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l PRÊMIO NOBEL

NESTE LIVRO DE MEMÓRIAS, hoje um


clássico, Elie Wiesel narra os horrores
dos campos de concentração alemães
na Segunda Guerra Mundial. Ainda
criança, Wiesel sofreu as iniqüidades
impostas aos judeus. Viu de perto o mal
personificado, testemunhou a morte de
diversas pessoas, entre elas seus pais e
sua irmã mais nova.
Em seu discurso ao receber o Prêmio
Nobel da Paz em 1986, Wiesel descre-
veu aquele ambiente como um lugar
onde "homens e mulheres de todos os
cantos da Europa foram abruptamente
transformados em criaturas sem nome
e sem rosto, desesperadas pela mesma A noite
ração de pão ou sopa, temendo o
mesmo fim".
Depois da guerra, profundamente
marcado pelo que viveu, Wiesel encon-
trou apenas uma arma para evitar que
algo semelhante ocorresse novamente:
a memória. "Para nós, esquecer nunca
foi uma opção", disse. Começou, então,
sua nova jornada, em busca de uma
maneira de narrar o que viveu. "Não
foi fácil. Primeiro, por causa da lingua-
gem. Nossa linguagem falhava. Tería-
mos de inventar um novo vocabulário,
porque nossas próprias palavras eram
inadequadas, anêmicas."
Em A noite, escrito originalmente em
francês, Wiesel encontrou essa lingua-
gem: simples e direta, mas com enorme
poder de emocionar. A narrativa im-
pressiona, em primeiro lugu, pelo
caráter desumano da tentatiw deHider
de construir uma raça par• ~·-,,,_,_
sinistra metodologia que a~­
também impmaioaa,
A noite
Elie Wiesel

TRADUÇÃO
Irene Ernest Dias

3;i edição

~
Ediouro
Título original
La Nuit
Copyright © 1958 Les Éditions de Minuit
Copyright da tradução © 2001 Ediouro Publicações S.A.

Capa
Joca Terron

Imagem de capa
Trilhos ferroviários em Auschwitz-Birkenau
© 1996 Michael St. Maur Sheil/Corbis

Revisão
Rita Godoy
Pedro Soares

Produção editorial
Lucas Bandeira de Melo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO- NA-FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

W647n 3.ed.
Wiesel, Elie, 1928-
A noite / Elie Wiesel; tradução lrene Ernest Dias;
prefácio de François Mauriac. - 3.ed. - Rio de janeiro:
Ediouro, 2006

Tradução de: La nuit


ISBN 85-00-02026-1

1. Wiesel, Elie, 1928-. 2. Holocausto judeu (1939- 1945).


1. Dias, Irene Ernest. li. Título.

06-0615. CDD848
CDU 821.133.1-8

Todos os direitos reservados à Ediouro Publicações S.A. A memória de meus pais e de


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Prefácio

Jornalistas estrangeiros procuram-me com freqüência. Eu os


temo, dividido entre o desejo de revelar todo o meu pensamento
e o receio de dar armas a um interlocutor cujos sentimentos em
relação à França não conheço. Nesses encontros, nunca me esqueço
de desconfiar.
Naquela manhã, o jovem israelense que me entrevistava para
um jornal de Te! Aviv me inspirou desde o início uma simpatia da
qual não precisei me proteger por muito tempo, pois nossa conversa
rapidamente tomou um rumo pessoal. Acabei evocando lembran-
ças dos tempos da ocupação. Nem sempre são as circunstâncias nas
quais estamos diretamente envolvidos as que mais nos afetam. Con-
fiei a meu jovem visitante que nenhuma visão daqueles anos som-
brios me marcou tanto quanto aqueles vagões cheios de crianças
judias, na estação de Austerlitz... No entanto, não os vi com meus
próprios olhos, mas minha mulher os descreveu para mim, ainda
tomada pelo horror que sentira. Ignorávamos, então, tudo sobre os
métodos nazistas de exterminação. E quem poderia imaginá-los?
Mas aqueles cordeiros arrancados da mãe, aquilo já ia além de qual-
quer imaginação. Naquele dia, creio ter me aproximado pela pri-
meira vez do mistério de iniqüidade cuja revelação terá marcado o
fim de uma era e o início de outra. O sonho concebido pelo homem
do Ocidente no século XVIII - cuja aurora ele acreditou presenciar
em 1789 e até 2 de agosto de 1914 se fortaleceu com o progresso das
luzes, das descobertas da ciência - acabou de se dissipar para mim
diante daqueles vagões lotados de meninos, e no entanto eu estava
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A NOITE 9

a mil léguas de pensar que eles iam abastecer a câmara de gás e o sua irmã e sua mãe serão lançadas depois de outras milhares de pes-
crematório.
soas: "Nunca me esquecerei daquela noite, a primeira noite de cam-
Foi o que precisei confiar àquele jornalista, e como eu suspirei: po, que fez de minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada.
"Quantas vezes pensei naquelas crianças!': ele me disse: "Eu sou Nunca me esquecerei daquela fumaça. Nunca me esquecerei dos
um deles." Ele era um deles! Ele vira desaparecerem sua mãe, uma rostos das crianças cujos corpos eu vi se transformarem em volutas
irmã mais nova adorada e todos os seus, menos o pai, no forno sob um céu azul e mudo. Nunca me esquecerei daquelas chamas que
alimentado por criaturas vivas. Quanto ao pai, teria de assistir a seu consumiram minha fé para sempre. Nunca me esquecerei daquele
martírio, dia após dia, à sua agonia e à sua morte. Que morte! Este silêncio noturno que me privou por toda a eternidade do desejo de
livro relata suas circunstâncias - cabe aos leitores, que deveriam ser viver. Nunca me esquecerei daqueles momentos que assassinaram
tantos quantos os do diário de Anne Frank, descobri-las - e o mila- meu Deus e minha alma e meus sonhos, que se tornaram deserto.
gre pelo qual a própria criança delas escapou. Nunca me esquecerei daquilo, mesmo que eu seja condenado a vi-
Mas o que afirmo é que este testemunho, que surge depois de ver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca:'
tantos outros e descreve uma abominação que pensávamos já co- Entendi então do que eu tinha gostado desde o início no jovem
nhecer em sua totalidade, é diferente, singular, único... É o que israelense: aquele olhar de um Lázaro ressuscitado, e no entanto
acontece aos judeus da pequena cidade da Transilvânia chamada sempre prisioneiro das paragens sombrias por onde errou, trope-
Sighet, sua cegueira diante de um destino ao qual teriam tido tempo çando em cadáveres profanados. Para ele, o grito de Nietzsche ex-
de fugir, e ao qual eles mesmos se entregaram com uma passividade primia uma realidade quase física: Deus morreu, o Deus de amor,
inconcebível, surdos às advertências, às súplicas de uma testemunha de doçura e de consolo, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó se
que escapara do massacre e lhes relata o que viu com os próprios acabou para sempre, sob o olhar daquela criança, na fumaça do
olhos; mas eles se recusam a nele acreditar e o tomam por um de- holocausto humano exigido pela Raça, o mais voraz de todos os
mente. Esses dados teriam sido suficientes para inspirar uma obra à ídolos. E em quantos judeus piedosos essa morte não terá aconte-
qual nenhuma outra, parece-me, poderia se comparar. cido? No dia horrível, entre aqueles dias horríveis, em que a crian-
Mas é por um outro aspecto que este livro extraordinário me ça assistiu ao enforcamento (sim!) de uma outra criança que tinha,
prendeu. A criança que aqui nos conta esta história era um eleito diz ele, o rosto de um anjo infeliz, ouviu atrás de si alguém gemer:
de Deus. Desde o despertar de sua consciência, vivia unicamente "Onde está Deus? Onde está ele? Onde está Deus, então? E em mim
para Deus, nutrida pelo Talmude, ansiosa por ser iniciada na Caba- uma voz lhe respondeu: Onde ele está? Ei-lo - está aqui, pendurado
la, consagrada ao Eterno. Em algum momento havíamos pensado nesta forca."
nesta conseqüência de um horror menos visível, menos chocante No último dia do ano judeu, o menino assiste à cerimônia sole-
que outras abominações, mas, para nós que temos fé, a pior de to- ne de Rosh Hashaná. Ouve aqueles milhares de escravos gritarem a
das: a morte de Deus nessa alma de criança que descobre subita- uma só voz: "Bendito seja o nome do Eterno!" Havia ainda pouco
mente o mal absoluto?
tempo, ele também teria se prostrado, com que adoração, que te-
Tentemos conceber o que se passa nele enquanto seus olhos vêem mor, que amor! E, hoje, ele se reergue, enfrenta. A criatura humi-
se desfazerem no céu os anéis de fumaça negra saídos do forno onde lhada e ofendida além do concebível para o espírito e para o coração
10 ELIE WIESEL

desafia a divindade cega e surda: "Hoje, eu não implorava mais. Não


Capítulo 1
conseguia mais gemer. Sentia-me, ao contrário, muito forte. Eu era
o acusador. E o acusado: Deus. Meus olhos se haviam aberto, e eu
estava só, terrivelmente só no mundo, sem Deus, sem homens. Sem
amor nem piedade. Eu era apenas cinzas, mas sentia-me mais forte
que o Todo- Poderoso ao qual haviam ligado minha vida durante
tanto tempo. No meio daquela assembléia de preces, eu era como
um observador estrangeiro:'
E eu, que acredito que Deus é amor, o que podia responder ao Nós 0 chamávamos Mochê Bedel, como se a vida não lhe tivesse
meu jovem interlocutor, cujos olhos azuis guardavam o reflexo da- dado nem mesmo um nome de família. Ele era o "pau-pra-toda-
quela tristeza de anjo surgida um dia no rosto do menino enfor- obra" de uma sinagoga hassídica. Os judeus de Sighet - a pequena
cado? O que eu disse a ele? Falei daquele israelense, daquele irmão cidade da Transilvânia onde passei minha infância - gostavam dele.
que talvez se parecesse com ele, daquele crucificado cuja cruz ven- Era muito pobre e vivia miseravelmente. Os moradores da minha
ceu o mundo? Afirmei que o que para ele foi uma pedra no meio
cidade, em geral, não gostavam muito dos pobres, apesar de ajudá-
do caminho tornou-se para mim uma pedra de toque e que a meus
los. Mochê Bedel era uma exceção. Não incomodava ninguém. Sua
olhos a conformidade entre a cruz e o sofrimento dos homens con-
presença não atrapalhava ninguém. Tornara-se mestre na arte de se
tinua sendo a chave desse mistério insondável no qual sua fé de
fazer insignificante, invisível.
criança se perdeu? Sião, contudo, ressurgiu dos crematórios e dos
Fisicamente, era desajeitado como um clown. Fazia sorrir, com
ossuários. Desses milhões de mortos, a nação judia ressuscitou.
É através deles que ela revive. Não conhecemos o preço de uma só
sua timidez de órfão. Eu gostava de seus olhos grandes e sonhadores,
gota de sangue, de uma só lágrima. Tudo é graça. Se o Eterno é perdidos ao longe. Falava pouco. Cantava; ou melhor, cantarolava.
o Eterno, a última palavra para cada um de nós pertence a Ele. É o Os trechos que conseguíamos entender falavam do sofrimento da
que eu deveria ter dito ao menino judeu. Mas tudo o que consegui divindade, do Exílio da Providência que, segundo a Cabala, teria
foi abraçá-lo, chorando. sua libertação na libertação do homem.
Conheci-o perto do fim de 1941. Eu tinha doze anos e era pro-
François Mauriac fundamente religioso. De dia estudava o Talmude e à noite corria
PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA para a sinagoga para prantear a destruição do Templo.
Um dia pedi a meu pai para encontrar um mestre que pudesse
me orientar no estudo da Cabala.
- Você é muito jovem para isso. Maimônides disse que é so-
mente aos trinta anos que podemos nos aventurar no mundo cheio
de perigos do misticismo. Antes, você deve estudar as matérias de
base que tem condições de compreender.
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Meu pai era um homem culto, pouco sentimental. Nenhuma - E por que você reza, Mochê? - perguntei-lhe.
efusão, mesmo em família. Mais ocupado com os outros do que - Peço ao Deus que está dentro de mim que me dê força para lhe
com os seus. A comunidade judaica de Sighet tinha por ele a maior fazer perguntas verdadeiras.
consideração; consultavam-no com freqüência sobre assuntos pú- Conversávamos assim quase todas as noites. Ficávamos na si-
blicos ou mesmo questões privadas. Éramos quatro filhos. Hilda, a nagoga depois de todos os fiéis terem saído, sentados na penumbra
primogênita; em seguida, Béa; eu era o terceiro, e o único menino; ainda iluminada pela luz bruxuleante de alguns tocos de velas.
a caçula, Judith. Certa noite, disse a ele como me sentia infeliz por não encontrar
Meus pais tinham um comércio. Hilda e Béa ajudavam-nos nas em Sighet um mestre que me ensinasse o Zohar, os livros cabalís-
tarefas. Quanto a mim, meu lugar era a casa de estudos, diziam eles. ticos, os segredos da mística judaica. Ele sorriu com indulgência.
- Não há cabalistas em Sighet - repetia meu pai. Depois de um longo silêncio, disse:
Ele queria tirar aquela idéia da minha cabeça. Mas em vão. - Há mil e uma portas para se penetrar no vergel da verdade
Encontrei um mestre para mim na pessoa de Mochê Bedel. mística. Cada ser humano tem a sua. Ele não deve se enganar e que-
Um dia, enquanto eu rezava, ao crepúsculo, ele me observara. rer entrar no vergel por uma porta que não seja a sua. É perigoso
- Por que você chora quando reza? - perguntou-me, como se me para quem entra e para os que já estão lá.
conhecesse há muito tempo. E Mochê Bedel, o pobre pé-de-chinelo de Sighet, falava-me du-
- Não sei - respondi, muito perturbado. rante horas a fio sobre as luzes e os mistérios da Cabala. Foi com ele
A pergunta nunca me ocorrera. Eu chorava porque... porque que comecei minha iniciação. Relíamos juntos, dezenas de vezes,
algo em mim sentia necessidade de chorar. Nada sabia além disso. uma mesma página do Zohar. Não para apreendê-la de cor, mas
- Por que você reza? - perguntou, logo em seguida. para apreender a essência da divindade.
Por que eu rezava? Estranha pergunta. Por que eu vivia? Por que E, ao longo dessas noites, adquiri a convicção de que Mochê
eu respirava? Bedel me levaria consigo para a eternidade, para o tempo em que
- Não sei - eu lhe disse, mais perturbado ainda e sentindo-me pergunta e resposta tornavam-se UM.
mal. - Não sei.
A partir daquele dia, encontrei-o com freqüência. Ele me expli-
cava com muita insistência que cada pergunta possuía uma força Depois, um dia, expulsaram de Sighet os judeus estrangeiros. E
que a resposta já deixara de ter. Mochê Bedel era estrangeiro.
- O homem se eleva em direção a Deus pelas perguntas que lhe Amontoados pelos guardas húngaros em vagões de gado, eles
faz - gostava de repetir. - Aí está o verdadeiro diálogo. O homem choravam surdamente. Na plataforma da estação, nós chorávamos
interroga, e Deus responde. Mas não compreendemos suas respos- também. O trem desapareceu no horizonte; atrás dele, só uma fu-
tas. Não podemos compreendê-las. Porque elas vêm do fundo da maça espessa e suja.
alma e lá permanecem até a morte. As verdadeiras respostas, Elie- Ouvi um judeu atrás de mim, suspirando:
zer, você só as encontrará em você mesmo. - O que é que vocês querem? É a guerra...
14 ELIE WJESEL
A NOITE 15

Os deportados foram rapidamente esquecidos. Alguns dias de- _ Judeus, ouçam-me. É tudo o que lhes peço. Nem dinheiro,
pois de sua partida, disseram que se encontravam na Galícia, onde nem piedade. Mas que me escutem, ele gritava na sinagoga, entre a
estavam trabalhando, até mesmo satisfeitos com sua sorte. oração do crepúsculo e a da noite.
Passaram-se dias, semanas, meses. A vida voltara ao normal. Eu mesmo não acreditava nele. Sentava-me muitas vezes em sua
Um vento calmo e tranqüilizador soprava em todas as casas. Os co- companhia, à noite, depois do ofício, e ouvia suas histórias, tentan-
\1 merciantes faziam bons negócios, os estudantes viviam entre seus do compreender sua tristeza. Só sentia pena dele.
livros e as crianças brincavam na rua. _ Acham que estou louco - ele murmurava, e, como gotas de
Um dia, indo para a sinagoga, vi, sentado num banco, perto da cera, lágrimas corriam de seus olhos.
porta, Mochê Bedel. Uma vez, perguntei-lhe:
Contou sua história e a de seus companheiros. O trem dos de- _ Por que você quer tanto que acreditemos no que você diz? Em
portados passara a fronteira húngara e, em território polonês, fora seu lugar, eu ficaria indiferente, tanto faria acreditarem em mim
apreendido pela Gestapo. Lá, tinha parado. Os judeus tiveram de ou não...
descer e subir em caminhões. Os caminhões foram até uma floresta. Fechou os olhos, como que para escapar ao tempo:
Fizeram-nos descer. Fizeram-nos cavar grandes valas. Assim que _ Você não entende - disse com desespero. - Você não pode
terminaram seu trabalho, os homens da Gestapo começaram o de- entender. Fui salvo por milagre. Consegui voltar até aqui. De onde
les. Sem paixão, sem pressa, abateram seus prisioneiros. Cada um tirei essa força? Eu queria voltar a Sighet para contar minha morte.
devia se aproximar do buraco e estender a nuca. Bebês eram atira- Para que vocês possam se preparar enquanto ainda é tempo. Viver?
dos para o alto e as metralhadoras os faziam de alvos. Foi na floresta Não ligo mais para a vida. Sou só. Mas queria voltar e adverti-los.
da Galícia, perto de Kolamaye. Como ele, Mochê Bedel, conseguira E veja o que acontece: ninguém me escuta ...
se salvar? Por milagre. Ferido na perna, acreditaram-no morto... Aproximava-se o fim de 1942.
Dias e noites a fio, ele ia de casa judia em casa judia e contava a A vida, em seguida, voltou ao normal. A rádio de Londres, que
história de Malka, a moça que agonizou durante três dias, e a de To- ouvíamos todas as noites, transmitia notícias estimulantes: bombar-
bie, o alfaiate, que implorava que o matassem antes de seus filhos ... deamento cotidiano da Alemanha, Stalingrado, preparação do se-
Mochê mudara muito. Seus olhos não refletiam mais alegria. gundo front, e nós, judeus de Sighet, esperávamos os dias melhores
Não cantarolava mais. Não me falava mais de Deus ou da Cabala, só que agora não tardariam.
do que tinha visto. As pessoas se recusavam não apenas a acreditar Eu continuava a me dedicar aos estudos. De dia, o Talmude, e
em suas histórias, mas também a ouvi-las. à noite, a Cabala. Meu pai se ocupava com seu comércio e com a
- Ele quer que tenhamos pena dele. Que imaginação... comunidade. Meu avô viera passar o Ano-Novo conosco para poder
Ou então: assistir aos ofícios do célebre Rabino de Borsche. Minha mãe come-
- Coitado, ficou louco. çava a pensar que já era tempo de encontrar um noivo para Hilda.
E ele, aos prantos: Assim transcorreu o ano de 1943.
A NOITE 17
16 ELIE WIESEL

Primavera de 1944. Notícias esplendorosas do Jront russo. Ne- A inquietude, aqui e ali, começava a despertar. Um de nossos

nhuma dúvida mais quanto à derrota da Alemanha. Era apenas uma amigos, Berkovitz, chegando da capital, nos contou:
_ Os judeus de Budapeste estão vivendo em um clima de medo e
questão de tempo; de meses ou de semanas, talvez.
terror. Todos os dias há incidentes anti-semitas nas ruas, nos trens.
As árvores estavam em flor. Era um ano como tantos outros, com
Os fascistas atacam os judeus nas lojas, nas sinagogas. A situação
sua primavera, seus noivados, seus casamentos e seus nascimentos.
está começando a ficar séria...
As pessoas diziam:
Essas notícias se espalharam em Sighet como um rastilho de
- O Exército Vermelho avança a passos de gigante... Hitler não pólvora. Logo se falava delas em todos os lugares. Mas não por mui-
poderá nos fazer mal, mesmo que queira ...
to tempo. O otimismo logo renasceu:
Sim, duvidávamos até mesmo de sua vontade de nos exterminar. _ Os alemães não virão até aqui. Ficarão em Budapeste por ra-
Ele aniquilaria um povo inteiro? Exterminaria uma população zões estratégicas, políticas...
dispersa por tantos países? Tantos milhões de pessoas! Com que Menos de três dias depois, os carros do Exército alemão surgi-
meios? E em pleno século XX! ram em nossas ruas.
E as pessoas se interessavam por tudo - pela estratégia, pela diplo-
macia, pela política, pelo sionismo -, mas não por sua própria sorte.
Até Mochê Bedel se havia calado. Estava cansado de falar. Errava Angústia. Os soldados alemães - com seus capacetes de aço e
na sinagoga ou pelas ruas, os olhos baixos, as costas arqueadas, evi- seu emblema, uma caveira.
tando encarar as pessoas. E, no entanto, a primeira impressão que tivemos dos alemães foi
Naquela época, ainda era possível comprar certificados de emi- das mais tranqüilizadoras. Seus oficiais se instalaram nas casas das
gração para a Palestina. Eu tinha pedido a meu pai que vendesse pessoas, e até mesmo em casas judias. Sua atitude em relação aos
tudo, que liquidasse tudo e partisse. que os hospedavam era distante, mas educada. Nunca pediam o im-
- Estou muito velho, meu filho - ele respondeu. - Muito velho possível, não faziam observações descorteses e, às vezes, até sorriam
para começar uma vida nova. Muito velho para recomeçar do zero para a dona da casa. Um oficial alemão morava no prédio em frente
num país distante... à nossa casa. Estava ocupando um quarto na casa dos Kahn. Diziam
A rádio de Budapeste anunciou a tomada do poder pelo par- que era um homem encantador: calmo, simpático e educado. Três
tido fascista. Horty Miklos foi forçado a pedir a um chefe do partido, dias depois de instalado, trouxera uma caixa de chocolates para a
Nyilas, que formasse um novo governo. senhora Kahn. Os otimistas exultavam:
- E então? O que foi que nós dissemos? Vocês não queriam acre-
Ainda não era o bastante para nos preocuparmos. Sim, já ouví-
ramos falar dos fascistas, mas aquilo continuava sendo uma abstração. ditar. Aí estão os seus alemães. O que acham? Onde está a sua famo-
Era apenas uma troca de ministério. sa crueldade?
No dia seguinte, outra notícia preocupante: as tropas alemãs Os alemães já estavam na cidade, os fascistas já estavam no po-
haviam entrado, com o consentimento do governo, em território der, a sentença já havia sido pronunciada, e os judeus de Sighet
húngaro. ainda sorriam.
18 ELIE WIESEL
A NOITE 19

Os oito dias da Páscoa.


(Meu pobre pai! E do que foi que você morreu?)
O tempo estava maravilhoso. Minha mãe se esmerava na cozi- Mas outros éditos já estavam sendo publicados. Não podíamos
nha. Não havia mais sinagogas abertas. Reuníamo-nos nas casas das
mais entrar nos restaurantes, nos cafés, viajar nas estradas de ferro,
pessoas: era bom não provocar os alemães. Praticamente, cada apar-
ir à sinagoga, sair às ruas depois das 18 horas.
tamento de rabino tornava-se um lugar de orações.
Depois veio o gueto.
. B~~íamos, comíamos, cantávamos. A Bfülia mandava que nos
reJubilassemos durante os oito dias de festa, que fôssemos felizes.
Mas o coração não estava mais feliz. Há alguns dias o coração bat'
. fi m Em Sighet foram criados dois guetos. Um grande, no meio da
mais orte. Queríamos que a festa acabasse para não sermos mais
cidade, ocupava quatro ruas, e um outro, menor, se estendia por
obrigados a representar aquela comédia.
várias ruelas, nos bairros. A rua em que morávamos, a rua das Ser-
No sétimo dia da Páscoa, a cortina se levantou: os alemães pren-
pentes, ficava na área do primeiro. Continuamos, portanto, em nos-
deram os chefes da comunidade judia.
sa casa. Mas, como ela ficava na esquina, as janelas que davam para
A ~artir daquele momento, tudo aconteceu com muita rapidez.
a rua de fora foram lacradas. Cedemos alguns de nossos cômodos a
A corrida para a morte havia começado.
parentes que haviam sido expulsos de seus apartamentos.
Primeira medida: os judeus não poderiam sair de seu domicilio
A vida, pouco a pouco, voltava ao normal. As cercas de arame
durante três dias, sob pena de morte.
farpado que, como uma muralha, nos cercavam não nos inspiravam
Mochê Bedel chegou correndo em nossa casa e gritou para
meu pai: medo real. Sentíamo-nos até mesmo bastante bem: estávamos en-
tre amigos. Uma pequena república judia ... Criou-se um conselho
- Eu os avisei... - E, sem esperar resposta, fugiu.
judeu, uma polícia judia, uma agência de ajuda social, um comitê
. _No mesmo dia, a polícia húngara irrompeu em todas as casas
do trabalho, um departamento de higiene - todo um aparelho go-
JU~1as da cidade: um judeu não poderia mais ter em casa ouro, jóias, vernamental.
objetos de valor; tudo deveria ser enviado às autoridades, sob pena
Estávamos todos maravilhados com aquilo. Não teríamos mais
de morte. Meu pai desceu ao porão e enterrou nossas economias.
diante de nós aquelas caras hostis, aqueles olhares carregados de
Em casa, minha mãe continuava a se dedicar a suas tarefas. As
ódio. Acabaram-se o medo, as angústias. Viveríamos entre judeus,
vezes parava para nos olhar, silenciosa.
entre irmãos...
Passados os três dias, novo decreto: todo judeu deveria usar a
estrela amarela. É verdade que ainda havia momentos desagradáveis. Todos os
dias, os alemães vinham buscar homens para carregar de carvão
. Alguns notáveis da comunidade vieram procurar meu pai - que
os trens militares. Havia pouquíssimos voluntários para esse tipo de
tinha relações nas altas esferas da polícia húngara - para saber o
trabalho. Mas, fora isso, o ambiente era pacífico e tranqüilizador.
que_ele ~ensava.da situação. Meu pai não a considerava tão negra - ou
A opinião geral era a de que ficaríamos no gueto até o fim da
entao nao quena desencoraja~s outros, pôr sal em suas feridas:
guerra, até a chegada do Exército Vermelho. Depois, tudo voltaria a
- A estrela amarela? O que é que tem? N. , .
. ..•
por ISSO · mguem va1 morrer ser como antes. Quem reinava no gueto não era nem o alemão, nem
o judeu: era a ilusão.
A NOITE 21
20 ELIE WIESEL

No sábado antes de Pentecostes, sob um sol de primavera, as _Conte! Diga-nos o que está acontecendo! Diga alguma coisa...
pessoas passeavam despreocupadas pelas ruas fervilhantes de Naquele momento estávamos tão ávidos por ouvir uma palavra
gente. Conversava-se alegremente. As crianças brincavam com ave- de confiança, uma frase dizendo que não havia o que temer, que a
lãs nas calçadas. Eu estudava o Talmude com alguns companheiros reunião não passara de algo banal, corriqueiro, que se tratava de
no jardim de Ezra Malik. problemas sociais, sanitários... Mas bastava olhar para o rosto des-
A noite chegou. Umas vinte pessoas estavam reunidas no pátio feito de meu pai para se render à evidência:
de nossa casa. Meu pai lhes contava anedotas e expunha sua opinião _ Uma notícia terrível - anunciou finalmente. - A deportação.
sobre a situação. Ele era um bom contador de histórias. o gueto devia ser completamente desmontado. A saída seria fei-
De repente, a porta do pátio se entreabriu e Stern - um velho ta por ruas, uma a uma, a partir do dia seguinte.
comerciante transformado em policial - entrou e chamou meu pai Queríamos saber de tudo, conhecer todos os detalhes. A notícia
para uma conversa particular. Apesar da penumbra que começava a nos havia atordoado, mas fazíamos questão de beber daquele vinho
dominar, vi-o empalidecer. amargo até a última gota.
- O que está havendo? - perguntamos a ele. - Para onde vão nos levar?
- Não sei. Fui convocado para uma sessão extraordinária do Era um segredo. Um segredo para todos, menos para uma pes-
Conselho. Deve ter acontecido alguma coisa. soa: o pres1"dente do conselho 1·udeu· Mas ele não queria contar, ele
A história que ele estava nos contando ficaria inacabada. não podia contar. A Gestapo o havia ameaçado de fuzilamento se
- Vou logo - meu pai retomou. - Voltarei assim que possível. Eu falasse.
lhes contarei tudo. Esperem por mim. Meu pai observou, com a voz entrecortada:
Estávamos dispostos a esperá-lo por horas. O pátio transfor- _ Circulam boatos de que vão nos deportar para algum lugar na
mou-se em algo como a ante-sala de uma mesa de operação. Só nos Hungria, para trabalhar nas fábricas de tijolos. A razão, parece, é
restava esperar que a porta se abrisse, que o firmamento se abrisse. que o front está muito próximo daqui.
Outros vizinhos, alertados pelo rumor, juntaram-se a nós. Olháva- E, depois de um momento de silêncio, acrescentou:
mos o relógio. O tempo passava muito lentamente. O que poderia _ Cada um só pode levar seus pertences pessoais. Uma mochila,
significar uma reunião tão longa? comida, algumas roupas. Mais nada.
- Estou com um mau pressentimento - disse minha mãe. - Hoje E, mais uma vez, um pesado silêncio.
à tarde, vi caras novas no gueto. Dois oficiais alemães, da Gestapo, _ Vão acordar os vizinhos - disse meu pai. - Que se preparem...
acredito. Desde que estamos aqui, não tinha aparecido nenhum Perto de mim, sombras despertaram como de um longo sono.
oficial... E saíram, silenciosamente, em todas as direções.
Era quase meia-noite. Ninguém sentia vontade de ir se deitar.
Alguns davam um pulo em casa para ver se estava tudo em ordem.
Outros voltavam para suas casas, mas pediam que os avisássemos Ficamos sós por um momento. De repente, Batia Reich, um pa-
logo que meu pai chegasse. rente que estava vivendo conosco, entrou na sala:
A porta se abriu por fim, e ele apareceu, pálido. Logo foi cercado: - Tem alguém batendo na janela lacrada, a que dá para fora!
A NOITE 23
22 ELIE WJESEL

Foi somente depois da guerra que eu soube quem havia batido. seguida, foi até as camas de seus dois filhos e acordou-os brusca-
Era um inspetor da polícia húngara, um amigo de meu pai. Antes da mente, arrancando-os de seus sonhos. Fui embora.
nossa entrada no gueto, ele dissera: "Fiquem tranqüilos. Se algum o tempo passava a toda a velocidade. Já eram quatro horas da
perigo os ameaçar, eu lhes avisarei:' Se, naquela noite, ele tivesse manhã. Meu pai corria de um lado para o outro, extenuado, con-
conseguido falar conosco, ainda teríamos podido fugir... Mas quan- solando os amigos, correndo ao conselho judeu para ver se entre-
do conseguimos abrir a janela, já era tarde demais. Não havia mais mentes 0 édito não havia sido revogado; até o último instante, sub-
ninguém lá fora. sistia nos corações uma semente de confiança.
As mulheres cozinhavam ovos, assavam carne, preparavam bo-
los, confeccionavam mochilas, as crianças andavam a esmo, com a
O gueto despertou. Uma após outra, luzes se acenderam por de- cabeça baixa, sem saber onde se meter, onde encontrar um lugar
trás das janelas. para não atrapalhar os adultos. Nosso pátio se tornara uma verda-
Entrei na casa de um amigo de meu pai. Acordei o dono da casa, deira feira. Objetos de valor, tapetes preciosos, candelabros de prata,
um ancião de barba cinza, olhos sonhadores, curvado pelas longas livros de oração, bíblias e outros objetos de culto cobriam o chão
vigílias de estudo. poeirento, sob um céu maravilhosamente azul, pobres coisas que
- Levante-se, senhor. Levante-se! Prepare-se para a estrada. O pareciam nunca ter pertencido a ninguém.
senhor será expulso amanhã, o senhor e os seus, o senhor e todos os
judeus. Para onde? Não me pergunte, senhor, não me faça pergun-
tas. Só Deus poderia lhe responder. Pelo amor de Deus, levante-se. Às oito da manhã, a lassidão, como chumbo, se havia coagulado
Ele não tinha entendido nada do que eu lhe dizia. Pensava, sem nas veias, nos membros, no cérebro. Eu estava rezando quando de
dúvida, que eu tinha enlouquecido. repente vieram gritos da rua. Desfiz-me rapidamente de meus
- O que você está dizendo? Preparar para a partida? Que parti- filactérios e corri para a janela. Guardas húngaros tinham entrado
da? Por quê? O que está acontecendo? Ficou louco? no gueto e berravam na rua vizinha:
Ainda meio adormecido, ele me encarou, com o olhar aterrori- - Todos os judeus para fora! Sem demora!
zado, como se esperasse de mim que eu explodisse numa gargalha- Policiais judeus entravam nas casas e diziam, com a voz entre-
da para finalmente lhe confessar: "Volte para a carna; durma. Sonhe. cortada:
Não aconteceu absolutamente nada. Era só uma brincadeira:· - Chegou a hora... É preciso deixar tudo isso.
Minha garganta estava seca, e as palavras se estrangulavam, pa- Os soldados húngaros batiam com as coronhas dos fuzis, com
ralisando meus lábios. Eu não conseguia dizer mais nada. cassetetes, em todo mundo, sem motivo, a torto e a direito, velhos e
Então ele entendeu. Desceu da carna e, com gestos automáticos, mulheres, crianças e doentes.
começou a se vestir. Depois aproximou-se da carna onde sua mulher As casas se esvaziavam umas depois das outras, e as ruas se en-
dormia, tocou-lhe a fronte com uma ternura infinita; ela abriu as chiam de pessoas e de embrulhos. Às dez horas, todos os conde-
pálpebras e me pareceu ver um sorriso aflorar em seus lábios. Em nados estavam do lado de fora. Os guardas faziam a chamada urna
A NO ITE 23
22 ELIE WIESEL

·d c · até as camas de seus dois filhos e acordou-os brusca-


Foi somente depois da guerra que eu soube quem havia batido. segut a, •'01
rrancando-os de seus sonhos. Fui embora.
Era um inspetor da polícia húngara, um amigo de meu pai. Antes da mente , a
o tempo passava a toda a velocidade. Já eram quatro horas da
nossa entrada no gueto, ele dissera: "Fiquem tranqüilos. Se algum
- Meu pai corria de um lado para o outro, extenuado, con-
perigo os ameaçar, eu lhes avisarei:' Se, naquela noite, ele tivesse manh a.
solando os amigos, correndo ao conselho judeu para ver se entre-
conseguido falar conosco, ainda teríamos podido fugir... Mas quan-
mentes édito não havia sido revogado; até o último instante, sub-
do conseguimos abrir a janela, já era tarde demais. Não havia mais 0

ninguém lá fora. sistia nos corações uma semente de confiança.


As mulheres cozinhavam ovos, assavam carne, preparavam bo-
los, confeccionavam mochilas, as crianças andavam a esmo, com a
cabeça baixa, sem saber onde se meter, onde encontrar um lugar
O gueto despertou. Uma após outra, luzes se acenderam por de-
para não atrapalhar os adultos. Nosso pátio se tornara uma verda-
trás das janelas.
deira feira. Objetos de valor, tapetes preciosos, candelabros de prata,
Entrei na casa de um amigo de meu pai. Acordei o dono da casa,
livros de oração, bíblias e outros objetos de culto cobriam o chão
um ancião de barba cinza, olhos sonhadores, curvado pelas longas
· to sob um céu maravilhosamente azul, pobres coisas que
vigílias de estudo. poeiren ,
- Levante-se, senhor. Levante-se! Prepare-se para a estrada. O pareciam nunca ter pertencido a ninguém.
senhor será expulso amanhã, o senhor e os seus, o senhor e todos os
judeus. Para onde? Não me pergunte, senhor, não me faça pergun-
As oito da manhã, a lassidão, como chumbo, se havia coagulado
tas. Só Deus poderia lhe responder. Pelo amor de Deus, levante-se.
Ele não tinha entendido nada do que eu lhe dizia. Pensava, sem nas veias, nos membros, no cérebro. Eu estava rezando quando de
dúvida, que eu tinha enlouquecido. repente vieram gritos da rua. Desfiz-me rapidamente de meus
- O que você está dizendo? Preparar para a partida? Que parti- filactérios e corri para a janela. Guardas húngaros tinham entrado
da? Por quê? O que está acontecendo? Ficou louco? no gueto e berravam na rua vizinha:
Ainda meio adormecido, ele me encarou, com o olhar aterrori- - Todos os judeus para fora! Sem demora!
Policiais judeus entravam nas casas e diziam, com a voz entre-
zado, como se esperasse de mim que eu explodisse numa gargalha-
da para finalmente lhe confessar: "Volte para a cama; durma. Sonhe. cortada:
Não aconteceu absolutamente nada. Era só uma brincadeira:' - Chegou a hora... É preciso deixar tudo isso.
Os soldados húngaros batiam com as coronhas dos fuzis, com
Minha garganta estava seca, e as palavras se estrangulavam, pa-
ralisando meus lábios. Eu não conseguia dizer mais nada. cassetetes, em todo mundo, sem motivo, a torto e a direito, velhos e
Então ele entendeu. Desceu da cama e, com gestos automáticos, mulheres, crianças e doentes.
As casas se esvaziavam umas depois das outras, e as ruas se en-
começou a se vestir. Depois aproximou-se da cama onde sua mulher
chiam de pessoas e de embrulhos. As dez horas, todos os conde-
dormia, tocou-lhe a fronte com uma ternura infinita; ela abriu as
pálpebras e me pareceu ver um sorriso aflorar em seus lábios. Em nados estavam do lado de fora. Os guardas faziam a chamada uma
A NOITE 25
24 ELIE WIESEL

A procissão desapareceu na esquina. Mais alguns passos e che-


vez, duas vezes, vinte vezes. O calor era intenso. O suor inundava os
rostos e os corpos. garia aos muros do gueto.
A rua estava parecendo um mercado abandonado às pressas.
As crianças choravam pedindo água.
Havia de tudo: malas, pastas de couro, sacolas, facas, pratos, notas
Água! Havia água bem perto, nas casas, nos pátios, mas era proi-
de dinheiro, documentos, retratos amarelados. Todas as coisas que
bido sair das filas.
em algum momento pensaram em levar e que finalmente acabaram
- Água, mãe, água!
Os policiais judeus do gueto conseguiram ir, às escondidas, deixadas para trás. Haviam perdido todo o seu valor.
Por todos os lados, casas abertas. As portas e janelas, escancara-
encher algumas talhas. Minhas irmãs e eu - que, por estarmos des-
das, dando para o vazio. Tudo era de todos, sem pertencer a mais
tinados ao último comboio, ainda podíamos nos mexer - os ajuda-
mos o melhor que pudemos. ninguém. Era só se servir. Um túmulo aberto.

À uma hora da tarde, finalmente, foi dado o sinal de partida. Um sol de verão.
Foi uma alegria; sim, alegria. Eles pensavam, certamente, que
não havia sofrimento maior no inferno de Deus que o de ficarem
Tínhamos passado o dia em jejum. Mas quase não sentíamos
sentados ali, no chão, entre pacotes, no meio da rua, sob um sol
incandescente, que qualquer coisa seria melhor do que aquilo. Pu- fome. Estávamos esgotados.
Meu pai acompanhara os deportados até a porta do gueto. Antes
seram-se em marcha, sem um olhar para as ruas abandonadas, para
os fizeram passar pela grande sinagoga, onde foram minuciosamen-
as casas vazias e apagadas, para os jardins, para os túmulos ... Nas
te revistados, para ver se não estavam levando ouro, prata ou outros
costas de cada um, uma mochila. Nos olhos de cada um, um sofri-
objetos de valor. Houve crises de nervos e golpes de cassetete.
mento, inundado em lágrimas. Lentamente, pesadamente, a procis-
_ Quando será a nossa vez? - perguntei a meu pai.
são avançava em direção à porta do gueto.
_ Depois de amanhã. A menos que ... a menos que as coisas se
E eu estava ali, na calçada, vendo-os passar, incapaz de fazer um
movimento. Lá está o rabino, as costas encurvadas, o rosto abatido, ajeitem. Um milagre, talvez... . .
Para onde as pessoas estavam sendo levadas? Não se sabia am-
a trouxa nas costas. Sua presença entre os expulsos já era suficiente
para tornar aquela cena irreal. Parecia-me estar vendo uma página da? Não, o segredo estava bem guardado.
A noite caiu. Fomos para a cama cedo. Meu pai dissera:
arrancada de algum livro de contos, de algum romance histórico
_ Durmam tranqüilos, meus filhos. É só depois de amanhã, ter-
sobre o cativeiro da Babilônia ou sobre a inquisição na Espanha.
Passavam diante de mim, uns atrás dos outros, os professores, ça-feira.
A segunda-feira passou como urna pequena nuvem de verão,
os amigos, os outros, todos aqueles de quem eu sentira medo, todos
aqueles de quem um dia rira, todos aqueles com quem eu convive- como um sonho antes do amanhecer.
Ocupados em preparar as mochilas, em assar pães e biscoitos,
ra durante anos. Iam decaídos, arrastando seu saco, arrastando sua
não pensávamos em mais nada. A sentença tinha sido pronunciada.
vida, abandonando seus lares e seus anos de infância, encurvados
como cães sem dono.
A noite, nossa mãe nos mandou dormir bem cedo, para reservar
Passavam sem me olhar. Deviam estar com inveja de mim. forças, ela dizia. A última noite em nossa casa.
26 ELIE WTESEL

A NOITE 27

Quando o dia amanheceu, eu estava de pé. Queria ter tempo de


Foi naquele momento que comecei a odiá-los, e meu ódio é a
rezar antes que nos expulsassem.
única coisa que nos liga até hoje. Eles eram nossos primeiros opres-
Meu pai se levantara antes de todos nós para buscar informações.
sores. Eram o primeiro rosto do inferno e da morte.
Por volta das oito horas, ele chegou. Uma boa notícia: não deixaría-
Mandaram-nos correr. Saímos a passo de corrida. Quem teria
mos a cidade hoje. Apenas passaríamos para o gueto pequeno. Lá imaginado que éramos tão fortes? Por detrás das janelas, por detrás
esperaríamos o último carregamento. Seríamos os últimos a partir. de suas persianas, nossos compatriotas nos viam passar.
Às nove horas, as cenas do domingo recomeçaram. Guardas Finalmente, chegamos ao destino. Com os sacos jogados no
com cassetetes berrando: "Todos os judeus para fora!" chão, desmoronamos também:
Nós estávamos prontos. Fui o primeiro a sair. Não queria ver o - Meu Deus, Senhor do Universo, tem piedade de nós em tua
rosto de meus pais. Não queria me desmanchar em lágrimas. Fica- grande misericórdia ...
mos sentados no meio da rua, como os outros, dois dias antes. O
mesmo sol infernal. A mesma sede Mas não havia . . ,
· mais nmguem
para trazer água. O pequeno gueto. Há três dias, ainda havia gente vivendo aqui.

Eu contemplava nossa casa, onde havia passado anos à procura As pessoas a quem pertenciam os objetos que estávamos usando.

de ~eu~, jejuando para apressar a vinda do Messias, imaginando qual


Haviam sido expulsas. Nós já as tínhamos esquecido completa-
mente.
sena minha vida. Quase não sentia tristeza. Não pensava em nada.
- De pé! Contagem! A desordem era ainda maior do que no gueto. Os moradores
deviam ter sido pegos de surpresa. Visitei os quartos onde morava
De pé. Contados. Sentados. De pé, novamente. De novo no chão.
a família de meu tio. Sobre a mesa, um prato de sopa que não aca-
Se~ fim. Esperávamos com impaciência que nos levassem. O que
baram de tomar. Massas à espera de serem postas no forno. Livros
estavamos esperando? Finalmente, chegou a ordem: "Em frente!"
espalhados pelo chão. Meu tio teria pensado em levá-los?
Meu pai chorava. Era a primeira vez que eu o via chorar. Nun- Instalamo-nos. (Que palavra!) Fui buscar madeira, minhas ir-
ca tinha imaginado que ele pudesse chorar. Minha mãe andava, de mãs acenderam o fogo. Apesar do cansaço, minha mãe começou a
rosto fechado, pensativa. Eu olhava minha irmã mais nova T . preparar uma refeição.
, zipora,
seus cabelos louros bem penteados, um casaco vermelho nos bra- - É preciso agüentar firme, é preciso agüentar firme - ela repetia.
ços: menininha de sete anos. Nas costas, uma mochila pesada de- O moral das pessoas não estava tão baixo: já começávamos a
mais para ela. Ela cerrava os dentes· J.á sabia que de nad . . nos acostumar com a situação. Na rua, entregávamo-nos a discursos
· a serv1na se
queixar. Os guardas distribuíam golpes de cassetete a esmo: "M . otimistas. Os boches não teriam mais tempo de nos expulsar, dizia-
, ºd ,, ais
rap1 o! Eu não tinha mais força. O caminho estava apenas come- se... Pelos que já haviam sido deportados, infelizmente, não havia
çando e eu já me sentia fraco. mais nada a fazer. Mas nós, provavelmente eles nos deixariam viver
aqui nossa miserável vidinha, até o fim da guerra.
- Mais rápido! Mais rápido! Avancem, preguiçosos! - berravam
os soldados húngaros. O gueto não era vigiado. Cada um podia entrar e sair livremente.
Nossa antiga empregada, Maria, veio nos ver. Em lágrimas copiosas,
28 ELIE WIESEL

A NO ITE 29

implorava que fôssemos para sua ald . d .


eia, on e ela tinha d
um abrigo seguro para nós M . _ prepara o Sábado, o dia do descanso, era o dia escolhido para nossa ex-
. . eu pai nao queria ne . f;:.. •
assunto. Disse às minb d . _ m OUV!r dlar no pulsão.
• as uas umas mais velhas e a mim·
- Se voces quiserem, vão. Eu ficarei aqui com sua m~ Na véspera, tínhamos feito a ceia tradicional das noites de sexta-
quena... ae e a pe- feira. Havíamos, como de costume, abençoado o pão e o vinho e co-
Naturalmente, nos recusamos a nos separar. mido em absoluto silêncio. Estávamos, podíamos senti-lo, reunidos
pela última vez em volta da mesa familiar. Passei a noite a remoer
lembranças, pensamentos, sem conseguir pegar no sono.
Noite. Ninguém rezava para ue . Ao amanhecer, estávamos na rua, prontos para a partida. Dessa
estrelas eram apenas fagulh d q a noite passasse rápido. As vez, nada de guardas húngaros. Havia sido feito um acordo com o
as o grande fog0
Se esse fogo um d . que nos devorava. conselho judeu, que organizaria tudo.
ia se apagasse, não haveria .
estrelas apagadas olho mais nada no céu, só Nosso comboio rumou para a grande sinagoga. A cidade parecia
• s mortos.
Nada a fazer além de ir para a cam deserta. Mas, por detrás de suas persianas, nossos amigos de ontem
cansar, reunir forças. a, a cama dos ausentes. Des- esperavam, sem dúvida, o momento de pilhar nossas casas.
A sinagoga parecia uma grande estação: bagagens e lágrimas.
o altar estava quebrado, os tapetes, arrancados, as paredes, nuas.
Ao amanhecer - h · Éramos tantos que mal podíamos respirar. Vinte e quatro horas
, nao aVJa mais nem vestí . d 1
Como se estivéssemos de ti' . d. . g10 aque a melancolia. tenebrosas, as que passamos ali. Os homens ficaram embaixo. As
enas, 1z1a-se:
- Quem sabe? Talvez seja para o noss b - mulheres, no primeiro andar. Era sábado: era como se tivéssemos
portando. Ofaont não t , . o em que estao nos de- ido assistir ao ofício. Sem poder sair, as pessoas faziam suas neces-
es a mmto longe 1 ·
Então, estão evacuando as u1 - , . o~o OUV!remos os canhões. sidades em um canto.
, pop açoes CIVIS...
- Sem duvida temem No dia seguinte de manhã, estávamos andando para a estação,
. , que nos tornemos guerrilheiro
- Para mim, toda essa história de de - - s... onde nos esperava um comboio de vagões de gado. Os guardas hún-
uma grande farsa Sim - . portaçao nao passa de garos nos fizeram subir, oitenta pessoas por vagão. Deixaram-nos
. ' nao nam. Os boche . 1
rem nossas jóias O 1 b s simp esmente que- alguns pães e alguns baldes d'água. Verificaram as grades das jane-
. ra, e es sa em que está t d
será preciso fazer escavações: é ma. f;' il u o enterrado, e que las, para ver se estavam firmes. Os vagões foram lacrados. Em cada
saem de férias. is ac quando os proprietários um deles fora designado um responsável: se alguém fugisse, seria
De férias! ele o fuzilado.
Aqueles discursos otimistas nos . . , Na plataforma deambulavam dois oficiais da Gestapo, todos sor-
ziam o tempo passar O d. . quais nmguem acreditava fa - ridentes; em resumo, tudo havia corrido bem.
. s ias que Vivemos a .
te agradavelmente cal A - qu1 passaram-se bastan- Um longo assovio cortou o ar. As rodas começaram a ranger.
. ' mos. s relaçoes entre
mais amigáveis. Não h . . . as pessoas eram das Estávamos a caminho.
aV1a mais ncos not , . "
somente condenados , , ave1s, personalidades':
a mesma pena - ainda desconhecida.
Capítulo 2

'

Impossível esticar o corpo, e também não havia como todos se


sentarem. Decidimos nos sentar por turnos. O ar estava rarefeito.
felizes os que estavam perto de uma janela - podiam ver a paisagem
florida.
Ao fim de dois dias de viagem, a sede começava a nos torturar.
Depois, o calor tornou-se insuportável.
Liberados de qualquer censura social, os jovens entregavam-se
abertamente a seus instintos e, protegidos pela noite, copulavam no
meio das pessoas, sem se preocupar com o que quer que fosse, sozi-
nhos no mundo. Os outros fingiam não estar vendo.
Ainda tínhamos provisões. Mas nunca comíamos o bastante.
Economizar - era nosso princípio, economizar para o dia de ama-
nhã. O dia de amanhã podia ser ainda pior.
O trem parou em Kashau, uma pequena cidade da fronteira
tcheca. Compreendemos então que não ficaríamos na Hungria.
Nossos olhos se abriam, tarde demais.
A porta do vagão deslizou. Um oficial alemão se apresentou,
acompanhado de um tenente húngaro que iria introduzir seu dis-
curso:
- A partir deste momento, vocês estão sob a autoridade do Exér-
cito alemão. Quem ainda tiver ouro, prata, relógios deverá entre-
gá-los agora. Quem depois for encontrado com alguma coisa será
fuzilado na hora. Segundo: quem se sentir doente pode passar para
o vagão-hospital. É só.
32 ELIE WIESEL
A NOITE 33

, . O tenente húngaro passou por nós com uma cesta e pegou os


Ficamos um longo ~empo sob o impacto daquele despertar ter-
últimos bens daqueles que não queriam mais sentir 0 gosto amargo
do terror. , 1 Ai"nda estávamos tremendo. A cada ranger de roda no trilho,
nve.,

- Vocês são oitenta neste vagão - acrescentou o oficial alemão. pareci·a que um abismo se abriria sob nossos corpos.
" , Sem poder .
aplacar nossa angústia, tentamos nos consolar: Ela e louca, ,cmta-
- Se faltar alguém, serão todos fuzilados, como cachorros.
da..:' Puseram-lhe um lenço molhado na fronte para acalma-la. E
E desapareceram. As portas se fecharam novamente. Tínhamos
ela não parava de berrar: "O fogo! O incêndio! ..:'
caído na armadilha, até o pescoço. As portas estavam pregadas,
0 Seu filho chorava, aninhando-se em sua saia, procurando suas
caminho de volta, definitivamente interrompido. o mundo era um
mãos: "Não foi nada, mamãe! Não foi nada ... Sente-se.. :' Aquilo me
vagão hermeticamente fechado.
doía mais do que os gritos da mãe. Algumas mulheres tentavam
Entre nós havia uma certa senhora Schãchter, uma mulher de
acalmá-la: "A senhora vai encontrar seu marido e seus filhos ... Den-
uns cinqüenta anos, e seu filho, de dez anos, agachado em seu
tro de poucos dias.. :'
canto. Seu marido e as duas filhas tinham sido deportados na pri-
Ela continuava a gritar, ofegante, a voz entrecortada por soluços:
meira leva, por engano. Aquela separação a deixara completa-
mente abalada. "Judeus, ouçam-me: estou vendo fogo! Que chamas.IQue braseiro.
. l"
Como se uma alma maldita tivesse entrado nela e falasse do fundo
Eu a conhecia bem. Vinha muito à nossa casa: uma mulher pa-
do seu ser.
cata, de olhar ardente e tenso. Seu marido, um homem piedoso,
Tentávamos explicar, muito mais para nos tranqüilizarmos, para
passava seus dias e noites na casa de estudos, e era ela quem traba-
retomar nosso próprio fôlego do que para consolá-la: "Deve estar
lhava para alimentar a família.
com tanta sede, coitada! É por isso que está falando do fogo que a
A senhora Schãchter estava transtornada. Já no primeiro dia de
devora.. :'
nossa viagem começara a gemer, a perguntar por que a haviam se-
Mas tudo em vão. Nosso terror ia fazer as paredes do vagão explo-
parado dos seus. Mais tarde, seus gritos tornaram-se histéricos.
direm. Nossos nervos iam arrebentar. Nossa pele doía. Era como
Na terceira noite, estávamos dormindo sentados, uns apoiados
se a loucura fosse se apoderar de nós também. Não agüentávamos
nos outros e alguns em pé, quando um grito agudo perfurou o silêncio:
mais. Alguns jovens a fizeram sentar à força, amarraram-na e puse-
- Fogo! Estou vendo fogo! Estou vendo fogo!
ram-lhe uma mordaça na boca.
Foi um momento de pânico. Quem tinha gritado? Era a senho-
O silêncio tinha voltado. O menino estava sentado perto da mãe
ra Schãchter. No meio do vagão, na pálida claridade que vinha das
e chorava. Eu tinha recomeçado a respirar normalmente. Ouvíamos
janelas, ela parecia uma árvore seca num campo de trigo. Com
braço, apontava a janela, berrando: 0 as rodas escandirem no trilho o ritmo monótono do trem através da
noite. Podíamos voltar a cochilar, a descansar, a sonhar...
- Olhem! Olhem! Esse fogo! Um fogo terrível! Tenha piedade
de mim,jogo! Uma hora ou duas se passaram assim. Um novo grito nos cortou
a respiração. A mulher tinha se livrado das amarras e berrava mais
Alguns homens grudaram o corpo contra as grades. Não havia
nada além da noite. forte do que antes:
- Olhem o fogo! Chamas, chamas por toda parte...
34 ELIE WfESEL

A NOITE 35

Mais uma vez, os jovens a amarraram e amordaçaram. E lhe de-


ram até mesmo uns tapas. No que eram encorajados: S hãchter continuava- em seu canto, encolhida,- muda,
A senhora, c . o lhe acariciava a mao.
fiança geral. Seu menm
- Que essa louca se cale! Feche a boca! Ela não é a única! Tran-
que a boca!. .. indif~ente, a con
tilo começou a mva . dºu o vagão. Começamos a comer
O crepusc . - À dez horas, cada um procurou uma
Deram-lhe vários golpes na cabeça, golpes que poderiam matá- últimas proVIsoes. s . D
nossas
. - . para cochilar
boa . um po uco, e logo todos dormiram. e
la. Seu filho se agarrava a ela, sem gritar, sem dizer uma palavra. pos1çao
Nem chorava mais. repente: alºI
o incêndio! Olhem,
f:~~s Acred'.t~a­
1 1. ... ,
Uma noite que não acabava. Perto do amanhecer, a senhora
-O •m sobcmalto, con•mos para a janela.
Schachter tinha se acalmado. Agachada em seu canto, o olhar apar-
Acor ais uma vez, mesmo que so, p or um instante. Mas la iora
valhado fixando o vazio, não nos enxergava mais.
. m ·te escura. Envergonh ados , retomamos nossos lugares,
mos nela,
Ao longo de todo o dia, ficou assim, muda, ausente, isolada entre só havia a no1 , Como ela continuava
l edo apesar de nos mesmos.
nós. No começo da noite, pô-se a berrar novamente: "O incêndio, corroídos pe o m , , l amente e com muita dificul-
a berrar, começamos a espanca- a nov
lá!" Mostrava um ponto no espaço, sempre o mesmo. Estavam can-
· os fazê-la calar.
sados de bater nela. O calor, a sede, os odores pestilentos, a falta de dade consegu1m - h m oficial alemão que
nsável por nosso vagao c amou u
ar nos sufocavam, mas tudo isso era nada se comparado àqueles
Oarespo
estav _e
an dando na plati:llorma, pe dindo-lhe que levassem a nossa
gritos que nos afligiam. Mais alguns dias e também estaríamos ber-
rando do mesmo jeito. 0 vagão-hospital.
d ente
- Paciência - respondeu o outro -, pac1.ência . Logo a levaremos
para
Mas chegamos a uma estação. Os que estavam perto das janelas
leram para nós:
- Auschwitz. para lá. marcha. Corremos
Por volta das onze horas, o trem retomou a . d
Ninguém jamais ouvira esse nome. . elas O comboio rodava lentament e. Quinze mmutos e-
para as Jan . . . as cercas de arame farpa-
O trem não continuou viagem. A tarde passou lentamente. De- pois, voltou a ralentar. Das Janelas, Vimos
pois as portas do vagão deslizaram. Dois homens podiam descer d ue devia ser o campo.
para buscar água. do; compreen emos q . • . senhora Schãchter. De re-
Tínhamos esquecido a existenc1a da
Quando voltaram, contaram que haviam conseguido saber, em ente, ouvimos um grito terrível: '
troca de um relógio de ouro, que aquela era a última parada. Sería- p 'Olhem o fogo! As chamas, olhem.
- Judeus, olhem. · os no céu negro,
mos desembarcados. Aqui havia um campo de trabalho. Boas con- E como o trem havia parado, dessa vez Vlffi ,
dições. As famílias não seriam separadas. Apenas os jovens iriam . d d ma chaminé alta.
trabalhar nas fábricas. Os velhos e os doentes se ocupariam dos chamas sam o e u . ém mandar. Voltara a
A senhora Schãchter se calara sem nmgu
campos.
te e quieta em seu canto.
ficar muda, indiferente, ausen . h . abominável flu-
O barômetro da confiança deu um salto. Era a liberação repentina , chamas na noite. Um c erro
de todos os terrores das noites precedentes. Demos graças a Deus. Nós olhavamos as . Curiosos perso-
tuava no ar. De repente, nossas portas se abnram~ ara dentro do
. - s listrados, calças pretas, pular
nagens, d e cam1soe p
36 ELIE WIESEL

vagão. Nas mãos, uma lanterna elétrica e um basta-o C


b . omeçaram a
ater a torto e a direito, antes de gritar: Capítulo 3
- Desçam todos! Deixem tudo no vagão! Rápido! ' .
Saltamos para fora. Lancei um último olhar h
S h.. para a sen ora
c achter. O menino segurava sua mão.
?iante de nós, aquelas chamas. No ar, aquele cheiro de carne
queunada. Devia ser meia-noite. Tínhamos chegado. Birkenau.

Os objetos de valor que tínhamos carregado conosco até aqui


ficaram no vagão e, com eles, finalmente, nossas ilusões.
A cada dois metros, um S.S. com a metralhadora apontada para
nós. De mãos dadas, seguíamos a massa. Um suboficial S.S. veio
em nossa direção, cassetete na mão. Ordenou:
- Homens à esquerda! Mulheres à direita!
Quatro palavras ditas tranqüilamente, indiferentes, sem emo-
ção. Quatro palavras simples, breves. E, no entanto, foi o momento
em que deixei minha mãe. Mal tivera tempo de pensar e já sentia a
pressão da mão de meu pai: tínhamos ficado só nós dois. Em uma
fração de segundo, pude ver minha mãe, minhas irmãs partirem
para a direita. Tzipora segurava a mão de mamãe. Vi-as se afasta-
rem; minha mãe afagava os cabelos louros de minha irmã, como
que para protegê-la, e eu continuava a andar com meu pai, com os
homens. E nem suspeitava de que naquele lugar, naquele instante,
estava deixando minha mãe e Tzipora para sempre. Eu continuava a
andar. Meu pai me segurava pela mão.
Atrás de mim, um velho desabou no chão. Perto dele, um S.S.
guardou o revólver na bainha.
Minha mão se crispou no braço de meu pai. Um só pensamento:
não perdê-lo. Não ficar sozinho.
Os oficiais S.S. ordenaram:
- Em filas de cinco.
Um tumulto. Tínhamos de ficar juntos.
- Ei, menino. Quantos anos você tem?
38 ELIE WJESEL

A NOITE 39

Era um detento quem me perguntava Eu n - .


sua voz estava cansada e . ao via seu rosto, mas _ Precisamos fazer alguma coisa. Não podemos deixar que nos
quente.
- Ainda não fiz quinze. matell}. ir como o gado para o abate. Temos que nos revoltar.
- Não. Dezoito. Entre nós havia alguns rapazes robustos. Tinham punhais e in-
- Não - repliquei. - Quinze. citavam seus companheiros a atacar os guardas armados. Um jo-
- Idiota. Ouça o que eu estou dizendo. vem dizia:
E p~rg~ntou a meu pai, que respondeu: _ O mundo precisa saber da existência de Auschwitz. Todos os
- Cinquenta anos.
que ainda podem escapar de vir para cá precisam saber...
Mais_ furioso aind a, 0 h ornem retrucou:
Mas os mais velhos imploravam a seus filhos que não fizessem
- Nao, cinqüenta não. Quarenta Ou . ? .
Desapareceu com as somb d. ~ram. Dezoito e quarenta. besteira:
ras a noite Chego - Não devemos perder a confiança, mesmo quando a espada está
guejando: · u um outro, pra-
pendurada em cima de nossas cabeças. Assim falavam nossos Sábios.
- Seus cachorros, por que vocês vieram? H . •
AI ' · em, por que< O vento de revolta se acalmou. Continuamos a andar até uma
guem se atreveu a lhe responder: .
praça. No centro estava o doutor Mengele, o famoso doutor Men-
- O que o senhor está pensando< Q
Que pedimos para vir? . ue estamos aqui por prazer? gele (oficial S.S. típico, rosto cruel, não desprovido de inteligência,
Mais umpouco, e o outro o teria matado: monóculo), com uma batuta de maestro na mão, cercado de outros

- Cale a boca, seu porco, ou eu acabo • oticiais. A batuta se movia sem trégua, ora à direita, ora à esquerda.
Vocês deviam ter se enfo d l ' com voce agora mesmo. Logo eu estava diante dele:
rca o a mesmo ond t
virem para cá. Então na-o b' , e es avam, em vez de - Sua idade? - perguntou num tom que poderia parecer paternal.
sa iam o que esta d
em Auschwitz? Ignoravam <E va sen o preparado aqui, - Dezoito anos. Minha voz tremia.
. · -no. m 1944?
Sim, nós o ignorávamos N . , . - Boa saúde?
· mguem nos tinh d 't El
ditava no que estava o . d S a .i o. e não acre-
uvm o eu tom f;01· fi -Sim.
brutal: · cando cada vez mais
- Profissão?
- Estão vendo ali, a chaminé? Estão v ?
Dizer que eu era estudante?
vendo? (Sim, estávam d endo. As chamas, estão
os ven o as chamas ) p l, , - Agricultor - ouvi minha voz pronunciar.
vão levar vocês. É o seu tú ul A ' - . ara a, e para lá que
m o. mda nao ente d ? Essa conversa não durou mais do que alguns segundos. Mas para
então não entenderam nad ? u- . n eram. Cachorros,
a . vao queimar vo • ' c l mim pareceu durar uma eternidade.
Reduzir vocês a cinzas! ces. a cinar vocês!
Batuta para a esquerda. Dei um meio passo para a frente. Queria
Seu furor estava se tornando histérico F' . , .
ficados. Aquilo tudo n - . icamos imove1s, petri- ver antes para onde mandariam meu pai. Se fosse para a direita, eu
ao era um pesadelo< u
ginável? · m pesadelo inima- correria atrás dele.
Ouvi murmúrios, aqui e ali: A batuta, mais uma vez, se inclinou apontando-lhe a esquerda.
Foi como se me tirassem um peso do coração.
40 ELIE WIESEL

A NO ITE 41
Ainda não sabí
amos qual era a d. -
a da direita, qual caminh 1 . Jreçao boa, se a da esquerd
, . o evana ao b nh a ou _ Pai - disse-lhe eu-, se é assim, não quero mais esperar. Vou
ton~. No entanto, eu me sentia fel. . a o e qual levaria ao crema-
proc1ssão continuava a JZ. estava perto do meu pai N me jofr nas cercas eletrificadas. É melhor do que agonizar durante
U avançar, lentamente . ossa
m outro detento se a ro . . horas nas chamas.
- Sat.JSfce1tos?
· p Xlmou de nós·· Ele não me respondeu. Estava chorando. Seu corpo se sacudia,
- Sim al , trêmulo. À nossa volta, todo mundo chorava. Alguém começou a
- guem respondeu.
- Infelizes, vocês vão a entoar o Kadish, a oração dos mortos. Não sei se já aconteceu, na
El . p ra o crematório
e parecia estar dizend . longa história do povo judeu, que os homens tenham recitado a ora-
fc o a verdade N-
ossa subiam cham h . ao longe de nós d ção dos mortos para si mesmos.
. as, c amas gigantesc ' e uma
do queimada ali. Um caminhã as. Alguma coisa estava sen- - Yitgadal veyitkadach chmé raba... Que Seu Nome seja engran-
0
sua c se aproximou d b decido e santificado... - murmurava meu pai.
arga: eram criancinhas Beb · 's·
e. . es im . o uraco e despeiou
J
nanças nas chamas. (É d : , eu VI, vi com meus olhos Pela primeira vez, senti a revolta crescer em mim. Por que eu de-
e se admJr - ···
ca o sono fuja de meus olhos?) ar entao que desde aquela épo- veria santificar o Seu Nome? O Eterno, Senhor do Universo, o Eterno
Então é para lá que nós v Todo-Poderoso e Terrível se calava, o que eu Lhe agradeceria?
outra al amos. Um pouco di Continuávamos a andar. Pouco a pouco nos aproximamos da
v a, maior, para aduJt a ante haverá uma
B1 os.
e isquei-me no vala, de onde saía um calor infernal. Mais vjnte passos. Se eu quises-
rosto: eu estava vj ?
conseguia acreditar C vo. Estava acordado? N- se me matar, era a hora. Nossa coluna só precisaria de mais quinze
. . omo era possível . ao
crianças, e o mundo se calasse? N- que queimassem homens, passos. Eu mordia os lábios para meu pai não escutar meu queixo
de U · ao, nada d i1 batendo. Mais dez passos. Oito. Sete. Caminhávamos lentamente,
- . m pesadelo... Logo eu des . aqu o podia ser verda-
çao batendo, e encont . pertana sobressaltado com como num cortejo fúnebre, acompanhando nosso próprio enterro.
rana meu quarto d . ' o cora-
A voz de meu pai arrancou d e menino, meus livros Quatro passos, ainda. Três passos. Ali estava ela, bem perto de nós,
É -me e ···
- pena... Pena que v • - meus pensamentos: a vala e suas chamas. Eu reunia tudo o que ainda me restava de
oce nao te h "d
tas crianças da sua idade . d n a l o com sua mãe v1· m . forças para saltar para fora da fila e me jogar nas cercas. No fundo
m o embor ... u1-
Sua voz estava terrivelm a com a mãe... de meu coração, eu me despedia de meu pai, de todo o universo e,
ente trist p .
o que fariam comigo N- . e. erceb1 que ele não qu .
. ao queria ver seu , . ena ver contra minha vontade, palavras se formavam e afloravam de meus
Um suor frio cobria sua testa M U!Uco filho sendo queimado. lábios como um murmúrio: Yitgadal veyitkadach chmé raba ... Que
tava qu . · as eu lhe dº
. . e queimassem homens na , isse que não acredi- Seu Nome seja elevado e santificado... Meu coração ia explodir. Ali
Jama1s toleraria isso... nossa epoca, que a humanidade
estava eu, diante do anjo da morte...
- A humanidade? Ah .
em d · umanidade não · Não. A dois passos da vala, mandaram-nos virar à esquerda, e
ia, tudo é permitido. Tudo é , se interessa por nós. Ho ·e
matórios... Sua voz estava estrangulposds1vel, até mesmo os fornos cr~­ fizeram-nos entrar num galpão. ·
a a. Apertei com força a mão de meu pai. Ele me disse:
- Lembra da senhora Schachter, no trem?
A N OITE 43

42 ELIE WTESEL

chegada, mandou-nos um recado dizendo que, escolhido por sua


Nunca me esquecerei daquela noite a . . robustez, fora obrigado a introduzir no forno crematório o corpo
po, que fez de minha ºd . , prune1ra noite de cam-
ª
VI uma noite longa
Nunca me esquecerei daq l fum e sete vezes aferrolhada. •
de seu próprio pai.)
ue a aça Os golpes continuavam a chover:
Nunca me esquecere1. dos rostos das· crian .
se transformarem e l ças CUJOS corpos eu vi - Para o barbeiro!
m vo utas sob um céu azul e mudo Segurando o cinto e os sapatos, deixei-me conduzir até os bar-
Nunca me esquecerei daquelas chama . beiros. Suas máquinas arrancavam os cabelos, raspavam todos os
fé para sempre N s que consumiram minha
· unca me esquecere1. daquel il. . pêlos do corpo. Em minha cabeça, martelava sempre o mesmo pen-
me privou por toda a eternidade d d . e s enc10 noturno que
N o ese10 de viver samento: não me afastar de meu pai.
unca me esquecerei daqueles mom . Livres dos barbeiros, pusemo-nos a vagar pela massa, encon-
Deus, minha alma entos que assassinaram meu
Nun e meus sonhos, que se tornaram deserto trando amigos, conhecidos. Aqueles encontros nos enchiam de ale-
. ca me esquecerei daquilo, mesmo . . gria - sim. de alegri" "Deus seja louvado! Você ronda está vivo!..:
VIver tanto tempo qu t , que eu se1a condenado a
O - an o o propr·io Deus. Nunca Mas outros choravam. Aproveitavam o que lhes restava de força
galpao em que nos mandaram entrar e . · para chorar. Por que se tinham deixado trazer até aqui? Por que não
o teto, umas lucarnas azul d É ra mmto comprido.
N morreram em sua carna? Os soluços entrecortavarn suas vozes.
1ºnfierno. Tantos home a as. como de ve ser a antecâmara do
ns apavorados enl . De repente, alguém se jogou no meu pescoço e me beijou: Ye-
tanta brutalidade bestial. , ouquec1dos, tantos gritos,
chiel, o irmão do Rabino de Sighet. Chorava copiosamente. Pensei
Dezenas de presos nos receberam c que estivesse chorando de alegria por ainda estar vivo.
tendo a esmo em qual l , om um bastão na mão ba-
, quer ugar em ual , - Não chore, Yechiel - eu lhe disse. - Lamento pelos outros...
ma razão. Ordens: "Em ·1 ' , '. q quer pessoa, sem nenhu-
pe o. Rap1do! Raus' F , - Não chorar? Estamos às portas da morte. Logo estaremos lá
e os sapatos na mão.. :' . iquem so com o cinto
dentro... Você entende? Lá dentro. Como não chorar?
Tínhamos
. que Jogar
· nossas rou as n
mmtas outras lá. Temos p o fundo do galpão. Já havia Pelas lucarnas azuladas do teto, eu via a noite se dissipar pouco
novos, outros velh
rapas: nudez. Tremendo de frº os, casacos rasgados, far- a pouco. Tinha parado de sentir medo. E um cansaço inumano me
10.
Alguns oficiais S.S. circulavam l' exauria.
fortes. Se o vigor era t- . a dentro, procurando homens Os ausentes não nos vinham mais à memória. Falávamos deles
ao apreciado · ai
cer durão? Meu pai h , sena t vez o caso de pare- ainda - "quem sabe o que lhes terá acontecido?" - , mas não nos preo-
ac ava o contr ' . E
evidência. Nosso destino . ar10. ra melhor não ficar em cupávamos com seu destino. Estávamos incapacitados de pensar no
. , sena o mesmo d d .
Vlf1amos a saber que tính. os ema1s. (Mais tarde
amos mão o lh. ' que quer que fosse. Os sentidos estavam obstroídos, tudo se dissi-
oram incorporados ao S d . s esco idos naquele dia
6
lh on er-Kommand pava em uma névoa. Ninguém se apegava a mais nada. O instinto
ava nos crematórios B l K o, o comando que traba-
. . e a atz - o filh d de conservação, de autodefesa, o amor-próprio, tudo havia desapa-
c1ante de minha cidade - hav· h d o e um grande comer-
ia c ega o a B. k recido. Num último momento de lucidez, pareceu-me que éramos
carregamento um ir enau com o prirneir
, a semana antes d e nos., Quando soube de nossao
44 ELIE WIESEL

A NOITE 45

almas malditas errando no mundo-do-nada, almas condenadas a


, al ns detentos trabalhavam. Uns
errar através dos espaços até o fim das gerações, em busca de sua re- Não muito longe de nos, gu . Nenhum deles nos
tros transportavam areia.
denção, à procura do esquecimento - sem esperança de encontrá-lo. cavavam buracos, ou , no coração de um deserto.
• lh Éramos arvores secas d
Perto das cinco horas da manhã, fomos expulsos do galpão. Os lançava um o ar. - fnha a menor vontade e
. as falavam. Eu nao i
kapos nos batiam de novo, mas eu tinha deixado de sentir a dor dos Atrás de mun, pesso t a falando e do que es-
d' . de saber quem es av
golpes. Uma brisa gelada nos envolvia. Estávamos nus, com os cal- ouvir o que eles IZiam, . levantar a voz, mesmo que não
d N. guém se atreVIa a
çados e o cinto na mão. Uma ordem: "Correr!" E nós corremos. Ao tavam falan. ilância
o. m por perto. Coch lC' hava-se. Talvez por causa da
fim de alguns minutos de corridas, um outro galpão. houvesse VIg doía na garganta...
f ue empesteava o ar e
Um barril de petróleo na porta. Desinfecção. Cada um é mergu- espessa umaça q ai - o no campo dos ciganos.
Fizeram-nos entrar em um novo g pa ,
lhado lá dentro. Uma ducha quente em seguida. A toda a velocidade. Em filas de cinco.
• 1
Saindo da água, somos mandados Já para fora. Correr de novo. Mais E - se mexam mais. afund am
um galpão: almoxarifado. Mesas muito compridas. Montanhas de havia piso. Um teto e quatro pared es. Os pés se
-Nãonao av
roupas de presidiários. Corremos. Na passagem, nos jogam calças,
blusão, camisa e meias. na lama. começara Eu ad orm eci em pé. Sonhei com uma,
A espera re . . - E despertei: estava em pe,
Em poucos segundos, deixáramos de ser homens. Se a situação com um can'nho de minha mae. d
cama, ,
com os pes na lama. Alguns ,
caiam e ficavam deita os.
não fosse trágica, poderíamos ter explodido em gargalhadas. Que
trajes ridículos! Meir Katz, um colosso, recebeu uma calça de crian- Outros exclamavam: ficar de pé. Querem chamar
- Vocês estão loucos? Mandaram
ça, e Stern, um homenzinho franzino, um blusão no qual ele se afo-
gava. Logo procedemos às trocas necessárias.
desgraça? d undo já não tivessem caído
A noite passara, completamente. A estrela da manhã brilhava no Como se todas as desgraças o ~ todos nos sentando na
b Pouco a pouco, 1omos
céu. Eu também me tornara um outro homem. O estudante talmu- sobre nossas ca eças. 1 vantar a cada vez que
d h a precisávamos nos e ,
dista, o menino que eu era se havia consumido nas chamas. Só so- lama. Mas a to a or , inh par de sapatos novos.
alguem t a um
brara uma forma parecida comigo. Uma chama negra se introduzira um kapo entrava para ver se h . e no fim das contas,
De nada adiantava se opor: os golpes e ~VIam ,
em minha alma e a devorara.
d ualquer maneira.
perdiam-se os sapatos e q o estavam cobertos por
Tantos acontecimentos em tão poucas horas fizeram-me perder novos Mas com
Meus sapatos eram . Agradeci a Deus,
completamente a noção do tempo. Quando tínhamos deixado nos- d de lama, não os notaram. .
uma grossa cama a . do a lama em seu um-
sas casas? E o gueto? E o trem? Uma semana apenas? Uma noite .
em uma bênção circuns t an eia!, por ter ena
- uma só noite?
verso infinito e maravilhoso. . esado Um oficial S.S.
Há quanto tempo estávamos assim, no vento gelado? Uma hora? il . . tornou-se mais p .
Subitamente, o s enc10 . d orte Nossos olhares
Uma simples hora? Sessenta minutos? l o cheiro do anJO m
havia entrado e, com e e,
ª ·
. do galpão, ele discur-
Era um sonho, certamente. se fixaram em seus lábios carnudos. Do me10
sou para nós:
A NOITE 47
46 ELIE WIESEL

"nh has na carne daquele


eu teria cravado mi as un
- Vocês estão num campo de concentração. Em Auschwitz... O
rne calado. ntem, _ , ·do? o remorso
. . . mudado tanto assim? Tao rap1 . .
Uma pausa. Ele observava o efeito produzido por suas palavras. crimijoso. Eu havia , . nunca os perdoarei por
e corroer. So pensava.
Seu rosto ficou até hoje em minha memória. Um homem grande, de agora começava ª.m di inhando meus pensamentos; soprou-
ai devia estar a v
uns trinta anos, o crime gravado na testa e nas pupilas. Encarava- isso. Meu p . da estava com a marca
"d . "Não foi nada:' Seu rosto am
nos como a um bando de cães lazarentos que se agarram à vida. rne no ouvi o.
- Lembrem-se - ele prosseguiu. - Lembrem-se sempre, gravem vermelha da mão.
em sua memória. Vocês estão em Auschwitz. E Auschwitz não é
uma casa de repouso. É um campo de concentração. Aqui, vocês
• ~ 1
têm de trabalhar. Senão, irão direto para a chaminé. Para o cremató- - Todo mundo para ora. uarda Casse-
Uma dezena de ciganos viera se juntar ao no,sso g ·am ~em que
rio. Trabalhar ou o crematório - a escolha está em suas mãos.
. alavam à minha volta. Meus pes corn
Já tínhamos passado por coisas demais naquela noite, acháva- tetes e chicotes est d l atrás das pessoas. Um
dasse Tentei me proteger os go pes
mos que nada mais poderia nos assustar. Mas suas palavras secas eu man ·
nos fizeram estremecer. "Chaminé" não era uma palavra vazia de sol de primavera.
sentido: ela flutuava no ar, misturada com a fumaça. Aqui, talvez - Em filas de cinco! _ balh m ao lado. Ne-
. de manha tra ava
ela fosse a única palavra que tinha um sentido real. O oficial saiu do Os prisioneiros que eu vira h . , Entorpecido
, mbra da c amme...
galpão. Surgiram os kapos, gritando: nhum guarda perto deles, so a so . me puxavam pela
- Todos os especialistas - serralheiros, moleiros, eletricistas, re- .os do sol e por meus sonhos, senti que
pelos rai ,,
lojoeiros - , um passo à frente! ·. "Adiante, meu filho.
manga. Era meu pai. h Continuávamos a
Os outros foram transferidos para outro galpão, feito de pedra, b ·am se fec avam. 1
Andávamos. Portas se a n , placa branca 1
1
com permissão para se sentar. Um deportado cigano nos vigiava. l t ificadas A cada passo, uma
andar entre as cercas e e r · . · - . "Atenção! \
De repente, meu pai sentiu dor de barriga. Levantou-se e foi em . ue nos olhava. Uma mscnçao. 1
com uma caveira negra q . . só lu ar em que não cor- 1
direção ao cigano, perguntando-lhe, educadamente, em alemão: . d e mort e.1" Ironia: havena aqm urn g
Pengo
- Desculpe-me... O senhor pode me dizer onde ficam os ba-
rêssemos perigo de morte? ai ão Foram substi-
nheiros? · parado perto de um g P ·
Os ciganos h aviam t alhadoras cães
O cigano o encarou longamente, olhou-o dos pés à cabeça. Revólveres, me r '
tuídos por S.S., que nos cercaram.
Como se quisesse se convencer de que o homem que lhe dirigia a
palavra era mesmo um ser em carne e osso, um ser vivo com um policiais. . hora Olhando ao
d . ou menos meia .
corpo e uma barriga. Em seguida, como que subitamente desper- A marcha tinha dura o mais f ado estavam atrás de
meu redor, percebi que as cercas de arame arp
tando de um sono letárgico, deu uma bofetada tão forte em meu
pai que ele caiu, e voltou de quatro para o seu lugar. nós. Tínhamos saído do campo. d imavera flutuavam no
Era um lindo dia de maio. Perfumes e pr
Fiquei petrificado. O que tinha acontecido comigo? Tinham aca-
bado de bater em meu pai, e eu nem pestanejei. Eu tinha olhado e ar. O sol descia a oeste.
ELIE WIESEL
A NOITE 49

Mas, depois de caminhar apenas alguns instantes, vimos as cer-


1
cas de um outro campo. Uma porta de ferro; no alto, a inscrição: "O de so breVI·v.er. Já i:..
LW ei demais ' vocês estão cansados. Ouçam:
. vocês
trabalho liberta:' -
estao no bloco 17·' eu sou o responsável pela ordem aqui; cada um
Auschwitz. pode me procurar se tiver queixa de alguém. Isso é tudo. Duas pes-
soas por cama. Boa noite.
As primeiras palavras humanas.
Logo que subimos em nossos catres, caímos em um sono pesado.
Primeira impressão: era melhor que Birkenau. Construções em
No dia seguinte de manhã, os "antigos" nos trataram sem bruta-
cimento, de dois andares, em lugar dos galpões de madeira. Jardinzi-
lidade. Fomos aos lavabos. Deram-nos roupas novas. Trouxeram-
nhos aqui e ali. Conduziram-nos em direção a um daqueles blocos.
nos café preto.
Sentados no chão, na porta, voltamos a esperar. De vez em quando,
Deixamos o bloco por volta das dez horas para que o limpas-
mandavam alguém entrar. Eram as duchas, formalidade obrigatória
sem. Lá fora, o sol nos aqueceu. Nosso moral estava bem melhor.
na entrada de todos aqueles campos. Mesmo que fôssemos de um
Sentíamos os bons efeitos do sono da noite. Amigos se encontra-
para outro várias vezes por dia, seria preciso passar, a cada vez, pe-
los banhos. vam, trocavam algumas frases. Falava-se de tudo, menos dos que
haviam desaparecido. A opinião geral era de que a guerra estava
Saídos da água quente, ficávamos tiritando na noite. As roupas
tinham ficado no bloco, e prometeram-nos outras. prestes a acabar.
A meia-noite, mandaram-nos correr. Perto do meio-dia, trouxeram-nos sopa, um prato de sopa grossa
para cada um. Mesmo com muita fome, recusei-me.ª tocá-la~ Ainda
- Mais rápido - berravam os guardas. - Quanto mais rápido cor-
rerem, mais cedo irão se deitar. era 0 menino mimado de antes. Meu pai engoliu minha raçao.
Em seguida fizemos uma pequena sesta na sombra do bloco. O
Depois de alguns minutos de corrida alucinada, chegamos a um
oficial S.S. do galpão lamacento devia ter mentido: Auschwitz era
novo bloco. O responsável estava nos esperando. Era um jovem po-
mesmo uma casa de repouso ...
lonês, que nos sorria. Começou a falar conosco e, apesar de exaus-
tos, ouvimos pacientemente: À tarde, fomos postos em filas. Três prisioneiros trouxeram uma
mesa e instrumentos médicos. Com a manga esquerda levantada,
- Camaradas, vocês estão no campo de concentração de Aus-
todos tinham de passar pela mesa. Os três "antigos': com agulhas na
chwitz. Uma longa estrada de sofrimentos os espera. Mas não per-
mão, gravavam um número em nosso braço esquerdo. Tornei-me o
cam a coragem. Vocês já acabaram de escapar do maior perigo: a
A-7713. Dali em diante não tive outro nome.
seleção. Então, reúnam suas forças e não percam a esperança. Nós
Na hora do crepúsculo, chamada. Os comandos de trabalha-
todos veremos o dia da libertação. Tenham confiança na vida, mil
dores tinham voltado. Perto da porta, a orquestra tocava marchas
vezes confiança. Expulsem o desespero e se afastarão da morte. O
militares. Dezenas de milhares de detentos se postavam nas filas en-
inferno não dura eternamente... E agora, uma súplica, mais que um
quanto os S.S. verificavam seus números. .
conselho: que a camaradagem reine entre vocês. Somos todos ir-
Depois da chamada, os prisioneiros de todos os blocos se dis-
mãos e fomos atingidos pelo mesmo destino. Sobre nossas cabeças
persaram à procura de amigos, de parentes, de vizinhos chegados
flutua a mesma fumaça. Ajudem-se uns aos outros. É o único meio
no último comboio.
50 ELlE WIESEL A NOITE 51

Passavam-se os dias. De manhã: café preto. Meio-dia: sopa. (No - Sim, minha mãe recebeu notícias de sua família. Reizel está
terceiro dia, eu já estava tomando qualquer sopa com apetite.) Seis muito bem. As crianças t~ém ...
da tarde: chamada. Em seguida, pão e alguma outra coisa. Nove ho- Ele chorava de alegria. Gostaria de ter ficado mais tempo, saben-
ras: cama. do detalhes, embebendo-se em boas notícias, mas um S.S. estava se
Já estávamos em Auschwitz havia oito dias. Foi depois da chama- aproximando e ele teve de ir, gritando que voltaria no dia seguinte.
da. Esperávamos apenas o som do sino que anunciaria o fim da cha- O sino anunciou que podíamos nos dispersar. Fomos pegar a re-
mada. Ouvi de repente alguém passar por entre as filas e perguntar: feição da noite, pão e margarina. Eu estava faminto e engoli minha
- Quem de vocês é Wiesel de Sighet? ração imediatamente. Meu pai me disse:
Quem nos procurava era um homenzinho de óculos, rosto en- - Não se deve comer tudo de uma vez. Amanhã também é um dia...
rugado e envelhecido. E vendo que seu conselho tinha chegado tarde demais e que não
Meu pai lhe respondeu: restava mais nada do meu pão, nem chegou a partir o seu:
- Sou eu, Wiesel de Sighet. - Estou sem fome - disse.
O velhinho o encarou longamente, apertando os olhos:
- O senhor não está me reconhecendo ... Não está me reconhe-
cendo... Sou seu parente, Stein. Já se esqueceu? Stein! Stein de Ficamos três semanas em Auschwitz. Não tínhamos nada para
Anvers. O marido de Reizel. Sua mulher era tia de Reizel... Ela nos fazer lá. Dormíamos muito. À tarde e à noite.
escrevia sempre... e que cartas! A única preocupação era evitar as partidas, ficar aqui o maior
Meu pai não o reconhecera. Devia tê-lo conhecido muito mal, tempo possível. Não era difícil: bastava nunca se inscrever como
pois estava sempre mergulhado até o pescoço nos assuntos da co- operário qualificado. Os serventes eram deixados para o final.
munidade e muito menos ligado nos assuntos de família. Estava Ao fim da terceira semana, nosso chefe de bloco, considerado
sempre em outro lugar, perdido em seus pensamentos. (Em certa humano demais, foi destituído. Nosso novo chefe era feroz, e seus
ocasião, uma prima viera nos visitar em Sighet. Estava em nossa ajudantes, verdadeiros monstros. Os dias tranqüilos tinham termi-
casa e comia à nossa mesa há quinze dias quando meu pai notou nado. Começávamos a nos perguntar se não seria melhor nos dei-
sua presença pela primeira vez.) Não, ele não poderia se lembrar de xarmos ser destacados para a próxima partida.
Stein. Mas eu o tinha reconhecido. Conhecera Reizel, sua mulher, Stein, nosso parente de Anvers, continuava nos visitando e, de
antes de sua partida para a Bélgica. Ele falou: vez em quando, trazia uma meia porção de pão:
- Fui deportado em 1942. Ouvi dizer que tinha chegado um car- - Tome, é para você, Eliezer.
regamento da sua região e vim à sua procura. Pensei que vocês tal- A cada vez que ele vinha, lágrimas corriam-lhe dos olhos, estan-
vez tivessem notícias de Reizel e de meus dois meninos que ficaram cavam em sua face e se congelavam. Sempre dizia a meu pai:
em Anvers ... - Cuide do seu filho. Ele está muito fraco, mirrado. Cuide bem
Eu nada sabia sobre eles. Minha mãe não recebia mais cartas dele, para evitar a seleção. Comam! Qualquer coisa e a qualquer hora.
deles desde 1940. Mas menti: Devorem tudo o que puderem. Os fracos não duram muito aqui ..
52 ELIE WIESEL A NOITE 53

E ele próprio estava tão magro, tão mirrado, tão fraco ... Todos .os operários qualificados já tinham sido en~ados para
- A única coisa que me mantém vivo - costumava dizer - é saber outros campos. Nós éramos apenas uma centena de serventes.
que Reizel e meus meninos ajnda vivem. Se não fosse por eles, eu _ Chegou a vez de vocês, hoje - anunciou o secretário do bloco.
não resistiria majs. _ Vão partir com os carregamentos.
Uma noite, veio nos ver, radiante. As dez horas nos deram a ração diária de pão. Uma dezena de
- Acaba de chegar um carregamento de Anvers. Vou vê-los ama- s.S. nos cercava. Na porta, o letreiro: "O trabalho liberta:' Fomos
nhã. Eles certamente terão notícias. contados. E, veja só, estávamos em pleno campo, na estrada ensola-
E se foi. rada. No céu, pequenas nuvens brancas.
Nunca mais o veríamos. Tinha tido notícias. Notícias verdadeiras. Caminhávamos lentamente. Os guardas não tinham pressa. Sen-
tíamo-nos alegres. Ao atravessarmos as aldeias, muitos alemães nos
encaravam sem espanto. Provavelmente já tinham visto muitas da-
À noite, deitados em nossos catres, tentávamos cantar algumas quelas procissões ...
melodias hassídicas, e Akiba Drumer nos cortava o coração com No caminho, encontramos jovens alemãs. Os guardas começa-
sua voz grave e profunda. ram a mexer com elas. As moças riam, felizes. Deixavam-se beijar,
Alguns falavam de Deus, de seus caminhos misteriosos, dos pe- bolinar, e gargalhavam. Eles todos riam, gracejavam, jogaram pa-
cados do povo judeu e da libertação futura. Eu tinha deixado de lavras de amor durante um bom pedaço do caminho. Durante esse
rezar. Como eu entendia Jó! Eu não renegara Sua existência mas tempo, pelo menos ficávamos livres dos gritos e das coronhadas.
duvidava de Sua justiça absoluta. Ao fim de quatro horas, chegamos ao novo campo: Buna. A por-
Akiba Drumer dizia: ta de ferro se fechou atrás de nós.
- Deus está nos pondo à prova. Ele quer saber se somos capazes
de dominar os maus instintos, de matar o Satã em nós. Não temos
direito de nos desesperar. E quanto mais impiedosamente nos casti-
ga, mais demonstra que nos ama...
Hersch Genud, versado na Cabala, por sua vez, falava do fim do
mundo e da vinda do Messias.
Apenas de vez em quando, em meio a essas conversas, um
pensamento me rondava: "Onde está mamãe neste momento... e
Tzipora ..."
- Sua mãe ainda é uma mulher jovem - disse meu pai uma vez.
- Deve estar num campo de trabalho. E Tzipora também já não é
uma mocinha? Ela também deve estar num campo...
Como queríamos poder acreditar nisso! Fazíamos de conta um
para o outro: e se ele acreditasse mesmo?
• •

Capítulo 4

O campo parecia ter sido assolado por uma epidemia: vazio e


morto. Apenas alguns detentos bem-vestidos passeavam por entre
os blocos.
Antes de tudo, fizeram-nos passar pelas duchas, naturalmente.
O responsável pelo campo veio nos encontrar. Era um homem forte,
bem constituído, de ombros largos; pescoço taurino, lábios grossos,
cabelos ondulados. Dava a impressão de ser bom. De vez em quan-
do um sorriso brilhava em seus olhos azuis acinzentados. Nosso
comboio comportava alguns meninos de dez, doze anos. O oficial se
interessou por eles e ordenou que lhes trouxessem alguma comida.
Depois de nos terem dado roupas novas, fomos instalados em
duas tendas. Tínhamos de esperar até sermos incorporados aos
comandos de trabalho, depois passaríamos para um bloco.
A noite, os comandos de trabalho voltaram dos canteiros. Cha-
mada. Pusemo-nos a procurar conhecidos, a perguntar aos antigos
para saber qual comando de trabalho era o melhor, em qual bloco
devíamos tentar entrar. Todos os presos foram unânimes:
- Buna é um campo muito bom. Dá pra agüentar. O importante
é não ser designado para o comando da construção...
Como se a escolha estivesse em nossas mãos.

Nosso chefe de tenda era um alemão. Rosto de assassino, lábios


carnudos, mãos semelhantes a patas de lobo. Parece que a comida
do campo lhe fizera bastante bem: mal conseguia se mexer. Assim
E LIE WIESEL A NOITE 57

como o chefe do campo, ele gostava dos meninos. Logo depois da _ Você... você... você... - ele apontava com os dedos, como quem
nossa chegada, mandou que trouxessem pão, sopa e margarina para escolhe um animal, uma mercadoria.
eles. (Na realidade, essa afeição não era desinteressada: as crianças Seguimos nosso kapo, um jovem. Ele nos fez parar na entrada do
aqui eram objeto, entre homossexuais, de um verdadeiro tráfico, primeiro bloco, perto da porta do campo. Era o bloco da orquestra.
vim a saber mais tarde.) Anunciou: "Entrem': ordenou. Estávamos surpresos: o que nós tínhamos a ver
- Vocês ficarão três dias aqui comigo, em quarentena. Em segui- com a música?
da, irão trabalhar. Amanhã, visita médica. A orquestra tocava uma marcha militar, sempre a mesma. De-
Um de seus ajudantes - um menino de olhos malandros e ex- zenas de comandos saíam em direção aos canteiros, marchando. Os
pressão dura - aproximou-se de mim: kapos escandiam: "Esquerda, direita, esquerda, direita:'
Alguns oficiais S.S., papel e pena na mão, registravam o número
- Quer entrar para um bom comando?
de homens que saíam. A orquestra continuou a tocar a mesma mar-
- Claro. Mas com uma condição: quero ficar junto de meu pai...
cha até a passagem do último comando. O maestro, então, parou a
- De acordo - ele disse. - Posso arranjar isso. Por uma bobagem:
batuta. A orquestra parou imediatamente, e o kapo berrou: "Em filas!"
seus sapatos. Eu lhe darei outros.
Fizemos filas de cinco, com os músicos. Saímos do campo, sem
Recusei-lhe meus sapatos. Eram tudo o que me restava. música mas marchando assim mesmo: os ecos da marcha continua-
- Darei também uma ração de pão com um pedaço de margarina... vam em nossos ouvidos.
Os sapatos lhe agradavam; mas eu não os cedi. (De qualquer - Esquerda, direita! Esquerda, direita!
modo, eles me foram tirados mais tarde. Mas em troca de nada.) Entabulamos conversa com nossos vizinhos, os músicos. Eram
quase todos judeus. Juliek, polonês, óculos e um sorriso cínico em
seu rosto pálido. Louis, originário da Holanda, violinista de renome.
Visita médica ao ar livre, nas primeiras horas da manhã, diante Queixava-se por não o deixarem interpretar Beethoven: os judeus
de três médicos sentados em um banco. estavam proibidos de tocar música alemã. Hans, jovem berlinense
O primeiro quase não me auscultou. Limitou-se a me perguntar: muito espirituoso. O contramestre era um polonês: Franek, estu-
- Você está se comportando bem? dante veterano em Varsóvia.
Quem se atreveria a dizer o contrário? Juliek me explicou:
O dentista, em compensação, parecia mais consciencioso: man- - Trabalhamos em um depósito de material elétrico, não lon-
dava abrir bem a boca. Na realidade, não estava procurando os ge daqui. O trabalho não é nada difícil, nem perigoso. Mas Idek,
dentes estragados, mas os dentes de ouro. Anotava em uma lista 0 o kapo, de vez em quando tem acessos de loucura e nessas horas é
número de quem tivesse ouro na boca. Eu tinha uma coroa. melhor não estar em seu caminho.
Os três primeiros dias passaram-se rapidamente. No quarto - Você está com sorte, garoto - disse Hans, sorrindo. - Veio pa-
dia, ao amanhecer, enquanto nos postávamos diante da tenda, os rar num bom comando...
kapos apareceram. Cada um começou a escolher os homens que Dez minutos depois, estávamos diante do depósito. Um em-
lhe agradavam: pregado alemão, um civil, um meister, veio ao nosso encontro.
ELIE WIESEL A NOITE 59

Deu-nos quase tão pouca atenção quanto um comerciante daria à Tínhamos trocado as tendas pelo bloco dos músicos. Recebemos
entrega de trapos. um cobertor, uma bacia e um pedaço de sabão. O chefe do bloco
Nossos camaradas tinham razão: o trabalho não era difícil. Sen- era um judeu alemão.
tados no chão, devíamos contar as cavilhas, as lâmpadas e peças elé- Era bom ter um judeu como chefe. Chamava-se Alphonse. Um
tricas miúdas. Andando de um lado para outro, o kapo nos explicou homem jovem de rosto assombrosamente envelhecido. Era inteira-
a grande importância desse trabalho, advertindo-nos de que quem mente dedicado à causa do "seu" bloco. Sempre que podia, orga-
se mostrasse ocioso teria de se ver com ele. Meus novos camaradas nizava uma "caldeira" de sopa para os jovens, para os fracos, para
me tranqüilizaram: todos os que sonhavam com, mais do que liberdade, um prato de
- Não precisa ficar com medo. Ele tem de dizer isso por causa comida suplementar.
do meister.
Lá havia muitos poloneses civis, assim como algumas mulheres
francesas. Saudaram os músicos com os olhos. Um dia, quando estávamos entrando no depósito, fui chamado
Franek, o contramestre, chamou-me em um canto: para falar com o secretário do bloco:
- Não se esfole, não se apresse. Mas preste atenção para não ser - A-7713?
surpreendido por um S.S.
- Sou eu.
- Contramestre... eu gostaria de poder ficar perto de meu pai. - Depois de comer, você irá ao dentista.
- Está bem. Seu pai trabalhará aqui, ao seu lado.
- Mas ... não estou com dor de dente ...
Estávamos com sorte.
- Depois de comer. Sem falta.
Dois garotos foram trazidos para o nosso grupo: Yossi e Tibi,
Fui ao bloco dos doentes. Uns vinte prisioneiros esperavam em
dois irmãos, tchecos, cujos pais tinham sido exterminados em Birke-
fila diante da porta. Não foi preciso muito tempo para entendermos
nau. Dedicavam-se um ao outro de corpo e alma.
a razão de nossa convocação: era a extração dos dentes de ouro.
Tornaram-se meus amigos rapidamente. Como tinham perten-
cido a uma organização da juventude sionista, conheciam muitos Judeu originário da Tchecoslováquia, o dentista tinha um rosto

cantos hebreus. Às vezes nos acontecia de ficarmos cantarolando que parecia uma máscara mortuária. Quando abria a boca, era uma
suavemente árias que evocam as águas calmas do Jordão e a santi- visão horrível de dentes amarelos e podres. Sentado na cadeira, per-
dade majestosa de Jerusalém. E, igualmente, falávamos bastante da guntei-lhe humildemente:
Palestina. Seus pais também não haviam tido coragem de liquidar - Senhor dentista, o que o senhor vai fazer?
tudo e emigrar quando ainda era tempo. Decidimos que, se nos fos- - Tirar sua coroa de ouro, simplesmente - respondeu, em um
se dado viver até a Libertação, não ficaríamos nem mais um dia na tom indiferente.
Europa. Pegaríamos o primeiro navio para Haifa. Tive a idéia de fingir um mal-estar:
Ainda perdido em seus sonhos cabalísticos, Akiba Drumer des- - O senhor não poderia esperar alguns dias, doutor? Não estou
cobrira um versículo da Bíblia cujo conteúdo, decifrado, lhe permi- me sentindo bem, estou com febre.
tia predizer a Libertação para as próximas semanas. Ele franziu o cenho, pensou um instante e pegou meu pulso.
A NOITE 61
60 ELIE WlESEL

Arrastei-me até meu canto. Tudo doía. Senti uma mão fresca en-
- Bem, menino. Logo que se sentir melhor, volte aqui. Mas não
xugar minha testa ensangüentada. Era a operária francesa. Sorria
espere que eu o chame!
para mim, condoída, e me passou escondido um pedaço de pão.
Voltei uma semana depois. Com a mesma desculpa: ainda não me
Olhava-me firme nos olhos. Eu sentia que ela queria poder falar
sentia restabelecido. Ele não pareceu manifestar espanto, e não sei
comigo e que o medo a estrangulava. Ficou assim por longos ins-
se acreditou em mim. É provável que tenha ficado contente de ver tantes, depois seu rosto se iluminou e ela me disse, num alemão
que eu voltei por conta própria, como lhe havia prometido. Deu-me
quase correto:
mais um sursis. _ Morda os lábios, meu irmãozinho... Não chore mais. Guarde
Alguns dias depois de minha visita, fecharam o gabinete do sua raiva e seu ódio para um outro dia, para mais tarde. Um dia virá,
dentista, que havia sido preso. Seria enforcado. Descobriu-se que mas não agora ... Espere. Cerre os dentes e espere...
traficava os dentes de ouro dos detentos em seu próprio benefício. Muitos anos mais tarde, em Paris, eu estava lendo meu jornal no
Não senti nenhuma pena dele. Fiquei até mesmo muito feliz pelo metrô. Diante de mim, estava sentada uma mulher muito bonita, de
que lhe aconteceu: salvei minha coroa de ouro. Ela podia me servir, cabelos pretos, olhos sonhadores. Eu já tinha visto aqueles olhos em
um dia, para comprar alguma coisa, pão, vida. Não me interessava algum lugar. Era ela.
por mais nada além do meu prato de sopa diário, do meu pedaço de - A senhora não está me reconhecendo?
pão seco. O pão, a sopa... eram toda a minha vida. Eu era um corpo. - Não o conheço, senhor.
- '?
_ Em 1944, a senhora estava na Alem anha, em Buna, nao e .
Talvez menos ainda: um estômago faminto. Só o estômago sentia o
tempo passar. -Sim...
- A senhora trabalhava no depósito elétrico...
_ Sim - disse ela, um pouco perturbada. E após um momento de

Muitas vezes eu trabalhava perto de uma jovem francesa. Não silêncio: - Espere... Eu me lembro.. .
nos falávamos: ela não sabia alemão e eu não entendia o francês. - Idek, o kapo ... o menino judeu... suas doces palavras ...
Saímos juntos do metrô para nos sentarmos na calçada de um
Parecia-me ser judia, apesar de aqui passar por "ariana". Fora de-
café. Passamos a noite inteira puxando nossas lembranças. Antes de
portada para o trabalho obrigatório.
Um dia em que Idek teve um de seus ataques de fúria, eu esta- deixá-la, perguntei-lhe:
va em seu caminho. Ele avançou em mim coi;no um animal feroz, - Posso lhe perguntar uma coisa?
me batendo no peito, na cabeça, me jogando, me puxando, dando - Sei o que é, pergunte.
golpes cada vez mais violentos, até eu sangrar. Como eu mordia os - O que é?
- Se eu sou judia? ... Sim, sou judia. De família praticante. Con-
lábios para não urrar de dor, ele devia considerar meu silêncio como
segui documentos falsos durante a ocupação e me fazia passar por
desdém e continuava a me bater com mais vontade.
"arianà'. Assim, fui incorporada nos grupos de trabalho obrigatório
De repente, ele se acalmou. Como se nada tivesse acontecido,
e, deportada para a Alemanha, escapei do campo de concentração.
mandou-me de volta ao trabalho. Como se tivéssemos partici-
No depósito, ninguém sabia que eu falava alemão: isso teria despertado
pado, juntos, de um jogo cujos papéis tinham a mesma importância.
62 ELIE WJESEL A NOITE 63

suspeitas. Aquelas palavras que eu disse a você foram uma impru- Quando falei com meu pai, ele empalideceu, ficou mudo por um
dência; mas eu sabia que você não me trairia. longo momento e disse:
- Não, meu filho, não podemos fazer isso.
- Ele se vingará de nós.
Outra vez, tivemos que carregar alguns motores diesel para os - Ele não se atreverá, meu filho.
vagões, sob a vigilância de soldados alemães. Idek estava com Infelizmente, ele sabia o que fazer; conhecia meu ponto fraco.
os nervos à flor da pele. Mal se continha. De repente, sua fúria Meu pai nunca tinha feito serviço militar e não conseguia marchar.
explodiu. A vítima foi meu pai.
Ora, aqui, todos os deslocamentos em grupo deviam ser feitos em
Começou a bater com uma barra de ferro. Meu pai vergou-se
passo cadenciado. Era uma oportunidade para Franek torturá-lo e,
sob seus golpes, depois partiu-se em dois como uma árvore seca ..
todos os dias, moê-lo de pancadas ferozes. Esquerda, direita: socos!
atingida por um raio e desabou no chão.
Esquerda, direita: tapas!
Eu tinha assistido a toda aquela cena parado. Não dizia nada.
Decidi que eu mesmo daria aulas a meu pai, o ensinaria a mudar
Estava mais preocupado em me afastar para não receber os golpes.
E mais: se naquela hora eu estava com raiva, não era do kapo, mas do 0 passo, a manter o ritmo. Começamos a fazer exercícios na frente
meu pai. Sentia raiva dele por não ter sabido evitar a crise de Idek. do nosso bloco. Eu comandava: "Esquerda, direita!" e meu pai se
Eis o que a vida no campo de concentração tinha feito de mim. exercitava. Alguns detentos começaram a debochar de nós:
- Olhem, o pequeno oficial ensinando o velho a marchar... Ei,
generalzinho, quantas rações de pão o velho te dá por isso?
Franek, o contramestre, um dia notou que eu tinha uma coroa Mas os progressos de meu pai continuavam insuficientes, e os
de ouro na boca: golpes continuavam a chover em cima dele.
- Garoto, me dê sua coroa. - Então, ainda não sabe marchar, velho preguiçoso?
Respondi-lhe que era impossível, que sem aquela coroa eu não Aquelas cenas se repetiram durante duas semanas. Nós não
poderia comer.
agüentávamos mais.
- Com o que lhe dão para comer...
Tivemos que nos render. Franek explodiu, nesse dia, num riso
Encontrei outra resposta: minha coroa tinha sido registrada na
selvagem:
lista, quando da visita médica; isso podia trazer problemas para
- Eu sabia, eu bem sabia, garoto, que você acabaria me dando
nós dois.
razão. Antes tarde do que nunca. E, porque você me fez esperar, isso
- Se você não me der sua coroa, isso pode lhe custar muito
mais caro! lhe custará uma ração de pão a mais. Uma ração de pão para um de

Aquele menino simpático e inteligente de repente não era mais o meus companheiros, um célebre dentista de Varsóvia. Para que ele
mesmo. Seus olhos faiscavam de inveja. Disse a ele que eu precisava retire a sua coroa.
consultar meu pai. - Como? Minha ração de pão para lhe dar minha coroa?
- Pergunte a seu pai, garoto. Mas quero uma resposta amanhã. Franek sorria.
EL!E WIESEL A NOITE 65

- O que é que você queria? Que eu lhe quebre os dentes com _ Espere e verá, menino... Você vai ver quanto custa abandonar
um soco? seu trabalho... Você me paga; daqui a pouco... Agora volte para
Na mesma noite, nos gabinetes, o dentista varsoviano arrancou o seu lugar...
minha coroa com uma colher enferrujada.
Franek voltou a ficar mais gentil. Chegava a me dar, de vez em
quando, um prato a mais de sopa. Mas isso não durou muito tempo. Cerca de meia hora antes do encerramento normal do trabalho,
Quinze dias depois, todos os poloneses foram transferidos para ou-
0 kapo reuniu todo o comando. Chamada. Ninguém entendia o que
tro campo. Eu tinha perdido minha coroa por nada.
estava acontecendo. Uma chamada a esta hora? Aqui? Eu sabia. O
kapo fez um breve discurso:
_Um simples prisioneiro não tem direito de se meter nos assun-
Alguns dias antes da partida dos poloneses, eu passara por uma
nova experiência. tos de outra pessoa. Um de vocês parece não ter compreendido isso.
Era um domingo de manhã. Nosso comando não precisava tra- Então, eu me esforçarei para fazê-lo compreender, de uma vez por
balhar naquele dia. Mas justamente Idek não queria nem ouvir falar todas, claramente.
em ficar no campo. Tínhamos de ir ao depósito. Aquele súbito in- Eu sentia o suor escorrer em minhas costas.
teresse pelo trabalho nos deixou estupefatos. No depósito, Idek nos -A-7713!
confiou a Franek, dizendo: vanceL
- Façam o que quiserem. Mas façam alguma coisa. Senão, terão - Um caixote! - ele pediu.
notícias minhas ... Trouxeram um caixote.
E desapareceu. - Deite-se aí em cima! De bruços!
Não sabíamos o que fazer. Cansados de ficar agachados, cada Obedeci.
um de nós começou a andar pelo depósito, à procura de um pedaço
E, então, só senti as chicotadas.
de pão que algum civil pudesse ter esquecido por ali.
- Um! ... dois!. .. - ele contava.
Quando cheguei ao fundo do prédio, ouvi um barulho vindo de Ele demorava um pouco entre um golpe e outro. Só os primeiros
uma pequena sala vizinha. Aproximei-me e vi, em uma bancada,
doeram de verdade. Ouvia-o contar:
Idek e uma jovem polonesa seminus. Entendi por que Idek se havia
- Dez... onze!. ..
recusado a nos deixar no campo. Deslocar cem prisioneiros para se Sua voz estava calma e chegava até mim como que através de
deitar com uma garota! Aquilo me pareceu tão cômico que deixei
uma parede grossa.
escapar um riso alto.
- Vinte e três ...
Idek assustou-se, virou-se e me viu, enquanto a menina pro- Mais duas, eu pensei, semi-inconsciente. O kapo esperava.
curava cobrir o peito. Queria ter fugido, mas minhas pernas es-
- Vinte e quatro ... vinte e cinco!
tavam pregadas no chão. Idek pegou-me pelo pescoço. Com uma Estava acabado. Mas nem me dei conta, eu tinha desmaiado.
voz surda, disse: Senti que voltava a mim com a ducha de um balde de água fria.
A NOITE
66 EUE WIESEL

Em poucos instantes, o campo ficou parecendo um navio eva-


Ainda estava estendido no caixote. Via apenas, vagamente, a terra
cuado. As ruas desertas. Perto da cozinha, dois caldeirões de sopa
molhada perto de mim. E ouvi alguém gritar. Devia ser o kapo. Co-
quente e fumegante tinham sido abandonados pela metade. Dois
mecei a perceber que ele berrava:
caldeirões de sopa! Bem no meio da rua, sem ninguém para vigiá-
- De pé!
los! Festim real perdido, suprema tentação. Centenas de olhos os
Eu devia estar fazendo movimentos para me levantar, porque
contemplavam, faiscantes de desejo. Dois cordeiros espreitados por
senti-me cair outra vez em cima do caixote. Como eu queria ter
centenas de lobos. Dois cordeiros sem pastor, entregues. Mas quem
conseguido me levantar!
se atreveria?
- De pé! - ele urrava cada vez mais forte.
O terror era mais forte do que a fome. De repente, vimos a porta
Se ao menos eu pudesse lhe responder - dizia para mim mesmo -,
do bloco 37 se abrir imperceptivelmente. Um homem apareceu, ras-
se pudesse dizer a ele que não consigo me mexer. Mas não conse-
tejando como um verme em direção aos caldeirões.
guia abrir os lábios.
Centenas de olhos seguiam seus movimentos. Centenas de ho-
Por ordem de Idek, dois detentos me levantaram e me conduzi-
mens se arrastavam com ele, se esfolavam com ele nas pedras. Todos
ram até ele.
os corações disparavam, mas sobretudo de inveja. Ele se atrevera.
- Olhe-me nos olhos!
Tocou no primeiro caldeirão, os corações batiam mais forte: ele
Eu o olhava sem vê-lo. Pensava em meu pai. Devia estar sofren-
tinha conseguido. A inveja nos devorava, nos consumia como pa-
do mais do que eu.
lha. Em nenhum momento pensamos em admirá-lo. Pobre herói,
- Ouça-me, filho de um porco! - disse Idek friamente. - Isso foi
que se suicidava por uma ração de sopa, nós o assassinávamos em
por sua curiosidade. Terá cinco vezes mais se atrever-se a contar a
pensamento.
alguém o que você viu. Entendeu?
Deitado perto do caldeirão, ficou um tempo tentando se levan-
Sacudi a cabeça afirmativamente. Como se minha cabeça tivesse
tar até sua borda. Por fraqueza ou por medo, ele coqtinuava ali,
decidido dizer sim, para sempre.
certamente reunindo suas últimas forças. Por fim conseguiu alçar-
se até a borda do recipiente. Por um momento, ele pareceu estar se
olhando na sopa, procurando seu reflexo de fantasma. E então, sem
Um domingo, como a metade de nós - entre os quais meu pai
razão aparente, soltou um grito terrível, um estertor como eu nunca
- estava no trabalho, os outros - entre os quais eu - estavam no
tinha ouvido, e, com a boca aberta, jogou a cabeça no líquido ainda
bloco aproveitando para ficar deitados até mais tarde.
fumegante. Assustados, prendemos a respiração. Novamente caído
Por volta das dez horas, as sirenes de alarme começaram a to-
no chão, com o rosto sujo de sopa, o homem se contorceu por al-
car. Alerta. Correndo, os chefes do bloco nos juntaram dentro dos
guns segundos ao pé do caldeirão e não se moveu mais.
blocos, enquanto os S.S. se refugiavam nos abrigos. Como era rela-
Começamos então a ouvir os aviões. Quase imediatamente, os
tivamente fácil fugir durante o alerta - os guardas abandonavam as
galpões começaram a tremer.
guaritas e a corrente elétrica das cercas era cortada -, os S.S. tinham
- Estão bombardeando Buna! - alguém gritou.
ordem de abater quem quer que se encontrasse fora do bloco.
68 ELlE WIESEL A NOITE

Pensei em meu pai. Mas mesmo assim eu estava feliz. Ver a fá- Uma semana mais tarde, voltando do trabalho, vimos no meio
brica se consumir no incêndio, que vingança! É verdade que tínha- do campo, na praça da chamada, uma forca negra.
mos ouvido falar das derrotas das tropas alemãs nos diversos fronts, Soubemos que a sopa só seria distribuída depois da chamada.
mas não sabíamos se devíamos acreditar. Hoje, era concreto! Esta durou mais tempo do que o normal. As ordens foram dadas de
Nenhum de nós sentia medo. E, no entanto, se uma bomba ti- um modo mais seco que nos outros dias, e havia estranhas resso-
vesse caído nos blocos, teria feito centenas de vítimas de uma só vez. nâncias no ar.
Mas não temíamos mais a morte; em todo caso, não aquela morte. - Descubram a cabeça! - o chefe do campo berrou de repente.
Cada bomba que explodia nos enchia de alegria, nos devolvia con- Dez mil gorros foram tirados ao mesmo tempo.
fiança na vida. - Cubram a cabeça!
O bombardeio durou mais de uma hora. Bem que poderia ter Dez mil gorros voltaram às cabeças, rápido como um raio.
durado dez vezes dez horas... Depois, o silêncio se restabeleceu. A porta do campo se abriu. Um pelotão de S.S. apareceu e nos
Com o último som de avião americano que se foi com o vento, en- cercou: um S.S. a cada três passos. Das guaritas, as metralhadoras
contramo-nos de volta ao nosso cemitério. No horizonte subia um apontavam para a praça da chamada.
grande rastro de fumaça negra. As sirenes voltaram a berrar. Era o - Estão temendo rebeliões - murmurou Juliek.
fim do alerta. Dois S.S. estavam virados para a cela subterrânea. Voltaram-se,
Todos saíram dos blocos. Respirávamos a plenos pulmões o ar enquadrando o condenado. Era um jovem, de Varsóvia. Tinha três
cheio de fogo e de fumaça, e os olhos estavam iluminados de espe- anos de campo de concentração nas costas. Um rapaz forte e bem
rança. Uma bomba havia caído no meio do campo, perto da praça constituído, um gigante perto de mim. De costas para a forca e de
da chamada, mas não explodira. Tivemos que transportá-la para frente para o juiz, o chefe do campo, ele estava pálido, mas parecia ·
fora do campo. mais emocionado do que apavorado.
O chefe do campo, acompanhado de seu adjunto e do kapo inte- O chefe do campo começou a ler a sentença, martelando cada
rino, estava fazendo uma turnê de inspeção nas ruas. O reide tinha frase:
deixado sinais de um grande medo em seu rosto. - Em nome de Himmler... o detento nº ... fugiu durante o alerta...
Bem no meio do campo, a única vítima, jazia o corpo do homem Conforme a lei... parágrafo... o detento nº ... foi condenado à pena
com o rosto sujo de sopa. Os caldeirões foram levados de volta para de morte. Que isto seja uma advertência e um exemplo para todos
a cozinha. os detentos.
Os S.S. haviam reassumido seus postos nas guaritas, atrás de Ninguém se mexeu.
suas metralhadoras. O entreato terminara. Ouvi meu coração bater. As milhares de pessoas que morriam
Ao fim de uma hora, vimos os comandos voltarem, marchando, todos os dias em Auschwitz e em Birkenau, nos fornos crematórios,
como sempre. Com alegria, avistei meu pai. tinham parado de me perturbar. Mas este, encostado em sua pró-
- Vários prédios foram destruídos - ele me disse -, mas o depó- pria forca, estava me deixando transtornado.
sito não foi atingido... - Será que essa cerimônia vai acabar Jogo? Estou com fome ...
À tarde, fomos, animados, tirar os escombros das ruínas. - cochichava Juliek.
70 ELIE WIESEL
A NOITE 71

A um sinal do chefe do campo, o lagerkapo se aproximou do


Com ele trabalhava um menino, um pipel, como eram chamados.
condenado. Dois prisioneiros o ajudavam em sua tarefa. Por dois
Uma criança de rosto fino e belo, inimaginável naquele campo.
pratos de sopa. (Em Buna, os pipel eram odiados: muitas vezes mostravam-se
O kapo quis vendar os olhos do condenado, mas este recusou. mais cruéis que os adultos. Um dia vi um deles, de treze anos, bater
Após um longo momento de espera, o carrasco pôs-lhe a corda em seu pai porque este não havia arrumado sua cama direito. Como
em volta do pescoço. Quando ia fazer um sinal para que seus aju- 0 velho chorava baixinho, berrava: "Se você não parar de chorar
dantes tirassem a cadeira sob os pés do condenado, este bradou, imediatamente, não lhe trarei mais pão. Entendeu?" Mas o pequeno
com uma voz forte e calma: ajudante do holandês era adorado por todos. Ele tinha o rosto de
- Viva a liberdade! Eu amaldiçôo a Alemanha! Eu amaldiçôo! um anjo infeliz.)
Amai... Um dia, a central elétrica de Buna explodiu. Chamada a investi-
Os carrascos tinham acabado seu trabalho. gar, a Gestapo concluiu que houvera sabotagem. Descobriu-se uma
Cortante como uma espada, uma ordem atravessou o ar: trilha. Ela acabava no bloco do oberkapo holandês. E, lá, descobriu-
- Descubram a cabeça! se, numa batida, uma quantidade considerável de armas!
O oberkapo foi preso imediatamente. Foi torturado durante se-
Dez mil detentos renderam suas homenagens.
manas, mas em vão. Não denunciou ninguém. Foi transferido para
- Cubram a cabeça!
Auschwitz. Não se ouviu falar mais dele.
Depois, o campo inteiro, bloco após bloco, teve que desfilar
Mas seu pequeno pipel tinha ficado no campo, na solitária.
diante do enforcado e encarar os olhos apagados do morto, su~ lín-
Igualmente submetido à tortura, também permaneceu calado. Os
gua pendurada. Os kapos e os chefes de bloco obrigavam cada um a
S.S. então o condenaram à morte, assim como dois outros detentos
olhar aquele rosto bem de frente. com quem haviam descoberto armas.
Após o desfile, deram-nos permissão para voltar aos blocos e Num dia em que voltávamos do trabalho, vimos três forcas
tomar a refeição. erguidas na praça da chamada, três corvos negros. Chamada. S.S.
Lembro-me de que naquela noite achei a sopa excelente... nos cercando, metralhadoras apontadas: a cerimônia tradicional.
Três condenados acorrentados - e, entre, eles, o pequeno pipel, o
anjo de olhos tristes.
Vi outros enforcamentos. Nunca vi nenhum daqueles condena- Os S.S. pareciam mais preocupados, mais inquietos do que de
dos chorar. Havia já muito tempo que aqueles corpos ressequidos costume. Enforcar uma criança diante de milhares de espectado-
tinham esquecido o sabor amargo das lágrimas. res não era uma coisa qualquer. O chefe do campo leu a sentença.
Exceto uma vez. O oberkapo do 522 comando dos cabos era Todos os olhos estavam pregados no menino. Ele estava lívido,
um holandês: um gigante, de mais de dois metros. Setecentos de- quase calmo, mordendo os lábios. A sombra da forca se projetava
tentos trabalhavam sob suas ordens e todos o amavam como a um sobre ele.
irmão. Ninguém jamais recebera um tapa de sua mão, uma injú- Dessa vez, o lagerkapo negou-se a servir de carrasco. Três S.S. o
ria de sua boca. substituíram.
72 ELIE WIESEL

Os três condenados subiram em suas cadeiras. Os três pescoços Capítulo 5


foram introduzidos nos nós corrediços ao mesmo tempo.
- Viva a liberdade! - gritaram os dois adultos.
O pequeno, calado.
- Onde está o bom Deus, onde Ele está? - alguém perguntou
atrás de mim.
A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras foram derrubadas.
Silêncio absoluto em todo o campo. No horizonte, o sol estava
se pondo. O verão estava chegando ao ~- O ano judeu estava terminando.
- Descubram a cabeça! - berrou o chefe do campo. Sua voz esta- Na véspera do Rosh Hashaná, último dia daquele ano maldito, o
va rouca. Quanto a nós, estávamos chorando. campo inteiro estava eletrizado pela tensão que reinava em nossos
- Cubram a cabeça! corações. Era, apesar de tudo, um dia diferente dos outros. O último
E começou o desfile. Os dois adultos não viviam mais. Suas lín- dia do ano. A palavra "último" emitia um som muito estranho. E se
guas pendiam, grossas, azuladas. Mas a terceira corda não estava fosse realmente o último dia?
imóvel: tão leve, o menino ainda vivia... A refeição da noite foi distribuída, uma sopa bem grossa, mas
Por mais de meia hora ele ficou assim, lutando entre a vida e a ninguém tocou nela. Queríamos esperar até depois da oração. Na
morte, agonizando sob nossos olhos. E tínhamos de olhá-lo bem de praça da chamada, cercados de arames eletrificados, milhares de ju-
frente. Ainda estava vivo quando eu passei diante dele. Sua língua deus silenciosos se reuniram, de rosto desfeito.
ainda estava vermelha; seus olhos, ainda não apagados. A noite avançava. De todos os blocos, outros prisioneiros con-
Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar: tinuavam a afluir, capazes, repentinamente, de vencer o tempo e o
- E então, onde está Deus? espaço, de submetê-los à sua vontade. "O que és Tu, meu Deus':
E senti em mim uma voz que lhe respondia: eu pensava com raiva, "comparado a essa massa dolorida que vem
- Onde Ele está? Ei-Lo - está aqui, nesta forca. gritar a Ti sua fé, sua raiva, sua revolta? O que significa Tua grande-
Naquela noite, a sopa tinha gosto de cadáver. za, Mestre do Universo, diante de toda essa fraqueza, diante dessa
decomposição e dessa podridão? Por que ainda perturbar seus espí-
ritos doentes, seus corpos enfermos?"

Dez mil homens tinham vindo assistir ao ofício solene, chefes de


blocos, kapos, funcionários da morte.
- Bendigam o Eterno...
A voz do oficiante mal acabava de ser ouvido. Pensei, a princípio,
que fosse o vento.
74 ELIE WIESEL A NOITE 75

- Bendito seja o nome do Eterno! Hoje, eu não implorava mais. Não conseguia mais gemer. Sen-
Milhares de bocas repetiam a bênção, prosternavam-se como tia-me, ao contrário, muito forte. Eu era o acusador. E o acusado:
árvores na tempestade. Deus. Meus olhos se haviam aberto e eu estava só, terrivelmente
Bendito seja o nome do Eterno! só no mundo, sem Deus, sem homens. Sem amor nem piedade.
Por que, mas por que eu O bendiria? Todas as minhas fibras se Eu era apenas cinzas, mas sentia-me mais forte que o Todo-Pode-
revoltavam. Porque Ele tinha feito queimar milhares de crianças roso ao qual haviam ligado minha vida durante tanto tempo. No
naquelas valas? Porque Ele fazia funcionar seis crematórios dia e meio daquela assembléia de preces, eu era como um observador
noite, nos dias de Sabá e nos dias de festa? Porque em Seu grande estrangeiro.
poder Ele havia criado Auschwitz, Birkenau, Buna e tantas usinas da O ofício acabou com o Kadish. Cada um dizia o Kadish para
morte? Como eu Lhe diria: "Bendito sejas Tu, Mestre do Universo, seus pais, seus filhos, seus irmãos e para si mesmo.
que nos elegeu entre os povos para sermos torturados dia e noite, Por um longo tempo ficamos na praça da chamada. Ninguém
para vermos nossos pais, nossas mães, nossos irmãos acabarem no ousava se retirar daquela miragem. Chegou a hora de deitar, e os
crematório? Louvado seja Teu Santo Nome, Tu que nos escolheste detentos foram para seus blocos a passos miúdos. Ouvi que uns de-
para sermos degolados em Teu altar?" sejavam aos outros um bom ano!
Ouvi a voz do oficiante se elevar, possante e entrecortada ao Parti correndo à procura de meu pai. E ao mesmo tempo sentia
mesmo tempo, em meio a lágrimas, soluços, suspiros de toda a as- medo de ter de lhe desejar um feliz ano, no qual eu já não acredi-
sistência: tava mais.
- Toda a Terra e o universo pertencem a Deus! Ele estava em pé perto do bloco, encostado na parede, curvado,
Interrompia-se a cada momento, como se não tivesse força para os ombros caídos como que sob uma pesada carga. Aproximei-me,
reencontrar sob as palavras o seu conteúdo. A melodia se estrangu- peguei sua mão e a beijei. Uma lágrima caiu dela. De quem, aquela
lava em sua garganta. lágrima? A minha? A dele? Eu não disse nada. Ele também não.
E eu, o místico de outrora, pensava: "Sim, o homem é mais forte, Jamais nos havíamos entendido tão claramente.
. maior que Deus. Quando Tu ficaste decepcionado com Adão e Eva, O som do sino nos lançou de volta à realidade. Era hora de nos
Tu os expulsaste do paraíso. Quando a geração de Noé Te desagra- deitarmos. Estávamos voltando de muito longe. Levantei os olhos
dou, Tu fizeste vir o dilúvio. Quando Sodoma caiu em desgraça a para ver o rosto de meu pai, curvado sobre mim, para tentar sur-
Teus olhos, Tu fizeste chover fogo e enxofre. Mas estes homens aqui, preender um sorriso ou qualquer coisa que se parecesse com ele em
que Tu enganaste, que Tu deixaste torturar, degolar, asfixiar, calci- seu semblante ressecado e envelhecido. Mas nada. Nem sombra de
nar, o que fazem? Rezam diante de Ti! Louvam Teu nome!" uma expressão. Vencido.
- Toda a criação testemunha a Grandeza de Deus!
Antes, o dia do Ano-Novo regia minha vida. Sabia que meus pe-
cados entristeciam o Eterno, implorava Seu perdão. Antes, eu acre- Yom Kippur. O dia do Grande Perdão.
ditava profundamente que, de um só de meus gestos, de uma só de Devíamos jejuar? A questão era asperamente debatida. Jejuar
minhas orações, dependia a saúde do mundo. podia significar uma morte mais certa, mais rápida. Aqui jejuava-se
ELIE WIESEL A NOITE 77

o ano inteiro. O ano inteiro era Yom Kippur. Mas outros diziam que trinta graus. Os cadáveres eram recolhidos às centenas por dia. O
devíamos jejuar, justamente porque era um perigo fazê-lo. Era pre- trabalho era pesado. Hoje, é um paraíso. Os kapos tinham recebido
ciso mostrar a Deus que mesmo aqui, neste inferno cercado, éramos ordem de matar um certo número de prisioneiros por dia. E, toda
capazes de cantar Seus louvores. semana, a seleção. Uma seleção impiedosa... Sim, vocês têm sorte.
Eu não jejuei. Em primeiro lugar, para agradar a meu pai, que - Chega! Calem-se! - eu implorei. - Contem suas histórias ama-
me proibira de fazê-lo. Depois, eu não via mais nenhuma razão pa- nhã, ou num outro dia.
ra jejuar. Não aceitava mais o silêncio de Deus. Engolindo minha Eles explodiram em gargalhadas. Não era à toa que eram
tigela de sopa, via naquele gesto um ato de revolta e de protesto veteranos ...
contra Ele. - Está com medo? Nós também sentíamos medo. E antes havia
E eu roía o meu pedaço de pão. motivos.
No fundo do meu coração, sentia que se abrira um grande vazio. Os velhos continuavam em seu canto, mudos, imóveis, acossa-
dos. Alguns rezavam.
Uma hora de prazo. Em uma hora, saberíamos a sentença: a
Os S.S. nos ofereceram um belo presente para o Ano-Novo. morte, ou o sursis.
Estávamos voltando do trabalho. Logo que chegamos à porta do E meu pai? Só agora eu me lembrava dele. Como ele passaria
campo, sentimos no ar algo inabitual. A chamada durou menos que pela seleção? Tinha envelhecido tanto...
de costume. A sopa da noite foi distribuída a toda a velocidade, e
logo engolida, em meio à angústia.
Eu já não estava mais no mesmo bloco que meu pai. Tinha sido Nosso chefe de bloco não saíra dos campos de concentração des-
transferido para um outro comando, o da construção, no qual, du- de 1933. Já passara por todos os matadouros, por todas as usinas da
rante doze horas por dia, eu carregava pesados blocos de pedra. O morte. Perto das nove horas, ele se plantou no meio de nós:
chefe do meu novo bloco era um judeu alemão, um homem pequeno, -Achtung!
de olhar agudo. Naquela noite, ele avisou que ninguém podia sair do Logo se fez silêncio.
bloco depois da sopa. E logo circulou uma palavra terrível: seleção. - Escutem bem o que vou lhes dizer. (Pela primeira vez, eu per-
Sabíamos o que aquilo queria dizer. Um S.S. ia nos examinar. cebia sua voz tremer.) Dentro de alguns instantes começará a se-
Quando encontrasse um fraco, um "muçulmano': como dizíamos, leção. Vocês devem tirar toda a roupa. Depois, passar um por um
anotaria seu número: bom para o crematório. diante dos médicos S.S. Espero que vocês todos passem pela prova.
Depois da sopa, nos reunimos entre as camas. Os veteranos Mas vocês mesmos devem aumentar suas chances. Antes de entrar
diziam: na sala ao lado, façam alguns movimentos para ganhar um pouco
- Sorte de vocês terem sido trazidos para cá tão tarde. Hoje é um de cor. Não fiquem andando muito tempo, corram! Corram como
paraíso, comparado ao que este campo era há dois anos. Buna era se estivessem fugindo do diabo! Não olhem para os S.S. Corram,
então um verdadeiro inferno. Não havia água nem cobertores, tinha olhando para a frente.
menos sopa e pão. À noite, dormíamos quase nus, e fazia menos Fez uma pausa e acrescentou:
ELIE WIESEL A NOITE 79

- E o mais importante: não tenham medo! muito fraco ... Finalmente eu tinha chegado, no limite das minhas
Aí está um conselho que teríamos gostado de poder seguir. forças. Depois de retomar fôlego, perguntei a Yossi e Tibi:
Eu me despi, deixando minhas roupas na cama. Naquela noite, - Fui inscrito?
não havia nenhum perigo de que fossem roubadas. - Não - disse Yossi. E, sorrindo: - De todo modo, ele não teria
Tibi e Yossi, que haviam mudado de comando junto comigo, vie- conseguido, você estava correndo rápido demais ...
ram me dizer: Comecei a rir. Estava feliz. Queria tê-los abraçado. Naquela hora,
- Vamos ficar juntos. A gente se sente mais forte. pouco importavam os outros! Eu não tinha sido inscrito.
Yossi murmurava alguma coisa entre os dentes. Devia estar Aqueles cujos números foram anotados mantinham-se à distân-
rezando. Eu nunca soubera que Yossi era piedoso. Sempre pensei
cia, abandonados pelo mundo inteiro. Alguns choravam em silêncio.
exatamente o contrário. Tibi estava calado, muito pálido. Todos os
detentos do bloco estavam postados, nus, entre as camas. É assim
que talvez devamos nos apresentar no Juízo Final.
Os oficiais S.S. se foram. O chefe do bloco apareceu, seu rosto
- Estão chegando!. ..
refletia o cansaço de todos nós.
Três oficiais S.S. escoltavam o famoso doutor Mengele, o mesmo
que nos recebera em Birkenau. O chefe do bloco, tentando sorrir, - Correu tudo bem. Não se preocupem. Não acontecerá nada a
perguntou-nos: ninguém. A ninguém...
- Prontos? Ainda estava tentando sorrir. Um pobre judeu emagrecido, des-
Sim, estávamos prontos. Os médicos S.S. também. O doutor secado, perguntou-lhe avidamente, com a voz trêmula:
Mengele segurava uma lista na mão: nossos números. Fez sinal para - Mas... mas, Blockelteste, mas eu fui inscrito!
o chefe do bloco: "Podemos começar!" Como se fosse um jogo. O chefe do bloco deixou sua cólera explodir: como alguém se
Os primeiros a serem avaliados foram as "personalidades" do recusava a acreditar nele?
bloco, studenelteste, kapos, contramestres, todos em perfeita con- - Mas o que é ainda? Eu estarei mentindo, por acaso? Estou lhes
dição física, naturalmente! Depois foi a vez dos presos comuns. O dizendo de uma vez por todas: não lhes acontecerá nada! A nin-
doutor Mengele media-os da cabeça aos pés. De vez em quando, guém! Vocês se comprazem no desespero, são uns imbecis!
anotava um número. Um único pensamento me invadia: não dei- O sino tocou, indicando-nos que a seleção havia acabado em
xar que pegassem meu número, não deixar que vissem meu braço todo o campo.
esquerdo. Com todas as minhas forças, fui correndo até o bloco 36; encon-
Antes de mim, só havia Tibi e Yossi. Eles passaram. Tive tempo trei meu pai no caminho. Ele veio até mim.
de ver que Mengele não havia anotado seus números. Alguém me - E então? Você passou?
empurrava. Era a minha vez. Corri sem olhar para trás. Minha ca- - Sim. E você?
beça girava: você é muito magro, você é fraco, você é magro demais, -Também.
você está bom para a chaminé... A corrida me parecia interminável, Como respirávamos, agora! Meu pai tinha um presente para mim:
eu pensava estar correndo há anos... Você é muito magro, você é meia ração de pão obtida em troca de um pedaço de borracha,
80 ELIE WIESEL A NOITE 81

encontrado no depósito, que podia servir para fazer uma sola de Vi meu pai correndo em minha direção. De repente, tive medo.
sapato. - O que houve?
O sino. Já tínhamos de nos separar, ir deitar. Tudo era regula- Ofegante, ele não conseguia abrir os lábios.
do por um sino. Ele me dava ordens e eu as executava, automati- - Eu também... eu também... Eles me disseram para ficar no campo.
camente. Eu o odiava. Quando me acontecia de sonhar com um Tinham anotado seu número sem que ele tivesse percebido.
mundo melhor, eu só imaginava um universo sem sino. - O que vamos fazer? - eu disse, angustiado.
Alguns dias se passaram. Não pensávamos mais na seleção. Mas era ele quem queria me tranqüilizar:
famas trabalhar como de hábito e carregávamos pesadas pedras
- Ainda não é certo. Ainda há chances de escapar. Hoje vão fazer
para dentro dos vagões. As rações estavam mais magras: era a úni-
uma segunda seleção... uma seleção decisiva...
ca mudança.
Eu estava calado.
Tínhamos nos levantado ao amanhecer, como todos os dias. Tí-
Ele sentia o tempo lhe faltar. Falava rápido: queria ter me dito
nhamos recebido o café, a ração de pão. Estávamos indo para o can-
tantas coisas. Embrulhava-se em suas próprias palavras, sua voz
teiro, como sempre. O chefe do bloco chegou correndo:
- Um pouco de calma, um minuto. Tenho aqui uma lista de nú- falhava. Sabia que eu deveria partir em poucos instantes. Ia ficar
meros. Vou lê-los para vocês. Todos os que eu chamar não irão ao sozinho, tão sozinho...
trabalho esta manhã: ficarão no campo. - Tome, pegue esta faca - ele me disse -, não preciso mais dela.
E, com a voz mole, leu uma dezena de números. Havíamos Poderá lhe servir. E pegue esta colher também. Não as venda. Rápi-
entendido: eram aqueles da seleção. O doutor Mengele não tinha do! Ande, pegue logo!
esquecido. A herança...
- Salve-nos! O senhor nos havia prometido... Queremos ir para - Não fale assim, pai. (Sentia-me a ponto de explodir em solu-
o canteiro, temos bastante força para trabalhar. Somos bons operá- ços.) Não quero que você diga isso. Guarde a colher e a faca. Você
rios. Podemos ... Queremos... precisa delas mais do que eu. Nós nos veremos esta noite, depois do
Ele tentava acalmá-los, tranqüilizá-los quanto a seu destino, ex- trabalho.
plicar-lhes que o fato de ficarem no campo não queria dizer muita Fixou em mim seus olhos cansados e velados pelo desespero. E
coisa, não tinha um significado trágico: retomou:
- Eu fico lá todos os dias ... - Estou lhe pedindo... Pegue-as, faça o que estou lhe pedindo,
O argumento era um pouco frágil. Ele se deu conta, não disse meu filho. Não temos tempo... Faça o que seu pai está mandando.
mais nem uma palavra e trancou-se em seu quarto. Nosso kapo berrou a ordem de sair em marcha.
O sino tinha acabado de tocar. O comando se dirigia para a porta do campo. Esquerda, direita!
- Em filas! Eu mordia os lábios. Meu pai ficara perto do bloco, encostado na
Pouco importava agora que o trabalho fosse pesado. O essencial parede. Depois começou a correr para nos alcançar. Talvez tivesse
era ficar longe do bloco, longe da caldeira da morte, longe do centro esquecido de me dizer alguma coisa... Mas nós marchávamos rápido
do inferno. demais ... Esquerda, direita!
82 ELIE WIESEL
A NOITE

Já estávamos na porta. Estavam nos contando, em meio ao som - Acabou. Deus não está mais conosco.
ensurdecedor da música militar. Estávamos do lado de fora. E, como se tivesse se arrependido de ter pronunciado tais pa-
Vaguei como um sonâmbulo o dia inteiro. Tibi e Yossi de vez em lavras, tão friamente, tão secamente, acrescentou com sua voz
quando me dirigiam uma palavra fraterna. O kapo também tentava velada:
me acalmar. Tinha me dado um trabalho mais fácil hoje. Sentia meu - Eu sei. Não temos direito de dizer coisas assim. Sei muito bem.
coração apertado. Como eles estavam me tratando bem! Como um O homem é muito pequeno, muito miseravelmente ínfimo para
órfão. Eu pensava: mesmo agora, meu pai continua me ajudando. procurar compreender os caminhos misteriosos de Deus. Mas o
Eu mesmo não sabia o que queria, que o dia passasse rápido ou que posso fazer? Não sou um Sábio, um Justo, não sou um Santo.
não. Sentia medo de me ver sozinho à noite. Como seria bom mor- Sou uma simples criatura de carne e osso. Sofro o inferno em mi-
rer aqui! nha alma e em minha carne. Tenho também dois olhos e vejo o
Finalmente pegamos o caminho de volta. Como eu queria que que fazem aqui. Onde está a Misericórdia divina? Onde está Deus?
nos mandassem correr! Como eu posso acreditar, como se pode acreditar nesse Deus de
A marcha militar. A porta. O campo. misericórdia?
Corri para o bloco 36. Pobre Akiba Drumer, se tivesse conseguido continuar acreditan-
Ainda havia milagres na terra? Ele estava vivo. Tinha escapado do em Deus, ver neste calvário uma provação de Deus, não teria
da segunda seleção. Ainda conseguira provar sua utilidade... Devol- sido vencido pela seleção. Mas, a partir do momento em que sentiu
vi-lhe a faca e a colher. as primeiras fissuras em sua fé, perdeu suas razões para lutar e co-
meçou a agonizar.
Quando chegou a seleção, ele já estava condenado antecipada-
Akiba Drumer nos deixou, vítima da seleção. Nos últimos tem-
mente, oferecendo seu pescoço ao algoz. Só nos pediu:
pos, deambulava entre nós, os olhos vítreos, contando a cada um
- Em três dias, eu já terei morrido... Digam o Kadish em minha
sua fraqueza: "Não posso mais ... Acabou.. :· Impossível elevar seu
intenção.
moral. Não escutava o que lhe diziam. Só repetia que tudo estava
Nós lhe prometemos: dentro de três dias, vendo a fumaça subir
acabado para ele, que não podia mais seguir lutando, que não tinha
da chaminé, pensaríamos nele. Reuniríamos dez homens e faríamos
mais força, nem fé. Seus olhos, que de repente estavam vazios, tor-
um ofício especial. Todos os seus amigos diriam o Kadish.
naram-se apenas duas chagas abertas, dois poços de terror.
Ele não foi o único a perder a fé, naqueles dias de seleção. Co- Então ele se foi, na direção do hospital, com um passo quase se-
nheci um rabino de uma pequena cidade da Polônia, um ancião, en- guro, sem olhar para trás. Uma ambulância o esperava para levá-lo
curvado, os lábios sempre batendo. Rezava o tempo todo, no bloco, a Birkenau.
no canteiro, nas filas. Recitava de cor páginas inteiras do Talmude, Seguiram-se então dias terríveis. Recebíamos mais pancadas do
discutia consigo mesmo, fazia perguntas e as respondia para si. E, que comida, estávamos moídos pelo trabalho. E, três dias depois de
um dia, ele me disse: sua partida, esquecemos de dizer o Kadish.
EL!E WIESEL A NO ITE 85

O inverno chegara. Os dias ficaram curtos, e as noites tornaram- precisa de judeus doentes. A Alemanha não precisa de mim. No
se quase insuportáveis. Nas primeiras horas da manhã, o vento ge- próximo carregamento, você terá um novo vizinho. Então ouça-
lado nos lacerava como um chicote. Deram-nos roupas de inverno: me, siga meu conselho: deixe o hospital antes da seleção.
camisas listradas um pouco mais grossas. Os veteranos tiveram uma Aquelas palavras, saindo do fundo da terra, de uma forma sem
nova oportunidade de caçoar de nós: rosto, me aterrorizaram. Sim, o hospital era mesmo exíguo, e se no-
- Agora, vocês vão sentir realmente o gosto do campo! vos doentes chegassem por estes dias, seria preciso liberar lugares.
Partíamos para o trabalho como de hábito, o corpo gelado. As Mas talvez meu vizinho sem rosto, temendo estar entre as pri-
pedras estavam tão frias que parecia que nossas mãos ficariam cola- meiras vítimas, quisesse simplesmente me expulsar, liberar meu lei-
das nelas só de tocá-las. Mas a tudo se acostuma. to para dar a si mesmo uma chance de sobreviver. Talvez ele só qui-
No Natal e no dia do Ano-Novo, não trabalhamos. Tivemos di- sesse me apavorar. Mas e se ele estivesse dizendo a verdade? Resolvi
reito a uma sopa menos rala. esperar os acontecimentos.
O médico veio me anunciar que eu seria operado no dia seguinte.
- Não tenha medo - acrescentou -, vai correr tudo bem ...
Em meados de janeiro, meu pé direito começou a inchar por Às dez horas da manhã, levaram-me para a sala de operação.
causa do frio. Eu não conseguia mais pisar com ele. Fui à visita mé- "Meu" doutor estava presente. Senti-me reconfortado. Sentia que
dica. O médico, um grande médico judeu, um detento como nós, em sua presença nada de grave poderia me acontecer. Cada uma de
foi categórico: suas palavras era um bálsamo e cada um de seus olhares me chegava
- É preciso operar! Se esperarmos, será preciso amputar os de- como um sinal de esperança.
dos do pé e talvez a perna. - Vai doer um pouco - ele disse-, mas vai passar. Aperte os dentes.
Não me faltava mais nada! Mas eu não tinha escolha. O médico A operação durou uma hora. Não tinham me anestesiado. Eu
decidira operar, não havia o que discutir. Senti-me até mesmo satis- não tirava os olhos do meu médico. Depois, senti-me naufragar.
feito por ter sido ele quem tomara a decisão. Quando voltei a mim, ao abrir os olhos, de início vi apenas uma
Puseram-me em uma cama, com lençóis brancos. Eu já tinha me imensa brancura, meus lenç?is, depois entrevi o rosto de meu mé-
esquecido de que gente dormia em lençóis. dico em cima de mim:
O hospital não era nada mau. Recebíamos o pão de cada dia - Correu tudo bem. Você é corajoso, menino. Agora, vai ficar
e sopa grossa. Nada de sino, nada de chamada, nada de trabalho. aqui duas semanas, repousar convenientemente, e tudo estará aca-
De vez em quando, eu conseguia fazer chegar até meu pai um bom bado. Vai comer bem, relaxar seu corpo e seus nervos ...
pedaço de pão. Eu apenas acompanhava os movimentos de seus lábios. Mal
Perto de mim estava deitado um judeu húngaro acometido de compreendia o que ele me dizia, mas o zumbido de sua voz me fazia
disenteria. Pele e osso, olhos apagados. Eu só ouvia sua voz; era sua bem. Subitamente, um suor frio me cobriu a fronte: não estava mais
única manifestação de vida. De onde ele tirava força para falar? sentindo minha perna! Eles a haviam amputado?
- Você não deve se alegrar antes da hora, garoto. Aqui, também, - Doutor - balbuciei -, doutor?
há seleção. Até mais freqüente do que lá fora. A Alemanha não - O que há, menino?
86 ELIE WIESEL A NOITE

Eu não tinha coragem de lhe perguntar. Eu explodi:


- Doutor, estou com sede... - E o que isso muda para você? Vamos ter de considerar Hitler
Ele mandou me trazerem água. Sorria. Estava prestes a sair, para um profeta?
ver outros doentes. Seus olhos apagados e gelados se fixaram. Acabou dizendo, com
- Doutor? uma voz cansada:
- O quê? - Confio em Hitler mais que em qualquer outra pessoa. É o úni-
- Ainda poderei usar a minha perna? co que manteve suas promessas, todas as suas promessa ao povo
Ele parou de sorrir. Tive muito medo. judeu.
- Menino, você confia em mim?
- Confio muito, doutor.
- Ótimo, então ouça-me: dentro de quinze dias você estará com- Na tarde do mesmo dia, às quatro horas, como de hábito, o sino
pletamente restabelecido. Poderá andar como todo mundo. A plan- chamou todos os chefes de bloco para um comunicado.
ta do seu pé estava cheia de pus. Só foi preciso furar essa bolsa. Você Eles voltaram arrasados. Só conseguiram mover os lábios para
não foi amputado. Você verá, dentro de quinze dias estará passean- pronunciar esta palavra: "evacuação:' O campo seria esvaziado, e
do como qualquer outra pessoa. nós seríamos mandados para a retaguarda. Para onde? Para qual-
Tudo o que eu tinha a fazer era esperar quinze dias. quer lugar nos confins da Alemanha. Para outros campos: não fal-
tavam campos.
- Quando?
Mas, desde o dia seguinte ao de minha operação, corria no - Amanhã à noite.
campo o rumor de que o front se aproximara repentinamente. O - Talvez os russos cheguem antes.
Exército Vermelho, dizia-se, estava atacando Buna: era apenas uma -Talvez.
questão de horas. Bem sabíamos que não.
Nós já estávamos acostumados àquele tipo de rumores. Não era
a primeira vez que um falso profeta nos anunciava a paz-no-mun-
do, as-conversações-com-a-Cruz-Vermelha-pela-nossa-libertação, O campo tinha virado uma colméia. Pessoas corriam, se inter-
ou outras balelas... E muitas vezes acreditávamos... Era uma injeção pelavam. Em todos os blocos, elas se preparavam para a viagem.
de morfina. Eu tinha esquecido meu pé doente. Um médico entrou na sala e
No entanto, dessa vez, as profecias pareciam mais consis-tentes. anunciou:
Nas últimas noites, tínhamos ouvido canhões ao longe. - Amanhã, logo depois do cair da noite, o campo sairá em mar-
Meu vizinho, o sem-rosto, disse então: cha. Um bloco após o outro. Os doentes podem ficar na enfermaria.
- Não se deixe iludir. Hitler foi bem claro ao dizer que exter- Eles não serão evacuados.
minaria todos os judeus antes que o relógio soasse doze badaladas, Aquela notícia nos deu o que pensar. Os S.S. deixariam algumas
antes que eles pudessem ouvir a última. centenas de detentos desfilando pelos blocos-hospitais, simplesmente
88 ELIE WIESEL
A NOITE

esperando a chegada de seus libertadores? Permitiriam que os ju- Depois da guerra, fiquei sabendo da sorte dos que ficaram no
deus ouvissem soar a décima segunda hora? Evidentemente não. hospital. Foram libertados pelos russos, simplesmente, dois dias de-
- Todos os doentes serão liqüidados com um tiro à queima-roupa pois da evacuação.
- disse o sem-rosto. - E, em uma última fornada, jogados no cre-
matório.
- O campo certamente está minado - alguém observou. - Logo Não voltei mais ao hospital. Fui para o meu bloco. Minha ferida
depois da evacuação, tudo voará pelos ares. se abrira e sangrava: a neve sob meus passos ficava vermelha.
De minha parte, eu não pensava na morte, mas não queria me O chefe do bloco distribuía rações redobradas de pão e de mar-
separar de meu pai. Nós já tínhamos sofrido tanto, agüentado tanto garina, para a viagem. Quanto às roupas e camisas, podíamos pegar
juntos: não era o momento de nos separarmos. quantas quiséssemos no almoxarifado.
Corri para fora, à sua procura. A neve estava espessa, as janelas Fazia frio. Fomos para a cama.
dos blocos, veladas pela geada. Com um sapato na mão, pois não A última noite em Buna. Mais uma vez, a última noite. A última
podia calçar meu pé direito, eu corria, sem sentir nem a dor, nem noite em casa, a última noite no gueto, a última noite no vagão e,
o frio. agora, a última noite em Buna. Por quanto tempo ainda nossa vida
- O que faremos? se arrastaria de uma "última noite" a outra?
Meu pai não respondeu. Não dormi. Através dos vidros cheios de gelo, luziam clarões ver-
- O que faremos, pai? melhos. Tiros de canhão rompiam a tranqüilidade noturna. Como
Estava perdido em suas meditações. A escolha estava em nos- estavam perto, os russos! Entre eles e nós, uma noite, nossa última
sas mãos. Por uma única vez, podíamos decidir por nós mesmos o noite. Cochichávamos de uma cama para outra: com um pouco de
nosso destino. Ficarmos os dois no hospital, onde eu podia fazê-lo sorte, os russos estariam aqui antes da evacuação. Ainda um sopro
de esperança.
entrar como doente ou como enfermeiro, graças ao meu doutor.
Alguém falou alto:
Ou então seguir os demais.
- Tentem dormir. Reservem forças para a viagem.
Eu estava decidido a acompanhar meu pai aonde quer que fosse.
Aquilo me lembrou as últimas recomendações de minha mãe,
- E então, o que faremos, pai?
no gueto.
Ele, calado.
Mas eu não conseguia pegar no sono. Sentia meu pé queimar.
- Vamos sair com os outros - eu lhe disse.
Ele não respondeu. Olhava meu pé.
- Você acha que conseguirá andar? De manhã, o campo estava com outro aspecto. Os detentos apre-
- Sim, acho. sentavam-se em estranhas vestimentas: parecia um baile à fantasia.
- Tomara que não nos arrependamos, Eliezer. Cada um enfiara várias peças de roupa, umas sobre as outras, para
melhor se proteger do frio. Pobres saltimbancos, mais largos que
90 ELIB WIESEL

altos, mais mortos que vivos, pobres clowns cujas caras de fantasma Capítulo 6
brotavam de um monte de uniformes de condenados! Palhaços.
Tratei de procurar um sapato bem grande para mim. Em vão.
Rasguei um cobertor e enrolei meu pé ferido. Depois fui andar pelo
campo, à procura de um pouco mais de pão e algumas batatas.
Alguns diziam que seríamos levados para a Tchecoslováquia.
Não: para Gros-Rosen. Não: para Gleiwitz. Não: para...
Duas da tarde. A neve continuava a cair abundantemente.
As horas estavam passando rapidamente agora. O crepúsculo. Um vento gelado soprava com violência. Mas nós marchávamos
O dia se perdia na grisalha. sem tropeçar.
De repente, o chefe do bloco lembrou-se de que tinham esqueci- Os S.S. nos fizeram apressar o passo. "Mais rápido, canalhas, ca-
do de Limpar o bloco. Mandou quatro prisioneiros lavarem o piso... chorros miseráveis!" Por que não? O movimento nos aquecia um
Uma hora antes de deixar o campo! Por quê? Para quem? pouco. O sangue corria mais fácil em nossas veias. Tínhamos a sen-
- Para o exército da libertação - bradou. - Para que saibam que sação de reviver...
aqui viviam homens, e não porcos. "Mais rápido, cachorros miseráveis!" Não estávamos mais mar-
Às seis horas, o sino tocou. O dobre. O enterro. A procissão ia sair. chando, estávamos correndo. Como autômatos. Os S.S. também
- Em filas! Rápido! corriam, de armas em punho. Parecia que estávamos fugindo deles.
Em poucos instantes, estávamos em filas, por blocos. A noite aca- Noite negra. De vez em quando, uma detonação irrompia na
bara de cair. Tudo estava em ordem, conforme o plano estabelecido. noite. Eles tinham ordens para atirar nos que não podiam manter o
Os holofotes se acenderam. Centenas de S.S. armados surgiram ritmo da corrida. Com o dedo no gatilho, não se faziam de rogados.
da escuridão, acompanhados de cães pastores. Não parava de nevar. Se algum de nós parasse por um segundo, um tiro seco eliminava
As portas do campo se abriram. Do outro lado, parecia nos espe- um cachorro miserável.
rar uma noite ainda mais escura. Eu punha maquinalmente um pé à frente do outro. Arrastava
Os primeiros blocos puseram-se em marcha. Nós esperávamos. aquele corpo esquelético que ainda pesava tanto. Se eu pudesse me
Tínhamos de esperar a saída dos cinqüenta e seis blocos que nos livrar dele! Apesar de meus esforços para não pensar, sentia que eu
precediam. Fazia muito frio. Eu tinha dois pedaços de pão no bolso. era dois: meu corpo e eu. Eu o odiava.
Com que apetite eu os teria comido! Mas não podia. Não agora. E repetia para mim mesmo: "Não pense, não pare, corra:'
Nossa vez estava chegando: bloco 53 ... bloco 55... Perto de mim, alguns homens desabavam na neve suja. Tiros.
- Bloco 57, adiante, marchem! Ao meu lado marchava um rapaz da Polônia, que se chamava
Nevava sem parar. Zalman. Ele trabalhava em Buna, no depósito de material elétrico.
Caçoavam dele porque estava sempre rezando ou meditando sobre
algum problema talmúdico. Era sua maneira de escapar à realidade,
de não sentir as pancadas...
,.
92 ELIE WIESEL A NOITE 93

De repente, ele sentiu pontadas na barriga. "Estou com dor de Quando voltei a mim, procurei ralentar um pouco o passo. Mas
barriga': disse para mim. Não podia mais continuar. Precisava parar não havia como. Aquelas ondas de homens estouravam como um
um instante. Eu lhe implorei: maremoto e teriam me esmagado como uma formiga.
- Espere mais um pouco, Zalman. Logo todos nós vamos parar. Eu era apenas um sonâmbulo. Acontecia-me de fechar as pál-
Não vamos correr assim até o fim do mundo. pebras e era como se eu corresse dormindo. De vez em quando,
Mas, sempre correndo, começou a se desabotoar e gritou para mim: alguém me empurrava violentamente pelo traseiro e eu despertava.
Outro berrava: "Corra mais rápido. Se não quer avançar, deixe os
- Não agüento mais. Minha barriga está explodindo...
outros passarem:' Mas bastava-me fechar os olhos um segundo para
- Faça um esforço, Zalman... Procure...
ver desfilar um mundo inteiro, para sonhar uma vida inteira.
- Não agüento mais - ele gemia.
Estrada sem fim. Deixar-se levar pela multidão, deixar-se ar-
Com a calça abaixada, largou-se no chão.
rastar pelo destino cego. Quando os S.S. se cansavam, eram substi-
É a última imagem dele que me ficou. Não creio que tenha sido
tuídos. A nós, ninguém substituía. Com os membros transidos de
eliminado por um S.S., pois ninguém viu. Deve ter morrido esma- frio, apesar da corrida, a garganta seca, esfomeados, ofegantes, nós
gado sob os pés dos milhares de homens que nos seguiam. continuávamos.
Logo o esqueci. Voltei a pensar em mim mesmo. Por causa de meu Nós éramos os mestres da natureza, os mestres do mundo. Tinha-
pé dolorido, a cada passo um tremor me sacudia. "Mais alguns mas esquecido tudo, a morte, o cansaço, as necessidades naturais.
metros", eu pensava, "mais alguns metros e tudo isto terá acabado. Mais fortes que o frio e a fome, mais fortes que os tiros e o desejo
Eu cairei. Uma pequena chama vermelha... Um tiro:' A morte me de morrer, condenados e vagabundos, simples números, éramos os
envolvia até me sufocar. Estava colada em mim. Eu sentia que po- únicos homens na face da terra.
deria tocá-la. A idéia de morrer, de não existir mais, começou a me Por fim, a estrela da manhã apareceu no céu cinza. Uma vaga
fascinar. Não existir mais. Não sentir mais as dores horríveis de meu claridade começava a apontar no horizonte. Nós não agüentávamos
pé. Não sentir mais nada, nem cansaço, nem frio, nada. Pular para mais, estávamos sem forças, sem ilusões.
fora da fila, deixar-me deslizar para a beira da estrada. O comandante anunciou que já tínhamos feito setenta quilô-
metros desde a partida. Havia muito tempo que ultrapassáramos
A presença de meu pai era a única coisa que me impedia... Ele
os limites do cansaço. Nossas pernas moviam-se mecanicamente,
corria a meu lado, ofegante, no limite de suas forças, acuado. Eu não
apesar de nós, sem nós.
tinha direito de me deixar morrer. O que ele faria sem mim? Eu era
Atravessamos uma aldeia deserta. Ninguém. Nem um latido.
seu único apoio.
Casas com as janelas escancaradas. Alguns escapuliram das filas
Esses pensamentos me tomaram um bom tempo, durante o qual para tentar se esconder em alguma construção abandonada.
eu tinha continuado a correr sem sentir meu pé dolorido, sem nem Mais uma hora de marcha e a ordem de descanso finalmente
me dar conta de que estava correndo, sem consciência de ter um chegou.
corpo que estava galopando naquela estrada, entre milhares de ou- Como se fossem um só homem, nossos corpos desabaram na
tras pessoas. neve. Meu pai me sacudiu:
94 ELI E WIESEL A NOITE 95

- Aqui não... Levante-se... Um pouco mais adiante. Ali tem um apenas uma agonia em massa, silenciosa. Ninguém pedia ajuda a
hangar... Venha.. . ninguém. Morria-se porque era preciso morrer. Não se colocavam
Eu não tinha vontade nem força para me levantar. Mas obedeci. dificuldades.
Não era um hangar, mas uma fábrica de tijolos com o telhado cheio Em cada corpo endurecido, eu via a mim mesmo. E logo nem
de buracos, vidros quebrados, paredes sujas de fuligem. Não era fá- mesmo os veria mais, eu seria um daqueles corpos. Em questão de
cil entrar. Centenas de detentos se comprimiam na porta. horas.
Finalmente conseguimos. Lá, também, a neve estava alta. Jo- - Venha, pai, vamos voltar para o hangar...
guei-me no chão. Só agora eu sentia todo o meu cansaço. A neve me Ele não respondeu. Não olhava para os mortos.
parecia um tapete bem macio, bem quente. Cochilei. - Venha, pai. Lá é melhor. Poderemos descansar um pouco. Pri-
Não sei quanto tempo dormi. Alguns instantes ou uma hora. meiro um, depois o outro. Eu tomo conta de você e depois você
Quando acordei, uma mão congelada me dava palmadas no rosto. toma conta de mim. Um não deixará o outro adormecer. Um vigia
Esforcei-me para abrir as pálpebras: era meu pai. o outro.
Como ele tinha envelhecido desde ontem à noite! Seu corpo es- Ele aceitou. Depois de pisar em muitos corpos e cadáveres, con-
tava completamente torto, encolhido. Seus olhos petrificados, seus seguimos voltar para o hangar. Lá dentro, desabamos.
lábios murchos, podres. Tudo nele atestava uma extrema lassidão. - Não tenha medo, meu filho. Durma, pode dormir. Eu velo
Sua voz estava úmida de lágrimas e de neve: seu sono.
- Não se deixe levar pelo sono, Eliezer. É perigoso dormir na - Primeiro você, pai. Durma.
neve. A gente dorme para sempre. Venha, meu menino, venha. Le- Ele se recusou. Deitei-me e esforcei-me para dormir, cochilar
vante-se. um pouco, mas em vão. Deus sabe o que eu seria capaz de fazer para
Levantar-me? Como eu poderia? Como me arrancar daquela poder cochilar por alguns instantes. Mas, em meu íntimo, sentia
macia coberta de plumas? Eu ouvia as palavras de meu pai, mas elas que dormir significava morrer. E algo dentro de mim se revolta-
me pareciam vazias de sentido, como se ele tivesse me pedido para va contra aquela morte. Ao meu redor ela se instalava sem alarde,
erguer o hangar inteiro nos braços... sem violência. Aproveitava-se de quem dormisse, insinuava-se e
- Venha, meu filho, venha ... devorava-o pouco a pouco. A meu lado alguém tentava acordar
Levantei-me, trincando os dentes. Sustentando-me com um bra- seu vizinho, o irmão, talvez, ou um amigo. Em vão. Vencido em seus
ço, ele me levou para fora. Não era nada fácil. Era tão trabalhoso sair esforços, deitou-se ao lado do cadáver e dormiu também. Quem iria
quanto entrar. Sob nossos passos, homens esmagados, pisoteados, acordá-lo? Esticando o braço, cutuquei-o:
agonizavam. Ninguém ligava para eles. - Levante-se. Não se deve dormir aqui ...
Fomos para fora. O vento gelado açoitava meu rosto. Eu mor- Ele entreabriu as pálpebras:
dia os lábios sem parar para que não congelassem. À minha vol- - Nada de conselhos - disse com uma voz apagada. - Estou aca-
ta, tudo parecia dançar uma dança de morte. Era de dar vertigem. bado. Me deixa em paz. Some.
Estava andando em um cemitério. Entre os corpos endurecidos, Meu pai também cochilava suavemente. Eu não via seus olhos.
troncos de madeira. Nem um grito de desespero, nem um lamento, O boné lhe cobria o rosto.
li"

ELIE WIESEL A NOITE 97

- Acorde - murmurei em seu ouvido. correr. E meu filho não percebeu. Não sei de mais nada. Para onde
Acordou sobressaltado. Sentou-se e olhou em torno de si, perdi- ele terá ido? Onde posso encontrá-lo? Será que você o viu em algum
do, estupefato. O olhar de um órfão. Lançou um olhar circular para lugar?
tudo o que se encontrava em volta dele, como se subitamente tivesse - Não, Rabi Eliahou, não o vi.
resolvido fazer o inventário de seu universo, saber onde estava, em Então partiu, como viera: como uma sombra varrida pelo vento.
que lugar, como e por quê. E sorriu. Ele iá alcancara a oorta ouando snhit::imPntP lPmhrPi m1 P tinh::i
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1~.-tinha esquecido isso e não o
Pesados flocos de neve continuavam a cair sobre os cadáveres. dissera a Rabi Eliahou!
E logo me lembrei de outra coi
sa: seu filho o tinha visto perder
terreno, mancando, ir ficando pai
·a trás, no fim da coluna. Tinha
A porta do hangar se abriu. Surgiu um ancião, com o bigode visto. E tinha continuado a correr
na frente, deixando aumentar a
cheio de gelo, os lábios azuis de frio. Era Rabi Eliahou, o rabino de distância entre eles.
uma pequena comunidade da Polônia. Um homem muito bom, a Um pensamento terrível me V•
!io à cabeça: ele quis se desven-
quem todos no campo queriam bem, até mesmo os kapos e os che- cilhar de seu pai! Sentiu o pai fr:
1quejar, pensou que era o fim e
fes de blocos. Apesar das provações e das desgraças, seu rosto con- procurou a separação para se livra
r daquele peso, de um fardo que
tinuava a irradiar sua pureza interior. Era o único rabino a quem poderia diminuir suas próprias eh;
rnces de sobrevivência.
não deixaram de chamar de "rabi" em Buna. Parecia-se com um Foi bom que eu tenha esqueci<
lo. E senti-me feliz por ver Rabi
daqueles profetas de antigamente, sempre no meio do povo para continuar procurando um filho qu
erido.
consolá-lo. E, fato estranho, suas palavras de consolo não revolta- E, apesar de mim mesmo, de rr
1eu coração elevou-se uma prece
vam ninguém. Elas realmente confortavam. para aquele Deus no qual eu não ª'
:reditava mais.
Entrou no hangar, e seus olhos, mais brilhantes do que nunca, - Meu Deus, Mestre do Univen
o, dê-me forças para nunca fazer
pareciam procurar alguém: o que fez o filho de Rabi Eliahou.
- Vocês talvez tenham visto meu filho em algum lugar? Ouviram-se gritos lá fora, no p•
itio, onde a noite havia caído. Os
Tinha perdido o filho na multidão. Procurara-o em vão entre os S.S. ordenavam que se formassem
]las novamente.
agonizantes. Depois tinha revolvido a neve para procurar seu cadá- Retomamos a caminhada. Os
mortos ficaram no pátio, sob a
ver. Sem resultado. neve, como guardas fiéis assassina
:los, sem sepultura. Filhos aban-
Durante três anos, eles resistiram juntos. Um sempre ao lado do clonaram os despojos de seus pais ~
.em uma lágrima.
outro, nos sofrimentos, nos golpes, na ração de pão e na prece. Três a estrada, nevava, nevava, r
evava, sem parar. Caminháva-
anos, de campo em campo, de seleção em seleção. E agora - quando mos m ais lentamente. Os própri
)S guardas pareciam cansados.
o fim parecia próximo - o destino os separava. Quando chegou per- Meu pé ferido tinha parado de d 1

)er. Devia estar completamente


to de mim, Rabi Eliahou murmurou: gelado. Para mim, aquele pé esta'
'ª perdido. Tinha se soltado de
- Foi na estrada. Perdemo-nos de vista durante o trajeto. Eu ti- meu corpo como a roda de um e;
1rro. Tanto pior. Devia me con-
nha ficado um pouco para trás da coluna. Não tinha mais força para fo rmar: eu vive ria com uma pern;
1 só. O essencial era não pensar
ELIE WIESEL A NOITE 99

no assunto. Sobretudo naquele momento. Deixar os pensamentos A mesma voz apagada, o mesmo lamento, já ouvido em algum
para mais tarde. lugar. Aquela voz já me falara um dia. Onde? Quando? Há anos?
Nossa caminhada tinha perdido qualquer vestígio de disciplina. Não, só podia ter sido no campo.
Cada um seguia como queria, como podia. Não se ouviam mais ti- - Piedade!
ros. Nossos guardas deviam estar cansados. Eu sentia que o estava esmagando. Estava impedindo sua respi-

Mas a morte quase não precisava de ajuda. O frio fazia conscien- ração. Queria me levantar, esforçava-me para me soltar, para permi-
tir que ele respirasse. Eu mesmo estava esmagado sob o peso de um
ciosamente seu trabalho. A cada passo, alguém caía, parava de sofrer.
outro corpo. Respirava com dificuldade. Fincava minhas unhas em
De vez em quando, alguns oficiais S.S. em motocicletas desciam
rostos desconhecidos. Mordia em torno de mim, procurando uma
ao longo da coluna para espantar a apatia crescente:
passagem de ar. Ninguém gritava.
- Agüentem firme! Estamos chegando!
De repente, eu me lembrei. Juliek! O menino de Varsóvia que
- Coragem! Só mais algumas horas!
tocava violino na orquestra de Buna...
- Estamos chegando a Gleiwitz.
- Juliek, é você?
- Eliezer... As vinte e cinco chicotadas... Sim... Eu me lembro.
Ele se calou. Passou-se um longo momento.
Aquelas palavras de encorajamento, mesmo vindo da boca de - Juliek! Está me ouvindo, Juliek?
nossos assassinos, nos faziam um bem enorme. Ninguém queria - Sim ... - respondeu com uma voz fraca. - O que você quer?
abandonar a partida agora, antes do fim, tão perto do objetivo. Nos- Não estava morto.
sos olhos escrutavam o horizonte à procura dos arames farpados de - Como você está se sentindo, Juliek? - perguntei, menos para
Gleiwitz. Nosso único desejo era chegar lá o mais rápido possível. saber sua resposta do que para ouvi-lo falar, viver.
A noite chegava. A neve parou de cair. Andamos ainda muitas - Bem, Eliezer... Está tudo bem ... Pouco ar... Cansado. Meus pés

horas antes de chegar. Só vimos o campo quando já estávamos bem estão inchados. É bom descansar, mas o violino...
Pensei que ele tivesse enlouquecido. O que o violino estaria fa-
diante da porta.
zendo aqui?
Alguns kapos nos instalaram rapidamente nos galpões. As pessoas
Ele arquejava:
se empurravam, se acotovelavam como se aquele fosse o supremo
- Estou... Estou com medo... de que quebrem ... meu violino...
refúgio, a porta para a vida. Andávamos em cima de corpos machu-
Eu... eu trouxe ele comigo.
cados. Pisávamos em rostos aflitos. Nem um grito; alguns gemidos.
Não pude responder-lhe. Alguém havia deitado em cima de
Nós mesmos, meu pai e eu, fomos jogados no chão por aquela maré
mim, coberto meu rosto.
que arrebentava. Sob nossos passos, alguém soltou um lamento: Não consegui mais respirar, nem pela boca, nem pelo nariz. O
- Vocês estão me esmagando... piedade! suor brotava de minha testa e das costas. Era o fim, o ponto final da
Uma voz que não me era desconhecida. estrada. Uma morte silenciosa, o estrangulamento. Sem ter como
- Estão me esmagando... piedade! Piedade! gritar, chamar por socorro.
100 ELIE WIESEL A NOITE 101

Tentei me soltar de meu invisível assassino. Todo o meu dese- Eu jamais poderia esquecer Juliek. Como poderia esquecer aque-
jo de viver tinha se concentrado em minhas unhas. Eu arranhava, le concerto feito para um público de agonizantes e de mortos! Ainda
lutava para sorver um pouco de ar. Lacerava uma carne podre que hoje, quando ouço tocarem Beethoven, meus olhos se fecham e, da
não respondia. Não conseguia me soltar daquela massa que pesava escuridão, surge o rosto pálido e triste do meu camarada polonês

sobre o meu peito. Quem sabe se não era com um morto que eu dando, com o violino, seu adeus a um auditório de moribundos.

estava lutando? Não sei quanto tempo ele tocou. O sono me venceu. Quando
acordei, com a claridade do dia, vi Juliek, na minha frente, encolhi-
Nunca saberei. Tudo o que posso dizer é que eu estava certo.
do, morto. Perto dele jazia seu violino, pisoteado, esmagado, peque-
Consegui abrir um buraco naquela muralha de agonizantes, um pe-
no cadáver insólito e perturbador.
queno buraco através do qual encontrei um pouco de ar.
- Pai, como você está? - perguntei, assim que consegui falar
alguma coisa.
Ficamos três dias em Gleiwitz. Três dias sem comer e sem
Sabia que ele não devia estar longe de mim. beber. Não tínhamos autorização para sair do galpão. Os S.S. vigia-
- Bem! - respondeu uma voz longínqua, como que vinda de um vam a porta.
outro mundo. - Estou tentando dormir. Eu estava com fome e sede. Devia estar bem sujo e descomposto,
Estava tentando dormir. Estava errado ou certo? Era possível a julgar pelo aspecto dos outros. O pão que trouxéramos de Buna
dormir aqui? Não era perigoso deixar a vigilância de lado, mesmo tinha sido devorado há muito tempo. E quem sabe quando nos da-
por um instante, enquanto a morte podia se abater sobre nós a qual- riam uma nova ração?
quer momento? O front nos perseguia. Ouvíamos mais tiros de canhão, bem pró-
Estava pensando sobre isso quando ouvi o som de um violino. ximos. Porém, não tínhamos mais força nem ânimo para imaginar
O som de um violino no galpão escuro onde mortos se empilhavam que os nazis não teriam tempo de nos evacuar, e que os russos logo
chegariam.
sobre os vivos. Quem era o louco que estava tocando violino aqui, à
Soubemos que seríamos deportados para o centro da Alemanha.
beira de seu próprio túmulo? Ou era só uma alucinação?
No terceiro dia, ao amanhecer, fomos tirados dos galpões. Cada
Devia ser Juliek.
um tinha jogado alguns cobertores nas costas, como se fossem man-
Tocava um trecho de um concerto de Beethoven. Nunca ouvi
tos de oração. Fomos levados até uma porta que separava o campo
sons tão puros em tamanho silêncio.
em dois. Um grupo de oficiais S.S. estava a postos. Um rumor atra-
Como ele havia conseguido se soltar? Sair de baixo do meu cor-
vessou nossas filas: uma seleção!
po sem que eu tivesse sentido? Os oficiais S.S. faziam a triagem. Os fracos: à esquerda. Os que
A escuridão era total. Eu só ouvia aquele violino e era como se a andavam bem: à direita.
alma de Juliek fosse o arco. Ele estava tocando sua vida. Toda a sua Meu pai foi mandado para a esquerda. Corri atrás dele. Um ofi-
vida deslizava nas cordas. Suas esperanças perdidas. Seu passado cal- cial S.S. berrou nas minhas costas:
cinado, seu futuro apagado. Tocava aquilo que nunca mais iria tocar. - Volte aqui!
102 ELIE WIESEL

Esgueirei-me por entre as pessoas. Vários S.S. correram atrás de Capítulo 7


mim, criando um tumulto tão grande que muitas pessoas da es-
querda puderam voltar para a direita - e, entre elas, meu pai e eu.
Houve entretanto alguns tiros, e alguns mortos.
Fizeram-nos sair do campo. Após meia hora de marcha, che-
gamos ao centro de outro campo, cortado por trilhos. Teríamos de
esperar ali a chegada do trem.
A neve caía cerrada. Proibido sentar ou sair do lugar.
A neve começava a fazer uma camada espessa sobre nossos Encostados uns nos outros para tentar resistir ao frio, a cabeça
cobertores. Trouxeram-nos pão, a ração habitual. Avançamos. Al- vazia e pesada ao mesmo tempo, no cérebro um turbilhão delem-
guém teve idéia de aplacar a sede comendo neve. E logo foi imitado branças emboloradas. A indiferença nos entorpecia a alma. Aqui
pelos demais. Como não podíamos nos abaixar, cada um pegou sua ou em outro lugar - que diferença faria? Morrer hoje ou amanhã, ou
colher e comia a neve acumulada nas costas do vizinho. Um bocado mais tarde? A noite estava ficando longa, longa, sem fim.
de pão e uma colherada de neve. Aquilo fazia rir os S.S. que obser- Quando finalmente uma claridade cinza apareceu no horizonte,
vavam o espetáculo. revelou-me um emaranhado de formas humanas, as cabeças en-
As horas passavam. Nossos olhos estavam cansados de escrutar fiadas nos ombros, agachadas, amontoadas umas sobre as outras,
o horizonte para ver aparecer o trem libertador. Ele só chegou bem como um campo de tumbas cobertas de poeira às primeiras luzes
tarde da noite. Um trem infinitamente longo, formado por vagões
da manhã. Tentei distinguir os que ainda viviam dos que já tinham
de gado, sem teto. Os S.S. nos empurraram para dentro, cem por va-
morrido. Mas não havia diferença. Meu olhar parou e se demorou
gão: estávamos tão magros! Quando todos embarcaram, o comboio
sobre um homem que, de olhos abertos, fixava o vazio. Seu rosto
pôs-se em movimento.
lívido estava recoberto por uma camada de gelo e de neve.
Meu pai estava encolhido perto de mim, enrolado em seu co-
bertor, os ombros carregados de neve. E se ele também estivesse
morto? Chamei-o. Sem resposta. Eu teria gritado se fosse capaz. Ele
não se mexia.
Fui subitamente invadido por aquela evidência: não havia mais
razão para viver, não havia mais razão para lutar.
O trem parou no meio de um campo deserto. Aquela parada
brusca acordou alguns que dormiam. Aprumaram-se e lançaram
em torno de si um olhar espantado.
Lá fora, alguns S.S. passavam berrando:
- Joguem todos os mortos! Todos os cadáveres para fora!
104 ELIE WIESEL A NOITE 105

Os vivos se alegravam. Teriam mais espaço. Alguns voluntários Dez dias, dez noites de viagem. As vezes atravessávamos locali-
puseram mãos à obra. Apalpavam os que continuavam agachados. dades alemãs. Bem cedo, de manhã, geralmente. Operários seguiam
- Tem um aqui! Peguem-no! para o trabalho. Paravam e nos acomparihavam com o olhar, sem
Despiam-no e os sobreviventes partilhavam avidamente suas muito espanto.
roupas, e então dois "coveiros" o pegavam pela cabeça e pelos pés e Um dia em que estávamos parados, um operário tirou do alforje
o jogavam para fora do vagão, como um saco de farinha. um pedaço de pão e jogou-o dentro de um vagão. Foi um avanço.
Por todos os lados, ouvia-se: Dezenas de esfomeados engalfinharam-se por algumas migalhas de
- Venham aqui! Aqui, outro! Meu vizinho. Não se mexe mais. pão. Os operários alemães acharam o espetáculo interessantíssimo.
Só despertei de minha apatia no momento em que alguns ho-
mens se aproximaram de meu pai. Ele estava frio. Dei-lhe bofetadas.
Friccionei suas mãos, gritando: Anos mais tarde, assisti a um espetáculo do mesmo tipo em
- Pai! Pai! Acorda. Vão te jogar para fora do vagão... Aden. Os passageiros do nosso navio divertiam-se jogando moe-
Seu corpo continuava inerte. dinhas para os "nativos': que mergulhavam para pegá-las. Uma pa-
Os dois coveiros me pegaram pela gola: risiense de ar aristocrático divertia-se muito com aquele jogo. Notei
- Deixe-o. Não vê que está morto? de repente que duas crianças estavam lutando, uma querendo es-
- Não! - eu gritei. - Ele não estava morto! Ainda não! trangular a outra, até a morte, e implorei à mulher:
Voltei a bater nele com vontade. Ao fim de um momento, meu - Peço-lhe, por favor, não jogue mais moedas!
pai entreabriu os olhos vítreas. Respirava fracamente. - Por que não? - disse ela. - Gosto de fazer caridade...
- Estão vendo? - bradei. No vagão onde o pão tinha caído, explodira uma verdadeira
Os dois homens se afastaram. batalha. Uns se lançavam sobre os outros, pisoteando, rasgando,
Descarregaram de nosso vagão uns vinte cadáveres. Depois o mordendo. Feras disputando a presa, nos olhos um ódio animal;
trem retomou sua marcha, deixando atrás de si algumas centenas de uma vitalidade extraordinária se havia apoderado deles, afiado suas
órfãos nus sem sepultura em um campo che~o de neve da Polônia. unhas e dentes.
Um grupo de operários e de curiosos se reunira ao longo do
trem. Sem dúvida nunca tinham visto um trem com um carrega-
Não recebíamos mais comida nenhuma. Vivíamos de neve: ela mento daqueles. Logo, aqui e acolá, pedaços de pão caíram nos va-
substituía o pão. Os dias pareciam noites, e as noites deixavam em gões. Os espectadores contemplavam aqueles homens esqueléticos
nossa alma o fel de sua escuridão. O trem rodava lentamente, mui- atracando-se por um bocado de pão.
tas vezes parava por algumas horas e retomava a marcha. Não pa- Um pedaço caiu em nosso vagão. Eu decidi não sair do lugar. Sa-
rava de nevar. Ficávamos agachados ao longo dos dias e das noites, bia, aliás, que não teria a força necessária para lutar contra aquelas
uns por cima dos outros, sem falar nada. Éramos apenas corpos ge- dezenas de homens enfurecidos. Vi, não longe de mim, um velho
lados. Com as pálpebras fechadas, esperávamos a próxima parada que se arrastava, engatinhando. Estava saindo da briga. Trazia uma
para descarregar nossos mortos. das mãos no coração. Em um primeiro momento, pensei que ele
106 EL!E WIESEL A NOIT E 107

tivesse levado um golpe no peito. Depois, entendi: ele trazia sob a Mas, alguns dias depois, Meir Katz dirigiu-se a meu pai:
camisa um pedaço de pão. Com uma rapidez extraordinária, tirou-o - Chlomo, estou fraquejando. Estou perdendo as forças. Não
e levou-o até a boca. Seus olhos se iluminaram; um sorriso, como vou mais agüentar...
um esgar, iluminou seu rosto sem vida. E logo se apagou. Uma - Não se entregue! - meu pai tentou encorajá-lo. - É preciso
sombra acabara de se projetar ao seu lado. E essa sombra se jogou resistir! Não perca a confiança em você!
em cima dele. Apanhando, tonto de pancadas, o velho gritava: Mas Meir Katz gemia surdamente, mais do que respondia:
- Meir, meu pequeno Meir! Não está me reconhecendo? Sou eu, - Não posso mais, Chlomo!. .. O que ainda posso fazer aqui? ...
seu pai... Você está me machucando... Está matando seu pai ... Tenho Não agüento mais...
pão... para você também... para você também ... Meu pai o pegou pelo braço. E Meir Katz, o homem forte, o mais
E despencou no chão. Sua mão continuava fechada com seu pe- firme de todos nós, chorava. Seu filho lhe fora tirado logo na pri-
dacinho de pão. Quis levá-la à boca. Mas o outro se jogou em cima meira seleção, e só agora ele estava chorando. Só agora ele se rendia
dele e arrancou-lhe o bocado. O velho ainda murmurou alguma coi- à dor. Não agüentava mais. Chegara ao fim da linha.
sa, deu um suspiro e morreu, em meio à indiferença geral. O filho No último dia de nossa viagem, soprou um vento terrível; e a
o revistou, pegou o pedaço e começou a devorá-lo. Não conseguiu neve não parava de cair. Sentíamos que o fim estava próximo, o ver-
ir muito longe. Dois homens o tinham visto e se atiraram em cima dadeiro fim. Não agüentaríamos muito tempo naquele vento gla-
dele. Outros se juntaram a eles. Quando se retiraram, havia perto de cial, naquela nevasca.
mim dois mortos lado a lado, pai e filho. Eu tinha quinze anos. Alguém se levantou e disse:
- Não devemos ficar sentados com esse tempo! Vamos morrer
congelados! Vamos nos levantar, nos mexer um pouco...
Em nosso vagão estava também um amigo de meu pai, Meir Todos nos levantamos. Cada um apertava forte seu cobertor en-
Katz. Trabalhara em Buna como jardineiro e, de vez em quando, charcado. E esforçamo-nos para dar alguns passos, uma volta no
trazia-nos algum legume verde. Menos mal nutrido, suportara me- mesmo lugar.
lhor a detenção. Por causa de seu relativo vigor, tinha sido nomeado De repente, um grito soou no vagão, o grito de um animal ferido.
o responsável por nosso vagão. Alguém acabava de expirar.
Na terceira noite de viagem eu acordei de repente, sentindo duas Outros, que também se sentiam à beira da morte, imitaram seu
mãos em minha garganta, tentando me estrangular. Só tive tempo grito. E seus gritos pareciam vir de além-túmulo. Lamentos, gemi-
de gritar: "Pai!" dos. Gritos de desespero lançados através do vento e da neve.
Só essa palavra. Sentia-me sufocar. Mas meu pai tinha acor- O contágio atingiu outros vagões. E centenas de gritos se eleva-
dado e agarrado meu agressor. Fraco demais para vencê-lo, cha- vam ao mesmo tempo. Sem saber contra quem. Sem saber por quê.
mou Meir Katz: O estertor de todo um comboio que sentia o fim se aproximar. Iam
- Venha, venha rápido! Estão estrangulando o meu filho! todos acabar aqui. Todos os limites haviam sido ultrapassados. Nin-
Alguns instantes mais tarde, eu estava solto. Nunca soube por guém mais tinha força. E a noite ainda ia ser longa.
que aquele homem quis me estrangular. Meir Katz gemia:
108 ELIE WIESEL

- Por que não nos fuzilam logo? Capítulo 8


Na mesma noite, chegamos ao destino.
Era tarde da noite. Alguns guardas vieram nos descarregar. Os
mortos foram abandonados nos vagões. Só os que ainda podiam
manter-se de pé puderam descer.
Meir Katz ficou no trem. O último dia tinha sido o mais mortífero.
Éramos uma centena naquele vagão. Descemos uma dúzia. Entre
eles, meu pai e eu.
Tínhamos chegado a Buchenwald. Na porta do campo, os oficiais S.S. nos esperavam. Fomos con-
tados. Depois, conduzidos até a praça da chamada. As ordens nos
eram dadas por alto-falantes: "Em filas de cinco:' "Em grupos de
cem:' "Cinco passos à frente:'
Apertei forte a mão de meu pai. O temor antigo e familiar: não
perdê-lo.
Bem perto de nós erguia-se a alta chaminé do forno crematório.
Ela não nos impressionava mais. Mal chamava a nossa atenção.
Um veterano de Buchenwald avisou-nos que íamos tomar uma
ducha e em seguida seríamos distribuídos nos blocos. A idéia de
tomar um banho quente me fascinava. Meu pai estava calado. Res-
pirava pesadamente junto de mim.
- Pai - eu disse - , só mais um pouco. Logo poderemos nos deitar
em uma cama. Você poderá descansar...
Ele não respondeu. Eu mesmo estava tão cansado que seu silên-
cio me deixou indiferente. Meu único desejo era tomar o banho o
mais rápido possível e estirar meu corpo em uma cama.
Mas não era fácil chegar até as duchas. Centenas de detentos se
comprimiam lá. Os guardas não conseguiam pôr ordem. Batiam a
torto e a direito, sem resultado. Outros, que não tínham força para
se acotovelar, nem mesmo para se manter de pé, sentaram-se na
neve. Meu pai quis imitá-los. Ele gemia:
- Não posso mais... Acabou... Vou morrer aqui ...
Arrastou-me até um montículo de neve de onde emergiam for-
mas humanas, trapos de cobertores.
110 ELI E WJESEL A NOITE 111

- Deixe-me - ele me pediu. - Eu não posso mais... Tenha pie- de sopa, na porta de entrada, não atraíram ninguém. Dormir: era só
dade de mim... Vou esperar aqui até que se possa entrar no banho... o que importava.
Você vem me buscar.
Eu quis chorar de raiva. Ter vivido tanto, sofrido tanto; ia deixar
meu pai morrer agora? Agora que íamos poder tomar um bomba- Já era dia quando acordei. Lembrei, então, que eu tinha um pai.
Na hora do alerta, eu acompanhara a multidão sem cuidar dele. Sa-
nho quente e estirar o corpo?
bia que ele estava no fim de suas forças, à beira da agonia e, no en-
- Pai! - eu berrava. - Pai! Levante-se daqui! Imediatamente!
tanto, o abandonara.
Você vai se matar...
Saí à sua procura.
E peguei-o por um braço. Ele continuava a gemer:
Mas na mesma hora me veio à cabeça este pensamento: "Tomara
- Não grite, meu filho ... Tenha piedade do seu velho pai... Deixe-
que eu não o encontre! Se eu pudesse me livrar desse peso morto,
me descansar aqui ... Um pouco... Por favor, estou cansado... no fim lutar com todas as minhas forças por minha própria sobrevivência,
das forças ... só precisar cuidar de mim mesmo:' E, imediatamente, senti vergo-
Estava parecendo uma criança: fraco, medroso, vulnerável. nha, vergonha pelo resto da vida, de mim mesmo.
- Pai, você não pode ficar aqui. Andei durante horas sem encontrá-lo. Cheguei a um bloco onde
Mostrei-lhe os cadáveres em torno dele: estavam distribuindo "café" preto. As pessoas faziam fila, batiam
- Eles também quiseram descansar aqui. umas nas outras.
- Estou vendo, meu filho, estou vendo bem. Deixe-os dormir. Uma voz chorosa, suplicante, chamou-me pelas costas:
Há tanto tempo não pregavam o olho... Estão exaustos... exaustos... - Eliezer... meu filho ... traga-me ... um pouco de café...
Sua voz estava terna. Corri até ele.
Berrei ao vento: - Pai! Procurei você tanto tempo... Onde você estava? Você dor-
- Eles não despertarão nunca mais! Nunca mais, entende? miu? ... Como está se sentindo?
Discutimos assim por um longo tempo. Eu sentia que não era Estava ardendo em febre. Como um animal selvagem, abri ca-
com ele que estava discutindo, mas com a própria morte, com a minho até o caldeirão de café. E consegui pegar um copinho. Tomei
morte que já o havia escolhido. um gole. O resto era para ele.
Nunca esquecerei a gratidão que iluminava seu rosto enquanto
tomava aquela água suja. O reconhecimento de um animal. Com
As sirenes começaram a berrar. Alerta. As lâmpadas se apaga- aqueles poucos goles de água quente, eu sem dúvida lhe proporcio-
ram em todo o campo. Os guardas nos empurraram para os blocos. nei mais satisfação do que durante toda a minha infância...
Num abrir e fechar de olhos, não havia mais ninguém na praça da Ele estava estendido sobre a tábua ... lívido, os lábios pálidos e
chamada. E nós estávamos simplesmente muito felizes por não pre- ressequidos, sacudido por calafrios. Não pude ficar muito tempo
cisar ficar mais muito tempo lá fora, no vento. Abandonamos nos- junto dele. Havia sido dada uma ordem de esvaziar o local para a
sos corpos nas tábuas. Havia vários andares de camas. Os caldeirões limpeza. Só os doentes podiam ficar.
112 ELIE WIESEL A NOITE 113

Ficamos cinco horas lá fora. Deram-nos sopa. Logo que permi- - Eliezer... Preciso dizer a você onde estão o ouro e a prata que
tiram nossa entrada nos blocos, corri até meu pai: eu enterrei... No porão... Você sabe...
- Você comeu? E começou a falar cada vez mais rápido, como se temesse não ter
-Não. tempo de me dizer tudo. Procurei lhe explicar que nada ainda havia
- Por quê? acabado, que voltaríamos juntos para casa, mas ele não queria me
- Não nos deram nada... Disseram que estamos doentes, que escutar. Ele não podia mais me escutar. Estava esgotado. Um fio de
vamos morrer logo e que seria pena desperdiçar comida... Eu não baba, misturada com sangue, escorria-lhe dos lábios. Tinha fechado
agüento mais... as pálpebras. Sua respiração ficou ofegante.
Dei-lhe a sopa que ainda me restava. Mas meu coração estava
pesado. Sentia que estava lhe cedendo aquilo a contragosto. Tal
como o filho de Rabi Eliahou, eu também não resistira à prova. Por uma ração de pão, consegui trocar meu catre com um de-
tento daquele bloco. À tarde, o doutor chegou. Fui até ele, dizer que
meu pai estava muito doente.
Dia após dia ele ia enfraquecendo, o olhar velado, o rosto cor - Traga-o aqui.
de folhas mortas. No terceiro dia depois de nossa chegada a Bu- Expliquei-lhe que ele não conseguia ficar de pé. Mas o médico
chenwald, todos tiveram de tomar uma ducha. Mesmo os doentes, não quis saber. Com muita dificuldade, consegui levar meu pai até ele.
que deviam ir na frente. - O que você quer?
Ao sair do banho, tivemos que esperar muito tempo do lado de - Meu pai está doente... - respondi por ele. - Disenteria...
fora. Ainda não haviam acabado a limpeza dos blocos. - Disenteria... Não é minha especialidade. Eu sou cirurgião.
Avistando meu pai ao longe, corri ao seu encontro. Ele passou Saiam! Dêem a vez aos outros!...
perto de mim como uma sombra, passou por mim sem se deter, sem Meus protestos de nada serviram.
me olhar. Eu o chamei, ele não se voltou. Corri até ele: - Não estou mais agüentando, meu filho ... Leve-me de volta para
- Pai, para onde você está correndo? o boxe...
Olhou-me por um instante, e seu olhar estava longe, iluminado, Levei-o de volta e ajudei-o a se deitar. Ele tinha calafrios.
o rosto de um outro. Apenas um instante, e prosseguiu sua corrida. - Procure dormir um pouco, pai. Procure adormecer...
Sua respiração estava obstruída, pesada. Mantinha as pálpebras
fechadas. Mas eu tinha certeza de que ele estava enxergando tudo.
Acometido de disenteria, meu pai estava deitado em seu boxe, De que, agora, estava enxergando a verdade de todas as coisas.
com mais cinco doentes. Sentado a seu lado, velando-o, eu não me Um outro doutor veio ao bloco. Mas meu pai não quis se levan-
atrevia a acreditar que ele ainda poderia escapar à morte. E, no tar. Sabia que seria inútil.
entanto, fazia de tudo para lhe dar esperança. Aquele médico, aliás, só tinha vindo para liqüidar com os doen-
De repente, ele se ergueu em seu catre e encostou os lábios febris tes. Ouvi-o gritar que eram preguiçosos, que só queriam ficar na
em meu ouvido: cama... Pensei em pular em seu pescoço, em esganá-lo. Mas não
114 ELIE WIESEL A NOITE 115

tinha coragem, nem força. Estava agarrado na agonia de meu pai. Uma semana se passou assim.
Minhas mãos doíam de tão crispadas. Esganar o doutor e todos os - É seu pai, esse aí? - perguntou-me o responsável pelo bloco.
outros! Incendiar o mundo! Assassinos do meu pai! Mas o grito fi- -Sim.
cava preso em minha garganta. - Ele está muito doente.
Ao voltar da distribuição do pão, encontrei meu pai chorando - O doutor não quer fazer nada por ele.
como uma criança: Ele me olhou nos olhos:
- Meu filho, eles estão me batendo! - O doutor não pode fazer mais nada por ele. E você também não.
-Quem? Pousou sua grande mão peluda em meu ombro e acrescentou:
Pensei que estivesse delirando. - Ouça-me bem, garoto. Não esqueça que você está num campo
- Ele, o francês ... E o polonês ... Eles me bateram... de concentração. Aqui, cada um deve lutar por si mesmo e não pen-
Uma chaga a mais no coração, um ódio a mais. Uma razão a sar nos outros. Nem mesmo em seu pai. Aqui não tem pai, não
menos para viver. tem irmão, não tem amigo. Cada um vive e morre por si, sozinho.
- Eliezer... Eliezer... diga-lhes para não me baterem... Eu não fiz Vou lhe dar um bom conselho: não dê mais sua ração de pão e de
nada... Por que estão batendo em mim? sopa ao seu velho pai. Você não pode fazer mais nada por ele. E
Comecei a insultar seus vizinhos. Eles caçoavam de mim. Pro- assim você está se assassinando. Você deveria, ao contrário, pegar
meti-lhes pão, sopa. Eles riam. Depois ficaram encolerizados. Não a ração dele...
suportavam mais meu pai, diziam, que já não conseguia sair para Escutei-o sem interrompê-lo. Ele tinha razão, eu pensava no
fazer suas necessidades. mais fundo de meu íntimo, sem me atrever a confessá-lo para mim.
Tarde demais para salvar seu velho pai, eu dizia a mim mesmo. Você
poderá ter duas rações de pão, duas rações de sopa ...
No dia seguinte, ele se queixou de que haviam pegado sua ração Apenas uma fração de segundo, mas senti-me culpado. Corri
de pão. para buscar um pouco de sopa e dei-a a meu pai. Mas ele quase não
- Enquanto você dormia? tinha vontade de tomá-la: só queria água.
- Não. Eu não estava dormindo. Eles avançaram sobre mim. - Não beba água, tome sopa...
Arrancaram de mim meu pão... E me bateram ... Mais uma vez... - Estou me consumindo... Por que você é tão malvado comigo,
Não agüento mais, meu filho ... Um pouco d'água .. . meu filho? ... Água...
Eu sabia que ele não devia beber. Mas ele me implorou durante Trouxe-lhe água. Depois saí do bloco para a chamada. Mas voltei
tanto tempo, que cedi. Água era para ele o pior veneno, mas o que atrás. Deitei-me na cama em cima da sua. Os doentes podiam ficar
eu ainda podia fazer para ajudá-lo? Com água, sem água, de qual- no bloco. Eu ficaria doente, então, não queria deixar meu pai.
quer maneira aquilo logo acabaria... À minha volta agora reinava o silêncio, perturbado apenas pelos
- Você, pelo menos, tenha piedade de mim... gemidos. Diante do bloco, os S.S. davam ordens. Um oficial passou
Ter piedade dele! Eu, seu único filho! por entre as camas. Meu pai implorava:
116 ELI E WIESEL

- Meu filho, água ... Estou me consumindo... Minhas entranhas ... Capítulo 9
- Silêncio, aí! - berrou o oficial.
- Eliezer - continuava meu pai -, água...
O oficial aproximou-se dele e,gritou-lhe que se calasse. Mas meu
pai não o ouvia. Continuava a me chamar. O oficial, então, desferiu-
lhe uma violenta pancada na cabeça, com o cassetete.
Fiquei parado. Eu temia, meu corpo também temia, levar uma
pancada.
Meu pai ainda teve um estertor - e foi meu nome: "Eliezer:' Eu ainda ficaria em Buchenwald até o dia 11 de abril. Não falarei
Eu ainda ouvia sua respiração, irregular. Continuei parado. de minha vida durante esse tempo. Ela não tinha mais importância.
Quando desci depois da chamada, ainda pude ver seus lábios Desde a morte de meu pai, nada mais me atingia.
trêmulos murmurando algo. Debruçado sobre ele, fiquei mais de Fui transferido para o bloco das crianças, onde éramos seiscentos.
uma hora a contemplá-lo, gravando em mim seu rosto ensangüen- O front estava se aproximando.
tado, sua cabeça machucada. Passava meus dias num ócio absoluto. Com um único desejo:
Depois tive de ir me deitar. Subi na minha cama, em cima de comer. Não pensava mais em meu pai, nem em minha mãe.
meu pai, que ainda estava vivo. Era 28 de janeiro de 1945. De vez em quando, acontecia-me de sonhar. Com um pouco de
sopa. Um prato a mais de sopa.

Levantei-me no dia 29 de janeiro ao amanhecer. No lugar de meu


pai, jazia um outro doente. Deviam tê-lo tirado antes do amanhecer
Em 5 de abril, a roda da História deu uma volta.
para levá-lo ao crematório. Talvez ainda respirasse...
Era tarde avançada. Estávamos todos no bloco, de pé, à espera
Não houve prece em seu túmulo. Nem uma vela acesa em sua
do S.S. que viria nos contar. Ele estava demorando a chegar. Nun-
memória. Sua última palavra tinha sido meu nome. Um chamado, e
eu não tinha respondido. ca se vira tamanho atraso na história de Buchenwald. Devia estar
Eu não chorava, e sentia-me mal por não conseguir chorar. Mas acontecendo alguma coisa.
não tinha mais lágrimas. E, no fundo de mim mesmo, se tivesse es- Duas horas mais tarde, os alto-falantes transmitiram uma or-
cavado as profundezas de minha consciência débil, talvez tivesse dem do chefe do campo: todos os judeus deviam ir para a praça da
encontrado algo como: enfim, livre!... chamada.
Era o fim! Hitler iria cumprir sua promessa.
As crianças do nosso bloco se dirigiram para a praça. Era a única
coisa a ser feita: Gustav, o responsável pelo bloco, comunicava-se
com seu bastão... Mas, a caminho, encontramos dois prisioneiros
que nos cochicharam:
118 ELIE WIESEL A NOITE 119

- Voltem para o seu bloco. Os alemães querem fuzilá-los. Vol- de metralhadoras. Explosões de granadas. Nós, as crianças, ficáva-
tem para o bloco e não se mexam. mos deitadas no chão do bloco.
Voltamos. No caminho, soubemos que a orgariização de resis- A batalha não durou muito tempo. Perto do meio-dia, tudo vol-
tência do campo havia decidido não abandonar os judeus e impedir tou à calma. Os S.S. tinham fugido, e os resistentes, assumido a
que fossem liqüidados. direção do campo.
Por volta das seis da tarde, o primeiro tanque americano apre-
Como já era tarde e a desordem, grande - inúmeros judeus se
sentou-se às portas de Buchenwald.
haviam feito passar por não-judeus-, o chefe do campo decidiu que
seria feita uma chamada geral no dia seguinte. Todos deveriam se
apresentar.
Nosso primeiro gesto de homens livres foi nos atirarmos em
A chamada foi feita. O chefe do campo anunciou que o campo
cima dos mantimentos. Não se pensava em outra coisa. Nem vin-
de Buchenwald seria destruído. Dez blocos de deportados seriam gança, nem parentes. Pão, nada mais.
evacuados por dia. A partir daquele momento, não houve mais dis- E, mesmo quando já tínhamos aplacado a fome, ninguém pen-
tribuição de pão e de sopa. E a evacuação começou. A cada dia, sou em vingança. No dia seguinte, alguns jovens correram até
milhares de detentos atravessavam a porta do campo e não volta- Weimar para conseguir batatas e roupas - e deitar-se com as mo-
vam mais. ças. Mas de vingança, nem sinal.
Três dias após a libertação de Buchenwald, eu caí muito doente:
uma intoxicação. Fui transferido para o hospital e passei duas sema-
Em 10 de abril, éramos ainda uns vinte mil no campo, dos quais nas entre a vida e a morte.
centenas de crianças. Decidiram nos evacuar todos de uma só vez. Um dia pude me levantar, depois de reunir todas as minhas for-
Até a noite. Em seguida, explodiriam o campo. ças. Queria me ver no espelho pendurado na parede em frente. Não
Estávamos então reunidos na imensa praça da chamada, em fi- via meu rosto desde o gueto.
las de cinco, esperando ver o portal se abrir. De repente, as sirenes Do fundo do espelho, um cadáver me contemplava.
começaram a berrar. Alerta. Voltamos para os blocos. Já era muito Seu olhar nos meus olhos não me deixa mais.
tarde para nos deslocarem aquela noite. A evacuação foi transferida
para o dia seguinte.
A fome estava nos torturando; não comíamos nada havia quase
seis dias, a não ser um pouco de capim e algumas cascas de batata
encontradas nas imediações das cozinhas.
As dez horas da manhã, os S.S. se dispersaram pelo campo e pu-
seram-se a arrebanhar as últimas vitimas para a praça da chamada.
O movimento de resistência resolveu, então, entrar em ação. Ho-
mens armados surgiram repentinamente de todos os lados. Rajadas
prefácio François Mauriac, Pramio
Nobel de Literatura em 1954, ~
"morte de Deus nessa alma de ~
que descobre subitamente o mal _.,..
luto". &te livro resulta de uma ~
que jamais será fechada. Após a aaot•:;~ga
como prisioneiro, ao se depaqr
sua própria imagem ao espelho,
constata: "Seu olhar nos meus
não me deixa jamais.• Olhoe • • •
~descoberta de que eeres-..._
crédulos em Deus, podem a
formar em monstros.

Este livro foi composto em Minion e impresso


pela Ediouro Gráfica em papel Chamois Fine
8og para a Ediouro Publicações em abril
de 2006.
"MAS O QUE AFIRMO é que este testemunho, que
surge depois de tantos outros e descreve uma abomi-
nação que pensávamos já conhecer em sua totalidade,
é diferente, singular, único ... A criança que aqui nos
conta esta história era um eleito de Deus. Desde o
despertar de sua consciência, vivia unicamente para
Deus, nutrida pelo Talrnude, ansiosa por ser iniciada
na Cabala, consagrada ao Eterno. Em algum mo-
mento havíamos pensado nesta conseqüência de um
horror menos visível, menos chocante que outras abo-
minações, mas, para nós que temos fé, a pior de todas:
a morte de Deus nessa alma de criança que descobre
subitamente o mal absoluto? "

do prefácio de FRANÇOIS MAURIAC

ISBN 85 - 00 - 02026 - 1

9 788500 0 2026 1

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