Esperavam que aquela aparição
fosse bastante proveitosa para o povo porque, se o duque
continuasse com sua famosa vida social, celebraria grandes e
numerosas festas e a localidade se encheria de nobres
curiosos. O verdadeiro motivo para esse entusiasmo era um
muito singelo de compreender: trabalho. Lavadeiras,
costureiras, cozinheiras e criados em geral seriam procurados
para oferecer aos convidados de Haddon Hall o máximo
conforto. Era uma oportunidade que não podia deixar
escapar.
Com vigor colocou as mechas que se soltaram do coque,
ajeitou várias vezes o vestido e tomou o caminho que a
conduzia até a mansão. Tinha tanta pressa por encher seu
estômago que não esperaria que se convocassem as
esperadas entrevistas. Beatrice tocaria a porta e pediria
qualquer trabalho que, é óbvio, aceitaria com grande
entusiasmo.
O que começou sendo um suave passeio, mais tarde se
converteu em uma caminhada rápida, para depois pôr-se a
correr como se o próprio diabo a perseguisse. Esquivou-se de
todos os obstáculos que encontrou em seu passo sem lhe
importar que em mais de uma ocasião seu vestido se
manchasse de respingos de barro. Tinha um objetivo a
cumprir, um que odiava porque se tratava de estar sob o
amparo de um homem egoísta, ruim e desprezível, mas era o
único que lhe ajudaria a continuar viva.
Quando chegou ao jardim principal da mansão, Beatrice
ficou sem fôlego. Não só pelo esforço da corrida, mas sim pela
imensidão do lugar que se mostrava ante ela. Tinha escutado
muito sobre a residência do duque, mas jamais chegou a
imaginar algo um pouco parecido. Possivelmente porque seus
pais chamavam grandeza a uma décima parte do que
observavam seus olhos. Permaneceu imóvel durante algum
tempo, contemplando sem pestanejar o enorme edifício. Uma
vez que estudou em detalhe o lugar, pareceu-lhe muito frio,
muito sólido. Seus muros eram tão grossos e sóbrios que não
entendia como alguém podia considerá-lo um lar, mais se
assemelhava a uma prisão.
Aquele era o famoso paraíso no qual se criaram os filhos
do duque? Disso se orgulhavam? Pois ela não trocava seu
humilde lar pelo que estava vendo. Era tão impessoal e gélido
como a atitude do homem a quem ia suplicar um posto de
trabalho.
Depois de conseguir um pouco de calma e separar de
sua mente todo pensamento doloroso produzido pela
lembrança do comportamento do duque, caminhou pelo
jardim sem descanso até que subiu as escadas que a
conduziram para a porta principal. Parada frente a esta,
duvidou se chamava com suavidade ou com todas as suas
forças. Sopesava qual alternativa era a correta quando de
repente escutou umas vozes que procediam da lateral do
edifício. Assustada e com o coração galopando em seu
interior, permaneceu imóvel enquanto rezava para que não a
descobrissem tão cedo. Por uma vez Deus atendeu suas
preces e os que falavam sem parar não repararam em sua
presença. Escondida pela escuridão que lhe ofereciam uns
pilares de pedra, observou várias pessoas descerem por onde
minutos antes ela tinha subido. Quando as vozes se
perderam pelo jardim aproveitou para sair de seu esconderijo
e dirigir-se para o lugar de onde tinham saído: a porta de
serviço.
Respirou com profundidade, voltou a pedir ajuda a
Deus, elevou a mão para chamar e, justo quando seu
pequeno punho iria tocar a grande lâmina de madeira, esta
se abriu.
― Quem é você?! ― Exigiu saber com uma mescla de
surpresa e medo uma mulher de avançada idade.
― Bom dia, senhora. Desculpe se a incomodo, vim pedir
trabalho ― explicou olhando ao chão.
― A pedir trabalho?! ― A mulher abriu os olhos de par
em par e levou a mão à garganta.
Beatrice abaixou ainda mais a cabeça ao mesmo tempo
em que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor
vermelha. Não tinha dúvidas sobre a causa do imenso susto
que tinha provocado à mulher. Quem, em seu são
julgamento, pediria um trabalho respeitável vestida com
farrapos manchados, com o cabelo coberto de barro e
cheirando a excrementos de porco? Mas ela não estava em
seu são julgamento desde que a fome se apoderou de seu
corpo e de sua mente.
― Necessito-o, senhora. Estou a ponto de morrer. Levo
dias sem comer… ― implorou a moça.
― Não é meu encargo oferecer trabalho, disso se
encarrega o senhor Stone, mordomo de sua Excelência. Mas
te aconselho que, se de verdade necessita de um emprego,
volte outro dia com melhor aspecto. Assim só lhe fecharão a
porta. ― Hanna, a cozinheira, sentiu verdadeira lástima pela
jovem. Nunca tinha visto uma expressão tão dramática, nem
tampouco uma palidez tão fantasmal.
― Rogo-lhe. Ajude-me… ― continuou com voz tão baixa
que a anciã mal a escutou.
A anciã olhou a ambos os lados e, certificando-se de que
ninguém poderia descobrir que abrigaria durante uns
minutos a uma mendiga em uma casa respeitável, estendeu a
mão e aferrou com força o braço da moça.
― Entra, sente-se e não fale até que tenha terminado de
comer o que puser sobre a mesa. Se de verdade pretende
trabalhar algum dia em um lugar como este, deve se
sustentar com algo mais… do que tenha se alimentado até
agora.
Beatrice sorriu e se sentou tal como lhe tinha indicado a
mulher. Manteve-se calada até que contemplou o prato de
sopa quente que a amável estranha colocava em frente a ela.
Agarrou a colher, inclinou-se para a fumegante terrina e, sem
esperar a que este se esfriasse, arremeteu contra ele. Em um
passado já bastante longínquo teria pegado a colher e a teria
dirigido lentamente para seus lábios para sorver em silêncio
seu conteúdo. Mas estava vivendo o presente e seu estômago
estava muito vazio para recordar protocolos absurdos. Mal
levantou o olhar, salvo quando sua benfeitora retornava para
lhe apartar o prato terminado e lhe colocar outro em seu
lugar.
Enquanto notava o calor da comida em seu interior
pensou que aquilo que estava conseguindo não era o que
tinha pretendido. Ela queria um trabalho para ganhar a
comida que a sustentaria durante o tempo necessário até que
decidisse retornar a Londres. Entretanto, como não havia
outra alternativa, continuou comendo enquanto fazia à ideia
de que os suculentos pratos poderiam lhe oferecer um pouco
mais de vida. Possivelmente a justa para sobreviver até que
chegassem as desejadas entrevistas. De repente, enquanto
saboreava seu último prato, escutou-se uma portada atrás
dela e Beatrice saltou do assento. Ao descobrir em frente a
ela um homem com rigoroso traje negro, abaixou a cabeça e
começou a fazer nós com o tecido do vestido.
― Quem é e o que faz aqui? ― Brandon a observou com
perspicácia, ato seguido dirigiu os olhos para Hanna e franziu
o cenho.
― É uma jovem que veio pedindo um emprego… ― expôs
a cozinheira limpando as mãos no avental.
― Do que, de limpadora de chaminés? ― Disse de mau
humor. Não podia acreditar no que seus olhos observavam.
Na cozinha, um lugar sagrado, havia uma moça coberta de
sujeira, faminta pelo que podia apreciar, e desprendendo um
aroma parecido ao do esterco de cavalo. Como tinha ocorrido
a Hanna fazê-la passar à cozinha? Se a garota não partisse
terminaria empesteando toda a mansão.
― Se me permitir isso, senhor, posso lhe informar que
sei lavar, costurar, e inclusive posso ajudar em outras tarefas
domésticas… ― murmurou sem levantar a vista do chão.
― Disse lavar? Não estou tão seguro disso, menina. A
sujeira que vejo em seu corpo me indica que não deve ter
muito claro o que significa isso… ― O mordomo cruzou os
braços e entrecerrou os olhos.
― Brandon! Como pode falar assim? ― Hanna explodiu
e, diante de Beatrice, tratou-lhe com familiaridade,
advertindo à jovem que entre eles existia uma relação mais
afetiva do que aparentavam.
― Esta moça tem que sair daqui o antes possível,
senhora Stone ― explicou com tom sereno e firme. ― Eu não
gostaria de sentir a fúria do duque em meu corpo por algo
que nem sequer me corresponde.
― Suplico-o, senhor ― interveio Beatrice entre soluços. ―
Preciso comer. Hoje fui abençoada pela amabilidade da
senhora Stone, mas amanhã… do que me alimentarei
amanhã?
Brandon, que tinha se girado para que Hanna não
observasse o aborrecimento que lhe provocou seu ato de
solidariedade, ficou durante uns instantes parado com o
olhar cravado na porta por onde tinha entrado. Depois de
meditar o rogo desesperado da jovem, sorriu meio de lado e
se voltou para esta.
― Já esteve alguma vez com um homem? ― Enrugou a
testa e a olhou diretamente aos olhos.
Hanna, depois de escutá-lo, levou-se a mão à boca.
Sabia o que estava a ponto de expor e pensou que se na
verdade lhe oferecesse aquele posto, ela cairia ao chão.
― Como? ― Apesar de ter as bochechas cobertas de
barro, o rubor era visível em seu rosto.
― É virgem? Manteve relações sexuais? Sabe esquentar
o leito de um homem? ― Continuou com o inesperado
interrogatório o mordomo. Deveria assustá-la, não podia fazer
com que Hanna tentasse acolhê-la tal como parecia
pretender. Desde que a filha de ambos morrera fazia já quase
quinze anos, o instinto maternal brotava sem que ela
percebesse e em muitas ocasiões, de maneira incorreta.
Beatrice esteve a ponto de desmaiar. O que tentava dizer
o mordomo? Por que precisava saber se alguma vez tinha
estado entre os braços de um homem? Quis romper a chorar
quando em sua mente brotou a lembrança daquele momento.
Sim, tinha estado com um homem e tinha perdido a
inocência com ele, mas… tinha que explicar como e em que
circunstâncias a tinham desflorado?
― Vejo que está pensando… ― um sorriso zombador
apareceu no rosto enrugado.
― Não… ― disse enfim Beatrice apertando os punhos e
armando-se de coragem.
― Informo-lhe, senhorita, que o único posto livre que
temos nestes momentos é o de cortesã. Nosso duque
necessita de uma mulher para saciar seus desejos sexuais e o
pagamento é uma bolsa de cem moedas de ouro por esses
serviços. Sabe agradar a um homem?
Hanna girou e se dirigiu para o fogo. Não suportava a
situação que estava vivendo e se jogava a culpa disso. Se
tivesse fechado a porta e não a tivesse arrastado até o
interior, a moça teria partido morta de fome, mas com sua
dignidade intacta.
― Sim ― respondeu com firmeza. Levantou seu olhar,
elevou o queixo e prosseguiu: ― Todos os homens que
passaram pelo meu leito partiram satisfeitos.
Era real o que brotava de seus lábios? Sabia ela saciar
os apetites sexuais de um homem? A única vez que esteve
com um tinha uma faca apertando sua garganta e naquele
momento não pensava em satisfazê-lo a não ser em fazer o
que este lhe pedia e fugir com vida o antes possível.
― Perfeito então. Senhora Stone, ― disse à cozinheira
que não era capaz de olhá-lo ― já temos uma prostituta.
Ordenarei que lhe preparem uma habitação. Não albergue a
falsa esperança de ter um teto onde dormir, isso não está no
acordo. Mas eu gostaria de apreciar a beleza que oculta
embaixo dessa capa de imundície. Além disso, para que
elimine esse pestilento aroma, deveria ficar de molho no
mínimo uma semana. Senhora Stone, já que foi você quem se
proclamou benfeitora da jovem, deixo-a em suas mãos para
que a prepare de maneira adequada.
Hanna não respondeu. Estava mexendo em uma panela
de metal o guisado que pretendia oferecer para o almoço. As
lágrimas percorriam seu velho rosto e sentia que a garganta
lhe oprimia. Sem querer tinha conduzido a jovem a um
destino turvo, escuro.
― Senhora Stone? ― Inquiriu Brandon para certificar-se
de que o tinha escutado.
― Sim, senhor Stone, prepararei-a ― respondeu
apertando a mandíbula.
Escutou-se a porta depois da saída do mordomo e
depois disto, houve silêncio. Beatrice tinha ficado de pé,
incapaz de mover-se. Ainda não era consciente do que tinha
acontecido. Tinham lhe devotado o posto de cortesã e ela, em
um ataque de ira, tinha-o aceito? Como podia ser tão tola?
Possivelmente não pensou em nada depois de escutar que lhe
pagariam uma centena de moedas de ouro. Era muito mais
do que levou em seu bolso quando partiu de Londres e estava
segura de que, com essa quantidade, poderia comprar outros
animais com os quais poderia sobreviver durante bastante
tempo. Embora para seguir vivendo nas condições nas quais
se encontrava, devia padecer de novo a dor e a vergonha?
Viver um pouco mais ou morrer na cabana? Se algum dia
alguém aparecesse por ali descobriria ossos de um cadáver, o
seu.
«Viver para lutar», pensou para si.
Suspirou com intensidade e fez desaparecer todo tipo de
inquietações. Devia fazê-lo e ponto.
― Sinto-o… ― escutou a cozinheira murmurar. ― Tudo
isto foi por minha culpa…
― O emprego, eu o aceitei. Se quisesse teria me negado
― indicou ao mesmo tempo em que se aproximava das costas
da anciã.
― Não é justo! Esse homem se aproveitou da sua
necessidade e jamais o perdoarei ― gritou enfurecida
enquanto levantava a panela com raiva.
― Senhora Stone, você é um anjo e de verdade, aconteça
o que acontecer, estarei eternamente agradecida. Graças a
você poderei sobreviver uns meses mais.
Beatrice não queria que ela se preocupasse com seu
futuro. Acaso se tinham preocupado seus pais? Não. Depois
de lhes revelar o que tinha acontecido com o conde de
Rabbitwood e lhes haver jurado que ela não tinha feito nada,
seu pai saiu correndo enquanto que sua mãe chorava sem
consolo. Para onde tinha partido o destroçado pai? Para a
residência que o atual duque de Rutland tinha em
Southwark. Seu único propósito era lhe pedir clemência.
Acreditou bobamente que este lhe ajudaria a salvar a honra
manchada de sua filha, mas… o que fez o futuro duque?
Nada. Não meditou nem um só segundo sobre o pedido de
ajuda do barão, mas sim pensou que, como todas as damas
que tinha conhecido em sua promíscua vida, mentia, e não
quis questionar a reputação do bastardo de Rabbitwood.
Desde esse dia sua família começou a adoecer. Sua mãe,
assídua de visitas e de festas, encerrou-se em sua câmara e
não a abandonou nem sequer para realizar as funções
humanas normais, o barão descuidou de suas
responsabilidades e começaram a ter mais dívidas que
riquezas. Finalmente, Beatrice decidiu atuar: escreveu-lhes
uma nota onde lhes explicava que partia do lar para pôr fim à
sua desventurada vida.
Viajou durante vinte e cinco dias. Umas vezes, graças à
solidariedade de alguns viajantes, em carruagem ao lado do
cocheiro, em outras ocasiões, andando. Tinha andado tanto
que seus sapatos se romperam e teve que abandoná-los no
caminho. Recordava que durante as longas horas de
caminhada só tinha uma ideia em sua mente: chegar a
Derbyshire e ocupar a pequena cabana que o duque possuía
em seus territórios.
Em algumas conversações nas quais tinha estado
presente, o principal tema era a riqueza das terras que
herdaria o futuro duque de Rutland, e em alguma delas
alguém comentou que tinha ido para caçar e que se
resguardara da intensa chuva em uma pequena cabana perto
do rio. Falou de quão abandonada estava apesar de
encontrar-se nos limites mais ricos do terreno. Assim não o
pensou, decidiu que ali permaneceria escondida o tempo que
desejasse. Como o duque não lhe tinha assistido para
esclarecer a verdade, ajudar-lhe-ia de maneira involuntária a
ter um teto onde poder viver.
― Direi-lhes que subam a água quente… ― a suave voz
da senhora Stone interrompeu suas meditações.
― Se não se importar, ficarei aqui até que tudo esteja
preparado ― voltou a sorrir. Queria subtrair importância aos
inesperados acontecimentos. Não podia fazer com que aquela
boa mulher se sentisse desventurada pelo ocorrido. De
repente, a senhora Stone se dirigiu para a porta e a abriu.
― Vá. Será melhor que o faça. Não se preocupe pelo
senhor Stone. Direi-lhe que pensou melhor e recusou a
oferta.
― Não partirei ― respondeu com um suave fio de voz. ―
Farei o que me encomendaram. Necessito desse dinheiro,
senhora Stone. Os lobos comeram minha última esperança
de vida e quando retornar ao meu lar não terei nem um
pedaço de pão para levar à boca.
― Isso tem solução! ― Exclamou a mulher com rapidez.
― Colocarei em uma bolsa comida suficiente para uma
semana. Quando terminar, retorne.
― Não vou colocar em perigo seu posto de trabalho por
cuidar de mim. ― Beatrice pousou uma mão sobre o ombro
da mulher e o apertou com carinho. Então aconteceu algo
que lhe surpreendeu. A cozinheira abriu seus braços e a
apertou entre seu corpo com força.
― Você é uma menina… ― murmurou.
― Mas esta menina tomou uma decisão ― respondeu
sem apartar-se dela.
― Há outras alternativas…
― Buscarei-as quando tudo isto tiver acabado. Mas
necessitarei da sua ajuda ― murmurou apoiando a testa
sobre o peito da anciã.
― Estarei ao seu lado quando precisar da minha
presença, prometo-lhe isso.
― Obrigada ― disse ao mesmo tempo em que Hanna
abria os braços e ela se apartava.
― Tem mais fome? ― Perguntou a anciã enquanto se
dirigia para a despensa.
― Estou bastante satisfeita e acredito que depois do
acontecido meu estômago não aceitaria nada mais.
― Seu estômago não poderá resistir a isto. ― Pousou
uma bandeja tampada por um pano sobre a mesa e,
orgulhosa do que estava a ponto de oferecer, colocou as
palmas na cintura. ― É uma receita da minha mãe. Ela a
herdou da minha avó. Antes o chamavam… como era? ― Pôs
os olhos em branco tentando recordar o nome.
― Pudim! ― Gritou a moça ao apartar o pano que cobria
o recipiente.
― Exato! Como sabe? Comeste-o alguma vez? ―
Entrecerrou os olhos e a olhou com curiosidade. Se ela vinha
de uma família humilde e mal tinha dinheiro para levar um
pedaço de pão à boca, como sabia o nome de uma sobremesa
tão deliciosa?
― Faz tanto tempo que nem o recordo… mas hoje vou
rememorar esse maravilhoso sabor. Pode me dar um pedaço?
― Elevou o queixo para a mulher e sorriu como uma menina
pequena.
― Coma o quanto quiser, se acabar farei outro. Tenho
guardado na despensa muito leite, ovos e mel.
Beatrice emitiu um suave ruído de prazer quando tomou
a primeira colherada. Fechou os olhos e se lembrou da última
vez que se deleitou com aquele manjar. Enquanto isso Hanna
recolhia em sua mente a resposta que lhe tinha devotado:
«Faz tanto tempo que nem o recordo…».
IV

Os criados não cessavam de murmurar sobre aquilo.


Apesar de estar escondida em uma das habitações mais
afastadas, pôde escutar os cochichos entusiastas de todos
que caminhavam pelo corredor. Conforme descobriu, era a
primeira visita que recebia o duque e supôs que esse
acontecimento devia ser muito importante para todos os que
habitavam na mansão. Entretanto, para Beatrice lhe resultou
do mais normal que o reverendo e sua esposa fossem os
primeiros em aparecer em Haddon Hall.
Depois de tirar a roupa e deixá-la de maneira
descuidada sobre o chão, inundou-se na banheira e deixou
que a água esquentasse seu corpo. Fazia muito tempo que
não se banhava em um recipiente que albergasse por
completo seu pequeno tamanho. Colocou a cabeça e conteve
durante uns instantes a respiração. Quando a elevou,
começou a rir. Sua mente, em vez de sopesar o que ocorreria
se o duque demandasse com prontidão os serviços de sua
nova concubina, pensou na conversação que estaria tendo
lugar no salão principal. Estava muito segura de que sua
Excelência desejaria finalizar o antes possível a visita para
soltar os milhares de impropérios que reteria em sua cabeça
após conversar com um reverendo tão impertinente. O certo
era que ninguém em Derbyshire gostava do novo pregador.
Foram à missa aos domingos para evitar falações sobre as
possíveis causa de suas ausências em um dia tão famoso. Ela
podia enumerar mil razões para não esbanjar duas horas de
sua vida em uma reunião de tal índole, embora com uma lhe
bastasse: não suportava os intermináveis e aborrecidos
discursos. O reverendo em vez de atrair os paroquianos com
histórias repletas de felicidade e esperança, centrava-se em
quão trágica podia ser a vida quando o mal possuía uma
pessoa, conduzindo-a para a libertinagem e a imoralidade.
Beatrice soltou uma enorme e sonora gargalhada.
Esperava que não ocorresse ao extravagante personagem
comentar à sua Excelência que o estado em que se
encontrava era uma chamada de atenção do Todo-poderoso
pela vida que tinha levado até aquele momento. Se tivesse um
mínimo de consideração, coisa que duvidava, manteria-se
calado e evitaria que o jogassem ao exterior como se fosse
uma lixeira.
O que importa a ti o que digam àquele presunçoso? ―
Perguntou-se enquanto subia e descia as pernas fazendo
pequenas ondas na banheira. Além disso, não lhe vai mal que
alguém lhe recorde que o culpado de sua desdita não foi
outro senão ele mesmo.
Beatrice apoiou a cabeça na beirada da banheira e
contemplou ao seu redor. A escuridão lhe produzia uma
saudosa paz e bem-estar. Desde que tinha posto um pé na
pequena cabana jamais apagava as velas. Dava-lhe muito
medo não saber o que poderia acontecer ao seu redor, sem
esquecer as feras famintas que uivava noite após noite em
sua porta. Agarrou o sabão e voltou a impregnar seu corpo
com este. As borbulhas formavam uma capa sobre a
superfície da água e começou a brincar com elas. Então, sem
saber o motivo disso, recordou o dia que conheceu a notícia
sobre a volta do duque a Haddon Hall e a causa do mesmo.
― Você está certa disso? ― A chapeleira a quem estava
acostumada a visitar para saber se alguém demandava os
serviços de uma criada, perguntava a outra mulher com
bastante entusiasmo.
― Muito certa ― respondeu a cliente em tom sério.
― Quando você disse que aconteceu? ― Continuou o
interrogatório da chapeleira enquanto fazia um sinal à
Beatrice para que não se movesse da sala dos fundos. Se
aparecesse daquele jeito, a cliente fugiria apavorada e
espalharia o rumor sobre as inapropriadas atitudes da
chapeleira.
― Segundo minhas fontes, antes da primavera. O
marido de uma de suas incontáveis amantes desafiou-o a um
duelo de honra e o duque o aceitou entre brincadeiras ―
prosseguiu a história ao mesmo tempo em que olhava e
tocava os novos chapéus adquiridos para a próxima
temporada.
― Entre brincadeiras? ― A chapeleira se aproximou de
uma estante e agarrou uma caixa de cor branca, abriu-a e
mostrou à mulher um chapéu de cor rosa com três grandes
plumas azuis.
― O marido não media mais de… ― elevou a mão até o
contorno de seu peito para assinalar a possível altura.
― Pobre duque! ― Exclamou a chapeleira tampando a
boca escandalizada.
― Nunca se deve subestimar um adversário, por mais
indefeso que pareça ― disse a mulher enquanto colocava o
chapéu que lhe tinha mostrado.
― Eu acredito que o melhor é não esquentar o leito de
outro homem.
― Você… não conheceu ao duque, não é? ― A mulher
girou-se para a chapeleira com rapidez como se não pudesse
acreditar em sua afirmação.
― Não, senhora. Quando cheguei a Derbyshire sua
Excelência partiu à Londres. ― A chapeleira abaixou a cabeça
ao ver a reação da mulher e estendeu seus braços para o
chão.
― Entendo… ― Deu um suspiro, tirou-se o chapéu de
cor rosada e pegou outro da cor de vinho tinto. ― Só lhe direi
que ninguém, incluídos os homens que lhe rodeavam, podia
deixar de admirá-lo. Era a perfeição, um ser sublime… ―
colocou o último chapéu, olhou-se no espelho, colocou-o no
lado direito e prosseguiu: ― E agora… é um monstro.
― Um monstro? ― Perguntou a chapeleira assombrada.
― Sim. Ali onde havia um rosto liso, macio e cuidado se
encontram umas horrendas marcas. Dizem que são parecidas
com as cordas que utilizam os piratas em seus navios.
Também contam que deixou de mover o braço esquerdo.
Agora… como poderá satisfazer os insaciáveis desejos carnais
de suas amantes? ― Perguntou antes de soltar uma grande
gargalhada. ― O que te parece? ― Inquiriu à chapeleira
olhando-se de novo no espelho.
― Parece-me perfeito. Fica muito bem e acentua a
palidez de sua pele ― respondeu a chapeleira sorrindo.
― Levarei esse!
Esteve a ponto de chamar a senhora Stone para que
alguém voltasse a encher a banheira com água quente, mas
pensou melhor. Era tempo de descansar. Quanto tempo fazia
que não se agasalhava com suaves e perfumados lençóis?
Beatrice secou o corpo com rapidez, enredou uma toalha no
cabelo e caminhou muito devagar para a cama. Colocou os
joelhos sobre esta e, sem pensar, equilibrou-se sobre os
almofadões para inspirar com intensidade. O aroma de limpo
impactou-a com força. Tudo parecia diferente depois do
banho, até lhe resultou distinto o tato de sua própria pele.
Girou-se e olhou para o teto de madeira. Era muito alto e
rude, como tudo o que havia naquela mansão. Inclinou-se,
pegou a ponta do lençol e se cobriu com ele. Precisava
descansar um pouco antes que o empertigado senhor Stone
aparecesse pela porta e a expulsasse.
Grunhiu várias vezes antes de conseguir abrir os olhos.
Apesar de tentar com vigor, resultava-lhe impossível
despertar do tranquilo e aprazível sonho no qual se inundou.
Tinha visto sua mãe chamando-a da entrada para que fosse
ao lar antes que a chuva a alcançasse. Beatrice galopava pelo
campo, sorria ao ver sua mãe agitar a mão para que se
dirigisse para ela. Então, no momento que descia do corcel e
tentava subir as escadas, sentiu que alguém tocava seu
ombro e a girava para a direção em que se encontrava...
― Senhora Stone… ― murmurou Beatrice ao descobrir a
anciã ao seu lado.
― Perdoa-me se te assustei, mas levo bastante tempo
batendo na porta e como não me respondia, preocupei-me. ―
Hanna tinha sentado na cama e a olhava com ternura.
― Fiquei adormecida. Imagino que estava mais cansada
do que imaginava ― respondeu inclinando-se e tampando sua
magra figura com o lençol.
― Muitas vezes pensamos que nosso corpo não tem
limites e não recordamos que somos seres humanos, não
deuses. ― Levantou-se e caminhou para uma cadeira que
havia junto à cama.
― O que acontece, senhora Stone? ― Quis saber a jovem
ao notar certa inquietação na mulher.
― O duque decidiu solicitar os serviços de sua cortesã ―
comentou com uma voz tão suave que a Beatrice custou
descobrir o que havia dito.
― Tão cedo? – Ela puxou a ponta do lençol para
continuar oculta embaixo deste e se dirigiu para a anciã. ―
Acreditei que…
― Leva muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado. A
última que ofereceu seus serviços ficou em Londres ― indicou
enquanto procurava algo de um baú.
― Tratou-a bem? Refiro a…
― Sua Excelência é um cavalheiro moça, e sua atitude é
imaculada, adequada ao título que ele detém. ― Embora não
quisesse que suas palavras soassem duras, foram-na e
Beatrice pôde advertir que a senhora Stone adorava ao duque
mais do que tentava mostrar. ― Nunca ― prosseguiu a
cozinheira ao mesmo tempo em que mostrava a camisola que
tinha obtido do baú ― necessitou dos serviços de uma
concubina até depois do acontecido. Antes daquele momento,
todas as mulheres estavam dispostas a deitar nos braços de
sua excelência. No entanto, depois de ... ― tragou saliva
incapaz de continuar com sua explicação devido à dor que lhe
provocava falar daquilo.
― Conheço as sequelas que sofre o duque, senhora
Stone.
Beatrice inclinou a cabeça e deixou que a mulher a
vestisse.
― Foi uma tragédia para todos os que respeitam e
servem ao senhor ― disse ao mesmo tempo em que esticava a
camisola.
― Ouvi que esse destino o cultivou ele mesmo.
― Quem disse tal barbaridade? ― Hanna a olhou
mostrando em seu enrugado rosto um notório aborrecimento.
― As infidelidades…
― E elas? Acaso eram mulheres respeitáveis? Cada
noite, quando aquelas filhas do diabo pensavam que o
pessoal de serviço estava adormecido, tocavam a porta da
residência e com a desculpa de conversar com sua
Excelência, tiravam-se as anáguas no próprio salão mesmo.
― Mesmo assim, se ele não tivesse aceitado os
oferecimentos dessas libertinas…
― Acredito que ainda não conheceu um homem de
verdade… ― resmungou. ― É sério que pensa que é fácil
negar-se à tentação mais prazerosa que tem o ser humano?
― Senhora Stone! ― Exclamou assombrada. Não
esperava que aquela doce e tenra anciã pudesse lhe falar de
algo tão escandaloso como as relações carnais.
― O duque não te obrigará a fazer nada que não queira
― expôs depois de uns momentos de incômodo silêncio. ―
Agora, se não se importar, eu gostaria de te escovar o cabelo.
Tem-no muito enredado.
Podia sentir o coração lhe pulsar com intensidade na
garganta. A senhora Stone a tinha deixado sozinha em frente
à porta do quarto já fazia um bom momento e não tinha
conseguido adquirir a força necessária para chamar. De
verdade seria capaz de fazê-lo? Como ia manter a promessa
que tinha feito à anciã? Seria inevitável não olhar o
desfigurado rosto do duque e compará-lo com o que uma vez
foi. Trataria-a bem? Seria atencioso com ela ou se
comportaria como Rabbitwood? Apertou os punhos e a
mandíbula. Não devia comparar ambas as situações porque
não eram semelhantes. Agora sabia a razão pela qual era
requerida, entretanto, a vez que ela entrou para responder à
suposta chamada de seu apaixonado, encontrou a um
homem sem escrúpulos, um torturador, um filho do próprio
diabo. Ante tal lembrança, Beatrice começou a tremer. Podia
escutar seus dentes batendo. O pêlo de seu corpo se
arrepiava pelo medo.
Cem moedas… ― meditou para si. Cem míseras moedas
que me oferecerão um pouco mais de tempo de vida,
continuou pensando. Respirou fundo, esticou uma mão
tremente para a maçaneta e a girou devagar.
A primeira palavra que surgiu em sua mente quando
acessou ao quarto foi escuridão. A habitação estava muito
tenebrosa. Mal podia distinguir onde se encontrava a cama
do duque e nem muito menos onde se achava este. Tentou
entrar um pouco mais arrastando os pés para não tropeçar.
Sem se dar conta levou a mão direita para o cabelo e
começou a enredar uma mecha com um dedo.
― Pode entrar ― escutou a suave e aveludada voz do
duque.
Beatrice continuou sua marcha até que a distância
entre os dois foi minúscula. Estava sentado sobre a cama
esperando com paciência sua chegada. O corpo da jovem
congelou. Suavam-lhe as mãos e sentia que mal corria
sangue por suas veias.
― Aproxime-se – disse ele estendendo uma mão para ela.
― Não acredito que deva te explicar para que veio, não é? ―
Beatrice assentiu. Tinha a cabeça abaixada tentando não
olhar o rosto do homem a quem ofereceria um serviço que
nem ela mesma sabia como iniciar. Seu cabelo cobria os
ombros e a pequena mecha encaracolada por seu dedo
começava a esconder-se entre os outros fios. ― Não albergue
em seu coração a possibilidade de que entre nós exista uma
relação afetuosa, só quero prazer ― prosseguiu, mas desta
vez o tom tinha sido um pouco mais rude, menos quente.
Como se lhe doesse expressar o que em realidade ocorreria
essa noite.
A jovem levantou o olhar no mesmo momento em que a
vela mais próxima a eles começou a mover-se pela suave
brisa de seus gestos e deixou exposta a figura do homem.
Tinha o cabelo mais comprido que na última vez em que o viu
e tentava cobrir com este as marcas do rosto. Entretanto,
essa rápida e fugaz olhada foi suficiente para que Beatrice
apreciasse a deformidade da qual tanto falavam as pessoas.
Não lhe pareceu tão horrenda e monstruosa. Parecia-se
bastante à cicatriz que tinha sua mãe no ventre quando
tiveram que tirá-la de suas vísceras. Embora, claro esta, para
um homem tão bonito e para todas as suas famosas
admiradoras, seriam aterradoras.
― Só prazer… sua Excelência ― murmurou Beatrice
após escutar um grunhido do duque.
Como se um raio lhe tivesse atravessado o corpo, a
jovem levantou a camisola e se despiu. Nesse instante o
duque estendeu sua mão em volta de um dos seus seios e o
apertou com força. Beatrice sentiu uma terrível dor, tão
intensa que abaixou a cabeça para que ele não pudesse
observar as dobras de sua testa e como apertava os dentes.
Tentou serenar-se pensando que obteria uma boa bolsa de
moedas que a ajudaria a sobreviver no mundo que Deus lhe
tinha devotado.
― Faça com que eu te deseje. Finja algum interesse e
faça por merecer o salário que obterá quando partir ―
comentou o duque com voz sólida e grosseira, mais do que a
jovem teria imaginado.
Então fechou os olhos e se ajoelhou para procurar o
membro do homem e fazer o que aquela noite o conde de
Rabbitwood a obrigou a praticar.
Encontrava-se no salão da senhora Baithlarin. Durante
toda a noite tinha evitado qualquer aproximação masculina,
não por descortesia, mas sim porque ela não desejava cercar
uma conversação ingênua e oferecer uma esperança quando
em realidade não a havia. Parecia que todo mundo se
interessava em conhecer seus pensamentos, seus desejos,
suas inquietações. Certamente, tanto sua mãe como as
amigas desta tinham a esperança de lhe encontrar um bom
partido, possivelmente por isso a mostraram aos possíveis
candidatos como se fosse um bonito troféu a ganhar.
Mas Beatrice tinha o coração ocupado. Amava Leonel
desde sua mais tenra infância. Entretanto, a diferença de
classes fazia impossível o matrimônio, salvo se ela fugisse
com ele como tantas vezes este lhe havia insinuado. Mas não
era valente, jamais o tinha sido até depois daquela noite.
Descobriu em mais de uma ocasião os azulados olhos do
conde de Rabbitwood observando-a, admirando-a a distância
tal como tinha feito em festejos anteriores e sem tentar
ocultar dos outros aqueles olhares lascivos.
Tentou dançar com ela, uma valsa para ser exata, e
graças às desculpas de sua mãe pôde rechaçá-lo com estilo e
educação. Mas o sinistro conde de Rabbitwood elaborou um
plano, um maquiavélico e ruim para o qual teve que indagar
sobre sua vida e descobriu que havia outro homem.
Em um momento de descuido maternal, um dos criados
lhe fez chegar uma nota, nela se dizia que seu amado Leonel
se encontrava esperando-a na biblioteca da anfitriã. Foi tão
grande sua ilusão e sua vontade de vê-lo que não se
perguntou a razão pela qual um trabalhador de sua família
tinha aparecido em uma festa de tal classe social. Esperou
um momento para correr para o lugar designado. Seu
coração palpitava pelo entusiasmo, pela emoção de vê-lo
depois de uns dias de distanciamento.
Ficou parada na porta da biblioteca, alisou o cabelo e
tentou não mostrar a euforia que sentia. Abriu, não sem
antes jogar uma última olhada e confirmar que ninguém
presenciaria seu encontro. Mas houve testemunhas, embora
tivessem mais motivo para se esconder do que ela. O duque e
a mulher com a qual tinha paquerado no salão se ocultavam
sob uma das cortinas das imensas janelas do corredor.
Escutou algumas risadas, alguns beijos mais sonoros dos
que ela estava acostumada a oferecer ao seu amado. O tecido
áspero se moveu com intensidade no momento em que
escutou uns soluços. Não eram gemidos de dor, mais
pareciam pequenos gritos emanados do interior dos corpos
capturados pelo sexo.
Envergonhada pelo que tinha descoberto, entrou com
rapidez e fechou ainda mais rápido a porta. Devido a sua
agitação, o vestido fez um círculo tão amplo que tocou várias
figuras de porcelana que havia na entrada. Abaixou-se para
que não terminassem quebradas no chão. Ato seguido se
incorporou e dirigiu o olhar para um corpo que se apoiava no
respaldo de um sofá. Estava de costas para ela e por muito
que tentasse comparar aquela silhueta com a de seu amado,
ambas não correspondiam. Ficou sem fôlego quando o
enigmático homem deu a volta e lhe sorriu. Em efeito, não era
Leonel e sim o conde de Rabbitwood. O homem que não tinha
deixado de olhá-la durante o baile e quem lhe sorria
descaradamente.
Quis lhe perguntar por que a tinha enganado, mas em
vez de enfrenta-lo decidiu fugir. Não conseguiu seu propósito.
O conde correu para ela justo quando tinha a mão sobre o
trinco. Recordou a resistência e como lhe cobria a boca para
que não chiasse. Depois, uma folha afiada lhe apertou a
garganta. «Cortar-lhe-ei se gritar», sussurrou-lhe enquanto
apartava a mão de sua boca para conduzi-la ao decote e lhe
descobrir os seios. Começou a chorar. Foi o único que se
atreveu a fazer. Estava tão assustada que sua mente não era
capaz de pensar com claridade. Rezou para perder a
consciência quando percebeu que seu vestido se elevava e o
homem se colocava atrás dela para possuí-la. Entretanto,
manteve-se lúcida em todo momento. Durante mais de uma
hora foi submetida a um sem-fim de atrocidades. Nesse
tempo pensou que alguém sentiria falta dela e a procuraria.
Imaginou que, apesar de ter seus olhos cheios de lágrimas,
veria entrar o Leonel, que a salvaria daquelas mãos
abomináveis, mas não foi assim. O tempo passava e ninguém
aparecia para interromper sua agonia. Quando o conde se
cansou dela, liberou-a. «Obrigado por sua companhia, foi um
prazer ter este magnífico bate-papo com você, senhorita
Montblanc», foram suas últimas palavras antes de deixá-la
sozinha, atirada no chão, destroçada e… morta.
A lembrança do acontecimento mais aterrador de sua
vida fez com que brotassem sem cessar milhares de lágrimas.
Seguia com os olhos fechados e com o falo do duque em sua
boca. Esteve a ponto de retirar-se e sair fugindo quando
notou uma queimação em sua língua. Um líquido quente
começou a vagar por sua garganta.
Quis vomitar, quis gritar. Mas igual àquele dia, não
conseguiu fazer nada. Levantou-se e abaixou a cabeça. Seu
corpo seguia tremendo, desejava tirar a agonia que sofria em
seu interior de algum jeito, mas… como? Escutou algo. Não
soube com claridade o que. Mas depois de observar que o
duque se incorporava e se girava agarrando-se ao dossel de
madeira, imaginou que a despachava de seu lado.
Com rapidez agarrou a camisola e a pôs enquanto as
lágrimas seguiam nublando sua visão. Esticou a mão, girou a
manivela para abrir a porta e então escutou um soluço. Não
era como o que emitiu o homem quando estava sob a cortina,
era mais um lamento. Sem saber a razão, girou-se para o
homem e, durante um segundo, observou-o chorar. Sem
atrever-se a dizer nenhuma palavra, abandonou a habitação,
baixou as escadas e não parou até que se encontrou com o
senhor Stone, que se encontrava junto à saída principal da
mansão.
Agarrou com força a bolsa de moedas que lhe tinham
prometido sem poder articular palavra, só queria afastar-se o
antes possível dali, e quando escutou o ferrolho atrás de suas
costas, estremeceu-se antes de pôr-se a correr agasalhada
pela frieza da noite, não diminuiu a marcha até que entrou
no bosque. Apoiou a palma da mão em um tronco e começou
a vomitar. Expulsou tudo o que tinha no estômago, as
lágrimas lhe ardiam e lhe doíam tanto como a folha afiada de
Rabbitwood em seu pescoço. Voltou a recordar as coisas que
aquele homem a obrigou a fazer, o sofrimento que sentiu
quando a penetrou com rudeza e notou de novo como seu
corpo se partia em dois.
Beatrice gritou enquanto seguia vomitando. Esforçou-se
tanto em tirar aquilo que tinha em seu interior que caiu ao
chão de joelhos. Tentou respirar, encher seus pulmões de ar,
mas lhe resultou tão difícil controlar sua respiração que
terminou desmaiando e caindo de bruços no chão.
V

Se seus cálculos não falhavam, estava em Haddon Hall


pouco mais de dois meses. Mas não estava cem por cento
seguro. Naquele lugar o tempo transcorria tão devagar que
parecia não avançar. Não importava se passasse as tardes
recebendo ou devolvendo visitas, todos os dias eram
intermináveis e as noites, depois do dramático encontro com
aquela moça, eram insuportáveis. Sempre se encontrava de
mau humor, até o ponto de que nem ele mesmo podia
suportar-se.
Possivelmente outro motivo para adotar aquela atitude
fosse a inoportuna queda que sofreu ao subir as escadas da
entrada. Não foi nada grave, conforme lhe informou o doutor
que o atendeu, mas a partir desse momento teria que apoiar-
se em uma bengala para evitar outra queda similar. Se antes
do tropeço via a si mesmo como um inútil, agora, obrigado a
usar o apoio de uma vara de madeira, sua opinião se
acrescentava. Quais outros desastres lhe proporcionaria o
futuro? Uma enfermidade que o deixasse prostrado em uma
cama pelo resto de sua vida? Ou talvez tropeçasse de novo
com tão má sorte que sua cabeça ricochetearia no chão e
ficaria cego pelo impacto?
William caminhou seguro à sua bengala até a poltrona
situada junto à chaminé, onde da janela observava o novo
amanhecer. Algum servente tinha acendido o fogo e as
chamas além de manter o ambiente quente, também
proporcionavam a luz necessária para observar sobre a
escrivaninha uma pequena montanha de missivas. Tinha que
lê-las e as responder o quanto antes possível, mas não estava
com humor. A verdade era que nunca estava com ânimo para
fazer algo. Só queria fechar os olhos e, depois de abri-los,
descobrir que todo o vivido tinha sido um pesadelo induzido
por sua consciência. Entretanto, nunca era assim, quando
elevava as escuras pestanas, seguia sem poder mover a mão,
as marcas de seu rosto não tinham desaparecido assim como
não cessavam aqueles surtos de dor depois do impacto. Esse
seria seu futuro? Viver para desejar morrer? De verdade que
não podia fazer nada para mudar o destino?
William fixou os olhos na intensidade das chamas e as
associou à força que ele mesmo possuiu no passado: fortes,
invencíveis, impossíveis de abater. Entretanto, se um de seus
criados arrojava um caldeirão de água sobre aquelas vívidas
chamas, apaga-las-ia no momento. Só ficaria carvão.
Possivelmente uma ou outra brasa tentaria sobreviver à
destruição, mas apesar do esforço jamais retornaria à
intensidade do fogo inicial.
― Sua Excelência, ― Brandon apareceu levando uma
pequena bandeja prateada sobre suas mãos e interrompeu
com brutalidade a meditação do homem ― chegou o correio.
O homem deixou a bandeja em uma mesa junto ao
duque e esperou de pé junto a ele se por acaso necessitasse
sua perícia ao escrever para responder as cartas que
necessitassem de resposta.
William as olhou pela extremidade do olho e passou a
mão sã por elas esboçando uma careta. Ele optou pelo
periódico e o colocou sobre suas pernas para lê-lo sem
demasiado interesse, Londres e tudo o que concernia a ela já
formava parte de seu passado.
Abriu o jornal em uma página ao azar e a foto de um
Federith sorridente, exultante de felicidade com sua recém-
adquirida esposa pelo braço, furou-lhe os olhos. Leu muito
devagar a notícia que anunciava as núpcias do barão de
Sheiton com lady Caroline Middelton na propriedade que
possuía o nobre em Hemilton.
O periódico era de três semanas atrás e embora Federith
já lhe anunciasse suas intenções antes que William
abandonasse Londres, a notícia lhe caiu como um jarro de
água fria. Franziu o cenho e a mão lhe tremeu um pouco
antes de lançar o maço de papéis para o fogo.
― Más notícias, senhor? ― Perguntou o mordomo com
assombro.
― Depende para quem ― respondeu tosco enquanto
observava como o papel ardia.
― Se o desejar me retirarei para lhe deixar só ― indicou
o homem ao mesmo tempo em que fazia uma reverência e
tentava afastar-se.
― Não parta. Embora não me satisfaça a notícia, tenho
que felicitar ao Federith por seu recente matrimônio.
― O senhor Cooper se casou? ― Disse com uma mescla
de entusiasmo e incredulidade enquanto observava seu
senhor uns instantes, tempo suficiente para perguntar-se por
que a feliz notícia não lhe tinha agradado. Hanna teria razão?
A verdade é que não estava acostumado a dar muita
importância à sua esposa, quando falava sobre o amor e
muito menos quando incluía nessas conversações o duque.
Segundo ela, quão único faria o jovem sair da letargia na
qual se achava era encontrar uma mulher que o amasse e lhe
desse o carinho que tanto necessitava. Insinuou em mais de
uma ocasião que ter crianças brincando de correr pela
mansão faria com que o senhor recuperasse a vontade de
viver. Entretanto, ele conhecia o duque desde que saíra das
vísceras de sua mãe e, por muito que sua mulher insistisse
em que tinha razão, sabia que esse tipo de vida não era a
adequada para ele. O homem tinha nascido para ser livre,
para esquentar as camas de outros maridos, para observar as
vidas familiares de outros à distância.
― Digamos que encontrou uma mulher à sua medida ―
comentou William com maldade após refletir na resposta
adequada. Logo dirigiu o olhar para as garrafas e fez um leve
gesto com a cabeça para que Brandon lhe servisse uma taça.
― Deseja lhe responder, senhor? ― Perguntou o ancião
enquanto enchia a taça de licor e a aproximava o suficiente
para que o duque pudesse pegá-la.
― É óbvio! Responderemo-lhe agora mesmo. – Bebeu o
uísque de um gole e elevou o copo para que seu mordomo o
voltasse a encher. Brandon, mais assustado que assombrado,
encheu de novo o copo de licor e, depois de oferecer-lhe,
pegou um papel em branco e uma pluma para escrever.
― Meu querido Federith ― começou a ditar. ― Como bem
sabe, sempre me satisfazem suas alegrias, embora muito me
temo que esta não é tal. Não faz muito te expliquei que é dono
de seu destino e, se Deus for justo, arrebatarár-te o que não
te pertence. Não esqueça que meu lar terá as portas abertas
quando aparecer chorando e afirmando minha verdade. Pode
permanecer todo o tempo que desejar. Por certo, sabe algo do
miserável do Bennett? Faz mais de três meses que não tenho
notícias dele e isso me inquieta. Atenciosamente, William.
Brandon conteve a respiração em todo momento. Foi
colocando sobre a folha cada palavra que escutava da boca
do duque, ao mesmo tempo em que sua cabeça não cessava
de lhe insistir que a pessoa que pronunciava aquela maldade
não estava em plenas faculdades mentais. Eram daninhas,
maquiavélicas, quando deveriam estar cheias de felicidade e
bons desejos.
― Quer que a leia em voz alta? ― Perguntou o mordomo
levantando do assento.
― Não precisa, sei o que eu disse ― respondeu com
rudeza.
― Então, se sua Excelência me permitir isso, farei os
arranjos para enviá-la esta mesma manhã.
― Antes de partir encha de novo o copo, está vazio. ―
Levantou a taça para que Brandon a pegasse e obedecesse ao
mandato.
Em silêncio, sem mostrar no rosto sua estranheza, o
servente verteu mais uísque no copo, ofereceu-o ao seu
senhor, fez a reverência e partiu. Quando fechou a porta, o
ancião voltou a ler a nota que devia enviar, sem estar
convencido de todo da idoneidade de seu conteúdo. Talvez
Hanna pudesse deduzir o que acontecia na cabeça de seu
senhor e chegar a uma conclusão lógica que explicasse
aquele comportamento errático e malicioso. E com essa
intenção guardou a nota no bolso de seu casaco e se dirigiu à
cozinha.
William seguia observando o fogo sem sequer piscar
através do líquido ambarino. Podia ver como o álcool dançava
sobre o líquido alheio à possibilidade de que o jogassem sobre
as ardentes chamas. Seria igual o inferno? Estariam
dançando mulheres nuas entre as chamas do abismo
infernal? O homem sorriu meio de lado. Sua mente começava
a nublar-se com a rápida ingestão do uísque e agradeceu em
silêncio que seu cérebro começasse a funcionar com aquela
lentidão. Precisava evadir-se do mundo que lhe rodeava,
sonhar de novo com o homem que uma vez foi.
Possivelmente, se ao cabo de um momento o estado de
embriaguez aumentasse, poderia deixar a bengala e caminhar
sem apoiar-se nela.
Dirigiu o olhar para as garrafas, mas estavam muito
longe para alcançá-las da poltrona, teria que chamar o
Brandon para que as aproximasse.
— Maldito seja, William Manners, maldito duque de
Rutland! ― gritou. ― Levante-se e faça-o você mesmo!
O homem apoiou com força as plantas dos pés no chão e
se surpreendeu ao não sentir a dor que dias atrás sacudia
seu corpo. Soltou uma grande gargalhada ao descobrir que o
miserável estado de embriaguez lhe proporcionava a força que
requeria para sentir-se forte de novo. Sem deixar de sorrir
caminhou até onde se encontravam as garrafas de cristal de
Murano. Agarrou uma ao azar e encheu a taça.
― Agora toca a ti, estúpida mão, começa a te mover por
ti mesma.
Mas não obedeceu a ordem, seguiu estendida para o
chão. Zangado, andou pelo salão dando voltas e bebendo sem
parar. Cada vez que drenava a taça, enchia-a de novo. Ao
cabo de um bom momento seu corpo se cambaleava sem
controle e sua mente tinha perdido toda sensatez.
Aproximou-se da mesa, pegou a campainha e a agitou
sem cessar.
― Sim, Excelência? ― Perguntou Brandon ao ser
requerido com tanta urgência.
― Diga ao cavalariço que prepare meu garanhão, vou
dar um passeio por minhas terras ― comentou entre
balbuceios.
― Meu senhor… ― começou a dizer o mordomo.
― Não escutou meu desejo? Acaso a velhice começa a
destruir seus ouvidos? ― Desafiou-lhe.
― Não, senhor, escutei bem. Mas se me permite um
conselho…
― Não quero conselhos de ninguém! ― Exclamou
elevando a mão que segurava o copo vazio e atirando-o para o
chão.
― Sim, Excelência. Informarei ao cavalariço.
― Avise-me quando tudo estiver preparado – disse-lhe
dando as costas para poder cravar de novo seus olhos no
fogo.
― É óbvio. Deseja que seu ajudante de câmara o
agasalhe adequadamente?
― Não. Será um passeio breve.
― Como desejar… ― Brandon se inclinou levemente para
frente e com passo firme saiu do salão.
Respirou fundo após fechar a porta e em vez de sair
correndo para as cavalariças retornou à cozinha, onde tinha
deixado sua mulher resmungando pelas palavras tão
inapropriadas que o duque tinha dirigido ao enlace de seu
amigo.
― Quer sair para montar ― disse desesperado quando
entrou na cozinha.
― O que?! ― Perguntou a mulher atônita.
― Ordenou-me que preparem seu garanhão. Deseja
passear pelas terras ― prosseguiu.
― Terá lhe tirado essa insensatez da cabeça, não é? ―
Hanna colocou suas mãos sobre a cintura e enrugou a testa.
― Não quer escutar. Acredito que bebeu muito…
― Agora mesmo vou dar aquele par de açoites que
deveríamos ter lhe dado quando começou a apodrecer sua
alma!
― Hanna! ― Gritou Brandon agarrando-a pelo braço
para impedir que saísse dali. ― Temos que lhe deixar ver que
não é o homem que uma vez foi. Ele deve assumir.
― E nós… o que faremos enquanto isso? ― Sua voz era
suave, quase imperceptível.
― Rezaremos como tantas vezes fizemos quando lhe
dispararam ― respondeu aflito.
VI

Beatrice se espreguiçou com um sorriso que iluminou


seu rosto. De um tempo para cá dormia bastante bem e tudo
se devia a uma singela razão: tinha o estômago cheio. Tinha
comprado animais, cultivado verduras pelos arredores de seu
pequeno lar e até tinha construído um cercado para que os
lobos deixassem de aniquilar o gado. Tudo acontecia segundo
o previsto. Nada perturbava aquela felicidade, salvo quando
uns pensamentos impossíveis se fundamentavam, em como
enfrentar o passado apareciam em sua cabeça. Tentava
esquecê-los com rapidez, ainda não era o momento de pensar
nisso e tampouco tinha ainda a força necessária para
aparecer em Londres e lutar pela verdade, a sua verdade.
Apoiou os pés no chão e depois de esticar os braços
decidiu tomar um bom café da manhã antes de sair ao
campo. Depois das últimas chuvas, os arvoredos estariam
repletos de cogumelos e desejava encontrar todos que
coubessem em sua cesta para preparar suculentos manjares.
Depois de tirar a camisola e colocar-se um dos vestidos
que comprou na semana anterior no povoado, caminhou para
a pequena cozinha para tomar o café da manhã. O estômago
não lhe rugia como antes, tampouco sentia aquela debilidade
moribunda que lhe impedia de levantar-se da cama, agora
estava cheia de vida.
Verteu chá em um copo e colocou um prato com ovos,
verduras cozidas e duas fatias de pão. Quando se sentou
observou surpreendida o que havia sobre a mesa. Sem dar-se
conta tinha preparado o café da manhã preferido de sua mãe.
Àquele pensamento, à lembrança de sua mãe e à vida
que desfrutou antes de ser manchada, entristeceu-a tanto
que mal pôde dar um bocado.
«Algum dia, ― disse ― tudo voltará para a normalidade e
aqueles que me julgaram carregarão o resto de suas vidas
com a desgraça da condenação».
Mas… seria verdade? Retornaria de novo para lutar por
sua honra? Estava escondida mais de meio ano do
acontecido, pensou que se separando de sua família, dos
olhares de compaixão ou de recriminação, poderia curar sua
alma ferida e fazer-se suficientemente forte para voltar e
suportá-lo, mas com o tempo estava se acomodando à vida
que levava e cada vez se fazia mais longínqua à ideia de
retornar ao lugar onde foi ultrajada. Como trocar uma vida
cheia de tranquilidade e quietude por outra repleta de dor?
Era certo que em muitas ocasiões Beatrice se sentia sozinha e
tentava resolver essa sensação conversando com seus
animais, mas exceto algum zurro, choramingação ou
grasnido, não encontrava nada mais.
Zangada por entristecer um bonito dia com
pensamentos dolorosos, jogou a cadeira para trás com as
pantorrilhas, pegou tudo o que tinha sobre a mesa e o
introduziu irada no tanque. Precisava sair dali o antes
possível ou se voltaria louca. O isolamento não era tão bom
como tinha suposto e embora lutasse com unhas e dentes
para manter-se sã, estava justo no limite. Começava a tocar a
loucura torturante com as pontas dos seus dedos.
Olhou de novo pela janela desejando confirmar se o
tempo não tinha trocado e poderia abandonar a cabana. Em
efeito, o sol seguia brilhando, convertendo aquele dia no
perfeito para dar aquele passeio. Colocou a capa, agarrou a
cesta de vime e saiu do lar com um sorriso no rosto.
Um cão… ― pensou enquanto caminhava. Seguia
pensando em como eliminar o silêncio da casa. Seria um bom
mascote, ocuparia aqueles momentos nos quais não sei com
quem falar. Além disso, são fiéis e jamais me abandonaria,
refletiu ao mesmo tempo em que agarrava o primeiro
punhado de cogumelos que encontrou aos pés de uma árvore.
Seguia pensando no animal e em como chamá-lo
quando um bando de pássaros voou entre as copas das
árvores. Beatrice elevou o olhar e ficou observando a
estranha atuação destes. Preocupada se por acaso lhe
indicavam a cercania de algum perigo, agarrou com força a
cesta e prosseguiu devagar. De repente, escutou outro ruído,
tão intenso que a deixou imóvel. Apertou contra si a cesta e
olhou para o lugar de onde procedia o som.
Um animal corria apavorado. Ia tão veloz que não
distinguiu com precisão se era um cervo, um alce ou um
cavalo perdido. Por que estavam os animais tão assustados?
Só podia achar uma resposta a esse comportamento
aterrador. Os lobos tinham retornado e rondavam pela zona,
levavam noites uivando perto de sua cerca. Tinha se
esquecido deles ao sair da casa tão desesperada por notar os
raios de o sol lhe acariciar a pele. Assustada, decidiu
caminhar para o rio Wye. Se chegasse logo ao trecho de
máximo fluxo poderia introduzir-se na água e aguentar o
tempo necessário até que aqueles depredadores decidissem
afastar-se de uma possível presa.
O ruído dos ramos ao romper-se, o canto dos pássaros,
a brisa do vento movendo as folhas... começaram a lhe criar
um medo tão atroz que lhe adormeceram as pernas e
esqueceu seu plano de dirigir-se para o rio. Seu lar era o
lugar mais seguro. Custava-lhe respirar, avançar com fluidez.
O pânico se apropriou de seu corpo e a tinha paralisado. Em
um ato de fé, daqueles que não teve no acontecido com o
Rabbitwood, fechou os olhos e começou a orar. Rezava para
salvar-se, para que seu medo desaparecesse, para que
brotasse aquela força que necessitava. Ao princípio rogou em
silêncio, pouco depois o fez em voz alta, como se as orações
fossem suficientes para espantar um possível mal.
Subiu uma pequena colina de onde pôde divisar a
cabana. Ficava só uma centena de passos e se salvaria. Seu
caminhar começou a ser agitado, precipitado. De repente
notou a presença de algo atrás dela. Girou-se rapidamente
para saber do que se tratava. Não havia nada. O medo lhe
provocava alucinações.
Seguiu correndo olhando para trás, não queria parar. E
então… aconteceu. Tropeçou em algo que havia no chão e
caiu no barro. Durante uns instantes ficou tombada,
cobrindo seu rosto com o cabelo manchado de lodo e sem
poder elevar os olhos. Esperou o suficiente até que
comprovou que não se escutava nada ao seu redor. Elevou-se
com rapidez, agarrou a cesta e se dispôs a continuar
correndo quando sua curiosidade lhe fez olhar para a razão
de sua queda.
― Santo Deus! ― Exclamou ao mesmo tempo em que se
aproximava do que se supunha ser um corpo e estendia os
dedos fazendo com que a cesta retornasse à terra lamacenta.
Uma enorme capa escura e manchada cobria a figura de
quem jazia estendido. Beatrice não o duvidou. Esticou as
mãos para o tecido, apartou-o devagar para certificar-se de
sua premissa e gritou:
― OH, Senhor!
Andou vários passos para trás, levou-se as mãos à boca
e a tampou para não continuar chiando. Ficou tão atônita
que, depois de confirmar quem tinha em frente a ela, não
sabia o que devia fazer. Se fosse embora, se o deixava ali
estendido; podia retornar à sua casa e esquecer que o tinha
visto. Entretanto, o que pensariam no povoado quando
descobrissem o corpo inerte do duque e a ela vivendo em
suas terras de maneira clandestina? A única resposta
plausível era que ele a encontrou por acaso e quis obrigá-la a
partir de suas terras e como ela não desejava lhe obedecer,
aproveitou sua invalidez para lhe dar fim. Questionariam-se
como uma mulher tão pequena teria sido capaz de fazer tal
maldade? Não, é óbvio que não. Além disso, se descobrissem
sua identidade, a sentença não apresentaria dúvida alguma.
A única opção que tinha era averiguar se estava vivo e
conduzi-lo até a cabana, prestar-lhe auxílio e quando
amanhecesse, correr a Haddon Hall para pedir ajuda, embora
isso lhe custasse à expulsão da qual tinha sido seu lar
durante os últimos meses. Devagar, mais do que pretendia,
aproximou-se do duque e o observou com atenção.
«Obrigado, Meu Deus!», murmurou ao céu quando
percebeu que ainda respirava.
Nesse momento outro bando de pássaros voou com
frenesi sobre eles. Sem pensar duas vezes girou o corpo
inconsciente e o agarrou pelas axilas para arrastá-lo. Não
havia tempo nem forma fácil de trasportá-lo, então o arrastou
sem descansar até que suas costas tocou o cercado que
rodeava seu lar. De repente escutou uns ramos se partirem.
Levantou o olhar e os observou. Grunhiam e lhes mostravam
os dentes. Seus olhos escuros se cravavam nela. Um lobo
cinza deu uns passos para diante, levantou o focinho e uivou
com força. Beatrice tragou saliva. Sentia o medo percorrer
seu corpo, mas não se amedrontou. Prosseguiu sua façanha
até que introduziu o duque ao interior da cabana e fechou a
porta com o trinco.
Deixou-o estendido no chão enquanto procurava a
maneira de subi-lo à cama. Compreendendo que não tinha
nada que a ajudasse no árduo trabalho, decidiu pegar o
colchão e situá-lo perto do ferido. Assim, quão único teria que
fazer era rodá-lo até que estivesse em uma posição adequada.
Antes de voltar a tocá-lo ficou de pé observando-o em
silêncio. As marcas do rosto, aquelas que tanto tentava
esconder com a longa barba, mostravam-se sem disfarces. Ao
contempla-las com mais claridade, pensou que não eram tão
horrendas como diziam, embora para um homem tão
formoso, aquelas sequelas fossem feitas pelo próprio diabo.
Seguiu admirando-o à distância. Tinha um aspecto
muito viril, robusto e atlético, muito distante, em sua opinião,
da fraqueza em que todos insistiam na sequencia do
incidente.
Com valentia voltou a segurá-lo e o girou de lado para
colocá-lo sobre o colchão, afastando-o da frieza do chão. Ao
pôr suas mãos sobre ele notou que estava gelado, a roupa
molhada se grudava ao seu corpo e o esfriava sem
compaixão. Decidida, aproximou-se da chaminé, colocou uns
troncos e acendeu um fogo. Isso bastaria para esquentar a
pequena habitação em que se encontravam. Enquanto as
chamas começavam a brotar, voltou para o ferido e começou
a lhe tirar aquela capa enlameada. O duque emitiu um
pequeno gemido provocando que Beatrice se sobressaltasse e
se apartasse. Não desejava que abrisse os olhos e a
encontrasse tocando seu corpo. Poderia deduzir algo que não
era.
Esperou sentada junto à chaminé outra reação do
homem, mas ao ver que seguia inconsciente retornou para
continuar lhe despojando dos objetos. Era a primeira vez em
sua vida que se encontrava em uma situação parecida e
embora não devesse sentir nenhum tipo de temor, estava
tremendo. As mãos não eram capazes de desfazer o nó da
capa, nem de lhe tirar com agilidade a jaqueta. O que lhe
acontecia? Estaria lembrando-se da noite que passou com
ele? Não, não era isso. Só estava nervosa se por acaso o
duque abria os olhos e a descobrisse despindo-o. O que
pensaria? Certamente que lhe estava roubando. Os homens
de sua índole jamais imaginariam que alguém podia lhes
ajudar por solidariedade.
Quando ao fim o deixou em camisa descobriu uma
mancha de sangue que não tinha visto com antecedência.
Devagar desabotoou cada botão até que o peito ficou
descoberto e pôde inspecionar a zona de onde brotava o
sangue, era uma ferida que abrangia do flanco esquerdo até o
ventre, uma zona que ao duque lhe teria sido impossível
proteger com seu braço inútil. Beatrice não pôde evitar olhar
o torso com assombro. Era a primeira vez que descobria o
que se escondia sob as roupas de um homem. Nunca pensou
que fosse tão robusto, nem que nessa zona o pêlo crescesse
tão escuro e encaracolado. Mas o que lhe deixou sem fala foi
o tamanho dos mamilos, eram diminutos, mal visíveis à
primeira vista. Sem meditar mais sobre isto, incorporou-se,
preparou uma panela com água fervendo e começou a limpar
o corte com supremo cuidado. Não era profundo, só um
arranhão muito comprido.
Cada vez que passava o pano o homem franzia o cenho e
se queixava, embora não abrisse os olhos. Depois de seus
cuidados, sentou-se de novo junto à chaminé. Estava muito
cansada por todo o ocorrido. Não só seu abatimento era
físico, mas também mental. Ela podia ter salvado a vida do
duque de uma morte segura, pois se o tivesse abandonado,
os lobos teriam se alimentado dele. Mas este ato de
misericórdia teria consequências nefastas para ela, deveria
abandonar o lugar que chamava de lar. Um lugar que lhe
contribuía com paz, quietude e esperança de não voltar a ser
a mulher que foi.
Sentada, estendeu as pernas, cruzou os braços, apoiou
a cabeça na parede e deixou que o sono se apoderasse dela.
VII

Doía-lhe todo o corpo, inclusive a parte que era


insensível. Elevou com pesar as pálpebras e não soube
reconhecer onde se encontrava. Quão último recordava era
que seu cavalo se assustou no bosque, justo antes de chegar
ao rio Wye, e tinha começado a correr sem controle. Tudo
aconteceu bastante rápido. As cintas que o sujeitavam à
cadeira se partiram e durante um tempo esteve amarrado ao
estribo do animal desenfreado até que ao final caiu ao chão.
O golpe foi tão potente que foi incapaz de assimilar o
acontecido durante uns momentos. Quando compreendeu o
ocorrido tentou arrastar-se pelo chão transformado em
lamaçal. Apesar de seu esforço, mal conseguiu distanciar um
metro de onde havia desabado. Depois gritou pedindo auxílio,
mas ninguém respondeu. Exausto pelo esforço terminou
perdendo os sentidos. E agora, ao despertar daquela agonia,
achava-se em um lugar que não conseguia distinguir.
Moveu a cabeça para a direita e observou uma mulher
sentada no chão a menos de um metro dele. Tinha um
aspecto lamentável: o barro cobria cada centímetro de tecido
de seu vestido assim como seus sapatos. Dirigiu os olhos
para o rosto da moça para tentar reconhecê-la, mas foi
impossível. Uns largos cachos negros soltos de um coque
tampavam seu semblante. William franziu o cenho ao
compreender que a desconhecida dormia no chão apoiada
sobre a parede e claramente, exausta pelo cuidado que dava
a ele.
― Desculpe… ― sussurrou após respirar várias vezes e
procurar uma palavra adequada para não sobressaltá-la.
― Já despertou? ― Perguntou Beatrice dando um salto.
Sem esperar a resposta do homem aproximou-se e lhe
colocou uma mão sobre a testa. Nesse momento William
fechou os olhos, não queria ver no rosto da mulher, sua
expressão de angústia quando contemplasse suas cicatrizes.
― Parece que não tem febre. Foi uma sorte que o tenha
encontrado antes que pudesse adoecer ou acabar devorado
por... ― deixou sem finalizar a frase. Levantou-se, aproximou-
se da mesa onde tinha o pano com o qual o tinha limpado e,
depois de ajoelhar-se, voltou a lhe limpar o peito, o pescoço e
o rosto. ― Terá que ficar um tempo de repouso, embora as
feridas não sejam graves, necessitam de uns dias tranquilos
para que sarem adequadamente.
O tom da jovem era tão terno que o duque fechou de
novo seus olhos. Desejava com todas as suas forças que
aquela imagem, em que uma mulher o cuidava sem sentir
asco por suas feridas, não fosse uma alucinação.
― Onde estou? ― Ao sentir o suave tato da mão feminina
pela zona na qual seu rosto estava destroçado, William abriu
os olhos e, sem pensar agarrou-lhe com força pelo pulso para
que cessasse imediatamente.
― Em minha casa. ― Beatrice o olhou apertando os
olhos para a pressão daquele aperto forte. Não esperava que
lhe agradecesse por lhe haver salvado a vida, mas tampouco
imaginou que lhe ocorresse ser um mal educado.
William, ao ser consciente de seu inoportuno ato,
soltou-a e tentou incorporar-se, mas ela o impediu colocando
uma palma sobre o peito nu do homem e lhe obrigando a
recostar-se de novo. O cabelo negro se estendeu pelo colchão.
Sua respiração não era tranquila e Beatrice podia ouvir o
tilintar das botas do duque ao golpear-se.
― Deve recuperar-se… seu… senhor.
― Eu gostaria de lhe informar sobre certas feridas do
meu corpo. Quero lhe esclarecer que não foram causadas
recentemente… ― seu tom soou débil, inclusive triste.
― Mas apesar disso deve descansar. ― Levantou-se e se
dirigiu para um caldeirão metálico que tinha muito perto do
fogo. Colocou uma concha de sopa e tirou algo que introduziu
em uma terrina. ― Acredito que isto lhe virá bem… ―
retornou para o homem, agachou-se, colocou seu braço
esquerdo ao redor do pescoço masculino, inclinou-o para
frente e pôs uma pequena superfície da borda sobre os lábios.
― Não tem nada a ver com os ricos manjares aos que imagino
que você deve estar acostumado, mas este caldo lhe
reconfortará. ― E antes que o duque pudesse negar-se,
Beatrice o fez tomar.
William esticou a mão para o recipiente e ajudou à
moça. Era certo que não tinha provado nunca um sabor
igual, embora a necessidade de alimentar-se e de recuperar
um pouco de força fez com que bebesse até a última gota sem
mal respirar. A jovem voltou a estendê-lo sobre o colchão
enquanto ia de um lado para outro. Estava inquieta e ele a
compreendia. Tinha em sua casa a um estranho que mal
podia mover-se e que parecia ter a obrigação moral de cuidar.
― Quando chegará seu marido? Devo lhe indicar onde
resido. Ele poderá informar aos meus criados do meu
paradeiro e estou seguro de que não demorarão em vir por
mim. Agradeço-lhe tudo o que tem feito, entretanto você
entenda que não desejo ser uma carga… ― disse-lhe sem
apartar a vista de quão único alcançava a ver, seus
tornozelos.
― Meu… quem? ― Deu uma volta sobre si mesma com
brutalidade, provocando que sua saia se elevasse algo mais
do devido e que o duque descobrisse umas magras
pantorrilhas sem meias.
― Seu marido… a pessoa que haverá me trazido até aqui
― esclareceu.
― Não há tal marido, senhor. Fui eu mesma quem o
transladou. ― Colocou-se em frente a ele com as mãos
apoiadas em sua cintura.
― Você carregou o meu peso? ― Perguntou assombrado
e um tanto sufocado. Aquela moça não era muito alta e,
notavelmente magra, mais do que se podia esperar em uma
jovem de sua idade.
― Pois sim. Encontrei-o no meio do bosque e decidi lhe
salvar a vida, embora possa lhe assegurar que quase me
custou a minha ― sorriu.
Quando William a observou sorrir acreditou ver um
anjo. Um despenteado e sujo anjo que tinha cuidado de seu
rosto e não tinha encontrado nele nem um ápice de repulsão
por seu deformado aspecto. Pareceu-lhe tão implausível para
ele que acreditou que o golpe lhe tinha causado visões. Desde
quando alguém não apartava seus olhos ao estar ele
presente? Desde quando alguém o olhava sem dirigir os olhos
para a cicatriz, para franzir o cenho?
― Então… devo lhe agradecer o esforço que realizou
para me salvar ― disse após sua reflexão. Tentou levantar-se
de novo e arqueou as sobrancelhas ao ver que seu torso
estava nu. Desviou o olhar para a mulher e esta se ruborizou
imediatamente.
― Tive que limpar a ferida que se fez no abdômen. Como
imaginará, tive que apartar a roupa – desculpou-se.
― Obrigado ― disse depois de uns momentos de silêncio
que empregou para saber como deveria continuar a
conversação. ― Se por acaso não se deu conta, sou um
incapacitado. Não posso mover a mão esquerda, mas não foi
por causa da queda, faz tempo que deixou de funcionar.
Minha perna… bom, ela tenta recuperar um pouco de
funcionalidade depois de um inoportuno tropeção em meu
lar.
― O que lhe aconteceu? ― Colocou-se ao lado da
chaminé onde podia contemplá-lo com maior claridade.
― Como já lhe expliquei, isto aconteceu faz bastante
tempo…
― Refiro-me a hoje. Por que estava caído no chão? ―
Interrompeu-lhe.
― Decidi cavalgar durante um momento. Minha intenção
era chegar até o rio Wye e retornar, mas meu cavalo se
assustou e… bom, eu fui jogado. ― Suspirou e olhou para o
teto enquanto se perguntava uma e outra vez por que dava
explicações a uma estranha. Jamais as tinha dado a
ninguém. Entretanto, ela era especial. Era um ser divino que
o tinha salvado de uma morte segura.
Beatrice o olhou sem piscar. Tinha uma vontade incrível
de lhe gritar como era insensato, mas não o fez, manteve-se
calada esperando que o duque continuasse, mas ele se
manteve em silêncio.
― Há lobos pela região ― explicou para romper o
mutismo entre ambos. ― Talvez seu cavalo se assustasse ao
escutá-los e atuou preso do medo.
― Pode ser… ― respondeu sem apartar a vista do teto.
― Assim que se encontrar melhor irei procurar ajuda.
Estou segura de que alguém estará preocupado por seu
desaparecimento. ― Voltou a aproximar-se e lhe abotoou a
camisa para que não se sentisse incômodo por sua nudez. Ou
possivelmente era ela a que se encontrava nervosa.
William quis fechar os olhos e sentir o suave tato das
mãos sobre ele, mas lhe resultou impossível. Desejava
observar com atenção a sua salvadora e, embora tivesse o
cabelo despenteado e sujo assim como o rosto, pôde admirar
a beleza de seus olhos. Uns olhos verdes que não apartavam
o olhar de seu rosto nem mostravam repulsão ante a fealdade
de suas cicatrizes.
― Posso lhe perguntar seu nome? ― Inquiriu William
quando ela retornava para a chaminé.
― Meu nome é Beatrice ― respondeu.
― Só Beatrice?
― Beatrice Brown ― mentiu.
― Senhorita Brown, ― disse o duque com um tom sério e
firme ― como compreenderá, estou em dívida com você e
seria um cretino se não a saldasse.
― Não precisa me prometer nada…
― Sou o duque de Rutland e por minha honra oferecerei-
lhe tudo aquilo que desejar. Se por acaso não se deu conta,
salvou-me a vida.
― Não necessito de nada… ― murmurou com suavidade.
― Não quero que me responda agora, não é necessário.
Mas quando decidir o que me pedir, estarei encantado de
escutá-la ― insistiu sem relaxar aquele tom de
venerabilidade.
À Beatrice não cabia dúvida da veracidade da promessa
embora não acreditou oportuno lhe dizer que vivia em uma
propriedade dele e precisava seguir permanecendo ali
durante o resto de sua vida. Para evitar que o homem
continuasse falando com tanta seriedade, desenhou um
sorriso em seu rosto e disse:
― Possivelmente a queda lhe tenha prejudicado mais do
que parece. Como mínimo, deve ter lhe afetado o ouvido. Faça
o favor de descansar. Por agora é o único que lhe peço.
― Juro por minha honra…
― Shhh ― avançou para ele, pôs-lhe um dedo nos lábios
e lhe fez calar. Não queria escutar promessas que não se
poderiam cumprir. Estava aturdido e uma pessoa em dito
estado de choque poderia falar mais do que o imprescindível.
― É melhor que durma, precisa descansar um pouco mais.
William a olhou sem saber se ria ou zangava-se. Não fez
nem um nem outro, ficou observando-a durante uns
instantes. Finalmente fechou os olhos e se obrigou a dormir.
Embora antes de deixar-se sucumbir pelo sono se perguntou
quando tinha sido a última vez que havia sentido tanta paz e
desde quando era incapaz de replicar as ordens de uma
mulher. As respostas surgiram com rapidez, desde que a dita
mulher lhe tinha salvado da morte, não lhe tinha cuidado
com repulsão e o tratava com ternura.
Beatrice esperou até que escutou a respiração profunda
do duque.
Caminhou para a janela e descobriu que os primeiros
raios de sol começavam a surgir atrás das montanhas. Era o
momento ideal para ir à Haddon Hall e comunicar o
paradeiro do duque. Estava segura de que todo mundo
estaria angustiado pelo desaparecimento. Teriam começado
uma busca conscienciosa e se ela não chegasse o antes
possível para lhes explicar onde se encontrava, logo seu lar se
veria repleto de desconhecidos que a interrogariam sobre por
que vivia em um lugar que não lhe pertencia.
A angústia que sentiu ao imaginar-se nessa situação lhe
criou tal impaciência que só se atrasou em pegar sua capa e
correr para a residência. Durante o caminho sopesou a
atitude que teria o senhor Stone ao vê-la. Esticar-se-ia como
um pau, ordenaria que salvassem ao senhor das garras de
uma camponesa desalinhada e a reteria na mansão até que
descobrissem a verdade. Não podia permitir que a acusassem
de algo que não tinha feito, então decidiu que após dar a
notícia correria para seu lar para fechar a porta e esquecer
tudo o que tinha acontecido.
Como sempre, a magnitude do edifício a deixou
perplexa. Não entendia como um paraíso podia albergar um
lar tão austero. Quanto mais se aproximava, mais calafrios
sentia. Esfregou-se os braços para dar-se um pouco de calor
e começou a subir as escadas. Ao chegar à porta principal
começou a golpeá-la com força. Depois de vários intentos sem
ser atendida, decidiu tentar a porta de serviço. Se não se
equivocava, a senhora Stone estaria na cozinha e a escutaria
com prontidão. Andou devagar tentado descobrir se surgia da
escuridão alguém com quem falar, mas só havia silêncio, um
estranho e horrendo silêncio.
― Menina! ― Exclamou a senhora Stone ao vê-la. ― O
que faz aqui?
― Bom dia, senhora. Preciso falar com o senhor Stone ―
respondeu com voz equilibrada.
― Retornou para…?
― Não! ― Respondeu com prontidão ao mesmo tempo em
que suas bochechas se enchiam de uma intensa cor
vermelha.
― Pois, querida, o senhor Stone não pode te atender.
Aconteceu algo bastante dramático em Haddon Hall e…
― O duque está em minha casa – interrompeu-lhe.
― O que está dizendo, moça? ― Os olhos inchados da
anciã devido ao intenso pranto que teria tido enquanto o
duque estava desaparecido, abriram-se de par em par.
― Encontrei-o caído no meio do bosque. Quando
compreendi que estava vivo o arrastei até meu lar e o estive
cuidando após ― explicou Beatrice.
― Obrigado, meu Deus! ― Clamou antes de lhe dar um
forte abraço e enchê-la de beijos. ― Muito obrigada, criatura
do Senhor, por salvá-lo. ― Depois de uns momentos nos
quais Beatrice mal conseguia respirar, a mulher a liberou e
correu para a porta gritando: ― Senhor Stone! Senhor Stone!
― O que acontece? A que vêm esses gritos? ― Tal como
se tinha imaginado, o mordomo apareceu na cozinha erguido
e mal-humorado. Ao ver a jovem entrecerrou os olhos e lhe
disse: ― O que faz aqui? Não teve o suficiente com aquela
noite? Acaso gastou o dinheiro que ganhou e vem procurando
mais?
― Brandon! ― Gritou Hanna zangada. ― Por que é tão…?
― Tão? ― Arqueou as sobrancelhas e uniu com
suavidade as pestanas.
― A jovem veio até aqui para nos informar sobre nosso
senhor. Ele está são e salvo. Encontrou-o no bosque e o
esteve cuidando ― esclareceu a anciã sem mal tomar fôlego.
― Onde está? ― Exigiu sem baixar a intensidade de seu
tom.
― Está em minha casa ― anunciou abaixando a cabeça.
As duras palavras do mordomo sobre o acontecido aquela
noite lhe tinha criado um grande pavor.
― Diga-me agora mesmo onde se encontra sua
Excelência! ― Exclamou com ira.
― Vim até aqui por vontade própria. Acreditei que
estariam preocupados com o destino do duque e quis lhes
informar que se encontra bem.
― Onde está? ― Repetiu Brandon com os dentes
apertados. Aproximou-se tanto de Beatrice que esta teve que
dar vários passos para trás para que não conseguisse roçá-la.
― Na pequena casa que há no bosque. É o… ―
murmurou devagar.
― Refúgio de caça ― terminou a frase. ― Está bem,
mandarei vários criados com a carruagem e espero, por seu
bem, que se encontre em ótimas condições porque do
contrário…
― Não desejo escutar nada sobre isso, ― agora foi ela
quem não lhe deixou terminar a frase ― vim voluntariamente
lhe indicar onde se encontra.
Brandon a olhou irado. Girou-se para a porta para
ordenar a outros criados que se preparassem para ir procurar
ao senhor e quando retornou à cozinha com a intenção de
apanhar a moça, já não estava.
― Por que não impediu que se fosse? ― Perguntou
zangado à sua mulher.
― Pensa que minhas pernas podem correr como os
galgos? Além disso, não crê que se comportou como um
idiota, meu querido? Ela só veio nos informar sobre o
paradeiro do duque e você a tratou como uma criminosa.
― Mas…
― Não tem “mas”! ― Exclamou levantando a mão para
lhe fazer calar. ― Hoje não espere nenhum tipo de afeto em
nosso quarto. Prefiro, se não quiser cair do colchão durante a
noite, que durma em outra habitação. ― Depois de ameaçá-lo,
girou-se sobre seus calcanhares e seguiu prestando atenção à
comida que estava cozinhando.
Beatrice chegou, como era de se esperar, antes dos
criados. Abriu devagar a porta de seu lar e se assombrou ao
ver que o duque estava sentado sobre o colchão e olhava o
fogo. Este, ao escutar que alguém acessava ao interior da
casa, moveu a cabeça para sua direção.
― Foi à Haddon Hall para lhes avisar? ― Perguntou sem
mostrar em seu rosto nenhum tipo de emoção.
― Sim ― respondeu enquanto se aproximava e se
colocava em frente a ele. Sua respiração era agitada devido ao
esforço da corrida. Tomou ar de maneira pausada, acalmou-
se e continuou: ― Estão vindo para cá. Eles lhe cuidarão
como merece. Penso que eu não posso lhe oferecer muito.
Tenho poucos recursos…
― Andou até Haddon Hall… sozinha? Apesar de me
haver indicado que há uma manada de lobos rondando no
bosque? ― William estava zangado. Mais do que se havia
proposto.
Um momento depois de recostar-se escutou a porta,
despertou e, por muito que a tinha chamado para que não
partisse, não o conseguiu. Nesse momento tentou levantar-
se, mas o único que pôde fazer foi sentar-se naquele roído
colchão e esperar que o tempo passasse. Sua incoerente ação
não só tinha posto em perigo a ele mesmo, mas sim também
tinha arrastado a pessoa que o tinha salvado de uma morte
inevitável. Zangou-se por ser tão irracional. Zangou-se por
deixar-se levar pela ira, por ter tomado mais álcool do que o
acostumado. Zangou-se por tudo o que tinha feito no passado
e suas consequências.
― Não se preocupe comigo, Excelência. Estou
acostumada a contornar certos perigos. ― Tirou-se a capa e a
colocou sobre uma cadeira.
― Mesmo assim, você é uma inconsciente ― disse com
aborrecimento.
― Uma inconsciente? ― Beatrice entrecerrou seus olhos
e franziu o cenho. ― De verdade que um homem como você é
capaz de me definir de tal maneira? Acaso fui eu quem
decidiu cavalgar depois de vários dias de chuva e com
limitações? ― Fechou com rapidez a boca. O que menos
desejava naquele momento era lhe recordar àquilo que lhe
tinha destroçado a vida. Entretanto, ao ver que o duque
cravava o olhar no chão soube que suas palavras lhe tinham
feito mal, mais do que pretendia.
― Você tem razão… ― sussurrou William. ― Por isso
quero que recorde que tenho uma dívida pendente com você e
eu gostaria de saber no que posso ajudá-la. Se for possível,
antes que eu parta.
― Só preciso ficar sozinha… ― murmurou muito
devagar.
Girou-se para a chaminé dando as costas ao homem e
esticou as mãos para esquenta-las.
William se dispunha a replicar suas palavras quando a
porta se abriu com brutalidade e apareceram duas pessoas.
Uma delas era o cavalariço e a outra, seu ajudante de
câmara. Ficaram olhando-os durante uns instantes
esperando que alguém lhes ordenasse o seguinte passo.
― Sairei para que o assistam como é devido ― comentou
Beatrice abaixando a cabeça e dando uns passos para a
saída.
Nesse momento, sem saber por que, jogou uma última
olhada ao duque, que a olhava sem pestanejar. Seu cenho
permanecia franzido e apertava com força a mandíbula. Sem
dúvida alguma o homem se zangou ao não obter a resposta
que desejava, mas ela não queria adiar por mais tempo a
partida. Desejava com todas as suas forças que a
normalidade reinasse em sua vida, precisava apartá-lo o
antes possível porque sua presença não lhe fazia nenhum
bem.
Continuou andando e fechou a porta após sair. Sentou-
se nas escadas de pedra e tampou o rosto. Não queria pensar
em nada, mas mesmo assim a mente não parava de meditar
sobre os infortúnios da vida. Em um passado quando seu pai
foi rogar o auxílio do duque e este se negou arrogantemente e
agora, o mesmo homem que não quis escutar sua versão dos
fatos, rogava-lhe que lhe pedisse algo para saldar sua dívida e
conseguir a paz. Seria uma opção acertada lhe pedir que lhe
devolvesse sua vida? Pouco depois os homens saíam e
William se apoiava em um deles para poder caminhar.
Beatrice se levantou para lhes facilitar o acesso. Quando
passou por seu lado, o duque fez com que parassem.
― Temos uma conversação pendente, senhorita Brown.
Direi a um dos meus criados a que venha recolhê-la o mais
cedo possível.
― Não temos nada do que falar, milord ― disse
abaixando a cabeça. ― Não me deve nada.
Os criados entenderam que a conversação tinha
finalizado e continuaram sua marcha até a carruagem.
Elevaram ao duque para sentá-lo corretamente. William jogou
a cabeça para trás e depois de fechar os olhos pensou: «Só lhe
devo minha vida, senhorita Brown».
VIII

― Está seguro? ― William tomava o café da manhã


enquanto escutava com atenção ao Brandon. Este lhe
explicava que o criado enviado para que acompanhasse a
senhorita Brown até Haddon Hall retornava outra vez
sozinho.
― Sim, sua Excelência ― afirmou o mordomo depois de
um sopro suave. A tarefa, apesar de parecer bastante singela,
estava sendo uma verdadeira agonia.
― É uma mulher muito teimosa. Quantas vezes foram
em sua busca? ― Pegou a xícara de chá e a levou para a boca
para ocultar o enorme sorriso que desenhavam seus lábios.
Aquele comportamento não era de se estranhar, e mais,
se ela tivesse aceitado algum de seus convites o teria
desapontado. Só uma pessoa com caráter firme seria capaz
de albergar um estranho em seu lar sem pensar na
repercussão que dito ato de valentia podia supor. Além
disso… desde quando uma frágil moça salvava a vida de um
desconhecido pondo em perigo a sua?
― Contando com a de hoje, sete. Os dias que você está
em casa desde o infortúnio ― esclareceu.
― Bom, então acredito que a melhor opção é me
apresentar ante a senhorita Brown e lhe perguntar o motivo
de suas contínuas negativas ― indicou pousando a xícara
sobre o prato e empurrou a cadeira para trás para se
levantar.
Pegou com força a bengala e caminhou para onde se
encontrava o mordomo. Tinha decidido visitá-la quando a
terceira negativa chegou até seus ouvidos. Entretanto
esperou recuperar-se de tudo para mostrar um aspecto
ótimo. Não queria que a mulher continuasse acreditando que
ante seus olhos se encontrava um ser débil, frágil. Desejava
que admirasse a pessoa que em realidade era, ao duque de
Rutland, um homem com caráter, firmeza, força e com
energia suficiente para assumir as consequências de seu
destino.
William estranhou sua repentina mudança de atitude.
Desde quando o duque de Rutland tinha despertado de sua
profunda letargia mental? Possivelmente a resposta se
escondia nela e, se era assim, precisava encontrar o antes
possível o por que.
― Diga ao cavalariço que prepare um cavalo. Partirei
quando o ajudante de câmara me vestir para a ocasião.
― Como desejar, sua Excelência.
Brandon, apesar de ter uma vontade imensa de rebater
aquela ideia, não estava lá para impedir os desejos de seu
senhor. Além disso, tantos anos ao seu serviço ofereciam a
experiência necessária para compreender que as decisões do
duque não podiam ser questionadas. Ele tinha nascido
teimoso e, se Deus velasse por sua vida, morreria sendo-o.
Enquanto o criado lhe ajudava a vestir-se, William
pensava na forma mais correta de iniciar uma conversação
com sua salvadora. Agradeceria ou lhe perguntaria o que
fazia vivendo em seus domínios? Esse mesmo pensamento
tinha estado perturbando-o durante a semana que esteve
recuperando-se. Sua preocupação não se devia a que a moça
habitasse em um lugar de suas terras, graças a isso ele
sobreviveu. Mas se perguntava uma e outra vez como tinha
chegado até ali. Teria se perdido? Ou talvez… tinha-lhe
acontecido algo tão dramático que decidiu abandonar seu
autêntico lar.
«Só preciso ficar sozinha». Essas tinham sido suas
palavras quando ele insistiu em que lhe devia um favor e que
podia lhe pedir o que ansiasse. Por que uma jovem que não
devia ter mais de vinte anos vivia sozinha à mercê dos
infortúnios de uma vida campestre? Se tivesse sorte, coisa
que duvidava, porque começava a conhecer o temperamento
da senhorita Brown, suas perguntas seriam respondidas.
― Bom dia, senhor. Seu cavalo está preparado ―
explicou o criado quando percebeu que a esbelta figura do
duque aparecia pelas cavalariças.
― Espero que desta vez as cintas não se rompam ―
apontou William ao mesmo tempo em que se dirigia para o
animal eleito.
― São correias novas, sua Excelência – indicou-lhe o
criado sem lhe olhar nos olhos. ― Têm o dobro de grossura e
proporcionam uma amarração mais segura.
― Bem… ― disse mal reparando na explicação do jovem.
Com passo firme aproximou-se do corcel e esperou que
o criado lhe ajudasse a subir. Quando esteve sobre o cavalo e
não sentiu a segurança que lhe proporcionava seu garanhão,
perguntou ao criado:
― Continuam a busca pelo Dalión?
― Sim, meu senhor. Mas não há rastro dele. Parece que
a terra o tragou…
― É mais fácil ter sido devorado por uns malditos
lobos… ― murmurou com os dentes apertados antes de
açular ao animal.
Depois de amaldiçoar a sorte pelo penoso destino que
teria vivido o cavalo, pensou em Beatrice, na solidão em que
se encontrava e na facilidade que teriam aqueles
depredadores para assaltá-la. A mera ideia de que ela
sofresse alguma briga violenta com estes, produziu-lhe
tamanho aborrecimento que notou como o coração palpitava
em sua garganta. A ira surgida só o fazia pensar em uma
coisa: tinha que arrastá-la até Haddon Hall. Não podia deixá-
la à mercê do nada.
Crê que aceitará sua proposição com um sorriso? ―
Refletiu sem diminuir a marcha. Acaso imagina a senhorita
Brown recolhendo seus petences e montando-se na garupa
do cavalo enquanto te agradece o oferecimento? Não, ela não
abandonará esse lugar jamais.
Mas apesar de saber que a negativa seria sua única
resposta, ele como bom jogador, tinha um ás na manga. Um
ás que seria a melhor alternativa para ambos: dar-lhe-ia de
presente a cabana, onde poderia desfrutar de sua ansiada
solidão, só se ela aceitasse passar uma temporada em
Haddon Hall. Seria um período curto de tempo, o suficiente
para que seus criados construíssem um muro de pedra ao
redor do refúgio e eliminassem a suja cerca com a qual ela se
acreditava protegida. William sorriu triunfante, era uma
opção muito apropriada e, sem dúvida alguma, Beatrice não
poderia rechaçar. Deste modo sua dívida estaria saldada e
por fim poderia deixar de pensar na jovem, porque desde que
a moça apareceu em sua vida, tinha deixado de aflorar as
cenas eróticas que tinha vivido com Juliette, para dar passo a
uma multidão de inquietações produzidas pela ditosa
senhorita Brown. Agora em suas noites não havia luxúria, a
não ser angústia por uma mulher tão enigmática, como
teimosa.
Beatrice acaba de limpar e dar de comer aos animais.
Levou a mão direita para seu rosto e tentou tirar o barro que
lhe tinha respingado após perseguir uma de suas ovelhas. O
animal tinha escapado por um oco da cerca e, assustado,
corria apavorado para o bosque. Por sorte para ambos, a
espantada criatura ficou presa entre duas raízes grandes de
uma árvore que se sobressaíam à superfície. Ela, muito
devagar, aproximou-se por trás e saltou sobre o animal,
voltando-se a se sujar da cabeça aos pés com o barro que
havia no terreno.
― Espero que isto a ensine a não fugir de mim ― dizia ao
animal enquanto que o mesmo caminhava depressa para
resguardar-se junto ao rebanho.
Apesar do esforço, ainda ficava um pouco de energia
para cortar lenha e preparar um lar quente. As chuvas
tinham cessado, mas o frio não e, se seu prognóstico sobre o
tempo não falhasse, hoje seria uma noite bastante gelada.
Depois de certificar-se de que o buraco estava arrumado e
que nenhum intrépido animal poderia escapar de novo,
dirigiu-se para o barracão de lenha para continuar com seu
plano. Entretanto, justo quando elevava o machado para tirar
o primeiro corte ao tronco selecionado, escutou os passos de
um cavalo avançar para onde se encontrava. Com o utensílio
na mão e aferrando-o com força, girou-se para a pessoa que
se aproximava. Se, se tratasse de outro criado do duque,
assustá-lo-ia e o ameaçaria para que partisse. Já estava
cansada da insistência do nobre. Não voltaria a apresentar-se
ali nem que morresse de fome!
― Senhorita Brown, foi assim que você recebeu os meus
emissários? Entendo então a razão pela qual se recusam a vir
em sua busca.
Beatrice ficou atônita ao descobrir que o próprio duque
era quem montava sobre o cavalo e sorria ao ver como
levantava a ferramenta afiada. Olhou-o sem pestanejar e se
sentiu feliz ao perceber que mal ficavam sequelas do passado
incidente. Embora algo chamasse com demasia sua atenção:
a longa juba escura e a espessa barba tinham desaparecido.
Agora a marca do fatídico duelo ficava à vista de todo aquele
que o contemplasse. Examinou-o com mais interesse e
reparou que ia vestido com o traje habitual para cavalgar. Do
alto do corcel parecia o homem que conheceu na festa da
senhora Baithlarin: forte, bonito e enigmático. Sem lugar a
dúvidas, depois dos dias de descanso tinha retornado o
famoso duque de Rutland.
― Bom dia, Excelência ― respondeu baixando as mãos e
abaixando a cabeça.
― Bom dia, senhorita Brown ― disse mostrando um
grande sorriso.
― Vejo que continua desafiando a morte.
― Só se tiver a certeza de encontrar uma boa pessoa que
tenha piedade de um homem tão desamparado como eu e
decida me salvar ― indicou com zombaria.
― Você confia muito na piedade dos outros… ― replicou
antes de agachar-se para recolher alguns pedaços de lenha
que tinha cortado no dia anterior. Embora cortar troncos
fosse uma ação muito habitual em uma camponesa, não lhe
agradava sentir-se observada e menos ainda quando a pessoa
que a olhava era o duque.
― Eu adoraria poder lhe oferecer minha ajuda, mas
como já sabe… ― o tom zombador do duque desapareceu de
repente para dar passo a uma voz suave, débil e inclusive
com um toque de tristeza.
― Posso fazê-lo por mim mesma, Excelência. Além disso,
poderia sujar esse bonito traje e estou segura de que seu
ajudante de câmara se zangaria muitíssimo ― explicou ao
mesmo tempo em que caminhava para a entrada de sua casa.
Desejava entrar na intimidade de seu lar, fechar a porta
e deixá-lo ali fora. Desejava que partisse e que não a
perturbasse mais, algo muito difícil se o motivo daquela visita
fosse lhe recordar a ditosa promessa.
― Senhorita Brown… ― disse enquanto fazia com que
seu cavalo caminhasse ao redor da cerca. ― Por que se negou
a aceitar meu convite?
― Como pode comprovar, tenho muito trabalho e não
posso perder tempo aceitando visitas que…
― Meu convite lhe faria perder tempo? ― William
arqueou as sobrancelhas e a contemplou atentamente.
Assim como a última vez, estava coberta de barro. Não
entendia como lhe resultava tão difícil estar arrumada em
algum momento do dia. A única explicação que encontrou foi
que, ao estar sozinha e não poder cercar conversação com
ninguém, teria descoberto certo consolo em rolar pelo chão e
cobrir-se de lodo.
― Não quis dizer… ― começou a desculpar-se, mas
depois de olhar com atenção o rosto do duque e advertir que
este não cessava de mostrar um sorriso zombador, descobriu
que suas palavras não lhe tinham causado o aborrecimento
que ela tinha suposto. Irada, aferrou-se com força às lenhas e
lhe perguntou de mau humor: ― A que devo a honra de sua
visita, senhor?
― Vim lhe recordar que temos algo pendente e eu
gostaria de resolver tal questão o antes possível ―
argumentou com seriedade.
― Acaso o excelentíssimo duque de Rutland tem uma
terrível insônia por saber que tem uma dívida pendente com
uma mulher? ― Sorriu de orelha a orelha triunfante.
Esperava que após sua descarada atitude se ofendesse e a
deixasse por fim em paz.
― Insônia… ― virou os olhos para a esquerda como se
estivesse duvidando sobre como nomear tal situação. Logo
sorriu, olhou-a nos olhos e continuou: ― Não, eu não o
denominaria dessa forma, mas é certo que você perturba
minha mente.
― Eu lhe perturbo?! Como uma humilde camponesa
pode fazer tal coisa? ― Prosseguiu com um tom mordaz.
― Antes, senhorita Brown, minhas noites estavam
cheias de luxúria porque eu revivia momentos íntimos com as
minhas amantes. Entretanto, desde que você apareceu em
minha vida, não afloraram as ditas imagens. Quando fecho os
olhos só vejo você ― explicou com tom sereno, impessoal,
embora por dentro não cessasse de rir.
― Como diz?! ― Beatrice abriu os olhos como pratos e
sentiu fogo em suas bochechas. A confissão a desconcertou
tanto que se esqueceu de que segurava as lenhas e, quando
levou as mãos para o rosto para que o duque não observasse
o rubor de seu semblante, os troncos caíram sobre seus pés.
― Ai! ― exclamou de dor.
William agarrou com força as rédeas do cavalo com a
mão sã e desceu com rapidez do cavalo. Em nenhum
momento reparou que sua perna lhe doeria ao tocar o chão.
Só pensava que, por tentar apaziguar o forte caráter da
mulher, tinha-a ferido. Abriu a débil grade e caminhou com
firmeza para Beatrice, que tinha se sentado sobre as escadas
e agarrava um pé enquanto brotava de seus olhos uma
centena de lágrimas.
― Sinto muito, perdoe-me. Não foi minha intenção lhe
causar dano algum. Só queria continuar com a ironia que
estávamos mantendo em nossa conversação. ― Aproximou-se
tanto que pôde observar o brilho daquelas gotas salinas. ―
Deixe-me examinar seu pé. ― Estendeu a mão útil e tocou
com delicadeza a pantorrilha, o tornozelo e o peito do pé da
jovem.
― Não tinha vindo procurando desculpar sua dívida?
Pois acaba de saldá-la. Eu lhe curei e agora você… ― voltou-
se para o duque com tal rapidez que não percebeu a cercania
que existia entre eles. Durante uns escassos instantes,
Beatrice pôde respirar o ar que o duque emanava de sua boca
e vice versa. Seus olhos claros se projetavam na escuridão do
olhar do homem. Aturdida, levantou-se e apoiou o pé sobre o
chão, guardando para si a dor que sentia. Colocou suas mãos
na cintura e indicou: ― Como lhe disse com antecedência,
não necessito que você me ofereça nada. Se quiser que sua
mente deixe de lhe mostrar meu rosto e volte a ter aquelas
cenas que tanto lhe agradavam, pense que vivo em uma casa
que lhe pertence e que devido à sua imensa gratidão posso
dormir sob um teto.
― Senhorita Brown, peço-lhe mil desculpas por minhas
palavras, estão fora de lugar. Não estou acostumado a me
comportar desta forma ante pessoas respeitáveis ― explicou
ao mesmo tempo em que se elevava do chão.
― Respeitável? Pensa que sou uma pessoa respeitável? ―
Beatrice esboçou uma gargalhada tão intensa que ambos
escutaram o eco da risada no bosque.
― Esse é o meu apreço por você desde que me salvou a
vida. ― William se mantinha de pé a curta distância da
mulher. Ela, ao ver que tinha a intenção de avançar para
onde estava, começou a perambular de um lado para outro.
― Não me conhece, sua Excelência. Não me conhece e
não pode fazer uma conjectura depois de um ato de piedade.
Qualquer ser humano que tivesse passeado pelo bosque e
encontrasse uma pessoa ferida gravemente teria feito o
mesmo que eu. Isso não é ser respeitável e nem piedosa ―
declarou mal-humorada.
― Pode pensar o que desejar, mas me sinto na obrigação
de protegê-la igual você fez comigo. ― Seu tom de voz tinha
recuperado a dureza, o julgamento e a irrevogabilidade
próprias de seu título.
― Não lhe basta me dar abrigo? Não lhe parece que viver
em uma casa que lhe pertence já é bastante amparo? ―
Beatrice, até agora se movendo sem parar, girou-se para o
homem e o olhou desafiante.
― Não! ― Exclamou o duque. ― Deixá-la em meio de um
nada, desamparada e rodeada de lobos famintos não me
parece uma opção acertada!
― Isso é o que lhe preocupa, sua Excelência? Que minha
presença aqui lhe faça sentir-se um homem bondoso e que
um dia monte em seu precioso cavalo, galope até a cabana e
se encontre com um corpo esquartejado? ― Elevou tanto a
voz que até ela mesma se surpreendeu do trato que estava
oferecendo a um homem de sua classe.
― Preocupa-me, perturba-me, inquieta-me ― disse
William caminhando para ela com passo firme e esquecendo
a dor constante de sua perna ― que um dia apareça por estas
bandas e veja que não fui capaz de cuidar de uma mulher
que quase pereceu para me salvar a vida. Parece-lhe acertada
minha conjectura, senhorita Brown?
Estavam tão próximos que se o homem estendesse sua
mão útil poderia tocar as costas feminina, puxá-la para ele e
abraçá-la com força. Porque podia ter sido um calhorda, um
ser sem coração, sem humanidade, mas reconhecia quando
uma pessoa precisava sentir o afeto de outra. Tinha
acontecido a ele mesmo e acontecia nesse momento à
senhorita Brown. Entretanto, William conhecia a razão de
sua desprezível atitude. Agora lhe faltava averiguar o motivo
que tinha aquela jovem para não querer saber nada do resto
do mundo.
― Está bem ― disse Beatrice depois de um leve silêncio.
― Você quer pagar sua dívida e eu quero que me deixe viver
em solidão. Então pagará sua dívida se me conceder esse
desejo.
― Quer que ninguém a incomode? Essa é a sua petição?
― William franziu o cenho e apertou a mandíbula.
― Sim, isso é o que anseio ― afirmou em um tom mais
tranquilo e olhando para o chão.
― Se ficar só e desprotegida é o que deseja, isso é o que
obterá. Bom dia, senhorita Brown. ― Golpeou as botas pelos
calcanhares, abaixou uns centímetros à cabeça e se dirigiu ao
cavalo.
Tinha tanta raiva em seu corpo, encontrava-se tão
alterado, que aquele estado de enfurecimento lhe deu a força
necessária para agarrar as rédeas do cavalo e subir sem
ajuda. Jogou uma última olhada à Beatrice e açulou com
tanta intensidade o animal que avistou seu lar antes do
esperado.
IX

― O senhor quer lhe ver na biblioteca. ― Mathias, o


cavalariço correu para a casa, para explicar ao mordomo o
que tinha acontecido depois da chegada do senhor, fazia
poucos minutos.
― Como que não requereu os meus serviços para
desmontar? ― Perguntou inquieto Brandon.
O que lhe contava o jovem estava deixando-o atônito. A
forma habitual de atuar, era esperar ao senhor com a bengala
na mão e que este se apoiasse na vara de madeira para subir
com segurança as escadas da residência. Entretanto, o moço
lhe informava que desceu ele mesmo do cavalo e que não
precisou requerer o auxílio de nenhum criado, posto que
acessasse ao interior da casa sem mostrar dor ao caminhar.
― Como lhe digo, senhor Stone. Quando agarrei as
rédeas de Corsário, nosso duque me deixou muito claro que
desejava vê-lo o antes possível nessa estadia ― explicava com
certa excitação.
― Que comportamento diz que tinha nosso senhor? ―
Hanna, muito atenta ao bate-papo, interrompeu-lhes.
― Encontrava-se muito agitado. Acredito que também
bastante zangado ― respondeu Mathias.
― O que lhe terá acontecido? ― Disse a mulher ao
mesmo tempo em que retomava ao trabalho.
― Está bem, pode voltar para as cavalariças ― indicou
Brandon desejando saber o que rondava pela cabeça de sua
esposa.
Tinha notado o leve sorriso da cozinheira e esperou com
impaciência que o jovem se afastasse o suficiente, para que
não pudesse escutar a conversação. Caminhou para ela,
apoiou-se na mesa central e, depois de observá-la uns
instantes cortando verduras, perguntou-lhe:
― O que ronda nessa sua cabeça?
― A mim? ― Respondeu abrindo os olhos como pratos e
elevando as grisalhas sobrancelhas. ― Nada, não penso nada.
― Não minta, Hanna. Conheço cada gesto que faz
quando sua mente não para de refletir. Vamos ver… o que
você crê que pode ter perturbado a paz que o nosso senhor
teve durante estes dias?
― Não me acusa sempre de ter uma percepção errônea
do mundo? – Cruzou os braços e franziu o cenho.
― Quer que lhe suplique isso? Quer que me ajoelhe
como o fiz para poder dormir de novo em nosso leito? ― O
semblante de Brandon mostrava desconcerto e um pouco de
tristeza.
― Se não fosse tão severo, você mesmo acharia a
resposta ― indicou com tom suave e quente.
― Hanna, por favor…
― Se tem tanto interesse, explicarei-lhe isso. Mas não
me acuse de ter alucinações ou pensar extravagâncias. ―
Esperou que seu marido replicasse, mas ao vê-lo tão calado e
confuso decidiu lhe expor a ideia que tinha já há uns dias,
mais exatamente desde que o duque retornou do incidente,
rondando em seu cérebro. ― Se retroceder um pouco no
tempo dar-se-á conta de que lorde Rutland sempre levou o
cabelo perfeitamente cortado. Em mais de uma ocasião
comentou que não entendia como um homem podia pentear-
se como uma mulher, não é? ― Brandon assentiu. ― E de
repente um dia, disse ao seu ajudante de câmara que não lhe
cortasse o cabelo e deixasse que seu rosto se cobrisse de
escuridão. Lembra-te quando foi?
― Dois meses depois de celebrar o duelo ― respondeu
com rapidez.
― Em efeito, e a razão foi…?
― Queria tampar a cicatriz. Imagino que pensou que
desta forma deixariam de murmurar sobre o acontecido.
― Pois eu penso que se deveu à repulsão que encontrou
nos rostos daquelas mulheres que antes o admiravam.
Resultou-lhe muito duro passar de ser um homem elegante e
formoso a uma espécie de monstro ao qual ninguém desejava
contemplar.
― Nosso duque não pode ser tão banal, querida! ―
Exclamou antes de esboçar uma gargalhada.
― Bom, essa é uma ideia muito típica de um homem,
catalogar certos aspectos importantes como banais.
Entretanto, se pensasse do ponto de vista de uma mulher,
descobriria que não é tão desatinado. Pensa um pouco
querido e una os acontecimentos. Por exemplo, desde quando
nosso senhor necessitou os serviços de uma cortesã?
Brandon deixou de sorrir e franziu o cenho enquanto
meditava a resposta. As hipóteses de Hanna pareciam ter um
pouco de sentido. Embora ele conhecesse o homem desde que
nasceu e jamais tivesse deduzido que a opinião que possuíam
as mulheres sobre ele poderia lhe afetar tanto.
― Imagino que esse olhar é a resposta à minha pergunta
― manifestou a mulher depois de observar como seu marido
entrecerrava os olhos.
― Só estou pensando…
― Pois segue pensando, meu esposo, segue pensando…
― agora era ela quem sorria ao ver o desconcerto que suas
palavras ocasionavam ao seu cônjuge. Devia sentir-se
confuso, posto que ele sempre se gabasse de conhecer à
perfeição a sua Excelência, mas havia certos temas que lhe
escapavam.
― O que tem a ver tudo isso com a atitude estranha que
hoje teve sua Excelência?
― De verdade que não pode suspeitar o que ocorreu?
― Não, Hanna. Não sei o que pôde acontecer. O único
que te posso dizer é que esta manhã decidiu visitar a moça
para lhe perguntar por que recusou os convites que lhe
ofereceram.
― Pois está muito claro, Brandon. Ela não quer vir a
Haddon Hall e muito menos quando a tratou pior que a um
cão pulguento ― indicou zangada.
― Como queria que a tratasse? Se por acaso não o
recorda, ela se ofereceu como cortesã e depois do maldito
serviço e de lhe pagar uma boa soma de moedas, o duque me
informou que lhe negasse a entrada de novo.
― Mas lhe salvou a vida! ― Exclamou irada. ― Além
disso, ele não sabe que ela… ― ficou em silêncio pensando se
cabia a possibilidade de que o duque tivesse descoberto a
verdade. Mas o negou com veemência, se seu sexto sentido
não lhe desapontava, a jovem jamais lhe confessaria o
acontecido àquela noite.
― Hanna! ― Chamou Brandon ao vê-la calada e
refletindo algo que parecia entristecê-la.
― O jovem duque pediu, após retornar à casa que lhe
recortassem a barba e que fizessem desaparecer o extenso
cabelo, não é? ― Alterou a consciência para a direção que
tinha tomado à conversação.
― Certo.
― E não perguntou a que se devia essa mudança de
opinião? Porque o único que tinha acontecido foi que uma
moça desconhecida o lavou, curou-lhe as feridas e, além
disso, percorreu um comprido trajeto para nos informar sobre
seu paradeiro. Sem esquecer que depois, o duque nos
comentou que havia uma manada de lobos oculta no bosque
e que era perigoso passear por ele.
― Certo, está me dizendo que a jovem pôs em perigo sua
vida para salvar a de nosso senhor, mas isso não responde à
pergunta de por que sua Excelência decidiu seguir os
conselhos do doutor para se curar com prontidão, nem essa
insistência em fazer desaparecer a espessa barba e cortar o
cabelo ― explicou exasperado cruzando seus braços no peito.
― De verdade que não é capaz de entendê-lo? ―
Perguntou elevando um pouco a voz ao sentir-se tão
frustrada.
― Não, não sei aonde quer chegar com as hipóteses que
me explica.
― OH, querido! Por que não abandona esses
pensamentos repletos de lógica e deixa que se expresse seu
coração? ― A mulher se aproximou de seu marido, apanhou o
rosto deste entre suas mãos e o olhou com ternura.
― Meu trabalho exige utilizar à lógica. Possivelmente a
desenvolvi mais do que outras pessoas.
― Deduzo então que não tem nem ideia do que poderia
pedir o duque quando aparecer ante ele, não é?
― Pode pedir qualquer coisa…
― Pois eu vou me deixar levar pelo que me dita o
coração, e este me diz que te ordenará realizar algo dessas
coisas que fazem os homens poderosos para deixar a jovem
vivendo na cabana o tempo que desejar. ― Aproximou-se dos
lábios de seu marido e lhe deu um pequeno beijo.
― Isso que diz é uma loucura e segue sem me explicar
por que retornou tão enfurecido após visitá-la.
― Querido meu, nosso duque está acostumado a
ordenar e que todo mundo acate seus mandatos. Se essa
jovem for tão teimosa como acredito que é, não terá aceitado
a proposição que tinha pensado para ela. Daí esse mau
humor. Agora, em vez de ficar estorvando em minha cozinha,
vai e comprova se os pensamentos loucos de sua esposa não
são certos. ― Apartou-se, dirigiu-se para os fogões e começou
a mover a comida que serviria em breve.
Brandon a observou durante uns instantes, ao mesmo
tempo em que meditava sobre as conclusões que lhe tinha
dado, pareciam muito sensato, mas estava seguro de que não
eram corretas. O duque deveria ter outro tipo de razões para
mudar seu comportamento com tanta rapidez e, embora sua
esposa expusesse como se fosse o mais normal do mundo,
sua Excelência não podia sentir nada por uma mulher assim.
Era certo que lhe devia a vida, mas podia recompensá-la com
outra bolsa de moedas. Se a oferecesse ela a aceitaria de bom
grado, igual fez na última vez. Jogou uma olhada às costas de
Hanna e depois de respirar com intensidade dirigiu-se para a
biblioteca, o lugar onde o duque lhe esperava.

William perambulava de um lado para outro sem notar a


dor insistente da perna. Estava tão zangado, encontrava-se
tão furioso, que nem a dor lhe impedia de mover-se como
desejava. De repente, ao descobrir que as cortinas da janela
estavam amarradas aos ganchos metálicos, aproximou-se
dela e ficou observando o exterior. Até esse momento não o
tinha apreciado como era devido, sempre lhe pareceu um
lugar cheio de vida, aprazível e, é óbvio, seguro ante qualquer
adversidade. Entretanto, depois da desafortunada visita à
senhorita Brown, toda aquela percepção desapareceu para
dar passo a uma menos serena. Elevou o olhar e o cravou no
arvoredo que começava a finalizar no imenso jardim. Ali, ao
amparo da abrupta natureza, encontrava-se um perigo
importante, mais do que se imaginou alguma vez.
― Mulher teimosa! ― Exclamou com energia antes de
girar-se sobre seus calcanhares e dirigir-se para as garrafas
de bebidas colocadas sobre uma cômoda.
Pegou o copo, encheu-o de brandy e, justo quando iria
dar o primeiro gole, sopesou se beber até cair era o mais
acertado. Depois de meditá-lo depositou o copo sobre a
superfície de madeira encerada e caminhou por volta de uma
das poltronas, não seria apropriado que ordenasse uma coisa
tão importante ao Brandon em um estado péssimo de
embriaguez. Devia mostrar serenidade, retidão e solidez
porque do contrário seu mandato seria desprezado.
Levou a mão ao bolso de seu colete e tirou o relógio.
Tinha entrado na biblioteca há quase quinze minutos e o
mordomo ainda não tinha feito ato de sua presença. Ficou de
pé de novo e, franzindo o cenho, deu vários passos para a
porta com a intenção de ir buscá-lo ele mesmo. Antes de
aproximar-se da saída, Brandon pedia permissão para entrar.
― Excelência ― disse o homem ao mesmo tempo em que
realizava uma ligeira inclinação. ― Desejava ver-me?
― Solicitei sua assistência faz quinze minutos, a que se
deve a demora? ― Perguntou zangado.
― Minhas desculpas, meu senhor. Houve um problema
na cozinha e tive que resolvê-lo sem demora ― explicou.
― Aconteceu algo à senhora Stone? ― Perguntou um
pouco mais acalmado.
Hanna se tinha convertido, com o passar dos anos, em
uma mãe para ele. Desde que tinha memória recordava que
os beijos, os abraços e os consolos que necessitou em sua
infância sempre os ofereceram ela. A mulher também evitou
em várias ocasiões que seu pai lhe pusesse o traseiro
avermelhado depois de fazer, tanto ele como Lausson, uma
ou outra traquinagem.
― O mesmo de sempre, meu senhor. Discutimos se deve
acrescentar mais verduras ao menu do dia ― indicou.
Esperava que aquela desculpa lhe contentasse e
deixasse de lhe interrogar por que se fosse assim, ele não
poderia continuar mentindo. Ao ver que os ombros do duque
se relaxavam e que mostrava um leve sorriso na comissura
dos lábios, Brandon inspirou profundamente e deu graças a
Deus por sua benevolência.
― Hoje parece que o sexo feminino está inquieto… ―
comentou enquanto retornava à poltrona para sentar-se.
Nesse instante, ao entender que não era o único homem que
tinha sido atacado esse dia por uma mulher, começou a
relaxar-se e a perceber, com mais intensidade, as cãibras
terríveis que emitia a perna machucada.
― Como diz? ― Quis saber Brandon ao não entender
muito bem o comentário do duque.
― Nada. Foi só uma consideração. ― Reclinou-se no
assento e apertou os dentes ao notar aquela incessante dor.
― Posso lhe perguntar, sua Excelência, o que deseja? ―
O mordomo ao observar como a testa de seu senhor se
enrugava com força, deduziu que estava padecendo de suas
terríveis dores.
Sorriu sutilmente ao pensar que Hanna se equivocou
com suas especulações. Sem lugar a dúvidas o duque
demandava sua presença porque precisava ser atendido por
sua dor.
― Quero que faça chamar o senhor Gibbs, que venha à
Haddon Hall o antes possível ― apontou com calma ao
mesmo tempo em que movia devagar a perna machucada.
― O senhor Gibbs? ― Perguntou surpreso antes de
morder o lábio por sua falta. Não era ele quem podia exigir
explicações.
― Sim ― respondeu William evitando a inquietação do
mordomo.
Sabia que chamar seu administrador causaria alguma
incerteza sobre o serviço. A última vez que o fez foi para ceder
à sua mãe a residência que tanto ansiava e lhe oferecer a
soma que demandava depois da morte de seu pai. Entretanto,
desta vez era diferente. Um dos bens obtidos por herança iria
às mãos de uma mulher bondosa que sim o merecia, uma
mulher que lhe tinha salvado a vida, não como no caso de
sua mãe, destruido-a. ― Preciso falar com ele o antes
possível, tenho que fazer constar certas mudanças legais… ―
girou-se para o fogo, contemplou-o durante uns instantes e
ao dar-se conta de que Brandon seguia na estadia moveu
com suavidade a cabeça para ele: ― Acontece algo?
― Não, senhor, só me preocupo com você. Esperava que
sua chamada se devesse ao interminável padecimento que
sofre em sua perna do tropeção. Conforme fui informado pelo
criado, você mesmo desceu do cavalo depois do passeio que
realizou pelo bosque ― disse entre desculpas. Esperava que o
duque não fosse capaz de perceber a insistência para
averiguar o que pretendia.
― Já sabe que fui visitar a senhorita Brown ― comentou
William entreabrindo os olhos.
― Em efeito, e conseguiu que finalmente aceite sua
proposição? ― Insistiu sem mostrar em seu rosto a
importância que lhe provocava conhecer a verdade. Se este
dizia que não, ao final teria que humilhar-se de novo ante sua
esposa porque, outra vez, estaria certa.
― Não, não a aceitou. Decidiu comprazer meu desejo de
responder à sua piedade ― falou com raiva – rogando-me que
a deixe desamparada naquele lugar miserável.
― Quer viver em uma propriedade que não lhe pertence?
― Soltou sem pensar.
― A questão não é se deseja viver na cabana de caça,
mas sim o que pretende a senhorita Brown é lutar dia a dia
só, ante a adversidade e periculosidade de um lugar tão
inóspito ― explicou apertando a mandíbula.
― Não lhe ofereceu uma bolsa de moedas? Possivelmente
isso lhe tivesse mudado…
― Senhor Stone! ― Gritou William zangado. ― Acredita
que a mulher que pôs em perigo sua vida para salvar a minha
merece esse trato tão depreciativo?
― Sinto muito, Excelência ― manifestou abaixando a
cabeça e cravando o olhar no chão. ― Desculpe minhas
palavras, mas tem que compreender que se a senhorita
Brown tiver decidido alojar-se em um lugar repleto de perigos
e esta vontade lhe causa inquietação, eu devo cuidar da sua
saúde.
― Esquecerei seu comentário porque tanto você como a
senhora Stone são as únicas pessoas às quais considero
família. Além disso, entendo que essa atitude inapropriada é
como bem diz, para seguir me protegendo, mas nunca volte a
se intrometer neste tema. O que a senhorita Brown e eu
combinamos se cumprirá.
― Sim, senhor. É óbvio. Agora mesmo direi a um dos
criados que se dirija até o lar do senhor Gibbs e lhe faça
saber que você deseja vê-lo o antes possível. ― Brandon
jogava uns passos para trás sem levantar a cabeça. Não
parava de meditar sobre o desejo do duque, a amalucada
hipótese de sua esposa e o que esta riria quando lhe narrasse
à conversação.
― Necessito de uma coisa mais… ― assinalou antes que
o ancião partisse. Brandon elevou o semblante e o observou
com atenção. O jovem olhava para as intensas chamas da
fogueira. Contemplava-o com tanta ferocidade que podia ver
de onde estava como o fogo se projetava nos seus olhos. ― De
todos os que trabalham para mim, ― prosseguiu em tom
firme ― há alguém que tenha sua mais absoluta confiança? ―
Ante o desconcerto que mostrou o criado, William continuou:
― Tenho mil dúvidas sobre a senhorita Brown e necessito que
alguém me ofereça informações sobre ela.
― Mas, milord, por onde começaremos? ― Brandon
abriu tanto os olhos que quase saltaram do rosto. O que
estava pedindo o duque era uma tarefa impossível de
concluir. De onde procedia? Que lugares visitou antes de
refugiar-se na cabana?
Então sentiu que o coração paralisava. Possivelmente as
únicas pessoas que sabiam algo da jovem eram sua esposa e
ele, embora, como era lógico, evitaria lhe informar sobre isso.
Entretanto, Hanna tinha descoberto algo que não cessava de
lhe rondar a cabeça e, visto o pedido do duque, talvez
indagasse mais sobre isso.
― Brandon! ― Exclamou William ao observar a palidez
do rosto deste.
― Sinto muito, sua Excelência, estava meditando sobre
a pergunta que me realizou ― mentiu e voltou a pedir piedade
a Deus.
― E? ― Insistiu.
― Neste momento a única pessoa em que confio, além de
em minha querida esposa, é no Mathias, o cavalariço. Sei que
é muito jovem e talvez não consiga abandonar as cavalariças
para lhe servir no interior da casa, mas é mais fiel do que um
cão e mais calado que um mudo ― disse com solene
segurança.
― Bom, pois pedirá ao jovem que averigue tudo o que
possa sobre o sobrenome Brown. Se minhas conjecturas não
forem errôneas, não deveria viver muito longe, do contrário
não conheceria este lugar.
― Pensou meu senhor, que poderia não ser seu
verdadeiro sobrenome? Parece-me estranho que uma jovem
abandone seu lar, deseje apartar-se de todo ser humano, dita
viver sozinha o resto de sua vida e responda com sinceridade
ao lhe perguntar por seu nome. ― Brandon não queria que o
duque se frustrasse se não achasse o que procurava. Se lhe
aturdia tanto uma mera visita a jovem, o que aconteceria se o
que encontrasse não fosse de seu agrado?
― Que o jovem se dirija para Rowsley, avise ao senhor
Gibbs e comece a indagação entre os aldeãos. Se minha
intuição não me falhar, embora a senhorita Brown não seja
daí, tem que conhecer alguém desse lugar. De que outra
forma ela adquiriria os animais que cuida e seu alimento? ―
Explicou com aparência firme. Entretanto, a conjetura do
ancião não cessava de lhe golpear a cabeça.
Era certo que, quando lhe perguntou por seu nome,
Beatrice soltou-o sem pensar, mas seu sobrenome o disse
com certo temor. Caberia a possibilidade de ter sido
enganado? E se era assim, por quê? Aqueles pensamentos só
aumentavam sua ânsia de averiguar quem era aquela jovem e
por que, de tudo o que pôde lhe pedir, rogou-lhe ficar
sozinha.
― Se sua Excelência não tiver nada mais que me dizer,
agora mesmo falarei com o criado para que comece o antes
possível com seu novo trabalho.
― Deixe-lhe bem claro que não deve falar com ninguém
disto ― acrescentou.
― É óbvio. ― Depois de despedir-se como era devido,
Brandon saiu da biblioteca e se dirigiu com passo firme para
a cozinha.
Deveria explicar à Hanna o acontecido. Deixaria que se
vangloriasse de seu triunfo e, depois do bate-papo que obteria
sobre quão inteligente era e o pouco que a valorava, pediria-
lhe que recordasse com exatidão aquilo que tanto lhe chamou
a atenção na jovem. Possivelmente essa era a pista que
deveriam seguir porque, se não estivesse equivocado, o
sobrenome, o ter estado com outros homens, o proceder de
uma família de camponeses e tudo aquilo que relatou à sua
benevolente esposa era mentira.
X

O frio era tão intenso que atravessava toda a pele até


alcançar os ossos. Beatrice tentou avivar um pouco o fogo,
mas sem troncos para jogar sobre as brasas, não podia
conseguir uma grande proeza. Abraçando-se com força e
esfregando os braços de cima a baixo, aventurou-se a abrir a
porta para confirmar que no galpão de lenha não havia
nenhum triste ramo para lançar à chaminé. Em efeito, sobre
o chão não havia nada. Tinha gasto tudo o que compilou até
a volta dos lobos, e agora lhe dava um medo atroz sair como
outras vezes a procurar alguma árvore caída para poder
arrastar até ali. Era perigoso. Eles a vigiavam. Cada vez que
saía, cada vez que caminhava ao redor da cerca podia sentir
aqueles olhos diabólicos cravando-se em seu corpo. Eram
incansáveis, mais do que tinha imaginado. Inocentemente
tinha pensado que, assim como na primeira vez, voltariam a
partir. Mas esta ocasião era diferente, agora tinham comida
perto, só deviam esperar o momento apropriado para atacar e
encher seus estômagos.
Zangada, fechou a porta e se deitou sobre o leito. O
único a fazer até que chegasse o novo dia era deitar-se e
cobrir-se com as colchas compradas no povoado. Agasalhada
com aqueles objetos, acomodou a cabeça no almofadão e
olhou ao teto. Estava cansada de lutar, de sobreviver dia após
dia. O que em um princípio lhe pareceu a melhor opção para
aguentar aquele desastroso sofrimento, nesses momentos não
a convencia. Achava-se no meio do nada com comida
suficiente para alimentar-se, mas impossível de cozinhar pela
falta de fogo. Levava dias roendo verduras recolhidas da
terra, tentando esquentar caldos que não terminavam de
ferver, e sentia cada vez mais frio.
Levantou as mãos para seu rosto e observou que já não
eram de cor rosada, começavam a ser malvas e isso não era
bom sinal. Colocou-as sob as mantas e as esfregou com os
lençóis para fazê-las entrar em calor, mas apesar do esforço
mal notou melhoria. Resignada pelo terrível final que
começava a chegar, girou-se para a direita. Dali podia
contemplar a brilhante e reluzente lua. Aquela noite era a
segunda vez que a via desde a partida do duque zangado e
aceitando sua única condição. Beatrice suspirou
profundamente ao recordá-lo. Não sentia compaixão nem
afeto por esse homem, mas pensava nele de vez em quando e
como em certos momentos lhe pareceu perceber que desejava
aproximar-se e abraçá-la. Teria gostado se o fizesse. Apesar
da fúria que a invadia ao rememorar a atitude autocrata
mantinha quando seu pai lhe pediu ajuda, teria aceitado seu
abraço de bom grado. Fazia muito tempo que ninguém a
consolava, fazia muito tempo que não apoiava sua cabeça no
ombro de uma pessoa e se consolava entre lágrimas.
Entretanto tinha tomado uma decisão e se ele a houvesse
visto débil ou aflita não lhe teria concedido seu desejo.
Voltou a mover-se na cama de armar, virou-se para o
outro lado, cobriu-se até a cabeça e tentou dormir. Precisava
descansar, precisava afastar-se do lugar onde vivia embora
fosse somente em sonhos.
Beatrice sonhava que estava junto à sua mãe, que
tagarelava sem cessar sobre a próxima celebração a que
deviriam assistir. Seu tom era doce, quente, porque sabia que
ela não aceitaria de bom agrado em assistir de novo a um
evento cheio de homens pomposos e de mulheres orgulhosas
pelas joias penduradas em seus pescoços. Zangada,
depositou o bastidor sobre a cadeira que tinha junto a ela e
se levantou do assento.
― Não pode me obrigar a isso, mãe! ― Bramou irada.
― Não é uma obrigação, é um acontecimento social ao
qual deve assistir ― indicava com calma.
― Acaso essa descrição não é o mesmo que me forçar a
realizar algo que não desejo? ― Arqueou as sobrancelhas e
colocou as mãos na cintura.
― Eu não observo tal apreciação, senhorita, e em seu
lugar sentiria-me adulada de ser convidada por um homem
tão…
Um horripilante ruído a sobressaltou, despertando-a
bruscamente do sonho. Apartou os lençóis e caminhou para a
janela para tentar descobrir o que ocorria no exterior.
― Meu Deus! ― Gritou com força ao observar a cena
mostrada na escuridão noturna. Sem pensar duas vezes
correu para a porta e agarrou com força o pau que pendurava
sobre a parede de pedra. ― Malditos sejam! Deixem-nos em
paz! ― Continuou vociferando.
Os alaridos de seus animais eram insanos. Beatrice,
ignorando o medo que a invadia, avançou sem titubear para o
pequeno terreno onde se encontravam as ovelhas, as galinhas
e os quatro porcos. Estes gritavam de terror. Uns tentavam
fugir das garras de seus assassinos, outros jaziam no chão
agonizando. Elevou a vara e começou a atirar golpes aos
causadores daquele massacre, mas nenhum deles se voltou
para defender-se. Parecia que não lhes importava sua
presença, como se seus ataques não fossem perigosos.
Enquanto tentava que parassem de aniquilar tudo,
notou o escorregar de lágrimas por suas bochechas e o som
de seus próprios gritos retumbando em seus ouvidos. Pouco a
pouco suas forças foram diminuindo, possivelmente se
reduziram com mais rapidez quando observou atônita e
impotente como os lobos apertavam com força suas
mandíbulas nos pescoços dos desprotegidos animais e os
arrastavam para o interior do bosque.
Em estado de choque foi caminhando para trás. Queria
resguardar-se na cabana porque, até o momento, eles tinham
decidido não a atacar. Sem soltar o pau girou-se com
brutalidade e subiu os quatro degraus de pedra que a
conduziriam até sua guarida. Estava a ponto de alcançar o
objetivo quando sentiu a espetada de umas adagas rasgando
a carne de sua pantorrilha. Ao mover a cabeça para a direção
de onde procedia a imensa dor observou uns olhos escuros e
uma pelagem cinza. Era o lobo que a espreitava, que a
atemorizava com seus intensos uivos.
Sem pensar elevou o pau e lhe golpeou com força no
focinho. Os dentes do animal se cravaram ainda mais em sua
perna, fazendo-a gritar com tanta força que ficou exausta. A
besta, ao sentir o dano, abriu a boca e a soltou, momento que
aproveitou para correr para o interior da casa, fechar a porta
e apoiar as costas sobre ela. Escutou o caminhar da fera.
Rondava pelos arredores da cabana tentando encontrar um
oco para acessar e finalizar seu propósito. Entretanto, as
janelas estavam seladas, salvo se saltasse e rompesse o
cristal, a atroz besta não poderia acessar.
Conforme passava o tempo e compreendia que estava a
salvo, suas forças foram se desvanecendo e começou a
escorregar pela folha de madeira até seu traseiro se apoiar no
chão. Seus olhos começaram a oferecer uma imagem
distorcida da cozinha. Sentia uma terrível queimação na
perna e notava o palpitar de seu coração nela. Tentou
levantar-se. Tentou fazê-lo. Mas foi impossível. Estava débil,
ferida e sem vitalidade. Tinha chegado seu fim. Percebia como
a vida partia em cada gota de sangue que emanava de sua
perna. Quis voltar a chorar, embora não lhe brotassem mais
lágrimas. Só pôde fechar os olhos e deixar chegar seu último
suspiro.
William mal tinha conseguido dormir. Cada vez que o
tentava, um horrível pesadelo o fazia abrir de novo os olhos.
Esgotado por lutar contra sua própria vontade, levantou-se
da cama e se colocou sobre a poltrona que se encontrava ao
lado desta. Não entendia com claridade seu pesadelo. Mal
tinha inquietações em sua vida cotidiana para sentir-se
daquela forma. O mais incômodo para ele tinha sido visitar
todos os que apareciam em sua casa, momento que
aproveitava para indagar sobre a senhorita Brown. Embora
nunca achasse a resposta que desejava. Não entendia como
uma tarefa tão singela estava se convertendo em um
tremendo calvário.
Durante as semanas seguintes à conversação com a
moça, o jovem a quem Brandon tinha encomendado a tarefa
de procurar algum dado sobre Beatrice, não encontrou nada
salvo a um casal de anciões que se apelidava igual e, que
conforme contaram ao criado, não tinham podido engendrar
nenhum descendente para continuar com seu legado. O
duque sopesou, depois de obter aquela informação, que a
ideia do engano não era tão descabelada, mas a descartava
cada vez que pensava nela, que propósito tinha para lhe
mentir? Ela não sabia quem era até que ele mesmo o
comentou. Aquilo não tinha sentido, a menos que fosse uma
criminosa fugindo de uma sentença proferida e pensasse que
ele, ao ter um importante cargo da nobreza, entregá-la-ia.
Mas também rechaçou essa ideia porque se a jovem tivesse
cometido um crime e se escondesse no lugar mais recôndito
do planeta para viver em liberdade, não teria arriscado sua
vida para salvar a de um desconhecido.
Levou a mão ao queixo e acariciou o espesso pêlo que
tinha deixado crescer de novo após compreender que
ninguém mais voltaria a observá-lo com normalidade.
Ninguém exceto ela.
Aturdido por seu inexplicável desassossego, levantou-se
do assento e se dirigiu para o balcão. Apesar do tempo gélido,
abriu as janelas e caminhou pelo terraço. O amanhecer
oferecia uma bonita e estranha luz que, ao iluminar os
hectares do arvoredo onde habitava a moça, davam-lhe um
matiz menos sinistro. Mas o perigo espreitava
constantemente, sobretudo aquela noite. Tinha ouvido-os
durante as horas nas quais esteve acordado e em mais de
uma ocasião sentiu medo, apesar de encontrar-se
resguardado na mansão.
No silêncio que oferecia a chegada do crepúsculo, uns
incessantes uivos e gemidos retumbaram em sua habitação
como se estes se aproximassem de sua janela. Estava seguro
que tal revôo se devia a que a manada tinha estado caçando.
Então, como se sua mente lhe mostrasse a imagem de um
quebra-cabeça completo, correu para sua habitação, abriu a
porta e começou a gritar o nome de seu mordomo.
― Sim, sua Excelência? ― Brandon aparecia em meio a
se vestir. Sua respiração era agitada, as mãos trementes não
acertavam colocar corretamente na casa os botões de seu
uniforme.
― Faça com que preparem o antes possível uma
carruagem! Quero o cavalariço como cocheiro e a este na
parte de trás com uma arma carregada. Diga-lhes que
partiremos para o refúgio de caça assim que estejam
preparados.
― O que ocorre, milord? ― O senhor Stone não saía de
seu assombro. A princípio acreditou que o duque se levantara
no meio de um sonho alterado, mas ao observá-lo tão lúcido,
soube que aquilo não era a consequência de um pesadelo.
― Faça o que te ordeno! – Gritou com tanto ímpeto que o
eco de sua voz se escutou em todos os corredores da mansão.
― Agora mesmo, meu senhor. Digo ao seu ajudante de
câmara que vá à sua habitação?
― Está demorando muito! ― Clamou ao mesmo tempo
em que retornava ao seu dormitório e tentava tirar-se ele
mesmo a camisola com o qual dormia.
Como não o tinha pensado antes? Como não tinha sido
capaz de descobrir o que seu interior lhe indicava? Irado,
golpeou com força o colchão de plumas ao imaginar que, se
suas conjeturas fossem certas, já seria muito tarde. Nesse
momento, depois de atirar vários murros ao inerte colchão,
levantou seu olhar para o teto e fez algo que não tinha feito
desde menino: rezar.
Tal como tinha desejado, a carruagem lhe esperava na
entrada da mansão. Desceu os degraus sem a ajuda de
Brandon, que corria atrás dele se por acaso em algum
momento pedisse sua ajuda. Mas era tanta a ira que movia
seu corpo, tanto desespero por averiguar o que se temia, que
se introduziu no interior do veículo de um salto. Apoiou a
cabeça no respaldo acolchoado e observou a paisagem que
percorriam a grande velocidade. Tinha sido um acerto colocar
o jovem Mathias como condutor posto que, ao conhecer as
possibilidades dos cavalos que cuidava, tinha selecionado os
mais rápidos e graças a isso não demorou muito em divisar
os arredores da cabana. Ao aproximar-se sentiu como sua
garganta o sufocava e seu coração desacelerava incapaz de
afastar o temor de sua mente. De repente escutou um som, e
o coche parou abruptamente.
― Deus santo! ― Ouviu o cocheiro exclamar. — Isto foi
obra do próprio diabo!
William saiu apavorado do veículo. Assim que dirigiu o
olhar para o cenário que seus homens contemplavam
atônitos, deixou de respirar. A cerca estava destroçada, os
fracos arames que rodeavam a suja cabana atirados no chão,
dobrados e quebrados. Todo o terreno que rodeava a cabana
estava cheio de partes de carne e sangue, muito sangue.
Avançou um pouco mais sentindo ao seu lado o criado e o
cocheiro, o qual sujeitava sua arma com firmeza.
― Que diabos aconteceu aqui? ― Perguntou estupefato
um deles.
William não distinguiu quem fez a pergunta, sua mente
se concentrava em averiguar qual desses pedaços podia ser
uma parte de Beatrice. Continuou avançando, pisando em
plumas ensanguentadas, partes de pele e ossos cobertos de
tendões mordidos. Não havia vida naquele lugar. O silêncio
indicava que a morte tinha devastado qualquer possível
fôlego. Fixou a vista na porta da entrada. Estava fechada.
Teria se resguardado antes do ataque? Poderia estar sã e
salva? Ansioso por conhecer as respostas, deixou para trás os
dois homens e se aproximou da entrada. Ao estar tão perto
contemplou o desenho que tinham deixado umas ferozes
garras. Não soube que seu corpo permanecia encolhido e que
tremia até dirigiu sua mão para a porta e empurrá-la. Antes
que esta tocasse a danificada madeira, entrou-lhe a dúvida e
se encheu de desespero. Se na casa se encontrava a mesma
cena que havia no exterior, não se recuperaria jamais do
acontecido, posto que o único culpado daquele horror tivesse
sido ele.
― Sua Excelência, deixe que seja eu quem a abra. Se
dentro houver algum desses mal nacidos que massacraram
estes pobres animais, encherei-o de chumbo ― comentou com
firmeza o cocheiro.
William queria negar-se, mas não pôde. O homem tinha
razão. Como lutaria contra a ferocidade de um lobo com uma
só mão? Resignado por sua incapacidade, permaneceu imóvel
enquanto observava como o servente direcionava sua arma
para a porta e tentava abri-la.
― Está pesada! ― Gritou após vários intentos falhos. ―
Mathias, olhe por essa janela para ver se consegue descobrir
o que me impede entrar ― ordenou ao jovem que não cessava
de olhar para trás e sussurrar algo sobre o mal e as
atrocidades provocadas pelo demônio.
O jovem se aproximou do cristal com passo lento e
inseguro olhou através dele dobrando a cabeça de um lado
para o outro procurando um ângulo com maior visibilidade.
Finalmente apoiou sua mão direita na testa como se fosse a
viseira de uma boina e gritou:
― É algo pequeno! Está sobre o chão. Acredito que…
Deus santo bendito, aí há alguém!
― Abre-a! ― Exigiu William mais assustado que nunca.
― Terei que golpear com força e poderia… ― começou a
explicar o homem.
― Abre-a! ― repetiu com mais vigor ainda.
O cocheiro jogou uns passos para trás para tomar
impulso e colocando seu ombro para frente, empurrou a
porta com toda a energia que tinha. Não foi muito o que
obteve, mas o suficiente para acessar o interior.
― É uma mulher! – Exclamou. ― É uma mulher! ―
Repetiu agitado. ― Graças a Deus, parece que ainda respira!
William não pôde ficar ali fora observando. Caminhou
para o interior da casa e quando contemplou Beatrice nos
braços do homem, quis lançar-se sobre ela e abraçá-la ele
mesmo.
O rosto da moça estava pálido e os braços lhe
penduravam frouxos para o chão, o sangue, de cor escura
após secar-se, cobria o vestido e as pernas. Era a viva
imagem da destruição que ocasionava a morte em um ser
humano.
― Deite-a no interior da carruagem! ― Gritou o duque. ―
Mathias, crê que só um cavalo pode lavar sem dificuldade o
coche? ― O moço afirmou com a cabeça, o pânico que o
sacudia lhe impedia de articular uma só palavra. ― Pois
desengancha o mais rápido que puder e galopa até Rowsley,
necessito que leve o médico a Haddon Hall.
Enquanto o jovem soltava o corcel selecionado, Beatrice
era depositada com cuidado sobre o sofá direito da
carruagem, na posição adequada para que William a
auxiliasse em caso de necessidade. Fechou-a após meter-se
no interior e a observou desejando que nesse instante abrisse
seus olhos e descobrisse estar à salva, que ele a protegeria,
mas o suave e débil respirar lhe indicou que não podiam
atrasar-se mais tempo. Levou-se a mão para o botão da capa,
tirou-a e cobriu o corpo ferido para lhe dar calor. Ao notar
que a carruagem começava a mover-se, sentou-se no chão e
foi apartando o cabelo alvoroçado da jovem. Queria lhe ver o
rosto, queria observar se continuava respirando, queria que
seguisse com vida para ver de novo sua teimosia e
determinação.
De repente escutou o relinchar de um dos cavalos e um
rápido galope. O criado se afastava para procurar o doutor.
XI

Não desviou o olhar dela até que a carruagem parou


com brutalidade. William se reclinou para diante devido à
brutalidade da freada e sua testa golpeou o assento que tinha
diante. Fez uma careta de dor e em seguida o ignorou
prestando toda sua atenção nela. Antes de poder girar-se
para a porta, esta se abriu com rapidez.
― Meu senhor! ― Exclamou Brandon assustado. ― O
que ocorreu?
― Ajude-me a me levantar ― indicou esticando a mão
direita. Quando ao fim conseguiu sair do veículo, prosseguiu:
― foi atacada pela manada de lobos. Todos os seus animais
pereceram e ela saiu ferida gravemente. No trajeto mal a
escutei respirar. Necessito que preparem como é devido meu
quarto. A senhorita Brown será atendida ali. Ordenei ao
Mathias que traga o doutor…
― Aos seus aposentos? ― Perguntou assombrado o
mordomo interrompendo a argumentação do duque. ― Não
seria mais adequado…?
― Não discuta minhas ordens ― resmungou com
ferocidade. ― Hoje não ― sentenciou.
Brandon fez uma pequena reverência e se afastou
correndo para a casa para transmitir as ordens do duque ao
pessoal que esperava sobressaltado ao pé das escadas.
― Pelo amor de Deus! ― Exclamou Hanna ao ver a moça
nos braços do cocheiro. ― O que aconteceu? ― Sem esperar a
resposta deu uns passos para a jovem e ficou frente a ela
impedindo que o cocheiro avançasse. Apartou com cuidado
as mechas que escondiam seu rosto e, depois de observá-la
mais de perto, levou as mãos ao rosto e começou a chorar.
― Foi atacada pelos lobos, senhora Stone ― esclareceu
William com certo pesar.
― OH, meu Deus, pobre moça! ― Exclamou entre
soluços.
― Necessito de sua ajuda. Ordenei ao senhor Stone que
a acomodem em meu quarto, é o maior e mais luminoso. ―
Depois de sua exposição olhou à anciã esperando que
debatesse sua decisão, como tinha feito com antecedência
seu marido, mas no rosto enrugado não encontrou
recriminação alguma, feito que lhe satisfizesse. Soube que,
como sempre, Hanna era uma boa aliada.
― Lorinne, ― A cozinheira olhava à assustada criada que
andava atrás dos passos de seu marido ― prepara vários
caldeirões com água quente e recolhe todos os panos que
possa encontrar.
William inspirou profundamente ao escutar como a
anciã tomava o controle e dava as instruções que ele era
incapaz de fazer. A fadiga o debilitava. Havia lhe custado
horrores subir os degraus e avançar ao ritmo do homem que
levava Beatrice. Dirigiu o olhar para ela e franziu o cenho.
Odiava não ser ele quem a segurava entre seu corpo e a
conduzisse até o leito. Odiava não poder lhe sussurrar que
sob seu cuidado estaria protegida. Como ia afirmar tais
coisas se ele era o primeiro que necessitava de ajuda para
realizar tarefas tão singelas como alimentar-se? Nesse
momento amaldiçoou seu passado, desprezou ao ser que foi,
a vida desonesta que tinha tido, o duelo e aborreceu-se de
suas inadequadas decisões.
― Sua Excelência… ― escutou a voz de Brandon. Desta
vez era muito suave e inclusive tremente, como se tivesse
medo de interromper seus pensamentos.
― Sim, Brandon, encontro-me bem. Estarei no salão
descansando um pouco enquanto instalam a senhorita
Brown. Assim que estiver pronta e o doutor chegar a Haddon
Hall quero que me informe.
― É óbvio, senhor. Avisarei-lhe. ― E estendeu algo que
tinha segurado desde que a carruagem do duque apareceu no
jardim.
― Muito obrigado e perdoa minha atitude. ― Agarrou a
bengala e, mancando, caminhou para o salão principal.
Apesar de ter as portas fechadas escutava os criados
correrem de um lado a outro. Todo mundo atuava com frenesi
menos ele que, depois da minúscula tarefa, devia permanecer
sentado na poltrona para poder recompor-se. Levantou a
bengala e com vigor golpeou a perna que lhe causava
transtorno. Sentiu uma terrível dor, mas não emitiu nem um
minúsculo gemido. Merecia-o. Merecia isto e muito mais.
«Deus é justo e ao final toda essa arrogância será seu
padecer», havia lhe dito em mais de uma ocasião seu amigo
Federith. Nunca tinha meditado naquelas palavras,
entretanto, naquele momento não cessavam de aparecer em
sua mente. Sim, é óbvio que Deus era justo e lhe estava
devolvendo todo o dano que ele mesmo ocasionou a outras
pessoas porque, se a senhorita Brown falecesse, se ela não
fosse capaz de lutar contra a morte com a intensidade que
deveria, ele, o presunçoso duque de Rutland, cairia em um
estado apático do qual não despertaria jamais.
Dirigiu o olhar para o fogo e inspirou profundamente.
Não entendia como não tinha sido capaz de velar por ela,
cuidá-la, salvá-la daqueles monstros. Em vez de indagar
sobre a procedência ou o passado de Beatrice, tinha que ter
preparado uma batalha contra aquelas feras e as haver
eliminado de suas terras porque, por muito que o clérigo lhe
informasse que os animais também eram seres do Senhor e
que foram criados para executar uma função no mundo, ele
podia espantá-los, afastá-los da cabana. Mas não o fez. A
tarefa mais singela era rebuscar no passado de uma mulher e
não reclamar a ajuda de outras pessoas para que realizassem
o trabalho que ele, por si mesmo, não podia fazer.
Apertou com tanta força o punho da bengala que o
desenho ficou gravado em sua palma. Sentia-se tão inútil, tão
insignificante, que não era capaz de aguentar aquela agonia.
Estava a ponto de golpear-se outra vez quando alguém bateu
na porta.
― Adiante ― disse depois de colocar o bastão na parte
direita da poltrona.
― Sua Excelência, o doutor acaba de chegar ― informou
Brandon.
Sem dizer nenhuma palavra mais, agarrou de novo a
vara de madeira e caminhou para o hall, onde o doutor lhe
esperava.
― Bom dia, Excelência – Saudou-lhe o homem tirando o
chapéu. ― Seu criado não me explicou muito, só que
necessitava dos meus serviços com urgência. ― Jogou uma
rápida olhada ao corpo do duque e entrecerrou os olhos. ―
Voltou a sentir dores na perna?
― Bom dia, senhor Wadlow. A chamada não foi por
minha causa, e sim para outra pessoa ― esclareceu.
― Há alguém doente? ― Dirigiu o olhar para o senhor
Stone procurando uma explicação, mas o mordomo tinha o
olhar cravado no chão, sem querer intrometer-se desta vez na
conversação.
― Se for tão amável de me seguir conduzirei-lhe até ela
― indicou William adiantando-se ao senhor Wadlow.
Enquanto se dirigiam para a habitação do duque,
comentou ao doutor que tinha encontrado a jovem no bosque
e que, ao seu parecer, resguardou-se na casa de caça.
Também lhe informou que, possivelmente, tinha sido atacada
pela manada de lobos que habitava em suas terras. Como era
lógico, evitou lhe contar o motivo pelo qual ela se achava
naquele lugar e outros pormenores. Quando chegaram em
frente à porta, William bateu com suavidade.
― Está preparada? ― Inquiriu à Hanna, a mulher que
abriu.
― Sim, sua Excelência ― afirmou.
O duque não pôde apartar o olhar do semblante da
cozinheira. Tinha os olhos inchados de tanto chorar e
mostrava medo, tanto medo que o transmitiu a ele.
O senhor Wadlow entrou na habitação seguido muito de
perto pelo duque e se apressou a aproximar-se da cama. Ele,
em troca, permaneceu calado observando a moça. Hanna e a
donzela a tinham lavado um pouco e a extensão de suas
feridas foi vista com mais clareza.
― As lesões que possui nessa perna têm um aspecto
preocupante ― expôs o médico ao mesmo tempo em que
deixava sobre um baú a maleta, tirava-se a jaqueta e
arregaçava a camisa.
― Senhora Stone, atenda qualquer petição do doutor. Eu
esperarei lá fora se por acaso me necessitarem.
Girou-se com lentidão, não sem antes jogar uma olhada
ao corpo de Beatrice. Ao vê-la com tão pouca vida, apertou a
mandíbula, agarrou com força a bengala e saiu apressado
para o corredor.
Escutou a porta fechar-se após sua saída. Também
ouviu o doutor ordenar que lhe elevassem o vestido,
girassem-na e lavassem aquelas zonas que desejava observar.
Em cada mandato, em cada indicação, o senhor Wadlow
exclamava palavras de desespero. William fechou os olhos em
várias ocasiões e voltou a rezar para que Beatrice tivesse
alguma esperança de sobreviver. Não só para fazer
desaparecer sua culpa, mas sim porque a ideia de perdê-la o
destroçava. Era a única mulher que tinha feito algo por ele
depois do duelo, era a única mulher que tinha cuidado do
rosto desfigurado e não tinha sentido asco, era a única
mulher a quem lhe devia o continuar respirando e ele não foi
capaz de lhe cuidar.
― Sua Excelência. ― A voz do doutor o sobressaltou.
― O que necessita?
― Seu consentimento para dar à paciente uma pequena
dose de clorofórmio. Preciso operar a perna ferida o quanto
antes, senão poderá perdê-la.
― Tem-no ― respondeu com sobriedade. ― Você tem
todo o consentimento que precise para ajudá-la.
― Pode enviar outra donzela? As mulheres que estão lá
dentro não poderão segurar a moça se ela acordar no meio da
intervenção…
― É óbvio, agora mesmo avisarei ao meu mordomo.
O doutor retornou à habitação e William caminhou para
o final do corredor para reclamar a presença do senhor Stone.
Quando lhe expôs o motivo de sua chamada, este não
duvidou em fazer subir a criada adequada para tal função.
Era uma mulher imensa. Seus braços eram do tamanho de
dois do dele e mal tinha pescoço. Estava seguro de que se
Beatrice tentasse levantar-se ela a imobilizaria no ato.
― Siga todas as indicações do doutor ― comentou o
duque enquanto ela cravava com firmeza seu olhar no chão.
― Sim, sua Excelência. É óbvio. ― Fez uma reverência e
caminhou depressa para o dormitório.
William ficou sentado em uma das cadeiras que havia
próximas à porta. Apesar da insistência de Brandon por
reconduzi-lo para o salão e de lhe fazer esperar ali qualquer
notícia sobre a intervenção, recusou de mau humor. Queria
estar perto de Beatrice e ser o primeiro em ver o doutor sair
com um sorriso triunfante após seu intenso e árduo trabalho.
Mas permanecer ali lhe provocou mais terror que serenidade.
Os gritos de dor que procediam da boca da moça lhe
encolheram o coração, a garganta e lhe diminuíram os
pulmões. Gritava com tanto desespero que sentia o horror da
mulher correr por seu próprio corpo.
Em várias ocasiões se levantou do assento e desejou
com todas as suas forças abrir a porta e ficar a vociferar para
que acalmassem aquela terrível agonia. Entretanto pensava-o
melhor e retornava à cadeira, não sem deixar de meditar
como um corpo tão pequeno, tão débil, tão delicado, podia
suportar tanto sofrimento.
O tempo se fez eterno. Não soube se tinham passado
duas, três ou quatro horas quando a porta se abriu depois
que a terceira criada acessou o seu interior. Mas enfim
aparecia o senhor Wadlow. Olhava para suas mãos, que
limpava minuciosamente, a barba grisalha e o nariz adunco
enfatizavam um semblante abatido. William tentou manter a
calma, mas não o conseguiu, antes que ele desse dois passos,
aproximou-se e lhe perguntou ansioso:
― Como está?
― Necessitará de muito repouso. As feridas eram muito
profundas e, embora haja utilizado todo o antisséptico que
levava no estojo de primeiros socorros, estavam bastante
infectadas. Um de seus criados deverá me acompanhar de
volta e eu mesmo lhe proporcionarei outra garrafa de
antisséptico. Deverão limpar a ferida pelo menos uma
semana mais ― explicou.
― É óbvio ― afirmou sem apartar o olhar do médico.
Tinha o colete manchado de sangue, assim como os
antebraços, os quais ainda não tinha conseguido limpar.
William franziu o cenho. O que teria acontecido lá dentro?
― Foram os lobos? ― Perguntou o doutor com voz
reflexiva, mas não curiosa.
― Em efeito. Há um pequeno grupo vivendo no bosque.
― Acreditei que tinham partido ― prosseguiu com o
mesmo tom.
― Retornaram.
Ambos os cavalheiros andaram pelo comprido corredor,
desceram as escadas e William, em agradecimento, ofereceu-
lhe uma taça no salão. O senhor Wadlow, depois da árdua
tarefa, aceitou de bom grado tomar um gole do melhor uísque
do condado de Derbyshire.
― Foi uma sorte que a tenha encontrado a tempo ―
expôs a seguir. Pegou o copo que o anfitrião lhe oferecia e
esperou que este se servisse de um.
― Um golpe de sorte, diria eu ― apontou o duque com
tranquilidade. Estava acostumado a reconhecer quando uma
conversação ia ser mais profunda do que aparentava e, se
não se equivocava, o doutor estava meditando como iniciá-la.
― Quando se recuperar, essa moça terá uma dívida
pendente com você. Estou seguro de que se não chegasse a
dar esse passeio, ela teria perecido ― indicou antes de elevar
o copo, fazer um pequeno brinde e dar um longo trago à
bebida.
― Então brindarei por essa inesperada ansiedade por
percorrer meus terrenos ― disse antes de imitar o médico.
Durante uns momentos o silêncio foi o rei da habitação.
Ambos os homens contemplavam as chamas do fogo como se
o terceiro conversador fosse o dito elemento e esperassem
com tranquilidade suas palavras. O ranger da lenha se ouvia
com nitidez assim como o chiado das brasas. O doutor
acariciou a borda de pedra da chaminé, colocou a ponta de
sua bota na borda da mesma, voltou a beber e instantes
depois olhou ao duque com severidade, o qual estava
reclinando-se sobre a poltrona.
― Desde menino, ― começou a falar – escutei uma
infinidade de rumores sobre o sobrenome Rutland.
― Está acostumado a acontecer quando se tem uma
dinastia tão extensa. ― William bebeu devagar, cravou o olhar
no homem e arqueou com suavidade as espessas
sobrancelhas escuras. Aí estava o início do que já supunha,
agora ficava por saber para onde dirigiria o bate-papo com o
bom doutor.
― Mas jamais pensei que fossem reais ― afirmou.
― Bom, se puder me esclarecer a que se refere, eu
tentarei limpar o bom nome que possuo ― disse com
sarcasmo.
― Como pôde fazer um ato tão desprezível? ― Inquiriu
zangado ao mesmo tempo em que girava seu corpo para o
duque.
― Como? Pode esclarecer que ato desprezível cometi? ―
Baixou a mão que sustentava sua taça e a apoiou no braço
da poltrona.
― Como é capaz de menosprezar tanto as pessoas?
Acredita que por possuir um título nobiliário de tal índole
pode alcançar o nível que ostenta nosso Deus? ― Demandou
zangado.
― Sigo sem entender o que…
― Pelo amor de Deus! Não tente evadir-se de minhas
perguntas!
― Até este momento, meu prezado senhor Wadlow, ―
disse William com uma voz repleta de autoridade ao mesmo
tempo em que se levantava do assento e avançava para o
desafiante ― comportei-me com cavalheirismo porque me
ajudou a salvar a vida de uma dama, mas se seguir com esse
trato insolente para com a minha pessoa, pediria-lhe que,
depois de esclarecer os términos que lhe levaram a tal
conclusão, parta o antes possível.
― Refiro-me à dama. Acaso não é sua prostituta? Acaso
você não a abandonou nesse lugar perdido do Senhor para
utilizá-la a seu prazer, apesar de expô-la a perigos
inevitáveis?
― Equivoca-se por completo. Essa ideia não é…
― E o que, se não for o sexo, o principal motivo pelo qual
um homem de sua estirpe abandona o lar antes da alvorada?
― Respondeu-lhe irritado.
― Eu não sei os motivos que você tem para fornicar com
sua amante ou as horas que se programa para fazê-lo porque
sua senhora se ache em casa. Minha resposta a tais
consultas inapropriadas é só uma: parta agora mesmo dos
meus domínios! ― Não pôde levantar o dedo inquisidor
porque segurava o copo, mas vontade não lhe faltou. E mais,
se não tivesse saído ferido gravemente de seu último duelo,
lhe teria desafiado a um nesse momento.
― Não negue… ― comentou desafiante o senhor Wadlow.
― Não me deu tempo para isso, você tirou suas
conclusões sem querer escutar a verdade. ― Manteve-se ereto
mais do que o habitual. No passado aquele estado de retidão
era perene, mas com o passar do tempo e a vida que tinha,
esqueceu-se da arrogância genética de seu sobrenome.
Entretanto, que alguém tratasse Beatrice dessa forma,
embora fosse para defendê-la, estava tirando-o do sério. Tal
era sua agitação que lhe passou pela cabeça arrojar a taça ao
chão, agarrar o atiçador da chaminé e lhe golpear até que sua
sede de vingança se acalmasse.
― Está tentando me convencer que uma jovem de uns
vinte anos de idade passeava pelo bosque de maneira
descuidada e desprotegida? ― Insistiu o médico.
― Estou lhe dizendo que parta e saliento que o que você
pensa sobre a relação existente entre essa moça e eu não me
importa. Boa tarde, senhor Wadlow, e obrigado por sua visita.
O homem depositou o copo de maneira descuidada
sobre a mesa, golpeou as botas, fez uma ligeira e direta
inclinação e partiu do salão sem mediar palavra. Fora, no
hall, William escutou a voz de Brandon. Parecia manter um
pequeno bate-papo com o doutor antes que este abandonasse
Haddon Hall. Depois de ouvir como se fechava a porta
principal, uns passos retos, firmes e compassados se
dirigiram para onde se encontrava.
― O senhor Wadlow partiu ― explicou embora fosse
óbvio.
― Recompensou seu tempo? ― William tinha se sentado
de novo. Sua mão seguia segurando com firmeza o copo de
bebida, possivelmente o fazia para que sua mente deixasse de
estimulá-lo sobre o outro possível uso do atiçador.
― Sim, sua Excelência. Uma bolsa de cento e cinquenta
soberanos é pagamento suficiente pelo trabalho que realizou
com a senhorita Brown. ― Brandon tinha uma vontade
terrível de perguntar o que tinha acontecido, mas a
mandíbula apertada do duque, o olhar perdido e o cenho
franzido com vigor lhe indicavam que, nesse momento,
manter-se calado era a melhor opção.
― Como está? Despertou? Disse algo? ― Quis saber.
― Segundo a senhora Stone, está calma. O doutor lhe
deu uma boa dose de clorofórmio e a moça se encontra em
um estado de semiconsciência ― explicou.
― Está bem, quando conseguir beber esta maldita taça
subirei para confirmar que é atendida como é devido.
― Senhor, não se preocupe, na habitação há várias… ―
apertou os lábios e não prosseguiu.
Aquele olhar repleto de ira o dizia tudo. Se ele queria
subir, subiria. Se ele queria estar com ela, estaria. Se ele
queria cuidá-la e esquecer-se de que não se encontrava em
plenas faculdades para ocupar-se nem dele mesmo, cuidá-la-
ia e se esqueceria. Esse era o verdadeiro temperamento
Rutland e, por muito que o tentasse ocultar, Brandon se
sentia feliz ao ver que por fim o duque tinha recuperado o
estímulo que lhe faltava para converter-se de novo em sir
William Manners.
XII

Tal como tinha decidido, depois de finalizar a taça


William abandonou o salão e subiu as escadas que lhe
conduziam para os aposentos. Com lentidão aproximou-se da
porta de seu quarto, estendeu a mão para a maçaneta e a
girou devagar para não fazer ruído e não dificultar o trabalho
das criadas. Quando acessou a habitação a encontrou em
penumbra. Tão só a luz de dois candelabros com quatro velas
em cada um iluminava o interior. Depois de fechar atrás de
sua entrada, fixou o olhar em Beatrice e suspirou. A jovem
estava coberta com um lençol e só sua espessa e longa juba
escura e seu semblante pálido estavam à vista.
Dirigiu seus olhos para a senhora Stone e a observou
em silêncio. Aquela sensação, a de encontrar-se em um
velório mais que em um quarto onde uma doente se
recuperaria após descansar, encheu-lhe de pânico. Nem
sequer a morte de seu pai, supostamente um homem
importante para ele, produziu-lhe tanto espanto. A razão?
Nem ele mesmo conseguia responder com certeza.
Que lhe salvasse a vida e que ele não tivesse atuado em
consequência, não eram motivos suficientes para explicar por
que seu coração se oprimia com tanta força ao pensar nela,
por que lhe resultava difícil respirar ao ver a moça em tão mal
estado, por que desejava que despertasse e que escutasse sua
voz junto a ela.
― Precisa descansar ― disse em tom suave Hanna.
― Sei ― respondeu William caminhando para o sofá
onde pensava permanecer bastante tempo.
― Tomou o café da manhã, milord?
― Tomei uma taça ― comentou com relutância. Sabia o
que aconteceria após aquela afirmação. A senhora Stone
franziria o cenho, colocaria as mãos na cintura e, ignorando a
linhagem de seu sangue, repreenderia-lhe como faria uma
mãe preocupada com o bem-estar de seu filho.
― Farei com que lhe subam o café da manhã, o qual
deveria ter tomado há umas horas ― explicou ao mesmo
tempo em que tomava ar para controlar o aborrecimento que
expressava seu rosto.
― É uma boa opção, senhora Stone. ― Colocou-se em
frente ao sofá e foi descendo com cuidado sem apartar o olhar
de Beatrice.
Não era capaz de falar vendo-a daquela forma e
tampouco seria capaz de comer nada do que lhe servissem.
Mas não comentaria tal coisa à anciã porque se o fizesse,
toda a atenção para a jovem ficaria em segundo lugar e ele
queria que ela fosse o mais importante nesses momentos.
― Esta noite será muito dura, milord. Conforme nos
indicou o médico a febre subirá muito e lhe provocará
delírios, ninguém que estiver ao seu lado poderá descansar. ―
Tentou que seus argumentos fossem suficientes para que o
duque pensasse com sensatez e abandonasse a ideia que lhe
tinha conduzido até ali.
Hanna não estranhou que seu marido a visitasse depois
da marcha do senhor Wadlow, mas sim a desconcertou
escutar os propósitos do dono de Haddon Hall. Como ia ficar
ali sentado durante o tempo que a jovem necessitasse para
recuperar-se? Impossível! Ela faria tudo o que estivesse em
sua mão para evitá-lo. Entretanto, ao vê-lo entrar com aquele
semblante, seu corpo curvado e um brilho intenso nos olhos
escuros, partiu-lhe o coração. Nunca, nos trinta e um anos
que tinha o jovem, tinha-o visto tão abatido, tão desolado.
― Ficará aqui comigo? ― Perguntou-lhe William sem voz.
― É óbvio. Se você desejar que esta velha não se mova
do quarto, não o farei. ― A cozinheira sentiu como seus olhos
se enchiam de lágrimas enquanto lhe tremiam as mãos e um
nó na garganta lhe impedia de tragar a pouca saliva que
produzia sua boca.
Tinha descoberto algo e esse algo era mais importante
do que seu marido supunha. Ele sempre falava do dever, da
piedade e misericórdia inerentes a um homem com honra,
embora o que ela tinha descoberto naqueles olhos tristes não
tinha nada a ver com as hipóteses de seu querido marido.
Como sempre, a lógica e a razão voltavam a falhar quando se
tratava de sentimentos.
Hanna ordenou às criadas que se retirassem e que
subissem uma boa xícara de café e um par de torradas para
que o duque se alimentasse. Quando partiram, o homem se
levantou da poltrona e andou até a cama, sob o atento olhar
da anciã sentou-se sobre ela, esticou a mão e acariciou com
suavidade o rosto de Beatrice.
― Arde ― disse sem trocar a posição de seu olhar.
― Não se preocupe, voltarei a passar um pano de água
fria. Isso a aliviará – assegurou-lhe antes de inundar de novo
o pano na bacia, depois o escorreu com força e o colocou na
testa da jovem, que ao sentir o frescor do objeto em sua pele
franziu o cenho e abriu um pouco a boca.
William contemplou aqueles lábios, aquele nariz
pequeno e arrebitado e como o peito se elevava ao respirar.
Era a primeira vez que a observava sem que o lodo a cobrisse.
Estava tão perto dela que pôde perceber as sardas diminutas
que adornavam as bochechas agora vermelhas como o fogo.
― É uma garota forte, sua Excelência. Sairá desta ―
comentou com tom suave.
― Sinto-me tão culpado… ― confessou sem lhe importar
que Hanna estivesse junto a ele e observasse a debilidade que
sentia. Não seria a primeira vez que o veria abatido.
― Não deve fazê-lo, senhor. Você insistiu em que
permanecer naquele lugar tão espantoso era uma loucura.
Recorde que todos aos que enviou para conduzi-la até aqui
fracassaram. Foi sua própria decisão ― sentenciou com muita
calma.
― Mas se eu… ― William voltou a roçar com sua mão a
ardente bochecha. Seu calor era tão potente que o queimava.
Aproximou a mão ao seu rosto e deixou que se refrescasse
com sua própria frieza.
― Sabe de uma coisa, sua Excelência? ― Esperou que
ele a olhasse para ter certeza de que tinha toda sua atenção.
― Deus faz coisas que ninguém consegue compreender, mas
estou segura de que desta vez, assim como tem feito durante
séculos, tem um bom motivo ― disse ao mesmo tempo em
que introduzia de novo o pano na bacia para esfriá-lo.
O homem iria debater tal ideia expondo certos
argumentos que não lhe pareciam lógicos e que tinha
presenciado com seus próprios olhos, mas alguém bateu na
porta e, para evitar rumores absurdos, mais dos que o senhor
Wadlow estaria divulgando no povoado, William retornou à
poltrona para adotar uma pose serena.
― Adiante ― ordenou Hanna depois de confirmar que o
duque voltava a mostrar integridade.
― Trouxe o que pediu ― indicou Lorinne mostrando uma
bandeja.
― Deixe-a nessa mesa e consiga mais caldeirões de água
fria. Necessitaremos de muitos para acalmar a febre da moça
― disse a cozinheira.
― É para subir com eles agora? ― Perguntou a criada
um tanto desconcertada.
― Não, coloque na cozinha e faça o senhor Stone saber,
ele lhe avisará quando os necessitar. ― Espremeu com tanta
força o trapo que respingou a cômoda de água.
― Mais alguma outra coisa? ― Quis saber. Esta olhou
primeiro à Hanna e depois ao duque, esperando que algum
deles respondesse, mas quando nenhum deles o fez, partiu.
Não se falou nada mais durante um bom momento.
Nesse tempo repleto de silêncio, Hanna não cessava de
molhar o pano e cobrir as bochechas e os pulsos de Beatrice.
No momento que a anciã estendeu os braços da jovem sobre
o lençol, William emitiu um pequeno grunhido de espanto.
Eram tão magros e delicados que escapava ao seu raciocínio
que eles tivessem trabalhado com firmeza para cuidar-se,
para romper aqueles troncos grossos, para segurá-lo com
força e arrastá-lo até o interior da cabana. Como tinha sido
tão estúpido e deixado-a desamparada? Acaso não percebeu a
debilidade da jovem ao tê-la em frente a ele? Por que não se
deu conta? Que sentimento lhe tinha distorcido tanto a
mente para não atuar com sensatez?
Seguia sem poder responder-se ao sem-fim de questões
que se fazia. Cada instante que passava junto à moça, mais
perguntas surgiam. Esse estado de ansiedade lhe consumia
com tanto ímpeto que, por momentos, sentia correr por suas
veias o frio da morte. Sim, ele morria. Não de enfermidade,
mas sim de vergonha.
Então, quando sentiu que havia atingido o fundo,
meditou algo que nunca tinha sopesado: aquele
comportamento não se parecia com o de seu pai, aquele que
tinha odiado desde que tinha o uso da razão? As amantes, a
frieza para as pessoas que lhe estimavam, a prepotência de
ostentar um título herdado por sangue e não pelo que
realmente significava: sensatez, justiça e, sobretudo amparo
para aqueles que lhe rodeavam. Não, tanto seu pai como ele
se aproveitaram do sobrenome para sentirem-se superiores.
Agora, por muito que lhe custasse admiti-lo, começava a
entender a atitude de sua mãe: quem poderia viver ao lado de
um monstro?
Apertou com força a mão e a fechou em um punho
sólido como o aço ao mesmo tempo em que refletia a melhor
maneira de mudar todo o desastre que tinha provocado. É
óbvio que começaria por ela… dirigiu o olhar para Beatrice e
sentiu de novo seu coração parar. Seria essa a razão pela
qual Deus a tinha conduzido até sua presença? Queria que
visse com seus próprios olhos a destruição que estava
ocasionando? Se Hanna tivesse razão, se suas teorias sobre a
metodologia que Deus empregava para conseguir seus fins
eram certas, ele tinha recebido a mensagem com claridade.
― Meu senhor. ― Hanna interrompeu seus pensamentos
com um suave tom de voz. ― Preciso me ausentar durante
um momento.
― Acontece-lhe algo, senhora Stone? Está cansada?
Quer que alguém ocupe seu lugar? ― Preocupou-se.
― Não. Encontro-me bem. É algo que… bom… só eu
posso fazer por mim mesma. ― Envergonhou-se tanto que um
pequeno rubor cobriu as rugas de seu rosto.
― Não se preocupe, ausente-se o tempo que necessitar.
Eu ficarei com ela. ― William se elevou do assento e sentou-
se sobre o leito junto a Beatrice.
― Não demorarei, asseguro-o. Enquanto isso, só deve
cobrir a testa com o pano. Pode fazê-lo ou peço…? ― Duvidou
se continuava com o plano que tinha construído em sua
mente durante o período de sigilo.
Sabia que deixá-lo só poderia ocasionar alguma briga
inesperada, mas o duque precisava ficar com ela a sós e
deixar que o sentimento que arruinou seu interior crescesse
como o fazem os brotos esverdeados das roseiras com a
chegada da primavera. A moça, sem pretendê-lo, iria se
converter em uma pessoa muito importante para o duque e
rezava com todas suas forças para que quando ela
despertasse sentisse o mesmo por ele porque do contrário…
não! Não queria pensar nisso. Deus a tinha levado até
Haddon Hall para salvá-lo e talvez a jovem também se
salvasse dessa desdita da qual fugia freneticamente.
― Posso fazê-lo ― respondeu com um leve sorriso.
Hanna colocou o pano em Beatrice, olhou William para
que compreendesse como devia fazê-lo e quando ele assentiu,
deixou-os a sós. Depois de fechar a porta, a primeira cara que
encontrou foi a de seu marido. Este abriu os olhos como
pratos ao ver que deixava sozinho seu senhor com a doente.
― Como pode ser tão insensata? ― Grunhiu em voz
baixa Brandon.
― Lembra-se daquele pequeno incidente na cozinha e de
como bateu na minha porta depois de três noites dormindo
fora de nosso leito? ― Arqueou as sobrancelhas grisalhas e o
olhou com mais raiva do que lhe tinha mostrado. ― Pois se
quer passar pelo mesmo de novo, entra na habitação e
interrompe o que nosso duque está desejando fazer.
Ante tal ameaça Brandon soprou e acompanhou a sua
esposa à cozinha ao mesmo tempo em que rezava, com
esforço, para que nada de grave acontecesse.
William tinha dado já duas voltas ao pano molhado.
Compreendendo que devia desdobrar o lenço para coloca-lo
de outra forma, pousou-o em seus joelhos e, com grande
esforço o estirou, dobrou-o ao contrário e voltou a coloca-lo
na testa. A jovem, ao sentir o frescor, gemeu com suavidade.
Esse pequeno detalhe, o de poder ajudá-la a se acalmar, fez-
lhe tão feliz que seus olhos brilharam de novo. Tentou piscar
para deixar de ver impreciso, mas o que aconteceu lhe
chamou mais a atenção: brotaram umas pequenas lágrimas
que percorreram com liberdade o rosto. Desde quando não
chorava? Tinha-o feito no funeral ou no enterro de seu pai?
Não. Ele não tinha chorado desde aquele dia…
Apesar da proibição de aparecer no dormitório de seu
progenitor quando este permanecia em Haddon Hall, ele
engenhou para abrir a porta e saltar sobre a cama do duque.
Queria saudá-lo, queria abraçar àquela pessoa que lhe tinha
dado a vida e quase nunca estava no lar, mas encontrá-lo
com uma mulher que não era sua mãe desconcertou-o tanto
que deu um grito e despertou a ambos.
O duque, furioso, conduziu-lhe para sua habitação e,
sem pensar duas vezes, começou a lhe golpear nas costas e
no traseiro com um cinturão que tinha pegado do quarto. Ele
gritava que não voltaria a fazer mais, que lhe perdoasse, mas
em seu pai não havia clemência. Então a porta do dormitório
se abriu e apareceu Hanna suplicando ao senhor que não
continuasse com o castigo: «Mais quatro cintadas e darei por
concluído seu castigo ― disse olhando de esguelha a servente.
― Ou os proporciono a ele ou as recebe você». É óbvio, ela
escolheu a segunda alternativa e ele, assustado pelo que ia
acontecer, observou imóvel como Hanna terminava com seu
castigo. «Se voltar a se repetir, ― ameaçou ― as próximas
chicotadas irão diretamente às suas costas, criada».
Quando ficaram sozinhos, correu para a mulher para
abraçá-la e, sob seu amparo, chorou desconsolado. Aquele
dia aprendeu duas coisas: nunca mais procuraria seu pai e
que aquela mulher jamais se separaria de seu lado porque,
de todos os que lhe rodeavam, ela era a única pessoa que o
amava de verdade.
William soprou ao rememorar aquele momento. Não
estava acostumado a voltar para o passado para indagar por
coisas dolorosas, mas se encontrava tão fraco
emocionalmente que seu muro contra os sentimentos se
derrubou. Olhou de novo Beatrice e sorriu ao ver que já não
lhe ardiam as bochechas como na última vez. Parecia que a
febre estava remetendo e isso era bom sinal. De repente, seus
olhos foram captando cada milímetro daquele rosto. As
sardas, seu nariz, as pestanas, seus lábios… era uma moça
muito atraente e a beleza aumentava quando não estava
coberta de barro.
Uma estranha sensação lhe percorreu pelo corpo, tão
singular que seu pêlo se arrepiou. Parecia sentir-se feliz, mais
do que devesse, tendo sob seu cuidado uma mulher ferida
gravemente. Seria porque levava muito tempo sem
permanecer ao lado de uma mulher formosa? Não, não se
tratava de um aspecto meramente sexual, era algo diferente.
Uma onda de calor e um sentimento estranho para ele se
mesclavam para surgir de uma forma incomum.
Com suavidade e um tanto temeroso pelo que ia fazer,
foi baixando seu rosto para o dela. Aproximou-se tanto que
sentia sua respiração no rosto. Devagar, como se se tratasse
de uma delicada flor, foi descendo os lábios até pousá-los nos
da jovem. Então aconteceu algo perturbador, notou que seu
coração se alargava e palpitava a grande velocidade, percebeu
o correr do sangue por todo seu corpo como se estivesse em
plena corrida de galgos e um brilho incrível lhe sacudiu a
cabeça. Perturbado por tais sensações elevou a cabeça e, no
meio daquele inesperado desconcerto observou que os olhos
da jovem se abriram e o olhavam assustada.
― Não! ― Gritou Beatrice sacudindo com tanta força
seus braços que, ao golpeá-lo, jogou-o no chão. ― Não!
― O que acontece, milord? ― Hanna, assustada pela
intensidade dos gritos, acessou ao interior da habitação
horrorizada.
― Deixe-me em paz! Não prossiga! ― Continuava
vociferando Beatrice sem cessar de mover seu corpo, face às
terríveis dores que deveria suportar. ― Solte-me! Não o faça!
Tenha piedade!
― Meu senhor, é uma alucinação daquelas que dizia o
médico ― explicava Hanna segurando com força a moça. ―
Por favor, diga ao senhor Stone que faça subir a Jimena, eu
sozinha não poderei contê-la por muito tempo.
William caminhou depressa para o corredor e chamou
Brandon com todas as suas forças. Este foi ao seu chamado
com prontidão e após lhe explicar o acontecido, o mordomo
correu para a ala da servidão, minutos depois ele e a criada
se introduziram na habitação.
De onde se encontrava seguia escutando os gritos de
Beatrice, um pranto agonizante que lhe rompia a alma, e
como Hanna tentava consolá-la com suas típicas palavras de
ternura.
Aquele episódio horrendo não se dissipou até bem
entrada a madrugada. William não pôde mover-se do corredor
até que Brandon saiu e lhe confirmou que tudo tinha sido um
delírio provocado, tal como indicou o senhor Wadlow, pela
grande quantidade de clorofórmio que lhe tinha
subministrado. Entretanto, as palavras não o tranquilizaram.
Ela o tinha olhado e, depois de observá-lo, começou a gritar.
Ele era o culpado dessa tortura, ele e só ele. Aflito, caminhou
cabisbaixo para o salão, necessitava de uma taça. Precisava
esquecer a estupidez que tinha feito e a sensação tão
assombrosa que lhe causou um simples roce de lábios.
XIII

Beatrice abriu os olhos e o observou de novo ali sentado,


adormecido. Era, segundo seus cálculos, o oitavo dia que o
fazia. Acreditou que alguma noite deixaria de ir ao quarto, de
perguntar à donzela como tinha passado o dia e de sentar-se
na poltrona para velar por ela. Mas não o fez. Seguia
aparecendo em sua habitação cada noite e partia ao
amanhecer.
Nos primeiros dias se sentiu incômoda quando o viu
junto a ela. Por que o fazia? O que pretendia? Entretanto, a
ansiedade que lhe criavam tais perguntas se foi dissipando.
Agora estava segura de que se elevasse suas pálpebras e não
o encontrasse, entristeceria-se. Por muito estranho que lhe
parecesse, a presença do duque lhe reconfortava,
possivelmente inclusive mais do que devesse.
Quando abriu os olhos pela primeira vez e se achou em
um lugar diferente de onde acreditava estar, assustou-se.
Onde se encontrava? Quem a salvou de uma morte
inevitável? A angústia do desconcerto a fez saltar da cama,
mas a dor intensa em sua perna a fez gritar e tombar-se de
novo. Nesse instante apareceu um anjo ao seu lado. Um anjo
com rosto ancião, um avental e um sorriso que lhe cobria o
rosto. «Calma, pequena, está a salvo», indicou-lhe Hanna,
mas sem dizer nada sobre como tinha chegado até ali.
Explicou-lhe que o doutor lhe tinha realizado uma
intervenção, que as feridas saravam adequadamente e que
logo estaria em condições de correr pelo bosque de novo. Por
mais que insistisse Beatrice em averiguar a razão pela qual se
encontrava em Haddon Hall e como tinha conseguido
alcançar a residência, a anciã lhe respondia com evasivas.
«Deve se alimentar. Precisa descansar. Não se mova tanto».
Só foi depois do terceiro dia que suas dúvidas se
dissiparam ao escutar as criadas que a atendiam. Conforme
lhe comentaram, graças a um repentino desejo por vigiar
seus territórios, o duque encontrou-a ferida gravemente e ele
mesmo a conduziu até a mansão. Também lhe narraram que
todo mundo ficou atônito quando indicou ao mordomo que
deviam alojá-la em seu próprio dormitório. Segundo as
criadas, ninguém tinha visitado a habitação do duque
enquanto elas o assistiam. Mas Beatrice sabia que isso não
era certo, ela o tinha feito, embora recordá-lo lhe provocava
angústia.
Durante os seguintes dias de recuperação não cessava
de pensar que razão teria para instalá-la ali. Por que não
escolheu outra habitação para acomodá-la? Um repentino
calafrio açoitou seu corpo. Aquilo que imaginou não podia ser
certo, confiava no senhor e na senhora Stone. Sabia que eles
jamais revelariam o segredo. Então… que causa lhe fez atuar
assim? Voltou a olhá-lo. Permanecia com os olhos fechados,
as pernas estiradas sobre um apoio para os pés e a mão
agarrada com força à poltrona.
Beatrice inspirou devagar para não alterar o sono da
pessoa que lhe tinha salvado a vida. Agora estavam em paz.
Agora não havia nada que lhes unisse. Agora tinha que
recuperar-se e afastar-se o antes possível de seu lado. De
repente o duque grunhiu. A moça fechou os olhos para que
não a descobrisse, mas depois de uns instantes nos quais
percebeu que seguia dormindo, voltou a abri-los e nesse
momento observou como este franzia o cenho, como apertava
com força o tecido da poltrona e como gritava não. Depois do
grito despertou sobressaltado e ficou de pé de repente,
caminhando de um lado para outro.
Beatrice seguia admirando-o entranhando. Não entendia
que classe de pesadelo teria alterado o aprazível sonho. Com
os olhos entreabertos para não chamar a atenção do duque,
continuou olhando-o. Sua curiosidade crescia cada vez mais,
posto que a agitação do homem pudesse senti-la ela mesma.
A causa de sua agonia seria ela? Estaria arrependido de seu
ato de piedade? Se a resposta fosse afirmativa logo deixaria
de sentir-se inquieto, porque se nessa manhã ao levantar-se
por fim pudesse caminhar sem sentir dor, partiria.
― Senhorita Brown, está acordada? ― Perguntou William
ao notar que respirava intranquila.
Ao não escutar uma resposta acreditou que seguia
descansando. Com passo lento se dirigiu para ela, parando
no limite do leito. Olhou-a fascinado, igual um entomólogo
contemplando uma nova espécie de mariposa. Dirigiu a mão
para o rosto e lhe apartou com cuidado uma mecha de
cabelo. Não devia fazê-lo. Não devia tocá-la depois do
acontecido naquela noite, mas lhe resultava impossível
conter-se. As emoções que lhe produziram aquele suave tato
nos lábios o tinham desconcertado. Nunca havia sentido
aquela sensação estranha no estômago quando beijava suas
amantes. Nunca havia sentido como se sua pele queimasse
ao tocá-las e nunca tinha escutado seu coração pulsar com
tanta força. Desejou fazê-lo de novo, aproximar-se e beijar os
lábios femininos para que toda aquela inesperada magia
desaparecesse, mas tinha tanto medo pelo que aconteceria
depois, que se refreava.
William elevou a cabeça ao escutar uns passos
aproximando-se da habitação. Vinham para despertá-la e
limpar de novo as feridas que, para sua gratificação,
melhoravam com rapidez. Entretanto, aquilo que lhe produzia
alegria também lhe entristecia. O que faria a jovem quando se
recuperasse? Partiria, retornaria à cabana? Se essa fosse sua
decisão ele não poderia opor-se, mas desta vez lhe colocaria
uma condição, não partiria de Haddon Hall até que
construíssem um muro sólido ao redor do refúgio de caça e,
mesmo assim, ela não poderia lhe proibir que passeasse por
seus territórios quando quisesse. Franziu o cenho ante tal
pensamento. Não gostava da ideia de que ela se afastasse da
mansão porque possivelmente na próxima vez não teria tanta
sorte.
De repente desenhou um leve sorriso. Tinha outro
plano. Um que não podia falhar. Retirou-se com rapidez do
lado da jovem ao ouvir que alguém se encontrava atrás da
porta.
― Bom dia, sua Excelência – saudou-lhe a donzela
encarregada de cuidar de Beatrice.
― Bom dia ― respondeu sem nem ser consciente disso.
Não cessava de refletir sobre sua estupenda alternativa.
― Passou bem à noite à senhorita Brown? ― Quis saber
a moça.
― Sim. Descansou bastante bem ― respondeu
apressadamente.
Queria dirigir-se para a cozinha onde sabia que
encontraria Hanna preparando o café da manhã. Falaria-lhe
de seu plano e esperaria que lhe confirmasse que era uma
ideia estupenda.
William fechou a porta depois de sair. Como cada
manhã ficava ali durante uns instantes esperando escutar a
voz de Beatrice e certificar-se do bom tom desta. Como era de
esperar a ouviu de novo e, para sua preocupação, pareceu-
lhe que soava com energia. Em efeito, melhorava muito a
cada dia e por isso não havia tempo a perder. Alterado,
desceu as escadas e se dirigiu para a cozinha.
― Bom dia, senhorita Brown – saudou-a a donzela ao
mesmo tempo em que amarrava as grosas cortinas em ambas
as laterais. ― Faz um dia lindo. Note, o sol ilumina e
esquenta nossos campos com bastante intensidade. ― Girou-
se para ela e esperou uma resposta.
― Bom dia, Lorinne. Tem razão, o dia é lindo. Alegra-me
que por fim as terras possam secar-se e as plantas recebam
os raios solares que tanto precisam ― disse ao mesmo tempo
em que apartava o lençol de seu corpo.
― Encontra-se melhor? Descansou o suficiente? ― Quis
saber a moça ao observar como Beatrice se esticava e tentava
apoiar o pé com força sobre o chão.
― Dormi bastante bem e olhe, parece que a dor começa
a desaparecer ― respondeu sorrindo.
― Você é muito forte, senhorita Brown. Se uma besta me
tivesse atacado como a que lhe mordeu, teria morrido nesse
mesmo momento. E mais, não acredito sequer que tivesse a
coragem de viver sozinha em um lugar tão afastado da mão
de nosso Deus ― comentava a criada ao mesmo tempo em
que pegava um dos vasos que tinha preparados à tina e
começava a verter a água quente no interior.
― Com certeza teria tido coragem suficiente para
subsistir ― respondeu subtraindo importância ao assunto e
evitando falar sobre sua vida na cabana.
Franziu com suavidade o cenho ao apoiar com
integridade o pé, esperava que em algum momento a alegria
desaparecesse após perceber que as cãibras a açoitariam de
novo, mas não foi assim. Começou a caminhar pelo quarto
sem nem sentir incômodo.
― Pelo que posso apreciar, hoje tem mais força que
ontem ― falou a moça com tom suave e alegre ao ver como se
movia a jovem sem emitir pequenos soluços.
― Sim. Encontro-me tão bem que tentarei sair desta
habitação. ― Beatrice selou seus lábios com rapidez. Não
queria que Lorinne saísse a procurar à senhora Stone e lhe
informasse sobre suas pretensões porque se fosse assim, a
anciã bateria na porta e, depois de lhe soltar um sermão
sobre como devia atuar para que suas feridas sarassem
adequadamente, ficaria outro dia mais encerrada no quarto.
― Alegro-me! ― Exclamou com tanta animação a criada
que Beatrice abriu os olhos como pratos ante tal entusiasmo.
Ao ver a expressão desta, a donzela continuou falando. ―
Perdoe minha euforia, senhorita Brown, mas tenho uma
surpresa para você e esperava com impaciência o momento
para comunicar-lhe.
― Uma surpresa? Para mim? ― Arqueou as
sobrancelhas e se dirigiu para a tina.
― É óbvio que é para você. ― Respirou com
profundidade e após meditar a melhor forma de lhe fazer
saber a notícia, prosseguiu. ― Conforme me comentou
Jimena, que a sua vez foi informada por Theodore, a ajudante
da senhora Stone, o próprio duque se apresentou faz quatro
dias na cozinha e lhe pediu que o acompanhasse a Rowsley.
― Pediu à ajudante? ― Inquiriu Beatrice ao não entender
bem o que explicava.
― Não, à senhora Stone – esclareceu. ― Rogou-lhe que
viajasse com ele ao povoado para poder comprar certos
objetos que necessitava. Ao princípio, a senhora Stone se
negou, mas após lhe explicar sua Excelência que requeria de
sua experiência para adquirir alguns vestidos para você, ela
terminou aceitando.
― Para mim? ― Repetiu incrédula.
― Claro! Para quem se não? ― E atrás de suas palavras
soltou uma gargalhada nervosa.
― Não acredito que deva… ― murmurou Beatrice.
― É lógico que sua Excelência lhe compre um pouco de
roupa. Você entenda que quando a trouxeram para Haddon
Hall seu vestido estava rasgado e coberto de sangue ―
argumentou a moça enquanto lhe tirava a camisola e a
ajudava a introduzir-se na banheira. ― Se pretende sair desta
habitação terá que ir vestida corretamente, não lhe parece?
Além disso, acredito que nosso duque pensa que deve
protegê-la depois do acontecido. Acaso não o viu velando seus
sonhos?
― Agradeço a generosidade de sua Excelência, mas essa
decisão não lhe concernia ― disse.
Meditou durante uns instantes a maneira correta de
evitar o tema ao que fazia referência. Não podia, nem devia
lhe fazer saber que ela tinha visto o duque ao seu lado.
― E mais, ― seguiu ― não tinha que haver se
incomodado em viajar até o povoado em seu estado, posto
que qualquer uniforme de empregada me virá bem.
― Está dizendo a sério? ― Perguntou a criada
surpreendida.
― É óbvio. Tem que compreender, assim que possa
andar o suficiente, partirei para meu lar, tanto faz que roupa
cubra meu corpo. Minha felicidade aumentará por voltar para
casa sem estar embelezada com um objeto que não me
corresponde ― afirmou sem hesitações.
― Não acredito que o senhor goste dessa ideia… ―
sussurrou a donzela ao mesmo tempo em que vertia água
sobre o cabelo de Beatrice.
― Pois terá que aceitá-la, o duque não é meu dono ―
sentenciou.
― Mas a salvou…
― E eu salvei a ele. Assim estamos quites ― afirmou com
brio.
Lorinne estava incômoda após descobrir os propósitos
de Beatrice e ela pôde notar quando lhe ensaboou o cabelo.
Seus dedos se apertaram com muita força à cabeça e em
mais de uma ocasião sentiu incômodo. Tentou estabelecer
outra conversação sobre o bonito dia que tinha surgido, mas
a mudança de tema não fez com que a criada abandonasse o
silêncio em que estava absorvida. Finalmente desistiu e
deixou de esforçar-se.
Quando a donzela a vestiu tal como lhe tinha indicado,
com um vestido do serviço, despediu-se dela e saiu
apressadamente da habitação. Não lhe cabia dúvida para
onde correria e a quem informaria sobre sua decisão.
Entretanto, Beatrice não iria ceder. Por muitos argumentos
que a senhora Stone lhe oferecesse, ela não colocaria um
vestido comprado pelo duque. Ficava um pouco de dignidade
e a usaria para esclarecer certos termos e poder retornar ao
seu desejado lar.
Lorinne baixava as escadas de dois em dois. Tinha
muita pressa por chegar até a cozinha e explicar à senhora
Stone a decisão que tinha tomado a senhorita Brown.
Enquanto andava com urgência tentava convencer-se de que
não tinha a culpa. Falou-lhe da oferenda do duque com
carinho, com entusiasmo, sem dar uma visão distorcida.
Entretanto, ao recordar a cara que tinha posto a jovem depois
da informação, parecia que lhe tinha colocado uma adaga no
peito. Como era capaz de rechaçar um presente da pessoa
que lhe tinha salvado a vida? Absorvida em seus
pensamentos, abriu a porta com tanta força que ela bateu na
parede. Ao dirigir o olhar para as pessoas que se
encontravam no interior as bochechas de Lorinne arderam.
― Sinto muito, Excelência, não sabia que se
encontrava… ― tentou desculpar-se realizando uma
reverência e cravando o olhar no chão.
― O que acontece? ― Intercedeu Hanna atônita.
― Senhora Stone, eu… ― balbuciou assustada a jovem.
― O que acontece? ― Repetiu a cozinheira com um tom
mais suave.
― A senhorita Brown rechaçou os vestidos. Preferiu
vestir-se como uma empregada ― explicou sem elevar o olhar.
William se apoiou sobre a parede, dirigiu a mão direita
para o queixo e, depois de entrecerrar os olhos, acariciou-o.
― Insistiu? ― Perguntou a anciã observando de lado a
atitude que adotou o duque ante a notícia.
― Sim, senhora, eu iz isso. Mas minhas palavras não
serviram de nada ― esclareceu com pesar.
― Está bem, pode partir ao quintal, Jimena tem muita
roupa que estender e lhe virá bem uma ajuda.
― Sim, senhora. Sua Excelência… ― fez outra rápida
reverência e partiu.
Depois de que Lorinne fechasse a porta com mais
suavidade que quando entrou, ambos permaneceram
calados. William seguia com o olhar perdido ao mesmo tempo
em que se acariciava a barba e Hanna começou a cortar
umas cenouras com mais força da requerida. Ambos
meditavam sobre a atitude de Beatrice, mas com apreciações
diferentes. O duque sabia que ela não aceitaria os presentes e
inclusive adivinhou o aborrecimento que sentiria ao descobri-
los. Isso lhe dava a oportunidade de poder lhe oferecer aquilo
que tinha refletido, embora Hanna tivesse berrado quando lhe
falou de seu plano.
Não havia outra opção, se ela desejava voltar para a
cabana e continuar com seu desejo de viver em solidão,
deveria aceitar suas condições, porque do contrário…
«Isso não acontecerá ― disse a si mesmo. Ela terá que
aceitar. Não acredito que por um absurdo orgulho resolva
afastar-se daqui».
Essa ideia lhe oprimiu o coração. Não podia permitir que
ela partisse, ainda não. Não entendia bem a razão pela qual
desejava tê-la perto, mas o fazia. Por isso guardava um ás e
devia ocultá-lo até que Beatrice mostrasse suas cartas, então,
só então, ele colocaria sobre a mesa as suas.
Por outro lado, Hanna não parou de imaginar a raiva
que a garota teria mostrado depois da descoberta. Estava
segura que a jovem teria chegado à conclusão de que seu
marido ou ela mesma tinham revelado ao duque o segredo
que os três guardavam e por isso lhe comprou vários
vestidos. Nenhum cavalheiro que se aprecie de sê-lo gosta de
ver sua concubina vestida com farrapos.
«Meu Deus ― suplicou em silêncio – ajude-me a ajuda-
los».
― Segue pensando que meu plano é desatinado? ―
Perguntou William ao mesmo tempo em que começava a
dirigir-se para a porta.
― Sigo acreditando que não o aceitará, meu senhor. Já
escutou como se enfureceu por umas miseráveis roupagens…
― Aceitará ― disse enfaticamente. Segurou com força a
maçaneta da porta e iria partir quando escutou Hanna
murmurar.
― Se não o explicar de forma delicada, assustar-lhe-á e
ela fugirá para sempre. É o que deseja meu senhor, não a ver
mais? De verdade quer apartá-la de sua vida como se nunca
tivesse existido?
William franziu o cenho, agarrou com mais energia a
maçaneta e após soprar mal-humorado, dirigiu-se para a
biblioteca. Uma vez que encontrasse o controle necessário
para poder falar calmamente com a senhorita Brown,
ordenaria ao senhor Stone que a informasse sobre seu desejo
de ter uma reunião com ela o antes possível.
XIV

Não sabia que pose adotar para receber Beatrice.


Sentou-se em sua poltrona junto à chaminé e, depois de
olhar para a porta, pensou que parecia muito arrogante. Não
pretendia alterar a moça com uma aparência inoportuna,
queria que se sentisse cômoda ao seu lado, que ambos
tivessem um bate-papo relaxado e conseguir, de uma forma
agradável, que aceitasse o trato. Assim, após meditar muito,
levantou-se e caminhou para a janela. Aquela retidão casual,
aquela maneira familiar de recebê-la, tinha que ser a
adequada. De repente escutou uns passos aproximando-se
da porta. Em um princípio acreditou que eram do senhor
Stone, ele estava acostumado a mover-se dessa forma: com
um caminhar lento, possivelmente devido à fadiga de sua
avançada idade. Mas seu coração palpitou com intensidade,
sua boca ficou seca e a mão começou a agitar-se sem cessar
ao descobrir que se tratava dela.
― Adiante ― respondeu ao escutar os suaves toques na
entrada. Olhou-se para certificar-se de que sua vestimenta
estivesse perfeita e desenhou em seu rosto um leve sorriso.
― Bom dia, sua Excelência. Informaram-me que
desejava me ver ― disse Beatrice ao introduzir-se na
biblioteca.
A jovem vestia-se com um traje escuro e um avental
branco. William eliminou o sorriso ao vê-la. Não lhe parecia
correto que ela se apresentasse dessa forma, mas tal como
tinha escutado a donzela explicar à senhora Stone, tinha
recusado categoricamente seus presentes e, por muito que
lhe desagradasse, tinha que aceitar tal decisão se pretendia
conseguir seu objetivo.
― Bom dia, senhorita Brown. Obrigado por aceitar meu
convite ― indicou com voz suave.
― Acaso poderia rechaçá-la? Porque nas palavras do
senhor Stone não escutei nada a respeito. ― Arqueou as
sobrancelhas e o olhou fixamente aos olhos.
― Desculpe a atitude do mordomo, só se preocupa com
meu bem-estar ― explicou em voz baixa. — Vejo-a bastante
recuperada.
― E eu posso apreciar que as feridas que sofreu na
queda desapareceram ― respondeu com firmeza e com
aparente serenidade.
Enquanto se dirigia para a biblioteca não cessou de
pensar a melhor forma de lhe agradecer por salvá-la, por
cuidá-la e por mantê-la, sem expor os pequenos sentimentos
de carinho que tinham crescido nela durante sua
hospedagem. Por muito que tentasse fazê-los desaparecer,
não o obtinha; vê-lo a cada manhã ao seu lado, velando por
seus sonhos, protegendo-a e preocupando-se com seu bem-
estar resultou-lhe tão desconcertante como maravilhoso. Sem
dúvida era a primeira pessoa que o fazia em muito tempo e
possivelmente o fato de sentir-se tão só e desprotegida
intensificaram, sem poder evitá-lo, aquelas emoções de afeto
até tal ponto que, em mais de uma ocasião duvidou que o
jovem pelo qual esteve profundamente apaixonada tivesse
atuado da mesma maneira.
― Touché! ― Exclamou enquanto se afastava da janela e
caminhava para a poltrona. Embora tivesse dado por
descartado permanecer sentado durante a conversação, o
tom sarcástico de Beatrice lhe fez mudar de ideia. ― Bom,
senhorita Brown, que planos tem?
― Sobre o que, Excelência? ― Ela seguiu no mesmo
lugar, a três escassos passos da porta.
― Sobre sua vida, seus desejos, seu futuro? ―
Respondeu com ironia. William cruzou as pernas, reclinou-se
no respaldo da poltrona e, sem deixar de tocar a barba,
olhou-a sem mal piscar.
― Como pôde apreciar, hoje me encontro muito melhor
que em dias anteriores. ― Fez uma pequena pausa esperando
que ele comentasse algo. Ao não o fazer, prosseguiu: ―
Imagino que em um par de dias poderei retornar ao refúgio de
caça. Depois do acontecido tenho muito trabalho que fazer
para conseguir chamá-lo de lar novamente.
― Então… voltará a enfrentar só aos infortúnios da
vida?
― Isso é o que eu desejo ― disse com firmeza.
― Recorda que vive em um pequeno pedaço dos meus
domínios, não é? ― Seu tom brotou severo, duro.
― Recorda que me cedeu isso por lhe salvar a vida? ―
Respondeu com a mesma intensidade que ele.
― Mas eu salvei a sua e considero que estamos quites. ―
William se repreendeu por essa forma de falar.
A conversação não cursava como tinha planejado. Ele
tinha imaginado que, depois de expor sua proposta, a jovem
meditaria durante um tempo sobre ela e que ao final
terminaria aceitando-a, mas o ambiente que começava a
criar-se entre eles não parecia o apropriado para isso.
― Chamou-me para me indicar que como ambos nos
salvamos de uma possível morte, já não posso permanecer na
cabana? ― Beatrice deu uns passos para diante, queria ver
com mais nitidez as expressões do duque.
Estava confusa. Acreditou que o verdadeiro caráter do
homem era o que tinha tido durante sua convalescença:
carinhoso, terno, atento… mas se equivocou. Atrás da
aparência de um homem encantador seguia residindo um
presunçoso, um petulante duque.
― Chamei-a, senhorita Brown... ― levantou-se de novo e
caminhou para ela ― para lhe oferecer essa cabana que tanto
deseja em troca de uma condição.
― Uma condição? ― Beatrice entrecerrou os olhos e
apertou com força os punhos.
― Sim, uma condição, embora pudesse tratar-se de uma
proposta, melhor dizendo. ― Freou de repente para girar-se e
lhe dar as costas, ato do qual se arrependeu com rapidez.
Como podia ser tão cretino para menosprezá-la? Jamais
tinha dado as costas a uma mulher e o fazia à pessoa que
menos merecia. De repente descobriu que ela não falava,
mantinha-se muito calada. ― Não diz nada? ― Perguntou com
interesse.
― Estou esperando sua proposta ― disse reticente.
― Como poderá supor, sou um homem bastante
ocupado. Meu título de duque de Rutland implica afazeres
diários que devo atender e não podem ser interrompidos por
decisões absurdas ― comentou dando uns pequenos passos
para frente. Voltou a parar e girou-se de novo. Seus olhos se
cravaram nela e se entristeceu ao observá-la com a cabeça
abaixada e apertando os punhos com tanta intensidade que
seus nódulos estavam brancos.
William tentou acalmar-se e retornar ao tom amável com
o qual tinha iniciado a reunião, mas muito temia que a única
maneira de conseguir seu propósito era mantendo-se firme.
Se todo mundo respeitava suas decisões quando mostrava
um caráter dominante, por que ela iria ser diferente?
― De que maneira poderia interromper seus afazeres de
duque minha volta à cabana? ― Atreveu-se a perguntar sem
levantar o olhar do chão.
― Estaria pensando em você, senhorita Brown. Teria
meus pensamentos ocupados imaginando como poderá
contornar os inumeráveis perigos aos quais enfrentará
diariamente ― expôs com uma voz mais relaxada.
― OH, Meu Deus! ― Exclamou Beatrice de repente. ― É
verdade, lembro que me avisou com antecedência. ― Elevou o
rosto, olhou-o desafiante e mostrou um pequeno sorriso
malicioso. ― Se tiver sua mente ocupada em meditações
sobre minha pessoa, não poderá rememorar os momentos
sexuais que teve com suas amantes, não é?
William caminhou para ela com passo firme. Não parou
de andar até que esteve em frente a ela. Olhou-a com raiva,
mais do que deveria. Seus olhos escuros se abriram de par
em par e apertou a mandíbula com raiva.
― Esse comentário está fora de lugar, senhorita Brown ―
resmungou.
― Esse comentário é o mesmo que você me fez no dia em
que me visitou e aceitou meu pedido. ― Não se amedrontou.
Tê-lo tão perto lhe provocava certa inquietação, mas não
podia baixar a guarda. Tinha que seguir mostrando
integridade. Ela era uma mulher que, depois da desgraça,
tinha crescido, tinha maturado se feito forte e nenhum
homem a desprezaria jamais.
― Pois esteve fora de lugar quando o disse e está fora de
lugar neste momento ― seguiu com tom severo.
― Dir-me-á no que consiste sua proposta ou seguiremos
discutindo sobre as incoerências que disse em minha
presença? ― Insistiu a jovem elevando ainda mais o rosto até
que ambos os semblantes estiveram muito perto.
― Partirá para a cabana, será sua se assim o desejar,
mas antes de retornar terá que aceitar uma pequena
mudança. ― William sentia seu peito elevar-se mais do que o
habitual. Notava como seu coração galopava no interior e,
apesar de dizer a si mesmo que seu comportamento era
mesquinho e ultrajante, não podia controlar-se. Então, justo
quando esteve a ponto de dar uns passos para trás, servir um
brandy e desistiu em seu empenho, as palavras de Hanna
voltaram para sua mente: «Se não o explica de forma
delicada, assustar-lhe-á e fugirá para sempre. É o que deseja,
meu senhor, não a ver mais? De verdade deseja apartá-la de
sua vida como se nunca tivesse existido?».
Achar a resposta a essas perguntas tinha causado uma
destruição pessoal. Ele, quem se gabava de não necessitar de
uma dama ao seu lado, encontrava-se em um dilema mais
profundo do que se supunha. Não, é óbvio que não desejava
perdê-la. Seguia sem conhecer com exatidão a razão disso,
embora tivesse claro que lhe resultaria muito difícil fazer
desaparecer a moça de sua cabeça.
― Desculpe-me, senhorita Brown, não era minha
intenção lhe falar desse modo ― disse com suavidade,
aproximando-se da chaminé cabisbaixo. ― Não quero que
seja ferida de novo. Devo-lhe minha vida, é algo que nunca
poderei esquecer, por isso quando a vi na cabana coberta de
sangue e sem mal respirar senti-me o homem mais miserável
do mundo. Se você tivesse morrido… se não tivesse
conseguido auxiliá-la a tempo… ― William mostrou o pesar
que lhe corroía por dentro, esquecendo tudo o que lhe tinham
ensinado do berço: não revelar os verdadeiros pesares a
outros porque o faziam vulnerável. Entretanto, com ela não
podia ocultar-se. Necessitava que Beatrice entendesse que
não era uma pessoa a mais e sim alguém muito importante,
mais do que possivelmente deveria. Mas essa parte não a
faria saber. Ainda não.
― Não foi sua culpa. Tomei uma decisão e você a
aceitou. Os perigos aos quais estou exposta vivendo ali são
minha responsabilidade, não sua ― esclareceu.
Teve que respirar muito fundo para lhe falar. Um nó na
garganta lhe apertava com tanta força que mal saiu um
pequeno fio de voz. Aí estava, em frente aos seus olhos, o
homem ao qual via a cada dia ao despertar, o mesmo que se
preocupava com ela e tinha um coração por muito que
tentasse ocultá-lo. E que conseguia, à sua vez, que o dela
pulsasse com força. De repente, uma debilidade afligiu o
corpo de Beatrice. Foi uma sensação tão estranha quanto
preocupante. Sua ira, aquela que a mantinha erguida,
desapareceu e seus joelhos se dobraram sem querer.
― Embora me desculpe do acontecido, ― começou a
dizer girando-se para ela e sentindo prazer ao ver que a
rigidez do pequeno corpo tinha desaparecido ― eu sou
incapaz de fazê-lo. Durante esta semana sofri cada grito que
emitia, cada dor que padeceu, cada tortura que aguentou.
― Não deveria… ― murmurou.
― Não deveria o que, senhorita Brown? Sentir-me
assim? Esquecer que me comportei como um maldito cretino
ao abandoná-la naquele lugar repleto de ameaças? ―
Caminhou para ela de novo até que a distância entre ambos
não fosse mais de dois palmos. ― Por favor, rogo-lhe, aceite
minha proposição e depois poderá abandonar Haddon Hall.
Prometo-lhe que a deixarei viver em paz.
― O… qual é a proposição?
Tinha sido capaz de dizer algo? Porque não estava muito
segura disso. Estava atônita, desconcertada e seu coração
não cessava de pulsar a um ritmo frenético. O duque
permanecia tão perto como a vez que ambos se sentaram nas
escadas e, depois de um movimento involuntário, quase
roçaram seus lábios. Esse instante, esse preciso momento,
tinha-o recordado com raiva durante o tempo que esteve
sozinha na cabana, mas agora toda aquela ira desapareceu e
o único que desejava era que a vida lhe oferecesse outra
oportunidade como aquela. Assustada por tais divagações,
apartou-se e abaixou a cabeça. Não podia seguir
contemplando ao duque dessa forma. Não era sensato cair
em um poço sem fundo.
― Rogo-lhe que alongue sua permanência em meu lar
até que se construa um muro de pedra ao redor da cabana ―
expôs sem hesitações.
― Quanto tempo demorariam em construi-lo? ― Seguia
com o olhar encurvado e suas mãos se enredavam no avental.
― Duas semanas, no máximo três. E lhe juro por minha
honra que quando os criados me informarem sobre a
finalização do muro, você poderá partir ― sentenciou com
firmeza.
― Com uma condição ― disse com uma atitude
aparentemente serena.
― Diga qual ― respondeu William sem mover um
músculo de seu corpo.
― Pagarei os gastos que ocasione minha estadia aqui
realizando algum tipo de serviço ― determinou.
― Parece-me coerente ― expôs depois de uma pequena
reflexão. ― Informarei ao senhor Stone sobre isso e lhe
oferecerá um posto adequado. ― Colocou a mão direita nas
costas e sorriu.
― Posso me retirar, sua Excelência? ― Precisava sair
dali. Não podia permanecer naquela habitação por mais
tempo. Tudo começava a lhe dar voltas e notava um suor frio
nas mãos.
― É óbvio, senhorita Brown, e muito obrigado por
aceitar. Fez-me um homem muito afortunado ― disse como
despedida.
Beatrice saiu da biblioteca cambaleando-se. Era incapaz
de manter-se em equilíbrio posto que as emoções que
invadiam seu pequeno corpo a açoitavam sem cessar. Apoiou
as costas sobre a porta, olhou para as escadas e após
respirar com profundidade, começou a chorar. Não podia
continuar com aquela tortura emocional, não era razoável
deixar se levar por aquelas sensações de afeto para com o
duque. Tinha que distanciar-se dele e evitá-lo, na medida do
possível, durante o tempo que permanecesse na residência.
Não cabia outra alternativa. Apertou de novo suas mãos e,
depois de apartar as lágrimas que banhavam seu rosto,
dirigiu-se para o quarto. O primeiro que indicaria à donzela
seria que a trocasse de habitação nessa mesma manhã.
Por outro lado, William permaneceu imóvel. Olhava
fixamente para a direção por onde tinha saído Beatrice.
Seguia com o coração alterado, o corpo inquieto e a mente
refletindo mil ideias de como obter algo que nem ele mesmo
sabia com exatidão o que era. Fosse o que fosse tinha um
prazo de três semanas para alcançá-lo. Abatido pela confusão
de sentimentos que sofria após estar tão próximo à moça,
dirigiu-se para a poltrona, sentou-se e cravou o olhar nas
dançantes chamas do fogo.
XV

De maneira estranha nessa mesma tarde a ajudante de


cozinha abandonou seu posto para ocupar um ao lado de
Jimena, encarregada da lavanderia e, como era lógico, sua
vaga foi atribuída à Beatrice. À moça não cabia a menor
dúvida de que a cozinheira se inteirou de seu acordo com o
duque e quis acolhê-la sob seu amparo, decisão que a fez
muito feliz.
O resto da jornada foi tranquila. Lorinne lhe
proporcionou outra habitação e ambas a prepararam para
fazê-la mais acolhedora. Isso era algo que desconcertava
Beatrice. Não entendia como um lugar tão imenso e
aparentemente cheio de vida podia ser em seu interior tosco e
frio. Nem sequer os móveis, adornos ou abajures da casa
mostravam calidez ou familiaridade. A jovem suspirou em
várias ocasiões ao comparar Haddon Hall com seu lar, a
residência Montblanc. Não albergava a mesma magnitude,
mas ali onde seus pais adornavam a entrada com flores
colhidas de seu próprio jardim, os criados do duque se
conformavam limpando o pó dos candelabros, dos majestosos
quadros que exibiam a quem tinha ostentado o título com
antecedência e de manter impolutos os extensos tapetes que
cobriam os chãos. A primeira conclusão de Beatrice ao
examinar com mais atenção os salões, corredores e demais
habitações foi que o lar queria expressar o caráter do duque:
distante, orgulhoso, solene e poderoso. Entretanto, depois da
conversação na biblioteca, a jovem começava a duvidar. O
duque escondia algo em seu interior e, embora não fosse uma
ideia sensata, estava disposta a descobrir quem ele era em
realidade.
Antes que o entardecer obscurecesse as proximidades de
Haddon, Beatrice decidiu passear um momento. Precisava
sair dali e respirar o ar limpo dos jardins. Com passo lento e
delicado, tanto que mal escutava seus próprios passos, a
jovem saiu ao exterior. Os tênues raios solares a receberam e
ao sentir em sua pele a cálida luz se estremeceu. Fazia tanto
tempo que não desfrutava de uma caminhada sem ter que
preocupar-se com o perigo, que o mero feito de poder andar
tranquila a inquietou. Baixou as inumeráveis escadas de
pedra agarrando-se com força ao corrimão. Quando ao fim o
calçado tocou a grama, sorriu. Mal tinha sentido dor.
Emocionada, apressou-se a continuar sua aventura pelo
extenso jardim.
Uma diversidade de colorido a acolheu ao introduzir-se
nele. Flores de várias cores e aromas lhe davam as boas
vindas como se fosse a primeira pessoa que as visitavam
depois da chegada da primavera. Esticou a mão direita e foi
tocando as tenras pétalas que conseguia alcançar. Seu tato
era tão delicado que temeu lhes fazer dano e romper a
harmonia que emanavam. Olhou para o horizonte para
compreender a magnitude do maravilhoso jardim e, justo ao
observar o final deste, o peito se encolheu e a respiração se
fez débil. Ali, entre tanta beleza, havia uma pequena clareira
onde um tipo de flor crescia à sua mercê. Sem duvidar um só
instante aproximou-se delas, agachou-se e deixou que seu
nariz recebesse o seleto aroma, enchendo seus pulmões com
a delicada fragrância a frutas. Em meio a essa
compenetração, Beatrice soluçou e, apesar de não querer lhes
fazer dano, cortou um caule e o aproximou-o dos lábios.
― Crescem selvagens. Minha mãe trabalhou muito para
cultivá-las quando se casou com meu pai e vieram viver aqui
e, embora ninguém cuide delas, seguem brotando ― explicou
uma voz atrás da jovem.
Beatrice girou-se com tanta rapidez que se William não
a tivesse segurado com firmeza teria caído ao chão. Pôde
notar a intensidade do aperto no braço e o assombro dele, por
mais incrível que parecesse, a brutalidade do movimento não
o sacudiu, seguia imóvel e com os pés fixos no chão.
― Sinto se a assustei, senhorita Brown. Não foi minha
intenção ― esclareceu depois de lhe soltar o braço.
― Excelência... ― murmurou.
― Gosta? ― William moveu devagar seu corpo para onde
se encontrava a plantação silvestre. Queria fazer desaparecer
o quanto antes possível àquela ansiedade que tinha
começado a emergir em seu interior. Estava louco, mais do
que se imaginava porque não era de pessoas sãs sentir-se tão
excitado, tão emocionado, tão alterado com um mísero roce.
― Muito. São as mais bonitas de todo o jardim –
aventurou-se a dizer.
― Têm um aroma peculiar, é uma estranha mescla de…
― Interrompeu-se para meditar o que ia dizer. Fazia tanto
tempo que não se aproximava delas, porém não acertava com
o que as comparar.
― É uma combinação de frutas. Esta que tenho em
minha mão cheira a laranja. ― E sem meditar duas vezes a
aproximou-lhe do nariz para que inspirasse o aroma. Quando
foi consciente do gesto tão inapropriado, retirou a flor com
rapidez. ― Sinto muito…
― Tem razão, ― disse desenhando um enorme sorriso ―
cheira a laranja.
William não sabia do que falar com Beatrice. Não queria
lhe perguntar a razão pela qual tinha mudado de habitação
ou por que tinha saído sem uma donzela, embora ambas as
dúvidas fossem as que o motivaram a sair atrás dela. Tinha-a
visto da janela da biblioteca, onde admirava o entardecer
enquanto tomava sua quarta taça de licor. Ao notar como seu
aborrecimento crescia ao contemplá-la de novo desprotegida,
saiu da habitação e, com passo firme, dirigiu-se para os
jardins.
Beatrice voltou a contemplar o pequeno canteiro de
flores dirigindo seus pensamentos à mulher que tinha
ordenado plantá-las e depois as tinha abandonado. Por que
teria tomado tal determinação? O que teria acontecido entre
mãe e filho para que este tentasse eliminar aquilo que ela
amava? Olhou de esguelha ao duque e o observou com o
cenho franzido. A lembrança de sua mãe lhe produzia dor?
Por quê?
― Posso lhe pedir um favor, sua Excelência – encorajou-
se a dizer rompendo o estranho silêncio surgido entre eles.
― Depende… ― Voltou seu rosto para ela e entrecerrou
os olhos. Se voltasse a insistir em partir só à cabana, apesar
do trato que tinham combinado, obrigá-la-ia a retornar à
mansão e a encerraria com chave em seu novo quarto.
A moça soltou uma pequena gargalhada ao ver a rigidez
que adotava o duque.
― Poderia colher algumas destas preciosidades para
adornar meu dormitório?
― Pegue as que desejar ― disse depois de notar como a
tensão de seu corpo se desvanecia.
― Muito obrigada, milord. Fez-me uma mulher muito
afortunada ― respondeu repetindo as mesmas palavras que o
duque usou quando ela aceitou ficar em Haddon Hall.
Estranhamente Beatrice guardava em sua memória cada
frase, cada palavra e cada gesto do homem, e cada vez que
podia, rememorava-os.
― Gosta dos cavalos, senhorita Brown?
― Muito ― respondeu levando a flor de novo ao seu
nariz.
― Gostaria de me acompanhar aos estábulos? É ali para
onde me dirigia antes de perceber sua presença no jardim ―
mentiu.
Explicar-lhe os verdadeiros motivos pelos quais se
encontrava ao seu lado não era conveniente. Esperaria que o
tempo lhe desse a oportunidade de entender os sentimentos
que tinha pela senhorita Brown.
― Posso me negar ao seu convite ou talvez…? ― Disse
divertida.
― Não tem obrigação de nada ― respondeu com
sobriedade. ― Se me desculpar… ― William tinha erguido de
novo sua figura, apertava com vigor a mandíbula ao falar e
avançou uns passos para a direção tomada quando notou
que seu braço esquerdo era segurado com suavidade.
Ao dirigir o olhar para este viu uma pequena mão que o
liberou com rapidez.
― Ficarei encantada de lhe acompanhar aos estábulos,
se seguir desejando minha companhia ― expôs sem
envergonhar-se de seu repentino descaramento.
O único que fez o duque foi assentir com a cabeça e
caminhar para as cavalariças. Beatrice andava dois passos
atrás dele, não se colocou ao seu lado por mais que o
desejasse. No pequeno caminho, William falou sobre o
nascimento de Haddon Hall, de seus ancestrais e de como a
residência chegou a ter a magnitude do momento. A jovem o
escutava com atenção, percebendo com claridade como a voz
melodiosa de William ia mudando segundo as anedotas que
contava; entusiasta, divertida ou pelo contrário, triste e
abatida, sobretudo quando falava da época em que seu pai
herdou o título e suas extravagâncias com aquele paradisíaco
lugar.
Não havia dúvida alguma sobre o ressentimento do
duque com os seus progenitores e Beatrice se perguntou se a
senhora Stone saberia a razão. Deveria ser muito cautelosa
para falar com a cozinheira sobre a vida do duque, era uma
mulher muito perspicaz e poderia descobrir o carinho e o
respeito que começava a sentir por esse homem.
― Sua Excelência ― saudou Mathias com uma pequena
reverência. Logo dirigiu o olhar para Beatrice e sorriu ao vê-la
melhor. ― Senhorita Brown, alegro-me de vê-la com tão bom
aspecto.
― Obrigada, Mathias. ― Ela se aproximou do moço e
segurou as mãos masculinas entre as suas. ― Devo-te minha
vida. Lorinne me contou que partiu ao povoado para pedir
auxílio.
O moço levou uma mão para a boina, apartou-a e
começou a arranhar a cabeça enquanto suas bochechas
ardiam e balbuciava com certo atordoamento.
Como era lógico, aquela amostra de afeto não passou
despercebida pelo duque, que de novo não pôde evitar
esticar-se mal-humorado. Não entendia como a moça era
amável com todo mundo, salvo com ele. Se tinha sido ele
quem ordenou procurar o doutor! Ante a ira incontrolada que
sentiu, colocou sua mão direita na parte de trás de sua
cintura e caminhou com solenidade para o interior do
estábulo.
― Ainda não encontrou meu garanhão? ― Perguntou
com secura.
― Não, senhor. Temo que Dalión foi presa daqueles
malditos lobos.
Ao escutar sua afirmação, Beatrice se encolheu e
mostrou um imenso horror em seu rosto. As imagens da fera
apertando com força as mandíbulas em sua perna a
aterrorizaram de novo. Mathias, ao descobrir seu medo,
agarrou-lhe as mãos e as apertou com força.
― Não tema, senhorita Brown ― disse. Nesse momento
William se voltou para descobrir o que acontecia à moça,
seus olhos expressavam pavor e o pequeno corpo se
encurvava. ― Quando finalizarem o muro estará a salvo
desses filhos do diabo.
― Senhorita Brown? ― William chamou a atenção da
jovem para que o olhasse, mas não reagia. Parecia encontrar-
se em uma espécie de transe. ― Senhorita Brown? ― Repetiu.
Ao não obter resposta, William se aproximou apartando o
moço. ― Não deve temer, escuta-me? Nada nem ninguém
poderá lhe fazer dano de novo, ouviu o que lhe disse? Nada
nem… ― Não pôde continuar com aquela severa sentença.
A jovem, ainda presa do medo, equilibrou-se sobre ele e
o abraçou com força. Atônito por senti-la tão perto e tão
débil, William lhe acariciou o cabelo amaldiçoando o fato de
não poder segurá-la com as duas mãos e consolá-la como era
devido.
― Quer que chame o senhor Stone, sua Excelência? ―
Perguntou o jovem inquieto.
― Não, a senhorita Brown se acalmará com rapidez, não
é? ― Ela, apoiada ainda ao seu peito, assentiu com
suavidade.
― Se o desejar, senhor, poderíamos organizar uma
batida de caça amanhã ao amanhecer. Estou seguro que…
― Não! ― Exclamou Beatrice com vigor. ― Não podem
matá-los!
Apartou-se com lentidão do corpo de William e o olhou
aos olhos. As lágrimas da moça percorriam o pálido
semblante e seus lábios eram, segundo o duque, mais
voluptuosos do que lhe pareceram em princípio.
― Não se fará tal batida, prometo. E agora retornemos
para a casa. Precisa descansar. ― Quis esticar sua mão e lhe
tirar as lágrimas do rosto. Quis voltar a senti-la junto a ele.
Quis que aquele maldito duelo jamais tivesse acontecido...
William, contrariado pelo dever e o desejo, teve que
adotar uma pose serena, sem exibir a ansiedade que sentia
em seu interior. Caminhou sem hesitações até o interior do
lar com Beatrice lhe seguindo dois passos atrás. Cada vez
que podia a olhava de esguelha para certificar-se de que
seguia junto a ele apesar de encontrar-se em choque. Uma
vez que conseguiram chegar à entrada chamou com ímpeto
ao senhor Stone, que apareceu justo no momento que soava
a última letra de seu nome.
― Diga à donzela que atende as necessidades da
senhorita Brown que é requerida agora mesmo ― disse com
firmeza.
O mordomo correu para o salão principal onde Lorinne
limpava a cristaleira. Depois de ser informada, apresentou-se
na entrada com prontidão. Olhou ao duque, fez uma pequena
inclinação e avançou até chegar a Beatrice, que se abraçava
com força e expressava um imenso horror em seu semblante.
― Conduza-a de novo ao meu quarto. Esta noite
descansará lá ― sentenciou.
Ninguém se opôs a tal decisão, nem sequer a senhora
Stone que aparecia pela parte direita da escada e colocava
sua mão na boca para aplacar um possível grito. William
ficou imóvel enquanto observava como a donzela subia as
escadas segurando Beatrice. Uma vez que ambas as
mulheres se giraram para o corredor que conduzia ao
dormitório, olhou de esguelha ao mordomo e, sem relaxar um
ápice a tensão de seu corpo, indicou:
― Acompanhe-me, Brandon, tenho que te explicar certas
mudanças que serão levadas a cabo a partir de manhã.
― Sim, sua Excelência. ― E sem mediar palavra, o
senhor Stone caminhou à distância protocolar atrás do
duque.
XVI

Um horrível pesadelo a tinha alterado durante a noite.


Foi tão espantoso que em várias ocasiões despertou gritando
e soluçando, mas por mais estranho que lhe parecesse,
contemplá-lo ali sentado, cuidando-a e protegendo-a cada vez
que lhe sussurrava palavras tranquilizadoras, fazia com que
aquele medo atroz desaparecesse e conseguisse conciliar o
sono de novo. Quando os primeiros raios apareceram entre as
cortinas, Beatrice abriu os olhos e, em silêncio, contemplou-
o.
Descansava sobre a poltrona, seus pés se estendiam
para o leito onde ela permanecia, a mão que era incapaz de
mover jazia flácida no lado esquerdo da poltrona, enquanto
que a direita suportava o peso da cabeça masculina. Tirou-se
a jaqueta, ficando só com a camisa branca e o colete
escarlate. A barba lhe tinha crescido bastante, assim como
seu cabelo, que naquele instante se liberou da amarração ao
qual era submetido e cobria a testa e certas partes do rosto
varonil. Até aquele momento não tinha reparado na
atratividade incrível do homem. Era, sem dúvida, o cavalheiro
mais bonito que tinha conhecido. De repente, Beatrice notou
uma terrível dor em seu estômago, como se alguém lhe
houvesse dado um golpe. Mas não se tratava de alguém, e
sim de algo, um sentimento que cada vez se fazia mais forte,
que cada vez era mais intenso.
Repreendeu-se por tais emoções e tentou recordar o
duque que recusou ajuda ao seu pai. Quis rememorá-lo sob a
cortina, amando a outra mulher, mas não pôde. Não
encontrou nada que pudesse assemelhar-se ao homem que
tinha ao seu lado com o que conheceu no passado. Eram
duas pessoas completamente diferentes e não só pelas
marcas em seu rosto ou a lesão em seu braço.
Não entendia como não tinha prestado atenção a essa
imobilidade nos encontros anteriores, possivelmente porque
não lhe pareceu estranho que aquela mão sem energia para
realizar pequenas funções cotidianas permanecesse sempre
escondida atrás das costas do duque, graças às alças que
agora podia ver por ele estar sem a jaqueta. Ao ficar à vista,
inerte sobre o tecido do assento, a curiosidade da jovem
aumentou. Poderia sentir através dela? Alguém tinha tentado
dar vida a esse membro morto ou desistiram depois do
dramático acontecimento?
Ela o tinha segurado no jardim para reter sua marcha,
mas até aquele momento não caiu em si que o contorno da
extremidade sã era três vezes maior que a outra. Por quê? Por
que tinha diminuído sua força naquele braço? Um repentino
desejo por tocá-lo e responder as suas perguntas à fez
levantar-se da cama.
Apoiou devagar os pés no chão, incorporou-se com mais
suavidade ainda e caminhou sobre o tapete fazendo o menor
ruído. Inclinou a cabeça mordendo o lábio sem deixar de
olhar fixamente as pálpebras fechadas do duque. Não sabia o
que diria se ele abrisse os olhos naquele momento, mas seu
impulso era muito forte para ignorá-lo. Aproximou devagar as
gemas dos dedos da superfície suave do dorso e a tocou do
pulso até os nódulos dos dedos.
Um calafrio percorreu o braço de William lhe arrepiando
o pêlo até o cotovelo e despertando-o de repente.
― Bom dia, senhorita Brown ― saudou-a um tanto
aturdido.
Levantou-se com tanta rapidez da poltrona que tropeçou
e teve que segurar-se no respaldo. Sua voz soou débil, como
se lhe tivessem apertado a garganta para asfixiá-lo. O mero
feito de descobrir que Beatrice se levantou da cama
semidesnuda e que havia tocado aquela mão lhe provocou
um ódio imenso por si mesmo, produziu-lhe um amontoado
de sensações que não soube assimilar.
― Bom dia, sua Excelência ― respondeu sem reparar no
pequeno detalhe de sua vestimenta.
Estava acostumado a lhe acontecer quando se
empenhava em averiguar uma coisa, não era consciente do
que acontecia ao seu redor até que o conseguia. Segundo sua
mãe era um horrível defeito procedente da família Lowell, mas
graças ao qual tinham sido grandes triunfadores na vida. Um
bom exemplo disso era seu avô Notheber, que se converteu
em barão de Montblanc após salvar o rei de uma perigosa
enfermidade.
― Encontra-se melhor? ― Perguntou.
Quis evitar que a centena de pensamentos ímpios
continuasse perturbando-o, mas foi impossível. Não só
notava como o coração se acelerava, mas sim, depois de
muito tempo, suas calças pareciam mais estreitas do que o
habitual.
― Muito melhor. ― Olhou-o com descaramento e sorriu
ao notar certa inquietação no homem. Aquela fortaleza e
arrogância tinham desaparecido e em frente a ela se mostrava
um homem vulnerável. Aquele a quem ela começava a adorar.
― Obrigada por permanecer ao meu lado. Não devia…
― É minha convidada e como tal devo me ocupar eu
mesmo de seu bem-estar ― respondeu após respirar com
profundidade para obter um pouco de quietude.
― Entendo… ― Sorriu com suavidade. Girou-se para a
cama, deu dois passos e se agarrou a um dos quatro dosséis
de madeira que a adornavam. ― Isso quer dizer que não sou a
primeira mulher a quem vela o sono, não é? ― Disse
zombadora. Não entendia por que desejava enfurecer ao
duque, possivelmente precisava averiguar até que ponto
aguentaria suas rabugices.
― Como diz? ― William abriu os olhos como pratos ao
escutar a insinuação descarada da moça. Logo franziu o
cenho, colocou sua mão direita nas costas, deu uns passos
para a porta e continuou: ― Informarei à senhora Stone de
sua melhora. Acredito que agradecerá sua presença na
cozinha porque não conseguiu cuidar de todos os
preparativos que precisava fazer para hoje.
― Terá convidados? ― Perguntou com zombaria.
Durante sua estadia em Haddon Hall ninguém tinha
aparecido e lhe resultava estranho que alguém desejasse
visitar o duque.
― Acredita que sou uma pessoa tão espantosa para não
ser visitado por outros seres humanos, senhorita Brown? ―
Beatrice não respondeu. Manteve-se agarrada ao dossel e
olhou para os lençóis da cama. ― Imagino que seu silêncio
responde de maneira negativa à pergunta que acabo de lhe
realizar. Não se preocupe, não será a primeira nem a última
mulher que pensa que sou um miserável e logo depois de
permanecer ao meu lado descobre um homem encantador.
Agora, se me desculpar, tenho que atender meus afazeres
como duque posto que, como já lhe disse, não posso ocupar
todo meu tempo em atendê-la. Bom dia.
Quando fechou a porta, William permaneceu uns
instantes atrás dela. Ao escutar um suave grito de Beatrice,
sorriu e desceu as escadas assobiando uma melodia.
Como podia ser tão petulante? A jovem caminhava pela
habitação agitada. Respirava e exalava com força. Colocou as
mãos na cintura, logo as levou ao rosto para apartar as
mechas do cabelo e finalizou as apertando em forma de
punhos. Estava muito zangada, muito para sair da habitação
e desenhar um sorriso em seu rosto. Não chegava a
compreender como era possível que em uma conversação em
que ela ia ganhando, ele terminasse triunfante.
Sempre obtinha o que desejava, primeiro que ela
permanecesse em Haddon, segundo que voltasse para a
habitação e para cúmulo havia tornado a lhe recordar que ela
seguia atrapalhando suas reflexões.
― Maldito seja, duque de Rutland! ― Exclamou ao
mesmo tempo em que golpeava com força o travesseiro.
― Bom dia, como se encontra…? ― Lorinne entrava na
habitação sem pedir permissão quando observou a moça
enfurecida e golpeando com insistência o almofadão. ― Seja o
que for, estou segura de que o travesseiro não tem culpa ―
afirmou antes de soltar uma sonora gargalhada.
― Bom dia, Lorinne. Não estava lhe dando uma surra, se
por acaso o pensou ao ver-me, só estou tentando amaciá-lo.
Esta noite mal pude conciliar o sono por senti-lo incômodo –
desculpou-se. Colocou o travesseiro sobre o colchão e o
acariciou com suavidade.
― Jimena o trocou ― comentou para finalizar o tema.
Tinham muitas coisas que fazer e não havia tempo para
esbanjá-lo em tolices. ― Bom, preparada para uma manhã
intensa?
― Intensa? ― Repetiu enquanto Lorinne apartava as
cortinas e abria as janelas.
― Muito. Faz uns dias o senhor Stone nos advertiu que
teríamos uma visita um tanto peculiar ― expôs ao mesmo
tempo em que ajudava Beatrice a colocar o traje de donzela
que se empenhou em usar.
― Peculiar? Está tentando me dizer que a duquesa de
Rutland nos visitará? ― Perguntou emocionada.
― Não! ― Exclamou entre risadas.
― Por quê? ― Quis saber Beatrice.
― Odiava este lugar, ainda mais quando descobriu que
seu marido não respeitava o lar familiar, o lugar onde se
criavam seus filhos.
― Não entendo… ― disse ao mesmo tempo em que atava
o avental ao seu corpo com um laço.
― A senhora Stone não está acostumada a falar a
respeito, ama ao nosso senhor como se fosse seu próprio
filho, mas uma vez explicou que o pai de nossa Excelência era
um tirano, um filho do diabo que só causava maldade no
mundo.
― O que aconteceu? ― Olhou-a com atenção enquanto
Lorinne sacudia almofadas e tapetes.
― Não sei. Ela jamais faz referência a isso. Bom… ―
Aproximou-se de Beatrice, sorriu e a fez avançar para a
porta. ― Preparada?
― Claro ― asseverou.
Teve que agarrar-se com firmeza ao corrimão quando
percebeu as mudanças ao sair do dormitório, o
aborrecimento que tinha crescido depois do encontro com o
duque se dissipou completamente. Desceu muito devagar
porque seu corpo tremia e sentia como se o coração se
abrandasse pouco a pouco. Não podia ser certo, aquilo devia
ser uma alucinação. Olhou de esguelha à Lorinne e a
encontrou sorrindo, entusiasmada com as modificações.
Retornou o olhar para baixo para confirmar que era verdade,
que seus olhos não lhe enganavam e o confirmou: toda a
entrada, aquela que ao acessar ao lar mostrava frieza e
sobriedade, era um imenso e colorido jardim.
Os vasos, anteriormente vazios, encontravam-se
transbordantes de flores, mas não de qualquer tipo de flor e
sim da sua, a que mostrou ao duque na tarde anterior.
Continuou sua descida, com muita dificuldade conseguiu
chegar até o final. Seguia atônita, imersa em si mesma. O
teria feito por ela? Mas então apareceu em sua mente as
palavras de Lorinne, aquelas que lhe informavam sobre os
convidados peculiares que seriam acolhidos em Haddon Hall.
Não, claro que não o tinha feito por ela, mas sim para
mostrar certa aparência para seus hóspedes. Açoitada como
quem é despertada enquanto sonha com algo precioso,
Beatrice tomou forças e se dirigiu para a cozinha. Tinha um
dever a cumprir e precisava centrar-se nisso para eliminar os
pensamentos desatinados que sua mente lhe oferecia.
― Bom dia, pequena. Conseguiu descansar? Eu estava
preocupada. Jamais vi um rosto tão pálido nem um corpo tão
debilitado como o que apresentou ontem. ― A cozinheira, ao
vê-la aparecer, deixou o que estava fazendo e se aproximou
dela para abraçá-la.
― Sim, senhora Stone, dormi placidamente ― respondeu
com suavidade. Sentir o corpo acolhedor da mulher junto ao
seu fez que com que sua repentina desilusão desaparecesse.
― Avisaram-me que hoje terá muito trabalho – prosseguiu. ―
Se for amável de me indicar como ajudá-la…
― OH, meu Deus! Tem razão! ― Separou-se dela e correu
para a mesa para seguir com sua tarefa. ― Pega essa cesta de
batatas, terá que as cortar o mais rápido possível. ― Olhou a
jovem e meditou sobre o que ia dizer em seguida. ― Sabe
cozinhar um pouco? Alguma sobremesa, talvez?
― Só o pudim… ― disse com certo pesar.
― Bom, pois deixe para mim as batatas e prepare um
suculento pudim.
Beatrice correu para a despensa e apareceu com os
ingredientes necessários entre suas mãos. Enquanto
recordava que passos deveria seguir, cantarolava uma
canção. Por uma vez, desde muito tempo, esqueceu-se de
todo o acontecido no passado e se divertia com seu presente.
Hanna a escutava com atenção ao mesmo tempo em que
cortava os tubérculos. A moça não era consciente do que
acontecia ao seu redor nem o escândalo que se produziu ao
ser amparada sob a proteção do duque. Entretanto, tal como
tinham suposto, o doutor trabalhou em propagar por Rowsley
que o senhor de Haddon Hall albergava na residência sua
concubina, assim como fez seu progenitor no passado.
Tais notícias inapropriadas chegaram aos ouvidos do
pároco e este mandou uma missiva de urgência ao milord.
Informava-lhe de sua pretensão de ir visita-lo e o desejo de
esclarecer certos rumores que se estendiam por Rowsley.
Tanto Brandon como ela acreditaram que William adiaria a
visita até que a moça retornasse à cabana, mas não foi assim.
Depois de ler a carta várias vezes, o duque aceitou o convite
sem titubear.
Como era de esperar, seu marido falou sobre a
vunerabilidade do duque e que aceitar aquela imposição do
reverendo se devia a querer esclarecer a verdade. Embora ela
não estivesse de acordo com aquela hipótese tão absurda.
Sabia que o homem escondia algo em seu interior. Algo que
ainda, por sua inexperiência no amor, não sabia nomear.
Acaso seu marido estava cego? Desde quando adornavam o
interior da residência com flores? Como não deduziu uma
coisa tão singela? Possivelmente porque não o tinha pensado
de um ponto de vista lógico. Era muito fácil de compreender,
na tarde anterior tinha estado com ela no jardim, todo mundo
pôde observá-los posto que eles não se escondessem e, nessa
mesma noite, o duque ordenou colher às mesmas flores que
estavam observando para encher os vasos da casa.
«Homens…», sussurrou para si a anciã.
― Senhora Stone, posso lhe fazer uma pergunta? ―
Solicitou Beatrice depois de um momento em silêncio.
― Se puder respondê-la, farei-o ― respondeu levantando
o rosto para a jovem e tentando averiguar o que lhe rondava
pela cabeça.
― Quem são os convidados que almoçarão com o duque?
― Girou-se para a mulher e apoiou a cintura na pedra da
bancada.
― Por que deseja saber, moça? ― Levantou-se do assento
e inundou as batatas cortadas em um caldeirão de água fria.
― Não sei… tanto mistério me deixou muito intrigada.
― Não se preocupe, o duque saberá contornar qualquer
problema ― disse sem pensar.
― Problema? De que tipo de problemas fala? ―
Aproximou-se tanto da mulher que podia tocar suas costas
com sua respiração.
― Como te disse… ― ao girar-se a encontrou de frente.
O rosto da jovem mostrava tanta preocupação e
ansiedade que Hanna duvidou se prosseguia com a
conversação ou mudava radicalmente. Entretanto, se suas
deduções fossem corretas, ela devia saber a verdade por mais
dolorosa que fosse.
― Suplico-o… ― rogou.
― É só o senhor e a senhora Brace ― expôs enfim.
― O pároco e sua esposa? ― Perguntou assombrada.
― Sim. Não é a primeira vez que visitam Haddon Hall e
imagino que desejam conversar de novo com lorde Rutland ―
disse subtraindo importância ao acontecimento.
― Esses dois geralmente não visitam ninguém, a menos
que estejam tramando algo ― murmurou pensativa.
― Bom, talvez seja só outra visita de cortesia. ― Afastou-
se da moça e retornou à mesa para pegar outras verduras
que devia descascar.
― Oculta-me algo, não é, senhora Stone? E se tem certo
cuidado em me dizer a verdade é porque o propósito da… ―
ficou calada. Olhou fixamente à anciã e ao observar que esta
se encontrava mais inquieta do que o habitual, soube que ela
tinha algo a ver com aquilo. ― Rogo-o, conte-me o que
acontece.
Hanna a olhou com tristeza e sopesou se aquela criatura
poderia suportar a verdadeira razão. Não só porque ela foi
uma vez a concubina do duque, mas sim porque isso lhe
produziria um pesar irreparável. Estava segura de que fugiria
de Haddon Hall, possivelmente até abandonaria a miserável
cabana em que habitava e, para desgraça do duque, não
voltaria a encontra-la jamais.
― Senhora Stone… ― suas suaves palavras ao lhe haver
colocado a delicada mão sobre seu ombro, despertaram-na de
suas reflexões.
Ia dizê-lo e que Deus a amparasse se se equivocava.
― Quando o duque te recolheu da cabana chamou o
médico de Rowsley. Depois de lhe cuidar das feridas teve um
enfrentamento com o duque. Acusou-lhe de te enviar àquele
refúgio para te usar como prostituta e te abandonar naquele
lugar desprotegido. Apesar dos intentos de nosso duque para
esclarecer a verdade, o senhor Wadlow não atendeu à
sensatez. Partiu convencido de sua teoria e a difundiu pela
cidade ― expôs com voz entrecortada.
― Por quê? Que motivo teve para pensar algo assim? ― A
jovem apertou a mandíbula e segurou seu avental com força.
― O anterior duque de Rutland não tinha princípios nem
respeito por ninguém. Cada vez que retornava convidava à
Haddon Hall todas as prostitutas que encontrava em sua
viagem. Isto já não era um lar pequena, era um prostíbulo.
Não lhe importava que seus filhos brincassem de correr na
mesma casa em que ele se embebedava e fornicava com as
fulanas. Todo mundo sabia o que acontecia aqui e para que a
desastrosa fama dos Rutland não alcançasse a honradez de
nenhuma família, separaram-no da respeitável sociedade a
qual pertencia. Esse homem trouxe a desgraça ao sobrenome
Manners, destroçando o trabalho que seus ancestrais
realizaram pelo condado de Derbyshire. Como pode supor, a
duquesa era incapaz de aparecer por este lugar quando
descobriu as façanhas de seu marido e inclusive terminou
abandonando seus próprios filhos. Estava acostumada a
dizer que as pobres criaturas lhe recordavam quão
desventurada era ao casar-se com aquele monstro.
Finalmente, o senhor Stone e eu tivemos que tomar conta
daqueles meninos desamparados.
― Meu Deus! ― Exclamou Beatrice dirigindo sua mão
direita para a boca e deixando que as lágrimas vagassem
pelas bochechas.
― Ele não é como seu pai, por mais que tenha
acreditado sê-lo no passado. Não o é! Mas não descobriu sua
verdadeira condição até que foi muito tarde… ― Hanna
soluçou e cobriu seu rosto com as palmas. ― Ele não merece
isto, Beatrice. Ele não merece carregar com destruição a
maldade de seu pai.
A jovem abraçou com força a anciã para consolá-la,
embora por mais que o tentasse, não o obteve. Tal como tinha
deduzido em mais de uma ocasião, aquela mulher se
comportava como a mãe que o duque nunca teve ao seu lado.
Depois de respirar com profundidade, separou-se da anciã e
se dirigiu para a porta.
― Aonde vai? ― Inquiriu Hanna assustada.
― Vou explicar o que realmente aconteceu. ― Abriu a
porta e correu escada acima procurando Lorinne entre as
habitações. ― Recorda onde estão os vestidos que o duque
comprou? ― Perguntou ao encontrá-la.
― Sim, guardei-os em… ― não terminou. Beatrice a
segurou pelo braço e a arrastou ao corredor.
― Pega o mais bonito e traga ao meu quarto!
― Senhorita Brown! ― Exclamou a donzela
desconcertada.
― Faça o que te digo e não perca tempo, tenho que fazer
algo importante. ― Finalizou seu mandato e correu em volta
da habitação que tinham preparado no dia anterior.
XVII

William tomou sua segunda taça de licor sentado na


poltrona do salão enquanto esperava a inoportuna visita do
senhor e senhora Brace. Meditava intranquilo como
conduziria a conversação que devia enfrentar sem ter que
danificar a honra da senhorita Brown. Não era justo que as
barbaridades de seu pai repercutissem sobre a jovem. Acaso
não bastava tê-lo como único centro de zombarias? Os
rumores que seu título carregava entre a alta sociedade não
lhe preocupavam, mas sim lhe enfureciam se estas
machucavam a uma moça indefesa e alheia ao dito passado.
O duque olhou de novo o fogo e o contemplou com
atenção. Como nas vezes anteriores, as chamas dançavam ao
seu desejo, livres, subindo pela chaminé sem nada que as
detivesse. Franziu o cenho e sopesou se em realidade ele
também tinha tido algo de culpa no acontecido com Beatrice.
Possivelmente se não a tivesse deixado desamparada naquele
lugar, se lhe tivesse obrigado a abandonar um terreno que
não lhe pertencia, se não tivesse cavalgado aquela tarde, se
não o tivesse cuidado com ternura… mas então uma forte dor
emergiu de seu peito. Fazê-la desaparecer de sua vida não era
a opção adequada e tampouco se arrependia de seus atos
após conhecê-la, embora seguisse culpando-se pelo dano que
lhe ocasionaram os lobos.
Sem acertar o motivo pelo qual se sentia tão absorto na
jovem, sentenciou que, apesar da reprovação do matrimônio,
a moça permaneceria todo o tempo que o fosse possível em
Haddon Hall. Algo em sua cabeça lhe gritava que não podia
deixá-la partir até que indagasse um pouco mais sobre o
motivo pelo qual lhe proporcionava tanta felicidade
contemplá-la dormir placidamente, a razão pela qual ela, ao
escutar sua voz, acalmava-se dos sonhos inquietos e,
sobretudo, queria averiguar por que até essa manhã em que
ela se apresentou junto a ele em camisola, seus desejos
sexuais não tinham despertado como aconteceu no passado
quando tinha uma mulher ao seu lado.
William se elevou da poltrona e caminhou devagar pela
amplitude da sala. Este último pensamento o tinha açoitado
desde que saiu da habitação. Era certo que tinha evitado
desejar a senhorita Brown com a mesma ansiedade que
desejou suas amantes, mas um certo nervosismo crescia
quando ela estava ao seu lado, quando a sentia próximo ao
seu corpo, quando o olhava com aqueles olhos repletos de
malícia infantil. Entretanto, aqueles sentimentos eram o
começo do que Federith denominava amor? Tampouco soube
responder-se de maneira concreta. O único que se atrevia a
explicar era que cada vez que Beatrice estava ao seu lado um
sentimento quente, terno e intenso brotava sem poder evitá-
lo, algo que não tinha padecido com antecedência. Se não
recordava mal, quando uma mulher caía em seus braços,
tratava-a com mimo, como devia fazer todo homem que se
autoproclamava cavalheiro. Mas depois do ato sexual
levantava-se do leito, vestia-se e esquecia quem o tinha
agradado naquele momento.
O mero feito de afastá-la de seu lado lhe provocava tal
angústia que ficava sem ar para respirar.
― Milord, o senhor e a senhora Brace acabam de chegar
― informou Brandon. ― Deseja que lhes faça entrar ou lhes
receberá no hall?
― Melhor eu sair para recebê-los. ― Com passo firme
avançou até a porta, tomou ar e, desenhando um sorriso em
seu rosto, recebeu-os: ― Boa tarde, prezado senhor Brace ―
estendeu a mão para este.
― Boa tarde, Excelência, obrigado por aceitar nossa
visita. ― Também estendeu sua mão e segurou com força a do
duque.
― Senhora Brace… ― William inclinou levemente a
cabeça ao mesmo tempo em que a esposa do pároco realizava
uma pequena reverência.
― Sinto se meu marido não lhe ofereceu uma alternativa
para negar-se milord, mas tem que entender que depois de
todos esses maliciosos rumores que se propagaram como fogo
por Rowsley, deveríamos nos apressar em fazê-los
desaparecer ― argumentou a mulher sem apagar o sorriso de
seu rosto.
― Entendo-o. Os rumores infundados sobre a senhorita
Brown devem parar neste mesmo momento. Assim, se forem
tão amáveis de me acompanhar, poderemos falar sobre isso
na sala de jantar enquanto nos servem o almoço. ―
Continuou com o sorriso no rosto e tentou aparentar uma
serenidade que não tinha.
― Permita-me lhe dizer que converteu seu lar em um
bonito jardim. Nunca tinha tido o prazer de contemplar umas
flores tão coloridas e com tanta essência. Têm um aroma
característico como se fossem…
― Frutas ― terminou a frase o duque. ― Sim, cada uma
delas cheira a uma fruta diferente. Se desejar aproximar-se
das brancas... ― caminhou para elas para que a senhora
Brace avançasse atrás dele. ― Pode cheirar-las? Não lhe
parecem que desprendem um aroma muito semelhante ao
das laranjas recém-cortadas?
― Sim, assim é! ― Exclamou entusiasmada a mulher. ―
Que preciosidade!
― Lídia, por favor, não entretenhamos ao duque com
uma inoportuna aula de botânica. Viemos com um objetivo e
quanto antes resolvermos, será melhor para todos ―
esclareceu amargamente.
― Você tem razão ― comentou William adiantando-se
aos seus convidados para conduzi-los à sala de jantar.
A mulher contemplou maravilhada a dimensão da sala
ao entrar. Era bastante ampla, mais do que ela tinha
imaginado. Sem apartar seus olhos dos abajures de cristal,
das toalhas de mesa que cobriam os aparadores, dos
candelabros de prata e dos inumeráveis quadros que
preenchiam as paredes, avançou ao lado de seu marido.
― Aceita uma taça, senhor Brace? ― Perguntou o duque
ao mesmo tempo em que se dirigia para o móvel de madeira
esculpida que havia justo ao lado de outra, das imensas
chaminés de pedra que tinham sido construidas na mansão.
― Claro. ― Avançou para ele e agarrou com cuidado a
taça enquanto o duque a servia. ― Melhorou bastante ― disse
após observar como ele não balançava a garrafa.
― Não me ficou outra opção.
Arqueou as sobrancelhas esperando que o pároco
respondesse com alguma rabugice, mas não foi assim,
apenas assentiu e retornou junto à sua esposa.
― Bom, milord. Como já sabe, nossa visita não é de
cortesia, temos que tratar de um tema bastante difícil de
aceitar ― começou com sua exposição.
― É óbvio, prossiga, escuto-lhe ― disse em tom sereno
ao mesmo tempo em que dava o primeiro sorvo e permanecia
de pé junto ao calor do fogo.
― Depois da visita que o senhor Wadlow realizou para
curar a famosa senhorita Brown, disse no povoado que você
prosseguia com a desdita que seu pai começou ― expôs sem
hesitações. ― Como pode compreender, embora não seja de
nossa incumbência nos misturar em assuntos tão pessoais,
os cidadãos de Rowsley temem pela reputação de seu
povoado. Não desejam que lhes volte a relacionar com
assuntos tão escandalosos.
― Entendo… ― murmurou sem apartar o olhar do
homem e tomando outro gole.
― Ao seu favor direi que o conheço desde sua infância e
o afeto que isso me gera, fez-me tomar a decisão de vir a
Haddon Hall. Quero escutar de sua boca a verdadeira versão
dos fatos. Custa-me pensar que, depois do horror que deve
ter experimentado quando seu pai transformou um
respeitável lar em um sujo prostíbulo, deseje continuar pelo
mesmo caminho.
― Se for tão amável de me explicar qual é a versão que
se comenta pelas ruas de Rowsley, eu lhe darei a minha. ―
William segurou com tanto ímpeto a taça que acreditou ter
escutado como o cristal se rachava.
Não só desprezava que o comparassem com seu pai e
lhe recordassem a maldita infância que teve que suportar,
mas sim o de compararem Beatrice com uma das mulheres
que rondavam o lar quando seu progenitor aparecia,
provocava-lhe uma ira tão descontrolada que, se nesse
momento o bom doutor tivesse aparecido pela porta, teria o
agarrado pelo pescoço e o teria estrangulado.
― Conta-se que você trouxe uma concubina de Londres
e a alojou no refúgio de caça que tem perto do rio Wye ―
esclareceu a senhora Brace até este momento calada.
― Alguma coisa mais? ― Inquiriu o duque apertando a
mandíbula.
― Que a deixou desprotegida, virtualmente abandonada
e que por sua falta de compaixão ela foi atacada pela manada
de lobos que habita no bosque ― prosseguiu a mulher.
― Entendo… ― repetiu. William caminhou para a mesa,
pousou a taça, elevou o olhar à criada e, depois de um leve
gesto, esta começou a realizar os preparativos para começar a
servir. ― Se forem tão amáveis de sentar-se ― disse em tom
aparentemente sereno.
― Não teremos a honra de conhecer a senhorita Brown?
― Perguntou de repente a esposa do reverendo ao mesmo
tempo em que arqueava as sobrancelhas e cravava seus
azulados olhos no homem.
― Esta tarde, a senhorita Brown… ― não conseguiu
terminar a desculpa que inventaria quando a porta do salão
se abriu com tanto ímpeto que parecia ter acontecido um
furacão.
― Boa tarde, perdoem minha demora. Hoje a donzela
não estava tão eficiente como se requeria.
Beatrice apareceu sorridente na habitação, e para
surpresa de William tinha decidido usar o vestido turquesa
que lhe tinha comprado no povoado. O contraste com a cor
de seu cabelo a embelezava ainda mais. O cabelo, amarrado
em um perfeito coque, deixava em liberdade várias mechas
convertidas em ondas. Com um passo incrivelmente elegante,
dirigiu-se para os convidados.
― Senhorita Brown? ― Perguntou atônito o senhor Brace
ao mesmo tempo em que caminhou para ela.
― E você deve ser o pároco de Rowsley, não é? ―
Respondeu sorridente enquanto lhe oferecia a mão e o paróco
a beijava com suavidade.
― Ouviu falar de mim? ― Quis saber o homem sem
diminuir seu entusiasmo.
― É óbvio! Todo mundo fala dos incríveis discursos que
oferece aos domingos na igreja. Sinto se ainda não pude
desfrutar deles, mas compreenderá, depois do desafortunado
encontro que sofri há uns dias com uma selvagem manada de
lobos, não tive forças para sair daqui.
― Não se preocupe. Com certeza poderá escutá-los
quando se encontrar melhor. Se me permitir isso, quero lhe
apresentar a minha esposa. ― Ambos dirigiram-se para onde
se encontrava a senhora Brace e esta, em vez de saudá-la da
maneira correta, abraçou-se à moça como se se tratassem de
duas boas amigas.
― Minha querida moça, alegra-me encontrá-la em tão
fabuloso estado. O senhor Wadlow nos comentou que as
feridas que lhe causaram esses ditosos animais poderiam
havê-la matado ― explicou sem mal respirar.
― Foi uma imprudência me aventurar a passear sem o
amparo do duque. Ele insistiu em reiteradas ocasiões que era
um lugar perigoso para caminhar, mas devido à
impetuosidade da minha juventude não lhe escutei.
― Mas não foi ele quem a encontrou? ― Lídia primeiro
olhou ao duque e depois à moça.
― É óbvio, quando lhe informaram que não me
encontrava em meus aposentos soube, com exatidão, onde
poderia me encontrar ― sorriu novamente.
― Senhorita Brown... ― intercedeu o duque.
Mal lhe saíam as palavras. Estava em um estado de
atordoamento tão irracional que lhe era difícil pensar com
claridade, não só sua aparição, mas sim sua beleza, seu
comportamento e a melodia de sua voz fizeram com que
William se debilitasse tanto que, sem esperar os outros, teve
que sentar-se.
― Sim, sua Excelência? ― Perguntou a moça sem apagar
o sorriso em seu rosto e mostrando um olhar cheio de
ternura para ele.
― Estava lhes oferecendo…
― Sinto muito! Interrompi algo importante? ―
Manifestou com cara de espanto.
― Não se preocupe. ― Lídia lhe dava uns pequenos
golpes na mão esquerda para acalmar a suposta ansiedade
da moça. ― Estávamos a ponto de nos sentar para começar o
almoço.
― OH, graças a Deus! ― Voltou a exclamar. Desta vez
com menos ênfase. ― Pensei que minha companhia não fosse
agradável.
― Como pode pensar tal insensatez? Por favor, sente-se
ao meu lado ― indicou Lídia. ― Enquanto eles falam de temas
sem importância, nós conversaremos sobre esse
desafortunado incidente.
Os olhares entre Beatrice e William eram cada vez mais
intensos. Ele tentava lhe perguntar que demônios fazia ali e
ela, com um sorriso malicioso, indicava-lhe que não se
preocupasse.
Os criados começaram a servir a comida. Brandon,
como sempre, ajudava ao duque nos pequenos contratempos
que surgiam. O mordomo, com discrição, separou-se dos
olhares dos convidados para cortar a carne, logo se
aproximou e posou o prato com mestria ao lado do duque.
Embora, ao que parecesse, William estava mais interessado
em manter sua taça cheia de vinho que em comer. Não podia
apartar os olhos da jovem. Observou como se sentava
corretamente, como segurava os talheres com desenvoltura e
como levava a comida para a boca para mastigá-los sem mal
movê-la. Seus olhos brilhavam e suas bochechas se
ruborizavam quando o pároco lhe falava sobre sua juventude
e seus encantos. De vez em quando abandonava o
guardanapo sobre o regaço e apartava uma mecha que,
rebelde, tentava ocultar o lado esquerdo de seu semblante.
Um intenso calor percorreu o corpo de William, não
soube com claridade se essa sensação era produzida pela
grande quantidade de álcool ingerido ou pelos contínuos
sufocos que lhe criavam os sutis movimentos da moça.
Apesar de evitá-lo com todas as suas forças e de tentar
responder às suas inumeráveis perguntas com evasivas, já
não havia dúvida alguma, estava apaixonado por ela. Não
entendia a razão pela qual seu coração tinha permitido entrar
esse absurdo sentimento, mas o tinha feito. Agora só tinha
que fazer uma coisa: fazê-la apaixonar-se, embora muito
temesse que aquele trabalho fosse quase impossível.
― Então, senhorita Brown…
― Chame-me de Beatrice, por favor – Interrompeu-lhe
com delicadeza.
― E você pode me chamar de Brennet, se o desejar ―
sugeriu após sorrir com tanto ímpeto que mostrou sua
dentadura, aquela que William quis fazer desparecer com um
murro.
― É um nome lindo! ― Exclamou sorridente.
― Muito obrigado – ruborizou-se. ― Então, Beatrice,
pode nos explicar como o destino a conduziu até este lugar?
― Sim, Beatrice, ― intrometeu-se Lídia – explique-nos
como uma jovem tão elegante e educada decidiu abandonar
seu lar para instalar-se em…
― Não estará tentando dizer que Haddon Hall não é um
lugar adequado para ela, não é senhora Brace? ― Por fim,
depois de um eterno silêncio, William falou e o fez
expressando todo o sarcasmo que podia mostrar.
― Deus me salve se minhas palavras quiseram
expressar essa atrocidade! ― Exclamou a mulher antes de
abanar-se com a mão para acalmar seu embaraço.
― Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga da
irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland… ―
começou a explicar com certo entusiasmo ao descobrir o mal-
estar que tinha provocado a mulher em William ― foi
informada sobre o magnífico tutor que é sua Excelência e,
depois que minha última instrutora decidiu abandonar seus
afazeres como professora para empreender uma vida de
matrimônio, minha mãe decidiu, depois da aceitação do
duque, enviar-me a Haddon Hall.
― Não conhecia essa sua faceta de professor ― disse
Brennet olhando sem piscar ao duque.
― Bom, a gente não pode alardear de tudo o que sabe
fazer, não é? ― E sem apartar seus olhos de Beatrice bebeu
de novo, embora desta vez apurasse o conteúdo de um sorvo.
― E como é sua Excelência na faceta de educador? ―
Quis saber Lídia com curiosidade.
― Muito rigoroso. Pensa que todo mundo é tão
inteligente quanto ele e não se dá conta de que nem todos
nasceram com essa bênção divina. ― Dirigiu suas mãos para
os talheres e continuou saboreando a comida que se esfriava
no prato.
― Um defeito insano ― pronunciou William simulando
um profundo pesar. Levantou a mão e o criado voltou a lhe
encher a taça.
Depois dessa conversação, os comensais se ocuparam
em finalizar o suculento almoço, exceto o duque, cujo prato
foi retirado intacto. Depois de recolher a mesa, a criada
serviu umas pequenas terrinas com a sobremesa.
― Pudim! ― Exclamou Lídia eufórica.
― Gosta? ― Perguntou Beatrice.
― O que... se eu gosto? Eu adoro! ― Disse com
entusiasmo a mulher.
― Lídia… ― murmurou Brennet olhando-a com o cenho
franzido.
― Sim, sei, mas prometo que só comerei o que me
oferece ― afirmou com certa reserva.
― Bom, senhor, ― falou de novo o pároco ― acredito que
lhe devo uma desculpa.
― Uma desculpa? ― intrometeu-se a moça.
― Sim, Beatrice, tanto ao duque como a você, devemos
uma desculpa.
― Por qual motivo, Brennet? ― Abandonou a colher
sobre a mesa, deixou o guardanapo em seu regaço e prestou
toda sua atenção.
― Não me deve nenhuma desculpa ― intercedeu William
com rapidez. Não queria que a jovem descobrisse o rumor que
se propagou por Rowsley. Na verdade, não queria vê-la sofrer
e menos ainda naquele momento no qual a alegria e o
entusiasmo se apoderaram dela atuando como sua inocente e
confiante pupila.
― O senhor Wadlow, o doutor que a atendeu, ― começou
Lídia a falar ― pensou que…
― O que? ― Beatrice pousou sua mão sobre a dela e
mostrou um semblante cheio de incerteza que esperava
fizesse a desbocada mulher continuar.
― Que você era a concubina de sua Excelência ―
explicou enfim.
― Sua concubina? Quer dizer que esse homem foi
dizendo a todo mundo que eu era a prostituta do duque? ―
Levou-se as mãos para o rosto e soluçou. ― Pelo amor de
Deus! Como pôde pensar tal aberração?
William se levantou com rapidez do assento, apesar de
encontrar-se um pouco transtornado, caminhou para
Beatrice para consolá-la, mas ela, ao vê-lo tão próximo e
sendo consciente do assombro que expressavam os
convidados, levantou a mão e fez que abandonasse suas
pretensões de consolo.
― Acaso não se deram conta da situação atual deste
homem? ― Perguntou com aparente aborrecimento. ― Como
podem sequer imaginar que uma pessoa que não pode nem
abotoar a jaqueta, nem pode se alimentar sem a ajuda de seu
mordomo, iria albergar em seu lar, um respeitável e
honorável lar, uma prostituta com a qual fornicar?
William abriu os olhos como pratos, deu uns passos
para trás e, ocultando a tristeza e a possível quebra de seu
coração, retornou ao seu assento. Jamais teria acreditado
que a moça pensasse isso dele. Jamais imaginou que ela o
considerava um ser inerte, débil e imprestável.
― Sinto muito, Beatrice ― disse Brennet tentando
aplacar a ira da moça. ― Não era nossa intenção…
― Mas embora não tenha sido sua intenção, ― falou com
pesar ― o dano já está causado. Diga-me, senhor Brace, como
posso recuperar agora minha honra manchada? ― Umas
lágrimas apareceram em seu rosto e todos os que a
observavam ficaram quebrados de dor.
― Pobrezinha… ― murmurou Lídia antes de abraçá-la. ―
Isto deve ser muito duro para ti.
― Não imagina o quanto, senhora Brace… ― continuou
fingindo seus soluços.
― Brennet, poderíamos fazer algo para recuperar essa
honra ― comentou Lídia sem deixar de abraçar a moça.
― Não sei o que… ― o pároco estava pálido, quase tão
branco quanto o duque.
― Senhor, se você decidisse apresentar a senhorita
Brown em sociedade como merece, todo mundo descobriria a
verdade ― insinuou a mulher.
― Uma festa? ― Beatrice levantou o rosto estupefata e
observou ao duque, cujo rosto estava desgrenhado,
descolorido e com um estranho fogo em seus olhos.
Nesse momento a moça sentiu lástima por ele e pensou
que devia ter contado a Hanna qual era seu plano para que o
homem não sentisse o pesar que naqueles momentos o fazia
sofrer. Mas sua parte malvada, aquela que de vez em quando
brotava sem avisar, indicava-lhe que não lhe estava mal
empregado aquele sofrimento, posto que ele fosse o culpado
do início dos falatórios. Entretanto, sua metade boa se
entristecia por sua agonia. Possivelmente o correto seria lhe
explicar, quando os convidados partissem, que tudo era
mentira.
― Claro! É uma ideia estupenda. Como não me ocorreu
antes? ― Brennet dirigiu o olhar para o duque. ― Se você
organizasse uma celebração e convidasse todas as pessoas
influentes de Rowsley, poderia apresentá-la como é devido e
se resolveria com rapidez o tema.
― Acreditam que assim cessarão esses malditos
rumores? Porque eu não estou tão seguro ― disse com voz
impessoal, sem emoção, enquanto esvaziava outra taça em
seu estômago.
― É óbvio! É a melhor opção! ― Respondeu o pároco
entusiasmado.
― Pois então farei. Ordenarei meu mordomo que nesta
tarde mesmo se redijam os convites e os leve em pessoa.
― Perfeito! ― Exclamou Lídia abraçando com mais brio a
jovem. ― Já verá como tudo se soluciona e voltará a
recuperar aquela honra perdida.
― Isso espero. ― E voltou a olhar ao duque que
continuava bebendo o álcool que havia em sua taça.
XVIII

Deveriam ter atuado tal como ditavam as normas, os


homens partindo à outra sala enquanto falavam de assuntos
sociais e elas ficando a sós ao mesmo tempo em que se
aproximavam do fogo para conversar sobre outros rumores
importantes de Rowsley, mas o duque não mostrou nenhuma
intenção de abandonar a sala onde se encontravam, então
ninguém o propôs. O senhor Brace enumerou uma lista
interminável de célebres personagens aos quais deveriam
convidar e que Brandon, atento como sempre, foi anotando
em uma folha.
― Redija as missivas o antes possível, senhor Stone.
Quero que sejam enviadas nesta mesma tarde ― disse
William fazendo com que o mordomo abandonasse o salão.
Depois da saída de Brandon, o senhor e a senhora Brace
falaram sem parar sobre o acontecido em Rowsley durante a
ausência do duque: a chegada de novos vizinhos, as novas
construções que se realizaram, a inapropriada repercussão
que tinham tido certas influências europeias na sociedade, de
religião… tagarelaram tanto que chegou um momento no qual
William inclusive bocejou de aborrecimento, entretanto,
Beatrice escutava com atenção e um excessivo entusiasmo.
Só quando a senhora Brace narrou o desafortunado incidente
da filha de um servente dos Salwin a moça se congelou e seus
olhos se encheram de lágrimas. Teve um impetuoso desejo de
sair correndo e encerrar-se em seu quarto para chorar, mas
reuniu suas forças e aguentou estoicamente o relato sobre a
violação da jovem por uns assaltantes.
― A pobre garota não pôde superar a desgraça ― indicou
Lídia com tristeza. ― Enfim, seus pais investiram a pouca
fortuna que guardavam para sua velhice e a enviaram para
uns parentes que vivem na pequena aldeia de Hargate Wall.
Estou segura de que em um lugar tão afastado esquecerá o
acontecido e poderá viver em paz.
O nó que se produziu na garganta de Beatrice lhe
impediu de responder aquilo que pensava, só pôde assentir
ao mesmo tempo em que Lídia, ao vê-la tão angustiada pela
história, dava-lhe uns suaves tapas na mão para consolá-la.
De repente, o aborrecimento que suportava William com
tanto bate-papo desapareceu com rapidez ao observar a
reação da jovem. Em certo modo podia entender que ela não
tivesse pensado que poderia lhe ocorrer algo similar vivendo
na cabana, até esse momento ele tampouco tinha meditado
sobre isso, feito que o enfurecesse de maneira sobre-humana.
Entretanto, aquelas lágrimas que lutavam por brotar, o
encolhimento de seu pequeno corpo, a respiração
entrecortada e a palidez do rosto terminaram por levar seus
pensamentos para uma possibilidade que lhe horrorizava.
Disse-se a si mesmo que a ingestão de álcool o estava
dirigindo para divagações inapropriadas.
― Bom, temos que partir ― disse o senhor Brace após
dar por concluída sua visita e levantando-se de seu assento.
Ato que imitaram sua esposa e Beatrice. ― Não é adequado
lhes fazer perder mais tempo com nossa companhia.
Senhorita Brown... ― aproximou-se da moça e estendeu sua
mão para lhe fazer chegar a sua e assim poder beijá-la com
suavidade ― foi um prazer conhecê-la.
― Muito obrigada pela visita e recorde que será uma
grande honra para nós poder gozar de sua presença na festa
― expôs a moça sorridente.
― É claro! ― Exclamou Lídia abraçando-a de novo. ―
Estaremos ao seu lado em todo momento e estou segura de
que sua honradez se restabelecerá.
William se levantou da poltrona com dificuldade. O
estado de embriaguez estava começando a cobrar seu preço,
mas tentou não mostrar, caminhando o mais reto possível.
Uma vez na saída, esperou ansioso a partida de seus
convidados. Tinha assuntos pendentes com a senhorita
Brown e, embora reconhecesse que não se encontrava nas
condições apropriadas, não podia esperar.
― Milord… ― despediu-se a senhora Brace com uma
reverência.
― Senhora Brace… ― respondeu William com um suave
movimento de cabeça.
― Até sábado. ― Brennet estendeu sua mão para o
duque e depois de um apertão caminhou para sua esposa,
segurou-a pelo braço e abandonaram Haddon Hall.
Tanto Beatrice quanto William lhes acompanharam para
o exterior da casa. Até aquele momento ela se comportou de
acordo com o planejado, mas uma vez que a carruagem
desapareceu da vista de ambos, Beatrice recuperou sua
compostura e, desaparecida a inquietação que aguentava,
deu um enorme suspiro, ajeitou seu vestido e girou-se para
retornar ao interior.
― Não parta ainda, senhorita Brown ― pediu antes que
esta desse dois passos. ― Temos uma conversação pendente.
― Não acredito que deva perder mais tempo, senhor. A
senhora Stone necessitará da minha ajuda na cozinha –
desculpou-se.
― Verei-a na biblioteca em cinco minutos. Se não
aparecer, irei eu mesmo buscá-la ― sentenciou. E deixando a
moça incapaz de avançar, caminhou com certa dificuldade
para a habitação.
Beatrice andava devagar. Os pés lhe pesavam tanto que
não era capaz de levantá-los. Seu corpo tremia e podia sentir
o agitado palpitar de seu coração. Tinha uma leve ideia sobre
o tema da conversação e estava segura de que não haveria
palavras de agradecimento.
Falou-lhe com desprezo, assinalou que diante do
matrimônio ele era um ser inútil, incapaz de realizar uma
mísera tarefa sem a ajuda de outros. Muito ao seu pesar fez
mal, mais do que pretendia. Entretanto, as conversações
aconteceram de maneira inesperada. Ela imaginou que logo
que reparassem em sua presença, o duque teria a voz
predominante na reunião e depois de esclarecer que ela não
era uma concubina, tudo finalizaria. Jamais sopesou que sua
assistência entorpeceria a reunião, nem que a senhora Brace
fora tão rápida em oferecer alternativas para restabelecer sua
honra.
«Uma festa… ― meditou a jovem quando recuperou o
domínio de si mesma o suficiente para entrar no lar. ― Uma
festa a qual assistirá uma grande quantidade de pessoas que
cravarão seus olhares em mim. Como não neguei tal loucura!
Acaso perdi a razão? Meu Deus! E se alguém me reconhecer?
E se alguém descobre quem sou na realidade?».
Aterrorizada, Beatrice ficou parada na entrada. Olhou
para as escadas e logo dirigiu seus olhos para a porta onde o
duque a esperava. O que devia fazer? Fugir? Afastar-se dali
nessa mesma noite? Estava segura de que o homem alegaria
qualquer desculpa quando a cerimônia fosse cancelada, mas
antes de começar a caminhar para a escada, escutou que
alguém reclamava sua atenção.
― Senhorita Brown ― sussurrou-lhe Brandon. O homem
se escondia entre as sombras que lhe proporcionava o lado
direito da escada.
― O que acontece? ― Perguntou em voz baixa ao mesmo
tempo em que avançava para ele.
― Preciso lhe pedir um favor, conceder-me-ia isso?
Beatrice ficou pasmada. Era a primeira vez que o
mordomo se dirigia a ela daquela forma, inclusive percebeu
no rosto do ancião um mal-estar inesperado. Durante o
tempo que levava conhecendo-o, sempre tinha mostrado um
semblante sereno e impessoal, ninguém, salvo sua mulher,
poderia adivinhar os estados emocionais de Brandon.
Entretanto, nesse momento, Beatrice percebeu sua
preocupação sem que a expressasse com palavras.
― Diga-me o que necessita, está me assustando. ―
Dirigiu suas mãos para o tecido do vestido e o segurou com
força.
― Rogo-lhe, não permita que nosso senhor continue
bebendo. No almoço ingeriu mais álcool do que pode suportar
e temo que em seu estado possa fazer alguma tolice ―
explicou com suavidade. ― Lembre-se que a última vez…
― Não se preocupe, evitarei que volte a tomar outra taça
– prometeu. ― Algo mais? ― Brandon negou com a cabeça. ―
Nesse caso, não lhe farei esperar mais tempo. ― Caminhou
para a porta da biblioteca, ofereceu ao homem um pequeno
sorriso e escutou um «obrigado» antes de introduzir-se na
sala.
Tal como imaginava o fiel mordomo, William servia-se de
outro copo de uísque enquanto a aguardava e, quando ela
entrou encontrou-o cambaleando para o centro da habitação.
Beatrice observou surpreendida que já não levasse posta a
jaqueta e que liberava da alça, que as costureiras costuravam
em todas as roupas, a mão esquerda. Era a segunda vez que
ele se apresentava ante ela dessa maneira. Parecia não lhe
importar que pudesse ver o que escondia com esforço de
outros.
A moça tragou saliva ao recordar o salto que William
deu quando ela conseguiu tocá-lo e o desconforto que lhe
produziu a suave aproximação. Por que se levantou tão
temeroso? Por que não lhe importava que ela o observasse
assim? Apagando de sua mente as incessantes perguntas,
centrou-se na promessa que tinha feito ao Brandon e aliviou
seu passo até alcançar o duque.
― Não acredita que já bebeu o suficiente, senhor? ―
Perguntou resmungando ao mesmo tempo em que lhe tirava
a taça e o impedia de dar o primeiro gole.
― Não... acredito que ainda posso tomar um pouco mais
― respondeu William surpreso pelo comportamento
descarado da jovem.
― Tal como pensava, não se encontra em plenas
faculdades mentais para decidir nada nem cercar uma
conversação coerente. Não pode nem se manter em pé ―
opinou sem duvidar.
Foi para o móvel, depositou o copo sobre ele e logo
caminhou depressa para a janela. No trajeto, o vestido se
sacudia com a mesma intensidade de seu caminhar
provocando que, ao aproximar-se do duque, o tecido do
vestido tocasse as pernas deste com suavidade.
― Sabe que este tipo de comportamento para um
homem como eu tem sérias consequências? ― Comentou com
aparente mau humor enquanto começava a persegui-la.
― Você vai me castigar? ― Girou-se para a voz e nesse
instante o encontrou ao seu lado olhando-a com atenção,
sorridente, mais do que esperava após suas palavras.
Beatrice o contemplou durante uns segundos.
Estremeceu-se ao encontrá-lo tão próximo, tão perto.
Conseguiu cheirar seu aroma, uma mescla de colônia, vinho
e uma peculiar e atraente essência viril. Pôde apreciar
também como o peito masculino subia bruscamente ao
respirar, roçando sem pretender seu queixo e, se fechasse os
olhos para prestar atenção, escutaria sem dificuldade as
agitadas pulsações do coração do homem.
― Não vou castigar a ninguém ― disse com suavidade.
Em seus olhos negros se projetava a escuridão que
havia no exterior da casa. Beatrice fixou o olhar nos lábios
masculinos. Apenas se apreciavam com claridade pela
espessura de seu bigode. Embora seguissem sendo grossos,
fortes, muito vermelhos e, sobretudo voluptuosos. De repente
se perguntou se aqueles lábios beijariam como os de seu
antigo amor: suaves e inexperientes, ou pelo contrário,
conseguiriam o que tantas mulheres murmuravam, criar
tanta paixão que perdiam a prudência.
Um intenso calor percorreu o corpo da moça até o ponto
que suas bochechas exibiram um tom avermelhado
impossível de dissimular. Com estupidez girou-se para voltar
a olhar para o exterior enquanto tentava acalmar o pequeno
estado de excitação que surgiu depois dos inoportunos
pensamentos.
― Você notou como é rara à noite em que a lua brilha
com liberdade? ― William esperou uma resposta, ao não a
escutar prosseguiu. ― As culpadas disso são as nuvens.
Sempre as ocultam para que não consiga exibir sua beleza.
Aproximou-se com lentidão do corpo de Beatrice e
apoiou a mão no marco da janela, pôde inspirar a deliciosa
essência a sabão que emanava do cabelo da moça. William
fechou os olhos e deixou que uma estranha paz acalmasse
toda a ansiedade que lhe açoitava desde que descobriu que
seus sentimentos para com ela eram mais profundos do que
imaginava. Estava inundando-se em um transe de quietude
quando percebeu que a jovem tinha conseguido afastar-se
dele. Abriu os olhos, voltou-se para ela e esteve a ponto de
soltar uma gargalhada ao perceber que colocava de novo suas
mãos na cintura e franzia o cenho.
― Pode me dizer para que me fez vir? Porque estou
segura que em seu estado não desejará começar uma aula de
astronomia, não é? ― Ficou imóvel na metade da sala
mostrando uma atitude desafiante, altiva.
― Não, é óbvio que não ― afirmou sem apagar o sorriso
que lhe tinha provocado. ― Em primeiro lugar eu gostaria de
lhe agradecer por sua magnífica atuação desta tarde. Lástima
que não possa aplaudi-la! ― exclamou com zombaria.
― Não o fiz por você, mas sim por mim. Como
compreenderá, não é agradável descobrir que todo mundo
pensa que sou uma prostituta vulgar ― declarou elevando o
queixo.
― Entendo-a e se eu permanecesse junto a uma pessoa
imprestável, inútil e incapaz de fazer as coisas por si mesmo,
também tentaria explicar a todas as pessoas que duvidassem
da minha honra, que não há por que temer de um
incapacitado. ― Sorriu mostrando os dentes.
― Não era minha intenção… ― murmurou abaixando a
cabeça e agarrando com força o tecido de seu vestido.
― Não se arrependa do que disse, senhorita Brown.
Esteve certa. Como pôde comprovar pela mudança de atitude
de nossos convidados, essa argumentação foi bastante
convincente. ― Deu uns passos para ela e parou antes de
voltar a aproximar-se. Não podia perder a pouca sensatez que
ficava, maravilhando-se com seu aroma, com seus lábios e
lhe dando atenção à parte de seu cérebro que lhe gritava que
estendesse a mão, segurasse-a com força e sentisse o calor
que emanava seu pequeno corpo. ― Por outro lado, eu
gostaria de lhe fazer saber que apesar de todos os intentos
que faça nessa maldita cerimônia para restabelecer sua
honra, todo mundo seguirá pensando que me vi obrigado,
para limpar meu bom nome e jamais deixarão de pensar que
você é minha concubina pessoal.
― Não estou tão segura disso… ― comentou sem
levantar seu rosto.
― Posso lhe garantir por experiência própria que se as
pessoas tiverem uma ideia preconcebida, por muito que tente
mudá-la, não o conseguirá ― sentenciou mal-humorado.
― Se tiver o apoio do senhor Brace e de sua esposa, isso
não acontecerá. Falarão com o senhor Wadlow e este, como
homem honorável, retratar-se-á ― afirmou sem hesitações.
― Acredita que o senhor Wadlow é um homem
honorável? ― perguntou levantando as sobrancelhas e
soltando uma grande gargalhada. ― Permita-me que lhe conte
uma coisa, minha querida senhorita Brown, e logo você
mesma faça as conjecturas oportunas sobre a honra do
cavalheiro. ― Beatrice, quando elevou por fim seu rosto para
olhá-lo, viu-o com os olhos entrecerrados e com o cenho
franzido. O que pretendia lhe expor? O que seria tão doloroso
para sentir a angústia do homem com tanta facilidade? ―
Acredita que todos esses homens aos quais você chama de
honoráveis o são de verdade? Quer me fazer acreditar que
você é tão ingênua que é incapaz de imaginar que esses que
se consideram juizes de outros não cometeram adultério? ―
Suas palavras começaram a soar com vigor, igual ao seu
caminhar. William dava passos tão largos e cravava com
tanta força as solas dos sapatos no chão que a jovem se
assustou. ― Muitos dos que se autoproclamam homens
respeitosos, não o são. Possivelmente o passar do tempo os
tenham feito esquecer o que fizeram junto com meu pai, mas
a mim não ― sentenciou.
― Senhor… ― murmurou a moça assustada ante a
agitação do homem.
― As suspeitas em relação a ele são só consequências de
um passado libertino ― respirou fundo, afrouxou a tensão de
seus ombros, girou-se por volta da moça e a olhou sem
piscar. ― Meu querido pai visitava Haddon Hall uma vez ao
mês. Em suas viagens recolhia as melhores cortesãs que
encontrava no trajeto e as mantinha aqui durante o tempo
que durava sua estadia. Entretanto, essas mulheres não só
se ocupavam de satisfazer os prazeres sexuais do grande
duque de Rutland, mas também ofereciam seus serviços a
todos aqueles que apareciam nesta casa. ― Beatrice mostrou
cara de espanto e, por um momento, William quis resolver o
tema para não lhe produzir mais pavor, mas se na verdade
desejava levar a cabo a festa, tinha que estar preparada para
qualquer contratempo. ― Dois dos melhores amigos do meu
pai vinham com assiduidade. Pode-se fazer uma ideia de
quem eram essas pessoas? ― Sorriu com zombaria. ― Sim,
claro que sabe, vejo-o em seus olhos. Em efeito, o honorável
senhor Wadlow e o pai de seu querido e rigoroso senhor
Brace. Ambos, por aquela época, homens encantadores e de
reputações irrepreensíveis, ― continuou reticente ―
esqueciam os famosos preconceitos sociais quando cruzavam
as portas de Haddon, onde escondidos em seus quartos
viviam e cresciam uns meninos sob a tutela de um piedoso
matrimônio. Não ponha essa cara de espanto, senhorita
Brown. Era lógico que a duquesa, depois de ser informada
das atrocidades de seu marido, decidisse não aparecer sem
lhe importar que seus filhos, aqueles que saíram de suas
vísceras, ficassem à mercê dos criados. Com o passar do
tempo, ― continuou depois de tomar ar e tentar apagar a dor
que lhe causava rememorar o passado ― o famoso duque quis
que seus filhos, aqueles aos quais não lhe interessou
proteger, educar e dar o carinho que devia, continuassem seu
corrompido legado. Como era de se esperar, ambos os
rebentos recusaram categoricamente essa opção e partiram
para o único lugar no qual poderiam encontrar uma vida
próspera: Londres. Tiveram a esperança de encontrar a única
pessoa que poderia lhes ajudar, sua mãe. Entretanto, a
primeira coisa que fez foi lhes recordar que, por muito que
tentassem fugir de seu pai, seu próprio sangue corria por
suas veias e terminariam convertendo-se no monstro que era
seu marido.
― Meu Deus… ― sussurrou a jovem tampando a boca.
― Lausson teve sorte. Conseguiu que uns tios de minha
querida mãe o acolhessem e eles lhe ofereceram a vida que
tanto ansiava. Quem ostentaria por nascimento o título de
duque não teve essa sorte.
Começou a perambular de novo pela sala, inquieto ante
a perspectiva de que ela o abandonasse ao abrir seu coração
daquela maneira. Estava fazendo o correto? Era sensato lhe
mostrar a tortura que o tinha açoitado durante sua vida? E,
sobretudo… por que tinha a necessidade de lhe revelar aquilo
que tinha ocultado durante tanto tempo?
― Fiz o impossível para demonstrar que eu era diferente
do que eles acreditavam, ― continuou com voz pesarosa ―
mas as pessoas continuaram pensando que sob uma
aparência falsa de cavalheiro se escondia outro futuro
libertino. ― Deu-lhe as costas e se dirigiu para a chaminé
onde, cabisbaixo, pousou sua mão sobre a cornija de pedra.
― Com o tempo me cansei de insistir em lhes dar aquilo que
queriam ver: ao futuro duque de Rutland. Embora, como
pôde apreciar... ― girou-se para ela e levou a mão direita para
as marcas de seu rosto ― minha vida dissoluta se viu
truncada com rapidez.
Beatrice ficou em silêncio. Meditou nas palavras do
duque com supremo cuidado, concluindo que aquele homem,
em realidade, só era uma vítima de um pai doentio.
Entretanto, uma parte também lhe recriminava que não
tivesse posto mais interesse em fazer desaparecer aquelas
apreciações sobre seu nome. Embora… como apagar as
sequelas que outros deixaram com tanta firmeza?
― Contei-lhe isto, ― interveio William ao contemplá-la
em silêncio e com o olhar perdido ― para que considere
seriamente a descabelada ideia dessa festa.
― Por quê? ― Beatrice caminhou para ele de maneira
decidida. ― Por que se preocupa tanto pelo meu futuro se mal
me conhece?
― Porque sei que, se não quiser ver-se envolvida em um
mundo do qual lhe custará sair, existe uma possibilidade
para liberar-se ― disse com quase nenhuma força em suas
palavras.
― A que se refere? ― Parou seu passeio nervoso quando
esteve em frente ao homem. Apenas lhes distanciavam dois
palmos. Beatrice elevou o queixo e o olhou aos olhos de
maneira desafiante, esperando a resposta que acreditava
saber.
― Poderia partir, afastar-se daqui agora mesmo se
quisesse. Encarregaria-me pessoalmente de enviar um criado
de minha confiança para que a acompanhasse até onde você
desejar ― comentou sufocado. Não queria lhe oferecer essa
alternativa porque a ideia de perdê-la o destroçava,
debilitava-o, matá-lo-ia com o passar do tempo. Mas era
consciente de que se permanecesse ao seu lado seria
desventurada.
― Isso é o que deseja? Quer que eu parta? ― Atreveu-se
a perguntar.
As palavras não saíam com fluidez de sua boca. Uma
estranha tristeza brotou em seu interior e lhe oprimiu com
força o coração. Apesar de ter considerado a mesma ideia
antes de entrar na biblioteca, agora, por um motivo que
estava fora de toda prudência, não queria afastar-se dele.
Aquele homem que a olhava com aflição era o mesmo que
tinha velado seus sonhos, quem lhe sussurrou palavras de
consolo para tranquilizá-la, quem tinha estado ao seu lado
durante sua árdua recuperação e o homem que, acreditando
que não o escutava, prometia-lhe que a cuidaria pelo resto de
sua vida. E nesse momento cumpria sua promessa lhe dando
a liberdade de escolher.
― Posso lhe fazer uma pergunta antes de responder? ―
Perguntou abaixando a cabeça e estendendo suas mãos pelo
vestido.
― É claro. ― William mal podia falar. Sentia uma
pressão tão forte em seu peito que lhe impedia de respirar.
Não era capaz de conceber que possivelmente esse momento
fosse a última vez que contemplaria a moça.
― Por que, quando lhe salvei a vida, não me ofereceu
dinheiro como pagamento de sua dívida? ― Seguia olhando o
chão. Suas mãos seguraram o tecido do vestido com força.
Notava o palpitar de seu coração na garganta e como se
debilitavam seus joelhos.
― Mudaria algo em sua decisão? ― Quis saber.
William percebeu a tristeza da jovem e se amaldiçoou
por isso. Ele era o culpado desse estado de angústia, de tudo
o que estava acontecendo e inclusive se acusava de havê-la
conduzido para um desagradável futuro.
― Pode me responder? ― Levantou seu semblante e
deixou que o homem apreciasse as lágrimas que molhavam
suas bochechas.
― Pelo amor de Deus, Beatrice! ― Exclamou com
energia. ― O que quer escutar?
― A verdade… ― murmurou a jovem sem amedrontar-se.
― A verdade? ― Disse com sarcasmo. Em um intento de
evadir-se do que ela pedia, William tentou afastar-se de seu
lado para recuperar a compostura, mas não o conseguiu, a
pequena mão da moça alcançou seu braço e lhe impediu de
levar a cabo seu propósito. ― A verdade, Beatrice, é que sou
um vilão. Um homem egoísta, insensível e, como todo mundo
comenta, um libertino sem escrúpulos.
― E? ― Inquiriu sem liberá-lo.
― E fui incapaz de me afastar da única pessoa que me
contemplou como o monstro que sou e não mostrou repulsão
― expôs ao fim.
― Bem… ― voltou a sussurrar a jovem. Abriu a mão e
deixou que o duque caminhasse para o centro do salão.
― Bem? Parece-lhe bem que um ser humano se crê com
o direito de coibir os desejos de outros? ― Perguntou
aturdido.
― Acredito, sua Excelência, ― começou a falar com
firmeza ao mesmo tempo em que esticava o tecido de seu
vestido ― que a conversação deve finalizar aqui, neste mesmo
momento.
― Perfeito. Chamarei o senhor Stone para que lhe
prepare uma carruagem e…
― Não me entendeu bem – interrompeu-lhe ao mesmo
tempo em que avançava por volta dele e cravava seus verdes
olhos nos seus. ― Não vou partir esta tarde, nem amanhã,
nem depois, mas sim o farei após essa festa em que todo
mundo descobrirá que eu não sou uma prostituta nem você
um ser desprezível. Comportar-se-á como deve atuar o tutor
de uma jovem inocente e eu realizarei o papel que me atribuí.
E agora, se me desculpar, tenho muito que fazer e não quero
perder mais tempo em escutar tolices.
Com passo firme, esticando o pescoço e aparentando
uma serenidade e sobriedade que não tinha, Beatrice passou
junto ao duque, olhou-o de soslaio e, depois de fazer uma
pequena reverência, abriu a porta e partiu.
William ficou atônito sem saber como deveria reagir ante
tal comportamento. Continuou olhando por onde a moça
partira sem sequer poder respirar de forma apropriada.
Depois de esboçar um sorriso que cobriu o rosto, gritou:
― Brandon! Brandon! Onde demônios está?
― Aqui estou, meu senhor. O que acontece? ―
Perguntou o mordomo assustado.
― Enviou os convites? ― Consultou enquanto retornava
ao calor da luz.
― Sim, fiz assim que o senhor e a senhora Brace
partiram.
― Bem, pois se sente e escreve dois convites mais ―
declarou com vivacidade.
― A quem irão dirigidas? ― Quis saber o senhor Stone
após sentar-se com urgência, pegar papel e pluma.
― Uma em atenção ao senhor Federith Cooper e a outra
ao senhor Roger Bennett ― sentenciou.
XIX

Não pôde fazer nada do que tinha programado durante a


noite de insônia. Seu primeiro objetivo era não sair da
cozinha para ajudar a pobre senhora Stone em tudo o que
pudesse, mas justo à manhã seguinte, quando se dispunha a
perguntar a Hanna por onde devia começar, Brandon
apareceu com um mandato do duque: «O senhor decidiu,
posto que seja uma festa em sua honra, seja a encarregada
de prepará-la corretamente». Após escutá-lo, Beatrice levou
as mãos ao peito, empalideceu e se sentou na primeira
cadeira que teve ao seu alcance. Como iria ocupar-se de
todos os preparativos necessários para organizar uma
cerimônia para tantos convidados? Acaso o duque desejava
que a festa fosse um fiasco? Acreditaria que assim deixariam
de fofocar sobre a razão pela qual mantinha sob seu teto uma
concubina? A moça, depois de recompor-se do choque, quis
levantar-se, dirigir-se para onde se encontrava o duque e lhe
gritar se estava louco ou continuava embriagado pelo vinho
da noite anterior. Mas como era lógico, não o fez.
Olhou o ancião assustada e, depois de receber um sem-
fim de palavras de incentivo, recuperou a serenidade e
começou a elaborar um plano. Conforme recordava, nas
poucas celebrações que se ofereceu em seu lar, sua mãe
controlava até o detalhe mais insignificante e, embora
terminasse exausta, todo mundo saira bastante contente. Ela
procurou fazer o mesmo. Elaborou uma meticulosa lista em
que abrangeram da preparação do salão onde se celebraria o
banquete, a comida que se serviria, nos diferentes pratos, as
bebidas adequadas, quantos criados deveriam atender
durante o jantar, o lugar apropriado para celebrar o baile, os
músicos que deviam contratar… tudo o que conseguia
lembrar, anotava-o nas folhas que o senhor Stone lhe
facilitou para não se esquecer de nada.
― Deve comer ― disse a cozinheira ao observar que a
moça não tinha provado nem um bocado. Era o almoço da
terça-feira e depois da jornada do dia anterior e de ser
consciente do que poderia acontecer se tudo saísse mal, não
tinha apetite.
― Sou incapaz de fazê-lo, tenho o estômago tão pequeno
que não me cabe nem uma ervilha ― comentou depois de
levantar-se e levar em suas mãos o prato.
― Se não se alimentar, não terá forças para tudo o que
tem que fazer, e então esses temores que sacodem sua
cabecinha se farão realidade.
Hanna lhe impediu o passo e a fez retornar ao seu
assento para que terminasse de comer a carne com verduras.
― Mas, senhora Stone, por favor, pode me explicar por
que sua Excelência me castiga com esta tarefa? ― Queixou-se
aflita. ― Acaso não se dá conta de que é uma loucura?
― As loucuras, querida menina, não têm lógica, nem
sentido, nem razão, fazem-se e ponto ― disse com um enorme
sorriso.
― Devia ter aceitado. Tinha que ter partido… ―
sussurrou ao mesmo tempo em que segurava o garfo e
cravava com inapetência uma batata cozida.
― O que disse? ― Perguntou a anciã enrugando a testa e
cravando seus marrons e penetrantes olhos nela.
― Que deveria ter aceitado a proposta do duque ―
respondeu um tanto assombrada pela mudança de atitude da
mulher.
― Valha-me Deus! Santo Céu! ― Elevou as mãos para o
teto e logo voltou a baixa-las com rapidez. ― Essa foi a opção
que te propôs esse teimoso? Que partisse?
― Sim ― afirmou temerosa pelos dramalhões que
realizava, até agora, a sensata cozinheira.
― Está pior do que eu imaginava! ― Exclamou antes de
dar a volta e começar a mover algo na panela que estava
fervendo no fogo.
― Eu disse algo que…? ― Tentou dizer.
― Não disse nada e disse tudo! Faça o favor de comer o
que te servi e continuar com o que deve fazer. Assim que tiver
um instante livre falarei com o senhor Stone para que se
converta em sua sombra. Ele te ajudará em tudo o que não
possa conseguir ― explicou com aparente aborrecimento.
― Mas eu…
― Não há mas, nem menos! Temos que preparar a
melhor festa que tenha tido o condado de Derbyshire até o
momento! ― Sentenciou antes de continuar removendo com
firmeza aquilo que estava a ponto de cair ao chão pelo brio de
seus movimentos.
Beatrice comeu em silêncio enquanto evitava olhar à
senhora Stone. Não entendia a razão pela qual se
sobressaltou tanto por um comentário insignificante. Que
problema teria tido o duque se ela tivesse decidido partir?
Possivelmente se referia à repercussão social que teria se,
depois de fazer chegar os convites, cancelasse o evento? Em
sua curta vivência em sociedade tinha aprendido que as
aparências eram vitais para poder levar uma vida tranquila,
mas… isso acaso tinha importado alguma vez ao duque? Sua
famosa vida de libertino, galã, presunçoso e, sobretudo, rico
eram temas recorrentes em qualquer conversação londrina.
Depois do duelo ela não sabia o que teria mudado
nesses bate-papos, embora muito temesse que no sábado o
descobrisse. Sem sequer fazer ruído se levantou, colocou o
prato na pilha e, depois de confirmar que a senhora Stone
seguia grunhindo, decidiu abandonar a cozinha e dirigir-se
para o salão principal. Ali se ofereceria o baile para os
convidados e devia assegurar-se que o lugar eleito para os
músicos era o adequado para que a melodia se escutasse em
todo o salão.
Ao abrir as colossais portas, observou atônita as
mudanças efetuadas, tinham desaparecido a extensa mesa
central e as cadeiras que a rodeavam e os criados tinham
construído um pequeno cenário ao fundo, justo ao lado do
acesso que conduzia até o balcão. Sorriu satisfeita pela
eleição, pois se algum casal desejasse intimidade ali fora a
obteria sob a multidão de aromas do extenso jardim. Além
disso, se o tempo o permitisse, haveria uma linda lua cheia.
Com uma incrível emoção andou pela sala imaginando o
baile: casais dançando pelo lugar ao compasso de uma
música suave, rítmica. Beatrice fechou os olhos, colocou-se
como se segurasse a um par e escutando em sua cabeça uma
leve melodia, começou a dançar. Em seus giros podia notar o
movimento do vestido, seus passos deslizar-se sobre o chão
com sutilidade e a felicidade que percorria seu corpo. Fazia
tanto tempo que não dançava que não recordava como a fazia
sentir-se. Atravessou a sala com lentidão, atordoada pela
placidez do momento. De repente se sentiu observada, parou
sua dança e olhou para a entrada do salão. Ali se encontrava
o duque, calado, imóvel, contemplando aquele ato infantil.
Vestia um impecável traje azul marinho, uma camisa branca
e, embora parecesse incrível, tinha trocado seu colete por um
cinza. Beatrice cravou o olhar no rosto masculino e se
surpreendeu ao ver que não mostrava aborrecimento, mas
sim fascinação.
― Sua Excelência… ― murmurou abaixando a cabeça
para que o homem não descobrisse a vergonha que sentia
naquele momento.
― Boa tarde, senhorita Brown. ― A saudação soou rude,
tosca, mais do que tivesse pensado após perceber a expressão
de seu rosto.
― Dispunha-me a… ― tentou dizer quando percebeu que
este caminhava para ela com passo firme e com o queixo
elevado.
― Segue cobrindo seu corpo com roupa de criada? ―
Perguntou muito zangado. ― Acaso não tem roupas mais
dignas para usar?
― Não queria danificar os vestidos que me deu de
presente, senhor ― mentiu. Lorinne discutiu com ela nessa
mesma manhã sobre a vestimenta que devia usar, insistindo-
lhe que a pupila do senhor não podia ir com trapos
destinados à servidão, mas seu orgulho a fez negar-se
terminantemente, acreditando que era o mais correto.
Entretanto, ao descobrir a ira que tinha provocado no duque,
já não estava tão segura de sua eleição.
― No caso improvável de que se danificasse algum
vestido, uma criada poderia acompanhá-la até Rowsley para
comprar o que precisasse ― disse aplacando um pouco aquele
tom sóbrio.
― Mas não há tempo para isso. Tenho muito trabalho a
fazer. ― Segurou com força o avental ao mesmo tempo em
que escutava a respiração agitada do homem, que de novo se
colocou em frente a ela, muito próximo, provocando-lhe uma
terrível dor no estômago.
― Pois deverá adiá-lo ― comentou ao mesmo tempo em
que se dirigiu para o lado esquerdo. Andou uns passos e,
como iria sendo bastante habitual, deu-lhe as costas. ―
Temos que fazer outras coisas mais importantes.
― Mais importantes que adequar este lugar para
sábado? ― Deu meia volta e se colocou atrás dele. Agora era
ela quem estava zangada, tanto que elevou o queixo tão alto
quanto pôde.
― Esta manhã recebi várias respostas dos nossos
convites ― explicou mais calmo. Colocou seu braço direito
nas costas e se manteve quieto com o olhar cravado ao fundo.
― Nelas me informam que, dado o incessante rumor que
percorre as ruas do povoado, desejam conhecê-la e verificar
que se trata de uma falácia desprezível.
― Meu Deus! ― Exclamou aterrorizada. Beatrice não
tinha meditado sobre isso. Estava tão ocupada com as tarefas
que esqueceu os protocolos que se deveriam levar a cabo ante
um convite.
― Na hora do chá teremos a visita honorável do senhor e
da senhora Wadlow. Sabe de quem falo, não é senhorita
Brown? ― Girou-se para a moça e observou que ela não
evitou mostrar o aborrecimento que lhe produzia escutar o
sobrenome. Ele tampouco pôde reprimi-lo ao abrir a carta e
ler que o doutor não assistiria à festa se não fosse recebido
antes em Haddon Hall e a própria jovem confirmasse a nova
versão.
― Receber-lhe-emo com um grande sorriso ― disse
apertando os dentes.
― Sua decisão me deixou sem palavras ― revelou com
um suave sorriso. ― Durante o trajeto até aqui meditei como
lhe informar de tal acontecimento. Pensei que iria gritar ao
céu e que os receberia a pedradas. Entretanto, acredito que
essa atitude é a mais acertada. Não se deve mostrar aos
outros os sentimentos que possui ― disse um tanto
assombrado e orgulhoso pelo coerente comportamento da
moça.
― Recorda que minha principal tarefa é ajudar à
senhora Stone na cozinha, não é? ― Expôs arqueando as
sobrancelhas e exibindo um rosto maquiavélico. ― Pois não
imagina quantas coisas podem cair em uma xícara de chá e
provocar uma rápida indisposição.
Uma enorme gargalhada retumbou na habitação. A
moça quase teve que tampar os ouvidos para que o eco não
retumbasse em sua cabeça, mas de repente o duque mudou o
sorridente rosto, ficou sério e olhou Beatrice com os olhos
entrecerrados.
― Não terá pensado alguma vez em me fazer tal coisa,
não é?
― Centenas, possivelmente milhares de vezes, mas estou
segura de que sua cozinheira, quem o adora embora ainda
não saiba muito bem por que, degolaria-me como faz com as
pobres galinhas ― afirmou entre risadas ao mesmo tempo em
que William voltava a gargalhar.
Beatrice o olhou com atenção. Se não recordava mal, era
a primeira vez que o escutava rir com tanto entusiasmo. Seu
rosto se mostrava diferente ao que estava acostumado a
apresentar quando a retidão de seu comportamento se
impunha. Umas pequenas rugas se desenharam nas laterais
de seus olhos escuros, seus lábios se revelavam sem pudor,
mostrando uma bonita forma de coração e a barba era ainda
mais densa, se possível.
O duque continuou rindo um pouco mais. Logo, depois
de descobrir que a tensão entre eles havia desaparecido,
atreveu-se a perguntar.
― Gostaria de dar um passeio? Faz uma tarde linda e eu
gostaria de desfrutá-la antes da perturbadora visita.
― O mais conveniente seria que eu me retirasse ao
quarto e começasse a…
― Rogo-lhe, acompanha-me. Prometo-lhe que será uma
caminhada curta. ― Olhou-a aos olhos e lhe sorriu como se
se tratasse de um menino rogando para que lhe dessem o que
tanto deseja.
― Muito bem ― sucumbiu ao fim.
Beatrice pretendia andar dois passos atrás dele, mas o
duque o evitou diminuindo seu ritmo até que ambos
permanecessem juntos.
― Quando as nuvens deixam o sol brilhar, a paisagem
que se aprecia é maravilhosa ― comentou William quando
seus pés tocaram a grama.
― É impressionante… ― comentou Beatrice exalando em
cada palavra como se lhe faltasse o fôlego. ― Nunca tinha
visto um lugar tão imenso.
― Tudo o que tenho devo ao meu avô. Foi um homem
muito trabalhador. Conforme tenho entendido se propôs a
adquirir as terras adjacentes à mansão e não cessou em seu
empenho até que o conseguiu ― explicou orgulhoso. Olhou
para o horizonte, suspirou, colocou seu braço direito para
trás e avançou com passo lento. ― Ao que parece foi o único
duque de Rutland que fez honra ao título.
Beatrice o olhou de esguelha, apertou os dentes para
não replicar tal afirmação e prosseguiu seu caminhar.
― É muito jovem, senhor. Pode ainda mudar seu destino
― disse depois de uns minutos em silêncio.
― Mas como já lhe expliquei, as ideias preconcebidas
da…
― Por que essa fonte se encontra em tão mal estado? ―
Perguntou Beatrice interrompendo a reflexão de William ao
mesmo tempo em que se dirigia para a construção de pedra
que se achava na metade do jardim. Tudo ao seu redor
desprendia beleza e um meticuloso cuidado, entretanto, o
pequeno manancial estava quebrado, destroçado por alguma
estranha razão. ― Resulta-me desconcertante que ninguém se
preocupou em restaurá-la.
― Não vale a pena perder tempo nela ― esclareceu
posicionando-se atrás da jovem.
― Por quê? ― A moça se voltou para ele e esperou a
resposta.
― Porque é perigosa ― apontou com certo pesar.
― Que ameaça pode supor uma fonte, além de terminar
molhado? ― Arqueou as sobrancelhas e o olhou ansiosa.
― É uma longa história…
― Daremos, então, um comprido passeio ― replicou.
― É dolorosa.
― Poderei suportá-lo ― insistiu.
William a contemplou com atenção e notou como a dor
no peito aparecia de novo. Era uma estranha queimação que
não havia sentido jamais.
«Possivelmente, ― disse ― porque não encontrou uma
mulher que lhe provocasse isso». Ante tal reflexão, tomou ar,
soprou, levantou a cabeça e olhou para o bosque.
― Quer que eu lhe suplique? ― Colocou as mãos na
cintura e franziu o cenho.
― Não.
― Então, a que vem tanto mistério?
― Não deveria…
― Está bem! Como deseja! ― Exclamou com
aborrecimento. ― Se me permitir, tenho muitas coisas que
fazer em…
― Aconteceu faz pouco mais de quinze anos. ― William a
segurou pelo braço para que deixasse de afastar-se e
começou a triste narração. ― Lausson e eu passeávamos por
aqui enquanto falávamos do futuro que nos proporcionaria
em Londres quando enfim pudéssemos abandonar Haddon
Hall. As crianças dos criados brincavam de correr ao nosso
redor tentando nos fazer partícipes de suas diversões. Como
foram tão persistentes, terminamos cedendo. Entre esses
pequenos se encontrava Anne, a filha dos Stone, de uns cinco
anos de idade. Ao Lausson ocorreu entretê-los brincando de
esconde-esconde, então enquanto os procurávamos,
poderíamos continuar com nossas divagações infantis. Um
criado requereu minha atenção ante a chegada de uma
notificação que nos enviou o senhor Gibbs. Sem pensar que
meu irmão só contava com treze anos e era mais menino que
aqueles que se ocultavam no jardim, parti deixando-os
sozinhos. ― Respirou fundo mostrando sem evitar a intensa
aflição que sentia, ao mesmo tempo em que prosseguia a
caminhada. ― Um momento depois, alguém gritou na entrada
principal. Os alaridos eram tão intensos que, sem ter que sair
da habitação, soube com certeza que algo grave tinha
acontecido. Corri para o exterior rezando a Deus que não
tivesse ocorrido nada ao Lausson, mas não se tratava dele e
sim da Anne. Quando desci essas escadas... ― indicou-as
com um suave movimento de sua cabeça ― vi horrorizado os
incessantes intentos de um pai por salvar a vida de sua
pequena e como uma mãe gritava e chorava ante o desastre.
― O que ocorreu? ― Beatrice parou sua caminhada,
agarrou-o pelo braço e o girou para ela para poder
contemplar em seu rosto a tristeza que expressavam suas
palavras.
― Anne, ao correr para que não a encontrássemos,
tropeçou com a fonte e caiu nela. Deu-se um golpe na cabeça.
Foi um muito pequeno, mas a deixou tão aturdida que não
conseguiu mover seu rosto para conseguir respirar e
terminou afogando-se. Nossa pequena Anne perdeu a vida
nessa maldita fonte ― exalou com força. ― Depois de enterrá-
la, Lausson se inundou em um estado de choque que não
conseguiu superar até que abandonou esta casa e os Stone
partiram. Não podiam suportar viver no lugar no qual sua
filha havia falecido.
― Mas retornaram… ― murmurou Beatrice com
suavidade sem soltar o braço do duque.
― Retornaram um ano depois. Abri-lhes as portas
esperando qualquer recriminação, mas não o fizeram. Só
observaram que, ao pôr os pés em Haddon Hall, encontraram
a fonte sem água e destroçada pelo arrebatamento enfurecido
de um adolescente que perdeu nela a sua verdadeira família.
― Pobre senhora Stone… ― sussurrou liberando o duque
para aproximar-se da fonte. Abaixou-se e tocou com uma
mão as pedras quebradas pelos golpes.
― Como pode compreender, entre os Stone e eu cresceu
um vínculo mais forte, se possível. Eles sempre foram e serão
meus verdadeiros pais ― afirmou com veemência.
― Por isso senhor, jamais poderei envenená-lo embora o
anseie com todas as minhas forças ― disse como se dito ato
lhe provocasse uma terrível decepção.
― Possivelmente se tentasse em Watford, teria mais
sorte. Acredito que a duquesa estaria encantada de me
oferecer ela mesma o veneno ― voltou a gargalhar.
― Deus lhe castigará por pensar esse tipo de coisas
sobre sua mãe ― comentou com um fingido aborrecimento.
― Não acredita que Deus já me castigou o suficiente? ―
Perguntou sério.
Seu corpo se endureceu e toda a felicidade desapareceu
com rapidez. William respirou profundamente e tentou fazer
apagar de sua cabeça os suplícios aos quais se enfrentava dia
a dia.
― Sinto muito… não quis dizer – desculpou-se,
levantando-se rapidamente e aproximando-se do homem.
― Bom, senhorita Brown, é hora de retornar. Devemos
nos preparar para aqueles respeitáveis convidados ― declarou
com voz serena, impessoal.
Beatrice andou cabisbaixa ao lado do duque. Não sabia
como romper o silêncio incômodo que se criou entre eles.
Sentia-se mal por ter encaminhado uma conversação afável a
uma lembrança tormentosa. Não era sua intenção. Não
desejava lhe machucar. Não desejava ser como os outros.
― Agora que o penso… ― falou William parando sua
marcha. ― Você sabe muito sobre mim, mas eu mal sei algo
de você.
― Não há muito o que contar ― manifestou aturdida.
Era certo que até aquele momento tinha evitado mencionar
seu passado e como terminou vivendo na cabana, mas
parecia que o tempo de seguir contornando essa história
tinha finalizado.
― Sou todo ouvido. Não imagina quantas vezes tentei lhe
perguntar sobre isso e não consegui saber como iniciar a
conversação ― esclareceu com voz serena. Sua mão direita
retornou às costas e, olhando-a com atenção, esperou a
ansiosa história.
― É muito breve e menos extensa que a sua ― começou
a narrar enquanto começavam a subir os degraus. William,
por cortesia, deixou-a avançar na frente dele. ― Meus pais
eram uns humildes lavradores e, com a esperança de achar à
sua única filha um futuro melhor, conseguiram-me um
trabalho na casa de um homem rico.
― De onde eram seus pais? Onde a levaram? ― Inquiriu
sem mal respirar. ― Porque conforme pude investigar,
ninguém a conhece em Rowsley.
― Indagou sobre mim? ― Girou-se para ele e colocou de
novo as mãos na cintura ao mesmo tempo em que franzia o
cenho.
Ao subir um degrau acima do duque, ambos os rostos
ficaram frente a frente. Seus olhos verdes observavam
diretamente os escuros do homem. O ar que desprendia um,
podia respirá-lo o outro. Beatrice se sentiu enjoada ao inalar
aquela mescla de colônia e essência viril. Tragou saliva ao
pensar que, em um leve movimento, ambas as bocas podiam
roçar-se. Embora não fosse apropriado imaginar tal coisa,
fantasiou outra vez como beijariam aqueles lábios. Sua mente
lhe respondeu com todas as sensações que poderiam lhe
ocasionar aquele beijo, então uma intensa dor surgiu em
suas vísceras, como se em seu estômago revoassem milhares
de percevejos que lhe cravavam sem cessar os ferrões. Mas foi
outra doença ou queimação a que quase provoca sua queda
ao chão, notou, pela primeira vez em sua vida, um estranho
calor que procedia do baixo ventre. Aturdida, zangada e
terrivelmente assombrada ao descobrir que o homem que se
encontrava em frente a ela despertava um desejo impuro,
deu-se a volta para prosseguir seu caminho para o interior da
casa.
― Não se zangue comigo. O rogo, mas tem que entender
que me preocupei ao vê-la tão desamparada no refúgio ―
explicou com angústia William.
A proximidade entre eles lhe tinha provocado o impudico
desejo de beijá-la, de abraçá-la e de sentir a calidez do
pequeno corpo. Tentou centrar sua mente em cavalos, na
festa, em Roger e terminou pensando em Federith. Milhares
de impropérios apareceram em sua cabeça e todos estavam
dedicados ao seu amigo: «Algum dia, William Manners futuro
duque de Rutland, apaixonar-se-á e essa mulher te fará
pagar por todo o mal que causou às suas amantes e aos seus
maridos», essas tinham sido suas palavras na mesma manhã
do fatídico duelo. Em efeito, o dia tinha chegado e, tal como
previu, estava pagando todas as atrocidades que provocou.
― Quando retornei ao meu lar depois de saber que meus
pais estavam doentes, já haviam falecido por causa da cólera.
Pensei que podia viver no lar onde cresci e subsistir com o
pouco que me oferecia a terra, mas não foi assim. As dívidas
que geraram os falsos remédios para curá-los foram saldadas
com essa casa. Ao ver-me sem nada comecei a andar e não
parei de fazê-lo até que cheguei à cabana. Como não a
habitava ninguém, converti-a em meu novo lar ― disse
apertando a mandíbula, os punhos e estrangulando sua
alma.
― Sinto muito… ― murmurou com pesar.
― Não o sinta, é lógico que deseje saber a quem tem sob
seu teto. Embora como pôde comprovar não sou nenhuma
ladra, nenhuma assassina, tão somente uma vítima do
infortúnio. E agora, se me desculpar, tenho que me preparar
para receber de forma correta os seus convidados.
Sem levantar a cabeça acelerou o passo e entrou na
mansão sem olhar para trás. Umas pequenas lágrimas
percorreram seu rosto ao mesmo tempo em que subia as
escadas. Não só sofria porque tinha saudades de seus pais e
da vida aprazível que tinha vivido com eles, mas também
porque estava segura de que o duque ficara, após escutar a
história, imóvel e aflito em frente à porta.
XX

― Deveríamos ter escolhido o dourado... ― disse Beatrice


movendo-se sobre si mesma e observando o vestido com
atenção para convencer-se de que não era muito ostentoso
para aquela ocasião ― tem bastante decote…
― Mas seu seio não aparece. A renda de seda branca
evita que se aprecie ― argumentou Lorinne enquanto tentava
colocar as últimas forquilhas no cabelo da inquieta moça.
― Não pensa que é muito atrevido? ― Perguntou ao
mesmo tempo em que detinha seus movimentos fazendo com
que a criada soprasse aliviada ao poder finalizar sua tarefa.
― O malva é o ideal para tomar o chá. Se tivesse
escolhido o esmeralda eu lhe teria feito mudar de ideia. Esse
sim é um vestido atrevido. Ainda não sei como a senhora
Stone permitiu sua compra ― expôs antes de emitir um
sorrisinho perverso.
― Mas é lindo… ― murmurou a jovem caminhando para
o objeto e tocando com cuidado o tecido.
― Esse deve usar na festa. Estou segura de que deixará
a mais de um cavalheiro com a boca aberta e com uma dor
terrível no flanco ― comentou a donzela zombadora.
― Por quê? ― Beatrice arqueou as sobrancelhas, olhou-a
com atenção e caminhou para ela.
― Não imagina por quê? ― Assinalou com seriedade.
Logo, ao descobrir que com efeito a jovem não sabia a que se
referia, explicou-lhe. ― Como acredita que atuarão as esposas
desses maridos? ― Esperou uma resposta e ao não obtê-la,
continuou. ― Minha querida senhorita Brown, esses
desafortunados cavalheiros serão golpeados pelos duros
cotovelos de suas mulheres ― disse antes de soltar uma
gargalhada.
― Não seja boba… ― sussurrou desenhando um leve
sorriso em seu rosto. ― Ninguém será capaz de me olhar
dessa forma sabendo que sou a pupila do duque. Todo
mundo teme zangá-lo.
― Mas sua Excelência não poderá controlar os olhares…
De repente alguém deu uns pequenos golpes na porta.
Depois que Beatrice deu sua permissão, o senhor Stone fez
ato de presença. Como era habitual nele, mostrou-se sério,
frio, imperturbável.
― Senhorita Brown, informo-lhe que os convidados
acabam de chegar. Sua Excelência a espera para recebê-los.
― Descerei agora mesmo ― manifestou depois de tragar
saliva.
― Obrigado ― respondeu o mordomo antes de despedir-
se.
Quando fechou a porta, Beatrice levou a mão direita ao
peito sentindo a agitação que se ocultava em seu interior.
Seria capaz de convencer ao incrédulo senhor Wadlow da
nova versão? Que provas lhe pediriam para confirmar que ela
não era uma cortesã? E, sobretudo… como atuaria o duque
se o homem se comportasse indevidamente com ela? De
repente sentiu medo e um estranho enjôo a sacudiu com
ímpeto. Temerosa por um possível desmaio, caminhou
devagar para o leito e se agarrou com força a um dos dosséis.
― Não se preocupe, tudo sairá bem ― sussurrou
Lorinne. Vendo-a tão aturdida, aproximou-se, estendeu os
braços para abraçá-la e a tentou reconfortar com o apertão. ―
O duque cuidará de você como tem feito desde que entrou
nesta casa. Esse filho do demônio não se atreverá a lhe
magoar porque, se o fizer, estou segura que não sairá ileso
daqui ― sussurrou. Depois de suas palavras, a donzela lhe
deu um beijo na bochecha, a fez girar para a porta e a
empurrou brandamente até que conseguiu tirará-la da
habitação.
Quando Beatrice se propôs a descer as escadas, parou
para observar o duque. Este se encontrava imóvel no hall
com o olhar cravado na entrada e manifestando certa rigidez
em seu corpo. Estava tenso, mais do que esperou encontrar
em um homem que se caracterizava por manter uma
extraordinária serenidade e autoridade. Sem dúvida, o que
acontecesse durante a visita do doutor e sua esposa,
inquietava-lhe.
A moça pensou que era lógico que se encontrasse
daquele modo, posto que lhe urgisse resolver um tema que
lhe causava tristeza. Não era agradável que lhe seguissem
considerando o sucessor das atrocidades realizadas por seu
pai. Embora ele tampouco lutou com afã para fazê-las
desaparecer. Por muito que lhe explicou desejar ser uma
pessoa diferente, antes de ser ferido no duelo comportava-se
com a mesma insolência que seu progenitor. Entretanto, todo
mundo merece uma segunda oportunidade e possivelmente
era o momento de recebê-la.
Com suavidade desceu as escadas sem deixar de
observá-lo. Durante um breve instante, no qual este colocou
sua mão direita nas costas, apreciou que enrugava a testa
com força. Não podia receber ao casal daquela maneira, tinha
que relaxá-lo. Se antes que estes pusessem um pé no lar e a
perturbação não desaparecesse, a história mentirosa
terminaria em um fracasso inevitável.
William não tranquilizou sua mente nem um só instante
desde que a moça lhe revelou seu passado. Não cessava de
imaginá-la perambulando sozinha, caminhando exausta e
contornando centenas de perigos aos quais teria enfrentado.
Cada vez que pensava nisso o sangue lhe fervia, irritava-se e
queria golpear algo para poder quebrar com a mão. Embora
aquelas divagações lhe enfurecessem, mais ira lhe provocava
havê-la conduzido para a situação em que se encontrava
agora. Por sua culpa a moça deveria enfrentar os falatórios de
todo um povoado para demonstrar ser inocente e decorosa. E
tudo porque ele não era capaz de deixá-la partir, de aprender
a viver sem ela.
«Se tanto a necessito, ― disse ― deveria atuar com
rapidez. O muro está quase terminado e então, tal como lhe
prometi, terei que deixá-la partir».
Mas a única forma encontrada para evitar aquela
desgraça não podia levá-la a cabo, não até que averiguasse os
sentimentos que ela tinha para com ele.
― Se franzir o cenho com tanta frequência, envelhecerá
logo – sussurrou-lhe Beatrice atrás dele.
― Desculpe-me, não a ouvi descer… ― começou a dizer
William enquanto dava a volta para receber como era devido à
jovem. Ao apreciar sua beleza e como aquele vestido de cor
malva ressaltava sua figura, tragou saliva e sentiu como seu
corpo se debilitava. Estava linda, encantadora, possivelmente
até mais do que deveria mostrar ao casal. Entretanto, quem
pode diminuir a mágica beleza que brota da simplicidade?
― Quer que eu me coloque ao seu lado ou prefere que
permaneça uns passos atrás? ― Perguntou.
Era uma pergunta aparentemente infantil, mas não
podia ser assim quando a moça revelava em seu rosto uma
imensa zombaria.
― Se lhe oferecer o braço e você o aceitar, acredita que a
senhora Wadlow terá que ser assistida por seu querido
marido após sofrer um desmaio? ― Respondeu William à dita
brincadeira.
― Então, a melhor opção será que fique ao seu lado,
mas com certa distância ― disse ao mesmo tempo em que
dava uns passos para sua esquerda.
As vozes dos convidados se escutaram detrás da porta,
Brandon estava no exterior para lhes indicar para onde
deviam caminhar. William olhou para a entrada, logo
observou à moça e, sem saber a razão que conduziu a tal
atrevimento, inclinou a cabeça para ela e lhe sussurrou com
suavidade.
― Esqueci-me de lhe dizer que está linda.
Beatrice abriu os olhos como pratos ao escutar o suave
murmúrio do duque em seu ouvido. Começaram a lhe suar
as mãos, seu seio se elevava com ímpeto devido à respiração
agitada, os joelhos começaram a dobrar-se pela perturbação
que aquelas suaves palavras lhe provocaram. Era a primeira
vez que lhe oferecia um elogio e, apesar de tentar lhe subtrair
importância a um fato tão minúsculo, não o conseguiu. Por
uma estranha razão, se ele se sentia orgulhoso dela, ela
notava como crescia uma imensa felicidade em sua alma.
― Se forem tão amáveis de me seguir ― falou o senhor
Stone. ― Conduzirei-lhes até a presença de sua Excelência.
― Pelo amor de Deus, Graham, isto é enorme! ―
Exclamou a esposa, sem poder apartar o olhar de tudo o que
se achava ao seu redor.
― Centre-se no importante, Irina. Você, como perita em
propagar falácias, deve descobrir se esses dois estão nos
mentindo. Como já sabe, nossa credibilidade diminuiu
grandemente entre nossas amizades e, se deseja continuar
sendo a esposa de um respeitado doutor, temos que achar a
verdade.
― Não se preocupe querido ― disse sorrindo e lhe dando
uns pequenos golpes com sua mão esquerda no braço que a
sustentava. ― Encontrarei-a antes de beber o último gole de
chá.
Brandon, ao escutar a conversação nada dissimulada
dos convidados, apertou os dentes, abriu a porta e mostrou
uma careta que tentava assemelhar-se a um sorriso.
― Senhor Wadlow, senhora Wadlow, bem-vindos ―
saudou o duque com voz grave.
― Boa tarde, senhor. Obrigado por aceitar nossa visita ―
comentou o doutor com um sorriso malicioso. Aproximou-se
de William e estendeu a mão para lhe saudar. Logo olhou de
esguelha à Beatrice e se dirigiu para ela. ― Alegro-me de vê-la
em tão bom estado, senhorita Brown.
― Muito obrigada. Na verdade, devo tudo a você e ao seu
magnífico trabalho. Ficaram apenas as marcas na perna ―
comentou sorridente.
― Querida, esta é a jovem de quem te falei ― explicou
Graham apartando-se para a direita para que a mulher se
aproximasse de Beatrice. ― Senhorita Brown, minha esposa,
a senhora Wadlow.
― Encantada ― disse a moça mostrando o mesmo
sorriso sardônico que, instantes antes, tinha exibido o
doutor.
Não tinha feito uma ideia de como seria a mulher do
famoso médico, mas lhe chamou muito a atenção que ela
fosse bastante mais alta que ele. Com uma compleição
magra, mais do que estabeleciam os ícones de beleza, usava
um vestido que enfatizava a estreita cintura e exaltava seu
busto. Beatrice admirou o cabelo, era o mais dourado que
tinha visto até agora. Era um loiro tão intenso que poderia
confundir-se com o branco. E era jovem, muito mais jovem
que seu marido, que exibia uma barba grisalha cuidada, um
cabelo cortado à perfeição e uns olhos repletos de maldade.
― Encontra-se melhor? OH, meu Deus! Quando Graham
me narrou a tenebrosa história que tinha padecido e as
sequelas que poderia sofrer, quase desmaio ― explicou com
aparente horror.
― Mas graças à intervenção de seu marido hoje posso
caminhar como se nada daquilo tivesse acontecido ― sorriu
outra vez.
― Deveríamos nos dirigir para o salão e continuar ali o
bate-papo ― interveio William perplexo ante a hipócrita
atitude dos três. Tinha pensado que Beatrice se enfureceria
ao ter em frente a ela o culpado de sua agonia, mas de novo o
deixava assombrado, atônito e orgulhoso.
― É claro ― afirmou a moça. ― Os cavalheiros poderiam
ir à frente ― murmurou à Irina segurando-a pelo braço com
familiaridade. ― Estou segura que ambos conhecem o
caminho melhor que nós.
― Confunde-se, senhorita Brown ― interveio com rapidez
o doutor. ― Salvo o dia em que vim para tratá-la, jamais
estive neste lugar ― resmungou Graham ante tal atrevimento.
― Desculpe-me! ― Exclamou Beatrice com semblante
desconcertado. ― Acreditei escutar que você era amigo do
anterior duque de Rutland.
― Que nada! ― Deixou escapar Irina ante tal afirmação.
― Ninguém que se considerasse respeitável teria visitado esta
mansão durante as aparições daquele homem.
― Ah, não? ― Perguntou com um aparente assombro.
― O pai de sua Excelência, ― começou a explicar a
mulher depois dos passos dos cavalheiros ― era um homem
desonroso e abrigava sob seu teto mulheres… como o diria eu
para não escandalizá-la?
― Prostitutas ― apontou William com voz séria. Embora
seu tom não refletisse o que sentia em realidade. Ao princípio
apertou os dentes pela ousadia da moça, mas depois de ver a
cara de espanto que mostrou o doutor, não cessou de repetir-
se que a reunião iria ser mais amena do que pensava.
― Por isso alguém proclamou por Rowsley que sou sua…
― Beatrice tentou simular um desmaio ante o descobrimento.
A senhora Wadlow lhe segurou com força o braço e olhou
furiosa ao seu marido, este retornou com rapidez para a
jovem para examiná-la.
― Não se preocupe ― disse a moça recompondo-se. ― Foi
só um pequeno enjôo ao recordar as calúnias que um ser
perverso e malicioso comentou sobre mim sem me conhecer.
― Encontra-se melhor? ― Interrompeu William tentando
aparentar preocupação.
― É claro, sua Excelência, prossigam. Nós partiremos
atrás.
O duque continuou seu caminho para o salão. Ao seu
lado permanecia o doutor com o cenho franzido e
absolutamente em silêncio. Depois deles andavam as
mulheres. Quando entraram no salão, elas se sentaram perto
da mesa redonda que havia justo ao lado de uma das janelas,
onde podiam admirar o exterior do lar. Eles decidiram
permanecer de pé ao seu lado.
― Então, ― rompeu o silêncio Irina ― conforme nos
informaram, é você a pupila de sua Excelência.
― Sim. Minha mãe, amiga de uma irmã de uma amiga
da irmã de outra amiga da atual duquesa de Rutland,
encomendou-lhe a árdua tarefa de ser meu tutor ― explicou
olhando-a fixamente aos olhos.
― Não teve mais alternativa? Desculpe meu atrevimento,
milord, mas tem que compreender que uma moça tão jovem,
tão bonita e com tantas possibilidades de encontrar um bom
tutor em Londres, não entendo como terminou neste lugar.
― Desculpo-a, senhora Wadlow, eu pensei o mesmo
quando minha mãe me informou sobre sua decisão. Mas
depois de minha desgraça, de me converter em um ser
incapaz de realizar nada sem a ajuda de meu fiel mordomo e
de não supor perigo algum para a senhorita, insisti que era a
melhor opção para limpar o bom nome que ostento ―
sentenciou.
Beatrice não respirou. Ficou tão assombrada pela
exposição do duque que não soube como atuar. Se sorrisse
mostraria a estes seu apoio à declaração de inutilidade do
homem, mas se pelo contrário, franzisse o cenho, apertava os
dentes e seus punhos pela dor que lhe tinham causado as
palavras, daria a entender aquilo que nem ela mesma era
capaz de assimilar.
― Como já expliquei à encantadora senhora Brace, o
duque é muito inteligente, mais do que deseja aparentar –
interveio. ― E como tutor, não tenho queixa alguma, embora
eu lhe diga que é bastante exigente.
O casal se dirigiu um olhar furtivo, mas tanto o duque
como Beatrice o captaram. Estes se olharam interrogantes,
como se ainda não acreditassem na versão contavam.
― É o momento do chá ― esclareceu William. Caminhou
para um lado da cortina e puxou com delicadeza uma corda
que pendia do teto. Ato seguido apareceu o senhor Stone.
― Sim, milord?
― Estamos preparados para tomar o chá ― afirmou.
Brandon fez uma suave reverência e, cinco minutos
depois de sua marcha, duas criadas levavam em suas mãos
umas bandejas de prata com as xícaras e massas.
Não houve bate-papo enquanto saboreavam a deliciosa
infusão. Entretanto, William apostava o único braço são que
o casal não cessava de refletir sobre quais perguntas fazer à
moça para confirmar o que deviam descobrir. De repente, o
doutor até aquele momento sentado ao lado de sua mulher
para ingerir o chá e saborear alguns doces, pousou a taça
sobre a mesa e se levantou com decisão.
― Sabe tocar o piano, senhorita Brown? ― Perguntou
enquanto se dirigia ao instrumento situado no outro lado do
salão. ― Se a memória não me falhar, nosso duque, quando
tinha a precoce idade de dez anos, era um magnífico pianista.
William abriu os olhos como pratos. Um nó enorme lhe
impediu de tragar o último sorvo de chá que tinha tomado.
Tentou falar para oferecer qualquer desculpa, que o piano
estava desafinado, que tinha se quebrado alguma tecla, algo
que o tirasse do apuro, mas foi impossível.
― Não dizia você nunca tinha aparecido em Haddon
Hall, salvo quando me visitou? ― Beatrice, assombrada pela
maldade do homem, replicou-lhe com a mesma perversidade.
― Não precisava aparecer por estas lareiras para escutar
as pessoas falarem sobre o incrível talento que possuía lorde
Rutland com este instrumento ― sorria de orelha a orelha.
Seus olhos mostravam uma escura e maléfica satisfação.
Dizia-se a si mesmo ter encontrado o que havia se proposto.
Que cortesã alcançaria tal capacidade? Elas só eram peritas
em agradar sexualmente aos homens e deixavam de lado um
estudo tão importante como a arte da música.
― Sim, por favor, toque alguma peça! ― encorajou Irina
a decisão de seu marido com grande exaltação. ― Eu adoraria
escutá-la. Apesar de meus constantes intentos por aprender
a tocar esse instrumento, nasci sem esse dom. Conforme me
disse meu último professor, não tenho um bom ouvido.
― Como podem apreciar ― interrompeu William mal-
humorado. ― Não sou o homem apropriado para instruir com
precisão nessa habilidade. Muito temo que…
― É claro! ― Exclamou Beatrice elevando-se de seu
assento e caminhando para onde permanecia o senhor
Wadlow e o instrumento. ― Como já disse, o duque é um bom
tutor e, embora não possa me deleitar com uma
interpretação, ele sim tem bom ouvido e sabe como transmiti-
lo.
Absorto, assombrado e com o corpo tão intumescido que
não era capaz de mover-se, William admirou a pequena figura
dirigindo-se com elegância para o lugar. A moça se sentou
após acomodar seu vestido ao assento, arrumou o suporte
das partituras e olhou-as com atenção.
― Alguma peça em especial? ― A jovem arqueou as
sobrancelhas e sorriu. Sentia seu pulso acelerado, os dedos
começavam a mostrar rigidez e lhe suavam as palmas. Fazia
pouco mais de um ano que não tocava o piano e, caso aquele
maquiavélico personagem lhe pedisse algo especial, não
poderia evitar cometer um engano. Sem saber por que olhou
ao duque. Este estava absorto em algum pensamento
doloroso porque franzia o cenho, tinha o olhar perdido e
apertava a mandíbula. Quis lhe sorrir, transmitir-lhe
serenidade para acalmar sua inquietação, mas… quem a
calmaria?
― A que você desejar ― respondeu Graham sem deixar
de regozijar-se.
Nesse momento e ante o assombro dos três, William se
levantou do assento e caminhou para a jovem, colocou-se
atrás dela e pousou a mão em seu ombro. Apertou-o com
suavidade e lhe sussurrou:
― Beatrice...
O quente tato e escutar seu nome com aquela aveludada
voz deixou a moça congelada. Notou um calafrio tão
extraordinário e jurou que sua temperatura tinha baixado dez
graus de repente. Elevou o queixo, afirmou com a cabeça
como se este lhe tivesse indicado o que devia tocar, e
colocando as mãos sobre as teclas iniciou a harmoniosa
melodia.
Durante os quatro minutos e meio que durou Spring
Waltz de Chopin, os três ouvintes foram incapazes de mover-
se para interrompê-la com um minúsculo ruído. Quase não
puderam respirar pela elegância e os sentimentos
transmitidos em suas notas. Beatrice, apesar de suas
dúvidas, não cometeu nem um só engano mesmo sentindo a
terrível angústia que lhe causou a música. Recordou seus
pais sentados na poltrona enquanto ela lhes deleitava com
um interminável repertório. Aquela composição em especial
os fazia segurar-se pela mão e mostrar sem pudor à sua filha
o amor incondicional que se professavam. Naquele tempo ela
sonhou encontrar um homem que lhe declarasse aquele
afeto, que a protegesse, que a amasse sem objeções, sem
restrições absurdas produzidas pela formalidade de uma
sociedade repleta de insensibilidade.
Mas seus sonhos foram destroçados dramaticamente.
Rememorou a dor sentida ao ser assaltada por seu violador,
pelo dano que lhe produziu ao desflorá-la e como, destroçada,
ficou estendida no chão chorando incapaz de levantar-se para
seguir vivendo. Deveria tê-la matado com aquela faca que lhe
apertava a garganta e finalizar assim o calvário que viveriam
seus queridos pais depois do penoso anúncio.
Quando a peça estava a ponto de finalizar, a imagem do
duque apareceu em sua mente sem poder evitá-lo. Recordou
o dia do acidente e quando retornou para oferecer-lhe sua
ajuda e ela o rejeitou, o momento no qual foi atacada e,
depois de pensar que não seguiria vivendo, abrir os olhos e
encontrar a figura esbelta do duque ao seu lado, cuidando-a,
protegendo-a apesar de sua incapacidade. Recordou seu rosto
zangado ao descobri-la vestida de criada, da tarde em que lhe
abriu seu coração para fazê-la partícipe de suas desgraças.
Do passeio, de sua dor e de como a tinha cuidado nessa
tarde. Tampouco pôde evitar analisar seus sentimentos por
ele. Seus aborrecimentos, suas atitudes altivas, dos
incontáveis enfrentamentos… e soube por que tinha lutado
com tanto ímpeto para apartá-lo de seu lado, porque o
amava.
Estava apaixonada por ele e, embora pensasse que
jamais desejaria deitar-se junto a um homem, ele fez com que
toda sua decisão desaparecesse. Desejava-o com toda sua
alma e isso lhe produzia pavor.
― Lindo… ― murmurou Irina levantando-se de seu
assento para dirigir-se a ela.
Beatrice se incorporou e girou para o duque, quem
permanecia ainda às suas costas. Elevou seu olhar para ele e
não ocultou as lágrimas que emanavam sem cessar.
― Sinto muito todo o ocorrido ― disse o doutor ao
contemplar a cena entre ambos. ― De verdade que o sinto e
se sua Excelência deseja revogar o convite, compreenderei-o.
― O convite segue em pé ― comentou com firmeza. Não
lhe olhou. Tinha seus olhos cravados na moça e não foi capaz
de mover-se de seu lado, como ditavam os perfeitos
comportamentos sociais, ao perceber sua debilidade.
― É hora de partir ― apontou Irina segurando seu
marido pelo braço e dirigindo-o para a saída. ― Não se
incomode em nos acompanhar, milord, meu marido saberá
como sair daqui. ― William só pôde assentir com um leve
movimento de cabeça.
Quando o casal fechou a porta, a senhora Wadlow
agarrou com ímpeto o braço de seu marido e lhe sussurrou.
― Errou, querido. Não é sua concubina, mas sim a
futura duquesa de Rutland.
O duque ao advertir que estavam sozinhos, estendeu
sua mão e abraçou Beatrice. Deixou que seu rosto molhasse
seu peito, que choramingasse tudo o que necessitasse,
enquanto lhe sussurrava palavras de consolo.
«Sempre me terá ao seu lado. Não me separarei de ti até
que você me peça isso», repetia uma e outra vez. A moça
esticou seus braços e o aferrou ainda mais ao seu corpo.
Necessitava aquilo que lhe prometia, precisava o ter ao seu
lado, necessitava que jamais se afastasse dela.
― Minha pequena Beatrice… ― murmurou apartando-a
com suavidade. Dirigiu sua mão para o lado direito do rosto
feminino e lhe apartou as lágrimas, a seguir fez o mesmo com
o esquerdo. ― Não sei de onde veio, nem como conseguiu
chegar até aqui, mas dou graças a Deus por se cruzar em
minha vida.
Beatrice elevou o queixo e deixou que este contemplasse
sua tristeza. Permitiu que a reconfortasse e, quando percebeu
sua boca se aproximando da sua, fechou os olhos para que a
beijasse como tantas vezes tinha sonhado. Ao sentir a
ternura em seus lábios, uma explosão de felicidade lhe
percorreu o corpo. Ao princípio apenas lhe roçou e soluçou ao
notar que se afastava, mas antes de poder abrir os olhos para
certificar-se de que partia, o duque voltou a beijá-la.
Entretanto, este beijo foi diferente. Toda aquela ternura dava
passo a uma incrível paixão. Conquistava-a, fazia-a dele,
hipnotizava-a até tal ponto que desejou sentir a mão dele
acariciando seu tremente corpo. Não devia fazê-lo, não era
adequado sentir, depois do acontecido, um desejo
incontrolável de notar o calor de sua pele junto à sua, mas
lhe resultava difícil não o fazer porque o amava.
William aproximou devagar os lábios para os de Beatrice
e apenas os roçou, temia que ao tocá-los ela se arrependesse.
Entretanto, ao escutá-la esboçar um pequeno e imperceptível
gemido de necessidade, voltou a estender a mão e,
segurando-a pela cintura, atraiu-a para ele. Deixando-se
levar, transformou um terno e suave beijo em uma explosão
de desejo. Saboreou sem descanso o interior e mesclou seu
fôlego com o dela. Sua língua conquistou com suavidade e
lentidão, tentando provocar em cada movimento mais paixão
na jovem. De repente, um intenso calor lhe percorreu o corpo,
convertendo o suave e terno beijo em um mais tórrido,
enérgico e dominante. Era dele. Aquela pequena mulher era
só dele.
― Desculpe minha ousadia ― disse William quando se
separou dela para que não pudesse captar a excitação que
lhe tinha provocado à aproximação. ― Não devia me
aproveitar de sua aflição.
― Não se desculpe, foi culpa de ambos ― comentou com
pesar ao entender que o duque se arrependia de beijá-la.
― Mas jurei que jamais tocaria a uma mulher sem seu
consentimento ― esclareceu dando uns passos para trás.
― Cumpriu sua promessa, sua Excelência. Permiti-lhe
me beijar e agora, se me desculpar, desejo me retirar ao meu
quarto.
― É claro ― respondeu aflito.
Com a cabeça abaixada e com um visível pesar, Beatrice
saiu do salão, subiu as escadas, alcançou seu quarto, fechou
a porta e se tombou na cama para chorar.
Por outro lado, o duque quis correr para ela e lhe
explicar que suas palavras não tinham sido acertadas. Que
ele desejava beijá-la com toda sua alma. Mas apertou as solas
de suas botas no chão e não o fez. Depois de escutar como a
moça fechava a porta, girou-se para o móvel, tirou uma
garrafa de brandy e se serviu uma taça que bebeu de um
sorvo.
XXI

Durante os dias posteriores, Beatrice evitou qualquer


encontro com o duque. Recusou seus convites para almoçar,
tomar o chá ou inclusive jantar juntos pondo como desculpa
as múltiplas tarefas que devia realizar para a festa. Embora
pudesse sentir a presença do duque ao seu lado em cada
coisa que fazia ou em cada passo que dava pela casa. O que
pretendia fazer, falar do ocorrido enquanto almoçavam? Se
tanta ansiedade lhe provocava o acontecido, por que não se
deteve antes de fazê-lo? Por que, em seu segundo beijo, em
vez de afastar-se, sua boca se chocou contra a dela com a
mesma intensidade que uma onda do mar em um escarpado?
Milhares de perguntas rondavam sua mente sem cessar, mas
suas respostas não a convenciam. Na intimidade que lhe
proporcionava a solidão de seu quarto, rememorava uma e
outra vez aquele momento. Via-o ao seu lado tentando fazer
desaparecer as lágrimas, apertando seu rosto contra seu
peito. Recordava seu olhar e a expressão deste, não havia
maldade nele, mas sim ternura, carinho, apreço.
Sentiu de novo o abraço, como a estreitava em seu corpo
para consolá-la e, sobretudo, sua mente não cessou de evocar
o momento do beijo. O primeiro terno, suave, com medo. Mas
depois de escutá-la soluçar pelo distanciamento de sua boca,
o segundo foi apaixonado, ávido e possessivo.
«Se tivesse sido em outro tempo, ― meditou na tarde do
sábado enquanto esperava sentada sobre o leito a chegada de
Lorinne ― acreditaria que se aproveitava da minha
debilidade. Mas agora, depois de compreender quem é em
realidade, não posso pensar isso. Ele já não é a pessoa que
conheci em Londres. Aquele homem libertino, egoísta e
petulante morreu».
Seguia divagando sobre as possíveis razões pelas quais o
duque se desculpou, quando bateram na porta.
― Adiante ― deu permissão em voz baixa.
― Boa tarde, preparada para deixar todos os convidados
com os flancos doloridos? ― Comentou a donzela com um
sorriso.
― Estou esgotada… ― indicou ao mesmo tempo em que
se lançou de costas sobre a cama e estendeu os braços. ―
Não poderiam postergá-la?
― Venha, não seja folgazona! Está escondida nesta
habitação há mais de duas horas! ― Lorinne se aproximou
dela, segurou-a pela mão e a levantou com rapidez. ― Não
temos muito tempo. Conforme me indicou o senhor Stone,
logo chegarão os primeiros convidados.
― Tão cedo? ― Soltou a moça assombrada.
― Sua Excelência enviou dois convites a duas pessoas
muito importantes para ele e, conforme comentam, pediu-
lhes que viessem antes da cerimônia ― explicou enquanto se
dirigia para a poltrona situada ao lado esquerdo da cama.
Pegou o espartilho e o mostrou à moça. Esta enrugou o nariz
ante o desagrado que lhe produzia voltar a embutir-se nesse
tipo de objetos.
― Quem são essas pessoas? ― Aproximou-se da donzela,
girou-se e deixou que esta começasse com a árdua tarefa.
― Amigos do duque. ― Apertou tanto os cordões do
espartilho que deixou a moça sem respiração. ―
Companheiros que permaneceram ao seu lado durante as
longas temporadas em Londres. Não posso comentar muito
sobre eles porque não tive o prazer de conhecê-los em pessoa,
mas conforme contam outros criados, um é o senhor Federith
Cooper, o sobrinho do senhor Clain e futuro barão de
Sheiton. Ao passar sua infância em Rowsley, foi o único
menino que visitava o senhor e, ao que parece, tão intensa foi
e é sua amizade que o irmão do duque sentia, e sente, ciúmes
deles. ― Voltou a girá-la para certificar que o objeto se
ajustava como devia ao pequeno corpo. Quando se
conformou, dirigiu-se para o roupeiro, pegou o vestido
esmeralda acetinado e após sorrir maliciosamente, foi para a
jovem.
― E o outro? ― Beatrice levantou os braços para que
Lorinne lhe pusesse o vestido que, segundo ela, ia provocar
certa queimação aos cavalheiros que a admirassem. Embora
não estivesse muito segura de que isso ocorresse porque todo
mundo temia e respeitava ao duque. Quem iria ser tão
incauto de lhe enfurecer em sua própria casa?
― Ninguém, salvo o casal Stone, viu-o. Conhecemos seu
nome porque os criados encarregados de lhe fazer chegar a
missiva nos contaram ― disse com uma aura de mistério.
― E? – Insistiu, na espectativa.
― Chama-se Roger Bennett, futuro marquês de
Riderland. Conforme tenho entendido... ― deu a volta à moça
e abotoou suas costas ― o senhor Stone jamais se agradou
dessa amizade ― disse ao mesmo tempo em que colocava
suas mãos nos ombros semidesnudos e a conduzia para a
penteadeira para penteá-la. ― Parece ser um homem
inconsequente, um aventureiro, um jogador inveterado e
quem conduziu sua Excelência pelo mau caminho.
― E esse tal Roger… decidiu vir? ― Perguntou com certa
inquietação. Apesar de não ter escutado falar de nenhum dos
dois cavalheiros, o mero feito de saber que procediam de
Londres provocou-lhe um sobressalto. E se coincidiu com
algum deles nas poucas festas que assistiu? Como era lógico
se suportavam essa desafortunada fama, sua mãe evitou
qualquer aproximação com estes, mas… eles teriam reparado
em sua presença?
― Sim! Claro que virão! ― Exclamou entusiasmada. ― E
por fim descobriremos o rosto desse fantasma!
Não pôde ficar quieta depois da informação. Seu interior
foi incapaz de manter a calma enquanto Lorinne trabalhava
com afinco para realizar um penteado que, conforme
apontou, deixaria descoberto o esbelto pescoço e o voluptuoso
decote. Tampouco prestou atenção aos intermináveis
comentários da donzela sobre sua beleza, quão fascinados
ficariam os convidados e como, ao terminar o baile, todos os
maliciosos rumores se resolveriam. Nada disso chamou sua
atenção, porque não cessava de perguntar-se se algum
daqueles cavalheiros a reconheceria em algum momento.
Fazendo um grande esforço, foi rememorando todos os que se
aproximaram dela. Foi impossível recordar os rostos ou os
nomes. Tinha passado muito tempo. Entretanto, só um rosto
seguia atormentando-a a cada dia, o do maldito conde de
Rabbitwood. Um calafrio a açoitou com tanta força que seu
pêlo se arrepiou.
― Não se preocupe, senhorita Brown, tudo sairá bem ―
tentou consolá-la a donzela, esfregando seus braços como se
tivesse frio. ― Levante-se! Deixe que a contemple!
Beatrice se levantou devagar e olhou os pés
embainhados em uns sapatos de seda clara com uma linda
borda dourada. Apreciou a suavidade do vestido, uns
volumosos babados começavam dois palmos antes de chegar
ao chão e finalizavam na cintura onde uma pequena faixa de
pedraria de prata embelezava sua cintura. Pensou nesse
instante que era muito atrevido levar seus braços cobertos
com tão somente uma fina renda que começava nos ombros e
terminava nos cotovelos, mas enquanto subia o olhar, a
beleza do vestido a conquistou. Quando chegou ao decote e
percebeu que era mais insinuante do que pretendia, toda
aquela felicidade começou a desaparecer.
― Está linda, senhorita Brown, só lhe falta uma coisa. ―
Dirigiu-se para a cômoda que havia ao lado da porta e pegou
uma caixa marrom.
― O que é? ― Perguntou curiosa.
― Não sei, milord me deu isso antes de eu entrar ― disse
sorridente ao mesmo tempo em que mostrava a caixa de joias
fechada.
― Estava aí fora, no corredor te esperando? ― Perguntou
alarmada. Arqueou as sobrancelhas, abriu os olhos no
máximo e observou a caixa com medo.
― Penso que pretendia te chamar à porta para oferecer-
lhe em pessoa, mas minha aparição interrompeu seus desejos
― continuou sem poder apagar o sorriso de seu rosto. Em
Haddon Hall não se podia ocultar nada e, sobretudo quando
se tratava dos estados emocionais do dono da casa. Todo o
serviço era consciente dos sentimentos que o duque
professava para com a moça e os dela para com ele. Só
esperavam que ambos fossem conscientes. ― Abrirá em
algum momento? ― Insistiu a donzela ao ver o estupor no
semblante da moça.
Com as mãos trementes, Beatrice abriu o porta joias.
Quando a tampa se elevou e contemplou o que havia em seu
interior, seus joelhos se dobraram tanto que Lorinne
segurou-a pelo braço para que não caísse no chão.
― Não posso aceitar… ― murmurou ao mesmo tempo em
que tentou recuperar as forças.
― Não diga bobagens! Quer aparecer ante toda essa
gente nua? ― Perguntou a donzela zangada.
― É um presente muito… ― sussurrou dando a volta e
abaixando a cabeça.
― Está segura de que é um presente? Não cabe a
possibilidade de que o duque os tenha emprestado? ―
Continuou com irritação enquanto se colocava em frente a ela
para lhe mostrar de novo as joias.
Beatrice as contemplou de novo. O cofre guardava uma
tiara singela com duas faixas muito finas de diamantes
unidas entre si no centro por uma grande aguamarina
ovalada, um colar da mesma forma salvo que suas faixas
eram um pouco mais grossas, uns brincos que faziam jogo
com ambos os complementos salvo que estes eram muito
pequenos, quase inapreciáveis de longe. Mas ficou absorta ao
ver o bracelete. Todas as que usara antes não eram mais
largas que uma linha de costura, entretanto aquela devia
medir uma décima parte de uma polegada.
― Muito ostentoso! ― Exclamou depois de admirá-las.
― Rogo-lhe, deixe-me que as coloque. Prometo-lhe que
se não lhe agradarem, devolverei-as ao duque ― afirmou.
A moça fechou os olhos enquanto Lorinne lhe colocava
as joias. Não queria olhá-las, não queria confirmar que
gostava e muito menos queria exibir joias que, se a mente
não lhe falhava, a avó do duque usava na pintura do salão no
qual dançariam. O que pensariam os convidados ao descobrir
tal ousadia? Beatrice suspirou profundamente. Não era boa
ideia, por muito que a donzela insistisse, não era sensato
aparecer com elas porque, se tentavam apaziguar um rumor,
ofereceriam-lhes outro mais suculento.
― Pode abrir os olhos… ― sussurrou a donzela ao
finalizar.
A jovem levantou as pálpebras com pesar, dirigiu-se
para o espelho da penteadeira e ficou aniquilada. Eram
lindas, mais do que tinha pensado. Entretanto, não podia
usá-las.
― Sigo pensando que… ― começou a dizer ao mesmo
tempo em que girou-se para Lorinne.
Uns golpes interromperam o que pretendia expor.
Surpreendida por não esperar a ninguém mais em seu
quarto, dirigiu-se para a porta e ela mesma a abriu. O senhor
Stone era o causador de não poder finalizar o que ia
comentar a Lorinne.
― Sim, senhor Stone? ― Perguntou preocupada.
― Sua Excelência a espera. Deseja sua companhia o
antes possível. ― O mordomo a observou com atenção e, para
assombro de Beatrice, sorriu-lhe. ― Se me permite a ousadia,
senhorita Brown, está magnífica.
― Obrigada, senhor Stone, ― sorriu-lhe ― é um elogio
muito adulador vindo de você.
― Bom, se não precisa de minha ajuda, ― interveio
Lorinne com uma vontade terrível de abandonar o dormitório
― continuarei com outros afazeres.
A moça entrecerrou os olhos e a olhou com
aborrecimento. Claro que necessitava dos seus serviços,
porque antes da aparição do mordomo estava a ponto de
dizer que lhe despojasse das joias, mas ao final desistiu do
intento. Deu uns passos para diante, fechou a porta,
suspirou e que acontecesse o que Deus quisesse.
William, como de costume, encerrou-se na biblioteca
para poder pensar com claridade. Durante os dias seguintes
à aparição dos Wadlow, sua mente não lhe deixava tranquilo.
Milhares de perguntas surgiam nela procurando respostas
coerentes. Onde tinha aprendido a senhorita Brown a tocar o
piano? Como sabia tomar o chá com tanta mestria? Por que
erguia suas costas com tanta retidão que mal tocava o
respaldo da cadeira? Nada disso encaixava com a história que
a moça lhe tinha contado. Se ela era uma humilde criada, por
que se comportava como as jovens da alta sociedade? Tinha-a
visto levantar seu queixo de forma adequada, caminhar com
passos curtos tal e como deviam fazê-lo as senhoritas, falar
quando lhe perguntavam. Só rompia os protocolos de um
comportamento adequado quando se enfurecia ao escutar os
ataques verbais que as visitas ofereciam a ele.
De repente um sorriso apareceu em seu rosto. Lembrou-
se da cara de espanto que o doutor mostrou quando ela fez
referência às suas possíveis visitas a Haddon Hall. O médico
empalideceu e o negou com rapidez enquanto que ele
apertava com força a mandíbula para não soltar uma sonora
gargalhada. Também atuou à defensiva quando o casal
minimizou suas capacidades como tutor. Defendeu-lhe
argumentando que para ser um bom professor não devia
exibir seus talentos, que bastava saber expressá-los com
palavras. Sempre tentava proteger sua integridade sem lhe
importar a sua.
Então recordou as palavras que o senhor Stone se
atreveu a lhe dizer: «Pode ser que lhe minta. Possivelmente
não esteja dizendo a verdade». Agora não lhe cabia dúvidas
disso, mas se não era a filha de uns camponeses falecidos,
quem era em realidade? E… por que tinha castigado a si
mesma afastando-se do resto do mundo?
― Milord, ― interrompeu suas divagações o senhor Stone
― o senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de chegar.
― Obrigado, Brandon. Saio agora mesmo.
O mordomo se retirou e William respirou
profundamente, tentando acalmar a terrível inquietação que o
açoitava.
«Mudarão meus sentimentos por ela se descobrir que
não é quem diz ser?», perguntou-se enquanto caminhava
para a porta. Não necessitou de tempo para responder-se,
pensou um não com veemência.
― Meu querido Manners! ― Exclamou Roger ao vê-lo
aparecer. Com passo veloz se aproximou do duque e lhe deu
um forte abraço. ― Te vejo muito bem, meu amigo.
― O mesmo digo de ti, vilão ― respondeu sorridente.
― Não me diga isso que me rompe o coração ― disse com
falsa tristeza.
― Como denominaria você a um amigo que não oferece
notícias às pessoas que o apreciam? ― Arqueou as
sobrancelhas sem deixar de perder o sorriso.
― Estive em viagem. Parti para a incrível e maravilhosa
França. Segundo meu pai, o ar de Londres estava me
enlouquecendo e quis mudá-lo ― explicou com zombaria.
― E? ― William seguia com as sobrancelhas elevadas.
― OH, mon ami... Rien n’a changé. Les femmes sont très
affectueuses en France et les hommes d’excellents joueurs.(1)
Assim por muito que trabalhei em me curar dessas
enfermidades, fui incapaz de obtê-lo ― afirmou com uma
aparente tristeza.
― Então, depois de tudo, segue sendo o mesmo velho
patife de sempre? ― Perguntou o duque sem deixar de rir.
― Muito ao meu pesar, sim ― respondeu com aflição.
― Ham-ham ― pigarreou Federith na entrada.
― Federith! ― William caminhou para ele e o abraçou
com força. ― Obrigado por vir. ― Olhou atrás do homem e ao
não encontrar o que procurava, perguntou-lhe preocupado: ―
E a senhora Cooper?
― Não se encontra bem. A gravidez está sendo mais
complicada do que esperávamos ― explicou com serenidade.
― Gravidez? ― Clamou Roger movendo seu corpo para
Federith.
― Não sabe? ― Disse William. — Nosso querido Cooper
se casou com lady Caroline e logo se converterá em um
estimado pai.
― William… ― advertiu-lhe o aludido.
― Federith não eleve suas armas antes de confirmar que
a guerra começou. Muito ao meu pesar, este tempo de retiro
me tem feito entender que cada um deve assumir suas
próprias decisões e outros, por muito que não estejamos de

1Ah, meu amigo... nada mudou. As mulheres são muito afetuosas na França e os
homens são excelentes jogadores.
acordo com elas, devemos respeitá-las. Por isso, meu amigo,
apóio-te e te apoiarei sempre ― afirmou sem hesitações.
― Bom, ― interveio Roger ― onde está essa concubina
cuja honra devemos salvar?
― Não sou a concubina de ninguém, cavalheiro, sou a
pupila do duque de Rutland ― sentenciou Beatrice no alto
das escadas.
William elevou o olhar para ela no preciso instante que
iria soltar uma gargalhada, embora não conseguiu que
brotasse de sua boca nem um minúsculo ruído. A
deslumbrante mulher o deixou sem fôlego, sem ar nos
pulmões e inclusive sem pulso. O vestido se agarrava ao seu
torso aumentando voluptuosamente seu seio e enfatizando a
diminuta cintura. A claridade do tecido que cobria desde seus
ombros até o cotovelo mostrava a aveludada pele feminina.
Como nas anteriores ocasiões, seu cabelo estava recolhido
para trás, mas desta vez adornado com uns laboriosos
desenhos. O duque sorriu sutilmente ao não achar mechas
que entorpecessem a visão de seu rosto, nem que
incomodassem a moça ao menear a cabeça.
Beatrice desceu as escadas majestosamente, rebolando
os quadris com sublime sensualidade. Possivelmente nem ela
mesma chegava a alcançar a beleza e o erotismo que
emanava, mas ele o captou. William estufou seu peito de
orgulho ao apreciar que usava as joias que tinha dado à
criada. Tinha duvidado se as aceitaria porque durante os dias
anteriores evitou encontrar-se com ele para falar do
acontecido. Mas lhe satisfez ver sobre sua cabeça a tiara com
a aguamarina, como brilhavam os pequenos diamantes em
suas orelhas, a sutileza com que movia o bracelete no pulso
e, sobretudo, a graça com que o colar tentava desviar o olhar
de qualquer atrevido para o decote. Pensou para si que, sem
dúvida, as joias guardadas desde que sua avó faleceu
estavam esperando-a para resplandecer de novo. Tentando
recuperar a confiança e serenidade que devia manter durante
o baile, aproximou-se das escadas, estendeu a mão para que
a jovem a tomasse e a dirigiu para onde se encontravam
imóveis seus amigos.
― Senhorita Brown, o tagarela é o senhor Bennett e
estou seguro que, se deseja seguir respirando ao amanhecer,
retirará as inoportunas palavras que comentou sobre você ―
asseverou em tom irritado.
― Bien sûr! Je suis très désolé(2) ― respondeu Roger
inclinando-se para a moça para beijar-lhe a mão. — Ravi de
vous connaître, mademoiselle.(3)
― Moi aussi, monsieur(4) ― replicou Beatrice com um
perfeito acento francês.
― Fantastique!(5) Não sabia que nosso duque conhecia o
idioma do amor ― disse olhando-o de canto de olho.
― Pois se a memória não ficou transtornada pelo
disparo, ― comentou com assombro ― jamais o estudei.
― Uma irmã de meu pai, ― começou a dizer como
desculpa ao seu lapso ― ficou viúva e decidiu viver conosco

2 — Claro, sinto muito.


3 — Prazer em conhecê-la, senhorita.
4 — Eu também, senhor
5 — Fantástico
durante uma temporada. Seu marido foi um marinheiro
francês e ela teve que aprender a língua.
― OH, que tragédia! ― Interveio Federith até agora em
silêncio e atento à situação que observavam seus olhos.
― Senhorita Brown, ele é o senhor Cooper. O único
amigo que possuo desde minha infância.
― Encantada de lhe conhecer, senhor. Ouvi falar
maravilhas sobre você ― declarou ao mesmo tempo em que
lhe oferecia a mão para que a beijasse.
― Que honra! Foi William quem lhe informou? ―
Arqueou as sobrancelhas, sorriu com suavidade e olhou seu
amigo de esguelha.
― Não, foram os criados. Segundo eles, nosso duque
teve dois bons amigos com os quais viveu em Londres. Você,
o respeitável senhor Cooper, futuro barão de Sheiton e... ―
olhou para Roger para não perder nem um só gesto quando
escutasse o que se propunha ― o senhor Bennett, futuro
marquês de Riderland e de quem dizem que é um
irresponsável, um libertino, um jogador inveterado e a quem
culpam da vida inapropriada do nosso duque.
William liberou uma grande gargalhada que foi
acompanhada por outra que realizou Federith. Entretanto,
Roger não mostrou nenhum tipo de simpatia.
― Deveria me indicar quem lhe informou sobre essas
calúnias ― disse mal-humorado. ― Tenho que me bater em
duelo por minha honradez.
― A sinceridade dói, não é? ― Comentou jocoso Federith
golpeando com suavidade as costas de seu amigo.
― Bom, ― atuou William ― seria conveniente que nos
dirigíssemos para algum lugar da casa para falar sobre o
tema pelo qual lhes requeri. Logo chegarão os primeiros
convidados e eu gostaria de lhes pôr a par do acontecido.
Os amigos assentiram e, colocando-se junto ao duque,
os três cavalheiros se dirigiram para a habitação em que o
duque se sentia mais seguro: a biblioteca. Beatrice
considerou andar atrás dos passos deles, observando as
figuras dos três homens que, conforme concluiu, tinham
atemorizado aos pais das filhas casadouras e dos maridos
ausentes. Não lhe cabia dúvida que o mais alto deles era o
duque. Mas a figura dos três era muito semelhante, possuíam
umas costas robustas e as pernas muito longas. Entretanto,
o cabelo do duque era escuro, o do senhor Cooper loiro e o do
senhor Bennett uma mescla de ambos. William, como lhe
tinha renomado o senhor Cooper e que até esse momento
Beatrice não descobrira, mostrava um olhar escuro e
inclusive em algumas ocasiões tão negro que dava pavor. Os
olhos de Cooper eram de um verde intenso, assemelhando-se
a erva que aparecia em plena primavera. Os do senhor
Bennett eram azuis. A moça os comparou com a cor que
exibia o céu em um dia sem nuvens, embora duvidasse se a
intensidade era similar.
«Três cavalheiros, ― disse para si ― três homens tão
extraordinários quanto perigosos».
― Então… ― começou Federith a falar quando Beatrice
fechou a porta e se sentou na poltrona contigua a que estava
acostumado a ocupar William ― você vivia na suja cabana
que nosso amigo possui junto ao rio Wye, é correto? ― A
moça assentiu e este começou a perambular com as mãos
agarradas atrás das costas. ― Ele a descobriu e por alguma
inexplicável razão que nos indicará em breve, deixou-a viver
ali. ― A jovem confirmou de novo com um suave movimento
de cabeça. ― Ao encontrar-se desamparada, desprotegida e
exposta ao terrível perigo de uma manada de lobos que vive
no bosque, foi atacada por eles. Ele, estranhamente, ―
arqueou as sobrancelhas ― decidiu passear à alvorada por
suas terras e a descobriu ferida. Conduziu-a até Haddon,
chamou o senhor Wadlow, o doutor veio e a atendeu com
rapidez. Depois, justo antes de abandonar este lar, ambos os
cavalheiros tiveram um pequeno encontro no qual discutiram
sobre o repugnante comportamento de nosso amigo para com
a cortesã. Correto?
Beatrice olhou ao duque atônita. Ninguém lhe tinha
comentado que ambos os cavalheiros tinham tido a ocasião
de discutir os pormenores de sua estadia em Haddon Hall.
Tomou ar e abriu a boca para confirmar a narração do senhor
Cooper, mas William se adiantou às suas palavras.
― Como pôde comprovar durante todos estes anos, ao
correr o sangue de meu pai por minhas veias, ninguém
duvida de que sou outro monstro ― esclareceu com
serenidade.
― Bem, isso eu sei, mas minha pergunta é... como foi
tão insensato de deixá-la abandonada nesse maldito lugar? ―
Levantou o tom de sua voz e girando sobre seus calcanhares
para enfrentar o duque.
― Eu o pedi ― respondeu rápidamente a moça.
― O que lhe pediu, o que? ― Participou Roger até agora
calado e atento.
― Ele me devia um favor e lhe informei que saldaria sua
dívida me deixando viver nesse pequeno refúgio ― respondeu
elevando seu queixo e com aparente aprumo.
― Mon Dieu!(6) Você é uma inconsequente! Acaso não
pensou o que poderia acontecer ao dono dessa cabana se
tivesse morrido? ― disse com aborrecimento e aproximando-
se da moça com passo firme.
― Roger… acalme-se. ― William ao observar a ira de seu
amigo, dirigiu-se para Beatrice, colocou-se em frente a ela e
parou a aproximação de seu amigo colocando sua mão no
peito. ― Não estamos aqui para julgar as decisões da
senhorita Brown, nem que razão a fez atuar dessa forma. Só
quero que sua honra se reestabeleça porque ela não é minha
prostituta.
― Nem tampouco sua pupila, William! ― Exclamou
Bennett sem diminuir seu aborrecimento. ― Não recorda o
que te aconteceu na última vez? Esqueceu o que te fez ficar
como está? Não, claro que não, e possivelmente a senhorita
Brown tampouco ― sorriu maléfico.
― Roger! ― Gritou Federith tentando que deixasse de
falar.
― Se por acaso não foi informada desse incidente, minha
querida senhorita Brown, ― disse com ironia ― a causa
daquele duelo foi o engano insistente de uma esposa que,

6 — Meu Deus!
deitada nos braços do nosso amigo, afirmava em qualquer
parte que era viúva.
― Cale-se, Roger! ― Voltou a clamar Federith.
― Eu gostaria que partisse da minha casa ― falou
William com dureza.
― Quer que eu parta? Quer que não te proteja? Acaso
esqueceu o que significa a amizade? ― Perguntou Roger sem
diminuir sua fúria. ― Não, meu amigo. Não vou partir,
seguirei ao seu lado como nos velhos tempos, mas desta vez
não deixarei que cometa uma imprudência. Se o que deseja é
que todo mundo pense ser ela é sua pupila e não sua
prostituta, levarei a cabo minha missão e afirmarei com
veemência qualquer coisa que me peça.
William se afastou da moça. Antes de dar dois passos
para a corda com o qual chamava o senhor Stone, observou a
cara de espanto de Beatrice. Estava aterrorizada pela violenta
atuação de Roger e pelas ofensivas palavras que tinham
emanado de sua boca. Apreciou também umas lágrimas que
dissimuladamente tirou do pálido rosto. Com passo decidido
se aproximou da corda, puxou com suavidade e, em silêncio e
sob o atento olhar de seus amigos, esperou a chegada do
mordomo.
― Acompanhe senhorita Brown à sala de jantar. Deve
confirmar que os serviços que ofereceremos aos comensais
estão em perfeita ordem ― ordenou ao Brandon ao entrar na
habitação.
Beatrice levantou o olhar e examinou a dureza de seu
semblante durante uns instantes. Havia fúria naquele rosto e
os olhos se obscureceram ainda mais. Quis rejeitar a ordem,
mas se encontrava tão frágil, desanimada e triste que, sem
mediar palavra e com a cabeça encurvada, levantou-se e se
dirigiu para o mordomo.
― Acompanhe-me, senhorita Brown. Acredito que a
senhora Stone queria lhe pedir um conselho sobre a
sobremesa que deveriam oferecer. Segue duvidando se oferece
duas bolas ou três de sorvete. ― Falou com calma e, para
surpresa de William, com uma ternura imprópria no criado.
Os três cavalheiros observaram a figura aflita da jovem.
William apertou sua mandíbula com tanta força que lhe
apareceu uma pequena dor de cabeça enquanto Federith
meditava aquilo que sua mente de repente lhe mostrava.
Roger, embora sentisse lástima pela angústia que mostrava a
moça, não fez nada para controlar a irritação que sentia.
― Devemos nos acalmar. ― Federith foi o primeiro em
falar depois que a porta se fechou. ― E William, tanto Roger
como eu escutaremos com atenção o que esconde com tanto
afinco.
O duque caminhou para a chaminé, apoiou o braço
sobre a pedra e abaixou a cabeça.
― Amo-a ― disse sufocado. ― Amo Beatrice com todo
meu coração. Não sei de onde procede, nem como chegou até
minhas terras, mas o que sei é que se ela se afastar do meu
lado, morrerei.
― Mon dieu! ― Exclamou Roger aplacando sua ira com
rapidez. ― Podia ter começado por aí! ― Caminhou para seu
amigo, deu-lhe uma forte palmada nas costas e, quando
William girou para ele, deu-lhe um forte abraço.
― Sabia que algum dia encontraria a mulher que te
roubaria esse coração gelado ― comentou Federith sorridente
e repetindo o afeto carinhoso de Roger. ― Mas tem que pensar
com clareza, William. Embora não se importe de onde
procede a moça, deve averiguar quem é em realidade.
― Não me importa! ― Exclamou o duque com firmeza.
― Mas deve fazê-lo. Quem sabe que passado pode
ocultar uma jovem como ela? ― Federith olhou com atenção
seu amigo. Em verdade não sabia quem era a moça por quem
se apaixonou.
Ele sim. Tinha-a reconhecido assim que a viu. Apesar de
suas mudanças físicas, não ficava nenhuma dúvida de que
era a filha do barão de Montblanc. Agora devia sopesar
quando era o melhor momento para revelar a identidade da
jovem ao seu amigo e como reagiria ao escutar a verdade.
XXII

Beatrice, apesar de seus intentos por aparentar


entusiasmo quando a senhora Stone lhe perguntava pelos
últimos detalhes, não podia deixar de sentir-se triste. As
palavras do senhor Bennett não cessavam de lhe assaltar e,
por muito que lhe custasse admiti-lo, tinha razão. Jamais
pensou nas consequências que sofreria o duque se ela tivesse
morrido. Não só o teriam acusado de assassinato, mas sim o
encarcerariam sem duvidá-lo. Aflita pela loucura que
cometeu sem pensar, sentou-se em uma das cadeiras que
rodeavam a mesa da cozinha.
― O que te acontece, pequena? ― Perguntou Hanna
aproximando-se dela por trás e lhe beijando a bochecha.
― Posso lhe fazer uma pergunta? ― Seu fio de voz era
tão fraco que a anciã assustada se sentou ao seu lado.
― Todas as que desejar ― respondeu agarrando com
força as mãos da jovem.
― O que teria acontecido se o duque não tivesse me
encontrado na cabana?
― Quando foi ferida? ― Hanna arqueou as sobrancelhas.
― Não. A primeira vez que me viu, quando o encontrei
ferido ― esclareceu.
― Se não o tivesse encontrado, o duque haveria falecido
e todos os que habitam nesta casa também ― afirmou sem
duvidá-lo. ― Apesar dos intentos que tem feito as pessoas
para mostrar que é um ser desumano, os que lhe conhecem
desde que saiu das vísceras de sua mãe sabem que não é
certo.
― E se eu houvesse falecido depois do ataque? ― Girou-
se para a mulher para não perder nenhum detalhe de sua
expressão.
― Todos nós teríamos sentido dor por sua desgraça, mas
ele… ― levantou-se do assento e caminhou para os fogões.
― Mas ele? ― Insistiu elevando-se também da cadeira e
posicionando-se ao seu lado.
― Ele não se recuperaria jamais da perda ― sussurrou.
― Por que, senhora Stone? Pode me dizer por que sabia
que me responderia isso? ― Seu tom soava afogado, como se
alguém a estivesse estrangulando.
― Isso terá que perguntar a ele. Se for sensato, dir-lhe-á
a verdade.
Beatrice a olhou durante uns instantes. Sem desviar o
olhar da mesa, ficou calada duvidando sobre se deveria
insistir ou não um pouco mais no tema. Quando abriu a boca
decidida continuar a conversa que começara, a porta da
cozinha se abriu.
― Estava procurando-a ― disse William com uma
emoção estranha. ― Acabam de chegar os primeiros
convidados e temos que recebê-los adequadamente. ― Dirigiu
o olhar para Hanna e lhe falou. ― Senhora Stone, tudo
preparado?
― É claro! ― Exclamou com entusiasmo. ― Não haverá
uma festa no condado de Derbyshire que alcance a nossa. ―
Os olhos da anciã brilhavam de gozo. Não havia dúvida que a
mulher adorava ao duque e que, vê-lo feliz depois de tanto
tempo sumido na escuridão, fazia-a muito ditosa.
― Nesse caso, ― estendeu o braço para Beatrice ― se for
amável em me acompanhar.
A moça assentiu com suavidade, aferrou seu braço ao
do homem e juntos saíram da cozinha para a recepção.
Hanna o observou em silêncio e rezou pedindo a Deus que o
moço não deixasse passar a oportunidade de abrir seu
coração.
Até que não dirigiu seus olhos verdes para o exterior da
mansão e descobriu as incontáveis carruagens estacionadas
no jardim, permaneceu tranquila, sossegada, mas quando foi
incapaz de enumerá-los, seu corpo se encheu de pavor e
notou um tremorzinho inoportuno nos joelhos. Já acontecia,
não havia possibilidade de cancelar nada, só podia respirar e
desenhar um enorme sorriso no rosto.
Os convidados subiam pelas escadas saudando com
entusiasmo aos casais que se encontravam ao seu passo. Os
casais ascendiam agarrados pelos braços enquanto que os
jovens, com ou sem idade de propostas conjugais, seguiam-
lhes muito de perto. Como era de esperar, os maridos exibiam
sóbrios trajes de jaqueta que cobriam com uma enorme capa
e estilizadas cartolas, as esposas, ao contrário deles,
apresentavam um extenso colorido que tentavam ocultar sob
seus casacos. Beatrice observou com atenção os penteados
destas: caracóis, coques embelezados por flores, incríveis
entrelaçados e inclusive uma ou outra parecia atrever-se a
mostrar o típico penteado de sua rainha. De repente, as vozes
do público deixaram de escutar-se ao longe. A jovem começou
a notar certo sufoco percorrer seu corpo, as mãos
escorregavam devido ao suor e precisou tragar várias vezes
para fazer desaparecer o nó de saliva que lhe apertava a
garganta. Mas então, um pequeno calor que provinha de sua
orelha fez com que todos os sufocos desaparecessem. O
duque foi quem, ao lhe sussurrar, ofereceu-lhe aquele hálito
quente.
― Tranquilize-se, tudo sairá bem e, se algum destes
honoráveis assistentes desejarem te magoar, não ficará mais
remedeio que enfrentar a minha ira. ― E sem pensá-lo,
aproximou sua boca da pálida bochecha feminina e lhe deu
um terno beijo.
― Sua Excelência... ― advertiu Brandon com seriedade
― o senhor e a senhora Jenkins.
― Boa tarde, milord ― saudou um homem de avançada
idade que apertava com força um monóculo em seu olho
esquerdo. ― Obrigado por seu convite. A minha esposa ficou
muito feliz ao receber a notícia ― estendeu a mão para
afiançar a saudação.
― Boa tarde, senhor Jenkins. Causa-me pena saber que
só sua esposa recebeu com agrado a missiva ― disse sem
apagar o sorriso de seu rosto.
― Não dê atenção a este resmungão! ― Exclamou
rapidamente a senhora Jenkins. ― Ele também se sentiu
ditoso. ― A mulher era mais baixa que Beatrice, mas tinha
um corpo bastante volumoso. Vestia um rigoroso luto e a
renda que adornava seu vestido conseguia cobrir até o
pescoço.
― Senhor Jenkins e senhora Jenkins lhes apresento à
senhorita Brown, minha pupila.
― É uma honra conhecê-la, senhorita Brown ― disse o
ancião ao mesmo tempo em que tomava a mão juvenil para
beijá-la. ― Em Rowsley não há outro tema de conversação
salvo a sua inesperada aparição.
― Igualmente, senhor. Embora lhe advirta que os
rumores proclamados sobre minha permanência em Haddon
Hall são falsos. Não sou a prostituta do duque, mas como já
bem foi dito, sua pupila ― expôs sem hesitações. Não lhe
tinha tremido a voz. Não tinha mostrado a inquietação que
sentia no interior. Seus sentimentos pareciam controlados,
mas quando William a olhou e sorriu para lhe mostrar sua
conformidade, ruborizou-se e um estranho calor começou a
emergir do mais profundo de seu ser.
― Falatórios! ― Exclamou a anciã mal-humorada. ― As
pessoas estão tão aborrecidas que se dedicam a divulgar
mentiras de outros. Não faça conta, senhorita Brown, todo
mundo quer lhe machucar porque conseguiu o que ninguém
alcançou. ― Aproximou-se de Beatrice e lhe deu um sonoro
beijo.
― E o que não conseguiram, senhora Jenkins? ―
Perguntou sorridente.
― Seu coração ― sentenciou antes de agarrar o braço de
seu marido e caminhar para o lugar que lhe indicava um dos
criados.
― Sua Excelência ― o voltou a reclamar Brandon. ― O
senhor e a senhora Brace.
― Milord, senhorita Brown ― disse o pároco com
cordialidade. Estendeu a mão para o duque para saudá-lo e
logo fez o mesmo com a moça.
― Beatrice! ― Exclamou Lídia abraçando a jovem com
força. ― Está linda! Parece uma autêntica rainha.
― Boa tarde, Lídia ― respondeu em voz baixa. Ainda se
encontrava em estado de choque pelas palavras da atrevida
anciã. Como iria ela roubar o coração de um homem que,
conforme diziam, não possuía? ― Bem-vinda ― exalou
quando a mulher deixou de abraçá-la com tanto ímpeto e
pôde tomar um pouco de ar.
― Está bem? ― Arqueou a mulher as sobrancelhas ao
vê-la tão pálida.
― Sim, embora tenha que admitir que acabasse ficando
muito cansada com a preparação ― expôs.
― Bom, calma, tudo está lindo e... – aproximou-se de
seu ouvido para sussurrar ― segundo os novos rumores, toda
Rowsley espera conhecer a famosa pupila.
― Não sei se tomo isso como um elogio ou como uma
ofensa ― disse Beatrice sorridente.
― Bobagens! Já verá como ao final todos esses
arrogantes terminarão comendo em sua mão!
― Lídia, por favor, comporte-se! ― Exclamou o senhor
Brace zangado ao escutar a ousadia de sua mulher.
― Sua Excelência ― voltou a interromper Brandon.
― Bom, queira nos desculpar, ― comentou a senhora
Brace segurando seu marido e caminhando para onde outro
criado lhes conduzia ― deixaremos que outros tenham
também seu tempo de recepção.
― O senhor e a senhora Payne ― prosseguiu o mordomo.
Depois de quase uma hora recebendo aos assistentes,
por fim William e Beatrice puderam dirigir-se para o salão
para acompanhá-los. O duque lhe ofereceu de novo seu braço
e ela o aceitou. Com passo firme, fizeram sua entrada. A
moça teve que respirar com profundidade antes de acessar o
interior. Um incessante desgosto lhe impedia de conseguir
manter-se em equilíbrio.
― Relaxe, ― sussurrou-lhe William ― o mais difícil já
passou. Agora fica conversar, dar-lhe de comer e dançar.
Beatrice olhou-o de esguelha e sorriu levemente. Apesar
de suas constantes palavras de encorajamento, ela não
achava a paz que necessitava para poder aguentar as
próximas horas. Dirigida pelo duque, introduziram-se no
salão onde descobriram que os homens se colocaram no lado
esquerdo e as mulheres no direito. A moça liberou o braço do
homem e, depois de respirar profundamente, dirigiu-se para
o grupo feminino. Esperava que a senhora Brace, a senhora
Wadlow e a inesperada senhora Jenkins a ajudassem em
qualquer infortúnio.
― Gostaria de nos dar sua opinião? ― Perguntou a
esposa do senhor Wood, um comerciante que teve sorte nos
afortunados investimentos no estrangeiro.
― Se forem tão amáveis de me indicar do que se trata,
tentarei-o ― disse a moça sorridente.
― A opinião da esposa do pároco é que nossos vestidos
se verão influenciados satanicamente pela moda europeia.
Conforme acredito, se as tendências evoluírem, a visão que a
sociedade tem não nos prejudicará, mas sim, ao contrário,
nos fortalecerá ― expôs com seriedade.
― Isso é absurdo! ― Exclamou Lídia sufocada. ― Uma
mulher deve mostrar respeito, reparo e castidade. Acaso não
viu que esses vestidos deixam visíveis os tornozelos?
― Possivelmente algum dia possamos votar ― murmurou
com suavidade uma moça que se colocava ao lado da senhora
Jenkins.
― É muito jovem para pensar essas coisas – respondeu-
lhe com ternura a senhora Wadlow. ― Embora se isso for
verdade, seria a primeira em levar minha cédula. Estou
cansada de sofrermos pelas decisões dos homens. Se alguma
vez uma mulher estiver no poder, muitas das atrocidades que
eles fazem sem pensar, seriam desculpadas.
Beatrice olhou para o grupo de cavalheiros. Sorriam e
pareciam manter umas conversações divertidas. Ela riu
levemente ao imaginar a cara que fariam os maridos após
escutar as opiniões das dóceis mulheres. De repente, seus
olhos se dirigiram para uns olhos azulados que a observavam
com atenção. A moça pensou que o senhor Bennett seguia
zangado com ela por ter posto em perigo seu amigo, mas
quando esteve a ponto de apartar o olhar, o homem lhe
ofereceu uma suave saudação com a cabeça e lhe sorriu.
― Se forem tão amáveis, ― disse o duque em voz alta
depois de ser informado por Brandon que a sala de jantar
estava preparada – dirijamos-nos para o salão contiguo onde
nos servirão um suculento jantar.
Cada marido procurou seu par. As jovens solteiras
caminhavam juntas e os moços atrás, em grupo. Pouco a
pouco tomaram assento. William, como anfitrião, sentou-se
em um extremo da mesa, justo a que havia ao lado das mesas
onde os pratos estavam ocultos embaixo de grandes tampas
de metal. Beatrice duvidou onde devia colocar-se. Olhava um
assento e este era ocupado com rapidez. Olhava para outro e
ocorria o mesmo.
― Nosso William não foi um verdadeiro cavalheiro ―
comentou Roger atrás dela. ― Venha comigo, acompanharei-a
ao seu assento. ― Ofereceu-lhe o braço e ela apoiou sua mão
com delicadeza. ― Encontra-se bem? Tratou-a
adequadamente esse grupo de galinhas? ― Beatrice esteve a
ponto de soltar uma gargalhada ao escutá-lo, mas se conteve
e só esboçou um leve sorriso.
― Não imagina o que pensam essas galinhas –
sussurrou-lhe divertida. ― Muitas delas lhes deixariam sem
essa virilidade que tanto desejam aparentar.
― OH, mon Dieu! Espero que meu coração seja racional
e não se apaixone por uma mulher assim.
― Não estou tão segura disso, senhor Bennett. Não sei
por que acredito que se apaixonará por uma mulher muito
parecida com você ― disse zombadora.
― Será jovem? ― Arqueou as sobrancelhas.
― Se Deus for justo, não ― sentenciou com o mesmo
tom jocoso.
Quando Beatrice descobriu a cadeira que devia ocupar,
petrificou-se. Esse não era seu lugar, posto que fosse o
espaço que devia guardar-se para a futura duquesa e ela não
devia invadi-lo. Procurou com o olhar ao William, pedindo-lhe
auxílio, mas ele assentiu com a cabeça, dando-lhe permissão
para acomodar-se nele.
― Então, senhorita Brown... ― começou a falar o ancião
senhor Jenkins ― você é a pupila de lorde Rutland.
― Sim, senhor ― respondeu tentando não derrubar os
talheres que segurava nas mãos.
― E, que tal é como professor?
― Excelente! ― Exclamou Irina com rapidez. ― Outro dia
tivemos o prazer de vê-lo com nossos próprios olhos e escutá-
lo com nossos ouvidos.
― Ah, sim? ― Perguntou o ancião arqueando as
sobrancelhas.
― A senhorita Brown nos deleitou com uma formosa
valsa de Chopin ― interveio o senhor Wadlow.
― Qual delas? Porque Chopin é famoso pela composição
de inumeráveis valsas.
― Primavera ― disse William em tom sério, protetor,
dominante. ― A valsa mais formosa que Chopin tem
composto em sua famosa vida.
Beatrice o olhou nos olhos e observou a severidade de
seu rosto. Como lhe tinha prometido, velava por ela.
― Conforme contam, ― interveio Federith ― essa valsa o
compôs para uma jovem pela qual se apaixonou
perdidamente. Acredito que estiveram comprometidos em
segredo, mas que a família desta anulou o acordo quando
descobriram sua enfermidade.
― OH, que dramático! ― Exclamou uma das jovens que
se abanou com a mão, enquanto tentava esconder com esse
gesto os furtivos olhares para Roger.
― O amor pode ser tão doloroso como formoso –
continuou. ― Às vezes, quando você acha que encontrou a
pessoa que irá acompanhá-lo no bem e no mal, tudo
desaparece sem ser capaz de evitá-lo.
Beatrice o olhou com tristeza. Enquanto não escutou as
palavras sobre tal afirmação não meditou sobre isso. Não
entendia como podiam existir matrimônios desventurados
pelos acordos que realizavam os progenitores assim que a
prole nascia. Seus pais se amaram desde crianças e, embora
tivessem passado mais de trinta anos desde que se
comprometeram e casaram, seguiam amando-se como no
primeiro dia.
― Por isso, mon ami... ― disse com rapidez Roger para
fazer desaparecer o estado de tristeza que as palavras de seu
amigo tinham produzido. ― Jamais haverá uma senhora
Bennett por minha parte! ― Alguns cavalheiros sorriram
brandamente, umas damas murmuraram sobre a
desafortunada revelação e outras, sobretudo as jovens
casadouras, emitiram suspiros de pena.
Depois da pequena reunião, os convidados se
dispuseram a degustar os pratos que lhes serviam. Beatrice,
cada vez que lhe era possível, observava ao duque. Este, em
mais de uma ocasião, parecia inquieto ao ter que ser ajudado
pelo senhor Stone. A jovem teve o inapropriado desejo de
levantar-se e colocar-se ao seu lado para ocultar aquilo que
tanto lhe alterava, mas não podia fazê-lo. Ele tinha que
mostrar-se tal como era e se isso incluía esconder a mão nas
alças de suas jaquetas, que assim fosse. Entretanto, o que o
homem não sabia era que, em que pese a acreditar uma
pessoa débil e inútil, não o era. Bastava-lhe tão somente o
suave movimento da cabeça para demonstrar seu poder.
Todos os que lhe rodeavam o consideravam uma pessoa com
caráter, julgamento e impetuosidade e Beatrice pôde
confirmá-lo ao ver como os cavalheiros, depois de suas
exposições, dirigiam as olhadas para o duque esperando que
ele assentisse.
Um suave murmúrio começou quando apareceu a
sobremesa. Ao final a senhora Stone decidiu colocar sobre
uma pequena parte de pudim uma bolinha de sorvete. Isso
deixou os convidados maravilhados. Alguns, como indicaram
ao levar o primeiro pedaço à boca, nunca tinham provado o
sorvete e outros nunca o tinham misturado com pudim.
Fosse como fosse, todos ficaram encantados com a inovação,
incluída a senhora Brace, que não deixava de sorrir e pôr os
olhos em branco em cada colherada.
― É hora do baile ― informou William ao perceber que
todo mundo tinha terminado. ― Se não desejarem mover seus
pés ao ritmo da música, habilitamos uma sala em que se
oferecerá licor e onde poderão apostar tudo o que tiverem nos
bolsos.
Depois do anúncio, os convidados se levantaram e se
dirigiram para as diferentes salas. Beatrice esperou para
tomar a mão de William, mas este não chegou a tempo, o
jovem Bennett se aproximou e a ofereceu.
― Espero que não tenha a primeira dança reservada –
disse-lhe com um enorme e bonito sorriso.
― Não, por enquanto ninguém me pediu nenhuma peça
― respondeu colocando sua mão sobre seu braço.
― Não será por falta de vontade, minha querida
senhorita Brown. ― Caminhou devagar para o salão onde,
inclusive antes de entrar, escutava-se a melodiosa música.
― Então, o que você crê que impede a todos esses
cavalheiros de dançar comigo? ― Arqueou as sobrancelhas e
o olhou zombadora.
― O medo – sussurrou-lhe enquanto a colocava em
frente a ele para iniciar a dança.
― Medo de mim? ― Perguntou surpreendida e um tanto
desconcertada.
― Não, de William. Imagino que ninguém é tão louco
para tocar a sua pupila ― disse levantando a mão e fazendo-a
girar.
― Salvo você ― comentou depois da volta.
― Eu jamais a tocaria com perversidade. Por muitas
barbaridades que lhe tenham contado sobre mim, respeito e
respeitarei as mulheres de quem considero meus irmãos ―
declarou antes de lhe segurar a cintura e começar uns
pequenos saltos para o lado direito.
A moça foi incapaz de falar depois de escutar o que o
senhor Bennett lhe declarava. Ficou tão surpreendida que
não pôde ouvir os intérpretes nem confirmar se seus passos
tinham sido os adequados. Por que lhe havia dito isso?
«As joias! ― Exclamou para si. ― Foram as joias!».
Meditou uma e outra vez sobre a inoportuna decisão de
Lorinne para que as exibisse quando, terminou a canção e
começou a seguinte.
Despediu-se de Roger com um leve movimento de
cabeça, tentou dirigir-se para o grupo de mulheres quando
alguém a chamou.
― Conceder-me-ia esta dança? ― Perguntou Federith
estendendo a mão direita com a palma para cima.
― É claro. Será uma grande honra ― comentou
sorridente.
Federith a conduziu de novo para o centro do salão,
saudou-a com uma exagerada reverência e a segurou pela
cintura. A peça a dançar era uma valsa.
― Está se divertindo, senhorita Brown?
― Sim. E você? ― O casal deu uma pequena volta sobre
eles mesmos e continuaram com suavidade.
― Mais do que pensei ― respondeu esboçando um leve
sorriso.
A música continuava tocando. Beatrice acreditou que
depois da última afirmação de Federith, este resolveria sua
conversação, mas justo quando estava a ponto de acabar, no
último giro entre eles, sua boca se aproximou muito ao seu
ouvido para lhe perguntar.
― Conhecemo-nos de algum lugar?
― Se tiver vivido longe daqui, acredito que não ― disse
tentando dissimular seu sobressalto.
― De onde disse que era? William não fez alusão a isso.
― Imagino que o duque se preocupou com coisas mais
importantes como compreender por que sua esposa não lhe
acompanha e por que disse aquelas palavras tão tristes no
jantar ― indicou sem respirar e pedindo desculpas a Deus
por magoar um homem que, com o coração quebrado,
explicava a dor que causa amar a uma pessoa que não lhe
correspondia.
― Está grávida ― respondeu depois de respirar e fazer
restabelecer sua pose.
― Felicidades! ― Exclamou com alegria. ― Estará você
muito feliz de converter-se em pai ― continuou falando
enquanto Federith a conduzia para o grupo de mulheres.
― Sinto-me muito ditoso de esperar um filho, embora
minha esposa esteja passando muito mal. Mal pode mover-se
pela casa e se cansa tanto que, como pode imaginar, seria
imprudente fazê-la viajar.
― É óbvio.
― Obrigado pelo bate-papo, senhorita Brown.
― Obrigada pela dança, senhor Cooper.
Federith, com o aprumo que lhe caracterizava, dirigiu-se
para o grupo de cavalheiros que se encontravam no lado
oposto das mulheres. Aproximou-se de William, disse-lhe algo
ao ouvido e logo abandonou a habitação. Beatrice sentia seu
coração na garganta e notava como suas pernas começavam
a cambalear-se. Com rapidez procurou uma cadeira onde
sentar-se.
― Encontra-se bem? ― Quis saber a senhora Wadlow
preocupada.
― Só cansada. Essas duas danças calorosas me
deixaram exausta ― explicou.
Uma vez que recuperou o fôlego, olhou ao duque, que
falava com um dos convidados. Beatrice, ao ver como franzia
o cenho, tentou recordar quem era o homem que incomodava
William com suas palavras, mas não o conseguiu. Brandon
tinha anunciado tantos nomes e ela estava tão nervosa que,
em algum momento da recepção, ela deixou de prestar
atenção.
― Senhorita Brown… ― uma voz estranha para ela
apareceu pela sua direita.
― Sim? ― Perguntou arqueando as sobrancelhas e
sorrindo.
― Permitiria-me a seguinte dança? ― No olhar do moço
Beatrice observou algo estranho. Não conseguia saber o que
era, mas não tinha a mesma claridade que a mostrada pelos
amigos do duque. ― Se não estiver muito cansada, é claro ―
continuou, mas ao estender a mão para ela, evitou qualquer
negação.
Contra sua vontade, a moça se levantou e, apoiando sua
mão sobre o braço do jovem, retornou ao centro do salão.
Todos os casais estavam parados, as mulheres em frente aos
homens. O primeiro acorde soou e eles lhes ofereceram as
mãos direitas. Elas as agarraram e, depois de três notas
seguidas em dó menor, começaram a dança. O moço seguia
com os olhos cravados nela. Observando cada detalhe de seu
corpo, cada parte de pele que estava sem cobrir. Em uma das
breves aproximações que houve na dança, Beatrice escutou
como inspirava com força para apanhar o aroma que ela
desprendia. Tentou manter o sorriso, a postura, mas era
incapaz de aguentar por mais tempo aquelas suarentas
palmas pegas ao seu corpo.
Sua mente procurou alguma desculpa coerente para
cessar a dança e deixar de sentir aquela repugnante
angústia. Não obstante, não achou nenhuma até que elevou o
olhar e observou como o duque abandonava a sala e se
dirigia para o balcão. Caminhava sereno, reto e saudava seu
passo como se nada lhe perturbasse. Entretanto, Beatrice
sabia que algo grave tinha ocorrido. Talvez aquele homem
tivesse lhe dito algo que lhe provocou tal irritação e ele
decidiu sair para tomar um ar.
«Isso!», exclamou a moça para si. Parou-se em seco,
olhou ao moço com tristeza.
― Desculpe-me, estou mais cansada do que pensei.
― Posso ajudá-la em algo? Um copo de água, talvez? ―
Estendeu sua mão para segurar o pequeno braço e dirigi-la
de novo para o lugar onde se encontravam as mulheres.
― Não se incomode. Acredito que o ar fresco da noite me
sentará bem ― indicou.
― Como desejar ― respondeu o moço com um sorriso de
orelha a orelha ao acreditar que lhe insinuava que se
afastassem da multidão.
― Não me acompanhe, posso fazê-lo sozinha. Além
disso, como vou retirar da sala um galante com tantas
propostas na sala? ― Dirigiu seu olhar para as jovenzinhas e
sorriu.
― Elas não me interessam, senhorita Brown ― disse com
firmeza e certo mal-estar.
― Pois a mim, você, tampouco. ― Segurou com
suavidade o vestido com ambas as mãos, fez uma pequena
inclinação e, sem parar para contemplar a irritação que devia
expressar o moço, caminhou decidida para o exterior.
Tal como tinha imaginado, a lua cheia brilhava com
esplendor. Os campos pareciam como se começasse a
amanhecer. Beatrice percorreu com o olhar todo o comprido
corrimão. Onde estava? Para que lugar tinha ido? Avançou
uns passos e deixou que seus olhos se adaptassem melhor à
mudança de luz. De repente sorriu. O duque permanecia de
pé no lado esquerdo do balaústre. Mal podia vê-lo com
claridade porque se colocou ao final deste. Com segurança,
Beatrice caminhou para ele. Quanto mais se aproximava,
mais euforia sentia, mais rápido pulsava seu coração, as
mãos lhe suavam e voltou a notar aquelas vespas fincando
incessantemente seu ferrão no estômago. Freou os passos ao
situar-se atrás das costas do homem que parecia não ser
consciente de sua presença.
― Não entendo como pode olhar para o chão quando
deve admirar a beleza da lua ― falou com um suave fio de
voz.
― Senhorita Brown! ― Exclamou assombrado e girando-
se para ela. ― O que faz aqui?
― O mesmo queria lhe perguntar. Por que nos
abandonou? ― Deu um passo, um só passo, para colocar-se
ao seu lado e para que a lua lhe mostrasse o rosto do homem
que, sem lugar a dúvidas, amava.
― Precisava tomar o ar fresco da noite ― mentiu.
Colocou sua mão direita nas costas e com tom grave disse. ―
Não estava dançando com o jovem Rawson?
― Cansei-me com rapidez ― respondeu sem apartar seu
olhar do rosto viril. Observou como este voltava a enrugar a
testa e apertar os lábios.
― Pois não deveria fatigar-se. Muitos dos cavalheiros
convidados me pediram permissão para lhe solicitar uma
dança ― continuou com o tom sério, impessoal.
― E o concedeu? ― Perguntou assombrada.
― O que quer que lhes diga? ― Girou-se para ela e
franziu ainda mais o cenho. ― Digo-lhes que não?
― Exato! Diga-lhes que deve velar pela saúde de sua
pupila e que se me deixarem exausta amanhã serei incapaz
de aprender algo.
William a olhou com assombro e soltou uma sonora
gargalhada que acompanhou Beatrice. De repente, apartou a
mão de suas costas e a dirigiu para a bochecha da moça.
― Deveria partir. Não é apropriado que nos descubram
aqui sozinhos. As pessoas poderiam…
― Não gosta de dançar? ― Interrompeu-lhe antes que
continuasse dizendo o que ela não queria escutar.
― Eu gostava, mas deixei de fazê-lo. ― Apartou a mão do
rosto da moça e a colocou no corrimão.
― Por quê? ― Beatrice se aproximou tanto a ele que pôde
notar como a tiara que embelezava seu cabelo tocava o braço
do homem.
― Por que crê?
― Está sem dançar desde…? ― Uma imensa tristeza
sacudiu o pequeno corpo da moça. Seus olhos verdes se
cravaram no rosto do homem. A lua o iluminava e revelava o
pesar que sofria. Sem pensar duas vezes, a moça esticou sua
mão direita para a alça da jaqueta e a separou, deixando que
o braço inerte do duque caísse para o chão.
― Como se atreve…? ― Começou a dizer William
zangado.
― Quero minha dança ― sussurrou a moça sem fazer
diminuir sua decisão apesar de observar o aborrecimento que
mostrava o duque em seu rosto. Segurou a mão esquerda
entre a sua, colocou a direita em sua cintura, elevou o olhar e
prosseguiu. ― Concede-me isso?
― Beatrice… ― murmurou tão baixo que nem ela mesma
pôde escutá-lo com claridade.
De repente começou a soar sua valsa, que havia tocado
na tarde com os Wadlow. A jovem pousou sua cabeça no
peito viril e deixou que William a dirigisse. Não foi uma dança
tão impetuosa como a do senhor Bennett, nem tão precisa
como a realizada com o senhor Cooper e, nem muito menos a
moça decidiu separar-se do duque com a necessidade que lhe
urgiu com o jovem Rawson. Foi tão diferente quanto
estranho. A mão esquerda de Beatrice segurou a do duque
com tanto ímpeto que desejou que este o sentisse. O queixo
de William se apoiava com suavidade sobre seu cabelo e
inspirava com suavidade a essência da jovem. Os ligeiros
vaivéns fizeram com que ambos os corpos se tocassem sem
pudor. Cada nota musical incitava a não se separarem, a não
se afastarem um do outro. Beatrice fechou os olhos e deixou
que umas lágrimas de emoção banhassem suas bochechas.
Não quis faze-las desaparecer enxugando-as no colete dele.
Não podia eliminar os sinais que oferecia seu coração ao
sentir por fim o que era um amor verdadeiro.
A serenidade tinha desaparecido. Era a primeira vez em
sua vida que as pernas lhe tremiam apesar de senti-las
fortes. Não podia respirar. Faltava-lhe o ar e não escutava o
pulsar de seu coração. Teve que partir da sala para não ser
testemunha de como o filho do presunçoso senhor Rawson,
pedia permissão para que este dançasse com ela.
«À sua Excelência não importará, porque, conforme
apreciei, é a apresentação de sua pupila e não da futura
duquesa de Rutland, não é?». E o que lhe tinha respondido?
Nada, só franziu o cenho e, graças à rápida intervenção de
Roger, não lhe respondeu que se lhe ocorresse tocá-la, matá-
lo-ia. E agora, apesar de fugir de Beatrice para que fosse feliz
com outra pessoa e não com um ser incapaz de picar a carne
e cortá-la ao mesmo tempo, estava dançando com ele. A
pequena mulher que não lhe alcançava o ombro, era a única
pessoa que tinha insistido em dançar segurando sua
inutilidade para apertá-la com os suaves dedos femininos. A
única mulher que o tinha cuidado e, em vez de debilitá-lo,
elogiava-o, oferecia-lhe o empurrão que necessitava para ser
o homem que uma vez foi. William apertou com suavidade o
queixo no cabelo da moça para que esta o olhasse. Ela,
entendendo seu gesto, elevou com delicadeza o queixo
deixando que o homem apreciasse suas lágrimas de emoção.
― Beatrice… Beatrice… ― sussurrou aproximando sua
boca das bochechas e beijando o lugar por onde as gotas as
tinham molhado.
― William... ― murmurou fechando os olhos.
― Repete meu nome outra vez, suplico-lhe ― aproximou
seus lábios dos dela tanto que, com o mínimo movimento,
acariciavam-se.
― William, meu querido William… ― ao escutar seu
nome da boca da moça, este sentiu um gozo tão imenso que
lhe resultou estranho ao mesmo tempo em que formoso.
Fez com que sua boca impactasse com a dela com tanta
intensidade como necessidade. Desta vez não começou com
uma carícia leve, esperando ser rejeitado a qualquer
momento, mas sim a beijou com força, com decisão, com toda
a paixão que sentia e que não podia ocultar por mais tempo.
Beatrice foi incapaz de abrir os olhos. A razão disso não
era a vergonha que deveria sentir ao ser beijada sem pudor
nem reparo, mas sim as pálpebras que lhe pesavam devido à
paixão. A queimação de sua virilha fervia e as vespas se
liberavam de seu estômago após furá-lo. Sentiu-se ditosa e
perturbada ao notar que o membro do duque começava a
endurecer. Mas não tinha medo. Estava segura de que se ela
parasse, este cessaria também sem pedir explicações ou sem
obrigá-la a fazer aquilo que não desejava. De repente surgiu
uma estranha frieza em sua boca. Atordoada pelas sensações
que lhe causavam ser beijada pelo duque, abriu os olhos e
contemplou uns olhos escuros repletos de fogo.
― Quero que saiba que a respeito e que meus beijos
para você são incontroláveis ― sussurrou à meia voz devido
ao seu estado de excitação.
― Quero que saiba que o respeito e que meus beijos… ―
tentou repetir antes que o duque voltasse a beijá-la com
aquela ansiedade que lhe mostrava o muito que a desejava.
― Cof, cof! ― Alguém tossiu próximo a eles.
― Roger! ― Exclamou William assombrado. ― O que faz
aí? ― Avançou um passo para o homem e cobriu com seu
corpo o de Beatrice.
― Vim lhes advertir que as pessoas murmuram sobre
onde se encontrarão o tutor e a pupila ― disse reticente. ―
Imaginei que ao luzir esta noite uma deliciosa lua cheia, o…
tutor teria saído ao balcão para explicar à sua… pupila que
essa preciosidade tem quatro fases: minguante, crescente,
nova e cheia. Equivoco-me?
― Acompanhe-a ao interior, eu entrarei por aquela
janela alí e ninguém pensará se estava com seu tutor vendo a
lua ou se recuperando das insistentes garras de um
jovenzinho descarado ― resmungou.
― Refere-se ao inofensivo Rawson? ― Arqueou as
sobrancelhas e mostrou um amplo sorriso.
― O próprio ― disse William sério.
― Mon amie... ― sussurrou Roger após aproximar sua
boca do ouvido de seu amigo. ― Nós fomos mais perigosos
que esse jovenzinho inexperiente. Se não recordar mal, ao
final conseguíamos elevar as pomposas saias.
William ficou petrificado. Não soube como tomar as
palavras de seu amigo. Tragou saliva, girou-se para Beatrice
e, apesar da presença de Roger, beijou-a com doçura nos
lábios.
― Ele te conduzirá de novo ao salão. Não desejo que as
pessoas finalizem um rumor e comecem outro.
― E você? ― Colocou as palmas ao redor do rosto
masculino e o olhou aos olhos.
― Quando puser esta mão em seu lugar, farei ato de
presença pela entrada principal. Se alguém me perguntar,
direi-lhe que meu mordomo requeria minha presença para
resolver um tema urgente.
― Mas…
― Allez, mademoiselle(7). Os convidados nos esperam ―
estendeu o braço e Beatrice, cabisbaixa, aceitou-o. Devagar,
caminharam para a entrada.

7 — Vamos, senhorita.
William teve que apoiar-se no corrimão para não cair. As
palavras de seu amigo tinham lhe causado tamanha
debilidade que quase o fizeram ajoelhar-se. Sentia-se um
miserável, um canalha por ter feito sofrer os maridos de suas
amantes. Agora entendia o padecimento e a vergonha
daqueles homens que, depois de descobrir que seu amor não
era correspondido, eram humilhados. Agora entendia a razão
pela qual ele jamais quis apaixonar-se e oferecer seu coração
a uma mulher.
Apartou as lágrimas de seu rosto, caminhou com
integridade para a entrada e se dirigiu para a sala onde o
licor e as apostas incrementavam a felicidade dos convidados.
XXIII

À manhã seguinte, Beatrice era incapaz de levantar-se,


estava exausta do baile e das emoções que viveu nele. Só
conseguiu levantar um pouco as pestanas quando Lorinne
entrou na habitação e correu as cortinas para que a luz
entrasse no interior.
― Boa tarde, que tal se encontra? ― Disse a donzela
aproximando-se de sua cama e sentando-se nela.
― Cansada, mais do que acreditei ao me deitar ontem ―
comentou sonolenta.
― Pois tem que preparar-se, sua Excelência a espera na
biblioteca, deseja conversar com você antes de almoçar –
informou-lhe. No rosto da criada se desenhou um sorriso tão
enorme que Beatrice a olhou com os olhos entreabertos. ― A
festa resultou mais produtiva do que se imaginou, não é?
― Não sei a que se refere ― disse enquanto se sentava
sobre o colchão e apartava os lençóis de suas pernas.
― Quero dizer que todo mundo ficou contente. Ninguém
pôs queixa alguma e a você viu-se muito feliz. ― Levantou-se
e caminhou para o roupeiro para procurar um vestido para a
moça. Só ficavam dois por usar: um dourado, que rejeitou
sem nem o ver, e um de cor rosa.
― Feliz? ― Levantou-se com rapidez, aproximou-se da
bacia e se lavou o rosto.
― Acaso fingia? ― Perguntou surpreendida a moça.
― Não, Lorinne, sentia-me muito feliz, mas tem que
compreender que devido aos rumores que se propagaram por
Rowsley quis que todo mundo soubesse que não me
preocupavam porque não eram certos.
― Bem… ― disse a donzela lhe colocando o vestido
escolhido. ― Então, depois de desculpar esse cochicho e de
deixar claro que você é a pupila de nosso senhor, o que
acontecerá agora?
A pergunta resultou tão dolorosa para Beatrice como um
bofetão na cara. As palavras inocentes da moça despertaram-
na bruscamente do sonho, aquele que inventou com tanta
insistência para outros que terminou por acreditar ela
mesma. Como tinha sido tão tola? Como foi tão
inconsequente? Para o duque ela era a senhorita Brown não
a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc. Para ele,
seus pais faleceram e a verdade era que viviam na residência
familiar que possuíam nos subúrbios de Londres. Para ele
somente era uma camponesa e a realidade era que se tratava
da filha ultrajada de um barão…
― Sinto se minhas palavras a ofenderam ― comentou
Lorinne com tristeza. ― Não foi minha intenção perturbá-la.
― Não! ― Exclamou a jovem girando-se para ela e
exibindo um sorriso. ― Não se sinta culpada de nada, foi
sincera e lhe agradeço isso. Tem razão, Lorinne, não tinha
pensado no futuro. Estava tão entretida com a festa e em
fazer desaparecer esses rumores que tinha esquecido qual é
meu verdadeiro lugar neste mundo.
― Mas eu… eu não quero que… ― tentou desculpar-se a
compungida moça.
― Calma. Não se preocupe, se tudo sair como espero,
logo poderei te responder essa pergunta. ― Deu-lhe um
pequeno beijo na bochecha, olhou-se no espelho e, depois de
ajeitar o vestido, dirigiu-se para o lugar onde a esperava o
duque.
Fazia um magnífico dia ou isso lhe parecia? William não
pôde conciliar o sonho. Foi incapaz de fechar os olhos e
descansar depois do acontecido com Beatrice. Ela o amava.
Não o disse com palavras, mas sim com feitos. Quem, salvo
uma mulher apaixonada, pode contemplar uma fealdade
como algo belo? Quem, salvo uma mulher que ama a um
homem, chora pela emoção que lhe produz um beijo?
O duque caminhou para a janela e contemplou com
admiração o exterior de seu lar. Aquele bosque que no
passado lhe pareceu o lugar mais tenebroso, já não o era.
Para ele, aquelas paragens selvagens eram seus salvadores
porque graças a eles, Beatrice estava ao seu lado. De repente
sorriu. Recordou a sensação de liberdade que lhe produziu a
dança com a moça e como lhe separou a alça, segurou-lhe a
mão que tanto se esforçava em ocultar e, sob o amparo de
seu corpo, dançaram sem medo. Era sua mulher, disso não
tinha a menor dúvida. Fez saber-se aos seus amigos, aos
seus irmãos.
«Amo-a, amo a senhorita Brown.» Sim, claro que a
amava e ela a ele, mas... que passo devia dar agora?
Em circunstâncias normais teria aparecido na casa dos
pais dela e, depois de expor seus propósitos, eles revelariam à
filha suas intenções. Entretanto, Beatrice estava sozinha, não
tinha ninguém a quem pedir sua mão.
«Tenho que pedir a ela mesma? ― Perguntou-se
enquanto caminhava para a porta para receber a jovem. ― Ou
possivelmente…».
De repente se lembrou da conversação que a moça
manteve com Roger quando lhe respondeu em francês. Se
não lhe falhava a memória comentou que tinha uma tia viúva
que permaneceu em seu lar durante um tempo.
«Se lhe perguntar onde reside sua tia, ― continuou
divagando ― posso viajar até lá e pedir sua mão».
Voltou a sorrir. Quanto mais o meditava, mais loucura
lhe parecia, mas disse a si mesmo que se o conseguisse, seria
o disparate mais formoso que tinha feito por alguém até o
momento.
― Senhor... ― interrompeu Brandon, as divagações com
sua presença na sala ― a senhorita Brown está preparada.
Deseja recebê-la aqui?
― É claro! ― Exclamou eufórico. Outra vez seu coração
deixava o compassado pulsar para converter-se em um
infinito galopar de meia dúzia de corcéis.
― Senhorita Brown… ― disse o senhor Stone abrindo
ainda mais a porta.
― Bom dia, senhor ― saudou Beatrice com uma pequena
reverência.
― Descansou bem? ― Perguntou o duque colocando a
mão direita em suas costas e retendo a ânsia de abraçá-la.
― Muito bem, e você?
Brandon fechou a porta e sem mover-se do lugar
escutou como o duque caminhava com rapidez para a jovem.
Percebeu em seus olhos quando ela apareceu, toda a
escuridão desapareceu após vê-la e, embora tentasse
dissimular, um enorme sorriso lhe cruzou o rosto. O
mordomo suspirou profundamente, sorriu e se dirigiu para a
cozinha. Tinha que dar a razão, de novo, à sua esposa.
Apesar de lhe dizer uma e outra vez que suas ideias eram
desatinadas e absurdas, demonstrava-lhe que, em temas
sentimentais, sempre ganhava.
― De verdade conseguiu descansar? ― William agarrava
a cintura da jovem com força. Tinha-a beijado já três vezes
desde que o mordomo os deixou sozinhos. Mas apesar de
saber que eram muitas em tão pouco tempo, não podia deixar
de fazê-lo. Tinha sentido tanto sua falta, tinha sentido tanta
saudade durante sua breve separação.
― Sim, de verdade. Embora possa lhe assegurar que
ainda sigo cansada ― comentou sorridente.
― Se quiser retirar-se para continuar seu repouso,
entenderei ― disse com tristeza.
― Já o farei depois de almoçar. ― Elevou-se nas pontas
dos pés e voltou a tocar os lábios que tanto prazer lhe
oferecia.
― Parece-me uma ideia bastante aceitável… ― Apertou-a
com tanto ímpeto ao seu corpo que esta encurvou as costas.
Ao serem conscientes das contorções que deviam realizar
para desculpar a diferença de altura, ambos riram a
gargalhadas.
― Nunca tinha visto tantos livros ― indicou Beatrice ao
liberar-se do corpo de William e caminhar para eles. Em sua
casa havia muitos livros, mas não tantos como apreciavam
seus olhos.
― Imagino… ― disse com pesar o duque ao imaginar que
uma jovem tão ávida em cultivar sua sabedoria e intelecto
teria sentido falta de não possuir mais fontes de
conhecimento ao seu alcance.
― Não se entristeça ― falou com rapidez girando-se para
ele. ― Acredito que me interpretou mal. Quis dizer que nunca
vi tantos livros juntos ― esboçou uma leve risada. ― Quantos
pode haver? Uma centena? Duas, possivelmente? ―
Caminhou com lentidão para as grandes estantes e tentou
fazer um cálculo aproximado.
― Posso lhe assegurar que, apesar de permanecer nesta
estadia quase todo o meu tempo, nunca parei para contá-los.
― Dirigiu seus passos para ela e se colocou atrás de suas
costas.
― Qual, de todos estes, é o seu preferido? ― Voltou-se
para ele e, de novo, observou um olhar repleto de desejo, de
necessidade, de luxúria. Só lhe bastou um leve sorriso para
que William voltasse a beijá-la com tanta paixão que, se não
a tivesse sugurado pela cintura, teria caído ao chão.
― O conde de Montecristo ― sussurrou após tomar o ar
que faltava aos seus pulmões.
― Do que se trata? ― Perguntou interessada. Por muito
que tentasse afastar-se da boca do duque, este lhe agarrava
com tanto ímpeto que não conseguia separar-se nem a
largura de uma linha de costurar.
― Parece-me estranho que uma jovem que fala francês e
sabe tocar o piano como uma deusa, não saiba de que
história falo ― disse jocoso.
― Não diga bobagens! ― Exclamou ruborizada.
― Se quer saber o que esconde o livro, leia-o. Talvez te
faça compreender um pouco mais a escuridão que guardo em
meu interior ― murmurou com voz melosa.
― Mostre-me ele ― pediu com euforia.
O duque emitiu um pequeno grunhido pelo desagrado
que lhe produzia separar-se dela, mas não podia evitar
agradá-la, muito ao seu pesar, liberou o corpo da moça e
retornou às estantes. Durante um comprido tempo esteve
revisando títulos até que ao final o encontrou.
― Aqui o tem – mostrou-o. ― Vai começar a ler agora? ―
Arqueou as sobrancelhas e desenhou um sorriso malicioso.
― Pode pô-lo sobre a mesa, já o farei mais tarde.
Tal como lhe indicou, o homem o pousou sobre a mesa,
girou-se para ela para abraçá-la de novo quando bateram na
porta.
― Adiante! ― Grunhiu.
― Meu senhor, o almoço está preparado ― informou
Brandon timidamente.
― Obrigado. Faça saber que não demoraremos.
Quando os deixou a sós, o homem finalizou aquilo que
tinha pensado. Depois de enchê-la de beijos e de abraços,
recuperaram a compostura e se dirigiram para o salão.
― Desculpe, milord. ― A voz agitada do mordomo lhes
impediu de acessar ao lugar.
― Sim? ― Franziu o cenho e dirigiu ao ancião um olhar
fulminante.
― O senhor Cooper e o senhor Bennett acabam de
chegar ― informou.
― Faça-os passar. Podem nos acompanhar ao almoço se
o desejarem ― disse com voz mais suave.
― Senhor, comentaram-me que desejam falar com você
agora e em privado ― explicou com certa alteração.
― Não se preocupe, senhor. Como lhe disse, preciso
descansar um pouco mais para recuperar a energia que perdi
ontem ― intercedeu Beatrice ao observar a tensão que
cresceu depois da notícia. ― Com sua permissão. ― A jovem
fez uma pequena reverência e, sem deixar que ele se negasse,
subiu as escadas que a conduziam ao seu dormitório. Era o
mais apropriado naquele momento. Não só pelo desejo de
ambos os cavalheiros em manter um bate-papo privado com
o duque, mas sim porque ela também necessitava de tempo
para pensar quando seria o melhor momento para abandonar
o homem que amava.
Zangado ao mesmo tempo em que intrigado, William
retornou à biblioteca para receber a inoportuna visita. Que
assunto era tão urgente para que seus amigos perturbassem
um momento tão esplêndido? O que teria acontecido para
requerer, com tanto afã, um bate-papo privado? Ansioso por
averiguar o que acontecia, os escassos segundos que
demoraram em aparecer lhe resultaram uma eternidade.
― Boa tarde, William ― disse Federith ao entrar na
habitação.
― Mon amie ― saudou Roger.
O duque esteve a ponto de lhes gritar como apareciam
sem prévio aviso, mas quando observou os rostos aflitos de
ambos, acalmou-se com rapidez.
― O que acontece? ― Inquiriu William olhando primeiro
a um e logo ao outro.
― Advirto-te, meu amigo, que eu não sabia nada disto ―
esclareceu Roger em tom suave depois de fechar a porta.
― O que acontece? ― Repetiu o homem em tom mais
severo.
― Deveria se sentar, William. O que vai escutar pode te
debilitar tanto que necessitará de um assento onde se apoiar
― começou a falar Federith ao mesmo tempo em que
caminhava para ele.
― A mim? Por quê? O que aconteceu? Trata-se do
Lausson? ― Perguntou sem pausa enquanto tomava assento
e ficava sem ar.
― Acreditei que estava equivocado, ― continuou falando
Cooper ― mas depois de passar a noite em claro pensando
sobre isso e recordando, confirmei minhas suspeitas. ―
William voltou a olhar ao Roger e logo ao Federith esperando
que falassem claramente. ― Recorda à família do barão
Montblanc?
― Não com a precisão que tem você ― esclareceu com
aborrecimento.
― Recorda o que lhes aconteceu? Recorda a razão pela
qual o barão te visitou em Southwark? ― Insistiu. Sabia que
aquilo mataria seu amigo, que o levaria a um abismo de
tristeza do qual jamais se recuperaria, mas o queria como se
o mesmo sangue percorresse suas veias e jamais poderia
perdoar-se se não lhe explicasse a verdadeira origem da
senhorita Brown.
― A que vem isso agora? ― William franziu o cenho e
tentou levantar-se, mas a mão de Roger o impediu.
― Sim, lembra-se ― determinou Federith.
― É óbvio que o faço! Acaso crê que sou tão insensível
de não recordar a tragédia dessa família? A jovem terminou
suicidando-se! ― Gritou.
― E se te dissesse que não morreu, que segue viva ―
continuou falando Cooper.
― O que? ― Os esforços por levantar-se e deixar de
escutar coisas que só lhe produziam um profundo e amargo
sentimento de culpabilidade desapareceu de repente.
― OH, mon Dieu! Isto é mais duro do que eu pensava!
Ama-a, adora-a! Acaso não se dá conta do dano que lhe vai
provocar? ― Gritou zangado Roger enfrentando seu amigo e
lhe colocando no peito um dedo acusador.
― Deve sabê-lo. Ele deve saber que a senhorita Brown é
em realidade a senhorita Lowell, filha do barão de Montblanc.
― Mentira! ― Clamou William elevando-se com rapidez
de seu assento. — É mentira! Ela é a filha de uns
camponeses que morreram pela cólera!
― O amor te cegou, meu amigo, ― disse com pesar
Federith ― e não pôde ver a realidade. Crê que uma
camponesa poderia tocar uma peça tão difícil de Chopin sem
praticá-la com frequência? Crê que uma camponesa poderia
falar um francês daquele nível? Até o Roger se assombrou por
sua incrível pronúncia.
William começou a enjoar-se. Tudo ao seu redor dava
voltas. Mal podia ver com claridade. Esticou a mão direita
para alcançar o assento. Não o conseguiu e, apesar de seus
amigos correrem para que não tocasse o chão, seus joelhos
impactaram sobre ele.
― Não pode ser verdade… ― sussurrou afogado. ― Está
equivocado. Minha Beatrice não é…
― Sinto muito. Juro-te por minha honra que me dói te
dizer isto, mas não poderia me considerar teu amigo se não te
informasse sobre a verdade da mulher que ama e a quem,
estou seguro, deseja lhe pedir em matrimônio ― explicou
enquanto ele e Roger lhe ajudavam a sentar-se.
― Como vou pedir em matrimônio uma harpia? A uma
mulher com experiência em enganar homens? ― Gritou tão
alto que uma terrível dor de cabeça lhe sacudiu.
― Segue pensando que o conde de Rabbitwood disse a
verdade? ― Perguntou Federith pousando seu braço sobre o
ombro esquerdo de seu amigo. ― Pensa um pouco, William. O
que nos contou sobre ela?
― Que veio andando desde algum lugar até encontrar a
cabana do bosque ― expôs com voz mais apagada e olhando
para o chão. Levou-se a mão direita para a testa e sentiu falta
de sua esquerda. Antes, pressionar a cabeça com ambas as
mãos acalmava sua dor e sua ansiedade.
― Quando a encontrou? ― Continuou o senhor Cooper
com o interrogatório para que seu amigo conseguisse eliminar
a fúria e conseguisse pensar com clareza.
― Depois de conhecer a notícia de seu matrimônio,
embebedei-me e, em um ato de loucura, cavalguei sobre um
dos meus cavalos. Algo o assustou e caí ao chão. No golpe
fiquei inconsciente. Pensei que seria a última vez que veria a
luz, mas quando despertei, ela me tinha salvado a vida. ―
Não podia falar com clareza, asfixiava-se e, preso do
desespero que estava vivendo, começou a chorar.
― O que te pediu em troca? ― Interveio Roger surpreso
ao descobrir que aquela miúda figura tinha tido a coragem de
salvar a um homem que lhe ultrapassava em tamanho e
peso.
― Que a deixasse viver na cabana. Que não a
incomodasse. Que a deixasse permanecer o resto de seu
existir em solidão.
― O que aconteceu depois? ― Agora a pergunta era
realizada pelo Federith.
― Tal como me pediu, deixei-a viver sozinha durante um
tempo. Mas fui incapaz de deixar de pensar nela. Não me
explicava como uma moça tão jovem e tão indefesa tentava se
afastar do resto da sociedade. ― William elevou a cabeça e
deixou que seus amigos observassem como as lágrimas
banhavam seu rosto.
― Entende-o agora? Descobriu por que Beatrice desejava
essa forma de vida? ― Apertou-lhe com força o ombro e o
duque levantou sua mão direita para pousá-la sobre a de seu
amigo.
― Sabe que lhe apoiaremos na decisão que tomar ―
Confirmou Roger aproximando-se de seu amigo e imitando ao
Federith no outro ombro. ― Diga-nos o que deseja fazer e o
faremos ― sentenciou.
William dirigiu o olhar para a janela. Agora o dia não lhe
parecia tão lindo, resultava-lhe frio, nublado, tenebroso.
Depois de meditar o que desejava fazer, levantou-se com
tanta força do assento que ambos os amigos deram uns
passos para trás. Caminhou para a porta, abriu-a e começou
a gritar.
― Brandon! Brandon!
― Sim, milord? O que ocorre? ― O ancião jogou uma
rápida olhada aos convidados e compreendeu que nada bom
tinha acontecido durante aquela conversação.
― Prepara um pouco de bagagem, amanhã partiremos
para Londres na carruagem do senhor Cooper ― disse com
firmeza.
― Uma longa temporada? ― Perguntou o mordomo
desconcertado.
― Se tudo sair bem, estaremos de retorno em uma
semana. Se sair mal, eu não retornarei nunca ― declarou.
XXIV

Esperou que seus amigos partissem para fazer o que


tinha pensado. Pegou cinco folhas de papel, estendeu-as
sobre a mesa e escreveu com seu punho e letra suas últimas
vontades em cada uma. A primeira iria destinada ao senhor
Gibbs, o administrador, informava-lhe do acontecido da
aparição da senhorita Lowell e como, por decisão própria,
determinou partir a Londres para finalizar o que não fez no
passado. Explicou-lhe também os passos que devia seguir se
algum de seus familiares, especialmente sua mãe, tentasse
anular seu testamento. Não se esqueceu dos quais estavam
ao seu serviço, indicando onde deviam instalar-se após seu
falecimento e a quantia que lhes pertencia por seus anos de
trabalho. Para finalizar insistiu na decisão sobre a mudança
de proprietários da residência em Southwark. Esta seria dada
de presente ao casal Stone como agradecimento a sua
fidelidade, cuidado e por ocupar o lugar que deveriam
desempenhar seus pais.
Reescreveu a carta três vezes mais. Uma estava dirigida
ao Roger, outra ao Federith e a última para Beatrice. As
missivas destinadas aos homens foram colocadas em
distintos envelopes e as fechou com seu selo de cera
vermelha. A única que ficava por guardar era a de Beatrice.
Ele olhou de lado a última folha de papel em branco, respirou
fundo e pôs em palavras o que seu coração ditava. Quando
terminou, assinou-a, meteu-a em outro envelope, pôs-lhe o
selo e a escondeu entre as páginas do livro O conde de
Montecristo. Se tudo saísse bem, ela jamais conseguiria lê-la,
mas se, pelo contrário, o destino o impedisse de voltar para
seu lado, saberia que a amava apesar de descobrir a verdade.
Cabisbaixo, subiu as escadas devagar. Encontrava-se
tão triste que, dar um passo e logo o outro, resultou-lhe um
trabalho dificílimo. Conforme chegava ao final da escada, sem
saber a razão, recordou o momento no qual a moça abriu os
olhos e, depois de observá-lo, começou a gritar
descontroladamente. Agora sabia a causa de sua alteração: o
delírio da febre lhe mostrava de novo a atroz cena da violação.
Não dizia a ele que não a tocasse, nem que tivesse piedade, a
não ser ao maldito Rabbitwood.
«Morrerá em minhas mãos!», exclamou William
formando com sua mão um duro punho e apertando a
mandíbula.
― Meu senhor ― começou a dizer Brandon no patamar
do corredor. ― Deseja alguma coisa mais?
― Só uma. Sobre a escrivaninha encontrará várias
cartas, pega só a destinada ao senhor Gibbs e a faça chegar
ao cavalariço. Quero que a tenha esta mesma tarde ― disse
com tom cansado. Olhou ao mordomo e, observando que este
esperava mais ordens finalizou. ― Isso é tudo. Descansa o
resto do dia. A viagem será muito longa.
― Até manhã então, milord.
― Até manhã ― repetiu.
William se dirigiu para seu quarto com a intenção de
descansar um momento antes de pedir a Beatrice que o
acompanhasse no jantar. Como era de supor, seu ajudante
de câmara lhe estava esperando para despi-lo.
― Senhor… ― saudou-lhe.
― Deixe-me em camisa e meias ― indicou com
austeridade.
O moço assentiu e começou a despi-lo em silêncio.
Quando lhe despojou de todos os objetos menos as
assinaladas, despediu-se e o deixou sozinho. William
caminhou para o espelho e observou seu reflexo. Não
encontrou ao homem que era, nem tampouco o homem que
acreditava ser. Seguia sendo um canalha, um ser desprezível.
Com uma intensa fúria, começou a atirar tudo o que
encontrou ao seu redor. Como tinha sido tão imbecil? Quem
se acreditou ser para não escutar as preces de um homem
destroçado? Por que afirmou categoricamente que ela
mentia? Por que não duvidou disso nem um segundo?
Possivelmente a resposta se encontrava em que, naquele
momento, ele era tão vilão como o conde.
Envergonhado, William continuou destroçando o que
encontrava em seu passo. Nunca tinha desatado uma ira
semelhante. Sempre tinha guardado os sentimentos em seu
interior com um férreo autocontrole. Até quando falou com
Roger e Federith sobre a tristeza que sentiu pela morte da
filha do barão, não exibiu mais lástima que a que pôde
mostrar se Lala, a cachorrinha de sua mãe, houvesse
falecido. Quebrado de dor, exausto pelo esforço, sentou-se,
levou-se a mão direita para o rosto e começou a chorar.
Beatrice despertou assustada. Entre sonhos tinha
escutado um grande estrondo, mas, ao levantar-se e observar
ao seu redor, não achou nada estranho. Com muito sigilo,
dirigiu-se para a porta. Depois de abri-la e olhar a um lado e
ao outro do corredor tampouco encontrou nada que lhe
explicasse seu sobressalto. Pensando que tudo foi produto de
sua imaginação, decidiu retornar ao interior do quarto, mas
então ouviu com clareza outro ruído que procedia claramente
da habitação de William. Sem diminuir o passo, dirigiu-se
para lá.
Durante o curto trajeto não parava de pensar que podia
ter ocorrido qualquer acidente e que ninguém tinha ido para
auxiliá-lo. Presa no pânico, não chamou antes de entrar e,
quando descobriu o destroço que mostrava o interior, foi
incapaz de avançar. Seu olhar procurou o duque. Mal podia
apreciar a grande silhueta deste na penumbra. De repente
escutou um suave lamento. Olhou para o lugar de onde
procedia a pequena choramingação e achou ao culpado
desta. William permanecia sentado sobre a cama e lhe dava
as costas, por isso não tinha percebido sua presença.
Inclinava-se para diante como se sentisse uma intensa dor
em seu estômago.
― William… ― murmurou, mas o homem não a escutou.
Seguia sem saber que ela tinha entrado.
Sem pensar em como reagiria o duque quando a
descobrisse, caminhou com cuidado. Esquivou-se dos cristais
quebrados e dos itens que se encontravam espalhados pelo
chão. Não parou de andar até que se colocou em frente a ele.
― William, o que acontece?
― Beatrice! ― Exclamou o homem dando um salto ante o
assombro em vê-la. ― O que faz aqui?
― Escutei um ruído e me assustei ― disse com um suave
fio de voz.
― Não deveria estar aqui, poderiam ver-te. ― William foi
incapaz de apartar o olhar do pequeno corpo imóvel.
A expressão de terror de seu rosto e a confusão de seu
olhar lhe indicava que estava preocupada e ele se sentiu
ditoso e ao mesmo tempo zangado por lhe provocar tal temor.
Respirou fundo ao observar a beleza natural de Beatrice. Era
a mesma que tinha mostrado na cabana, salvo que nesses
momentos seu corpo não estava coberto de barro. Sua
cabeleira, até agora recolhida como ditavam as normas,
estendia-se pelas costas ocultando os delicados ombros. A
diminuta figura, vestida com uma fina camisola de algodão
branco, apreciava-se através do tecido. O homem tragou
saliva ao distinguir as auréolas tintas de marrom e a
escuridão de seu triângulo feminino. Devia fazer que partisse
o antes possível dali. Não podia permanecer dessa forma tão
erótica ao seu lado.
― O que aconteceu? Que notícia recebeu para que
tivesse reações desta maneira? ― Esticou as mãos e as
pousou sobre o entristecido rosto.
― Não deve preocupar-se com isso, Beatrice. ― Sua mão
direita pressionou a esquerda da jovem e inclinou a cabeça
para esse lado. Reconfortava-lhe tanto sentir a calidez de sua
pele que, por um momento, esqueceu a razão de seu
aborrecimento.
― Não deveria me preocupar ou não quer que me
preocupe? ― Continuou com uma voz aveludada.
― Beatrice… ― sussurrou.
Fechou durante uns instantes os olhos e deixou que as
mãos da jovem acariciassem sua barba.
― William… ― falou sem mal mover os lábios. Apoiou os
dedos dos pés no chão e se elevou. Queria beijá-lo. Queria
tranquilizá-lo com o suave tato de seus lábios.
― Minha pequena Beatrice… ― disse ao mesmo tempo
em que baixava sua boca para a dela.
― Meu grande William… ― suas mãos se deslizaram
para o cabelo e entrelaçando seus dedos nele, cortou a
pequena distância que lhes separava.
A boca dele tocou com suavidade a dela. Não queria um
beijo apaixonado, muito menos a tendo perto com uma
camisola transparente, porque sabia que assim que sua mão
acariciasse o corpo feminino sobre o fino tecido seria incapaz
de parar a luxúria que despertaria.
― Só isso? ― Perguntou desconcertada ao perceber como
os lábios do duque abandonavam os seus.
― Desejo muito mais, Beatrice. Mais do que pode
imaginar, ― esclareceu com aparente firmeza ― mas não farei
nada que você não queira fazer.
Beatrice cravou seus olhos nos dele e percebeu a
veracidade de suas palavras. Não lhe cabia dúvida que se
dissesse não, ele a respeitaria imediatamente. De repente, a
jovem notou como seu pêlo se elevava, como seu coração se
alterava e como aquela queimação que ardia sob seu ventre
aumentava pela sinceridade do homem.
― Quero que me beije ― disse enfim. ― Quero que me
toque... Quero ser tua assim como você será meu.
― Está segura? ― Perguntou depois de tragar saliva.
O desejo queimava seu corpo. Podia perceber na
garganta o agitado bombeamento de seu coração. Dava-lhe
permissão para entrar em seu corpo, e fazê-la sua.
Entretanto, embora a ideia de tomá-la parecesse maravilhosa,
assaltou-lhe a dúvida. O que aconteceria se não retornasse?
O que pensaria a moça se a fazia dele e não voltasse jamais?
― Não o deseja? ― Beatrice, ao observar seu cenho
franzido e uma inquietação estranha, apartou suas mãos do
rosto do duque e começou a retroceder.
― Se o desejo? ― Agarrou-a pelo braço com força e a
atraiu para ele com tanto ímpeto que ambos os rostos ficaram
a um escasso palmo. ― Mais que tudo neste mundo!
E voltou a beijá-la, mas desta vez não controlou a paixão
nem o ardor que sentia por ela. Sua língua invadiu a boca da
jovem com energia e necessidade, antecipando-lhe o que
aconteceria a seguir. Sua mão, até agora pega à cintura,
começou a lhe acariciar as costas, os ombros, o pescoço...
William mordeu com cuidado o lábio inferior, fazendo com
que ela abrisse os olhos e o contemplasse. Queria que fosse
consciente do homem que tinha ao seu lado, que lhe
mostraria o que significava fazer amor.
― É tão bela… ― sussurrou enquanto a palma percorria
devagar o pescoço, o decote, os seios. ― Desejo-te tanto… ―
beijou-a de novo ao mesmo tempo em que continuava
acariciando o tremente corpo feminino.
Beatrice percebeu com clareza cada carícia, cada toque e
para onde se dirigia. Não lhe importou. Encontrava-se em um
estado de atordoamento tão maravilhoso que não queria que
parasse. Esticou de novo as mãos buscando-o. Desta vez
suas palmas não apreciaram a sedosidade de seu cabelo, mas
sim o quente peito viril. A pequena abertura de sua regata
liberava o escuro e encaracolado pêlo do homem. Intrigada
por averiguar o tato que teria, enredou seus dedos nele,
pareceu-lhe suave e ao mesmo tempo robusto.
― Diga-me que pare, diga-me e me afastarei desta
loucura… ― gemeu William ao notar as mãos dela em seu
corpo.
― Não… ― murmurou. ― Não quero que pare esta
loucura porque eu também a desejo ― respondeu ao mesmo
tempo em que suas mãos baixavam e agarravam o objeto
para tirar-lhe.
Era a segunda vez que contemplava o torso do duque. A
primeira quando limpou a pequena ferida que se fez depois
do acidente, mas então não o observou com o desejo nem
com a lascívia que sentia nesse momento. Olhou a cicatriz da
ferida, mal ficava rastro daquela lesão. Estendeu uma mão e
a acariciou com suavidade.
― Ninguém até agora tinha visto... ― disse em voz baixa.
A moça soube com rapidez do que falava. Deteve a
carícia que realizava no peito e a dirigiu por volta da mão
esquerda que sempre ocultava dos outros e a acariciou.
Apesar de ser mais magra que a outra, seguia sendo formosa.
Sua pele, seu pêlo... era muito similar à direita. Nada do que
observava lhe provocou espanto, ao contrário, sentiu-se
ditosa por poder tocar e admirar.
― Siga acariciando-me, William, não pare ― comentou
acercando sua boca do torso para beijá-lo.
Mas o homem foi incapaz de fazê-lo. Ao notar os lábios
dela jogou a cabeça para trás e soluçou de prazer. Beatrice
sorriu ao compreender o que produziam suas carícias. Aí
estava, uma inexperiente na arte do amor deixando imóvel a
quem, supostamente, era todo um professor. Entretanto,
queria que continuasse, que não cessasse de tocá-la. Para
despertá-lo desse transe, retirou-se com suavidade, segurou
a mão direita e a colocou em seu estômago.
― Toque-me ― sussurrou.
O duque ficou tão pasmado que não soube como atuar.
Nunca tinha perdido uma ocasião para despir uma mulher,
embora nenhuma fosse Beatrice. Nem tampouco desejava
apagar com suas carícias, as aberrações produzidas por outro
homem. Mas lhe dava permissão, concedia-lhe a honra de
fazê-la sua. Retirou a mão do ventre da jovem para segurar
com força a camisola. Foi subindo-a devagar, sem pressa.
Admirando a figura feminina. Quando este subiu até seus
ombros, William grunhiu zangado. Não podia tirar-lhe. Não
sem que lhe custasse mais esforço do que desejava realizar.
Embora, para sua surpresa, a moça conduziu as mãos para o
objeto e lhe ajudou a despojar-lhe.
― Linda… ― murmurou aproximando sua boca dos
seios. ― É muito linda para mim. ― Lambeu e absorveu um
mamilo para depois continuar com o outro.
Sua mão percorreu de novo o pescoço, os ombros e os
seios nus da moça. Quis seguir o percurso de seu corpo até
chegar aos quadris, mas em troca, segurou-a pela mão e a
levou até a cama e fez com que se recostasse.
Ela tentou abrir os olhos e averiguar o que fazia William,
mas não foi possível, pesavam-lhe tanto que não podia
levantar as pestanas.
― Tão cálida, tão excitada, tão minha… ― murmurou o
duque ao mesmo tempo em que a beijava com avidez.
Não voltou a falar até que sua boca se colocou sobre o
púbis. Surpreendida, Beatrice realizou um suave movimento
com as pernas, tentando fecha-las. William elevou seu rosto
para olhá-la e lhe sussurrou:
― Não te farei mal, meu amor. Só quero despertar mais
desejo para mim. Quer que o faça? Quer que aumente sua
necessidade enquanto me alimento de ti?
― Sim… ― ronronou presa da paixão.
― Bem, então me mostre o lugar onde minha fome será
saciada.
Beatrice obedeceu e uma estranha cãibra a sacudiu com
intensidade e elevou, sem ser consciente disso, os quadris.
William jogou o braço sobre estes para que não pudessem
elevar-se mais. Voltou a introduzir a cabeça entre as pernas e
a beijou com a mesma magnitude e paixão que quando
beijava sua boca. Primeiro suave, para que se fosse
acostumando às suas carícias e logo… intenso, demolidor!
― William! William! ― Exclamou a jovem entre soluços.
― OH, Meu Deus!
Ouvi-la gemer seu nome foi mais formoso que escutá-la
tocar o piano. Resultou-lhe tão prazeiroso que notou como
começava a molhar seu próprio calção. Levou-o a um estado
tão supremo de desejo que um rastro de gotas brotava de seu
sexo. Ele estava preparado para possuí-la, mas… e ela?
― Beatrice, minha amada ― disse ao mesmo tempo em
que subia sobre ela. ― Quer que eu continue? Quer que eu
entre em ti?
A jovem conseguiu levantar as pestanas para
contemplá-lo. Apesar de suas bochechas estarem cobertas
com a espessa barba, podia ver um intenso rubor. Estendeu
as mãos para o rosto dele e o dirigiu para sua boca lhe
deixando bem claro que consentia o passo seguinte.
Sem mais o que perguntar, o homem deixou que o
beijasse o tempo que necessitasse. Depois que seus lábios se
afastaram, ajoelhou-se em frente aos seus quadris, levou-se a
mão para a calça e liberou seu sexo. Devagar, lento e
percebendo o ardor de seu corpo, William foi penetrando-a
até que ambos os quadris se roçaram. Esticou a mão para a
cintura da moça e começou a realizar suaves vaivéns
enquanto observava o rosto da jovem. Segundo a intensidade
de seus gemidos, invadia-a com mais força, com mais vigor.
― Meu amor! ― Gritou ao sentir os primeiros espamos.
― William! ― Respondeu ela com gemidos ao sentir como
seu corpo se convulsionava descontroladamente. ― OH,
William!
Um intenso alarido brotou da boca do homem quando
chegou ao clímax apesar de ser consciente de que poderiam
lhe escutar os criados, mas não queria interromper o gozo
que lhe provocou chegar ao orgasmo com a mulher que
amava. Não podia fazer desaparecer essas convulsões que
agitavam seu corpo com tanta intensidade que caiu sobre ela.
Tentou recompor-se enquanto se colocava ao seu lado.
Dirigiu sua palma para a bochecha e sorriu feliz ao perceber
o fogo que desprendia.
― Amo-te, Beatrice. Amo-te e te amarei sempre ―
estendeu sua mão para a cintura e a aproximou mais dele.
― Por que me dá a sensação de que se despede de mim?
― Disse sem olhá-lo.
― Não me despeço, meu amor. Jamais poderia me
afastar de ti, ― aproximou sua boca do cabelo da jovem e o
beijou ― mas é certo que tenho que partir amanhã para
Londres.
― Sabia! ― Exclamou ao mesmo tempo em que se
separava do duque, girou-se para ele e apoiou os joelhos no
colchão.
― Beatrice, por favor – suplicou-lhe. ― Não vá.
― Por que, William, por que deve partir amanhã? O que
lhe disseram Roger e Federith esta tarde para que tenha feito
isso? ― Estendeu a mão e fez um semicírculo para assinalar o
destroço que havia sobre o chão.
― Trata-se da minha mãe ― disse após meditar com
rapidez que desculpa lhe oferecer para que não saísse da
habitação correndo.
― A duquesa? ― Elevou as sobrancelhas e retornou
devagar ao seu lado para que voltasse a abraçá-la.
― Ela decidiu ignorar certas decisões de meu pai e quer
despojar meu irmão de uma propriedade que lhe pertence. ―
William apertou a mandíbula e lhe pediu, mentalmente,
desculpa por sua mentira.
― Por quê? Por que quereria uma mãe magoar seu filho?
― Porque Lausson se casou com uma criada e ela nunca
esteve de acordo com esse enlace. – Beijou-a de novo no
cabelo e inspirou seu aroma a sabão. Precisava levar consigo
essa lembrança, ela ao seu lado, mostrando sua nudez sem
pudor e ele abraçando-a com toda a intensidade que podia.
― E você, o que fará? ― Um suave bocejo brotou atrás
da pergunta.
― Pôr ordem e fazer com que a normalidade se
restabeleça.
― Demorará em retornar? – Aconchegou tudo o que pôde
seu corpo com o do duque.
― Uma semana, no máximo dez dias. ― Segurou o lençol
e a cobriu. ― Esperar-me-á, não é? ― Perguntou com certa
inquietação.
― Não me moverei daqui até que retorne, prometo-lhe ―
afirmou isso sem titubear.
― Beatrice… ― murmurou colocando seu queixo sobre a
cabeça desta.
― O que? ― Voltou a bocejar.
― Amo-te.
Não tinha conciliado o sonho. Era incapaz de fazê-lo
depois do acontecido. Não só a tinha feito dele, mas sim,
preso da paixão, não se preocupou em tomar medidas
pertinentes para não a deixar grávida. Amaldiçoou-se uma e
outra vez por tal temeridade. Agora, se ela estivesse grávida,
não só perderia o prazer de viver o resto de seus anos junto à
mulher que amava, mas sim tampouco poderia desfrutar de
cuidar e proteger seu filho. Em silêncio saiu da cama,
caminhou para a saída e, antes que o ajudante de câmara
aparecesse, ele o recebeu no corredor.
― Milord, não deseja que o atenda em seus aposentos?
― Perguntou assombrado.
― Não. Prefiro me vestir na habitação contigua. ―
Caminhou devagar para ela.
Aproximadamente uma hora depois, a carruagem de
Federith parava aos pés das escadas de Haddon Hall.
Brandon abriu a porta e deixou que o duque subisse com
orgulho.
― Bonjour… ― disse Roger sonolento. Reclinou-se no
assento direito e estendia suas longas pernas para a
esquerda, deixando um pequeno espaço que era ocupado por
Federith.
― Bom dia – saudou-lhe Cooper. ― Segue querendo
enfrentar a morte por ela?
― Jamais estive mais seguro de oferecer minha vida por
alguém ― asseverou.
Federith deu uns golpezinhos na parede da carruagem e
o cocheiro tocou os cavalos.
XXV

Os raios do sol atravessavam os cristais sem nada que o


impedisse. À Beatrice, depois de sentir um estranho calor nas
bochechas e despertar, sentiu falta de que William não
tivesse deslocado as cortinas. Acaso não sentia o mesmo
pudor que ela ao exibir seu corpo nu pela habitação? A
pergunta à fez sorrir e percebeu que sua parte íntima
começava a palpitar como na noite anterior. Ruborizou-se
devido ao desejo incontrolável que despertou ao recordar os
beijos, as carícias e os vaivéns do homem ao fazê-la sua.
Com urgência apartou os lençóis e, ajoelhada sobre o
colchão, foi procurando com o olhar onde estaria sua
camisola.
― OH! ― Exclamou entre risadas ao achá-la detrás da
poltrona.
Sem parar de rir ao recordar a cena em que ela se
despojou do objeto, aproximou-se dela, vestiu-se e se
manteve de pé observando ao seu redor. Agora, com a
claridade do dia, podia apreciar melhor o destroço que tinha
provocado William. Perguntou-se por que a duquesa
castigava seu filho por haver se casado com uma criada.
Podia entender que uma mãe desejasse o melhor para seu
filho, mas e se nesse matrimônio achava a felicidade? Por que
não queria deixá-lo viver em paz? De repente, ao permanecer
de pé, algo úmido percorreu o interior de suas pernas e uma
vergonha muito grande fez com que sua pele avermelhasse.
― Meu Deus! ― Gritou depois de colocar a mão sobre a
boca para que não se escutasse. Enjoada pelo pensamento
que lhe rondou pela cabeça, sentou-se na poltrona. ― Não
pode ser… ― murmurou. ― Ele terá sabido como controlar…
Para confirmar o que começava a suspeitar, levantou-se
devagar a camisola. Suas mãos lhe tremiam, o coração tinha
deixado de pulsar e segurou a respiração.
«Não!», pensou aterrorizada. Estava a ponto de ficar a
chorar quando escutou uns passos pelo corredor.
Sobressaltada, levantou-se da poltrona e se escondeu atrás
dela. Não podiam descobri-la no quarto do duque. Ninguém
em Haddon Hall podia chegar a imaginar o que tinha
acontecido entre ela e ele na noite anterior.
Quando o silêncio voltou a reinar, levantou-se,
caminhou para a porta, abriu-a e, depois de comprovar que
não havia ninguém pelos arredores, correu para seu
dormitório. Uma vez dentro, fechou devagar e se lançou à
cama para chorar desconsolada.
― Quer que suba para despertá-la? ― Perguntou Lorinne
a Hanna.
Depois dos afazeres diários, decidiram sentar-se ao
redor da pequena mesa da cozinha para descansar, mas a
criada estava preocupada. Tinha aparecido bem cedo no
dormitório da moça e ela não estava. Quando lhe informou do
desaparecimento à senhora Stone, a mulher lhe explicou,
com uma mentira, que durante a noite a jovem se levantou
sonâmbula e, como era perigoso despertá-la, deixaram-na
pernoitar na habitação onde se deitou.
― Precisa descansar. Podemos deixá-la dormir um
momento mais ― respondeu a mulher levando dois copos de
suco para a mesa. ― Embora saltasse o almoço, poderá jantar
tudo o que anseie.
― Pobrezinha… ― murmurou Lorinne olhando o copo
que a anciã colocou em frente a ela. ― De todos os passados
possíveis que imaginei, jamais pensei nesse.
― Eu tampouco… ― suspirou. Seus olhos se encheram
de lágrimas. Tentou faze-las desaparecer piscando várias
vezes, mas foi em vão.
― Espero que nosso senhor coloque em seu lugar àquele
mal nascido! ― Exclamou antes de beber um sorvo do suco. ―
A justiça deve cair sobre esse violador!
― Crê de verdade que sua Excelência deixará nas mãos
da justiça o acontecido com a senhorita Lowell? ― Perguntou
a anciã abaixando a cabeça.
― O que outra coisa pode fazer? Imagino que falará com
os pais da senhorita, explicar-lhes-á o ocorrido e farão as
pesquisas pertinentes até ver entre as grades o maldito
conde, não?
― O duque não aceitará isso ― afirmou a anciã com
pesar.
― Então, o que fará? ― Inquiriu atemorizada.
― O único que pode fazer um homem apaixonado ―
assegurou.
― Santo céu! Não será capaz de...! Morrerá! ― Exclamou
a donzela após levar uma mão para seu peito.

Beatrice abriu seus olhos quando um estranho rugido


brotou de seu estômago. Tinha muita fome porque não tinha
comido nada na noite da festa, mas, ante a possibilidade de
estar grávida, não desejava sair da habitação. Acreditava que
se permanecesse ali o tempo suficiente, terminaria
despertando de um estranho sonho. Apesar de seus intentos
por ficar no dormitório, os rugidos se fizeram tão intensos e
constantes que se deu por vencida. Levantou-se da cama,
retirou as cortinas para apreciar o dia e ficou atônita quando
percebeu que o sol estava se escondendo. Que hora seria?
Quanto tinha dormido?
Desconcertada e ao mesmo tempo inquieta, dirigiu-se
para o vestidor e agarrou o único vestido que ficava sem pôr.
Lorinne não gostava da cor dourada, por isso não o escolheu
com antecedência, entretanto, pareceu-lhe formoso. As
dobras na saia terminavam com uma elaborada renda
cinzenta, o torso era tão suave e firme que não necessitava
espartilho para aumentar seu seio, as mangas cobriam o
braço por completo e ao final, justo nas costuras dos pulsos,
a mesma renda o embelezava. Depois de vestir-se, olhou-se
no espelho, ela mesma se recolheu o cabelo em um tenso
coque. Suspirou para encontrar serenidade e abandonou a
sala.
Resultou-lhe estranho não ver William ao final das
escadas. Sua mente lhe fez pensar que estava ali, com suas
mãos nas costas, olhando para a entrada sem ser consciente
de sua presença. Ela recordava a grandiosidade de seu porte,
a elegante figura, o olhar e o sorriso que lhe oferecia quando
a observava aproximar-se. Teve que respirar com
profundidade para não se debilitar de novo. Seus sentimentos
para com o duque tinham mudado muito. Já não albergava
ódio ou rejeição para com ele. Agora o necessitava ao seu lado
mais que nunca.
Com pesar foi descendo as escadas muito devagar.
Justo no momento que chegou ao hall, escutou uma
conversação entre mulheres. Eram Hanna e Lorinne, ambas
se encontravam na cozinha. Sem perder mais tempo, acelerou
seu passo e se dirigiu para elas.
― Moça! ― Exclamou Hanna ao ver Beatrice parada na
porta. Estava pálida, abatida. ― Vêem, sente-se. ― Caminhou
para ela e a abraçou com força. ― Tem que estar morta de
fome, não é?
― Sim, senhora Stone. Agora mesmo comeria uma vaca
inteira ― disse com um leve sorriso.
― Pois vaca não tenho preparada, mas com certeza um
bom caldo e um bife com verduras lhe saciarão o apetite. ―
Conduziu-a até a cadeira, apartou-a e deixou que se
sentasse.
― Necessita que lhe ajude em algo? ― Perguntou Lorinne
sem poder fazer desaparecer o espanto de seu rosto.
― Possivelmente mais tarde, Lorinne. Virá-me bem um
momento de companhia ― respondeu com suavidade.
Antes de poder terminar a frase, Hanna lhe tinha
colocado sobre a mesa a terrina de sopa, os talheres e um
copo de vinho. Sem ser capaz de continuar falando, Beatrice
tomou com rapidez o caldo quente. Este começou a lhe
esquentar o estômago e inclusive todo o corpo. Continuou
com o segundo prato e não começou a articular palavra até
que tomou o vinho.
― Sabem, não é? ― Quis saber se elas tinham
descoberto onde dormiu na noite passada.
― Claro, aqui nada se oculta ― respondeu Lorinne
sentando-se ao seu lado.
― Mas o duque resolverá logo o tema com a duquesa e
retornará ao seu lar ― interveio a anciã antes que a
conversação tomasse outro tema.
― Não entendo como uma mãe pode fazer tanto dano ―
assinalou Beatrice com uma aparente aflição. Entretanto, em
seu interior a alegria alcançava o nível mais alto. Ninguém
tinha descoberto seu segredo.
― No fundo não é má ― respondeu Hanna. ― É uma
mulher com princípios sociais muito acentuados. Os pais
dela foram bastante estritos em sua educação e isso não se
elimina com facilidade.
A donzela olhava a uma e à outra sem entender do que
falavam. Todos os criados sabiam a razão pela qual o duque
partira a Londres e pensou que ela, ao ser o principal motivo,
saberia a verdade, mas conforme estava descobrindo, o amo a
seguia protegendo apesar de estar longe.
― Ahh…, mas querer castigar seu filho dessa maneira ―
comentou com pena.
― Lausson tem caráter e saberá como atuar ― afirmou a
anciã.
― E se pode solucionar ele mesmo o problema, por que
requer a presença do duque? ― Arqueou as sobrancelhas e
cravou os olhos na mulher.
― Ele ostenta o título e deve colocar ordem ― respondeu
Hanna retirando os pratos vazios. ― E você deveria descansar
um pouco mais. Vi fantasmas com mais cor!
Beatrice assentiu devagar. Levantou-se de seu assento e
caminhou para a porta. Lorinne fazia o mesmo. Acreditando
que a necessitaria caminhou atrás dela.
― Vou descansar na biblioteca. Possivelmente leia um
pouco. Está o fogo aceso?
― Sim. Faz umas horas que um dos criados o acendeu –
informou-lhe a senhora Stone sem apartar a vista da jovem.
― Não precisa me acompanhe, Lorinne. Se não se
importar, desejo ficar sozinha ― disse antes de abrir a porta e
dirigir-se para a biblioteca.
O aroma de William se estendia pela pequena sala.
Podia fechar os olhos e sentir sua presença sem dificuldade.
Avançou devagar para a poltrona no qual estava acostumado
a sentar-se e a acariciou com delicadeza.
«Por quê? Por que não posso te apartar de meus
pensamentos? Por que sinto falta de sua presença?»,
perguntava-se sem cessar enquanto se afastava da poltrona.
Perambulou pelo interior durante um momento.
Perguntava-se uma e outra vez a razão pela qual tinha
mudado seus planos de fuga. Sem saber a causa, levou suas
mãos para o ventre e o apalpou com suavidade. Se de
verdade estivesse grávida, se de verdade esperasse um filho
do duque, ele decidiria casar-se com ela e cedo ou tarde
descobriria a verdade.
«Mas se parto e tenho seu filho em minhas vísceras, que
vida poderei lhe oferecer?».
Desconsolada, fez com que seus passos a conduzissem
para a escrivaninha e quase rompeu a chorar quando
observou o livro preferido do duque. Esticou a mão para ele e
deixou que suas gemas acariciassem a capa. «Se quer saber o
que esconde o livro, leia-o. Talvez te faça compreender um
pouco mais a escuridão que guardo em meu interior».
Recordou com exatidão as palavras que William mencionou
ao lhe haver perguntado sobre a trama que ocultavam as
folhas. Queria saber a verdade do homem que amava? Queria
compreendê-lo? A resposta foi um enorme sim.
Sorridente e com um estímulo para esperar a ansiada
volta do duque, Beatrice agarrou o livro com tanto ímpeto
que, assombrada, descobriu que algo caía ao chão e se
escondia sob a mesa. Abaixou-se para pegá-lo e quando leu
seu nome no envelope, as mãos lhe tremeram tanto que o
papel não parava de sacudir-se.
Com estupidez, olhou o reverso e ficou gelada ao ver o
selo do duque. Agitada, caminhou para a poltrona, sentou-se,
apoiou a carta sobre seus joelhos e começou a abri-la. Em
seu interior encontrou duas folhas.
“Para minha querida Beatrice, a mulher que amo com todo meu
coração.
Se estiver lendo esta missiva é porque, muito ao meu pesar, não
consegui finalizar a tarefa que me levou até Londres, mas não se sinta
culpada, era meu dever e como tal, terei morrido feliz. Quero que saiba que
te amo e que o breve tempo que passamos juntos desfrutei com intensidade.
Jamais pensei que uma mulher me roubaria o coração, mas você o fez.
Acredito que o conseguiu no dia em que abri os olhos e encontrei-a ao meu
lado, cuidando-me, olhando minha fealdade com preocupação. Nesse
momento, uma estranha emoção que não soube definir até que permaneceu
ao meu lado brotou sem que eu pudesse evitá-lo. Não sei se o sentimento é
mútuo. Tenho a esperança de que seja assim. Comecei a acreditar quando
te dava o primeiro beijo e não me rejeitou. Quando te olhava e não apartava
seus olhos verdes dos meus. Quando seu corpo se debilitava entre meus
braços. Se minhas divagações não forem corretas, peço-te mil desculpas.
Como meu amor é real, decidi fazer justiça e arrumar o passado. Não
sinta piedade por mim, eu não a tenho. Não se pode ter tal caridade a um
ser desprezível, uma pessoa que não resolveu um tema tão horrendo por ser
vaidoso. Mas retificar é de sábios e eu, embora não o seja, quero desculpar
meu engano. Recordará a conversação que mantive com Roger e Federith.
Bem, eles sabiam quem você era. Perdoe-me por não me haver dado conta
de sua verdadeira identidade, apenas me fixei em ti. Agora me arrependo
disso. Possivelmente, se o tivesse feito, nada daquilo te teria acontecido.
Não chore, meu amor. Sei que o está fazendo e me entristece saber
que suas lágrimas percorrem seu belo rosto por minha culpa. Quero que
saiba que não parti de seu lado porque não desejo permanecer contigo o
resto da minha vida. Não é assim. Afastei-me de ti porque quero fazer
aquele bastardo pagar todo o dano que te fez. Não. Não pude esquecer isso
e viver como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele te desonrou,
humilhou-te e te fez abandonar seu lar para viver as penúrias às quais foi
exposta.
Tenho que restabelecer sua honra. Tenho que recuperar seu posto na
sociedade. E é meu dever fazer justiça à mulher que amo. Por último, quero
que saiba, que embora não volte a te beijar nem te abraçar, estarei ao seu
lado protegendo-a como tantas vezes te jurei, quando jazia ferida
gravemente em meu quarto. Por isso, tem outra carta. É uma réplica de meu
próprio punho e letra. Duas estão em posse dos únicos amigos que tive e a
outra a tem o senhor Gibbs, meu administrador. Quero te demonstrar o
muito que te quero e quão afortunado fui ao seu lado. Desejo que saiba, que
embora tenha morrido no duelo, tê-lo-ei feito feliz porque meus últimos
pensamentos serão para ti.
Amo-te e te amarei sempre.
William.”
A carta escorregou de suas mãos sem que ela
percebesse enquanto sua mente se paralisava, até o ponto de
não ser capaz de pensar com clareza ou emitir um gemido.
Sentia as lágrimas lhe queimar a pele e seu coração romper-
se como o cristal e o único que atinou a pensar era que elas
deviam sabê-lo. Não havia nada em Haddon Hall que elas não
soubessem.
― Senhora Stone! Senhora Stone! ― Gritou com força.
Levantou-se de seu assento, inclinou-se para segurar a carta
e não teve forças para levantar-se de novo. ― Senhora Stone!
― O que acontece? ― Perguntou a anciã depois de abrir
a porta com tanta impetuosidade que golpeou a parede.
― Sabia ― disse apertando os dentes e olhando ao chão.
― Todos sabiam!
― Minha querida menina… ― murmurou sem mover-se
da entrada. Segurou-se as mãos e controlou o desejo de
correr para ela para abraçá-la.
― Todos sabiam! Todos! ― Gritou com voz rouca. ― E
ninguém foi capaz de freá-lo ― chorou com ferocidade. ―
Ninguém!
― Ninguém pode ir contra a vontade de seu senhor… ―
sussurrou a mulher em meio ao seu pranto.
― Maldita seja a honra! Maldita seja a dignidade! Acaso
não entendem que ele morrerá? ― Clamou tão forte que notou
como se danificavam suas cordas vocais. ― Morrerá!
― Não se pode fazer nada... ― respondeu a anciã.
― Não se pode fazer nada?! ― Repetiu com tanta ira que
seu corpo se sacudiu. ― Se Deus é misericordioso, estarei
gerando um filho do duque e você me diz que… não se pode
fazer nada para impedir que o matem!
― OH, santo Deus! ― Exclamou Hanna levando as mãos
para o rosto.
― É claro que se pode tentar fazer algo. ― A voz serena
de Lorinne surgiu atrás da anciã. ― Sua Excelência partiu na
carruagem do senhor Cooper e deixou a sua nas cavalariças.
Mathias poderia prepará-lo e nos conduzir até Londres ―
sugeriu a criada.
― Bobagens! ― Gritou Hanna. ― Como pretende que a
senhorita Lowell parta daqui?
― Preparem ― ordenou Beatrice. Aquela opção lhe
pareceu à única alternativa possível.
― Senhorita… ― murmurou Hanna.
― Diga ao Mathias que partiremos nesta mesma noite.
Se não descansarmos, poderemos chegar a Londres a tempo
para impedir esta loucura.
― É claro! ― Respondeu Lorinne antes de pôr-se a
correr.
― É uma loucura, pequena ― indicou a anciã imóvel.
― O que faria você para salvar a vida do homem que
ama e possível pai de seu filho?
Sem nada mais que acrescentar, Beatrice saiu da
biblioteca e se dirigiu ao seu dormitório. Não tinha muito que
preparar, mas a intimidade de seu quarto lhe viria bem para
repensar sobre tudo o que tinha acontecido.
XXVI

― Que horas são? ― William apoiou a cabeça nas


paredes almofadadas da carruagem enquanto observava pela
janela como uma tênue chuva caía sem cessar. Tinha
chegado a Londres, à cidade sem sol, ao ambiente úmido, à
frieza que desprendiam as edificações.
― É a hora do chá ― respondeu Federith depois de olhar
seu relógio de bolso.
― Qual é seu plano? Percorrer as ruas em sua busca? ―
Perguntou Roger, que tinha se acostumado a estirar as
pernas sobre o assento de frente.
― Primeiro tenho o dever de falar com seus pais.
Precisam saber que sua filha ainda vive e que durante todo
este tempo esteve sob meu cuidado ― esclareceu com
serenidade.
― E logo lhes pedirá perdão? Ou lhes informará que está
apaixonado por sua filha e que morrerá por esse amor? ―
Questionou Federith zangado.
― O barão deve conhecer a verdade ― confirmou William
com o cenho franzido.
― Mon dieu! C’est très romantique!(8) Um homem que
luta pelo amor de sua futura esposa pondo sua própria vida
em perigo. Se os barões não lhe derem seu consentimento
para se casar com ela, perderam o julgamento ― assegurou
Roger com aparente diversão. Baixou os pés, olhou ao duque
de lado e bateu várias vezes a coxa esquerda para acalmar a
dor que tentava ocultar.
― Quero que me faça um favor ― expôs o duque olhando
a quem tocava sua perna. ― Deve averiguar onde podemos
encontrar ao Rabbitwood.
― Onde crê que estará um homem inocente e respeitoso
como ele numa sexta-feira à tarde? ― Argumentou ao mesmo
tempo em que arqueava as sobrancelhas. Ao ver que William
estava tão absorto em seus pensamentos que não lhe tinha
entendido exclamou: ― No clube! Que melhor lugar para
desfrutar de um bom jogo, bom uísque e a aparição de
maridos endemoninhados?
― Averigua-o ― disse sem prestar atenção às zombarias
de Roger. ― Se estiver certo, depois da minha visita aos
Montblanc, dirigirei-me para lá e lhe reclamarei meu duelo ―
indicou antes de olhar de novo as ruas e refletir o que estaria
fazendo Beatrice naqueles momentos.
Embora a senhora Stone lhe prometesse que a teria
muito entretida lhe ensinando a cozinhar, não estava muito
seguro disso. Suspeitava que a jovem em qualquer momento

8 — Meu Deus! É muito romântico!


abandonasse aqueles trabalhos e inventaria outras novas.
Desenhou um pequeno sorriso ao recordar a pose que punha
quando se zangava, aquelas dobras divertidas que lhe
apareciam na testa, àqueles lábios apertados como se fosse
uma menina travessa e sem esquecer suas mãos na cintura
para acentuar seu aborrecimento. Sentia falta dela. Apesar de
ter passado tão só uns dias afastado dela, sentia saudades
mais do que supunha. Imaginou-a de novo em sua cama e
disse que jamais tinha visto um anjo dormir com tanta
tranquilidade.
Uma imensa angústia lhe percorreu o peito. Não voltaria
a vê-la. Não voltaria a beijar aqueles lábios apertados nem
sentiria sua pele ardente depois de ser amada. Mas deveria
fazer o correto. Tinha que liberá-la de seu passado e deixá-la
retornar à vida que abandonou.
― Não pensou em deixar nas mãos da justiça o
incidente?
A intervenção de Federith rompeu o estranho silêncio
que se produziu entre os três.
Ninguém até aquele momento se atreveu a lhe oferecer
essa alternativa, mas para Cooper, William era seu irmão e
por isso queria que não pusesse em perigo sua vida. No
passado salvou-se estando em plenas faculdades, mas agora,
com uma mão imprestável e sem haver tocado em uma arma
desde a última vez, suas possibilidades de sobreviver eram
escassas.
― Justiça? ― Inquiriu o duque apartando o olhar da
janela e dirigindo-a ao seu amigo. ― Diz-o a sério? Acaso não
recorda minha imparcialidade quando o barão veio à minha
casa rogando por esclarecer o caso de sua filha?
― Calma, cavalheiros ― interrompeu Roger para
tranquilizar seus amigos. Não queria que a alteração que
viviam nesses instantes produzisse uma disputa tendo em
conta que William estava a ponto de enfrentar-se. ― Federith,
acaso não ficou clara sua decisão antes de partir? William é
um homem apaixonado e é lógico que queira resolver o tema
com venerabilidade.
― Está louco? Por acaso essa viagem à França
perturbou sua mente? ― Respondeu o aludido. ― Pode
morrer! Entende-me? Morrer!
― E morrerei feliz sabendo que cumpri com meu dever ―
pronunciou William antes de inundar-se em outro comprido
silêncio.
Quando escutaram a voz do cocheiro fazendo parar aos
cavalos, os três se olharam e, sem dizer nenhuma palavra,
assentiram. O primeiro em sair foi Federith. Uma vez que
pisou no chão se arrumou a capa, colocou-se o chapéu e deu
uns passos adiante para que os outros saíssem com
facilidade. Seguiu-lhe William, que foi atendido por Brandon
antes que seus pés abandonassem a pequena escada
metalizada. Finalmente apareceu Roger. Sua atitude
despreocupada chamou a atenção de seus amigos. Ao
descobrir o olhar que ambos lhe ofereciam sorriu e disse:
― Se me desculparem, tenho que ir atrás de um vilão.
Conforme dizem, os que são da mesma índole se encontram
com facilidade.
― Não quis expressar isso ao te pedir que procurasse…
― começou a dizer William.
― Não o disse você, digo-o eu. Enfim, ver-nos-emo
dentro de uma hora. Se quando terminarem não me acharem
no interior da carruagem, imagina onde me encontrarão. ―
Estendeu sua capa pelos ombros, colocou-se o chapéu e se
dirigiu para o clube de cavalheiros Reform.
Com o mesmo ritmo ao andar, os dois amigos
caminharam para a porta da residência do barão Montblanc.
Era uma pequena casa de duas plantas com um jardim ao
seu redor. A William pareceu um lar muito singelo para um
barão, mas ao momento recordou que Federith, na noite
antes do duelo e na conversação que mantiveram sobre
Beatrice, explicou que a família Lowell mal passava dois
meses ao ano nesse lugar. Então, justo nesse momento
sopesou algo que não tinha tido em conta durante a viagem.
Seria a época em que eles desfrutavam de sua vida em
Londres? Rezando para que fosse assim e que nessa mesma
noite terminasse seu calvário, adiantou-se a Federith, esticou
a mão para a aldrava de bronze e a golpeou três vezes.
Imediatamente, a porta se abriu e lhes recebeu um criado
mais idoso que Brandon.
― Boa tarde, cavalheiros – saudou-lhes. ― O que
desejam?
― Boa tarde, sou o duque de Rutland e o cavalheiro que
me acompanha é lorde Cooper. Pode perguntar ao barão se é
tão amável de nos conceder uma entrevista?
― Sua Excelência… ― disse o criado assombrado. Fez
uma reverência e lhes cedeu o passo para o interior da
moradia. ― Se esperarem uns instantes, informarei ao barão.
― É claro. ― William ofereceu o chapéu e a capa a
Brandon enquanto observava com curiosidade o lugar onde
tinha vivido sua amada Beatrice. Estava a ponto de comentar
com Federith a calidez que desprendia um lugar tão singelo
quando uma porta se abriu e apareceu o mordomo.
― O barão e a baronesa lhes receberão na saleta –
informou-lhes.
Federith tirou a capa e o chapéu para oferecer-lhe ao
criado. Logo colocou sua mão esquerda sobre o ombro de
William e o apertou.
― Vamos…
Com passo firme ambos entraram na habitação. Igual ao
saguão, a sala era um lugar com móveis e equipamento muito
singelos. Mas William não se centrou no mobiliário, mas sim
na atitude carinhosa com a qual o casal se olhou antes que
ele desse dois passos para o interior. Esse era o olhar que
queria ver o resto de sua vida no rosto de Beatrice, uma
mescla de amor e ternura.
― Boa tarde. Minha esposa e eu estamos agradecidos
por sua presença em nosso humilde lar ― esclareceu. A
baronesa se levantou da poltrona e fez uma pequena
reverência, o barão se aproximou de ambos e lhes estendeu a
mão. ― Se forem tão amáveis de tomar assento.
― Se não lhe importar, ficarei de pé ― indicou William
com voz serena. Olhou de esguelha à baronesa e achou uma
grande semelhança com sua amada Beatrice. Ambas as
mulheres tinham o cabelo escuro, uma figura pequena e os
olhos mais verdes que jamais tinha contemplado.
― Como desejar ― respondeu inquieto o barão.
― Dispunhamo-nos a tomar o chá, querem nos
acompanhar? ― Perguntou Elisabeth com nervosismo.
A presença do homem que tinha rejeitado de forma
categórica a inocência de sua filha não lhe resultava grata,
mas seu marido a chamou à ordem quando se negou a
recebê-lo. Assim em quão único pensava era que motivo lhe
tinha conduzido até eles e quando partiria.
― Não, obrigado ― respondeu Federith ao ver que seu
amigo não respondia.
― Bom, milord, a que se deve sua visita? ― Perguntou o
senhor Lowell.
― Em primeiro lugar, quero lhes pedir perdão por não
ter atendido seus rogos no caso de sua filha ― começou a
explicar após respirar profundamente. ― Comportei-me como
um vilão, um ser cruel, um miserável...
― Obrigada por suas palavras, ― interrompeu-lhe a
baronesa ― mas sua desculpa chega um ano tarde.
― Elisabeth! ― Recriminou-lhe o barão.
― Tem você toda a razão, mas lhe rogo que me escute ―
prosseguiu o duque enquanto confirmava que, não só tinha
herdado seu físico, mas sim também seu temperamento. ― A
senhorita Lowell está viva e durante este tempo viveu sob
meus cuidados.
― Como diz? ― O barão, desconcertado ao escutar as
palavras sobre sua querida filha, estendeu a mão para sua
mulher. Ela se levantou com rapidez, segurou-lhe para que
não caísse e o conduziu até a poltrona.
― Faz aproximadamente quatro meses tive um grave
acidente em minha propriedade de Derbyshire. Uma jovem
que se fazia chamar Beatrice Brown foi quem me salvou a
vida. A moça vivia no refúgio de caça que possuo junto ao rio
Wye e como pagamento à sua piedade, rogou-me que a
deixasse viver ali. Não lhe neguei isso e mantive minha
promessa até que foi atacada por uma manada de lobos.
Depois de encontrá-la à beira da morte, decidi levá-la para
minha casa até que sarasse. Com o tempo, e após conhecê-la,
meus sentimentos para com ela foram... mudando. ― Tentou
manter aquela calma que tinha tido até o momento.
Entretanto, agora vinha a parte mais dura para ele, mostrar
suas emoções aos outros.
― Está nos dizendo que manteve sob seu teto a nossa
filha e que não foi capaz de nos informar até agora? ― Elevou
sua voz a baronesa.
― Ele não sabia quem era ela, senhora ― interveio
Federith. ― O duque não a reconheceu e não tinha motivos
para duvidar sobre sua identidade. Fui eu quem lhe informou
do verdadeiro nome da jovem.
― Onde está minha filha? ― Perguntou o barão
vigorosamente, segurou a mão de sua esposa e, graças à sua
ajuda, pôde levantar-se de novo.
― Em Haddon Hall ― respondeu William.
― O que faz você aqui e minha filha lá? ― Grunhiu
dando uns passos para o duque.
― Não queria que ela sofresse e acreditei que devia
mantê-la à margem disto. Além disso, Beatrice não sabe o
verdadeiro motivo pelo qual voltei para Londres.
― E qual é esse motivo, milord? ― Quis saber a baronesa
sentindo um nó na garganta. Que o duque se referisse à sua
filha com seu nome de batismo e que dissesse que seus
sentimentos para ela tinham mudado, faziam-na imaginar-se
algo de tudo impensável.
― Recuperar a honra de Beatrice ― disse com firmeza
William.
― Por que quer fazer tal coisa? ― Elisabeth o olhou sem
piscar. Ela acreditava saber a resposta, mas desejava escutar
de sua boca. Precisava ouvir como a dor que lhes provocou
no passado, tanto a ela como a seu marido, agora açoitava
seu frio coração.
― Porque a amo ― respondeu sem duvidá-lo.
― O que pretende fazer? ― Depois de escutar as palavras
do duque, o barão relaxou seu corpo, caminhou para sua
esposa e entrelaçou suas mãos com as dela.
― Esta noite desafiarei ao conde de Rabbitwood a um
duelo à morte ― indicou enquanto apertava com força a
mandíbula.
― Acredita que aceitará? ― Prosseguiu falando o barão.
― Acredita que aquele canalha consentirá em pôr em risco
sua vida para demonstrar que sua história é certa?
― É claro. Apesar de minhas cicatrizes sigo sendo o
duque de Rutland e se Rabitwood não deseja ficar como o
covarde que em realidade é, não poderá negar-se.
― E foi capaz de olhar a minha filha aos olhos e não lhe
dizer a verdade? ― Inquiriu zangada Elisabeth. Se estavesse
certa, e poucas vezes se equivocava, esse homem não só
amava a sua filha, mas sim ela também amava a ele.
― Foi o mais correto ― sussurrou William olhando ao
chão. ― Não desejo… não posso permitir que…
― Porque também lhe ama, não é? ― Disse Elisabeth
após soltar com força o ar dos pulmões.
― Quando pretende que se celebre? ― Interveio o senhor
Lowell ao estar seguro que, se sua mulher seguia falando, ao
final seria ela quem apertaria o gatilho.
― Amanhã à alvorada, em Hyde Park. ― William olhou
ao barão mostrando mais segurança em si mesmo que
nunca.
― Bem, se aquele homem aceitar seu desafio, faça-me
saber. Ali estarei. Agora, se nos desculpar, minha mulher e
eu precisamos ficar sozinhos ― comentou o barão com
serenidade.
― É claro. Boas…
― Quero que me escute antes de sair desta habitação ―
falou Elizabeth apesar dos dramalhões de seu marido. ―
Pergunte-se o que deseja uma mulher e não o que deseja um
homem. Talvez, se lhe houvesse dito a verdade, teria
descoberto que não há nada mais importante como ter ao seu
lado a pessoa que ama.
― Elisabeth!
― Acredito, baronesa, que minha eleição foi à correta ―
respondeu William. Fez uma pequena inclinação com a
cabeça, golpeou suas botas e partiu seguido por Federith.
Nenhum dos dois fez alusão às palavras da senhora
Lowell, embora ambos não cessassem de meditar sobre isso.
Quando abandonaram a residência Montblanc, William olhou
a ambos os lados da rua procurando Roger, este não se
encontrava pelos arredores nem tampouco onde lhes havia
dito. Em silêncio subiram à carruagem e o cocheiro agitou os
cavalos.
O clube não tinha mudado nada em sua ausência.
Seguiam as mesmas mesas, as mesmas cadeiras e inclusive
os mesmos homens jogando cartas e bebendo o ansiado licor.
Federith lhe tinha advertido que sua presença naquele lugar
despertaria certo interesse, mas a William já não importava o
que as pessoas murmurassem atrás de seu passo. Tinha algo
que fazer e queria terminá-lo o quanto antes.
Ignorou as saudações daqueles que antes do duelo o
idolatravam e depois lhe desprezaram. Caminhou com
integridade pelo corredor central até parar-se em frente à
porta em que deveria encontrar-se com seu oponente. Sua ira
era desmensurada, seu coração pulsava sem freio e lhe
tremia o corpo. Agora entendia por que os doídos maridos
que o desafiaram se alteravam ante sua presença, enfrentar-
se com a pessoa que fere sua alma sem escrúpulos não
proporciona tranquilidade alguma.
Com decisão abriu a porta e acessou ao interior. Mal
podia ver com claridade, já que a fumaça cobria a habitação,
mas quando seus olhos se acostumaram à escuridão,
percebeu cinco figuras ao redor da mesa. Roger ao lhe ver,
sorriu. Ele tirara o casaco e fumava um dos charutos que
tanto gostava. Tentando manter a calma, William se
aproximou da mesa.
― Veio bem a tempo, William. O conde de Rabbitwood
estava a ponto de me contar aquela história que narra sem
parar sobre a ardilosa filha do barão Montblanc, não é assim?
― Olhou ao conde e desenhou um grande sorriso.
― Rutland! ― Exclamou com alegria o conde quando
descobriu a figura do duque ao seu lado. ― Quanto tempo! ―
Levantou-se para estender sua mão, mas a apartou com
rapidez ao sentir um estranho ódio para sua pessoa.
― É um maldito bastardo, um descarado e um violador
― grunhiu William sem mover-se.
― O que está dizendo? ― Perguntou entre risadas. ―
Tanto lhe afetou o disparo que não me recorda? ― Perguntou
dirigindo-se ao Roger, que seguia sentado na cadeira com
atitude aparentemente serena.
― Eu o desafio! ― Clamou William atirando a luva sobre
a mesa.
― Pela honra de quem? ― Continuou jocoso.
― Pela honra da senhorita Lowell, filha do barão
Montblanc ― gritou com força para que todos os presentes o
escutassem.
― Por uma morta? Quer morrer por alguém que já não
respira? ― Sua diversão era tal que não podia deixar de
mostrar um enorme sorriso. ― Meu Deus! ― Exclamou em
tom divertido. ― Que pavor! Um duelo com um incapaz!
Aceito-o? O que fariam vocês, cavalheiros? Recolho essa luva?
Possivelmente seja a da sua mão esquerda e como podem
apreciar, já não lhe faz falta. ― Levantou as sobrancelhas e
soltou uma sonora gargalhada.
De repente a mesa saiu voando, pulverizando pelo chão
tudo o que havia sobre ela. O que aconteceu depois ocorreu
tão rápido que ninguém foi capaz de impedi-lo. Roger se
levantou de seu assento, segurou o pescoço do conde e o
apertou contra a parede. Nesse momento todos os cavalheiros
menos um se largaram dali. O único que ficou sentado foi o
jovem senhor Pearson.
― Reza ao seu Deus, ― grunhiu Roger no ouvido do
conde ― porque se meu amigo não te matar, farei-o eu. ― E
depois de ver como o rosto do miserável começava a ficar
violáceo pela falta de oxigênio, soltou-o.
Rabbitwood respirou com dificuldade durante uns
instantes. Seus olhos, acreditou-se sairiam disparados de
suas órbitas, começavam a encher-se de lágrimas. Quando se
recuperou, ergueu-se, esticou a camisa com força e olhou
com receio ao duque. Era conhecida sua destreza ao
disparar, mas agora não tinha nada que temer. O homem que
o desafiava não era o mesmo que conheceu no passado.
Depois de meditar sobre isso, voltou a desenhar um sorriso
em seu rosto.
― Está bem. Aceito seu duelo. Imagino que não lhe fará
falta saber quando e onde, não é?
― Amanhã, à alvorada, em Hyde Park e não sorria tanto,
o duelo será à morte ― disse William com decisão.
― Como desejar, mas quero que saiba uma coisa,
Rutland... ― comentou reticente enquanto agarrava a jaqueta
de seu traje ― quando cair no chão morto recorde que o
adverti.
Roger se equilibrou sobre Rabbitwood, mas desta vez
Federith esteve atento e impediu que lhe agredisse agarrando
com força o torso de seu amigo. Enquanto ambos os homens
discutiam se tinha sido acertada ou não a intervenção,
William observava como o desafiado caminhava sem mostrar
inquietação. Era a mesma atitude que ele tinha exibido no
passado. Sem preocupação. Sem tristeza pelo dano causado.
Sem arrependimento. Entretanto, o destino lhe havia
devolvido todas e cada uma de suas más ações e o rol tinha
mudado, agora não era o desafiado, mas sim o desafiador.

― Desperte ― sussurrou Lorinne à Beatrice. ―


Chegamos.
A moça apartou com rapidez a manta que a resguardava
do frio e saiu da carruagem sem pensar duas vezes. Em
várias ocasiões esteve a ponto de perder o equilíbrio. Não
tinha descansado durante a viagem, mal tinha comido e
estava acostumada a dormir quando o esgotamento era muito
maior que sua tenacidade. Durante os dias que passou no
interior da carruagem rezava a Deus para que acontecesse
algo que impedisse o duelo: uma tormenta, que o bastardo do
Rabbitwood não o aceitasse, e inclusive teria perdoado que
Roger, porque Federith seria incapaz, embebedasse William
até o ponto de que não pudesse sustentar-se em pé. Qualquer
coisa lhe valia se evitasse a terrível desgraça.
Ao colocar-se em frente à porta da propriedade, olhou ao
seu redor e não sentiu como se voltasse para casa, seu
verdadeiro lar se encontrava onde William estivesse. Agarrou
a aldrava e não cessou de golpear até que o mordomo lhe
abriu a porta.
― Senhorita! OH, santo céu! A senhorita está em casa! A
senhorita retornou! ― Exclamou o ancião movendo-se de um
lado a outro do saguão para que todo mundo pudesse lhe
escutar.
De repente, a entrada do salão onde estavam
acostumados a permanecer os três quando não tinham
visitas se abriu e apareceu sua mãe. Beatrice correu para ela
quando Elisabeth estendeu seus braços.
― Minha menina! Minha pequena menina! ― Exclamou a
mãe depois de romper a chorar.
― Mãe! Mãe! Não imagina quanto senti sua falta!
― OH, querida! Já não terá que partir de novo. Tudo
mudará… tudo mudará… ― sussurrava-lhe sem deixar de lhe
beijar as bochechas e as mãos.
― Tem-no feito! Aquele maldito conde aceitou o duelo! ―
Exclamou apartando-se da calidez que lhe ofereciam as mãos
de sua mãe. Girou-se sobre si mesma, olhou para o chão e
prosseguiu: ― Não cheguei a tempo? Celebrou-se o duelo?
― Não ― respondeu Elisabeth caminhando para ela.
― Quando será? Onde? Mãe, o suplico! Não deixe que
morra! Amo-o! ― Exclamou entre intensos soluços.
― Seu pai partiu faz dez minutos. Não vai em
carruagem, mas sim andando. Um dos amigos do duque veio
por ele. Conforme escutei, o duelo se celebrará em Hyde Park.
Se partir agora, possivelmente chegue a tempo.
― Mathias! ― Gritou ao moço. ― Sabe chegar a Hyde
Park?
― Não, senhorita Lowell. Jamais estive em Londres ―
respondeu segurando a boina e apertando-a entre suas mãos.
― Eu sim! ― Exclamou Lorinne.
― Você? ― Perguntou Beatrice assombrada.
― É uma longa história, senhorita Lowell. Possivelmente,
quando retornarmos a Haddon Hall a conte ― disse a donzela
ao mesmo tempo em que corriam para o exterior da casa.
― Posso lhes acompanhar? ― Perguntou com certa
inquietação Elisabeth.
― Vamos, mamãe! Necessitarei de sua ajuda se por
acaso não me derem atenção! ― Gritou Beatrice abrindo a
porta da carruagem.
Lorinne saltou sobre o assento para segurar as rédeas e,
quando escutou que a porta se fechava, tocou com tanta
força aos corcéis que Beatrice e sua mãe saltaram no assento
durante o breve trajeto. Elisabeth entrelaçou suas mãos com
as de sua filha e juntas começaram a rezar. Não deixaram de
fazê-lo até que escutaram o grunhido que empregou a criada
para fazer frear aos cavalos.
― Corre! ― Gritou-lhe a mãe girando a manivela com
ímpeto.
A moça saltou sobre o chão, segurou-se o vestido e
correu para o interior do parque. Quanto mais perto estava
do lugar onde se supunha serem celebrados os duelos, sua
respiração se voltava mais entrecortada, o pulso aumentava a
um ritmo desumano e começavam a lhe tremer as pernas. De
repente escutou uma voz e, sem duvidá-lo se dirigiu para ela,
mas toda sua esperança se esfumou em um golpe quando
observou a horrorosa cena.
Suas lágrimas começaram a percorrer seu rosto de novo
e seu coração deixou de pulsar. William dava as costas ao
Rabbitwood. Em sua mão elevava uma arma e parecia
murmurar algo. Beatrice recordou as últimas frases da carta
que lhe escreveu: «Quero que saiba, que embora tenha
morrido no duelo, terei morrido feliz porque meus últimos
pensamentos serão para ti». Estaria pensando nela? Quis
gritar para que freassem aquela loucura, mas não lhe brotava
a voz. Era incapaz de dizer algo. Ouviu como alguém contava.
― Dez, nove, oito, sete…
Ajoelhou-se. Levou as palmas para o rosto e o cobriu
com elas. Não queria ver como morria o homem que amava.
Não queria ver como dava sua vida por ela. Não queria…
O som de um só disparo provocou que vários bandos de
pássaros elevassem seu vôo. Beatrice seguia chorando,
rezando pela alma de William.
― Um médico! ― Escutou que alguém gritou. ― Está
vivo? Segue vivo?
De repente, os passos de um grupo de pessoas se
ouviram aproximar-se. A moça era incapaz de olhar para
aquele lugar. Não queria ver o corpo de William estendido
sobre o chão. Os passos cessaram. Depois houve silêncio e
logo só ouviu um caminhar.
― Minha pequena Beatrice… ― murmurou William ao
seu lado.
― William! William! ― Exclamou com alegria a moça
enquanto se levantava e saltava sobre ele.
― Meu amor, o que faz aqui? Por que não ficou em casa?
― Depositou-a com cuidado no chão. Deixou que lhe
abraçasse a cintura e colocasse a cabeça em seu peito.
― Por que acredita que estou aqui, William? ― Soluçou
enquanto levantava o rosto para o homem. ― Porque te amo.
Amo-te mais que a minha própria vida, honra ou o que esta
maldita sociedade pense. Se tivesse te acontecido algo, eu…
eu… teria morrido contigo, entende? Haveria mor…! ― A boca
de William se chocou com a de Beatrice ao mesmo tempo em
que a atraía com força para seu corpo.
Beijou-a durante tanto tempo que ambos ficaram sem
fôlego.
Ali, diante de todos os presentes, mostraram seu amor.
As pessoas que os olhavam foram testemunhas de como dois
corações pulsavam em harmônia, de como dois corpos
tremiam ao permanecer unidos e de como, dois seres a quem
seu passado fez manter
manter-se
se em solidão, a vida lhes dava uma
segunda oportunidade para ser
serem felizes e poderem
em amar.

Você também pode gostar