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ROSA, João Guimarães. “Campo Geral”. In. Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2010.
A novela Campo Geral, que está inclusa no livro Corpo de Baile de João
Guimarães Rosa juntamente com outras 6 novelas, foi publicada pela primeira vez
em 1956. Apesar de ser narrada em terceira pessoa, centra-se na perspectiva de
Miguilim, um menino de oito anos que vive num lugar remoto, o Mutum, com sua
família, pai, mãe, irmãos, avó materna e mais algumas pessoas que trabalhavam
com o pai. A princípio o autor apresenta-nos esse, que é o protagonista da novela e,
aos sete anos de idade, viaja a cavalo até o Sucurijú com o tio Terêz para se
crismar. Nesta viagem o garoto faz reflexões em relação ao Mutum no sentido de
que alguma vez ouvira um homem dizer que aquele era um lugar bonito, no entanto,
sua mãe não o achava. Depois de dias, no retorno para casa Miguilim fica eufórico
para dar a boa notícia à mãe, que "o Mutum era lugar bonito", porém, ela não dá
importância, mesmo por que o que mais queria era descobrir o que existia atrás dos
morros que encobriam sua visão de mundo.
Vista como uma prosa lírica, a narrativa revela a sensibilidade emocional de
Miguilim. A novela é povoada pelas descobertas, alegrias e tristezas desse, que, por
sua vez tinha uma relação conflituosa com o seu pai, um homem rústico, que o
maltratava por ter uma personalidade distinta, diferentemente de sua relação com tio
Têrez, pelo qual sentia admiração. Afeição maior Miguilim sentia pelo irmão mais
novo, o Dito, percebe-se que metaforicamente os dois se completavam por meio da
sensibilidade de um e o discernimento do outro, por exemplo, quando em seu leito,
Dito pede a Miguilim que conte a estória da cadela Cuca Pingo-de-ouro, pois esse
não sabia contar estórias como seu irmão, também nota-se que na passagem em
que Luisaltino é assassinado por Béro, Miguilim chega à conclusão que se Dito
estivesse presente isso não teria acontecido. Com a morte do irmão, o menino vê
seu mundo abalado, devido à dependência que tinha em relação ao mesmo, porém
só nesse momento percebe-se uma libertação do personagem, pois a partir daí, ele
desenvolve uma autonomia. Durante o enredo, há vários indícios de que o
personagem central tem limitações na visão o que só é comprovado ao final da
narrativa, quando usa os óculos – símbolo maior de um olhar novo e nítido sobre a
realidade.
A construção da narrativa dá-se de forma coerente quanto ao problema da
visão de Miguilim. No decorrer da história são apontados indícios de que o menino
possuía dificuldades em enxergar. É notável que Guimarães Rosa utilize o problema
da visão como estratégia da narrativa para representar as tensões as quais vivia
Miguilim. A criança vê a mata do Mutum de maneira obscura, sem definição, a ponto
de pôr-lhe medo. Essas percepções visuais são associadas ao estado de espírito do
personagem, que não percebendo sua condição míope procura relacioná-la aos
seus medos, como no caso da passagem na qual Miguilim ao brincar com Dito não
consegue enxergar bem o toco para derrubá-lo, associando esse fato ao conflito
vivido por ele sobre entregar ou não o bilhete enviado por tio Têrez para sua mãe.
Essa situação também era motivo para exemplificar o tratamento rude
dispensado pelo pai. Béro destratava Miguilim alegando que o mesmo não
enxergava onde pisava, vivia esbarrando, caindo nos buracos. Outro momento
importante é o período em que o menino estava ajudando o pai na roça, o mesmo
pediu que a criança observasse uma plantação brotando, mas Miguilim não pôde
enxergar. O vaqueiro Salúz também já havia pedido a Miguilim para observar
sabiázinho pardo, mas o menino insistia "Adonde? não estou enxergando”.
O clímax situa-se ao final da narrativa quando se aproximam dois homens a
cavalo que são recebidos por Miguilim, durante o diálogo o viajante doutor José
Lourenço percebe que a maneira como o menino olha para ele, encarando e
apertando os olhos dá indícios que este não é “limpo de vista”, o homem punha seus
óculos em Miguilim que imediatamente começa a observar as coisas ao seu redor e
pasmo percebe que com os óculos ele consegue enxergar de maneira nítida as
feições das pessoas e todas as outras coisas. A partir disso, tudo passa a ser
encantamento, Minguilim enxerga a grandiosidade que havia nas pequenas coisas,
tudo tão pequeno e tão grande ao mesmo tempo. O doutor José Lourenço dispôs-se
a ajudar o garoto, levá-lo para a cidade, dar-lhe uns óculos e oferecer-lhe estudos e,
consequentemente abertura para outras perspectivas. No dia seguinte, Miguilim
aceita a proposta do doutor e todos se preparam para a partida do menino, na
despedida, a mãe de Miguilim o encoraja a deixar o Mutum, afirmando que essa
viagem seria a luz dos olhos dele que só Deus tinha o poder de dar, eles se
abraçaram, deixando nesse abraço a esperança de dias melhores e um possível
reencontro não muito distante. Miguilim abraça a todos sentindo um misto de tristeza
e alegria. O menino, mesmo receoso, pede os óculos ao homem e os recoloca
buscando um olhar que guardasse cada detalhe do Mutum e daqueles que lá viviam,
principalmente da mãe, todos ficaram emocionados.
A narrativa de Guimarães Rosa no momento da despedida de Miguilim
evidenciou a simbologia dos óculos que ampliam a visão de mundo do garoto, que
antes enxergava o seu mundo de forma limitada devido à miopia, até então
desconhecida, e seu olhar restrito de paradigmas diversos. Os óculos trazem
transformação do sujeito, a concretização do amadurecimento que Miguilim vem
vivendo desde a morte do seu irmão, o Dito. Atordoado pela falta do irmão, Miguilim
percebe a necessidade de mudar de postura perante a vida e a partir disso vivencia
um rito de passagem. O trabalho braçal começa a fazer parte da sua rotina, a sua
relação com o pai que nunca fora harmoniosa fica mais conturbada à medida que
Miguilim demonstra os seus sentimentos a respeito dessa relação e também perante
outras pessoas revelando as angústias que permeiam seus pensamentos.
A partida de Miguilim do Mutum representa a transição da criança para a fase
adulta, amadurecida, agora com caminhos abertos para novas perspectivas de vida,
simbolizada pela solução do problema de vista com os óculos.
Rosa empenha-se em apresentar clara e detalhadamente as características
da trama. Transmitindo uma verossimilhança dos fatos, relaciona mínimos detalhes
corriqueiros e sentimentais. Esses efeitos são alcançados por técnicas narrativas
desenvolvidas pelo autor, que estão relacionadas à linguagem, a escolha quanto o
foco narrativo, à construção das personagens, entre outros. Por meio da linguagem
a atenção do leitor acentua-se e o enredo torna-se cada vez mais persuasivo. A
intenção em aproximar a oralidade da escrita permite que essa verossimilhança seja
alcançada, essa habilidade também possibilita que sensações experimentadas pelo
protagonista, como a ansiedade que o mesmo sentiu quando usou os óculos pela
primeira vez, sejam percebidas pelo leitor. Rosa utiliza de conectivos numa tentativa
de demonstrar gradativamente as emoções vividas pelo personagem.
A novela Campo Geral é uma narrativa lírica que traduz a habilidade de Rosa
recriando um mundo captado pela perspectiva de uma criança. O tema do livro é a
infância de um menino da roça, com suas descobertas da vida. Como autor (pós)-
modernista, Guimarães Rosa procurou ser original, imprimindo nessa criação
literária, um enunciativo para a configuração da afetividade, a sua marca pessoal, o
seu estilo único. Essa novela apresenta a essência básica dessa modalidade
literária de Rosa, que é o apego a uma imaginação contínua.
O leitor pode ser levado a associar o personagem ao narrador devido a
algumas situações em que a onisciência se assemelha a um fato pessoal,
diferentemente de um fato narrado, assim os personagens revelam alteridade,
acentuando a verossimilhança da narrativa.
É de grande auxílio, principalmente, àqueles que desenvolvem trabalhos
acadêmicos no campo da Literatura, pois a narrativa contém uma linguagem poética
e apaixonante nos seus recursos que provoca um efeito sobre seus leitores, agindo
ora como aprendizado, ora como impulso para pesquisa, a trama desenvolve um
caráter regionalista e funciona como possibilidade de humanizar o leitor por meio da
construção da personagem, independentemente de suas inferências culturais.