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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC (UFABC)

BASES EPISTEMOLÓGICAS DA CIÊNCIA MODERNA


Prof. Dr. Victor Ximenes Marques

O discurso científico é objetivo? Sujeito e objeto no conhecimento. Tipos de objetividade. A


questão do enquadramento, de Kant a Kuhn e além.

Não existe uma simples resposta de “sim” ou “não” ao questionarmos se o discurso científico
é objetivo ou não; depende de como se define “objetividade.” Na concepção tradicional, a
objetividade é entendida como a correspondência entre o conhecimento e a realidade. Dessa
forma, o discurso científico é objetivo, na medida que ela vai apresentar a realidade como ela
é. Essa concepção de objetividade conta com uma distinção entre sujeito e objeto: o sujeito
nesse caso é o observador, sendo ele o agente do conhecimento; já o objeto é o que é observado,
o que é conhecido. O sujeito toma uma posição neutra, imparcial. Ou seja, o sujeito não interfere
no objeto, não o “contamina” com sua subjetividade acerca do que é a realidade definitiva. O
conhecimento científico surge a partir de um processo de observação, experimentação e análise.
Nessa perspectiva, podemos dizer que a ciência é um saber objetivo, isto é, obedece a concepção
que o objeto pesquisado efetivamente é.

Todavia, a partir da Primeira Guerra Mundial, o questionamento sobre o que é a objetividade


científica ficou mais abrangente. A teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn inspirou uma nova
forma de revisar a noção de objetividade científica. Segundo Kuhn, a ciência normal é
dominada por um “paradigma”, isto é, padrões teórico-práticos que vão regular e ditar o que é
essa ciência real, sendo qualquer forma de conflito com esses paradigmas uma forma de
explicar como surgem as revoluções científicas; a ciência é influenciada pela cultura, pelos
valores e interesses da sociedade que é ela é produzida, justamente pela ciência em si ser um
empreendimento social. Sob a perspectiva de Kuhn, torna-se difícil então manter a concepção
tradicional de objetividade, não somente porque, tudo na ciência real depende de um respectivo
paradigma, mas também porque a noção de verdade na concepção tradicional está associada à
noção de correspondência com a realidade. Sendo assim, fica difícil de entender como teorias
que se baseiam em paradigmas podem ser consideradas objetivas, se o paradigma em questão
não corresponde à realidade.

Do mesmo modo, a perspectiva de Kant sobre a objetividade científica também é importante


porque ela destaca o papel de sujeito no conhecimento. Isso posto, o sujeito não é apenas um
observador passivo da realidade, mas também um agente ativo que contribui para a construção
do conhecimento. Entretanto, essa construção é limitada pela realidade. A realidade impõe
limites naturais ao conhecimento, mas não quer dizer que isso o determina totalmente. Para
Kant, a objetividade é possível justamente porque o sujeito é dotado de categorias mentais, que
são estruturas a priori que organizam a experiência. Essas categorias têm caráter universal e
permitem que os sujeitos diferentes cheguem a conhecimentos semelhantes sobre a realidade;
as categorias mentais permitem ver a realidade de uma certa maneira, mas não nos permitem a
ver a realidade como ela é em si mesma, devido a subjetividade do indivíduo, e isso se aplica a
todos, visto que todos os humanos têm categorias mentais.

Ambos Kuhn e Kant reconhecem o papel do enquadramento no conhecimento científico. No


entanto, eles têm perspectiva diferentes sobre a natureza e a influência do contexto social e
cultural no conhecimento científico. Para Kuhn, o enquadramento é muito importante, já que o
paradigma científico vigente define o que é considerado relevante e irrelevante, o que é possível
e impossível. Por exemplo, durante um paradigma geocêntrico, a ideia de que a Terra girava
em torno do sol era considerada irrelevante e consequentemente impossível, errônea,
justamente por contradizer o paradigma vigente. Logo o enquadramento pode influenciar o
conhecimento de várias maneiras, visto que tem ação direta na escolha do que observar,
experimentar e interpretar os dados.

Por outro lado, Kant considera o enquadramento é uma influência importante, mas não é a única
influência. As categorias mentais também desempenham um papel importante, e elas são
universais e necessárias, mas não são suficientes para determinar completamente o
conhecimento. É nesse ponto que entra o enquadramento do sujeito. Por exemplo, um cientista
que estuda a evolução das espécies pode estar influenciado por sua cultura e seus valores. Se o
cientista é religioso, ele pode ser mais propenso a aceitar uma explicação da evolução que seja
compatível com sua religião. O enquadramento do sujeito pode influenciar o conhecimento de
várias maneiras. Ele pode influenciar a escolha do que observar, do que experimentar e da
maneira como interpretar os dados.
Em conclusão, na concepção tradicional, o discurso científico é objetivo na medida em que ele
representa a realidade tal como ela é. Não obstante, essa concepção tem sido questionada por
filósofos e cientistas, como foi observado em Kuhn e Kant.

A perspectiva de Kant sobre a objetividade destaca o papel do sujeito no conhecimento,


enquanto a perspectiva de Kuhn destaca o papel da cultura e dos valores no conhecimento
científico. A questão do enquadramento em ambos os pensamentos chama a atenção para a
influência do contexto no conhecimento, sendo elas complementares, fornecendo uma visão
mais completa do papel da subjetividade no conhecimento científico.

Portanto, uma visão equilibrada sobre a objetividade científica é aquela que reconhece tanto os
aspectos positivos quanto os negativos da concepção tradicional. A ciência é um
empreendimento humano, e, como tal, está sempre sujeita aos limites da subjetividade humana.
No entanto, a ciência pode ser objetiva na medida em que se esforça para superar esses limites,
visto que ela é um processo de construção de conhecimento, e, como tal, ela é aberta ao debate
a à crítica. Assim, a objetividade científica é um ideal inatingível, mas o entendimento e estudo
desse fato é essencial, a fim de promover a execução científica mais próxima da realidade
possível.

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