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BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE Série Bioética – Volume 14

Book · December 2022

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1 author:

Osebor Monday Ikechukwu


University of Delta, Agbor
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Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Caroline Filla Rosaneli
Marta Luciane Fischer
(Organizadoras)

BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

E MEIO AMBIENTE

Série Bioética – Volume 14

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Analista de Escrita e Artes

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

B615

Bioética, saúde global e meio ambiente / Caroline Filla Rosaneli, Marta Luciane Fischer
(organizadoras) – Curitiba : CRV, 2021.
316 p. (Série Bioética, Volume 14)

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-0926-8
ISBN Físico 978-65-251-0928-2
DOI 10.24824/978652510928.2

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1. Meio ambiente 2. Bioética ambiental 3. Ecologia integral 4. Responsabilidade – natureza
5. Saúde global I. Rosaneli, Caroline Filla. org. II. Fischer, Marta Luciane. org. III. Título IV. Série.

CDU 504 CDD 577


Índice para catálogo sistemático
1. Meio ambiente – 577

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2021
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
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Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois pareceristas ad hoc.
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Coordenação: Dr. Mário Antônio Sanches e


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Marlene Braz (RJ)
Sergio Ibiapina Ferreira Costa (PI)
Susana Vidal (Argentina)
Thiago Rocha da Cunha (PR)
Volnei Garrafa (DF)
SUMÁRIO
PREFÁCIO .................................................................................................... 11
José Roque Junges

CONTEXTOS

A SINERGIA ENTRE A BIOÉTICA AMBIENTAL


E SAÚDE GLOBAL: a perspectiva de futuro ................................................15
Marta Luciane Fischer
Caroline Filla Rosaneli

BIOÉTICA Y ECOLOGÍA INTEGRAL ..........................................................33


Javier de la Torre Díaz

UMA REFLEXÃO SOBRE PANDEMIAS E A


RESPONSABILIDADE BIOÉTICA DO HOMEM EM
RELAÇÃO A CENÁRIOS MODIFICADOS DA NATUREZA.......................49
Alvaro Angelo Salles
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NOTAS SOBRE O DESENRAIZAMENTO HUMANO:


o problema ecológico e bioético de base .......................................................63
Marcelo Luiz Pelizzoli

DATA SCIENCE: a bioethical issue of privacy ..............................................81


Osebor Ikechukwu Monday

UM BREVE PANORAMA DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA


SOBRE BIOÉTICA E COVID-19 NO BRASIL ............................................87
Leandro Silva Costa
Lenina Lopes Soares
Pablo de Castro Santos

CONFLITOS

A FRACA DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA POTÁVEL:


uma análise em torno das cidades Moçambicanas......................................107
Trindade Filipe Chapare
Ricardo de Amorim Cini
Marta Luciane Fischer

POPULAÇÃO RURAL E ACESSO À SAÚDE


EM MOÇAMBIQUE: uma análise sobre direitos humanos .........................121
Domingos Pedro Zina Faz-Ver
Aline Maran Brotto
Caroline Filla Rosaneli
OS CÃES COMUNITÁRIOS NA PAUTA DA BIOÉTICA AMBIENTAL.....135
Marina Kobai Farias
Patricia Feiz Nardinelli Bernardes de Carvalho
Rafaela Teixeira da Costa
Evelyne Paludo
Marta Luciane Fischer

A PANDEMIA E O NOVO REGIME CLIMÁTICO:


a tarefa ética de impor limites à ação humana .............................................157
Jelson Oliveira

DESMATAMENTO: o papel da ilegalidade dos mecanismos


públicos para a preservação da floresta em Moçambique ..........................171
Trindade Filipe Chapare
Robiran José dos Santos Junior
Marta Luciane Fischer

OS IMPACTOS AMBIENTAIS DA TECNOLOGIA


DE EDIÇÃO GENÉTICA, NÃO IMPORTAM? ...........................................187
Norton Nohama
Jefferson Soares da Silva
Daiane Priscila Simão-Silva

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ESCOLHAS

O CORONAVÍRUS E AS POPULAÇÕES
INDÍGENAS BRASILEIRAS: a Bioética como forma de resistência..........215
Fernanda Ollé Xavier
César Augusto Costa

RELAÇÕES ENTRE MOVIMENTOS INTERNACIONAIS


DE PROMOÇÃO DA SAÚDE E DESENVOLVIMENTO
HUMANO SUSTENTÁVEL NA AGENDA GLOBAL
DE POLÍTICAS PÚBLICAS .........................................................................227
Roberto Eduardo Bueno

AS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES LÁCTEAS


DA REGIÃO CENTRAL DE RONDÔNIA SOB A
PESPECTIVA DO MODELO ESTRATÉGICO DE PESTEL.....................237
Cleberson Eller Loose
Odirlei Arcangelo Lovo
Clodoaldo de Oliveira Freitas
Eliane Silva Leite

NEOEXTRATIVISMO E A INDÚSTRIA PECUÁRIA


COMO PADRÃO ECONÔMICO EM RONDÔNIA:
um paradigma de desenvolvimento?............................................................... 253
Charles Carminati de Lima
Luciano Félix Florit
ECONOMIA CRIATIVA: o artesanato indígena como resistência,
inserção social e economia da mulher indígena Paiter Suruí ......................275
Suzenir Aguiar da Silva
Leila Ruiz Ferreira
Nilza Duarte Aleixo de Oliveira
Andreia Duarte Aleixo

DIREITO À AGRICULTURA URBANA AGROECOLÓGICA ....................293


Maria Leticia Fagundes
Polliana Schiavon

ÍNDICE REMISSIVO ..................................................................................309


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PREFÁCIO
O contexto da pandemia mais do que nunca nos pede uma análise das
interfaces entre a crise sanitária e a crise ambiental, pois estão intimamente
relacionadas. O surgimento de uma grave crise sanitária como fruto do total
desequilíbrio ambiental foi prevista e era esperada há bastante tempo, apenas
não se sabia quando ela iria acontecer. A sua eclosão aponta para uma perma-
nente época pandêmica que se instala, iniciada pelas sucessivas variantes do
vírus SARS que eclodiram, atacando as vias respiratórias de forma sempre mais
grave e letal. Está comprovado que essa proliferação de novos vírus vem da
destruição dos ambientes naturais e sua transformação em contextos habitados,
pondo humanos em contato com vírus que povoam animais selvagens sem
nenhum dano para eles, mas que uma vez passados para as vias respiratórias
dos humanos, provocam graves lesões. Nesse sentido, não haverá uma solução
para essa espiral pandêmica sem uma resposta adequada à crise ambiental. Uma
diferença dessa pandemia em relação às antigas eclosões de pestes é que a atual
tem uma incidência universal, enquanto as anteriores eram regionalizadas, por-
que não existia uma mobilidade global como atualmente. Isso significa que ela
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pede uma solução global, além de uma resposta ambiental. Esse contexto aponta
para a importância da obra que está sendo prefaciada, porque ela tenta refletir
criticamente sobre as interdependências entre ambiente e saúde na perspectiva
da Bioética. Por isso relaciona Bioética ambiental e saúde global.
A Bioética ambiental é um modelo de ética baseado na ecologia, porque
analisa criticamente a crise ambiental a partir dos desajustes ecossistêmicos
produzidos pelas intervenções humanas nos equilíbrios homeostáticos biogeoquí-
micos na superfície do planeta Terra, entendida como biosfera/gaia. Isso significa
assumir um enfoque ecocentrado dos problemas ambientais, não considerando
a natureza como um puro estoque de recursos a serviço dos interesses humanos,
mas um sistema de serviços ambientais climáticos para a reprodução da vida do
qual usufruem humanos e todos os demais seres vivos. Nessa compreensão, os
danos ambientais produzidos por processos industriais, agropecuários, minera-
dores e de geração de energia afetam negativamente todos os seres vivos daquele
ecossistema, também os humanos socialmente fragilizados, porque impedem
uma reprodução equilibrada da vida, sendo considerados processos de injustiça
ecológica que exigem uma resposta política e econômica socioambiental.
A saúde global é um movimento de saúde pública transfronteiriço de
cunho universal que tenta responder, nos seus inícios, aos riscos sanitários que
proliferavam globalmente devido à mobilidade humana para além de qualquer
limite de países. A disseminação do vírus COVID-19 é um exemplo acabado
dessa proliferação global e os organismos multilaterais de saúde procuram fazer
12

frente ao processo de difusão geográfica do vírus. A crítica a essa compreensão


inicial de saúde global é que ela nasceu para defender os países centrais ricos
dos riscos advindos de países pobres explorados colonialmente por esses países.
O foco estava na prevenção de riscos, mas quando a abordagem é a promoção
da vida, a saúde global adquire uma compreensão mais ampla do que é saúde,
porque não existe proteção contra riscos sanitários sem um ambiente saudá-
vel, promotor de qualidade de vida. Assim o ambiente adquire também uma
visão ampliada, não reduzido ao habitat do meio transmissor do vírus, mas
compreendido como o conjunto das condições socioambientais que permitem
a reprodução da vida e da saúde em determinado ambiente. Essa compreensão
ampliada de saúde que engloba o ambiente como criador das condições para
se poder ter saúde é que deve estar na base da visão sobre saúde global.
A obra parte de uma concepção ecológica de Bioética ambiental e de
uma ideia ecossistêmica de saúde para pensar a saúde global. O livro está
dividido em três partes: contextos, conflitos e escolhas.
Os contextos estão identificados pela sinergia necessária entre Bioética
ambiental e saúde global e pelo consequente conceito de ecologia integral.
Os contextos apontam para a responsabilização pela modificação da natureza
que está na origem das pandemias e para a causação dessa modificação no

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desenraizamento humano em relação à natureza.
Os conflitos trazem três problemas da sinergia entre ambiente e saúde
típicos de um país africano, Moçambique: fraca distribuição da água, meca-
nismos ilegais que permitem o desmatamento e o acesso insuficiente aos
serviços de saúde pela população rural. Dois conflitos concretos são apre-
sentados: a imposição de limites às intervenções humanas na natureza e o
manejo ambiental de cães comunitários.
As escolhas trazem experiências concretas indígenas: resistência em
relação à saúde e projetos econômicos alternativos de artesanato; duas análises
sobre o desenvolvimento do Estado de Rondônia: agroindústrias familiares
lácteas e indústria pecuária baseada no neoextrativismo; por fim, uma questão
de cunho global sobre a agenda de movimentos internacionais de promoção
da saúde e desenvolvimento sustentável e outra bem local inovadora: o direito
à agricultura urbana agroecológica.
Pelas temáticas, pode-se notar uma visão transdisciplinar e interventiva de
Bioética que tenta pensar criticamente as interfaces sinérgicas entre ambiente
e saúde numa perspectiva global. Nisso reside a originalidade da obra.

José Roque Junges


PPG de Saúde Coletiva / UNISINOS
São Leopoldo, RS
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CONTEXTOS
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A SINERGIA ENTRE A BIOÉTICA
AMBIENTAL E SAÚDE GLOBAL:
a perspectiva de futuro
Marta Luciane Fischer1
Caroline Filla Rosaneli2

A Bioética ambiental e a saúde global se constituem de dois temas urgen-


tes nas agendas da Bioética. Contudo, o desafio que se propõe neste texto é
como equalizar as demandas que se originam de conflitos éticos complexos,
plurais e de amplitude global. A presente reflexão se origina da expectativa
que a sinergia das perspectivas ambientais e da saúde, não devem ser tomadas
unicamente como problemas, mas sim como potencialidades de solução para
um futuro factível.

A face ecológica da Bioética


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A Bioética é compreendida como ética pela vida, e não há nada mais


encantador, desafiador e assustador do que a Vida. Na segunda metade do
século XX o interesse pela metaética, e de modo especial pelas éticas aplica-
das, focalizou a atenção dos pensadores e sensibilizou parte da sociedade e
suas instituições políticas, sociais e educativas (FEIJÓ et al., 2010). Embora
o termo Bioética tenha sido usado corriqueiramente para se referir a um ramo
da ética preocupada em identificar e discutir conflitos nas áreas biomédicas,
sinonimizado com a ética aplicada, vislumbra-se possibilidades de acolher
outras áreas tais como sociedade, ambiente, animais, direito e comunicação
(COTET; FEIJÓ, 2005).
A Bioética se desenvolveu em três momentos: a) 1ª década (1970)
estimulando a autogestão do corpo, a autonomia frente as decisões médicas
e os direitos civis dos enfermos; b) 2ª década (1980) passou dos direitos
individuais para os sociais, teve como foco a economia, a distribuição de
recursos e a justiça sanitária; c) 3ª década (1990) demostrou que é neces-
sário ambientar o horizonte e defender direitos relativos a vida, sua gestão,
que já não é individual nem social, mas sim global, visando a proteção do
meio ambiente e o direito das futuras gerações (GUILLÉN, 2002). Nesse
processo é possível identificar ainda três dimensões: a) micro (microbioética)

1 Bióloga. Mestre e Doutora em Zoologia. Docente Curso de Ciências Biológicas e PPGB / PUCPR.
2 Nutricionista. Pós-doutora pela Cátedra Unesco em Bioética da UnB. Docente do PPGB / PUCPR.
16

= pessoal/ corpo; b) meso (mesobioética) = decisões institucionais; c) macro


(macrobioética) = ética global.
Embora historicamente as nações mundiais tenham demostrado insensi-
bilidade e distanciamento dos problemas externos, muitos países compreen-
deram que é necessário aprender a pensar e sentir globalmente, a buscar por
um desenvolvimento sustentável e pelos direitos sobre o meio ambiente e
das futuras gerações. A globalização deve passar de meramente mercantil e
financeira para uma perspectiva política e ética. Nesse cenário, a Bioética atua
como promovedora da democracia deliberativa, estimulando que a sociedade
tome suas decisões conscientemente e encontre sua trilha específica, mas que
conduza a um futuro comum (FISCHER et al., 2017).
Assim, fazendo a analogia da amplitude da aplicação da Bioética com
um organismo vivo, se identifica a visão microbioética quando se olha para
o interior da célula para compreender os processos bioquímicos que torna
os seres vivos. Logo, norteando a sua existência e dando o sentido para a
mesma, propiciando a manutenção da vida da célula até que possa perpetuar
a sua essência. Em um estágio intermediário, a mesobioética, entende que a
existência individual é infactível sem as conexões sociais. E, por fim, a visão

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macrobioética, que busca compreender as intrigantes, estreitas e indispensáveis
inter-relações entre os seres vivos – a teia da vida – que permite a existência
planetária, como o próprio organismo vivo: a Gaia.
A efetivação de processos sustentáveis de manutenção da vida decorre
desde os mecanismos bioenergéticos relacionados à sobrevivência do corpo,
até as intrigantes inter-relações dos seres vivos e o planeta. Para tal, deve
perpassar a compreensão dos processos do passado, a fim de se proporcionar
chances de sobrevivência às gerações futuras. O avanço tecnológico, econô-
mico e cultural do ser humano promoveu o seu distanciamento da natureza a
partir do momento que passou a adaptar o meio às suas necessidades. Embora
essa estratégia de sobrevivência tenha propiciado a espécie animal possibi-
lidades infinitamente mais aprimoradas, e que perpassa a sobrevivência bio-
lógica, o resultado não tem sido benéfico em todos os segmentos, resultando
em conflitos éticos. Esses acompanham o percurso histórico da humanidade
e adquirem maior ou menor relevância dependendo do contexto temporal
de onde emergem as questões (CLOTET; FEIJÓ, 2005). Segundo Pessini e
Barchifontaine (2008), o homem possui instintos de violência, vontade de
dominação que se constituem em arquétipos que os afastam da benevolência
com relação à vida.
A saturação das possibilidades naturais de autorregeneração da biosfera
em termos globais foi determinante para conclamação de mudanças de para-
digmas desde o início do século passado. Assim, a retomada de valores éticos
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 17

que norteiam a conduta comportamental do ser humano, na busca de restabe-


lecer um convívio harmonioso com a natureza, é fundamental para que todas
as espécies, em presentes e futuras gerações, tenham o direito de desfrutar
de um meio ambiente equilibrado. Ao instituir a ética ambiental, procurou-se
despertar em cada cidadão a compreensão do certo e errado quanto as suas
condutas ambientais, diante de práticas culturalmente enraizadas, nas quais
apenas informações não são suficientes, sendo necessário reeducar (FISCHER
et al., 2017). Contudo uma ética ambiental hoje deve partir da compreensão
da ética como princípio (início e fundamento) da própria racionalidade do
real ou será suprimida na dinâmica da totalidade, uma vez que compreender
o mundo é agir eticamente.
As questões ambientais demandam comunicação entre a academia, ges-
tores e a sociedade, de forma que atitudes preventivas prevaleçam sobre as
ações de contenção ou reversão de problemas já consolidados. É óbvio que
não é necessário ser um ambientalista fanático para perceber que a reversão
do avanço tecnológico seria o melhor para o ambiente, porém também não
se pode ser utópico e acreditar que a sociedade vai abdicar do conforto que
o desenvolvimento tecnológico trouxe. A questão é como associar o mundo
moderno com o menor impacto possível. Durante muito tempo o antropocen-
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trismo ditou o rumo do desenvolvimento da humanidade. Porém, conclama-se


por uma sociedade mais justa, com olhar mais sensível e amplo, e que aplique
os princípios da Bioética que norteiam de fato a conduta humana como o vis-
lumbrado por Potter (1970): a) todos seres vivos, incluindo o ser humano, são
interdependentes; b) natureza é finita; c) convivência pacífica com o natural
e d) respeito a natureza como missão política, ética e jurídica.
A Bioética e a ecologia passaram a estabelecer um diálogo mais próximo
no século XX motivado pela eminência de um colapso ambiental eviden-
ciado nas mudanças climáticas acrescido da expectativa de um futuro incerto
diante das crises sociais e econômicas, dos graves problemas psicológicos,
da caotização do espaço urbano, da degradação dos recursos hídricos, da
poluição ambiental, da carência de saneamento básico e de segurança alimen-
tar (FISCHER et al., 2017). O homem cada vez mais tem reconhecido sua
vulnerabilidade diante dos resultados da destruição do ambiente materializa-
dos em doenças, pandemias, perdas econômicas decorrentes de fenômenos
climáticos, extinção das espécies e descaracterização dos ambientes naturais
(SIQUEIRA-BATISTA et al., 2009; FALEIROS Jr; BORGES, 2012; VAN
BOGAERT; OGUNBANJO, 2010).
O termo ecologia criado por Haeckel inicialmente se referia ao estudo
do inter-retro-relacionamento de todos os sistemas vivos e não vivos entre si
e com o ambiente. Porém, segundo Pessini e Barchifontaine (2008), passou
18

de um discurso regional para o contexto universal, com destaque a quatro


elementos relevantes na discussão atual:
a) ecologia ambiental (natureza fora do ser humano);
b) ecologia social (promove o desenvolvimento sustentável e a comu-
nidade planetária);
c) ecologia mental (baseada na ecologia profunda considera que os
problemas ambientais têm a ver com a mentalidade);
d) ecologia integral (o ser humano é a própria Terra).
A partir do surgimento da Bioética tem se a perspectiva de construção e
aplicação de propostas teóricas e metodológicas no campo das éticas aplicadas
a fim de melhorar as condições de vida e a sobrevivência.
A atual crise econômica e sociopolítica trouxe contradições morais tanto
com relação a comportamentos individuais quanto públicos tornando neces-
sária a intervenção da Bioética ao lado de setores democráticos que lutam
pela diminuição das injustiças. Consequentemente, conclama se por uma
Bioética dinâmica e politizada facilitadora do acesso aos bens de consumo por
nações mais necessitadas e o estabelecimento de um conjunto de ferramentas
balizadas pelo método científico que viabilize a cooperação respeitando a
pluralidade (GARRAFA, 2012). O mundo capitalista transformou os seres

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vivos em mercadorias e em consumidores. A luta desleal que incentiva a
competição e a acumulação de lucros será sempre injusta. Obviamente que
nesse cenário a comunhão com a natureza se transforma em domínio, inte-
resse e foco no suprimento das necessidades humanas (RODRIGUES, 2006).
Contudo, movimentos contrários se posicionaram alertando a sociedade para
os riscos de vulnerabilidade diante desse sistema devorador. Roselló (2002)
apontou o pensamento animalista como uma nova forma de interação entre
humanos e a natureza a partir de um paradigma ecocêntrico que tenta superar o
antropocentrismo ocidental e que coincide com uma retomada de consciência
frente a desastres ecológicos.
A mudança de como o ser humano entende e se relaciona com a natureza
foi drástica. Existe uma dissociação entre o que se sente e o que se pensa, que
alimenta o antropocentrismo rigoroso e exclusivista. Diante do ambiente e dos
animais as emoções continuam a frente da razão, como uma espécie de esquizo-
frenia. Para Clotet (1997), o termo Bioética pretende centrar a reflexão ética em
torno do fenômeno vida. Considerando que existem diferentes formas de vida
e formas distintas de consideração dos aspectos éticos, deve buscar o caráter
plural. Assim a ética ecológica, os deveres com os animais, a ética do desen-
volvimento e a ética da vida humana seriam os temas englobados pela mesma.
A humanidade será envolvida em um processo irresistível de unificação,
se aceitando como uma comunidade global não por compartilharem uma única
verdade, mas por se reconhecerem como humanos. Esta será decorrente da
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 19

unificação crescente de diversidades e aumento do sentimento de solidarie-


dade, fundamental para unir uma população crescente. Potter (1995) concla-
mou pela Bioética global para ampliar o âmbito da Bioética em verdadeiras
preocupações sobre o ambiente e o futuro da humanidade. Potter se apoiou
em Teilhard de Chardin considerando o progresso humano, um futuro melhor
e a sinergia entre a ciência da biologia e os valores humanos. Embora ambos
eram evolucionistas, Potter era pragmático e visava solucionar problemas: a
sobrevivência. Enquanto Chardin queria compreender o lugar do ser humano
no universo. Potter ficou cada vez mais insatisfeito com os rumos que a
Bioética tomou, alimentando o enfoque individualista e focada em soluções
a curto prazo, deixando de lado problemas éticos fundamentais e urgentes
como crescimento populacional, as guerras, a violência, a poluição, a degra-
dação ambiental e a pobreza. Assim, a Bioética global deveria ser unificada
e abrangente, internacional, planetária, conquistando um novo espaço social
que desafia o discurso bioético.
A comunidade moral visa a manutenção e a perpetuação da humanidade
perante a dependência e vulnerabilidade dos recursos finitos que devem ser
tomados como patrimônios da humanidade, sob a custodia da nossa geração.
A Bioética passa a exercer também o papel de defensoria apoiando uma causa,
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relacionando os problemas com as soluções, indo contra o pensamento de


que a Bioética não deve dedicar-se a defensoria, pois deve buscar apenas o
conhecimento e a compreensão, e não perder sua independência, tornando-se
partidários e oferecendo propaganda ao invés de argumento.
Nas últimas décadas o meio científico incorporou a ética ecológica de
Aldo Leopold em 1949, direito dos animais de Peter Singer em 1970, a eco-
logia profunda de Arne Naes em 1973, e o princípio da responsabilidade de
Hans Jonas em 1990. O direito de todo ser vivo presente ou futuro pela sua
condição de vivente, se constituiu de uma responsabilidade que se amplia
pela consciência do ser humano como agente moral. Acrescido da sua vulne-
rabilidade quanto espécie que conclama o retorno da vocação ecológica da
Bioética, estabelecendo as diretrizes para a Bioética e a ecologia profunda.
Desta forma, conduzindo o ser humano a se perceber como corresponsável
por manter a vida no planeta por muitas e muitas gerações e compreender
que a natureza tem um valor intrínseco e não apenas instrumental (SIQUEI-
RA-BATISTA et al., 2009).
Assim, Potter e Potter (1995) com intuito de manter a abrangência,
pluralismo, interdisciplinaridade, abertura e incorporação crítica de novos
conhecimentos propuseram uma nova definição de Bioética Profunda, como
uma forma ampla incluindo a vida, a saúde e o ambiente (SOARES, 2011). A
América Latina, e em especial do Brasil, passaram a ter papel na ampliação
e politização da agenda Bioética internacional (UNESCO, 2005). Garrafa
20

(2012) relacionou os problemas éticos contemporâneos com a crise econômica


e sociopolítica, justiçando mudanças concretas no campo da ética aplicada
através da reflexão de concepções conservadoras da Bioética. A escolha dos
temas Bioética global e Bioética, poder e justiça por grandes eventos mun-
diais de Bioética estimularam as discussões sobre a globalização da Bioética,
sensatez na aplicação do saber e respeito as questões ambientais, pluralidade
moral e temáticas sanitárias, sociais e ambientais.
A busca por novos paradigmas de produção e consumo e outros modos
de vida em sociedade requer a reapropriação da política pela cidadania. A
busca pela qualidade de vida propõe que a Bioética incorpore conceitos de
biopolítica e biopoder e o resgate não apenas econômico, mas social, cultual,
ético e espiritual. Segundo Schramm (2011), Potter reconhecia uma “política
Bioética” ao afirmar que “num futuro em longo prazo, teremos de inventar
e desenvolver uma política Bioética”. É indispensável que uma nova Bioé-
tica, mais dinâmica e politizada, construa e coloque ao dispor das nações
mais necessitadas do mínimo para sobrevivência um conjunto de ferramentas
concretas que respeite a pluralidade cultural e possibilite a busca de destinos
próprios (GARRAFA, 2012). Governar é fazer escolhas, muitas das quais
podem ser consideradas trágicas, uma vez que se deve discutir a persistência

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de situações de desigualdades injustas e evitáveis. A desigualdade, com todos
os valores e todas as decisões que envolve, é essencial para compreender o
alcance e a atualidade do conceito de biopolítica. A biopolítica das populações
possui alguns aspectos privilegiados de intervenção, dentre eles: as políticas
de controle de natalidade, controle de morbidades e endemias. Se constitui
como uma tecnologia científico-política que se exerce sobre as populações, que
nada mais são do que multiplicidade biológica. Um processo que tem conse-
quências econômicas e políticas que podem ser antecipadas (CAPONI, 2009).
A aproximação da Bioética deliberativa possibilita a discussão e apropriação
pela sociedade civil, a destituição de cidadania cosmopolita e o potencial de
diálogo como eixos horizontais. A Bioética pode ser crítica e oferecer respostas
alternativas a certos biopoderes operantes, entendida desde o nível local até
o universal, como útil a imposição de princípios assemelhando a renúncia
do discurso emancipador dos direitos humanos e a possibilidade de diálogos
morais influentes em diversas culturas (CALDERÓN, 2012). Deve-se ressaltar
que a ética da terra ampliou a fronteira da comunidade viva incluindo o solo,
água, plantas e animais.
A Bioética foi recentemente introduzida no Brasil, meio século depois da
aprovação do Código de Nuremberg em 1947, com estabelecimento de dire-
trizes éticas para pesquisas com humanos. Suas bases sustentavam a adoção
descontextualizada do principialismo, defesa dos vulneráveis, observância dos
direitos humanos como limites éticos subsidiando diferentes correntes, tais
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 21

como: a Bioética da intervenção, a Bioética da proteção, a Bioética feminista


e anti-racista, levando em consideração a realidade nacional com questões
como a fome, o abandono, a exclusão social e o racismo (GARRIDO, 2008).
As questões temáticas da Bioética podem ser categorizadas em emergen-
tes e prevalentes, sendo estas associais a exclusão social, pobreza, violência,
dificuldade acesso a saúde (MEIRELES; OLIVEIRA, 2012). A ecologia pro-
funda de Arne Naess (ano) visou a ultrapassagem ética através da modificação
da forma de viver e sentir o ambiente, conclamando por um ser humano novo
e diferente e a natureza como relação emotivo-afetiva. Designa-se a ecologia
profunda como uma superação ética visando reestruturação dos paradigmas
cognitivos, comportamentais e afetivos, logo uma configuração da percepção
do mundo na perspectiva holística (JUNGES, 2010). Consequentemente,
implica em introduzir perguntas profundas com atitudes mentais, culturais
e sociais para questões complexas, porém com o cuidado de não cair nas
armadilhas do marketing verte (SOARES, 2011).
A Bioética ambiental surgiu, informalmente, em decorrência de uma
crise ética e moral instaurada na sociedade pós-moderna caracterizada pela
modificação do planeta em virtude dos novos arranjos produtivos no consumo,
incremento populacional, da ação predatória do homem e das catástrofes
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ambientais. O uso consciente e sustentável dos recursos naturais estratégicos


para sobrevivência do planeta e as possibilidades advindas com a biotecnolo-
gia (JUNGES, 2010) e perda da biodiversidade, muitas vezes são percebidas
coletivamente como um fenômeno isolado, e não como um problema real
onde todos somos algozes e vítimas (BRAMA; GRISÓLIA, 2012). O lixo
tecnológico, não mais possível de entrar nos ciclos naturais, abriu os olhos da
sociedade para uma realidade não mais possível de ser negada. Inicialmente
foi visada a preservação de grandes áreas verdes, porém cercar essas áreas
naturais, não impediu que a crise ambiental ameaçasse os ambientes e seus sis-
temas de sustentação. Os avanços científicos e tecnológicos, contribuíram para
intensas modificações sociais e ambientais, eliminando ou reduzindo deter-
minados problemas ambientais e de saúde. Igualmente contribuíram para o
surgimento e aumento de novos problemas de origem tecnológica, envolvendo
agentes radioativos, químicos e biológicos (OLIVEIRA; PALÁCIOS, 2009).
A questão se tornou internacional a partir da conferência das Nações Unidas
sobre o meio ambiente humano ocorrida em Estocolmo, em 1974 (CASSOL;
QUINTANA, 2012), entendendo que a urgência na minimização dos conflitos
advêm das crises severas, o mundo procurou uma mobilização internacional
marcada por três importantes conferências: na Suécia em 1972, no Brasil
em 1992 e na África do sul em 2002, resultando em inúmeros documentos, tra-
tados, normativas pactuadas pelos países signatários, concomitantemente, flo-
rescendo em movimentos sociais, organizações não governamentais e partidos
22

verdes (BRAMA; GRISÓLIA, 2012). Em 1997 o Relatório Brundtland mar-


cou o comprometimento com a preservação ambiental mesmo promovendo
o desenvolvimento econômico e social, visando atender as necessidades do
presente, sem comprometer as possibilidades das gerações futuras. Deve-se
considerar por “meio ambiente” o local onde estamos inseridos seja ele natural,
as cidades, nosso bairro, nossa casa, nosso corpo, ou seja, todas as influên-
cias externas que determinam a reação do nosso corpo biológico (BRAMA;
GRISÓLIA, 2012). A questão mais paradoxal é que embora o desenvolvi-
mento tecnológico demande uma quantidade enorme de energia para man-
ter o metabolismo urbano, a um custo elevadíssimo na geração de resíduos
decorrentes desse metabolismo, a mesma beneficia a minoria da população,
tornando todos os demais, não só excluídos da possibilidade de qualidade de
vida promovida pelo desenvolvimento tecnológico, mas também vulneráveis
as consequências decorrentes do ambiente degradado (SOARES, 2011; CAS-
SOL; QUINTANA, 2012).
Para Cassol e Quintana (2012), a Bioética ambiental se fortaleceu com
o intuito de promover reflexões e intervenções nas dimensões políticas e
socioeconômicas cuidando de temas como depredação da natureza e agressões
ao equilíbrio sistêmico das espécies. Logo, a sua subdivisão ecoética passou

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a focar na discussão moral sobre as consequências do desenvolvimento eco-
nômico, industrial, científico e tecnológico, bem como no consumo ético,
responsável e consciente (JUNGES, 2010). Segundo Soares (2011), não é
mais possível pensar a questão ecológica isolada, mas sim conjuntamente
com a ecologia social, uma vez que a crise ambiental é decorrente da inca-
pacidade de se perceber os fenômenos de maneira integrada. Para solucionar
esses problemas não se deve apenas procurar técnicas menos invasivas dos
equilíbrios homeostáticos, sendo indispensável uma mutação cultural que
supere a visão redutiva (JUNGES, 2010). Wasem e Gonçalves (2011), aler-
taram ainda para necessidade de um novo compromisso com uma natureza
concebida como um sujeito de direito e não como simples hospedeira das
ingerências e propriedades humanas. Porém, para tal é preciso mudar a visão
ética do antropocentrismo e da invulnerabilidade da natureza.
A Bioética ambiental deve se consolidar como uma especialidade da ética
aplicada decorrente da crise ética no cuidado e nas relações do homem com a
fruição dos recursos naturais. A fim de auxiliar na reflexão e no enfrentamento
da problemática ambiental baseado nos direitos humanos, desenvolvimento
sustentável, responsabilidade coletiva e princípio da precaução (FISCHER et
al., 2017). Contudo outros autores como Alicardi (2009) desaprovam o uso
da terminologia Bioética ambiental e sua subdivisão da Bioética. Pois, tanto a
terminologia quanto a origem da Bioética já suportam a inclusão do cuidado
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 23

com toda a vida. Mesmo quando se fala do processo saúde/doença a mesma


não deve se reduzir a questões biomédicas ou a uma medicina antropológica,
pois o ser humano possui uma dimensão cultural incluída em um contexto
natural, social e histórico que afetam sua qualidade de vida influenciada pelas
questões ambientais, econômicas e educação. A Bioética vai além da ecologia,
pois indaga a eticidade das relações entre as espécies e os seres humanos e
seu comportamento interno, suas relações com ecossistema, a determinação
do lugar do ser humano no cosmos e a condutiva que em consciência pode
assumir considerando sua liberdade e sua capacidade racional para se conduzir
em um meio de alto poder tecnológico (FISCHER et al., 2017).
A consolidação da terminologia “Bioética Ambiental” foi justificada por
Fischer et al. (2017) como forma de fortalecimento da área, tanto no contexto
científico quanto no político e social. O mundo contemporâneo reivindica pela
democracia participativa, a tolerância do etno-desenvolvimento e os saberes
tradicionais em intercambio comunitário. A Bioética vai além da ética ambien-
tal, pois além de visar a preservação e restauração do ambiente, ar limpo, água
potável, ausência de lixo, também afronta questões ecossocial e seu confronto
com a ética capitalista (FISCHER et al., 2017). Só através da reflexão de quem
é esse novo homem, que deve tomar posse de seu papel no mundo, que será
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possível mudar visões políticas, sociais e econômicas. Desta forma a Bioética


Ambiental, se propõe a balizar a mitigação de vulnerabilidades oriundas do
desenvolvimento tecnocientífico por meio da sua natureza dialogante, delibera-
tiva, normativa, educativa e acolhedora de conflitos éticos completos, plurais e
globais. A amplitude de abrangência de sua agenda, contempla principalmente
questões de saúde, uma vez que a integridade física, mental e espiritual de todo
ser vivo demanda de uma conexão multidimensional e atemporal.

A Face Ambiental da Saúde Global

Embora a saúde global seja uma terminologia de aplicação política que


concebe a doença destituída de barreiras geopolíticas (CUETO, 2015), na
proposta da sinergia com a Bioética Ambiental apresentamos um contexto
de conexões em três níveis de abrangência: a) corpo/mente/espírito/ b) indi-
vidual/social/ambiental; c) local/global. Ao conceber as multidimensões da
saúde, a mesma deixa de ser compreendida como simplesmente ausência de
doença, e passa a ser concebida na integralidade dos seus processos bioló-
gicos, psicológicos, sociais e ambientais que promovem e sustentam a vida.
24

Autoria: Marta Fischer.

Ao inserirmos na terminologia da saúde global a perspectiva ao nível


corpo/mente/espírito, concebemos a saúde como um equilíbrio entre o corpo
biológico, o psicológico e o espiritual. A conexão entre os aspectos emocionais
como condicionantes da integridade física e vice-versa, embora conhecido
desde a Era Clássica “mente sã, corpo são” se constitui de um tema altamente

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estudado na atualidade. A saúde mental, até pouco tempo atrás negligenciada
e estigmatizada, passa a configurar as pautas de atendimento primário a saúde
e se constituir de foco de interesse para a anamnese de todas as áreas da medi-
cina. Contudo, essa perspectiva encontra barreiras na medicina tradicional
ocidental que objetiva tratar os sintomas das doenças abrindo espaço para
novas intervenções como a medicina integrativa (OTANI; BARROS, 2011),
a nutrigenômica (FISCHER et al., 2020) e tratamentos alternativos não medi-
camentosos (PALODETO; FISCHER, 2018, 2019), que têm como foco de
interesse as medidas preventivas, e buscam seus balizamentos confluindo
estudos inovadores com os conhecimentos da medicina tradicional oriental.
Dentre as abordagens contemporâneas destaca-se o avanço das pesqui-
sas que têm demostrado a conexão entre o intestino e o cérebro. Os achados
têm atestado a influência da microbiota intestinal e o desenvolvimento de
psicopatias como esquizofrenia, depressão, transtorno do espectro autista e
depressão (ZORZO, 2017). A perspectiva que a flora intestinal é análoga a uma
floresta, com milhares de espécies e diferentes estratos e funções, materializa
os processos simbiônticos que sustentam as conexões vitais estabelecidas entre
os seres vivos. Ao considerarmos que a busca de nutrientes que sustentam a
vida implica na inserção de elementos externos no interior do ser vivo, e que
esse processo pode representar um risco, a integridade da flora simbiôntica,
representa um filtro de promove a saúde. O senso-comum já havia percebido
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 25

a conexão entre o estado emocional e o funcionamento intestinal, contudo a


visualização desse microuniverso dentro do nosso organismo, deve-se cons-
tituir de uma fonte de reflexão do nosso potencial de vulnerabilidade diante
de novas estruturas que estimulam alimentação rápida de ultraprocessados,
associados com elevados níveis de estresse, que podem em instancia micro
afetar os sistemas basilares de aquisição de nutrientes fundamentais para o
bom funcionamento do nosso organismo.
Paralelamente inúmeras pesquisas têm atestado a influência da espiri-
tualidade na atividade imunológica, saúde mental, neoplasias, doenças car-
diovasculares e na mortalidade (GUIMARÃES; AVEZUM, 2007). Essas
perspectivas acolhem condutas de autocuidado, autoestima, autoconhecimento
e autocompaixão como coadjuvantes importantes na prevenção e tratamento
de doenças e visam resgatar a integralidade do organismo vivo. Deve-se
considerar, ainda, que a fundamentação da física quântica tem suplementado
a newtoniana na interpretação dos fenômenos biológicos e fisioquímicos,
mostrando que nos constituímos mais de energia do que de matéria confron-
tando com nossa concepção tradicional das relações com outros elementos da
natureza. Considerando a espiritualidade como um estado de presença, em que
o corpo, mente e espírito de conectam em um mesmo momento no tempo e no
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espaço, percebemos a sua carência no mundo. A velocidade e a complexidade


da vida têm aumentado drasticamente, incorrendo no exercício de multitarefas,
ansiedade e pensamento acelerado, que roubam das pessoas a possibilidade de
vivenciar as situações na sua integralidade, mesmo aquelas que diretamente
estão relacionadas com a sua integridade física, mental e social.

Autoria: Marta Fischer.

O segundo nível da saúde global considera a interação indivíduo/socie-


dade/ambiente como um condicionante da saúde. Essa perspectiva é complexa
26

e possui inúmeras frentes de atuação. A integralidade física/mental/espiritual


do indivíduo está diretamente conectada com as relações interpessoais, sejam
elas afetivas ou profissionais. As conexões estabelecidas irão angariar ao
indivíduo feedbacks positivos ou negativos e, automaticamente, irão interferir
no seu nível de estresse, estado emocional e saúde física. Consequentemente,
se o primeiro nível está integro obviamente o sujeito terá mais potencialida-
des de superar uma situação social ruim. Contudo, a submissão constante a
relacionamentos tóxicos poderá comprometer a integridade da sua saúde.
Considerando que a estrutura social e os relacionamentos têm sido alterados
rapidamente e estrondosamente nas últimas décadas, o ser humano não tem
tido tempo de se adaptar, consequentemente, sentimentos de não pertenci-
mento, solidão e incompreensão tem contribuído para estatísticas alarmantes
de doenças autoimunes, depressão e suicídio (SILVEIRA, 2019).
O segundo aspecto é obviamente a qualidade do ambiente onde o indi-
víduo se insere. Edward Wilson na década de 1970 desenvolveu e validou a
teoria da biofilia, no qual os seres humanos são dependentes do contato com
elementos da natureza para o desenvolvimento da sua saúde biológica, psico-
lógica e social. Os seres humanos se constituem componentes da natureza, no
qual a maior parte da sua existência evolutiva esteve envolvido diretamente.

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Apenas nos últimos 3 mil anos, com a criação das cidades, passou a viver em
ambientes alteados e cada vez mais artificiais. É justamente essa interferência
na natureza com a destruição de paisagens, poluição e ultra processamento
de alimentos que tem inserido no corpo biológico elementos nocivos (FIS-
CHER et al., 2020). Os conflitos decorrentes do desenvolvimento tecnológico
e seus impactos na saúde em resultantes de novas estruturas sociais e devido
aos impactos da exploração dos recursos naturais que igualmente afetam os
animais e o ambiente. Consequentemente atestando a importância de espaços
verdes urbanos para o resgate dessa conexão (FISCHER et al., 2018).

Autoria: Marta Fischer.


BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 27

O terceiro nível proposto de aplicação da saúde global nas escalas local/


global pode ser abordo de duas perspectivas. A primeira correspondente a
abordagem de Fortes (2014), cujo intuito de neutralidade demanda a trans-
posição entre ricos e pobres, desenvolvidos e em desenvolvimento e as bar-
reiras geopolíticas, se fundamentando na supra territorialidade. Contudo, não
é possível pensar em conexões ao nível global sem a mesma ocorrer ao nível
local, aplicando os princípios éticos do respeito à diversidade humana nas
perspectivas sociais e culturais, de justiça social, de equidade e de autonomia
das pessoas e das nações. O autor reiterou a necessidade de reconhecimento de
interesses dissonantes envolvendo a economia, a segurança, a política externa,
valores e motivações da pluralidade de atores sociais, públicos e privados,
que protagonizam papeis de agentes ou pacientes morais no contexto da saúde
global. Assim, deve-se combater as desigualdades a nível planetário e aplicar
uma ética em saúde global em uma perspectiva de coletividade.
A segunda perspectiva – insere a compressão de uma conexão planetá-
ria com condutas individuais e local – se constitui da prerrogativa de pensar
localmente e agir globalmente. Pequenas mudanças para atender necessida-
des específicas podem impactar o mundo como um todo, tanto no quesito
ambiental – com as sérias consequências decorrentes do aquecimento global
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– quanto no quesito social – uma vez que o mundo está altamente vulnerável
as intolerâncias, polarização e fake news.

A sinergia entre a Bioética ambiental e saúde global


como ferramenta de sobrevivência

Bioética Ambiental Saúde Global


Corpo x Mente x Espírito Local x Global
Indíviduo x Sociedade x Ambiente

Bioética MicroBioética

Bioética MesoBioética
Global Ecologia ambiental
Ecologia social
Ecologia mental
Bioética Ecologia integral
Profunda MacroBioética

A sinergia entre a Bioética ambiental e a saúde global presume um acolhi-


mento da diversidade de processos promotores da vida, transpondo a mera luta
28

pela sobrevivência, almejando a vida com qualidade. O acolhimento à saúde


global presume, assim, incorporar em suas agendas um olhar técnico, ético
e emocional para cada indivíduo e suas peculiaridades e integralidade física,
mental e espiritual. Considera entender e mediar sua relação com o ambiente
social e com a natureza, de forma que seja garantido um substrato onde sua
existência possa se desenrolar. Consequentemente, entende a intermediação
por meio da educação para instrumentalização do cidadão e um protagonismo
crítico e deliberativo na quebra de barreiras geográficas e políticas que atrasam
a mitigação de problemas de amplitude global.
O cidadão para ser protagonista na autogestão da sua saúde deve ter
acesso a formação desde a infância quanto a sua responsabilidade na pre-
servação dos processos condicionantes da sua integridade quanto ser vivo
integrante de um complexo sistema de conexões. Assim, o autocuidado trans-
passa a perspectiva pessoal vinculada ao autoconhecimento, autocompaixão,
autorrespeito e autoestima para compreensão que será impossível alcançar
essas expectativas em um ambiente natural, social e espiritual insatisfatório.
Assim, o cuidado com o outro se constitui de um condicionante fundamental
da integridade física e mental. Embora, o ser humano seja um ser social, a
comunicação demanda um processo de aprendizado, de troca e de crescimento.

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Não oferecer essa oportunidade aos sujeitos que compõem nossa sociedade
os coloca em situação de vulnerabilidade, ou seja, incapacidade e impotência
diante da perspectiva de superação de seus desafios.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 29

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BIOÉTICA Y ECOLOGÍA INTEGRAL
Javier de la Torre Díaz3

Este artículo tiene un objetivo muy limitado, pero muy importante a


nuestro juicio. La Bioética tiene ya una experiencia de cincuenta años de tra-
bajo interdisciplinar en el que ha sabido integrar un diálogo en profundidad
con otras ciencias. No hay en la actualidad ningún ámbito académico y del
saber con una amplitud semejante en sus diálogos. Esta amplitud y vocación
de diálogo hace que desde siempre haya tenido un espacio la ecología en sus
reflexiones. Esto no implica que no haya todavía mucho recorrido por hacer
en el diálogo interdisciplinar y en la sabiduría integral que supone y esto no
implica que en algunos bioeticistas esté ausente la integración de la ecología.
Esta sabiduría y experiencia de la Bioética la hace interlocutora esencial
para que la ecología sea verdaderamente integral. Creemos que su visión
amplia no puede dejar de considerarse seriamente por los planteamientos de
una ecología actual. En este sentido pensamos y defendemos que la Bioética
tiene mucho que enseñar a la ecología en su aprendizaje de lo integral. En
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temas clásicos de la Bioética como el aborto, la eutanasia, la reproducción


médicamente asistida o la manipulación genética se han integrado en sus
mejores tratados las aportaciones de la filosofía, la ética, la historia, la psico-
logía, la sociología, la biología, el derecho, la teología, etc.
De modo sintético señalaremos esa visión integral en los orígenes y
pioneros de la Bioética que, como veremos, no se da en todos los autores en
el mismo nivel e intensidad. Luego recogeremos de nuestra tradición ibe-
roamericana cinco autores para descubrir esa visión integradora y que son un
verdadero ejemplo y aliento.

Precursores de la Bioética y ecología integral

Escogemos brevemente cuatro autores en donde la reflexión bioética


se integra claramente con la ecología. No entramos en sus reflexiones sino
simplemente apuntamos lo que suponen sus aportaciones de ampliación de
perspectiva de la reflexión bioética y de integración de diversas disciplinas.
Aldo Leopold, en su libro Ética de la tierra de 1948 ya señala la
necesidad de una evolución de una ética individual y social a integrar la
tierra más allá de una propiedad. La Tierra es una comunidad biótica. Para

3 Director del Departamento de Teología Moral y Praxis de la Vida Cristiana. Presidente del Comité de Ética
da Universidad Comillas (Madrid). E-mail: jtorre@comillas.edu
34

Leopold, los sentimientos morales humanos deben por empatía moral incluir
comunidad ecológica4.
Albert Schweitzer en sus reflexiones bioética apunta que la vida tiene
un dinamismo sagrado que palpita en toda la naturaleza. Todo lo que vive es
sagrado y merece respeto moral: “yo soy vida que quiere vivir en medio de
vida que quiere vivir”5.
Hans Jonas, en su libro Principio responsabilidad (1979) señala la vincu-
lación entre cuidado y continuidad-supervivencia, entre imaginación, bondad y
responsabilidad desde su visión del ser humano como homo pictor que es capaz
de integrar en su acción moral la preocupación por las generaciones futuras6.
Peter Singer, en diversas obras como Expanding Circle (1981) y Animal
liberation (1975) amplia la consideración moral de los seres vivientes desde
la capacidad de sentir placer/dolor7.
Estos autores, de modo diverso, integran claramente el ámbito de la
bioético a lo animal, a las generaciones futuras, a todo viviente y a la Tierra
como comunidad bioética. Ellos también han contribuido a que una parte
importante de la Bioética integre la reflexión ecológica.

Tres grandes figuras de los orígenes de la Bioética, tres

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diversas tradiciones

La Bioética micro (clínica), meso (institucional) y macro (político-ecoló-


gica) tiene sus orígenes en tres grandes figuras: Hellegers, Callahan y Potter.
Helleger, desde el Kennedy Institute de la Universidad de Georgetown, planteó (y
plantea todavía) la importancia de los diálogos con la política y el derecho desde
Washington (también con las diversas tradiciones religiosas). Callahan, desde
el Hasting Center, planteó desde el comienzo diálogos a fondo con la ciencia,
la industria y la filosofía. Finalmente, Potter desde la Universidad de Wisconsin
desarrolla un diálogo con la biología, la ecología, la medicina y la ética8.
Potter, sin ninguna duda, es el que tiene una visión más amplia e integra-
dora de la ecología. Para Potter, la Humanidad tiene una necesidad urgente
de sabiduría que provea el conocimiento de cómo usar correctamente el

4 Aldo Leopold, Una ética de la tierra, Catarata, Madrid, 2ªed. 2005 (antología de textos del autor preparada
Jorge Riechmann); id., Un año en Sand County, Errata Naturae, 2019.
5 Albert Schweitzer, The reverence for life, Open Road Media, 2014, 124 pp.
6 Hans Jonas, El principio de responsabilidad, Herder, Barcelona 1995. Sobre su planteamiento Bioética es
importante consultar: Francisco Quesada Rodríguez, La Bioética de la responsabilidad según Hans Jonas,
Universidad Pontificia Comillas, Madrid 2018.
7 Peter Singer, Animal Liberation. A New Ethics for our Treatment of Animals, New York Review/Random
House, New York 1975.
8 Para los orígenes de la Bioética siempre es imprescindible consultar la obra: Albert Jonsen, A birth of
Bioethics, Oxfod University Press, 2003.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 35

conocimiento para la supervivencia del hombre y para el mejoramiento de


la calidad de vida. La sabiduría de la Bioética se convierte en una ciencia
supervivencia, de la continuidad de la vida, del cuidado de la vida. Esto supone
comprender la Bioética desde tres planos: puente, visión global y profundidad.
La Bioética es comprendida como un puente entre ciencia y humanidades-va-
lores. La Bioética es comprendida como Bioética global en la medida que une
salud humana y medioambiental. Y finalmente es comprendida como Bioética
profunda, holística, sabiduría, actitud ante la vida9.

La marginalidad de la ecología en la Bioética italiana,


francesa y portuguesa

Es fácil constatar la poca relevancia de la ecología en la mayoría de


los bioeticistas italianos: L. Ciccone, U. Scarpelli, S. Privitera, M. Mori, E.
Sgreccia, S. Leone. Sólo en algunos se da una reflexión más detenida sobre
la experimentación animal y vegetal. La excepción la constituye G. Piana con
su libro Ecología e ética (1992)10.
En Francia predomina la Bioética comprendida como ética médica. En
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este país tiene mucho peso la ética médica y una tradición que ha hecho que
la Bioética esté muy vinculada a los profesionales de la salud, a ser una ética
aplicada en un contexto sanitario.
En Portugal las grandes figuras de los inicios de la Bioética no se han
ocupado a fondo de la ecología. D. Serrâo, W. Osswald, L. Archer, R. Cabral,
J. H. Silveira de Brito, R. Nunes no se encuentra una reflexión detenida
desde la Bioética.
En Alemania hay una mayor preocupación por la ecología desde la Bioé-
tica y desde la filosofía. No podemos dejar de olvidar la aportación de J.
Habermas, P. Sloterdijk y otros muchos. No entraremos en su análisis, sólo
nos gustaría destacar por su impacto internacional la obra de Hans Küng que
desde su planteamiento de una ética mundial desde las religiones siempre
integra la perspectiva ecológica y el diálogo con las diversas ciencias. Aunque
no es bioeticista, el teólogo suizo afincado en Tubinga ha influido en muchos
planteamientos de diálogo intercultural en la Bioética11.

9 Van Reenselaer Potter, Bioethics. A Bridge to the Future, Prentice Hall, New Jersey 1971; id, Global Bioethics:
Bulding on the Leopold Legacy, Michigan State University Press, Michigan 1988. Una excelente exposición
de su pensamiento es la obra: Leo Pessini, Anor Sganzerla, Diego Carlos Zanella (organizadores), Van
Rensselaer Potter. Um bioeticista original, Loyola, Sâo Paulo 2018.
10 G. Piana, Ecología e ética, Cooperativa La Macina, Urbino 1992.
11 Hans Küng, Proyecto de una ética mundial, Trotta, Madrid 1991. Un comentario a su ética mundial puede
verse en: J. de la Torre, Derribar fronteras. Ética mundial y diálogo interreligioso, DDB-Universidad P. Comillas,
Bilbao-Madrid, 2004.
36

Tres grandes figuras de Bioética española

En España los orígenes de la Bioética están unidos a tres grandes figu-


ras: F. Abel, D. Gracia y J. Gafo. F. Abel que creó en 1976 el primer centro
de Bioética de Europa cultivó predominantemente una Bioética vinculada
a lo clínico. No hay en sus publicaciones casi referencias a la perspectiva
ecológica. Sólo aparecen algunas notas dentro de algunas reflexiones sobre
desarrollo y demografía. D. Gracia, desde su cátedra de Historia de la Medi-
cina de la Facultad de Medicina de la Universidad Complutense de Madrid
tampoco tiene una reflexión a fondo sobre la ecología. Tiene dentro de un
libro coordinado por Javier Gafo una reflexión histórica y algunas reflexiones
sobre la ecología y la justicia. No es un tema que aparezca en la mayoría de
sus publicaciones. El único de los tres que tiene una reflexión sistemática y
detenida sobre el tema e integrada en su perspectiva Bioética es el jesuita
biólogo Javier Gafo, cuya obra analizaremos a continuación12.
Más allá de estos tres grandes autores, en España me gustaría destacar
a dos autores que no provienen de la Bioética pero que tienen una gran capa-
cidad de integrar el diálogo interdisciplinar en su pensamiento moral y una
sensibilidad para la ecología bastante notable. El primero es el Catedrático

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de la Facultad de Filosofía de Salamanca, José María Gómez-Heras, que ha
tratado la ecología en varias obras, destacando entre ellas Bioética y ecolo-
gía13. El otro nombre que hay subrayar es el de la Catedrática de Filosofía de
la Universidad de Valencia, Adela Cortina que desde la ética del consumo,
la ética de la empresa y la ética de la ciudadanía siempre ha mostrado una
profunda preocupación por la ecología14.

Javier Gafo (1936-2001) y la ecología

Javier Gafo es, sin ninguna duda, el bioeticista que más pronto integró
la ecología en la Bioética. Biólogo y teólogo y con estudios de filosofía y
química, tiene una visión muy amplia siempre de la Bioética en la que desde
muy pronto introduce la ecología. Esta perspectiva se puede observar en todas
sus obras, pero especialmente en las siguientes:

J. Gafo (ed.), Ética y ecología, Universidad P. Comillas, Madrid 1991.

12 Javier de la Torre, Bioética. Vulnerabilidad y responsabilidad en el inicio de la vida, Dykinson, Madrid


2016, 67-78.
13 José María Gómez-Heras, Bioética y ecología, Síntesis, Madrid 2012.
14 Adela Cortina, Por una ética del consumo, Taurus, Barcelona 2002; id., Ética de la empresa, Tecnos,
Madrid 1994; id., Las fronteras de la persona. El valor de los animales, la dignidad de los humanos,
Taurus, Barcelona 2009.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 37

J. Gafo (Dir.), Diez palabras clave en Ecología, Estella, Navarra 1999.

J. Gafo, Bioética teológica, U.P. Comillas y DDB, Madrid y Bilbao, 2003.


Dedica su último capítulo a la ecología.

J. Gafo, Diez palabras clave sobre Bioética (Verbo Divino, Estella 1994).
Dedica su último capítulo a la ecología.

Brevemente mostraremos el esquema de su planteamiento sobre la ecolo-


gía desde la Bioética para comprender la amplitud de su mirada y la importan-
cia de un diálogo interdisciplinar. Lo hacemos sintéticamente en diez puntos:

1. La ecología es un tema de primer orden. Siempre plantea la grave-


dad de la crisis ecológica y enumera los principales problemas de
la ecología. Perspectiva socio-política global.
2. Realiza una breve historia de la ecología donde siempre aparecen
ciertos hitos esenciales: Haeckel, Los límites del crecimiento, las
Conferencias de Estocolmo, la Cumbre de al Tierra, la impor-
tancia de ciertas ONGs en estos cambios y en esta sensibilidad.
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Perspectiva histórica.
3. Principales respuestas “filosóficas” ante crisis ambiental: natura-
lista (lo natural es bueno, ecología ingenua, romántica), emotivista
(lo bueno es lo agradable, sentimientos de placer y dolor), utili-
tarista (Bentham), etc. Como bioeticista siempre tiene en cuenta
la filosofía moral.
4. Analiza las causas “éticas” de la crisis ecológica: la ciencia moderna
de Bacon (saber es poder), Descartes (animales son máquinas), la
industrialización, desencantamiento del mundo (Weber), etc. Pers-
pectiva histórico-cultural amplia.
5. Perspectiva existencial. Con Moltmann vincula crisis ecológica y
“crisis de sentido” (muerte bosques conlleva difusión neurosis, con-
taminación sentimiento nihilista, etc.). Por eso es necesario cambiar
las actitudes vitales y la forma de vivir.
6. Importancia de los “derechos humanos”. Aborda desde H. Jonas los
nuevos imperativos: actuar de forma compatible con la vida humana
auténtica sobre la tierra y las futuras generaciones. También tiene
en cuenta a Ronald Green: “Ponte a ti mismo en el lugar del otro,
de las futuras generaciones”.
7. Perspectiva religiosa. Analiza la “responsabilidad del cristianismo”
en la crisis ecológica por parte de algunos autores (White, Amery,
Meadows, Drewerman). Sitúa la cuestión bastante equilibradamente.
38

Señala que los relatos del Génesis tienen más de 3000 años (premo-
dernos). Estudia como las otras religiones (primitivas, hinduismo,
budismo, islam) valoran los seres vivos.
8. Cristianismo. Valor de la tradición de la ley natural y de ciertas
místicas (tradición monástica, benedictinos, cistercienses, Francisco
de Asís, Juan de la Cruz e Ignacio de Loyola).
9. Valora la perspectiva comunitaria del cristianismo y con Moltmann
recuerda que el Dios trinitario no es un solitario y dominador sino
relación, reciprocidad y comunidad.
10. La fe cristiana considera naturaleza creada como don, algo bueno,
regalo. La tierra desde la parábola del juicio final (Mt 25) puede
ser interpretada: lo que hicisteis a estos hermanos humildes y vul-
nerables a mí me lo hicisteis. Subraya como teólogo la clave esca-
tológica: el universo espera ser liberado.

Javier Gafo reconoce con la ecología los rasgos de un nuevo paradigma:


abordaje global-holístico, interconexión entre procesos naturales, paso de lo
antropocéntrico a lo biocéntrico (hombre unido a naturaleza), evolucionismo,
pero con conciencia que se puede configurar activamente (somos adminis-

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tradores de la evolución), ser humano como ser espiritual que busca sentido
(cosmos y naturaleza están penetrados de espíritu)15.

Leo Pessini y Christian de Barchifontaine

Su obra fundamental a nuestro juicio es Problemas actuais de Bioética16.


Sin embargo, estos dos autores, camilos brasileños, tienen muchas obras juntos
sobre fundamentos Bioética, Bioética-cuidado-humanización, Bioética latinoa-
mericana, globalización. Sus obras han sido y son un referente en la Bioética
brasileña. Podemos resumir esquemáticamente el planteamiento bioético de
la ecología en los siguientes puntos:

1. Es una Bioética en la línea clara de Potter. La Bioética global es algo


más que una rama de una ética aplicada (38). En sus obras aparece
como la Bioética es una Bioética puente, profunda, global, humilde,
probabilista, abierta, interdisciplinar e intercultural.
2. Estos autores defienden con Potter una perspectiva macro de la
Bioética. Una macroética de la salud pública debe ser propuesta

15 Para conocer la obra de Javier Gafo se recomienda el libro de José Francisco Tomás, Javier Gafo: Bioética,
teología moral y diálogo, Universidad P. Comillas, Madrid 2014.
16 Leo Pessini y Christian de P. de Barchifontaine, Problemas actuais de Bioética, 10ª ed., Sâo Camilo y Loyola,
Sâo Paulo 2012.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 39

como alternativa a la tradición angloamericana de microética clínica.


Recuerdan ambos autores a Mainetti que dice que la alta tecnología y
el ethos individualista deben ser complementados en América Latina
por un bios humanista y ethos comunitario (46). Es fundamenta
pasar de lo micro a lo macro integrando los temas de la justicia, la
pandemia del sida, los recursos limitados, la solidaridad y la equidad.
3. Bioética global. Siguiendo a Leonardo Boff, hablan de ecología
ambiental, social, mental (profunda), integral (complejidad, autoor-
ganización, religación), liberadora. Siguiendo a Potter subrayan
también la preocupación por el futuro.
4. Bioética y religiones. En sus escritos hay diversas referencias al par-
lamento mundial de las religiones y los principios de la Bioética
global de Hans Küng donde una Bioética mundial pasa por el diálogo
de las religiones y la integración de la perspectiva ecológica desde
la sabiduría religiosa (cuidar el mundo creado, la casa común, etc.).
5. La Bioética es como una instancia crítica de la ciencia y de la medi-
cina en la línea de I. Illich. La dimensión política de la Bioética les
hace preocuparse por la distribución de la salud en el interior de
las poblaciones. Esta preocupación por un nuevo imperialismo y
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control desde la ciencia y la tecnología de la humanidad no se puede


dejar a un lado y no hay que ser ingenuo cuando uno ve sus con-
secuencias en algunos países en desarrollo. Los pobres son mucho
menos beneficiados de los desarrollos: explotación de indígenas, la
comercialización de órganos, una mentalidad de bienestar y medi-
cina preventiva que sólo ven de lejos en los medios.
6. También analizan la importancia de unos debates libres en ética,
abiertos y racionales. Es necesario integrar los puntos de vista mino-
ritarios, estar alerta ante los lobbys, contra dogmatismo, la exclusión
de la diversidad. La tentación imperialista tiende a abarcarlo todo,
ordenar la diversidad, no atiende a divergencias y minorías.
7. Siempre muestran su cercanía a los foros internacionales de debate
y encuentro: asociaciones internacionales de Bioética, Naciones
Unidas, fuentes normativas, códigos de ética, la Carta de la Tierra, la
Agenda 2030 y congresos Bioética como el internacional iberoame-
ricano de Bioética en Curitiba (en el que participaron varias veces).
8. Importancia de la multidisciplinariedad y sobre todo los métodos
cualitativos, las percepciones de los pacientes, el carácter de los
agentes morales-pobres, la comprensión de la diversidad de las
culturas complejas. No resolver demasiado prematuramente. Es
necesario ir, sobre todo, a fondo.
40

Por lo tanto, en ambos autores descubrimos una Bioética abierta a la


ecología que tiene en cuenta lo cultural, lo político, lo social, la dimensión
institucional, las religiones, la ética, el derecho, la psicología (lo mental), la
medicina, la biología, etc.

Gilberto Cely y la Bioética global

Este jesuita colombiano experto en Bioética y con diferentes responsa-


bilidades en la Universidad Javeriana tiene diversos libros en que aborda el
tema de la Bioética y la ecología. Probablemente el libro donde se analiza la
cuestión con más profundidad es su libro Bioética global17. El libro quería
llamarse Bioética ambiental. Al escribirlo, confiesa el autor, fue tomando
forma de Macro-Bioética que asume lo ambiental como marco para discernir
éticamente la totalidad en un contexto de crisis ecológica. Su planteamiento
por lo tanto va en la línea del giro de Potter y Leopold. Pero la Bioética Global
de Cely es más que macro-bioética pues ilumina sentido existencial de las
problemáticas teóricas y los casos de la micro y mesobioética. La Bioética
Global muestra así un carácter sapiencial.
Esta dimensión sapiencial tiene un elemento claramente interdisciplinar.

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La Bioética Global es una interdisciplina para aportar sabiduría a sociedad
de conocimiento, propuestas articuladoras de integración de naturaleza y
cultura. Por otro lado, es una sabiduría de largo alcance, una sabiduría de
cómo usar el conocimiento para el bien social. Por ello se sitúa más allá de
una ética aplicada. Es un saber hacer vincularlo con el saber estar, saber ser,
saber convivir, saberse.
La dimensión integral-sapiencial de Cely se puede descubrir en
estos elementos.

1. Dimensión “ética”. Pero no vale cualquier ética. La racionalidad


ambiental se tiene que forjar en una ética de la otredad, en un diá-
logo de saberes, en una política de la diferencia.
2. Dimensión histórica. La crisis cultural actual tiene una historia que
tiene su origen en ciertos errores de la modernidad. También señala
como en los años 60-70 emerge un nuevo orden (que es el momento
donde aparece la Bioética).
3. Dimensión estética. La naturaleza es fuente de inspiración moral y
estética por su belleza como bien reflejan las artes, la literatura, las

17 Gilberto Cely, Bioética Global, Pontificia Universidad Javeriana, Bogotá 2007. Otras obras del autor sobre este
tema son: Temas de Bioética ambiental; Ecología humana: una propuesta Bioética; Ethos vital y dignidad humana.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 41

religiones. Se hace necesario integrar y recuperar a los pensadores


que han reflexionado sobre la belleza de la naturaleza.
4. Dimensión religiosa. El ser humano es un ser religado. Las perso-
nas tenemos que mejorar nuestra capacidad emocional, de crear
vínculos, nexos, conexiones. El ser humano es un animal ligado a
todas las realidades.
5. Dimensión cultural-educativa. La Bioética global supone dar
importancia a la casa, los modos de vida, la cultura, la morada, la
guarda, la familia-grupo, la salud amplia (OMS). Esta dimensión
tiene una profunda vinculación con la necesidad de un determi-
nado tipo de educación.
6. Dimensión sistémica de complejidad. La complejidad del ethos vital,
las teorías del caos, la realidad como tejido de modo inextricable son
algunas de las expresiones para describir esta realidad de fondo y
sistémica. Vivimos en una complejidad creciente. Somos como cestas
o canastros, resultado de entrelazar ramas flexibles. La complejidad
está vinculada a un principio sistémico y dialógico. Pero hay que tener
en cuenta que existen distintas fundamentaciones de la complejidad.
7. Dimensión científica. Pero la ciencia hoy tiene conciencia de inaca-
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bada, multicausal, de caos y azar, de utilidad. La ciencia sin con-


ciencia es mutiladora. Ya no tiene el carácter de verdad absoluta.
8. Dimensión sociológica. Vivimos en la Sociedad del conocimiento,
del riesgo y de la incertidumbre moral. En esta sociedad son nuclea-
res los principios de precaución, previsión y responsabilidad.
9. Nuevo paradigma. Nueva ética y estética más cualitativa, sapiencial,
global. Esto supone una transición:
 De una actitud antagónica con resto seres a una actitud de
fraternidad, imbricación.
 De la posesión exclusiva de la capacidad cognitiva a compartir
gradientes de esta capacidad con otros organismos vivos
 De distinguir sujeto-objeto a gradientes de interioridad subje-
tiva en no humanos
 De apropiación exclusiva de lo espiritual a reconocer emer-
gencia en todo.
 De una relación mercantilista a un manantial de riquezas espi-
rituales y estéticas
42

Roque Junges

Este jesuita brasileño posee una obra amplia: Ecología ambiental18, Bioé-
tica sanitarista19 y Bioética20. En estas obras aborda las tres dimensiones de la
Bioética. La clave no es solucionar sólo problemas sino descubrir que vivimos
insertos en un nuevo paradigma de civilización. En su obra podemos descu-
brir claramente una Bioética integradora y amplia de diversas perspectivas:

1. Ciencias. Describe diversas tendencias antropocentrismo mitigado


(conservacionistas y preservacionistas) y biocéntricas, las diversas
visiones de la biosfera.
2. Filosofía-Historia. El paradigma ecológico supone una mutación
cultural hacia una nueva visión sintética, interrelacional, armónica,
dialógica, holística.
3. Antropología. Este nuevo paradigma se asienta en unos presupuestos
antropológicos que superan la visión moderna del sujeto separado,
autónomo, atomizado para centrarse en valor comunidad biótica
4. Una antropología de la vulnerabilidad y del cuidado-dependen-
cia frente a la fuerza y lucha-competencia que tiene en cuenta la

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dimensión corporal.
5. Ética. Es fundamental superar una ética deontológica de derechos
y límites y una ética utilitarista de cálculo de beneficios y daños
para ahondar en una ética de un cambio humano más profundo, de
actitudes y virtudes, más comunitaria que individualista.
6. Integradora de lo biocéntrico y antropocéntrico. Como ética es formal-
mente siempre antropocéntrica pero materialmente también se refiere a
la vida y es biocéntrica21. Es necesario que tengan que caminar juntas.
7. Perspectiva teológica. Las religiones pueden aportar sabiduría,
visión, símbolos, narraciones como, por ejemplo, la primacía de la
acción creadora y del descanso sabático
8. Perspectiva pedagógica. Necesidad de una alfabetización ecológica.

En el ámbito brasileño se hace necesario citar la obra de Leonardo Boff. Este autor
integra espiritualidad-franciscanismo con liberación-justicia, paz y democra-
cia, la comunidad y las virtudes, los símbolos-narraciones locales-tradicionales
con una ética universal, el diálogo y los encuentros con el cuidado del otro,

18 José Roque Junges, Ética ambiental, Unisinos, Sao Leopoldos 2004.


19 José Roque Jungues, Bioética Sanitarista. Desafíos éticos da saúde coletiva, Loyola, Sâo Paulo 2014.
20 José Roque Jungues, Bioética. Hermenêutica e casuística, Loyola, Sâo Paulo 2006.
21 Muy sugerente es su propuesta de integración en J. Roque Jungues, Ética ambiental, Unisinos, Sao Leopoldos
2004, 91-92.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 43

la ecología-cosmología-tierra con una cristología cósmica y mística trinitaria


(citar Derribar fronteras).

Papa Francisco y la ecología integral

Una razón del papa para elegir el nombre de Francisco es, como él mismo
afirmó, que el santo de Asís “enseña un profundo respeto por toda la creación”.
Un planteamiento claro desde los inicios de su pontificado y en su pro-
grama de pontificado se puede ver en Evangelium gaudium (EG). Allí plantea
dos cuestiones básicas: La relación entre fragilidad del débil y de la tierra. Es
necesario vincular degradación social y ambiental. El papa entra en cuestión
ecológica desde lo social. “No puede haber tierra, no puede haber techo, no
puede haber trabajo si no tenemos paz y si destruimos el planeta”. En Laudato
Si´ (LS) profundiza este aspecto de manera notable. Hay una íntima relación
entre los pobres y la fragilidad planeta (LS 16). Por eso existe una única crisis
socio-ambiental. El segundo elemento esencial es la validez de las religiones
en el debate secular sobre la ecología. Las religiones aportan motivaciones
espirituales o móviles interiores que dan sentido a la acción (LS 261), una
mirada contemplativa de la realidad que descubre relaciones entre problemá-
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ticas diversas y desvela posibilidades ocultas (LS 71). Las religiones com-
plementan la visión científica y vehiculan hábitos ascéticos. ¿Qué elementos
integra el papa en su visión de la ecología? LS quiere plantear un diálogo con
todos acerca de nuestra casa común (LS 3), pero reconoce imposible dialogar
en profundidad con todos. ¿Con quiénes claramente dialoga?22

1. Ciencias. Las ciencias tienen una precedencia para tener autoridad.


Aportan los datos previos a toda reflexión. El papa usa síntesis
académicas que han alcanzado gran consenso. Usa herramientas
de análisis de la ecología como el concepto de deuda ecológica, de
huella ecológica. Sin embargo, las ciencias no explican completa-
mente la vida, el entramado de todas las criaturas y el conjunto de
toda la realidad (LS 199). Sería sobrepasar sus límites. Francisco
es consciente del peligro de dogmatismo tecno-científico. La frag-
mentación disciplinar y la deriva tecnocrática no ofrecen una visión
holística o integral de la realidad. Por eso se hace necesario abrirse
a otro tipo de racionalidades éticas, estéticas y espirituales.
2. Historia y filosofía. Existen unas raíces históricas de la crisis ambien-
tal actual. Francisco afirma con claridad que el período postindustrial

22 Seguimos parcialmente el excelente trabajo de Jaime Tatay sj, Ecología integral. La recepción católica del
reto de la sostenibilidad, BAC, Madrid 2018.
44

es uno de los más irresponsables de la historia (LS 165). La con-


ciencia de avance de la ciencia no coincide con el avance de la
humanidad. Las raíces históricas de la crisis ecológica están en la
universalización del paradigma tecnocrático-instrumental que se
caracteriza por la sobrepoblación, el crecimiento, la ideología del
progreso. En sus reflexiones se descubre la influencia de Romano
Guardini, sobre todo, en sus afirmaciones del desfase del incremento
del poder tecnológico y una ética poco desarrollada y, por otro lado,
de un estilo de vida planificado que confunde fines y medios que
lleva a consumismo compulsivo. En la reflexión filosófica del papa
aparecen dos conceptos clave: poder y límite. Límites-limitar-ilimi-
tado aparecen 51 veces en LS. Se vincula a protección, expansión
sin límites, cultura de transgresión, a una realidad que marca límites
(LS 204). En su reflexión sobre el poder apunta lúcidamente como
sus intereses se enmascaran y ocultan (LS 105), a la necesidad de
limitar el poder, fomentar una actitud contemplativa, una mirada
integral de la realidad, a descubrir el valor comunidad.
3. Éticas ambientales. Para Francisco, los problemas ecológicos son
en último término problemas morales. La moral se sitúa en el cen-

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tro. La crisis medioambiental es fundamentalmente un problema
moral. Esto se debe sobre todo a la desmesura antropológica. En la
encíclica se habla de valor intrínseco, instrumental y sistémico. Un
paso importante claramente de desarrollo del magisterio católico es
la afirmación clara del valor propio de cada criatura (LS 16). Las
especies no son sólo recurso, tienen valor en sí mismas (LS 33).
Las criaturas reflejan un rayo de la sabiduría y bondad infinitas de
Dios (LS 69). Junto con ello, se afirma la dignidad especial del ser
humano (LS 43). Por eso LS integra en su ética dignidad humana,
solidaridad e interdependencia.
4. Acuerdos y convenios internacionales. LS cita la Carta de la Tierra
(CT). Hay cierta influencia de L. Boff. A la hora de un marco éti-
co-normativo, Francisco no opta por la propuesta de Küng sino por
una visión espiritual y educativa de LS 202-245. Busca más una
reverencia ante la vida, una “alegre celebración de la vida” (LS 207).
Ni CT ni LS ponen en centro debate filosófico en torno a ética uni-
versal y fundamentos sino facilitar diálogo intercultural y propuesta
de valores. Por este motivo son diversas e importantes las referen-
cias a los Derechos Humanos (DH) en diversos momentos: necesi-
dad de un desarrollo y promoción de los DH (LS 93), las personas
descartables privadas de Derechos Humanos (LS 158). Por otro lado,
para favorecer el diálogo, se desmarca de una fundamentación ética
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 45

universal fundamentada en visión renovada de ley natural (Comi-


sión Teológica Internacional, Benedicto XVI). De hecho Francisco
esquiva el término ley natural.
5. Diálogo interreligioso. Es un elemento estructural de la encíclica.
Esta perspectiva se funda en dos convicciones: conmensurabilidad
de los diferentes discursos religiosos, filosóficos y científicos y la
convicción de la operatividad y la específica contribución interre-
ligiosa. Francisco tiene una concepción relacional de la verdad. La
urgencia de grandes problemas, y la ecología es uno de ellos, lleva a
“ecumenismo existencial”. Lo interreligioso supone una contribución
“sapiencial” de las religiones. Ninguna rama del saber puede ser
dejada de lado (LS 63) y tampoco la sabiduría religiosa. Su sabiduría
es concebida como una inteligencia meta-cognitiva, un suelo común
que llevan a la convicción de un cuidado de la fragilidad, a una con-
versión ecológica, a buscar alternativas, a un compromiso ascético.
6. Tradiciones de espiritualidad. Más allá de las diversas tradicio-
nes religiosas, las tradiciones de espiritualidad también ayudan.
Francisco se acerca aquí a la Escritura como un conjunto de rela-
tos bíblicos llenos de sabiduría. En la biblia encontramos motivos
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proféticos, sapienciales, sacramentales, escatológicos y liberadores.


En la Tradición encontramos el mocanato con su énfasis en una
sana sobriedad, el valor trabajo dentro de un orden y el cuidado del
medioambiente. También recoge la tradición franciscana del Cántico
de las Criaturas que habla de reconciliación profunda, de restablecer
relación con dios, creación y hermanos. La tradición ignaciana está
presente por la referencia a Scannone (LS 149) y Teilhard (LS 83),
la centralidad discernimiento, los sentimientos, una visión del futuro
optimista, la importancia de examinar la conciencia, el uso ordenado
cosas, la indiferencia. Francisco habla del cuidado como nueva obra
de misericordia. También señala nuevas virtudes ecológicas como
la autolimitación, la ascética, la vulnerabilidad y la fragilidad. Para
el papa “todo está conectado” (LS 16,70, 91...). Esta experiencia
está apoyada en una experiencia espiritual, mística y ascética, que
se encuentra en san Buenaventura, san Benito, Teresa de Lisieux,
Juan de la Cruz, Charles de Foucauld, María, José, Francisco que
son auténticos modelos de religación o reconciliación, estilos de
vida virtuosos que perciben que todo está conectado. La vida de los
santos configura una convincente ética cristiana narrativa.
7. Experiencia y praxis comunidades locales e indígenas. Para Fran-
cisco, las comunidades indígenas son las primeras víctimas explo-
tación de recursos naturales, son las transmisoras de una sabiduría
46

ancestral en su relación sostenible con el medio natural, son autén-


ticas portadoras de una espiritualidad. Por eso las comunidades
indígenas son los principales interlocutores y no son una simple
minoría. Son los primeros en sufrir consecuencias degradación
ambiental y la exclusión. Son maestros en el uso responsable de
los recursos naturales. Y son, ante todo, testigos privilegiados para
descubrir alternativas, para un “ecologismo de los pobres”. El valor
de su acervo cultural y espiritual, de su experiencia acumulada hace
necesario defenderlas ante el peligro de desaparición de sus culturas
y su sabiduría en mundo cada vez más uniforme. Por otro lado, el
Papa también recoge e integra ciertos elementos de la teología libe-
ración: la crítica radical de las dinámicas económicas y culturales
del mundo globalizado; la necesidad de una revolución cultural
-conversión ecológica- para romper el paradigma tecnocrático y
la cultura consumista; y la necesidad de adoptar hermenéutica de
la sospecha que prevenga a ecología superficial. La teología de la
liberación con su énfasis en las comunidades locales y el pueblo,
en el diálogo y la acción conjunta son importantes.

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Por lo tanto, en el papa Francisco podemos descubrir, una visión integra-
dora de la ecología que no duda asumir los datos de las ciencias, de la historia,
de la filosofía, de la ética, de la sabiduría de las comunidades indígenas y de
las comunidades populares, de las tradiciones religiosas y de espiritualidad,
de la sociología, del derecho internacional, etc.

Conclusión. Apertura, dialogo, sabiduría, integración

No toda Bioética ha integrado igualmente la ecología. En Brasil hay


muy buenas contribuciones. La Bioética que ha integrado la ecología ha rea-
lizado un diálogo profundo con las ciencias, la historia, la filosofía, la ética,
la antropología, las religiones, la espiritualidad, la experiencia humana, las
comunidades locales, el derecho, las políticas de salud pública, las políticas
sociales, los profesionales y las dinámicas institucionales, la pedagogía, la
psicología, etc. Un buen ejemplo han sido autores de la talla de Gafo, Pessini,
Bachifontaine, Cely, Junges, Siquieira, Garrafa, Cortina. Hemos tenido y
tenemos buenos maestros en Brasil y España.
Todavía queda mucho por profundizar y ampliar, pero la Bioética de
nuestro contexto puede estar orgullosa de ser la disciplina que más amplia-
mente aborda los temas en el ámbito académico y que más experiencia tiene
en el diálogo interdisciplinar. Quizás la Bioética ha subestimado el papel de
la economía y la ciudad. Pero ya está integrándola y el congreso internacional
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 47

de Bioética iberoamericana de Curitiba de 2020 es un buen ejemplo de irse


tomando en serio estos aspectos.
La Bioética hecha desde contextos religiosos ha aportado una amplitud
de miras en muchos contextos (no en todos). El papa actual ha recogido esta
tradición en la que han sido auténticos maestros muchos de nuestros maestros.
La Bioética es la disciplina que mayor esfuerzo ha hecho en cincuenta
años por un diálogo interdisciplinar y una integración del saber en lo micro,
meso y macro. No hay otra disciplina igual. Es apasionante cultivarla. Por
este motivo, la Bioética es esencial por su experiencia de diálogo integral en
un planteamiento de ecología integral. La Bioética ayudó a dar a la ecolo-
gía un sentido amplio-profundo y no puede ser arrinconada en los debates.
Hay un peligro de cultivar una ecología sin escuchar las voces plurales y
la sabiduría integradora de la Bioética. La ecología necesita de la Bioética
integral para saber en la práctica lo que significa “integral”. De ella puede
aprender que integral significa no sólo diálogo y escucha sino deliberación
paciente entre disciplinas como filosofía, ética, historia, política, psicología,
antropología, sociología, derecho, biología, genética, teología, espirituali-
dad, medicina. El énfasis que desde el principio dio Potter al puente entre
biología y humanidades hace que, a la dimensión integral, la Bioética pueda
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aportar una dimensión de sabiduría.


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UMA REFLEXÃO SOBRE PANDEMIAS E
A RESPONSABILIDADE BIOÉTICA DO
HOMEM EM RELAÇÃO A CENÁRIOS
MODIFICADOS DA NATUREZA
Alvaro Angelo Salles23

A Revolução Industrial, brindando a humanidade com incríveis máquinas


que, em ritmo acelerado, substituíam a mão de obra humana e realizavam em
tempo muito menor o trabalho de muitos homens, infelizmente trouxe tam-
bém consequências nefastas para a natureza, seus animais e o próprio homem.
Exemplo disso foi o processo de industrialização da carne dos animais para
uso diário como alimento, o que não acontecia nos séculos anteriores. Hábito
bastante antigo, o consumo da carne teria seu processo de preparo – basicamente
matar um animal, cozinhá-lo e comê-lo – bastante modificado. Agigantando
essa operação, máquinas em imensas indústrias passaram a matar, cortar, limpar,
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embalar e despachar para mercados (e depois supermercados) distantes grandes


quantidades de carnes de animais para consumo em variadas refeições, consumo
excessivo agora popularizado graças ao preço e acesso facilitado a todos.
Ao mesmo tempo, mostravam-se necessários novos pastos. Imensas
fazendas de gado foram então surgindo. As plantações de grãos (principal-
mente de soja) exigiam também mais terras. Tudo isso implicava em cortar
árvores, destruir florestas, desviar cursos de águas. Foi o início de um dos
vários processos de degradação do planeta Terra, cuja continuidade e efeitos
estamos testemunhando no presente.
Certamente que houve outros fatores contribuintes para a situação plane-
tária atual, mas já se reconhece que os processos para produção industrial em
larga escala da carne animal como alimento têm direta responsabilidade – e uma
responsabilidade muito grande – sobre o estado de degradação ambiental da
atualidade, que traz prejuízos para a fauna, a flora, as águas e os próprios homens.
Esses tópicos precisam ser pontuados, no maior número possível de
estudos e pesquisas, para que nos conscientizemos sobre o papel que uma
produção maciça de carne-alimento pode exercer sobre nosso planeta. E,

23 Alvaro Angelo Salles é formado em Medicina, Direito e Letras. Faz parte da Câmara Técnica de Bioética do
CRM-MG, da Comissão de Bioética da OAB-MG e é parecerista da Revista Bioética do CFM. Sequenciou
seus estudos nos níveis de especialização, mestrado e doutorado em Bioética, onde agora atua. Foi também
professor de Parasitologia Médica e Psiquiatria.
50

sendo o assunto ligado de modo primordial à postura e às tomadas de decisão


do homem em relação ao outro (seres humanos, animais e a natureza como
um todo) e a si mesmo (pelas doenças que contrai), há implicações bioéticas
a serem consideradas durante os estudos, razão pela qual tratamos aqui da
importância de princípios bioéticos também. A inegável responsabilidade ética
do ser humano em relação ao cenário presente de degradação planetária não
pode e não deve ser simplesmente ignorada.

Como tudo começou... e continua

A Revolução Industrial representou um marco divisório para vultosas


alterações estruturais em todos os campos da sociedade e assistiu-se, nesse
cenário, a uma perda de valores éticos no relacionamento entre o homem-pa-
trão e o homem-empregado. O sistema econômico mercantilista foi substituído
pelo sistema capitalista, a era agrária, pela era industrial e o proletariado
passou a viver em condições de miséria, recebendo salários ínfimos. Os tra-
balhadores deixavam de ser vistos como homens e passavam a ser conside-
rados objetos geradores de lucro pela burguesia. Por sua vez, refletindo essa
redefinição de papéis, o homem passou a ver o animal como, acima de tudo,

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uma propriedade, um ser-objeto. Ao mesmo tempo, o papel da natureza seria
o de servir e proporcionar lucros ao homem.
No contexto do Capitalismo, os seres vivos passavam às categorias de
consumidor e mercadoria, enquanto que, com a adoção do cientificismo, que
trazia uma visão mecanicista e materialista do mundo, perdia-se a perspec-
tiva de holismo e das funções que cada ser desempenhava no plano global
do mundo. O homem se voltou para seus interesses e o lucro, ainda que à
custa do meio ambiente. Sentindo-se, mais do que nunca, dono e proprietário
dos animais e com as facilidades incríveis que a maquinaria recente estava
oferecendo, começou o processo da matança de animais para consumo como
alimento em uma escala desconhecida até então.
O processo, entretanto, implicou em consideráveis desdobramentos. Para
acompanhar a velocidade das máquinas em ações como matar, cortar e embalar
as carnes, um maior número de cabeças de gado se fazia necessário, adotan-
do-se a reprodução pela inseminação artificial nas grandes fazendas. Inúmeros
pastos tiveram de ser abertos, não se hesitando em praticar o desmatamento.
Também se desmatava para plantar grãos, principalmente de soja, pois o
gado precisava ser alimentado. Para matar a sede do rebanho, desviavam-
-se correntes de água para grandes reservatórios. O tratamento dos animais,
fosse de prevenção ou de cura (com o uso de antibióticos, anti-inflamatórios,
antiparasitários e hormônios de crescimento), passou a exigir toneladas de
medicamentos, não importando se permaneceriam na carne vendida ou se os
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 51

metabólitos poluiriam os lençóis d’água. Atos tão antigos como abater animais
e consumir sua carne exatamente na medida da fome mudavam de feições
drasticamente e tornavam-se um fator de sério desequilíbrio do meio ambiente.

Sob um olhar bioético

Há tempos o homem vem se considerando o senhor dos animais e da


natureza toda, podendo usufruir de ambos como desejar. Entretanto, ainda no
século XIX, o filósofo e ambientalista Aldo Leopold escrevia sobre a necessi-
dade de uma ética da Terra, ética esta que não significaria uma decisão entre
direitos humanos versus direitos animais, vegetais ou da natureza em geral,
conforme explica Potter (1988) em sua análise sobre os estudos daquele autor.
Leopold enfatiza questões concernentes a uma Bioética ambiental em relação
à prevenção contra a poluição do ar e da água e à conservação de recursos
renováveis e não renováveis da natureza, mas, acima de tudo, encoraja para
que observemos se no mundo a sacralização do dinheiro e do lucro encontra-
ram sua contrapartida na sacralização da vida.
Percebe-se, nas considerações anteriores, uma preocupação com o des-
compasso entre o progresso técnico-científico e a ética no relacionamento do
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homem com seu planeta. A mesma preocupação, manifestada por inúmeros


outros autores, é concernente a uma visão clara, holística e ética da vida, bem
como à assunção de uma responsabilidade para com as futuras gerações. Essa
visão poderia significar para nós, provavelmente, uma fórmula para responder
aos questionamentos derivados da situação atual de degradação ambiental
num mundo de avançada industrialização e tecnologia.
Albert Schweitzer (1972), em seu discurso ao receber o Prêmio Nobel
da Paz em 1954, afirma que a criação de um homem com “superpoderes” foi
acompanhada, na mesma proporção, pela de um homem menos humano. Na
sociedade neoliberal contemporânea, conforme explica o médico e filósofo,
o homem justifica pelos interesses econômicos seu poder de domínio e des-
truição, tanto em relação aos outros homens (guerras) como em relação aos
elementos da natureza.
Um caminhar do cientificismo e da tecnologia lado a lado com a Bioética
nas relações do homem com todos os componentes da natureza e, ainda, com
os homens de gerações futuras, poderia, a nosso ver, ser mais bem entendido
dentro de parâmetros oferecidos pela Bioética em suas diversas linhas de
ação, parâmetros que seriam ferramentas para se conhecer e refletir sobre a
insensibilidade que pode estar presidindo o relacionamento do ser humano
com os seres não humanos. Potter defende, em Global Bioethics (1988), que
qualquer ética para nossa espécie deveria partir da ideia de que é possível a
extinção de nossa espécie e que deveríamos evitar que nosso papel fosse o de
52

responsáveis pela má sina da maioria das espécies, procurando o conhecimento


que ajude a prevenir ou retardar a extinção, questionando a cultura atual que
defende a exploração sem limites do meio ambiente e usando do nosso saber
para ajudar na sobrevivência da condição humana.
Usualmente são dados nomes às normas éticas para facilitar sua identi-
ficação e seu estudo. Algumas foram inicialmente sistematizadas na chamada
Bioética principialista, que, com o tempo, teve de receber inúmeras expansões
e mudanças para que atendesse a desafios novos. Hoje, na América Latina e
Caribe, introduzindo novas orientações, a chamada Bioética de intervenção
tem-se revelado como a que mais se adequa aos pesados desafios de países
do cone Sul (emergentes). O importante a perceber, entretanto, é que sem-
pre existirá um princípio bioético a ser usado como esteio ao se percorrer o
caminho que leva à vida plena da natureza. A autonomia e o livre arbítrio do
homem, por exemplo, precisam, sem dúvida alguma, ser cotejados sempre
com os princípios bioéticos do cuidado, da proteção e da responsabilidade
em relação à fauna e à flora, para que não fique em segundo plano o bem
comum. Para apoio aos povos indígenas e apoio aos animais nos cenários em
que necessitam dos homens, haverá o princípio da proteção aos vulneráveis.
O princípio do cuidado é essencial ao se falar de uso de recursos naturais e

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dos seres da fauna e da flora. Responsabilidade é outro princípio que vai cons-
cientizar sobre o papel que as atuais gerações têm sobre as futuras gerações.
Ao se falar em autonomia, não poderia faltar a atitude ética na escolha de
uma dieta que represente saúde, e não obediência ao social ou à economia.
O princípio bioético da justiça social também deve ser levantado, quando o
monopólio de fazendas industriais para criação de gado de corte significar a
falência dos pequenos produtores. Esses são só alguns exemplos.
Nota-se, dessa forma, que toda fundamentação e toda disseminação
possível de novos princípios formulados pelas bioéticas dos países do Sul
tornam-se importantes nesse momento para que se compreenda o que ocor-
reu no relacionamento do homem com o planeta e para que se enxergue, no
caso específico aqui tratado, que o espetacular desenvolvimento trazido pela
Revolução Industrial em relação à industrialização da carne sobrepujou os
limites de um relacionamento ético, harmônico e saudável entre o homem e
sua natureza planetária.

Se a natureza fica doente...

O impacto da pecuária no meio ambiente não é recente. Um marco dos


estudos a esse respeito, entretanto, foi a pesquisa iniciada em 1996, inte-
grada pela FAO – Federal Agriculture Organization, a United States Agency
for International Development e o World Bank, por determinação da ONU,
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 53

para medição da responsabilidade do setor pecuário em relação à degradação


ambiental e para sugerir políticas para sanar os problemas detectados. Seu
relatório final, de responsabilidade de Steinfeld, em 2006, concluiu que o setor
pecuário deveria ser o foco principal das atenções políticas com referência
às questões de degradação de terras, alterações climáticas e poluição do ar,
escassez e poluição de água e perda da biodiversidade, conjunto de situações
problematizadas, na maior parte, pelo desmatamento e pelas queimadas para
formação de pastos. A pesquisa seria estendida e novos relatórios confirma-
riam a conexão entre o desmatamento, agravamento da situação da natureza
e o aumento do consumo de carne no mundo.
E não é somente no aspecto externo, visível (árvores cortadas ou quei-
madas, por exemplo) que a natureza está em desequilíbrio. Vegetais e animais
da floresta amazônica estão sofrendo com o contato com grande quantidade
de substâncias químicas veiculadas pela urina do gado dos rebanhos de corte,
tais como hormônios de crescimento, recombinantes para aumento do leite,
antibióticos diversos e outras drogas, conforme Meirelles Filho (2016). O
relatório final de um conjunto de mais de 250 pesquisas ao redor do mundo
sobre as consequências desse tipo de contato constatou uma feminilização da
maior parte da fauna terrestre e, ainda, de parte dos homens. Nesse documento,
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Lyons (2008) reporta, por exemplo, que alguns animais machos passaram a
chocar ovos, que outros mostram sinais de hermafroditismo e que pratica-
mente em todos (homens incluídos aqui) houve uma diminuição do número
de espermatozoides. E se natureza e animais estão em estado de desequilíbrio,
o ser humano não escapa à situação – também ficará doente.

Também os humanos ficarão doentes

Após três anos de trabalho e o exame de 15 mil pesquisas científicas e dados


provindos de vários governos, o GBO5 – Global Biodiversity Outlook 2020,
a principal publicação da CBD – Convenção sobre Diversidade Biológica da
ONU (2020) a respeito da situação e tendências da biodiversidade, apresentou
em seu relatório final um alerta para um cenário de grave perda na biodiver-
sidade em âmbito mundial. Entre as conclusões daquele estudo, está a de que
a pecuária extensiva, a monocultura e o desmatamento, por subverterem o
equilíbrio ambiental, constituem um dos principais fatores responsáveis por
surtos de doenças infecciosas em humanos e aparecimento de novas doenças
no continente americano. Essa conexão entre um estado de desequilíbrio na
natureza e a incidência de doenças, que vem despertando a atenção de cientistas
nos últimos anos, foi ressaltada de modo especial desta vez pela CBD de 2020,
que deu ênfase à afirmação de que os bens e serviços provindos da natureza são
os fundamentos definitivos da vida e da saúde das pessoas.
54

Contrariando a hipótese, ainda recente, de que os vírus e patógenos


esperavam, abrigados nos animais de florestas tropicais e ambientes naturais,
a visita dos humanos para contagiá-los, pesquisadores atuais como Vidal
(2020) ensinam que na verdade é a destruição da biodiversidade que propicia
condições para que novos vírus e doenças como a COVID-19 surjam. Um
ambiente natural equilibrado tem condições de abrigar todos os seus compo-
nentes – vegetais, mamíferos, répteis, aves insetos, bactérias e vírus – que se
autorregulam e se mantêm em seu habitat. O desmatamento que vem sendo
praticado em matas e florestas do planeta, entretanto, em nada tem contribuído
para a preservação dessas condições, levando ao fenômeno cada vez mais
comum da migração de animais para os centros urbanos. Além disso, a crise
climática e a elevação da temperatura criaram condições propícias à repro-
dução de mosquitos, que são vetores de muitas doenças, doenças em relação
às quais é fraca a defesa do homem, conforme pesquisadores da Fundação
Grupo Boticário de Proteção à Natureza (2019). Esses insetos, dirigindo-se
agora à cidade, alimentam-se do sangue dos humanos, favorecendo, dessa
forma, a transmissão de enfermidades.
Recomendações mais enérgicas sobre ações de urgência a serem adota-
das pelas nações para mitigar e sanar a situação já haviam sido apresentadas

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pela OMS – Organização Mundial da Saúde e a CDB anteriormente, mas não
seguidas por todos. Diante da ONU agora, exposto o relatório da CDB de 2020,
os dados da OMS são de que 50% da população da Terra corre o risco de con-
taminação pelas arboviroses, ou seja, as doenças transmitidas por mosquitos.
Quando os estudos da Fundação Grupo Boticário foram apresentados em 2019,
o Ministério da Saúde estimava que o número de arboviroses tinha dobrado
entre as décadas de 1990 e 2010, sendo que algumas delas (como a malária, a
dengue, a febre amarela e a zika) já causavam surtos em áreas urbanas.
Hoje o mundo enfrenta a pandemia da Covid-19, causada pelo
SARS-CoV-2, o chamado Novo Coronavírus. No momento deste estudo, cerca
de 220 mil pessoas já morreram no Brasil (e cerca de 420 mil nos Estados
Unidos) por causa dessa doença – e os números estão crescendo com maior
rapidez do que antes –, enquanto que a vacinação está apenas começando no
mundo. De certa forma considerados como “mortes anunciadas”, esses óbitos
parecem confirmar os vários alertas da classe científica sobre as consequências
do desequilíbrio da natureza causado pelas mãos do ser humano. A floresta
amazônica, reconhecida como uma das mais importantes reservas naturais
do planeta (e em sua maior parte dentro do território brasileiro), exemplifica
a lógica simples da conclusão dos cientistas quando esses dizem que devas-
tações contínuas e com suporte em queimadas levam à perda do equilíbrio da
natureza, o que, por sua vez, abre campo para as doenças.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 55

Os estudos de Borges e Brandford, em 2020, trazem um prognóstico


bastante grave: o desmatamento acelerado na Amazônia pode levar à próxima
pandemia. Isso poderá acontecer, dizem as autoras, se as atuais políticas do
governo continuarem a elevar os índices de desmatamento naquela floresta,
já que novas doenças, conforme consenso científico, costumam surgir em
áreas de contato das florestas com locais usados para a expansão econômica
pela pecuária e a mineração. Outra alteração da natureza, dizem os estudos,
ocorre por força das queimadas (um exemplo disso são as incontáveis queima-
das ocorridas em 2019 e 2020 no Brasil), após as quais os animais não mais
encontram alimento em seu habitat original, indo procurá-lo em comunidades
humanas vizinhas, criando assim vetores de bactérias, vírus e parasitas zoo-
nóticos (os que se transmitem do animal para o ser humano). Como exemplo
recente de que alterações no meio ambiente geram doenças, é citado o caso do
rompimento da barragem em Mariana, Minas Gerais, em 2015, considerado
como responsável em parte pelo grande número de casos de febre amarela
nos anos que se seguiram à tragédia. Também é citado no estudo a pesquisa
feita na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, na qual se afirma que
um aumento de 10% no desmatamento na Amazônia significaria um aumento
de 3,3% na transmissão da malária. Dentro de um cenário de devastação e quei-
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madas no Brasil, tende-se a concordar com os estudos de Borges e Brandford


(2020) quando dizem que o rápido desmatamento na Amazônia está criando
condições para o surgimento de futuras pandemias.
Os estudos sobre a correlação de doenças (chegando ou não a epide-
mias/pandemias) e o desequilíbrio da natureza têm se multiplicado, sendo
que, em 2019, Daszak et al., após longa pesquisa que se estendeu de outubro
de 2013 a fevereiro de 2019 sobre a emergência de doenças infecciosas e
a economia de paisagens alteradas, mostram, em seu relatório final, que os
incêndios florestais são grandes detonadores de novas doenças. Bastante deta-
lhada ainda foi a pesquisa feita ainda em 2008 por equipe liderada por Jones,
que sistematizou dados sobre o papel de doenças infecciosas originárias de
animais em relação ao ser humano, concluindo que representavam uma ameaça
crescente e importante à saúde, à segurança e à economia de todo o planeta.
Entre os dados é mostrado que pelo menos 60% das 335 novas doenças que
apareceram entre 1960 e 2004 têm sua origem em animais silvestres, agora
fora de seus habitats naturais. Jones e sua equipe afirmam em seu trabalho que
as espécies que se encontram em habitats degradados podem transportar, num
efeito de amplificação, maior número de vírus aptos a infectarem humanos. Se
o homem destrói paisagens, segundo Jones e equipe, serão justamente dessas
espécies que os humanos pegarão doenças.
Como resultado de uma de suas mais recentes pesquisas na área de
ecologia de doenças zoonóticas e transmitidas por vetores, apresentada em
56

outubro de 2020, quando analisaram a relação entre saúde e soluções climá-


ticas em florestas da Indonésia, Lopez-Carr e MacDonald (2020) afirmaram:
“Os resultados ilustram uma forte ligação entre a saúde humana e a conser-
vação nas florestas tropicais do mundo em desenvolvimento”. Quando um
habitat é desmatado e vertebrados silvestres (roedores, morcegos e primatas,
principalmente) entram em contato com os humanos, podem passar a estes
últimos os patógenos que abrigam e que não são familiares ao sistema imu-
nológico dos humanos, o que pode levar a epidemias e pandemias.
Explicam Gibb, Franklinos, Redding e Jones (2020) que é na conexão
entre mudança ambiental, ecossistemas e saúde que estão situadas doenças
infecciosas zoonóticas. Patógenos zoonóticos e parasitas, mantidos no reser-
vatório animal, regularmente se espalham para causar doenças em humanos,
quando então, conforme complementam Gibb e sua equipe, pode levar a
epidemias sustentadas de humano para humano ou transmitidas por vetores
(como no caso do coronavírus de síndrome respiratória aguda grave). Esses
autores chamam a atenção para as várias crises zoonóticas ocorridas em 2020,
entre as quais se situa a pandemia global de SARS-CoV-2, lançando um alerta:
“Surtos graves como esses afetam profundamente a saúde pública, as socie-
dades e as economias, e é por isso que as zoonoses costumam ser vistas pelas

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lentes da preparação para uma pandemia”. Quammen, uma das referências
atuais nos estudos sobre a natureza das zoonoses, disse, em entrevista para o
New York Times (2020):

Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens, que abrigam


tantas espécies de animais e plantas – e dentro dessas criaturas, tantos
vírus desconhecidos. Cortamos as árvores; matamos os animais ou os
enjaulamos e os enviamos aos mercados. Nós perturbamos os ecossistemas
e libertamos os vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece,
eles precisam de um novo hospedeiro. Frequentemente, somos nós.

Desertificação, um novo cenário

Feedback Já é sabido há muito tempo que a manutenção de rebanhos


bovinos exige uma quantidade de água muito maior do que o exigido pela
agricultura tradicional de grãos. Um boi pode chegar a consumir 100 litros
de água por dia. A observação vem de Hoekstra (2016), que trabalha com
o conceito de água virtual, havendo ainda outras pesquisas sendo feitas há
anos nas áreas da bioquímica e da endocrinologia e conexas aos impactos dos
resíduos da indústria da carne nos rios e estuários.
A escassez (ou mesmo finitude) das águas é um problema que está se
expandindo pelo mundo como consequência, principalmente, da manutenção
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 57

de rebanhos de corte. Grandes fazendas industriais tomam o lugar da terra de


pequenos agricultores, promovendo na sequência uma distribuição injusta de
recursos naturais (como a água), o desmatamento para formação de pastos para
rebanhos e, ainda, a poluição dos diversos recursos hídricos pela presença ou
pela infiltração da urina dos animais. De acordo com as tabelas do Sidra-IBGE
(2019), o Brasil continua com um número maior de bois do que pessoas, o
que não representa a distribuição original dessa espécie na natureza. Hoje, são
mais de 214 milhões de bois disputando água, espaço e alimento com cerca
de 210 milhões de humanos no Brasil.
Uma das graves consequências da escassez de água no mundo, atual-
mente, é o fenômeno dos refugiados ambientais, fenômeno esse de extrema
gravidade que, além de implicar em sofrimento e morte de pessoas e ani-
mais pela sede, tem sido motivo de guerras pela posse da água. Dados da
IPCC-ONU forneciam em 2014 a informação de que 50 milhões de pessoas
já podiam ser ditas refugiadas por causas ambientais e que o número deveria
chagar a um bilhão até 2050.
Além de não haver desculpas que justifiquem um gerenciamento inefi-
ciente na produção de alimentos e que já compromete as águas da Terra, não se
sustenta nem mesmo aquela velha desculpa de que o homem sempre consumiu
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carne e que, portanto, nada mudou. Pesquisas de historiadores como Flandrin e


Montanari (2015) já mostraram que nas civilizações antigas do Mediterrâneo,
Grécia e Roma clássica a carne era imagem do luxo, da festa e do privilégio
social, enquanto que os produtos da terra eram bens primordiais. Esse status
luxo da carne ainda era vigente há poucas décadas na civilização ocidental.
Em 2018, por exemplo, quando Nierenberg fechou pesquisas sobre o uso da
proteína na culinária ocidental, verificou que as fontes proteicas provinham,
por longo tempo, de tipos diversos de grãos, como o feijão, a lentilha e o trigo,
e que ocasiões festivas e os dias de domingo eram os momentos de uso da
carne na maioria das famílias. Portanto, a dieta vegetariana era o costume na
alimentação do dia a dia, diferentemente, como ressalta a autora, do costume
de comer bacon no café da manhã, hamburger no meio do dia e bife no jantar,
na atualidade de alguns países. Nunca se comeu tanta carne como no presente,
diz a autora. Essa realidade provém de uma nova cultura criada pela facilidade
de compra promovida pela sua produção em larga escala.
A OCDE-FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
a Agricultura, diz em seu Relatório Perspectivas Agrícolas 2016-2025 (2016)
que a “América Latina tem o maior consumo de carne per capita do mundo
(58 quilos/pessoa/ano) e seguirá crescendo mais rápido que a média global, 6%
na próxima década”. No caso de países do Norte, o relatório de Delgado e
Narrod para a FAO já revelava, em 2002, um consumo alto: “Em países
industrializados, as pessoas comem cerca de 80 quilos de carne por ano.” (p.
58

11). O caso de Campo Grande (MS) merece destaque ainda: de acordo com
Costa, Feijó e Feijó, em pesquisa coordenada pela Embrapa – Empresa Bra-
sileira de Pesquisa Agropecuária, o consumo anual de carne bovina naquela
região já alcançara 140 quilos/habitante em 2007. Esses exemplos mostram
um contraste marcante com os hábitos das pessoas da Grécia Antiga e Roma,
onde as pessoas não consumiam mais do que um ou dois quilos de carne por
ano, conforme os estudos de Flandrin e Montanari (2015).

Respondendo a um pedido de socorro

A conscientização de todos e cada um sobre a situação crítica em que


se encontra o planeta Terra permite que se decida sobre atender ou não a seu
pedido de socorro. Contribuir para mudar a situação e tentar frear alguns
dos aspectos da degradação da natureza vai ser uma questão de assumir uma
responsabilidade pessoal e ética no processo.
Aqui, procurou-se informar sobre um dos mais sérios fatores de con-
tribuição para esse estado caótico da Terra. Mesmo que tenha sido apresen-
tado um panorama sucinto e singelo, alguns dados mostrados podem motivar
maiores pesquisas pelos interessados. Os processos de produção em larga

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escala de carne são extremamente prejudiciais. Eles desrespeitam os animais,
seres vulneráveis em relação aos humanos. Eles provocam o desequilíbrio do
meio ambiente, destruindo florestas, realizando queimadas, poluindo as redes
hídricas e possibilitando a finitude dos recursos em pouco tempo. E se, ainda
assim, os humanos não quiserem abrir mão de um prazer do paladar, talvez
reste a eles lembrar que, no rastro da destruição do meio ambiente, são criadas
condições para o aparecimento ou reaparecimento de doenças que irão afetar
diretamente a eles e seus descendentes.
Não é possível a todos agir em grande escala sobre o agronegócio, sobre
os grupos que controlam a economia ou sobre políticas de não preservação do
meio ambiente, mas isso não muda o fato de que muito da situação planetária
atual é resultante de opções éticas do ser humano. É possível, sim, a cada um,
considerar-se também responsável, rever seus hábitos, integrar-se ao processo
de salvar o planeta Terra.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 59

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NOTAS SOBRE O
DESENRAIZAMENTO HUMANO:
o problema ecológico e bioético de base
Marcelo Luiz Pelizzoli24

O foco deste texto é a compreensão de algumas causas fundamentais dos


desvios/desequilíbrios do humano, ligadas a processos históricos, culturais e
ambientais que levaram ao que chamamos de desenraizamento. Por si, a palavra
humano vem de humus, e evoca o enraizamento fundamental do animal que
somos – inserção orgânica primeira. Nós somos o ambiente, mesmo que cultura-
lizado e, surpreendentemente, voltado em parte contra si mesmo. Desde modo,
faremos inicialmente um relato sucinto da questão histórica do desenraizamento,
com alguma reflexão comparativa com a sociedade industrial moderna. Isto
nos ajudará a compreender a base histórica primeira do que se pode chamar de
cultura da insustentabilidade. No segundo momento, apresentamos exemplos
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concretos do que são alguns processos de desenraizamento presentes e pertur-


badores na vida social contemporânea. Trata-se, assim, de remeter aos funda-
mentos da questão Bioética no seu termo e sentido maior, como considerava
por exemplo V. R. Potter (1988) no aspecto global e de ecosfera, ou Bioética,
como paradigma socioambiental. O conceito ecológico inclui aqui certamente
a sustentabilidade e saúde humana, o ambiente como um todo.

Self e (des)enraizamentos:
da revolução Neolítica à revolução Moderna

O processo histórico encetado após o Neolítico (em torno de 10 mil anos


atrás) com o surgimento da agricultura, diminuição do nomadismo, apareci-
mento do cultivo dos 5 grãos principais no mundo, e assim o desenvolvimento
de cidades, portanto, de administração, poder e o que daí se segue, tal pro-
cesso gera o que alguns autores (CAPRA, 1982) chamam de primeiro grande
paradigma do ocidente. O Neolítico é considerado uma Revolução, e para
alguns (WELLS, 2010) a maior na história do Homo sapiens; o real início da
antroposfera ou domínio antrópico do planeta. No entanto, é importante notar,
como aponta Riane Eisler (2008), que a mudança mais drástica da cultura se
dá apenas nas invasões kurgans e/ou bárbaras em especial na Europa, em três
24 PhD. Pós-doutor em Bioética; coordenador do Espaço de Diálogo e Reparação – UFPE. Formado em Terapia
Sistêmica Fenomenológica e em Orgonomia. Autor de 17 obras. www.ufpe.br/edr.
64

levas, de 3.500 a.C. até 1.500 a.C., tendo como ícone final a tomada de Creta
(junto à Grécia), onde os hititas dominam e destroem os minoicos – civilização
notável e sofisticadamente sustentável. Tais invasões, acopladas ao modelo de
vida das cidades que se complexificam, trouxeram a necessidade de desenvol-
ver armas, muralhas, e o papel do masculino sobressalente. Um dos maiores
fatos do desenraizamento humano pode ser dito como a alteração do papel
do feminino na sociedade, com a perda da paridade-valor dos papéis sociais.
Vai-se, portanto, do “Cálice à Espada”, o cálice representando o feminino e o
modelo de sociedade mais pacífica e integrada com a natureza e as deidades
femininas, e a espada como o masculino dominador, o deus homem violento
e guerreiro, típico das tribos que buscavam se sobrepor/sobreviver, como
os hebreus relatados no Antigo Testamento, e a Era dos Impérios. Não pode
haver uma compreensão eficaz do desenraizamento sem a compreensão do
processo de ruptura do papel do feminino na sociedade, como um aspecto
fundamental de relação com a Natureza.
Para uma maior e mais concreta compreensão do que trazemos, deve-
mos perguntar: onde encontramos, ainda hoje, modelos de comunidades que
remontam a modelos vividos no Neolítico, de alto grau de enraizamento
na vida, com uma cultura altamente sustentável? Nas tradições indígenas,

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em suas várias possibilidades, notadamente. Na verdade, nestas comunida-
des tem-se uma visão/vivência mais direta do enraizamento do homem no
ambiente (corpo, saúde, comunidade, sexualidade, ritmos, paisagem, clima,
habitação, alimentação etc.). Não obstante, se olharmos para alguns lugares
ainda hoje, em comunidades nativas, ou mesmo para nossos antepassados
recentes, muitos aspectos do modelo de vida adotado por eles revela um grau
notável de enraizamento, expressos nas suas narrativas e modos de ser diante
dos desafios da vida, na boa adaptação à realidade/ambiente vivido.
Por conseguinte, o desenraizamento deve ser visto inicialmente em uma
dimensão histórica, mas num crescendum, e junto ao modelo cultural, político,
econômico, bélico e religioso que foi se impondo. O desenraizamento é igual-
mente uma perda de contato saudável/equilibrado com a realidade. Mesmo as
religiões acabam também sendo moldadas pelo momento cultural e político dos
tempos; não obstante, a vivência do sagrado no palco cosmobiológico é algo
fundamental/ontológico das culturas humanas em sua inserção na vida natural.
A partir da leitura de autores como Wells (2010), podemos inferir acon-
tecimentos cruciais no processo de mudança do Neolítico em substituição
ao Paleolítico, tais como: Até este período neolítico, as comunidades organi-
zavam-se basicamente em hordas de algumas centenas de pessoas. Compu-
nham-se como grandes famílias e redes de convivência, o que faz inferir que
as relações sociais entre casais eram bem menos neuróticas e dramáticas, bem
como o cuidado com crianças era mais aberto ao mundo (coincidentemente,
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 65

Platão pregava algo assim para a organização social e política humana, ser
uma República livre e evoluída, com uma educação para a vida – Ver a obra
República, de Platão). O modelo de relação social era muito mais enraizado
nos tempos e espacialidades próprias da natureza e nos processos culturais
intuitivos do grupo, do sistema voltado para a manutenção e otimização da
vida – simples e direta. O modelo de liderança, mesmo que surgindo líde-
res naturais, não se compunha ainda como autoritário (como por exemplo
na Era dos Impérios), porém mais intuitivo, espraiado, partilhado. Até este
período, temos comunidades nômades, em que processos administrativos,
poder, comércio, dinheiro, política, como entendemos enquanto instituição,
eram desnecessários. Ou seja, reinava um tipo de comunismo natural.
Inferiu-se que, comunidades que viviam no que hoje é o continente
europeu, alimentavam-se com algo em torno de 300 a 400 ervas/plantas/raízes
diferentes, portanto, altamente saudáveis. Pela pesquisa arqueológica e seus
correlatos, como o uso da tecnologia de reconstituição de moléculas de ali-
mentos, corpos, ossos, ferramentas etc., constatou-se que estas comunidades
do período não conheciam doenças como a cárie; o que é um sinal notável em
termos de saúde coletiva. Seus corpos eram extremamente fortes, com período
de vida prolongado, diferentemente de períodos posteriores de declínio, com
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o medieval e moderno. Como nômades, caminhavam muitos milhares de


quilômetros em suas vidas. Bebiam água natural e com alcalinidade maior
do que as águas atuais (devido à poluição, excesso de materiais orgânicos e
químicos; por exemplo, em torno de 70% das águas do Brasil contém hoje
glifosato, derivado de agrotóxicos e outros resíduos orgânicos e inorgânicos).
Neste contexto, o cultivo às deidades/religiosidades era menos presente, sendo
que a ideia institucionalizada de um Deus único, masculino, de inferno e céu,
salvação e tudo o mais que vem nos períodos posteriores não se presenti-
fica25. As formas originárias de religiosidade são todas ligadas intensamente
às forças da natureza e ao feminino ou aos pares complementares masculino
e feminino, pois Deus, neste período, metaforicamente, era feminino, o que
vai perdurar por milênios antes do poder patriarcal26. Quando comunidades
humanas se fixam, o fazem no período de uso da agricultura e, assim, sur-
gimento das cidades, fixando-os e perdendo a riqueza ambiental e alimentar
anterior, surgindo então doenças que vão tomar um crescendum assustador
no ocidente. Para compreender isto, basta verificar estudos e depoimentos de
antropólogos, navegadores, historiadores sobre o modo de vida de indígenas
de diversas partes do mundo, mostrando que o nível de saúde é alto, tanto
quanto à integração com o ambiente – a cultura e a natureza apresentam aí
25 Sobre isto, assista o imperdível documentário sobre os índios Pirahã: Desconvertendo o missionário (Youtube).
26 Se considerarmos a história do homo sapiens, em 95% dela ele esteve altamente enraizado na vida e equilibrado.
Nos últimos 5 mil anos ocorreu o desvio notável que tem seu ápice nas sociedades industriais e poluídas.
66

grande conexão. Já quando se começa a cultivar pelos continentes os famosos


cinco grãos (trigo, milho, arroz, cevada e soja), uma mudança drástica começa
a se desenhar27. Outro ponto fundamental é que, psicológica e corporalmente
(mente e corpo são unos), neste período, como afirma Reich (2003), não
podemos inferir neuroses, sejam religiosas, familiares ou culturais, devido não
apenas ao estilo de vida inserido ecologicamente e por hordas comunitárias
integradas, mas pelo uso natural e energético livre do corpo, em especial do
movimento e sexualidade; somado a isto, uma paridade maior e nivelação
social, entre homens e mulheres em especial. A vivência de rituais, expressões
de competição, fidelidade ao grupo, liberdade, animalidade, instintualidade,
sensações e emoções como raiva e outras, oferece indícios significativos que
colocava este sujeito paleolítico como expressão integrada do fluxo energético
dos corpos, da biologia, dos processos vitais. É por isto que, em tais situações
de equilíbrio natural, faz-se desnecessário filosofia, terapia, direito (a justiça
exercia-se no modus comunitário e de equilíbrio social)28, teologia ou ciência
como a entendemos. O desenvolvimento da mente tecnológica instrumental e
seu grande poder de controle tornou-se nossa glória e nosso desastre, podendo
ser, como diz Reich e E. Tolle (2007), o grande sugador de energia vital do
humano e que o tira do presente e da vida real.

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Outro modo complementar de ver as mudanças ocorridas, é considerar
a ideia de uma destinação humana (Heidegger) em sua trajetória saindo da
vida animal-natural integrada para uma vida cultural antrópica objetificada.
Alguns autores apontam que cultura humana, em si, já é um desenraizamento
e, portanto, não somos mais animais e isto implica um custo a pagar/aceitar.
Por outro lado, sabe-se que, numa perspectiva naturalista e biológica básica de
compreensão do animal humano e seu habitat, o enraizamento é o que mantém
o ser humano vivo, e o que conta é a qualidade, intensidade e equilíbrio deste
enraizamento, vivências orgânicas melhores ou piores. Sobrevivemos apenas
porque estamos enraizados. Por exemplo: respirar é não só colocar H2O para
dentro, mas misturar-se com ambiente e conectar-se sensorialmente a cada
instante, e depende da qualidade do ar. Beber é introjetar (ser) o ambiente
e não apenas ingerir elementos químicos. Comer, igualmente; nosso corpo

27 Os principais cultivos de grãos hoje são, na ordem: trigo (o mais problemático deles), milho, arroz, soja,
cevada, sorgo, algodão. Todos eles não possuem mais a qualidade genética das espécies selvagens, sendo
que grande parte dessa produção se tornou transgênica e atingida quimicamente, com riscos incalculáveis
para o meio ambiente e para a saúde humana. O excesso de carboidratos simples e portanto glicose/açúcar
é hoje um dos maiores problemas de saúde pública do mundo. È por isto que uma das dietas mais potentes
e importantes para a saúde humana hoje é a Paleolítica (Dieta Paleo). Sobre isto, vide o trabalho brilhante
de Dr. Samuel Dalle Laste: https://clinicadallelaste.com.br.
28 Hoje os mecanismos de justiça mais avançados, chamados de justiça ou práticas restaurativas, recu-
peram nada menos que modelos antigos indígenas circulares, de responsabilização, reparação e
empoderamento comunitário.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 67

é um com o clima, umidade do ar, trocas gasosas, processos de absorção e


excreção, trocas magnéticas, trocas afetivas, contato com os animais, vege-
tais, paisagem e uma série de elementos que mostram que a simbiose é nossa
essência – poderíamos falar aqui de uma ontologia biológica básica – como
a epigenética. A vida só pode ser vivida sistemicamente, de modo interde-
pendente. O ápice do desenraizamento é – neste olhar – o comprometimento
separativo destes processos que levam às doenças, insustentabilidade e, por
fim, a uma morte prematura e mal vivida.
Portanto, a vida humana compõe-se numa dialética de enraizamento e
desenraizamento, em que precisa lidar com (des)equilíbrios a cada momento,
desafiadoramente, dentro de um modelo civilizatório cada vez mais desenrai-
zado e que, por outro lado, movimenta-se (movimentos, consciência, luta social,
ambiental, entre outros) para recuperar um equilíbrio sustentável com uma maior
e melhor inserção do humano no ambiente – alimentação adequada, água, ar,
movimento, habitação, coletividade, cidades, paisagens, harmonia social, saúde
mental – tema gravíssimo no desenraizamento vivido em nossas sociedades
traumatizadas, como bem mostra F. Ruppert (2014). Um bom exemplo é a
virada ecológica; se por um lado não temos hoje como ser 100% sustentáveis,
devido ao alto grau de comprometimento insustentável de nossos processos
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produtivos, pautados nos modelos de consumo voraz – transporte, habitação,


energia, agricultura – por outro lado em muitos casos podemos diminuir estes
impactos em 50% a 70% ou mais conforme o estilo de vida que levarmos.
Enraizamento e desenraizamento não dizem respeito somente à nossa
inserção adequada e intensa no ambiente natural, mas também no ambiente
social, afetivo, relacional, e aí o quadro é tão ou mais grave e importante – e
ao mesmo tempo extremamente conectado ao quadro chamado ambiental.
O estilo de vida social que as sociedades industriais criam, o modelo políti-
co-econômico adotado (genericamente chamado de capitalismo), o compro-
metimento de dimensões éticas fundamentais de socialização, faz com que
vivamos um conjunto de violências contundentes e as vezes crescentes de
vários tipos, em especial estruturais, econômicas. A violência pode ser com-
preendida em muitos aspectos como um desenraizamento (exclusão) social,
ambiental, econômico, afetivo, vital. Portanto, não haverá solução efetiva sem
olhar para o nosso modelo de sujeito e intersubjetividade, nosso ego e nosso
Self maior (PELIZZOLI, 2013)
Quando nos damos conta da imensa diferença entre os modelos de vida
paleolíticos – espelhados ainda hoje em parte nas comunidades indígenas, ou
nativas ou sustentáveis presentes – é comum uma reação de medo, tamanho
é o desafio do grau de afastamento que nossos corpos, mentes e relações
enfrenta diante dos modelos ou tentativas enraizadas. É necessário contudo
dar-se conta que exatamente o desenraizamento – dito por Heidegger como
68

perda do ser, ou objetificação do ser – é a base da neurose, do sofrimento


psíquico imenso que enfrentamos nas sociedades industriais tomadas pelo
progresso material, urbano, tecnológico sem limites. É chocante perceber –
depois de desmistificar o positivismo evolucionista que está na mente de nossa
sociedade industrial – que nos aspectos mais importantes do viver a vida,
como a felicidade, a qual se liga ao prazer, inserção no ambiente e no grupo,
liberdade e vida boa, centramento, estão fortemente ameaçados e degradados
nos tempos modernos. Não é à toa que surge a necessidade iminente, cultu-
ral, mas muitas vezes neurótica e doentia, de religiões salvíficas, ideologias
idiossincráticas, normose, terapias de toda ordem, e infindáveis mercadorias
como substituto para a dor29.
Na mentalidade dicotômica, o alerta quanto à perda do caráter animal,
ecológico, natural dos sujeitos modernos soa como volta ao passado. Em todo
caso, isto é mais uma forma de defesa e fuga da responsabilidade ecológica
e pessoal que a constatação da degradação exige, e não tanto um medo do
arcaísmo ou da vida “selvagem”, do qual estamos muito longe (a não ser em
comunidades alternativas e do gênero). Jamais se pode voltar ao passado;
contudo, devemos recuperar a sabedoria, tecnologias, sustentabilidade, corpo-
ralidade, ambiência e muito mais do que herdamos, para o qual nossa genética

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e psique está adaptada. O presente compõe-se de uma dialética com a tradi-
ção, a história, a cultura dos povos. Podemos mudar de ideia, alimentação e
modo de habitar de modo até rápido, mas a genética e os processos corporais
e psíquicos mais profundos estão enraizados no ambiente, na biologia, no
inconsciente, com uma temporalidade própria. O tempo do corpo parece ter
sido desligado do tempo da produtividade. Trata-se, assim, de buscar uma
reconexão vital, como diz Macy (2005).
“Toda a filosofia ocidental assenta-se em um mal-entendido sobre o
corpo”. É muito difícil dar uma noção suficiente da verdade desta afirmação
de Nietzsche. Reconhecer que no momento em que perdemos as formas vitais
com fluxo energético biológico livre e harmonioso com a vida, ligado ao
âmbito cultural e ao psíquico enraizado, o tipo de pensamento que criamos
organizadamente, ou melhor, a sua motivação fundante, cheia de neurose,
medo, perda de satisfação e, no caso de muitas formas religiosas, a perda do
chamado céu – daí a necessidade de doutrinas e teologia para reconduzir ao
céu, por outras vias que não a vida real. Segundo autores da Escola de Frank-
furt, a dominação da natureza, o “pensamento da identidade” e o surgimento
do pensamento hegemônico ou modelo cultural dominante no ocidente provém
do medo, não apenas da curiosidade. Medo da mudança, medo da perda, medo

29 Ver “Faces do humano: mascarados, sofredores, consumidores”. PELIZZOLI, 2010. In: SAYÃO, S. Faces
do Humano. EDUFPE: Recife, 2010.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 69

da morte, medo do próprio Self em sua abismal heteronomia30. A perda do


corpo refletiu-se bem na filosofia metafísica, e mais tarde na racionalista, e
no período da ciência moderna decaída em positivismo, com a objetificação
grosseira do corpo como objeto, partes isoladas, átomos, vida mecânica e
físico-químico restrita. E agora a vemos também no imaginário, em religiões
e na virtualidade do mundo tecnológico contemporâneo.
A armadilha da cultura ocidental objetificada que nos domina é muito
bem denunciada por Reich (2003): de um lado caímos no positivismo, mate-
rialismo mecanicismo cartesianismo e tudo o que objetifica o humano e a
potência livre da vida e do inconsciente; de outro, está o espiritualismo, meta-
física, dimensões que fogem da realidade ainda mais, perdendo contato com
o ground, com a vida, sexualidade, Natureza, com as formas de energia aí
colocadas, portanto, com o Self. Ou seja, enquanto balançarmos entre defender
ideais, teorias ou modos de vida materialistas, frios e calculistas, concebendo
o corpo e a vida como matéria composta de pequenas partes como objetos
manipuláveis ou de modo racionalista e funcionalista, por um lado, e por outro
lado defender ideias desencarnadas, mistificadoras, abstratas, anticientificismo,
fundamentalismo, descorporificadas e desconectadas da dor e prazer intensos
da vida, estaremos gravitando entre dois polos neurotizantes que perdem o
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contato real com a pulsação da vida em nós e na natureza.


Para sermos agora mais pontuais quanto ao que se trata de desenraiza-
mento atual, elencaremos aqui alguns pontos fundamentais que são sintomas
e ao mesmo tempo reverberam em mais desenraizamento, o que por sua vez
gera mais sofrimento e perda de contato com a realidade, com a vida.

Exemplos fundamentais e concretos do afastamento do Self, ou


de degradação do humanus

1. Cesarianas e violência obstétrica (nascimento cirúrgico): é talvez


hoje o maior indicador do desenraizamento tanto da mulher no papel de cria-
dora natural quando no seu empoderamento diante do masculino, quanto dos
aspectos de animalidade, sexualidade, corporalidade, intuição e sensibilidade/
fragilidade intensas que um nascimento revela. O lugar das mulheres e seus
saberes neste ato foi usurpado com a impetração da medicina positivista/obje-
tificadora e machista, como representante da “espada” (metáfora da perda da
paridade social e da mãe-natureza, do “cálice” até o neolítico). A profilaxia e
intervenção artificalizante e “purificadora” das cirurgias e hospitalizações para
os atos normais da vida e da morte representam bem o descolamento de tais
práticas em relação aos modos enraizados de vida. As tenebrosas e complexas

30 Veja a obra Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. E Pelizzoli, 2013.


70

implicações da hospitalização, instrumentalização e da imensa violência obs-


tétrica no contexto sensível e fundante do vir ao mundo são boa parte da causa
do sofrimento psíquico atual, traumas, neuroses e outros fatores31. Perguntado
sobre qual tipo de política profiláxica ou terapia em nível social poderia resgatar
a saúde mental das sociedades neuróticas contemporâneas, Stolkiner (2008) e
Odent (1981) afirma: partos naturais e éticos, e com ligação direta e saudável
do bebê com a mãe; bem como o cuidado amoroso e livre na primeira infância.
2. Afastamento do ser humano com o ambiente natural. O enclau-
suramento dos sujeitos nos meios urbanos são verdadeiras prisões, das quais
muitas pessoas que nasceram assim não se dão conta. É notável, porém o
desespero das pessoas para terem férias, ir à praia, beber e banhar-se em água
pura e boa, nadar, pescar, correr, andar por vegetações abundantes, resgatar
escaladas, rios, montanhas, mares, ares e assim por diante. É evidente que
este é um ponto-chave para o resgate da degradação psíquica e do sofrimento
humano. Em muitas tradições, seja grega antiga, seja dos monastérios, ere-
mitas e similares, o sofrimento psíquico, como a loucura, era endereçada ao
resgate do Self na floresta, no retiro, no reencontro com as forças provindas
da natureza e que compõe o corpo humano. Os mitos de Édipo e Orestes são
exemplos típicos, a “pro-cura” na natureza. Habitar ambientes mais naturais,

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com integridade, flora e fauna suficientes, além de terra, não é em absoluto
uma questão de “paisagem”, ou “contato com a natureza”, mas modo de
ser no mundo, conformar sua energia corporal, respirar, encontrar-se com
a vida, a tal ponto que um autor do peso de C.G. Jung (1993) afirmar que é
extremamente difícil uma vida psíquica feliz – e mesmo a superação efetiva
da neurose – desligada da vivência com o ambiente natural.
3. Perda do movimento. O movimento do corpo é a base do mesmo, pois
é a base da natureza, da vida. Movimentar-se perfaz o fluxo energético que
mantém a vida, e gera também a saúde. A dança não é apenas uma instituição
corporal cultural, mas é metáfora do movimento-equilíbrio que perfaz o sen-
tido da energia da vida. A falta de movimento, ou movimentos inadequados,
compromete o prazer, as células, a eliminação de toxinas, o tônus muscular,
enfim, os sistemas do corpo. Mover-se é retomar a força, é criar, renovar, ser
parte ativa do mundo para o qual o animal mamífero semi-símio que somos foi
criado. Pular, correr, andar, nadar, abrir os braços, fazer exercícios, competir,
fazer yoga e tantos outras ações recomendadas hoje pela Saúde não deveriam
ser objeto de saúde-doença, pois são partes integrantes da vida. Á perda do
movimento acompanha a perda da vitalidade e da força física. Hoje, o âmbito
da calculabilidade e do que se chama “segmento do anel ocular”, segundo a

31 Sobre isto leia especialmente a obra de M. Odent (1981) e W. Reich (2003), bem como o filme Renascimento
do Parto I e II.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 71

orgonoterapia (orgonomia), está hiper carregado, provocando dores, perda de


contato efetivo com os sentimentos, desrealização corpórea, estresse, tensão,
sobrecarga de pensamentos e, assim, transtornos mentais de várias ordens,
incluindo aí até a esquizoidia (STOLKINER, 2008). O descuido e abandono do
corpo em seus modos harmoniosos de exercer-se não é uma questão apenas de
enfraquecimento ou atrofia muscular, mas fato psíquico de efeitos desvitaliza-
dores amplos e complexos. Por outro lado, a muscularização artificial e ansiosa
das academias, apesar de ter um lado bom e a evidente busca de recuperação
de vitalidade, pode ser unilateral e até doentia, quando não acompanhada de
um trabalho com as emoções, rigidez deste mesmo sistema muscular nervoso,
criando sujeitos inflados, fortes de um lado e precarizados de outro, ou mesmo
pequenos monstros egoicos que fogem da fraqueza de caráter.
4. Medicalização e doentificação do humano. Se notarmos com atenção,
veremos que todos os procedimentos de resgate da saúde, numa visão de saúde
básica e integrativa, e mais ainda das medicinas antigas, nada mais é do que o
resgate do homem natural, que caminha, bebe água, toma sol, movimenta-se,
come o que vem do ambiente natural e evita coisas artificiais, come menos
coisas cozidas e mais as cruas, massageia seu corpo, coordena respiração e
movimento, come determinadas ervas conforme o que precisa para sentir-se
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melhor, reequilibra suas emoções para ter saúde; resgata a natureza e o cui-
dado com seu corpo, e assim por diante32. As técnicas das medicinas naturais
e integrativas são na sua quase totalidade resgate de dimensões alimentares,
emocionais e energéticas, ou, seja, ambientais, que um ser humano no exer-
cer de seu prazer, ambiência, relações, sexualidade, movimentos, nutrição e
respiração têm automaticamente. Mas a vida tornou-se objeto da biomedicina
cartesiana, a ser dominada e artificializada. A perda do humanus (humus,
ground, enraizamento) reflete-se agora na medicalização e no fato de atacarmos
fracassadamente o que se chama de doenças. Remedia-se uma doença, mas
a doença do desenraizamento avassala corpo, emoções, alma, surgindo das
mais variadas formas. A doença do corpo é a doença da relação ao ambiente
e vice-versa. Sem esta percepção, segue fracassando a biomedicina ocidental.
Acrescente-se que os sujeitos acostumam-se com a normose (aceitação doentia
da falsa normalidade, costume, maioria...), e não pedem mais mudanças, revi-
talização, reorganização, mas uma droga (pílula) que os alivie ou “conserte”
aquele problema pessoal, desvinculado de suas raízes, sistema e ambiente.
5. Aumento alarmante de transtornos mentais. O manual DSM é
imenso, e cresce, não apenas devido à insana medicalização e objetificação
dos corpos e da psique humana, mas porque o nível de aumento de transtornos
é alarmante. É raro encontrar hoje quem não tenha feito uso de psicotrópicos,

32 Cf. Pelizzoli, www.curadores.com.br.


72

ou mesmo quem o toma com frequência. Psicose, neurose e histeria no sentido


clássico, há muito deixaram de abranger os estados mentais de sofrimento psí-
quico, para juntar-se a uma gama de possibilidades, como pânico, ansiedade,
transtornos alimentares, fobias, TDH e muitos outros. Um bom observador
nunca tomará isto isoladamente, mas como um fenômeno social, e lembrará
que em sociedades harmoniosas, enraizadas, integradas, tais acontecimentos
são muito menores. O humano é, grandemente, fruto de suas relações ambien-
tais (sociais); não há como estudar genética hoje sem entrar na epigenética,
o seu grande entorno. Quando colocamos a causa de tais transtornos apenas
no indivíduo, culpamos de modo vitimizador e condenador o que na verdade
tem origem em dimensões familiares, políticas, sociais e biológicas altera-
das. Segundo autores como Capra (1982), o aumento de transtornos mentais
somado a outros fatores de crise representa em geral na história período não
apenas de sofrimento, mas esgotamento do paradigma cultural anterior, anun-
ciando um novo momento de reorganização sociocultural.
6. Perda de dimensões da animalidade. Tais como instinto, posturas e
intuições que o corpo dá como orientação, no uso do olfato, tato, visão, e sen-
sações em geral. Fluxo livre para expressões animais de nossa corporeidade,
em seus gestos, movimentos, gritos, gozo, disputas corpóreas, manifestações

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naturais do corpo como flatos, arrotos, uso das mãos e membros não apenas
de modo disciplinar, ou então desleixado, ou de más posturas. A sociedade
industrial acompanha a sociedade vitoriana, e assim a disciplinarização e con-
trole extremo do corpo, que deve seguir etiquetas de toda ordem, que prendem,
seguram, param, engessam, cortam o movimento, a expressão, tais como rir
demais, chorar demais, gritar, espernear, demostrar sexualidade, comer fora
das regras. Hoje, são desestimuladas as formas de descarga neurogênicas
básicas no mundo animal para livrar-se de tensão e traumas, como o tremor.
Não se pode ter raiva – a raiva se tornou um conceito moral, sendo assim
um símbolo de pessoas más, mais do que uma manifestação de expressões
de liberação, dor, sofrimento humano, energia, sendo que em geral a raiva é
conectada estreitamente ao medo. Por fim, a ideia de civilização buscou matar
o animal que somos, e criar uma normose perigosa, desencarnada do ritmo e
dos movimentos e interações com a natureza. A necessidade de superar esta
perda explica algo do conceito de libido em Freud, terapias como a de Reich,
terapia primal, Bioenergética, catarses, entre outras.
7. A perda de sexualidade (que acompanha diretamente a perda da
animalidade) enquanto potência orgástica livre, não neurótica, por um lado,
e de outro, o afastamento da sexualidade da afetividade/capacidade de sen-
sibilidade e amor. Muito do modelo de relação sexual hoje é movido por
dimensões infantis, pois a criança/adolescente está muito dentro dos adultos
de hoje. Numa situação desta, a potência orgástica e tudo o que envolve a
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 73

mesma no sentido reichiano fica muito comprometida, observando-se uma


relação sexual em que o gozo é contraído, ou doloroso, ou fraco, ou que não
realiza a fusão intensa com a natureza da energia corpórea, e não irradia
energia suficientemente para outras partes do corpo, ou seja, é localizada/
genitalizada; ou mesmo, apresenta casos de desinteresse sexual, insatisfação
constante, ou ainda outro aspecto: a evitação a todo custo da angustia orgás-
tica33. O fluxo energético sexual livre pelo corpo é sentido como altamente
perigoso para muitos sujeitos, pelo fato de estarem altamente encouraçados
no nível muscular-nervoso. Níveis elevados de raiva e medo, ou desânimo
e perda de vitalidade, levam a uma relação sexual incompleta, enfraquecida
ou, por outra dimensão, até sádica ou masoquista. Numa sexualidade assim,
tem-se dificuldade em sentir profundamente, em conectar-se com o outro
num sistema, próprio à relação intensa que é, com afetividade do coração.
Por vezes, pode tratar-se quase de uma masturbação.
8. Perda de autonomia do jovem e desmame deste muito tardio. Muitos
jovens dependem hoje sobremaneira de seus pais, para além da idade de explo-
rar o mundo e fazer sua vida. Se nas comunidades mais arraigadas à terra havia
rituais ou o abandono do lar pelo jovem em direção à maturidade e constitui-
ção de sua família, hoje vemos jovens na casa dos 20 a 30 ainda dependendo
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financeiramente e emocionalmente dos pais. Os casamentos realizados nesta


idade notadamente são fadados na quase totalidade a serem mais conflitivos,
ou de laços frágeis, ou quando são laços intensos estabelecem aliança neurótica
infantil de dependência, como substitutos dos laços e conflitos com os pais.
Algumas separações ocorrem com poucos anos de união, pois em geral o par-
ceiro “não deu” o que o outro queria. Outras, com violência desproporcional. O
gênero homem recebe hoje críticas infindáveis sobre a falta de maturidade para
um compromisso como casamento, bem como pelo uso objetal da mulher34.
9. Perda da dimensão nutricional natural. A nutrição não é apenas
combustível para uma máquina chamado corpo funcionar, é o próprio movi-
mento básico da vida corpórea e do contato com o mundo. Não nos nutrimos
de oxigênio, mas respiramos, o que é um ato vital que envolve o sujeito como
um todo. Não engolimos apenas, mas junto digerimos uma situação e nos
tornamos um com o ambiente ingerido. A dimensão bioquímica dos alimentos
interage diretamente com nossa saúde e equilíbrio dos sistemas vitais. Tudo o
que ingerimos tem um destino metabólico com várias consequências, positivas
ou negativas. Comer e excretar é simbolicamente um ato vital de afirmação
do ser e de liberação, passar por algo de modo encarnado. O modo como
levamos nossa vida corpóreo-emocional é diretamente ligado (influencia e é

33 Ver Reich 2003, e sua obra A função do orgasmo.


34 No Brasil, 1 em cada 4 jovens de 24 a 34 anos mora com os pais – IBGE, 2012.
74

influenciado) pelo modo e qualidade do que ingerimos. Beber água pura e com
PH equilibrado é muito diferente de beber refrigerantes, os quais excitam as
mucosas, sobrecarregam fígado, rins, aumentam o nível de açucares e acidez
no organismo; grande parte de nossa alimentação é excitante, ou pesada, ou
irritante de mucosas, de difícil digestão, empobrecida em termos de nutracêu-
ticos (fibras, vitaminas, minerais etc.), e isto reverbera na ordem emocional de
um indivíduo, notadamente nas crianças. Grande parte de nossa alimentação,
em especial as bebidas, é viciante, como o trigo, açucares, cafés, chocolates,
gorduras vegetais, todos muito danosos para a saúde humana. Uma criança
com distúrbios, muitas vezes pode tê-lo devido ao modelo nutricional adotado,
que compromete sua estabilidade metabólica, corporal e, portanto, psíquica.
10. Higienismo purificacionista, com a perda dos elementos “roots” da
vida. Muitas pessoas, em especial de classe social média ou alta, interagem
não mais com os elementos da natureza e do corpo em sua amplitude; restrin-
gem seu corpo a uma moradia e urbanidade toda regrada e compactada, sem
o que se chama de terra, sujeira (nossa cultura considera muitas vezes sujeira
a natureza, mas não considera a maior sujeira como sendo os elementos quí-
micos que invadem nossa vida pelo ar, alimentos, água, ambiente, produtos
de “limpeza”). Inseticidas e aditivos químicos são usados amplamente e não

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são considerados pelo que são: poluição, sujeira, causadores de doenças, dese-
quilíbrio ambiental. Há uma perseguição neurótica e até alucinatória quanto a
insetos, certos animais, chamados de pragas e transmissores de doenças, como
se tais doenças não fossem gestadas no seio do lixo do consumo e desequilibro
antrópico/ecológico35. Indivíduos hoje são prejudicados em sua psique e em
seus sistemas imunológicos por não mais terem contato com a terra, barro,
folhas, fungos, elementos florestais. Desconsideramos que nosso corpo vem da
terra e precisa de trocas magnéticas, táteis, minerais, energéticas, bioquímicas
com a terra. Os poucos jardins que existem são arremedos trágicos do imenso
cabedal de flora e fauna e geografia que se perdeu. Crianças não podem mais se
lambuzar, engatinhar no chão, tocar, mas devem sentir “nojo”, “tem micróbio”,
terra, mas o mesmo não se aplica a seus doces artificiais e produtos de higiene
cada vez mais cancerígenos e alergênicos. Não há chão, há tapetes sintéticos
(e poluentes) e lajes que vedam o contato com a terra. Há roupas de plástico
(petróleo) que impermeabilizam as trocas da pele com o exterior e compõe a
poeira tóxica das salas fechadas, sapatos de plástico que vedam o magnetismo,
fraudas de plástico, carros de plástico, talheres e copos de plástico, brinquedos
de plástico, civilização de plástico... O purificacionismo é tão mistificador e
aterrador que convence sujeitos a dedetizarem seus lares e edifícios, sem a
mínima sensibilidade do que isto significa para seus familiares, ambiente e

35 Cf. Pelizzoli, 2011 e 2013.


BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 75

trabalhadores da área. Vive-se hoje em “apertamentos” sem natureza, contendo


no máximo algumas quixotescas plantas (as vezes de plástico, índice notável
do “fim da natureza”) e um animal que, se não “passear”, enlouquece. Inserir
roupas, laços, aditivos químicos ou tratar cachorros como gente é considerado
normal. Se algumas pessoas pudessem, impediriam artificialmente os animais
e até as crianças de fazerem cocô e mijar, lamber, cuspir, gritar, latir, rolar na
terra, pisar no barro, tocar em plantas, folhas, pedras, andar descalço. Sabe-
mos hoje que o corpo humano tem mais micro-organismos associados do que
células, ou seja, a epigenética é crucial na vida humana.
11. Objetificação pelo consumo. A objetificação, segundo grandes filó-
sofos como Heidegger, Gadamer e H. Jonas, não é apenas produzir muitos
objetos, mas estabelecer uma relação em que os fins são trocados pelos meios,
e somos instrumentalizados e escravizados por aquilo que passamos a depen-
der demais; a isto acompanha o processo de desumanização, de reificação. O
consumo é uma instituição essencial da vida humana e tem a ver diretamente
com a manutenção da vida e da satisfação das pessoas. Porém, em situações
socioculturais em que o desenraizamento humano é muito grande, e acompa-
nhado de crises da subjetividade, e sofrimento psíquico maior, mais o consumo
se torna válvula de escape para as infelicidades, insatisfações e frustrações.
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Daí o mito grego de Sísifo, a sociedade de consumo oferece sempre algo novo,
ou oferece no objeto específico algo que ele não pode dar, como a satisfação,
portanto, estaremos sempre insatisfeitos e girando a roda da busca sem fim.
A base do modelo urbano e ecológico e suas degradações passa sempre pelo
modelo de consumo. Adotar um consumo sustentável e mais naturalizado é
uma questão não apenas de salvar as cidades, águas, terras e o planeta, como
se sabe, mas de conseguir resgatar os valores e modos de vida mais feliz do
ser humano. Aprender a imunizar-se contra a ansiedade e neurose do consumo
voraz, é igualmente uma questão de saúde psíquica de primeira ordem.
12. Perda da qualidade de vida/expressões da vitalidade. O lazer é algo
fundamental na vida humana. A grande parte do (pouco) lazer que se tem hoje
é voltado para televisão, shoppings, lugares com barulhos estressantes, cine-
mas e comedorias. Ou seja, a fabricação de sujeitos robotizados, aprisionados,
em que muitas vezes o próprio lazer é estressante, amorfo, desvitalizado.
Numa sociedade assim, o descanso em geral é uma pausa na inquietação e
estresse, em que sujeitos não conseguem dormir de fato (sono superficial,
sem qualidade, com pesadelos, preocupações, barulhos...), ou as horas de
sono são deficientes. Muitas pessoas “descansam” na frente de telas, ou então
trocam a noite pelo dia, ou dormem tarde, ou acordam tarde, contrariando
o ciclo circadiano humano. O tempo e encontro da refeição, numa condição
desta, é quase ausente, o que faz aumentar o estresse, problemas digestivos,
uso de fast food (quase tudo é fast: rápido e superficial). Sem este tempo, há
76

menos diálogo, menos encontro, menos convivência familiar e social. Tudo


isto favorece processos depressivos, angustiantes, tristeza excessiva, uso de
drogas e alimentos viciantes, como café, doces, álcool, carboidratos simples,
fumo. O que por sua vez causará doenças e gastos com sistema de saúde com
cifras bilionárias para os países, o que por sua vez faz aumentar impostos, ou
arrochos salariais, numa roda viva. Consume-se mais, cresce o PIB, crescem
junto doenças e degradação, cresce gastos em saúde, sanidade, ambiente; e
assim precisa-se trabalhar mais, correr mais atrás da máquina, e assim girar a
roda cada vez mais intensamente. Polui-se os rios e o ar e a terra, e precisa-se
investir em hospitais, remédios e cirurgias pelas doenças causadas. Aumenta-se
o consumo deletério, festejado na economia como crescimento econômico,
aumentando também proporcionalmente tudo aquilo que degrada nossa qua-
lidade de vida. A perda da qualidade de vida reflete-se também no tempo
passado ou não com a família, filhos e amigos, tempo de brincar, para além
de “dar uma voltinha no parque com a criança”. Sem brincar, tornamo-nos
pesados, sisudos, sérios demais, sem flexibilidade e liberdade, sem “criança”.
13. Enquadramento das relações socioinstitucionais por modelos empre-
sariais de produtividade. Quando uma sociedade fica demasiadamente
dependente das relações de trabalho e consumo, tende a colocar sua autonomia

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sob controle de instituições que dominam mercado e economia, bem como
refletidas na política econômica. Cartéis, megaempresas, corporações (vide
o esclarecedor filme The Corporation) começam a condicionar a vida pri-
vada, determinar e influenciar vontades, ditar padrões, gerar comportamentos,
coletar nossos movimentos na internet, influenciar eleições, criar separação
social (polarização e exclusão), seduzir ao consumo deletério. Ocorre que
tais modelos estratégicos, calculistas, sedutores, exploradores começam a
espraiar-se para as esferas da vida social, tais como família, religião, educa-
ção e cultura em geral; operam por todos os meios para uma intensa sedução
e lavagem cerebral de potenciais clientes. Os comerciais e ações de mídia
penetram hoje do celular todos aparelhos “plugados”, avassaladoramente, da
rua aos banheiros, dos antigos cartazes e cartas ao bombardeio em todos os
programas de TV, cinema, rádio, algoritmos de redes sociais, entre outros.

Por fim

Este é um cenário deveras pesado, do qual muitos querem anestesiar-se


e fugir. Não obstante, só chegaremos ao reequilíbrio e manutenção da vida
humana e ambiental, lutando e vivendo de fato o paradigma bioético, com
ações do local ao global, se adentrarmos com coragem as sombras e lou-
curas contemporâneas para curá-las. O desvio histórico que abriu as portas
da neurose, da insustentabilidade, do desequilíbrio, das pandemias e todo
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 77

tipo de males reais saídos da Caixa de Pandora do capitalismo mundial,


está há muito sofrendo mudanças, por mal e por bem, dentro do próprio
esgotamento do modelo urbano e de crescimento a todo custo que exclui o
ambiente equilibrado e justiça social. Este jogo não tem vencedores, apenas
sobreviventes. Mas a natureza externa e interna, a vida em suas potências,
de que somos manifestação, não permanece no mesmo lugar, e tende à sua
melhor realização e retorno ao equilíbrio básico. Cabe a nós compreendermos
e nos entregarmos à Vida, como tem apontado o olhar ecológico e bioético
como meio de continuação e promoção do cuidado como um todo. Quiçá,
além da ciência e das humanidades, a aposta na criatividade, na arte, na
cultura sustentável, no saber popular e grandes sabedorias da humanidade,
na contemplação da vida, nos enraizamentos na vida natural, na organização
social e de justiça em comunidades possam a partir de tantas manifestações
de promoção da vida e do amor se expandir cada vez mais.
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78

REFERÊNCIAS
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BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 79

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Disponível em: www.ufpe.br/edr.

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DATA SCIENCE:
a bioethical issue of privacy
Osebor Ikechukwu Monday136

The Advancement of information and technology is threatening the human


privacy and the quantity of control over personal data. Data science is a hadoop
discipline and bodies of knowledge, which analyzes big data to providing
meaningful information, for decision-making and solving problems in different
fields. The ethical implication of data set analytics includes invasion of per-
sonal privacy. The invasion of privacy has led to identity theft, which breaches
the privacy ethics. Privacy ethics is a concept in moral philosophy, which
evaluates right or wrongs of human action. Privacy ethics evaluates the use of
personal data, data generation, data processing, dissemination and sharing of
data among organizations. These raises moral question about what ought to be,
for the protection of human privacy. Data science further conjures meta-ethical
questions about value and human dignity. Using the method of philosophical
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analysis, this paper explores the ethical implication of privacy invasion by data
science. The paper concludes that stakeholders in the business of data science
adhere to privacy ethics for the transformation of the business, into actionable
insights and the protection of data for the common good of society.
Data science is one of the scientific advancements in the last 30 years.
The term data science was coined to substitute “computer science” in 1960.
Approximately 15 years later, the term becomes a survey for data processing
method in different applications or fields (BANTON, 2019). Data science is an
interdisciplinary study that mixes experience, programming skills, arithmetic
and statistics for business insights. Data science can be define as follow (a)
“Business intelligence, which is essentially about taking data that the com-
pany has and getting it in front of the right people in the form of dashboards,
reports, and emails”. Decision science is the act of taking or using data to
help companies make decisions (SINGH, 2019).
Knowledge science like Hadoop provides substantial cost advantages
for business organization. Although the traditional data analytics system (data
warehouses and marts) is hard because of differences in functionality, “a price
comparison alone can suggest order-of-magnitude improvements. Rather than
processing and storing vast quantities of new data in a data warehouse, for

36 Rev. Fr, Stephen, C Chukwuma Esq2. Department of Arts and Humanities, Delta State Polytechnic Ogwashi-
Uku PmB 1030, Nigeria. E-mail: osebordarry@yahoo.com or osebormonday1@gmail.com
82

example, companies are using Hadoop clusters for that purpose, and moving
data to enterprise warehouses as needed for production analytical applications”
(BALACHANDRAN; SHIVIKA, 2017).
Data science is a behavioral analytics, which make sense big data, uncover
solution hidden in the data environment, and translate them into tangible busi-
ness worth. The behavioral analytics helps in the advancement of information
and communications technology. However, big data analysis requires a huge
amount of computing resources making adoption costs. Big data technology
is not affordable for many small to medium enterprises (BALACHANDRAN;
SHIVIKA, 2017). Behavioral analytics also challenged with difficulties in data
classification, which could help in problem-solving systems, through machine
learning (LONGBING, 2017). Machine learning uses computer programs that
are able to learn and adapt with no human control, by using algorithms and
arithmetical models to analyze and draw inferences from patterns in data. It
personalizes products data for better understanding of businesses, customers,
and to make better decisions (SINGH, 2019). It also help entrepreneurs to
monitor the buying patterns or behavior of customers and make predictions
based on the information gathered.
However, there are many challenges of data science; it includes the

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problem of methodology in data analytics. Although different measures have
been deployed to mitigate invasion of privacy. These include suppression,
data swapping and synthetic data. Nevertheless, adherence to privacy ethics
seems most practicable and reliable for data protection. This paper explores
the ethical implication of data science: a bioethical issue of privacy. The paper
recommends adherence to privacy ethics by data users would be abatement
for the common good of the society.

Privacy ethics

Privacy ethics is a normative concept deeply rooted in bioethics, legal,


political philosophy and global health traditions. When we talk or think about
privacy ethics (or morals), we think of rules, which distinguishes right and
wrong (MONDAY, 2020a). It justifies behaviors, which ought to accept or
unacceptable. Privacy ethics involves strategies rooted in moral modeling
of behaviors in data analytics system. Although Privacy ethics is not a legal
responsibility but it informs data practitioners about moral choice and respon-
sibility to avoid the invasion of privacy (MONDAY, 2020b).
Privacy can be define as (a) “the right to be let al.one, (b) limited access
to the self, (c) secrecy, (d) control of personal information, (e) personhood and
(f) intimacy” (LUKÁS, s/d). Privacy is an “inviolate personality” (WARREN;
BRANDEIS, 1890). Privacy ethics is a philosophical deontology, which addresses
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 83

the distinctions between private and public life. The debates about human privacy
receive a boost due to technological innovations. “Past technologies relied on
intuitive, heuristic understandings of privacy that have since been shown not to
satisfy expectations for privacy protection” (NISSIN; WOOD, 2018). Privacy
ethics involves moral questions of responsibility. Privacy affirms data processes
or scientists work for the common good of the society.
The framework of privacy ethics is to shape professional codes of
conduct, which help data analytics to fostering progress in data genera-
tion, protection and the rights or privacy of individuals or groups (FLO-
RIDI; TADDEO, 2016). Private data concerns collection, storage and use
of personal information. Misuse or disclosure of data without consent can
“adversely affect an individual’s relationships, reputation, employability,
insurability or financial status, or even lead to civil liability, criminal pen-
alties or bodily harm” (NISSIN; WOOD, 2018). These raise ethical ques-
tions of trust and data governance. The trust and governance of data is the
preservation and security of data against unhealthy usage. It is morally
unjustified to violate the privacy of other or the entirety of fact. The right
to privacy informs individual to control one’s personal information. The
moral question, Is privacy just a privilege that can be revoked any time
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through surveillance of private data? Who has the right to infringe upon
our privacy without consent? How does data science undermine human
privacy? We maintain that identity theft constitutes a risk, thus, a threat
to security and peace co-existence of humankind (LEE; WOLFGANG;
HENRY, 2016). Privacy ethics is a moral responsibility not a binary value
or the monetization of data externally, which is different from the purpose
the data was initially collected (URIA-RECIO, 2020).
The importance of data protection is the “fact that privacy has a very
close connection with human dignity, freedom and independence of the indi-
vidual and it is more and more challenged in the age of the rapid technological
development of the information society” (LUKÁS, s/d). Privacy ethics is not
secrecy, but data obtained from a person or persons should not be exposed
without consent of data owner.
Some may argue that right of privacy does not exist but privacy ethics
frowns at unauthorized access to private data. The right to privacy is the right
to be left alone and to control one’s personal information. We argue that the
right of privacy is built on rights such as self-protection and autonomy. “With
computations ubiquitously integrated in almost every aspect of our lives, it
is increasingly important to ensure that privacy technologies provide protec-
tion that is in line with relevant social norms and normative expectations”
(NISSIN; WOOD, 2018). However, privacy ethics negate common good and
84

communalism. It raises the question of self-importance but inappropriate use


of private data repudiates human dignity (URIA-RECIO, 2020).

Conclusion

Without a doubt, data privacy is multifaceted but protection of data is


necessary because of the ubiquity of the technology-driven environment. Pri-
vacy ethics are codes of conduct or principles, which guide data users. It is a
relevant code of code, which restricting the release of statistical information
about individuals or groups of individuals. We recommend that data scientist
as well as policy markers, grassroots movements, and other stakeholders
adhere to privacy ethics for the common good of society.

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BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 85

BIBLIOGRAPHY
BALACHANDRAN, B. M.; SHIVIKA, P. Challenges and Benefits of Deploy-
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UM BREVE PANORAMA DA
PRODUÇÃO CIENTÍFICA SOBRE
BIOÉTICA E COVID-19 NO BRASIL
Leandro Silva Costa37
Lenina Lopes Soares38
Pablo de Castro Santos39

Contextualização

Em 31 de dezembro de 2019, as autoridades sanitárias locais identificaram


em Wuhan, na China, um elevado número de pessoas diagnosticadas com uma
doença até então desconhecida, que se manifestava inicialmente como uma
pneumonia. Contudo, estudos posteriores revelaram que o patógeno causador é
uma variante genética do Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave
(SARS-CoV), o SARS-CoV-2, e identificado como causador da doença por
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Coronavírus 2019 (COVID-19). Devido à sua alta transmissibilidade, a Orga-


nização Mundial de Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que a
então epidemia causada pelo SARS-CoV-2 era uma emergência de saúde pública
de interesse internacional, o que despertou atenção dos países, da sociedade e
das comunidades científicas. Já em 11 de março de 2020, a OMS declarou a
pandemia do novo coronavírus (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020).
Com sintomatologia inicial semelhante a de uma gripe comum, mas con-
trariamente ao que se acreditava, o Coronavírus é muito perigoso pois possui
transmissão rápida através de partículas de aerossóis, saliva e contato com super-
fícies contaminadas, além de elevada capacidade de mutar e gerar variantes cujas
características e consequências são imprevisíveis e podem produzir inúmeras
sequelas sistêmicas para além das vias aéreas, como no sistema cardiovascular,
podendo causar, dentre outras, a síndrome coronariana aguda e morte súbita,
além de problemas no trato gastrointestinal, com destaque para lesões hepáticas

37 Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre e
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Bioquímica da UFRN e Pós-Doutor pelo Programa de Pós-
-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).
38 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e em Ciências Sociais pela
Universidade Luterana do Brasil, com Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
39 Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande (UFRN). Mestre e Doutor em
Bioquímica pelo Programa de Pós-Graduação em Bioquímica do Centro de Biociências da UFRN. Pós-
-Doutorado em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (ULisboa).
88

e pancreáticas e, ainda, disfunções neurológicas, incluindo o Acidente Vascular


Cerebral (AVC) e Síndrome de Guillain-Barré (SGB) (VINER et al., 2020).
A partir deste novo cenário, o mundo pós-moderno se viu diante de
um antigo e desafiador problema bioético, de saúde pública e de crise civi-
lizatória que ocorrera também há pouco mais de 100 anos, na pandemia por
gripe espanhola em 1918. Entretanto, estamos em um contexto no qual há
dinâmica de trânsito de pessoas numa velocidade bem mais elevada que no
século anterior, além de aumento demográfico em grandes cidades, fatores
que em conjunto contribuem para aumentar o contágio do vírus e ameaçar a
saúde global (SCHMIDT; MEDEIROS, 2020). Neste sentido, os governos,
a sociedade e as instituições científicas e de pesquisa passaram a pautar a
COVID-19 e suas consequências nas agendas das nações, o que gerou interesse
global por discussões de temas conflituosos nos quais a ética e Bioética podem
contribuir em diversos aspectos, em uma perspectiva sistematizada presente
nas escolas e academia e numa perspectiva mais corriqueira em ambientes
informais. Neste sentido, temas como afastamento e isolamento social, uti-
lização de EPIs, higienização de mãos e objetos, lockdown, justiça, controle
governamental, direito de ir e vir, liberdades, alocação de recursos, prioriza-
ção de grupos, auxílio governamental, vulnerabilidade, tratamento precoce,

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medicamentos, vacinas, colapso do sistema de saúde e funerário, tomada de
decisão em situações conflituosas, Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI),
produto interno bruto (PIB), sistema único de saúde (SUS), economia, ética
e Bioética foram e estão sendo intensamente requisitados.
Algumas discussões que permeiam estes descritores estão mais avança-
das, como por exemplo a ineficácia no tratamento da COVID-19 por alguns
fármacos como a ivermectina e hidroxicloroquina, já outros temas, apesar
de serem explorados na literatura, necessitam de maior ampliação em suas
discussões e reflexões, como é o caso da Bioética, uma vez que não houve
tempo suficiente e definições tão claras do conjunto absoluto de conhecimento
sobre os diversos fatores que a relacionam com a COVID-19.
Assim, este capítulo pretende contribuir em alguma medida com a cons-
trução do panorama da produção científica sobre a COVID-19 e Bioética no
Brasil atual. Destaca-se que não é pretensão esgotar todas as possibilidades
de compreensões sobre a temática, posto que este capítulo pretende trazer ao
leitor uma síntese do que tem sido produzido no Brasil relacionado a COVID-
19 e Bioética, por categoria de produção, idiomas utilizados, autorias, regiões,
palavras-chave, classificação das produções por índice Qualis e principais
questões éticas abordadas nas produções.
Este texto é derivado de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida pelos
autores com a finalidade de reunir e divulgar estudos que tratam da pandemia
da COVID-19 em diferentes espaços de divulgação científica como forma
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 89

de agregar conhecimentos em torno de um problema emergencial de saúde


global. Para tal, considera-se que a temática aqui construída é importante por
contextualizar as origens da Bioética, bem como alguns desdobramentos sobre
o tema, para fomentar a compreensão de suas possibilidades no enfrentamento
da pandemia, em seus limites e desafios atuais.

Da origem Bioética às reflexões da produção científica no Brasil

Até o final dos anos 1990, o termo Bioética foi amplamente associado
a Van Rensselaer Potter, principalmente devido ao impacto de duas de suas
obras produzidas na década de 1970, como o artigo Bioethics, science of
survival e o livro Bioethics: bridge to the future. Potter revelava sua preocu-
pação com a produção de uma ciência desumanizada e a necessidade de um
restabelecimento do equilíbrio ecológico e proteção dos recursos naturais, e
tentava estabelecer uma ponte entre as ciências biológicas e a ética (POT-
TER, 1971). Apesar da divulgação do termo Bioética ter se tornado popular
com Potter, o neologismo do termo foi justamente atribuído nos anos 2000
ao professor alemão Paul Max Fritz Jahr, uma vez que, em 1927, fora citado
em seu artigo “Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos
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em relação aos animais e plantas”, na revista Kosmos. Diferente de Potter,


Jahr não atribuía os deveres éticos a uma perspectiva utilitarista, e sim pelo
seu reconhecimento intrínseco, permitindo o surgimento de uma Bioética
integrativa e de uma abordagem pluralista (PESSINI, 2013).
A exemplificação acerca de compreensões sobre a Bioética no parágrafo
anterior serve para ilustrar e nos fazer refletir sobre três aspectos importantes
desde a sua origem. O primeiro são as concepções distintas, mas que tem o
elo em comum na proteção e preservação da vida como bem maior; o segundo
nos ensina que não existe um sentido absoluto e esgotado para a Bioética; já
o terceiro está de forma oculta e é necessário certo esforço de pensamento
crítico para poder enxergá-lo: a soberania de imposição do pensamento bioé-
tico dos países do norte, mais especificamente, neste caso, o norte-americano.
Contrapondo esse saber hegemônico, não no sentido de invalidá-lo, mas de
marcar presença brasileira na discussão, este capítulo busca compreender o
conjunto de informações sobre a Bioética relacionado à COVID-19 através
de nossas raízes, com os nossos olhos e a partir de nossa realidade. De acordo
com Paim e Almeida (1998), esta forma de ética representa um saber crítico
importante para a compreensão da realidade social e auxilia na identifica-
ção de problemas locais (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998). Não obstante,
é importante destacar que, apesar de existirem amplos significados para o
termo Bioética, estes não se esgotam em sua forma mais completa e possuem
validade prima face, cuja soberania é sustentada até que outras considerações
90

morais maiores as confrontem (SANCHES et al., 2020; SCHMIDT; MEDEI-


ROS, 2020). Partindo destas compreensões iniciais e no sentido de provocar
e estimular a reflexão da Bioética para e na maior crise sanitária mundial do
último século e compreender este panorama no Brasil, questionamos: quais
seriam as compreensões sobre Bioética na produção científica no Brasil? Quais
temas estão mais relacionados a COVID-19 e Bioética? Como está o estado do
conhecimento sobre Bioética e COVID-19 no Brasil? Os temas encontrados
refletem os anseios para resolução de nossos problemas e globais?

Percurso metodológico

Este estudo busca a construção do estado de conhecimento acerca do


debate acumulado no Brasil sobre a temática da Bioética no período de pan-
demia de coronavírus, iniciado em 2020. Como referencial teórico do texto,
estão os estudos bibliográficos que vislumbram um levantamento de conhe-
cimentos vigentes numa determinada área temática da produção acadêmica
em um determinado espaço de tempo (MOROSINI, 2015).
A coleta de dados empregou um protocolo que incluiu as fases de plane-
jamento, pesquisa, triagem e análise. As bases de dados Scielo (https://www.

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scielo.br/) e Bvsalud (https://bvsalud.org/) foram utilizadas para pesquisar
artigos científicos de acesso aberto relacionados com os critérios de inclusão
(artigos relacionados à pandemia de coronavírus e que abordam questões
ou reflexões sobre a Bioética). O termo utilizado para a busca, após testes e
metodização nos sistemas de buscas, foi “(bioetica OR etica) AND (corona-
virus OR pandemia OR covid-19)”.
O processo de busca foi realizado em abril de 2021 e iniciou com 214
documentos. Durante a fase de triagem, foram excluídos todos os trabalhos
duplicados, não relacionados à pandemia de coronavírus, em formatos de
preprints ou não publicados e artigos sem a colaboração de pesquisadores
brasileiros ou instituições nacionais. A síntese do processo de seleção dos
documentos pode ser visualizada na figura 1.
O foco deste texto incluiu a análise quantitativa dos seguintes dados:
a) principais informações das publicações (número e tipos de documentos,
idioma, autores, periódicos e região); b) desafios éticos abordados pelos auto-
res, tendo como base de classificação as 14 questões éticas definidas como
essenciais em períodos de pandemia pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) (Obrigações dos governos e da comunidade internacional; Envol-
vimento de comunidade local; Situações de vulnerabilidades particulares;
Alocação de recursos escassos; Vigilância de saúde pública; Restrição de
liberdade de movimento; Obrigações relacionadas a intervenções médicas
para o diagnóstico, tratamento e prevenção de doença infecciosa; Pesquisa
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 91

durante surtos de doenças infecciosas; Uso emergencial de intervenções não


comprovadas cientificamente; Compartilhamento rápido de dados; Armaze-
namento de longo prazo de amostras biológicas coletadas durante surtos de
doenças infecciosas; Manejo de diferenças baseadas em sexo e gênero; Direi-
tos e obrigações dos trabalhadores de resposta de linha de frente; Questões
éticas no envio de trabalhadores estrangeiros de ajuda humanitária) (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2015); e c) princípios e referenciais utilizados
pelos autores para argumentação e reflexão ética.

Figura 1 – Síntese do processo de seleção dos documentos


relacionados a Bioética e pandemia de coronavírus
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Fonte: Elaboração própria.

Reflexões bioéticas e dados atuais sobre à produção científica


sobre Covid-19 no Brasil
Nesta seção, serão apresentados os resultados obtidos após a seleção e pos-
terior sistematização dos trabalhos de autores brasileiros que apresentam uma
discussão Bioética relacionada à pandemia do coronavírus. Foram identificados
inicialmente 214 documentos através da busca nas bases de dados eletrônicas
(SciELO e bvsalud) utilizando a combinação dos descritores e palavras-chave
relatados no tópico de metodologia. Após emprego dos critérios de exclusão na
fase de triagem (artigos duplicados, não relacionados à pandemia de coronavírus,
92

não publicados ou em formato de preprint e sem a colaboração de pesquisadores


brasileiros), 27 artigos foram considerados elegíveis para uma análise aprofundada
com o intuito de identificar apenas aqueles que trazem alguma discussão ética para
a questão-problema levantada. Como resultado, 16 textos foram selecionados para
compor a coleção final para análise de qualidade e extração dos dados descritos
anteriormente em metodologia (Quadro 1). Ao se observar de forma mais atenta o
referido quadro, é possível verificar que, dos 16 documentos que se enquadraram
nos critérios de inclusão, 1 é um editorial, 1 é uma correspondência e 14 são artigos
científicos. Dentre os 15 documentos (artigos e correspondência) sobre COVID-
19 e Bioética produzidos por instituições de ensino superior, 4 (ou 26,6%) foram
produzidos por instituições privadas e 11 (ou 73,3%) por instituições públicas.

Características
Referência Instituição Área de interesse ético
éticas
Centro Universitário Newton
DADALTO, L.; ROYO, M. M.;
Paiva (Belo Horizonte/MG);
COSTA, B. S. Bioética e integridade
Centro Universitário Curitiba Pesquisa durante surtos Bioética da
científica nas pesquisas clínicas
(Curitiba/PR); Universidade de doenças infecciosas proteção
sobre covid-19. Revista Bioética,
Federal de Minas Gerais
v. 28, n. 3, p. 418-425, 2020.
(Belo Horizonte/MG);

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TORRES, A.; FÉLIX, A. A. A.;
OLIVEIRA, P. I. S. Escolhas de
Sofia e a pandemia de COVID-19 Universidade Cândido
Alocação de recursos Principialismo
no Brasil: reflexões bioéticas. Mendes (Rio de Janeiro/RJ)
Revista de Bioética y Derecho,
n. 50, p. 333-352, 2020.
Escola Bahiana de Medicina
BARRETO-FILHO, J. A. S.; e Saúde Pública (Salvador/
VEIGA, A.; CORREIA, L. C. BA); Hospital São Lucas Obrigações relacionadas
COVID-19 e Incertezas: Lições Rede São Luiz D’Or (Aracaju/ a intervenções médicas Principialismo
do Frontline para a Promoção da SE); Universidade Federal de para o diagnóstico, (autonomia do
Decisão Compartilhada. Arquivos Sergipe – Departamento de tratamento e prevenção paciente)
Brasileiros de Cardiologia, v. Medicina,São Cristovão, SE de doença infecciosa
115, n. 2, p. 149-151, 2020. – Brasil; Universidade Federal
de Sergipe (Aracaju/SE)
OLIVEIRA, A. S. V. de; Universidade Federal de
MACHADO, J. C.; DADALTO, Lavras (Lavras/MG); Centro Situações de
Principialismo;
L. Cuidados paliativos e Universitário de Belo Horizonte vulnerabilidades
autonomia do
autonomia de idosos expostos (Belo Horizonte/MG); Centro particulares; alocação
paciente
à covid-19. Revista Bioética, Universitário de Belo Horizonte de recursos escassos
v. 28, n. 4, p. 595-603, 2020. (Belo Horizonte/MG)
NETO, P. K. S. et al. Bioética
e a alocação de recursos nos Universidade Federal de
Principialismo
cuidados paliativos durante a Mato Grosso do Sul (Campo
Alocação de recursos (princípios da
pandemia de covid-19: percepção Grande/MS); Universidade
escassos autonomia e
de profissionais de saúde. Rev. Federal de Minas Gerais
da justiça)
enferm. Cent.-Oeste Min, v. (Belo Horizonte/MG)
10, n. 1, p. 4167-4167, 2020.
continua...
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 93

continuação
Características
Referência Instituição Área de interesse ético
éticas
GIUSTINA, T. B. de A. D.;
Uso emergencial
GALLO, J. H. da S.; NUNES, R.
Conselho Federal de de intervenções
Bioética: ponte para um futuro Não identificado
Medicina (Brasília/DF) não comprovadas
pós-pandemia. Revista Bioética,
cientificamente
v. 28, n. 4, p. 583-584, 2020.
NOHAMA, N.; SILVA, J. S. da;
Universidade Federal do
SIMÃO-SILVA, D. P. Desafios Ética da
Paraná (Curitiba/PR); Genitore Obrigações dos governos
e conflitos bioéticos da responsabilidade;
Guarapuava (Guarapuava/ e da comunidade
covid-19: contexto da saúde Bioética global
PR); Instituto de Pesquisa do internacional
global. Revista Bioética, v. (Potter)
Câncer (Guarapuava/PR)
28, n. 4, p. 585-594, 2020.
CASTRO-SILVA, I. I.; MACIEL, J. Resoluções
A. C. Panorama de pesquisas com normativas
Universidade Federal do Pesquisa durante surtos
seres humanos sobre covid-19 do Conselho
Ceará (Sobral/CE) de doenças infecciosas
no Brasil. Revista Bioética, v. Nacional de
28, n. 4, p. 655-663, 2020. Saúde
Obrigações dos governos
SANCHES, M. A. et al. Pontifícia Universidade
e da comunidade Principialismo;
Perspectivas bioéticas sobre Católica do Paraná
internacional; direitos Bioética social;
tomada de decisão em tempos (Curitiba/PR); Pontifícia
e obrigações dos utilitarismo;
de pandemia. Revista Bioética, Universidade Católica do
trabalhadores de resposta personalismo
v. 28, n. 3, p. 410-417, 2020. Paraná (Londrina/PR)
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de linha de frente
HARAYAMA, R. M. Reflexões
sobre o uso do big data em
modelos preditivos de vigilância Universidade Federal do Oeste Vigilância de Bioética da
epidemiológica no Brasil. Cad. do Pará (Santarém/PA) saúde pública proteção
Ibero Am. Direito Sanit. (Impr.),
v. 9, n. 3, p. 153-165, 2020.
SOROKIN, P. et al. Datos en Pesquisa durante surtos
tiempos de pandemia: la urgencia de doenças infecciosas; Declaração
de un nuevo pacto. Reflexiones Universidade Federal do vigilância de saúde universal de
desde América Latina y el Caribe. Paraná (Curitiba/PR) pública; obrigações Bioética e direitos
Revista de Bioética y Derecho, dos governos e da humanos
n. 50, p. 221-237, 2020. comunidade internacional
NEVES, N. M. B. C.; BITENCOURT,
F. B. C. S. N.; BITENCOURT, Universidade Salvador
A. G. V. Ethical dilemmas in (Salvador/BA); Fleury
Alocação de recursos Principialismo;
COVID-19 times: how to decide Medicina e Saúde (São Paulo/
escassos utilitarismo
who lives and who dies? Revista SP); Hospital A.C.Camargo
da Associação Médica Brasileira, Cancer Center (São Paulo/SP)
v. 66, p. 106-111, 2020.
NACUL, M. P.; AZEVEDO, M. A. The
difficult crossroads of decisions at
COVID-19: how can the deontology Universidade do Vale dos
implicit in Evidence-Based Medicine Sinos (São Leopoldo/ Alocação de recursos Principialismo;
help us to understand the different RS); Hospital de Pronto escassos deontologismo
attitudes of doctors at this time? Socorro (Porto Alegre/RS)
Revista do Colégio Brasileiro
de Cirurgiões, v. 47, 2020.
continua...
94

continuação
Características
Referência Instituição Área de interesse ético
éticas
NORA, C. R. D. Conflitos bioéticos
Universidade Federal
sobre distanciamento social em Restrição de liberdade Principialismo;
do Rio Grande do Sul
tempos de pandemia. Revista de movimento Bioética social;
(Porto Alegre/RS)
Bioética, v. 29, n. 1, 5 abr. 2021.
SCHVEITZER, M. C.; THOME,
B. C. Research ethics and
Universidade Federal de Alocação de recursos
resource allocation in times of Principialismo
São Paulo (São Paulo/SP) escassos
covid-19. Revista Bioética,
v. 29, n. 1, 5 abr. 2021.
FREITAS, C. A. et al. Medical
Universidade Federal de Declaração
students in the COVID-19 pandemic Direitos e obrigações dos
Pernambuco (Caruaru/PE); universal de
response in Brazil: ethical trabalhadores de resposta
Universidade Federal de Bioética e direitos
reflections. Revista Brasileira de de linha de frente
Pernambuco (Recife/PE) humanos;
Educação Médica, v. 45, n. 1, 2021.

Fonte: Elaboração própria.

As principais informações dos documentos selecionados nesta revisão


(categoria de produção, idioma, número de autores brasileiros e colaboradores
e região) podem ser visualizadas na Tabela 1. Quanto aos autores, há um total
de 46 pesquisadores brasileiros distribuídos nos 14 documentos, sendo que

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em dois destes tem-se a colaboração de pesquisadores estrangeiros, o que
permite inferir a presença de uma transdisciplinaridade, característica inerente
da Bioética, uma disciplina em construção pautada a partir da valorização
da diversidade e integração de conhecimentos e profissionais de diferentes
especialidades, especialmente quando esta se relaciona com uma temática tão
ampla como a pandemia atual (SANCHES et al., 2020).

Tabela 1 – Principais informações coletadas dos artigos selecionados


durante o processo de triagem e análise dos dados coletados
Gênero textual/acadêmico Idioma principal* Autores Região**
Artigo Português Autores brasileiros Sudeste
14 13 46 7
Editorial de revista Inglês Colaboradores internacionais Sul
1 2 (10) 16 6
Correspondência Espanhol Nordeste
-
1 1 (9) 4
Centro-oeste
- - -
1
Norte
- - -
1

*8 artigos publicados originalmente em português também se encontram disponíveis em versões


em inglês e espanhol.
** 3 artigos apresentam colaboração entre pesquisadores de regiões distintas.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 95

A produção de conhecimento científico sobre essa temática no Brasil está


vinculada principalmente a instituições das regiões Sudeste e Sul, com 7 e 6
colaborações, respectivamente, seguidos pelo Nordeste com 4 instituições
e, em menor escala, por centros de pesquisa do norte (1) e centro-oeste (1).
As palavras-chaves dos artigos e suas recorrências são apresentadas na
figura 02 em modelo de nuvem de palavras. Percebe-se claramente que as
palavras mais utilizadas pelos autores estão diretamente relacionadas à temá-
tica desta pesquisa: Bioética, infecções por coronavírus, ética e pandemia.
Outras palavras-chave como “justiça”, “decisão” e “recursos” também são
identificadas com frequência, e nos provoca no sentido de que provavel-
mente há uma maior necessidade de compreensões acerca destes termos por
se relacionarem aos principais documentos norteadores da Bioética, em que
se defende um processo rigoroso de análise ética em situações particulares,
as quais devem servir como ferramenta em processos de tomadas de decisão
por governos e instituições em tempos de crise de saúde e escassez de recur-
sos. Outra possibilidade que podemos elucubrar é que estas palavras podem
ser o reflexo da busca por respostas às necessidades de garantia de direitos e
recursos para prover o sustento no momento da maior crise sanitária mundial
do último século, como também refletem o agravamento de problemas sociais,
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econômicos, políticos e humanitários, o que se dá primordialmente a partir da


identificação e aplicação de princípios relevantes como o da justiça, tanto no
sentido de equidade e distribuição justa de recursos e oportunidades como no
sentido de justiça processual, o que se aproxima a um justo processo de tomada
de decisões importantes (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2015).

Figura 2 – Nuvem de palavras-chaves dos artigos selecionados durante a pesquisa

Fonte: Elaboração própria.


96

No que tange à qualidade do conhecimento produzido no Brasil sobre


COVID-19, à Bioética e à disseminação do debate além de nossas fronteiras,
foram analisadas as colaborações internacionais, o idioma das publicações e o
perfil das revistas em que os trabalhos foram publicados. Apenas dois documentos
foram desenvolvidos em parceria com pesquisadores estrangeiros, um editorial de
revista com a participação de um pesquisador europeu e um artigo internacional
com a presença de 15 profissionais de diferentes países da América Latina, cujo
objetivo foi discutir a contribuição das questões éticas abordadas no uso de tec-
nologias da informação neste período de pandemia em uma perspectiva regional
(SOROKIN et al., 2020). Apesar desse baixo índice de cooperação internacional,
grande parte dos documentos estão disponíveis em idiomas estrangeiros como
o espanhol e o inglês, o que proporciona maior visibilidade e difusão do debate
gerado nas pesquisas nacionais com vistas a atingir a comunicação internacional.
Apesar de interessante, a cooperação internacional e o idioma da publica-
ção não são suficientes para se definir de forma precisa o padrão de excelência
da pesquisa científica, sendo necessária a obtenção de outras informações,
como a qualidade do veículo de divulgação do trabalho. Nesse sentido, algu-
mas informações importantes também foram coletadas acerca dos periódicos
e são mostradas na tabela 2. A maior fonte de publicação de trabalhos sobre

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Bioética e COVID-19 para os autores brasileiros é a Revista Bioética (8 artigos
publicados), um periódico de publicação trimestral e idealizado pelo Conselho
Federal de Medicina. É importante ressaltar que a revista publica seus artigos
em três idiomas (português, inglês e espanhol) o que contribui para tornar o
debate mais relevante no cenário mundial, aumentando consideravelmente a
possibilidade de futuras citações e compartilhamento de conhecimento.
Destaca-se também, dentre os veículos de divulgação científica, com
dois artigos publicados, a Revista de Bioética y Derecho, o único periódico
internacional da lista, associado à Universidade de Barcelona. Outras seis
revistas nacionais que não tem a Bioética como escopo central contribuíram
com a publicação de trabalhos relacionados ao tema de interesse deste artigo:
Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Revista Brasileira de Educação
Médica, Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Revista de Enfermagem do
Centro Oeste Mineiro, Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário e
Revista da Associação Médica Brasileira.
Também pode-se observar, na tabela 2, a classificação dos periódicos
observando-se o índice Qualis para o quadriênio 2017-2020, utilizada pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para
avaliação dos veículos de divulgação científica dos programas de pós-gradua-
ção brasileiros, em que as revistas com maior impacto em termos de citações
na academia nacional e internacional e com os melhores índices de produção
e disseminação do conhecimento são classificadas dentro do extrato A (A1,
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 97

A2 e A3). Visto que a grande maioria dos artigos selecionados (10) foram
publicados em revistas classificadas como com Qualis A, especificamente na
Revista de Bioética e na Revista de Bioética y Derecho, podemos inferir que o
conhecimento produzido em nessas instituições brasileiras vem contribuindo
com a inserção da pesquisa local no debate científico global.

Tabela 2 – Informações dos Periódicos responsáveis pela publicação dos artigos


selecionados durante o processo de triagem e análise dos dados coletados
Periódico País Qualis CAPES Nº de publicações
Revista Bioética Brasil A2 8
Revista de Bioetica y Derecho Espanha A3 2
Arquivos Brasileiros de Cardiologia Brasil B1 1
Revista da Associação Médica Brasileira Brasil B1 1
Revista de Enfermagem do Brasil B1 1
Centro Oeste Mineiro (RECOM)
Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário Brasil B2 1
Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Brasil B2 1
Revista Brasileira de Educação Médica Brasil B2 1

Fonte: Elaboração própria.


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Após reconhecida a qualidade da produção brasileira sobre Bioética e


COVID-19, outros questionamentos precisam ser respondidos com a intenção
de desvelar o real interesse dos pesquisadores do país sobre o tema aqui dis-
cutido e as compreensões e bases referenciais destes sobre a Bioética. Em um
primeiro momento, todos os artigos selecionados passaram por uma análise
aprofundada com vistas a identificar os aspectos éticos abordados pelos autores
durante a discussão da questão-problema levantada. Para tanto, foi necessário
estabelecer categorias que pudessem auxiliar na compreensão do que está por
trás dessas discussões éticas, o que foi possível tomando-se como referência o
documento publicado pela OMS intitulado Global health ethics: key issues, que
define os principais desafios na prática de ética em saúde em uma perspectiva
de saúde pública global.
Das 14 áreas de interesse ético consideradas essenciais pela OMS, 9
foram abordadas pelos pesquisadores brasileiros, com contribuições relevantes
para o debate científico e o processo de tomada de decisão por governos e
equipes de saúde: alocação de recursos escassos; obrigações dos governos e
da comunidade internacional; pesquisa durante surtos de doenças infecciosas;
vigilância de saúde pública; direitos e obrigações dos trabalhadores de resposta
de linha de frente; situações de vulnerabilidades particulares; obrigações rela-
cionadas a intervenções médicas para o diagnóstico, tratamento e prevenção
de doença infecciosa; uso emergencial de intervenções não comprovadas
cientificamente; e restrição de liberdade de movimento (Tabela 1).
98

A principal preocupação ética publicada no cenário científico brasileiro


para a pandemia de COVID-19 é de longe a alocação de recursos escas-
sos. Dentro desse cenário percebe-se claramente nos artigos o interesse dos
autores em trazer reflexões sobre o equilíbrio entre as considerações de uti-
lidade e equidade na distribuição de recursos (NACUL; AZEVEDO, 2020;
NETO et al., 2020; NEVES; BITENCOURT; BITENCOURT, 2020), a aten-
ção às necessidades das populações vulneráveis (OLIVEIRA; MACHADO;
DADALTO, 2020) e as responsabilidades de governos e profissionais de saúde
nesse debate (TORRES; FÉLIX; OLIVEIRA, 2020).
Como principais contribuições nessa área, Torres, Felix e Oliveira
(2020) afirmam que o debate ético e objetivo é essencial para definição
de critérios mais justos nas tomadas de decisões para alocação de recursos
escassos num cenário pandêmico e que atenção especial deve ser dispensada
aos profissionais responsáveis por estas decisões. Nesse mesmo contexto, o
artigo publicado por Neves, Bitencourt e Bitencourt (2020) ressalta a impor-
tância de diretrizes e protocolos bem definidos baseados em valores éticos
determinados com o objetivo de promover uma alocação de recursos mais
justa. Entretanto, os autores afirmam que mesmo um protocolo bem defi-
nido não garante sua aplicabilidade nem sua adequação de uso, o que leva à

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sugestão do uso de inteligência artificial como estratégia auxiliar (NEVES;
BITENCOURT; BITENCOURT, 2020). Porém, para Hulsbergen et al. (2020),
mesmo a pandemia confrontando as equipes de saúde diante de dilemas
éticos profundamente difíceis, não há algoritmo isolado capaz de orientar
decisões de forma completa e que pondere entre beneficência e justiça em
situações exíguas, ainda que, para Sanches et al. (2000), “algoritmos éticos”
não impedem conflitos e correm o risco de levar a intervenções impertinentes
ou mesmo injustas (HULSBERGEN et al., 2020).
As obrigações dos governos e da comunidade internacional (NOHAMA;
SILVA; SIMÃO-SILVA, 2020; SANCHES et al., 2020; SOROKIN et
al., 2020) e a pesquisa durante surtos de doenças infecciosas (DADALTO;
ROYO; COSTA, 2020) também aparecem como área de interesse ético para
os pesquisadores brasileiros, sendo cada uma das temáticas discutida em 3
artigos. Dentro das discussões sobre as obrigações de governos, destaca-se
o debate sobre o Brasil e a sua dificuldade de enfrentamento da pandemia
agravada pelo uso de estratégias não baseadas em evidências científicas e em
referenciais éticos adequados, como a ética da responsabilidade e a Bioética
global, consideradas pelos autores como essenciais para o enfrentamento do
problema (NOHAMA; SILVA; SIMÃO-SILVA, 2020).
Outro debate importante e atual no cenário internacional versa sobre
o uso e prescrição de medicamentos em período de pressão pandêmica e
ausência de evidências para seu uso, abordado em correspondência publicada
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 99

pelo periódico “Arquivos Brasileiros de Cardiologia”. Os autores apresentam


uma breve reflexão sobre a necessidade de um médico com perfil profissio-
nal voltado para uma tomada de decisão compartilhada com os pacientes e
atualizado quanto aos conhecimentos científicos discutidos pela comunidade
academia (BARRETO-FILHO; VEIGA; CORREIA, 2020).
É importante destacar que cinco temas de interesse definidos pela OMS
não foram trazidos para o debate pelos pesquisadores brasileiros até o presente
momento (envolvimento de comunidade local, compartilhamento rápido de
dados, armazenamento de longo prazo de amostras biológicas coletadas durante
surtos de doenças infecciosas, manejo de diferenças baseadas em sexo e gênero
e questões éticas no envio de trabalhadores estrangeiros de ajuda humanitária).
Essa lacuna de estudos pode ser interessante, visto que a triagem de novos
desafios éticos e a exploração de temáticas pouco investigadas também é uma
oportunidade para os bioeticistas contribuírem com o debate e a produção de
novos conhecimentos em uma pandemia ou emergência pública de saúde.
Todos os artigos selecionados também trouxeram contribuições impor-
tantes quanto aos referenciais éticos e princípios essenciais para um debate
justo e necessário para o enfrentamento da pandemia. Para sustentar e jus-
tificar os discursos éticos, foram usadas desde correntes bioéticas como o
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principialismo, Bioética social, utilitarismo, personalismo, Bioética global,


Bioética da proteção e ética da responsabilidade; a documentos balizadores
como a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos e códigos de
ética médicos e de estudantes de medicina.
O principialismo aparece como a principal corrente Bioética nas dis-
cussões sobre a pandemia, sendo considerado essencial tanto para o debate
ético em tomadas de decisões médicas (NACUL; AZEVEDO, 2020) e de
profissionais de áreas específicas como a paliativa (NETO et al., 2020)
quanto para a garantia da autonomia dos direitos de pessoas em situação
de vulnerabilidade (DADALTO; ROYO; COSTA, 2020). Entretanto para
alguns autores, os princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e
justiça não são suficientes para o debate, sendo necessária, em alguns casos,
a hipervalorizarão de um desses princípios, como no caso da autonomia do
paciente (OLIVEIRA; MACHADO; DADALTO, 2020) ou até mesmo o uso
de outras correntes, como a Bioética social, produzida na América Latina,
que tem a dimensão social como principal componente e que se justifica no
contexto da COVID-19 pela necessidade de favorecimento de grupos sociais
mais vulneráveis, excluídos e vulnerabilizados (SANCHES et al., 2020),
além da construção de justificativas éticas no âmbito da saúde coletiva, como
aquelas trazidas em um dos estudos que buscou fazer reflexões acerca do
conflito entre o respeito às medidas de distanciamento social e a liberdade
individual (NORA, 2021).
100

Considerações finais

Nestes tempos obscuros para a humanidade, de ameaça à saúde glo-


bal, quiçá para a manutenção e sobrevivência da espécie humana na terra, o
somatório de conhecimento produzido em torno da ética e Bioética se torna
uma condição sine qua non para o enfrentamento da pandemia de forma res-
ponsável, humanizada e segura, sob o risco de colocar governos, sociedade
e cada ser humano em uma condição de vulnerabilidade maior. A partir das
provocações iniciais deste texto, e para responder à primeira pergunta sobre
as compreensões bioéticas da produção científica no Brasil, percebe-se que a
maioria das questões bioéticas relacionadas à COVID-19 estão amparadas no
principialismo, presente em decisões que relacionam ética e em questões de
saúde, mesmo com seus limites, além de contar com as correntes da Bioética
social, o utilitarismo, o personalismo, a Bioética global, a Bioética da proteção
e ética da responsabilidade, e encontram importantes documentos balizadores
como a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), os
códigos de ética médicos e de estudantes de medicina.
Os temas mais relacionados à COVID-19 e Bioética, foram Bioética,
infecções por coronavírus, ética e pandemia, além de justiça, decisão e recur-

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sos. Já as indagações sobre o estado do conhecimento dessas temáticas refle-
tem os anseios de nossos problemas e globais, pois identificamos produções
científicas com Qualis (extrato 2017-2020) entre B2 e A2, predominantemente
vinculados a universidade públicas, no entanto, observa-se ainda uma hege-
monia dos saberes bioéticos oriundos dos países do norte, com destaque para
o principialismo em 50% da produção científica analisada, muito arraigada na
forma de pensar uma Bioética engessada que sabidamente é incapaz de dar
conta dos problemas dos países em desenvolvimento. Não obstante, outros
temas frequentemente aparecem em conjunto à corrente principialista na busca
de responder questões não contempladas por esta corrente. Destaca-se ainda
que temas importantes como alocação de recursos, justiça social, Bioética
da proteção e direitos humanos foram encontrados e se aproximam mais das
necessidades dos países historicamente explorados pelo capital.
É importante destacar que, para lutar contra o COVID-19, é necessário
compreender o seu contexto histórico, social e epidemiológico de forma mais
ampla e considerar as características distintas entre os pacientes, como por
exemplo as diferentes comorbidades como hipertensão, obesidade, câncer e os
seus graus de afecção. De forma complementar, o planejamento para vencer
esta pandemia não deve estar apenas na condução dos países ricos, conside-
rados desenvolvidos, uma vez que, para milhões de pessoa mais pobres no
mundo, alguns outros problemas potencializam o agravo da COVID-19, como
a fome, condições de exploração da mão de obra humana, falta de moradia,
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 101

de água potável para beber, violência, má distribuição de renda, desigualdade


social e baixo grau de escolarização.
É necessário enxergar este grave cenário para além da pandemia e consi-
derar a ampliação do seu ponto de vista, talvez a considerando uma sindemia
ou misdemia. Nesse sentido, a produção de conhecimento dos países em
desenvolvimento pode auxiliar no balizamento dos governos, que têm o dever
moral, ético e bioético de eliminar as estruturas dificultadoras do acesso aos
serviços de saúde, educação, moradia e alimentação pelas populações mais
carentes. Por fim, os estados devem investir em projetos e políticas públicas
de forma urgente, para reverter as desigualdades como forma de proteger a
sociedade de outras doenças futuras, em especial de outros patógenos que
se desenvolvem em espécies selvagens, muitas vezes utilizadas como única
alternativa de alimento, ou que podem surgir como resultado da mudança
climática e desmatamento e destruição do meio ambiente. Se continuarmos
a enfrentar a COVID-19 pensando somente no vírus, estaremos, conforme
diz a expressão popular, “enxugando gelo”.
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102

REFERÊNCIAS
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CONFLITOS
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A FRACA DISTRIBUIÇÃO
DE ÁGUA POTÁVEL:
uma análise em torno das
cidades Moçambicanas
Trindade Filipe Chapare40
Ricardo de Amorim Cini41
Marta Luciane Fischer42

Com o crescimento exponencial da população e o fenômeno de mudanças


climáticas, os especialistas advertem para uma eminente crise de água. Em
muitos países do terceiro mundo, dos quais Moçambique faz parte, a maior
parte da população é sujeita a consumir água não tratada, diretamente asso-
ciada à doenças causadas pelo seu consumo. Esta situação resulta na elevada
taxa de mortalidade da população. Para demarcar sua valorização, as Nações
Unidas emitiram uma Declaração Universal dos Direitos da Àgua em 1992 e
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declararam o dia 22 de março como Dia Mundial da Água. A questão que se


coloca não é a finitude da água no mundo, mas sim as formas da sua utilização
que levam a uma aceleração e perda de qualidade, especialmente nas regiões
intensivamente urbanas. Em Moçambique, a rede de distribuição de água do
Fundo de Investimento e Património de Abastecimento de Água (FIPAG)
encontra-se em estado de degradação em muitos bairros. A maioria das suas
tubagens estão expostas ao ar livre, contribuindo para a fácil destruição por
vandalismo ou falta de cuidados, além da ausência de manutenção por parte
do FIPAG, proporcionando deste modo a contaminação da água.
A água é vital e de estrema importância para a saúde do ser humano, indis-
pensável aos seres vivos, além de ser suporte essencial aos ecossistemas. Ela
interliga todos os seres vivos através do seu ciclo natural. Portanto, é necessário
frisar que seja bem tratada para o consumo, a fim de não provocar doenças. O
crescimento populacional fez a procura pela água cada vez mais acentuada, visto
que o processo de expansão urbana e industrial provocaram aumento na demanda
pelos serviços de abastecimento. Sendo assim, o desenvolvimento dos recursos
hídricos não poderia se desassociar da conservação ambiental, já que na essência
envolve a sustentabilidade do homem no meio natural (TUNDISI, 2003).

40 Geógrafo e doutor em Humanidades. E-mail: chapare.trindade@gmail.com


41 Doutorando em Políticas Públicas pela UFPR. Mestre em Bioética pela PUCPR. E-mail: riicardo.cini@
hotmail.com
42 Doutora em Zoologia, Docente do Curso de Ciências Biológicas e Pós-Graduação em Bioética da PUCPR.
E-mail: marta.fischer@pucpr.br
108

O Ministério da Saúde de Moçambique, através do diploma Ministerial


nº 180/2004 de 15 de Setembro, definiu a Água Potável como “aquela que é
própria para consumo humano, pelas suas qualidades organolépticas, físicas,
químicas e biológicas” (MOÇAMBIQUE, 2004, p. 367). A água é o mais
importante elemento para a vida humana, que compõem de 60 a 70% do nosso
peso corporal, regula a nossa temperatura interna e é essencial para todas
funções orgânicas. Portanto, é importante salientar que o abastecimento deste
recurso precisa estar ausente de qualquer contaminação e oferecer nenhum
perigo a quem venha consumi-lo, seja este de caráter microbiológico, físico
ou químico. Qualquer que seja o perigo a oferecer pode ter efeitos graves na
sobrevivência da vida, e o combate deve ser de atenção prioritária.
O abastecimento da água consumida ao nível das cidades moçambicanas
esta sob a gestão do Fundo de Investimento e Património de Abastecimento de
Água (FIPAG), órgão que vela pela gestão da água em todo território nacional.
Porem, na sua maioria, os equipamentos usados desde a fonte de captação até a
estação de tratamento de água são muito antigos e a manutenção não é frequente.
Sendo assim, sabe-se que a ausência de equipamentos modernos e a fraca
manutenção são fatores que têm determinado a má qualidade da água, sem
contar a distribuição irregular em quase todos os bairros das cidades moçam-

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bicanas. Em alguns casos, a água distribuída junto à presença de pequenas
partículas e uma cor escurecida. Embora não seja o único meio de transmissão
de moléstias, a água não tratada pode provocar várias doenças, tais como as
diarréicas (cólera, desenteria), hepatite, a mebiasse, micose, bilhargiose, entre
outras. No âmbito doméstico, seja em áreas urbanas ou rurais, destaca-se
especialmente a falta de acesso a quantidades e qualidade suficientes. Ainda,
a insuficiência da água provoca esgotamento sanitário, sendo importante
fomentar hábitos de higiene que não tragam problemas ao meio ambiente.
A base do desenvolvimento passa pela implantação de estruturas bási-
cas, da mudança de paradigma ambiental e preocupação ética, a fim de que
continue haver disponibilidade de água potável para todos e a segurança do
funcionamento das fontes nas comunidades seja garantida. As demandas da
natureza e da população precisam ser ouvidas pelos interesses políticos para
que a comunicação seja crítica e participativa (FISCHER et al., 2018). Estas
são formas chaves para o combate a pobreza, a fome e as mazelas que impe-
dem a sobreviência. Sendo assim, objetivou-se trazer uma reflexão em torno
da fraca disponibilidade de água potável nas cidades moçambicanas e seus
efeitos à saúde global e da população.

A (in)disponibidade de água potável

Este milênio apresenta o grande desafio de evitar a falta de água potável ao


consumo humano. Um estudo da revista Science no início do século XXI mostrou
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 109

que aproximadamente 2 bilhões de habitantes sofrem com a escassez hídrica no


mundo. Além disso, estima-se que em breve poderá faltar água para irrigação em
diversos países, principalmente nos mais pobres como Moçambique. Os continen-
tes mais atingidos pela falta de água são a África, Ásia Central e o Oriente Médio.
Estima-se que 13% das terras aráveis no mundo são irrigadas, consumindo
cerca de 1.400.000 milhões de metros cúbico de água por ano (FAO, 1974),
enquanto que o consumo anual correspondente aos abastecimentos domésti-
cos é quase 20 milhões de metros cúbicos em todo o mundo. A agricultura é
o maior utilizador de água, sendo a irrigação responsável por cerca de 80%
de consumo mundial, sem contar com a água proveniente das precipitações
(utilizada directamente). As utilizações de água na agricultura que não se
relaciona com a irrigação correspondem ao consumo relativamente pequeno.
Na produção de alimentos os fatores limitantes são a falta de tecnologias
melhoradas, como é o caso de pequenos sistemas de regadio para o aprovei-
tamento da água dos rios que correm pelo País.
As condições de acesso à água potável são muito desiguais à escala mun-
dial. Mais de 2000 milhões de indivíduos não dispõem de água potável em
quantidades suficientes/satisfatórias. Nos países em via de desenvolvimento,
como é o caso de Moçambique, as mulheres e crianças gastam, em média, cerca
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de 8 horas por dia para procurar este importante recurso. Diariamente, se extrai
dos lagos, dos poços e dos rios obstruídos por diques mais de 7 mil milhões de
litros de água doce, repartida por três principais destinos: indústria, agricultura
e uso doméstico. O restante é armazenado em barragens para futura utilização.
Entretanto, nem todas as regiões do mundo dispõem da mesma quan-
tidade e qualidade de água (MOTA; VERÍSSIMO, 1995, p. 260). Com o
aumento populacional, o desenvolvimento urbanístico, a expansão industrial,
associado a alterações climáticas no globo, fazem com que este recurso se
torne cada vez mais escasso no mundo. Nesse sentido, o êxito da execução de
uma política de água que atende aos interesses de uma colectividade pressupõe
a existência de organização (CUNHA, 1990, p. 60).
A maioria das comunidades e aldeias não tem acesso a fontes de água
melhorada, sendo que alugumas se encontram a grandes distâncias da fonte mais
próxima (aquela que é adequada para o consumo e que normalmente obtêm-
-se das torneirs, fontanários e poços protegidos). Em Moçambique, 92% dos
habitantes não tem água potável. Comparando a situação entre as zonas rurais e
urbanas, vê-se que menos de 1% das famílias das zonas rurais têm água potável,
enquanto nas zonas urbanas, 32% das famílias dispõe deste líquido (MAE, 2005).
No entender de Afonso (1998, p. 67), a presença de certas substâncias na
água, em teores excessivos, pode ter consequências nocivas para a saúde das
comunidades. Apesar das reservas subterrâneas oferecerem água de qualidade,
boa para o consumo, esta encontra-se em quantidades limitadas. Se a água vem
110

de grandes profundidades, pode servir para o consumo humano sem tratamento


prévio. As águas que vêm de profundidades reduzidas contêm maior teor de
substâncias orgânicas que, para além de influenciarem negativamente o seu
paladar, podem provocar doenças na razão do seu consumo.
Na perspectiva de Lencastre (1990), a água pura (H2O) é um líquido
formado por moléculas de hidrogênio e oxigênio. Na natureza, ela é com-
posta por gases como oxigênio, dióxido de carbono e nitrogênio, dissolvidos
entre as moléculas. Também fazem parte desta solução líquida sais, como
nitratos, cloretos e carbonatos; elementos sólidos, como poeira e areia podem
ser carregados em suspensão. Outras substâncias químicas dão cor e gosto
à água. Íons podem causar uma reação químicamente alcalina ou ácida. As
temperaturas apresentam variação de acordo com a profundidade e com o
local onde a água é encontrada, constituindo-se em fatores que influenciam
no comportamento químico. Subentende-se água como sendo um elemento
da natureza, recurso renovável, encontrado em três estados físicos: sólido
(gelo), gasoso (vapor) e líquido. As águas utilizadas para consumo humano
e para as atividades socioeconómicas são retiradas de rios, lagos, represas
e aquíferos, também conhecidos como águas interiores. Antes de chegar ao
consumidor esta água passa por um processo de tratamento logo após a sua

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captação, para posterior armazenamento e distribuição.
O tratamento de água para o consumo humano ocorre em geral nas
Estações de Tratamento de Água (ETA). Nestas estações ocorrem processos
físico-químicos muito complexos, e envolve substâncias químicas, maquinaria
e energia, associado a muitos gastos financeiros.

Figura 1 – Processos de tratamento de água

REPRESA

BOMBEAMENTO DE ÁGUA BRUTA

SULFATO DE ALUMÍNIO DISTRIBUIÇÃO

CAL

CLORO
CLOOR
FLÚOR
CAL

RESERV.
ÁGUA
TRATADA
FLOCULAÇÃO DECANTAÇÃO RESERVATÓRIO
FILTRAÇÃO DOS BAIRROS

CARVÃO ANTRACITO
AREIA
CASCALHO CANAL ÁGUA FILTRADA
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 111

Tratamento de Água Cidade

Represa Rede de distribuição


Captação ou bombeamento
Distribuição
Sulfato de
alumínio,
cal e cloro
Floculação
Decantação
Filtração

Reservatório

Cloro
Flúor

Filtro de
areia grossa

Adição
de cloro
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Tanque de Filtro de
sedimentação areia fina

Nas cidades moçambicanas a água fornecida pelo FIPAG é captada dos


rios e furos. Os furos têm uma profundidade que varia de 26 a 35 m. A água
bruta captada é transportada através de uma conduta subterrânea com cerca
de 400 mm de diâmetro até a estação de tratamento. Algumas estações são
antigas. A título de exemplo, a da cidade de Tete um dos 53 municípios de
Moçambique está em funcionamento desde 1973 e tem uma produção média
que pode variar entre 450 a 520 m3/h, sendo a produção diária de 10.000 m3.
A bombagem é intermitente com intervalo de 2 a 3 horas por dia, entre
as 23 e as 02 horas. Nas áreas em que predominam aquíferos de produtivi-
dade limitada chama-se atenção para o regime de bombagem que não deve
exceder 8 horas diárias (DNA, 1987). O tratamento da água passa por um
processo complexo como a aeração, decantação, filtração, desinfecção e o
seu respectivo armazenamento. Este processo envolve os técnicos e equipa-
mentos mobilizados pelo FIPAG, para responder a demanda do consumo da
água potável. Todavia, nem todos os munícipes têm água canalizada nas suas
residências. As famílias que não dispõem do abastecimento de água fornecida
pelo FIPAG, recorrem a torneira mais próxima dos seus vizinhos, poços, furos
de bomba manual, rios, para além de água resultante da queda das chuvas,
sem qualquer tratamento prévio, constituindo um perigo a saúde humana,
chegando a situações críticas e alarmantes na estação seca.
112

Figura 2 – Furo de bomba manual Figura 3 – Furo com torneiras

Os poços tradicionais feitos de material convencional, sem o mínimo de


higiene e segurança, geralmente secam na estacão seca e fresca. Alguns destes
poços não são revestidos na parte superior e se contaminam com a chuva, que
escorre e transporta material orgânico e inorgânico, trazendo grandes riscos
à saúde, para além de um perigo à vida das crianças que podem cair neles.
Para Afonso (1998, p. 53-54), a parte superior (cerca de 3m a contar da
superfície do terreno), deve ser impermeabilizado por razões sanitárias. Esta
impermeabilização deve ser feita exteriormente nas paredes do poço, com

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argamassa ou argila amassada, sendo também recomendável a criação de
uma plataforma exterior em torno do poço, com raio não inferior a 2m. Não
só por razões sanitárias, mas também por razões de segurança, o poço deve
ser coberto, devendo ser previstas aberturas (com tampa metálica estanque)
para acesso a inspeção. A poluição da água indica que um ou mais de seus
usos foram prejudicados, podendo atingir o ser humano diretamente, pois ele
a utiliza para beber, tomar banho, lavar roupas e utensílios e, principalmente,
para sua alimentação. Além disso, visto que abastece nossas cidades, também
é utilizada nas indústrias e na irrigação de plantações (MICOA, 2009, p. 34).

Figura 4 – Poços sem condições de higene e segurança


BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 113

Proteger o fornecimento de água de possíveis contaminações é fator de


primeira instância para ter-se água potável. Qualquer impedimento nesse sentido
pode ocasionar riscos às populações, seja através da contaminação de origem
química ou biológica. Para o caso das cidades moçambicanas, a categoria que
mais se destaca é dos riscos relacionados a ingestão de água contaminada por
agentes biológicos. A água deve ter aspecto limpo, pureza de gosto e estar isenta
de microrganismos patogénicos, o que é conseguido através do seu tratamento
desde a retirada dos rios ou demais fontes até a chegada nas residências. Por-
tanto, para a água se manter nessas condições, deve-se evitar sua contaminação
por resíduos, sejam eles agrícolas (de natureza química ou orgânica), esgotos,
resíduos industriais, lixo ou sedimentos vindos da erosão (MICOA, 2009, p. 4).
A prestação de cuidados na distribuição das fontes de água é um compo-
nente importante para se melhorar o bem estar das populações consubstanciadas
numa vida longa e saudável. É indispensável na luta contra a pobreza, sendo,
por isso, uma questão central de desenvolvimento humano, em paralelo com a
educação, saúde e outros componentes para uma vida social equilibrada. Além
disso, como a água, o ambiente e os seres humanos fazem parte de um só sis-
tema, é importante destacar que a sobrevivência e desenvolvimento de um estará
diretamente relacionado com a sobrevivência de outro (FISCHER et al., 2020).
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O Diploma Ministerial no 180/2004 de 15 de Setembro visa o regulamento


sobre a qualidade da água, no âmbito das politicas do Governo. Para aumentar
o abastecimento nas zonas rurais e urbanas e satisfazer as necessidades básicas
da população, impõem-se a tomada de medidas para que a água disponibilizada
tenha uma qualidade aceitável de potabilidade, o que irá contribuir para redução
das doenças associadas ao seu consumo. A Lei das Águas (Lei nº 16/91, de 3
de Agosto) atribuiu ao Ministério das Saúde competências para estabelecer os
parâmetros através dos quais se deverá reger controle da qualidade da água para
que seja considerada potável e própria para consumo humano.

Degradação e contaminação das fontes de abastecimento


de água canalizada
O sistema da rede da distribuição da água deve estar isento de qualquer
contaminação, seja ela microbiológicas, física ou química, mas os sistemas
de abastecimento em quase todas as cidades moçambicanas têm alteração
da qualidade da água entre a distribuição e o consumo, com muitos pro-
blemas relacionados à tubulação. Seja por meio de infiltração ou por terem
sido instaladas há muito tempo e com necessidade de substituição. Tendo em
consideração que os tubos galvanizados sofrem corrosão devido a presença
do cloro utilizado no tratamento da água, constituí-se desse modo fonte de
contaminação da água distribuída nos bairros.
114

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Panamericana


de Saúde (OPAS) indicaram que “todas as pessoas, em quaisquer estágios de
desenvolvimento e condições socioeconômicas têm o direito de ter acesso a
um suprimento adequado de água potável e segura” (OMS, OPAS, 2001, p.
1). A segurança deve ser atestada de modo a não ter qualquer risco, além de
ser suficiente em quantidade e qualidade, com disponibilidade intermitente e
acessível. Qualquer fator de risco que se sobreponha ao acesso equitativo deve
ser combativo por agravar condições de saúde global e individual, constituindo
de grave violação ética ao seres vivos.
Em vários locais apresentam-se precariedades no esgotamento público e
a utilização de métodos não apropriados, além de ausência na manutenção da
rede de distribuição de água. Essa violações se tornam prejudiciais a saúde e
atormentam principalmente os mais vulneráveis, visto que a água é essencial
a sobrevivência humana.
As canalizações e as torneiras da água para o consumo encontram-se em
locais não adequados, próximas das fossas de águas sujas que libertam dejetos
e perto dos locais onde são depositados resíduos sólidos, para além dos locais
onde há águas estagnadas e tubagens com fissuras. Outro fator relevante é a
ocupação irregular de áreas habitacionais onde as tubagens que deveriam estar

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no subsolo encontram-se expostas a céu aberto. Casos de desvio do sistema de
abastecimento por meio de ligações clandestinas, com uso de mangueiras, fitas
de borrachas e outras técnicas inapropriadas contribuem para a contaminação.
Porém, outro fator agravante é a falta de higiene-sanitária, sendo uma
das causas do comprometimento da qualidade da água de consumo humano
e que partem de hábitos precários dos usuários em suas residências. A água
que contenha substâncias químicas e micro-organismos prejudiciais ao ser
humano devem ter esses componentes eliminados ou diminuídos (DI BER-
NARDO, 1995).
Assegurar a qualidade do que consumimos é principalmente uma tarefa
coletiva, mas também pode partir de principior individuais. Aqueles que dispõem
de água canalizada devem, antes de tudo, se preocupar com a higiene e a manu-
tenção dos seus reservatórios e locais próximo da torneira nas suas casas, tais
como à manutenção regular dos filtros, purificadores, tanques e galões de água.
Alguns bairros passam semanas sem a água jorrar nas torneiras, mas
quando chega o final do mês não ficam isentos das faturas de cobrança da
taxa de consumo. Muitas unidades de produção, estabelecimentos comerciais
e hoteleiros, drenam as suas águas escuras dos rios mais próximos sem um
prévio tratamento (mesmo alguns desses rios sendo usados pelo FIPAG para
a captação de água para o abastecimento público). É normal e frequente
observar pelos bairros das cidades água estagnada resultante do rompimento
de tubagens de abastecimento, as quais se misturam com as águas escuras ou
residuos sólidos, provocando mau cheiro e atentado à saúde pública.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 115

Figura 5 – Tubagens danificadas e torneiras próximas dos locais das águas negras

É nesse sentido que Pontes e Schramm (2004) se atentam para a Bioé-


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tica de proteção ao creditar ao Estado pelo menos duas vias de trabalho para
resolução dos problemas de acesso à água potável. O primeiro seria de cunho
distributivo, ressaltando a importância de garantia universal através da gestão
pública; e o segundo se preocuparia em compensar as desigualdades através
do maior investimento nas regiões mais vulneráveis.
A legislação de Moçambique estabelece que o direito de uso das águas do
domínio público será reconhecido em regime de uso livre, em determinados
casos, e por meio de autorizações de uso ou de concessões de aproveitamento,
em casos especialmente regulados (Lei n˚16/91, de 3 de Agosto). A Polí-
tica Nacional de Recursos Hídricos, através da Lei nº 9.433, de 8 de janeiro
de 1997, tem em um de seus objetivos assegurar à atual e às futuras gerações
a necessária disponibilidade de águas, em padrões de qualidade adequados
aos respectivos usos. É nesse sentido que a Bioética levanta a necessidade
de proteger as futuras gerações, lançando mão da sua Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH, 2005).
É também nessa perspectiva que adotar a sobrevivência da vida como
parâmetro balizador é aproximar-se da noção dos Direitos Humanos e também
dos direitos das futuras gerações (CINI et al., 2019). Dentro da DUBDH o
acesso à água de boa qualidade está descrito no artigo sobre Responsabili-
dade Social e Saúde, considerando que o desenvolvimento social é objetivo
central dos governos (DUBDH, 2005). Ainda, dentro da Bioética, pensa-se
a plena realização do direito à água desde a disponibilidade individual, que
não tragam doenças ou impeçam o desenvolvimento pessoal, além da gestão
116

institucional através de Comitês integrados que discutam a distribuição com


balizamento ético, sem esquecer da perspectiva ampla de proteção global que
a Bioética pode atuar (CINI; ROSANELI; FISCHER, 2019).
Para Crain e Greenman (1969), a intensa disputa pela água em sociedades
desenvolvidas reflete o valor impar da água para todas as atividades económicas e
sugere que o desenvolvimento dos recursos hídricos deve ser absoluta prioridade
nas economias em desenvolvimento, como Moçambique. É possível afirmar que
a água está tão intimamente ligada ao desenvolvimento econômico e social que
as quantidades consumidas podem estar atreladas e serem reconhecidas como
índices desse mesmo desenvolvimento (FALKENMARK; LINDH, 1976).
Os problemas “de acesso da água potável de forma justa e igual para
todos” são de cunho ético e precisa ser tratado dessa perspectiva, os quais
se debatem num conflito complexo nos quais as variáveis são os “aspec-
tos sociais, econômicos, geográficos, climáticos, ambientais entre outros”
(NUNES, 2009, p. 115). Além disso, os conflitos em torno da água geralmente
resultam em represeamento ou grandes projetos que estão ligados intimamente
com o desalojamento e migração. As grandes represas da Índia, por exemplo,
já desalojaram mais de 30 milhões de pessoas, e na China essa quantia parece
ser equivalente (SHIVA, 2006). Em todo o mundo são diversos os exemplos
de desalojamento, seja por força armamentista ou promessas de governo, para

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que grandes represas fossem construídas.
O ciclo hidrológico é responsável pela purificação natural da água, mas
com a modificação humana para retirar água (muitas vezes com demandas
insustentáveis), é maior a chance de contaminação e escassez. Segundo Fal-
kenmark e Lindh (1976), este fato coloca em evidência a irregularidade da
distribuição mundial do escoamento médio anual, a escassez de chuvas, a
existência de águas poluídas e contaminadas. A gestão integrada é uma das
soluções apresentadas por Christofidis (2018, p. 230), devendo ser “coope-
rativa, equitativa; eficiente; sustentável”.
A garantia da água como direito é conectado ao direito à alimentação e
garantia de soberania alimentar, além de indicações éticas para a sobrevivên-
cia da vida (CINI; ROSANELI; CUNHA, 2018). Sendo assim, a proteção da
distribuição equitativa com qualidade suficiente é urgente para a garantia da
saúde global e dos seres que são interconectados com a água na sua essência.
Apresentar a situação atual do sistema desigual e desatualizado de distribuição
de água de Moçambique é papel importante na denúncia as violações éticas
que acometem principalmente os mais vulneráveis da região.

Considerações finais

A degradação e não reparação dos sistemas de abastecimento de água


canalizada se reflete na fraca disponibilidade de água potável nas cidades
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 117

moçambicanas. Essa precarização é resultado de um sistema ineficiente e


descuidado, que não visa pelo bem comum muito menos pela saúde global.
Nota-se certo desconhecimento das populações com vista à gestão e pre-
servação das infraestruturas ligadas a água. Por outro lado, a falta de reparação
e manutenção por parte das entidades competentes fazem com que os sistemas
obsoletos se desfaçam cada vez mais e agravem a situação do abastecimento
de água potável às comunidades.
A existência de poços sem condições de segurança e higiene, revestidos
de materiais impróprios e sem inspeção, é mais um fator que concorre para
a fraca disponibilidade em Moçambique. As doenças diarreicas, particular-
mente a cólera, e os conflitos sociais, representam algumas das consequências
resultantes desta fraca disponibilidade e distribuição de água potável, o que
concorre para o fraco desenvolvimento socioeconómico.
A água potável esta intrinsecamente ligada ao desenvolvimento humano,
sendo a possibilidade de seu consumo fator concorrencial para sobrevivência
das populações. Perante este cenário, torna-se difícil cumprir os objetivos da
Política Nacional de Águas, que deseja providenciar serviços de acordo com as
necessidades dos próprios beneficiários, e assim, melhorar a sustentabilidade
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dos sistemas. Além disso, reduzir o tempo e energia dispendida em atividades


relacionadas com a coleta de água pelas mulheres e compensar com educação
e trabalho poderia ser fator de emancipação social.
O êxito da execução de uma política de água que atende aos interesses
de uma colectividade, pressupõe a existência de organização (CUNHA, 1990,
p. 60). Nesse sentido, a busca por democracia na gestão da água (SHIVA, 2006)
para a coletividade, se balizando em princípios de sustentabilidade e ética
ambiental, são formas de visar proteger a água potável e garantir equidade ao
consumo da população. A participação crítica na tomada de decisões deve ser
suscitada pelas políticas governamentais, de modo a permitir que os limites
justos e ecológicos sejam respeitados e a finitude da água potável não seja
uma realidade.
118

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À SAÚDE EM MOÇAMBIQUE:
uma análise sobre direitos humanos
Domingos Pedro Zina Faz-Ver43
Aline Maran Brotto44
Caroline Filla Rosaneli45

Moçambique ao longo de sua história atual foi afetado por constantes


problemas na gestão e administração pública, conflitos políticos e guerras,
agravadas por crises nos diversos programas de ajustamentos estruturais, que
afetaram a postura defensiva dos governos no desenvolvimento econômico
e social do país, refletindo diretamente no alcance dos direitos humanos ele-
mentares da sua população, como acesso à educação e saúde, segundo estudos
de Wilson-Strydom e Fongwa (2012) e O’Laughlin (2010).
As fontes de renda da população são pesca e agricultura, com destaque para
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a produção de cereais, leguminosas com a finalidade de subsistência. As fontes


de arrecadação do Estado são a pesca, o turismo e a mineração e a extração do
gás natural. O setor industrial atua nos segmentos de bebidas e tabaco. O tabaco
é alvo de inúmeras manifestações, devido os prejuízos à saúde que as pessoas
que plantam e colhem o tabaco sofrem. A população residente em área urbana de
Moçambique é de 37,65%, sendo 62,35% na área rural. Tem-se 38% da popula-
ção questões muito relevantes de subnutrição, onde apenas 42% da população
recebe água potável em casa, e 31% tem acesso a rede sanitária. A expectativa
de vida dos moçambicanos é de 53 anos segundo o Censo populacional do
Instituto Nacional de Estatística (INE, 2017). Esses dados são extremamente
importantes para localizar a qualidade de vida e acesso aos direitos humanos
da população Moçambicana (EMBAIXADA PORTUGAL, 2020).
Desde 2010, Moçambique conta com o apoio do Programa de saúde
comunitária na busca de ampliar a cobertura desigual e a qualidade dos servi-
ços prestados as comunidades. As atividades do referido Programa são levadas
a cabo pelos agentes polivalentes elementares, os quais são formados pelos
agentes de Ministério da Saúde, ONG’s e Instituições Religiosas e prestam
serviços curativos (80%) e atividades de promoção da saúde e prevenção
de doenças (20%) (GIVE et al., 2015; CAMBE et al., 2017). Assim, Give

43 Doutorando. Universidade Católica de Moçambique.


44 Mestrando em Bioetica – PUCPR.
45 Docente PPGB/PUCPR.
122

et al. (2015) propuseram uma análise do Programa onde perceberam que


há uma tensão entre o que a comunidade tem expectativa e o que de fato o
Programa consegue atender, principalmente nas questões curativas, não só
pela falta de acesso, mas também pela disponibilidade dos equipamentos de
saúde e dos funcionários, necessitando desta forma, ampliar o desempenho e
a comunicação para acessar um programa comunitário mais equitativo. Este
estudo mostra a relevância de compreender as demandas e oportunidades que
o Programa tem em disponibilizar atendimento à população, principalmente
aos mais vulneráveis, e equilibrar a oferta as necessidades reais da população,
e a importância de construir um sistema mais forte e eficaz.
Historicamente, Moçambique tornou-se um Estado-Nação independente
em 1975, depois de mais de 400 anos de colonização. Um período relativa-
mente longo no qual nada ou pouco se fez em termos promoção de cidadania
as populações autóctones. Desde a independência o país busca promover uma
política de saúde baseada nos princípios de acesso amplo e equitativo de aten-
ção primária. Isso incluiu a introdução do programa de agente de saúde comu-
nitário em 1978 como uma solução estratégica para as restrições existentes de
acesso limitado aos serviços de saúde pela população rural (LINDELOW et al.
2004). No entanto, a guerra civil de 16 anos (1976-1992) danificou o sistema

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de saúde, impactando negativamente nos serviços e cuidados à população. Na
década de 1980, um total de 291 unidades sanitárias foram destruídas e 686
foram temporariamente fechadas. Milhões de pessoas deslocaram-se das zonas
rurais para as cidades, implicando uma pressão sobre os serviços sociais e de
saúde em áreas urbanas. Em 1991, foi estimado que até 3 milhões de pessoas
tinham sido deslocadas em consequência da guerra e 1 milhão deixou o país
(LINDELOW et al., 2004). Isto implicou em maiores violações de acesso a
saúde para a população rural do que urbana.
Mitano et al. (2016) consideram que no cenário atual sobre o desenvol-
vimento do país há uma piora da saúde e a dificuldade de as pessoas terem
acesso aos serviços de saúde naquela região.
Moçambique é um país com aproximadamente 30 milhões de habitantes em
de acordo com o Censo populacional do INE em 2017. O País e defrontado com
várias doenças emergentes e, em constante luta para a sua erradicação. Entre as
doenças emergentes destacam-se o HIV/AIDS, com alta taxa de prevalências, a
Tuberculose e Malária (MUGABE et al., 2019), Nwet. A maior parte da popula-
ção vive em precárias condições e com uma multiplicidade de doenças evitáveis,
demonstrando, também, que as políticas adotadas pelo país ainda não favorecem
um caminhar conjunto da saúde e desenvolvimento (MITANO et al., 2016).
No cenário do país, questões entre a pobreza multidimensional e a inter-
venção na saúde pública está entre os problemas mais difíceis, e mais impor-
tantes, enfrentados no desenvolvimento da população. Para Victor et al. (2014),
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 123

que pesquisaram a multidimensão da pobreza na zona rural de Moçambique


perceberam que das privações dominantes como padrão de vida, a saúde vem
primeiro que a educação. Há pobrezas de formas distintas percebida pelos auto-
res, mas elas são intensificadas em comunidades mais isoladas da zona urbana,
e onde os domicílios têm como o idioma local como o principal, quase 60%
apareceu como pobreza maior e falta de acesso aos direitos fundamentais.
A pobreza afeta os mais vulneráveis com mais intensidade. A desi-
gualdade não inclui os desiguais. Em tempos onde tudo parece mensurável,
segundo Caparros (2016), os números não são capazes de compreender a
conta do valor de uma vida, e nem olham as biografias humanas. Os núme-
ros mensuram as violações em todas as suas formas, mas não são capazes
de modificar a capacidade de reação, de transformar indignação em ação
(ROSANELI, 2020).
Em Moçambique a taxas de mortalidade de crianças menores de 5 anos
são uma das mais altas do mundo. Para Källander et al. (2019) os trabalha-
dores comunitários de saúde ou agentes polivalentes elementares são desta-
cados pelos serviços prestados para aumentar o acesso aos cuidados a saúde
das populações vulneráveis. Porém, na pesquisa destes autores destacaram
que mortes poderiam ter sido evitadas se fossem tratadas de forma precoce e
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em nível comunitário. Estes dados revelam que 50,6% das crianças morreram
de malária, 11,8% de HIV/AIDS e 9,4% de diarreia ou infecções respiratórias
agudas. A busca por ajuda comunitária é tardia e em 35,3% o cuidador só per-
cebeu que a criança estava doente quando surgiram os sintomas da doença já
muito grave, quanto menor o capital social da família menores são as chances
de buscar atendimento. Os principais atrasos na procura de cuidados ocorreram
em casa, em grande parte devido à falta de reconhecimento precoce da doença e
à tomada de decisão tardia. Uma em cada quatro crianças nunca foi levada para
fora de casa antes de morrer. As condições socioeconômicas e a distância aos
centros de referências para buscar ajuda provavelmente contribuem para essas
mortes infantis. O tempo médio de viagem foi detectado como em média 2
horas e 50 minutos, mostrando a fragilidade educacional e geográfica que ferem
os direitos fundamentais da proteção da vida na infância. Observando que
existem fatores como o baixo nível de educação, a nutrição deficiente, o meio
ambiente desfavorável no que tange o acesso a água potável, a concentração
da população em espaços específicos de Moçambique, e o próprio consumo
de cuidados a saúde que não necessariamente acontece preventivamente são
as principais violações, segundo Patrão e Vasconcelos-Raposo (2011).
Yao e Agadjanian (2018) dimensionam que as unidades de saúde são
normalmente instaladas onde podem atender com eficiência a população-alvo
próxima. Porém, há desvio da rota de busca do local de ajuda mais próximo,
por vezes questionando a qualidade do serviço. Isto interfere diretamente na
124

alocação de recurso e na austeridade, privando ainda mais as vidas vulneráveis


das populações rurais. Os supervisores das atividades nos equipamentos de
saúde disponíveis para a população rural e urbana, na análise de Ndima et al.
(2015), necessitam de suporte tanto técnico quanto funcional e se sentem cul-
pados por não cumprir as demandas com eficiência. Um sistema desconectado
com lacunas entre a proposta teórica dos programas de atendimento à saúde,
com o treinamento e apoio a equipe de trabalho em saúde, o que precariza e vul-
nerabiliza a complexa relação ao cuidado do paciente e da profissão da saúde.
Nas tradições africanas o conceito de família é a salvaguarda do tecido
social, e é “amplamente alargado”, onde o sentido da coletividade aprofunda-
-se na medida em que todos os valores vivenciados na comunidade são tratados
em comunidade e reservado aos anciãos, cabendo a estes a responsabilidade
de transmiti-las as gerações mais novas quer por ensinamentos práticos quer
por exemplos, tanto nos aspectos éticos, e em outros aspectos do cuidado.
Por isso mesmo, o conhecimento dos anciãos encerra uma dimensão sagrada.
Nas populações rurais em Moçambique ainda é comum que o parto
aconteça em casa, por isso, há poucas estatísticas confiáveis sobre morbidade
e mortalidade materna, outro problema detectado pelas condições sanitárias
não disponíveis as mães rurais. A informação importante gerada a partir dos

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nascimentos rurais e domésticos também implica no registro da criança e sua
inclusão nos sistemas de saúde global e políticas públicas, além da vigilância
em saúde necessária para que essas crianças cresçam com dignidade e direi-
tos garantidos. Tuberculose e HIV/AIDS são importantes causas indiretas
de morte materna, enquanto a eclâmpsia é a causa obstétrica direta mais asso-
ciadas a morte materna nessas comunidades. Sacoor et al. (2018) reforçam
que há necessidade de promover a maternidade segura e melhorar a sobrevi-
vência infantil como fatores fundamentais de cuidados.
Na pesquisa de Agadjanian, Yao e Hayford (2016), as mulheres com acesso
a clínicas para realizar o parto em um raio de até 10 quilômetros de sua casa
tiveram uma probabilidade reduzida de parto em casa. Dar à luz durante a
alta temporada de chuvas foi também associada ao parto em casa, enquanto
quanto melhor as condições socioeconômicas da família maior a probabilidade
de ela procurar auxílio em equipamentos de saúde.
As barreiras sociais, culturais e estruturais subjacentes ao acesso a cui-
dados adequados e oportunos na gravidez são relatados por Munguambe et
al. (2016). Embora a procura de cuidados de curandeiros tradicionais seja
desencorajada durante o período pré-natal, eles prestaram serviços durante
a gravidez e após o parto. Além dos responsáveis pelas decisões no nível
familiar, as matronas, os agentes comunitários de saúde e os vizinhos foram
os principais atores no encaminhamento de mulheres grávidas. O processo de
tomada de decisão pode ser atrasado e particularmente complexo em caso de
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 125

emergência ocorre na sua ausência. O acesso limitado a transporte e dinheiro


torna o processo de tomada de decisão para procurar atendimento na unidade
de saúde ainda mais complexo.
A Organização Mundial de Saúde pontua sobre a importância de equacio-
nar a dignidade e eficácia frente os saberes curativos tidos como tradicionais,
mas que não se traduz em um conjunto de conceitos, práticas e critérios cienti-
ficamente embasados. Infelizmente é comum haver três apontamentos frente o
cuidado com a saúde, sendo o primeiro, a negligência ou incapacidade da pessoa
identificar e evitar os perigos. O segundo, a pseudociência como um atrativo
de cura e tratamento muitas vezes milagroso. E o terceiro, a o descumprimento
dos cuidados que devem ser passados de geração a geração, para assim não se
perder o conteúdo histórico que muitas vezes é base para os cuidados que se
constroem culturalmente. Para a população geral de Moçambique, as práticas da
medicina tradicional podem constituir-se em ampliação do acesso e cobertura
universal dos serviços de saúde, mas que sejam contratualizadas, supervisio-
nadas e regulamentadas pelo Estado (GRANJO, 2009; MITANO et al., 2016).
A saúde, por si só, é tida como um estado natural e esperado, o contrário
muitas vezes é visto com susto, e algo sem explicação. Por mais natural que
seja, a saúde não é isenta de condições que mantém a harmonia social, eco-
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lógica e que gera bem-estar. A doença é uma manifestação de um problema


que se encontra em um montante de questões. A capacidade curativa de uma
enfermidade, é vista muitas vezes, como o foco do tratamento. Os Tinyanga,
próprio do Changana, língua Bantu falada entre povos africanos habitantes do
sul de Moçambique, invariavelmente discutem sobre os casos e reconhecem a
importância da biomedicina, mas também levam em conta as especificidades
de sua cultura. Isso é, apenas Tinyangas ou pertencentes de seus grupos, podem
comunicar sobre as doenças (GRANJO, 2009; ROQUE, 2014).
A política estabelece que os atendimentos em região rural devem atender
entre 500 a 2.000 habitantes dependendo possibilidade geográfica, e os agentes
de saúde devem idealmente, estar trabalhando entre 8 km e 25 km da unidade
de saúde de sua referência. Os custos de acesso a regiões mais vulneráveis e
longínquas fragilizam ainda mais a potencialidade de promoção da saúde e
prevenção a doenças.
O impacto que os agentes de saúde têm são relatados por Give et al.
(2015), onde numa pesquisa qualitativa traz reflexões do papel do Programa
nos domicílios, relatando como eles auxiliam em questões cotidianas sobre
água, comida e higiene, e o quanto o reflexo de ações básicas elevam a possi-
bilidade de prevenir doenças. A comunidade reclama que há demora para os
agentes chegarem as casas, pelas distancias consideráveis a cobrir e devido
também a carga alta de trabalho demandada. O medicamento também é fre-
quentemente considerado um problema de rupturas com os cuidados, tendo
126

em vista a falta de abastecimento e as longas distancias até que eles cheguem


a comunidade, carregados a pé na cabeça ou de bicicleta.
Para os pacientes que necessitam de processos cirúrgicos a distância é
também uma barreira frequente sendo um importante componente na saúde
global do paciente. Faierman et al. (2015), analisaram que a distância média
percorrida foi mais longa para pacientes cirúrgicos (42 km) em comparação
com uma média de 17 km para pacientes que utilizam serviços de atenção
primária. Enquanto outros pacientes podem ter acesso a clínicas comunitárias,
os pacientes cirúrgicos dependem mais dos serviços disponíveis em hospitais
na área urbana, dificultando sua recuperação e cuidados.
Para Guenther et al. (2017), que avaliam que trabalhadores comunitá-
rios leigos de saúde devem ser treinados para fornecer gerenciamento de casos de
doenças infantis de qualidade. Em 2010, uma estratégia de gestão integrada
junto aos agentes polivalentes elementares foi implantada no país para alcançar
crianças em áreas remotas para avaliar condições iniciais de febre, o que resultou
melhora nas condições clínicas e resolução do estado de saúde, demonstrando
que estes níveis de atendimento remoto com apoio da comunidade local treinada,
pode fortalecer o sistema de saúde em Moçambique para permitir um apoio
confiável para a qualidade da gestão de casos de doenças infantis.

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Dilemas sobre como proceder frente um paciente, tendo em vista que
existem poucos profissionais, é algo muito comum, infelizmente. Este dilema
ético, mostra que a confidencialidade e competência são bases que levam con-
forto e técnica nas consultas da população, e isso, melhora a qualidade de vida
dos pacientes. Outra variável, denominada de conhecimento, que diz respeito a
prática e execução de uma técnica profissional de certa especificidade é muito
relevante. Como existem menos profissionais do que o necessário, ainda é
comum atender sem ter o necessário conhecimento tecnocientífico (PATRÃO;
VASCONCELOS-RAPOSO, 2011; GOVERNO DE MOÇAMBIQUE, 2020).
Volta-se, portanto, a lógica de redução de danos, ou seja, minimizar o
problema, a partir da experiência e conhecimento dos profissionais, pontuando
os limites. A psicologia e pisquiátrica continuam como um tabu, logo, a busca
por estes profissionais, acontece quando a saúde mental está bastante instável,
na maioria das vezes.
Os países membros da Organização Mundial de Saúde e União Africana
aprovaram instrumentos voltados para o direito à saúde, mas foi um processo
lento, tendo em vista que Moçambique era uma colônia portuguesa, sem caracte-
rística jurídica própria. Com a independência em 1975, Moçambique conseguiu
inserir instrumentos internacionais e regionais para os direitos humanos que
salvaguardavam o direito à saúde (GOVERNO DE MOÇAMBIQUE, 2020).
A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos citado peolo
governo de Moçambique, cita no artigo 16, “toda pessoa tem o direito ao gozo
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 127

do melhor estado de saúde que for capaz de atingir” e reforça que os “Estados
membros da presente carta se comprometem a tomar as medidas necessárias
para proteger a saúde das suas populações e para lhes assegurar assistência
médica em caso de adoecimento”. Existe uma missão muito importante de
qualquer Estado, esta Carta deixa implícita a missão de garantia da saúde de
sua população, e liberdade individual de usufruir o melhor estado de saúde que
for capaz de obter. Mas ainda, Moçambique ainda encontra grandes desafios
para a respeito do direito à saúde, não apenas sobre a melhoria dos serviços
de saúde, mas também a prestação de serviços e ações efetivas sociais. Como
por exemplo, ações sobre insegurança alimentar, segurança pública, abasteci-
mento e acesso à água potável, medidas sanitárias em ambientes privados e
públicos, acesso à educação básica e superior, saneamento ambiental, políticas
de redução da pobreza, consumo de álcool, drogas e tabaco, entre outros, que
dizem respeito a cobertura universal de serviços voltados a saúde (GOVERNO
DE MOÇAMBIQUE, 2020, CARTA AFRICANA, 1981). Além da prestação
de serviços, pontua-se a qualidade que estes são ofertados e prestados à popu-
lação, seja o equipamento ou mesmo o recurso humano. Ainda é um grande
desafio o custo de serviços de saúde em Moçambique, pois este é um país que
a maioria das pessoas realiza trabalhos informais sem uma “segurança” de
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emprego fixo, além da parte da população que não tem emprego, e necessita
de acesso a medicamentos, tratamentos e acesso a profissionais da saúde, aos
que moram em zonas rurais (MULLIN et al., 2013; GILIO; FREITAS, 2008).
Percebe-se que o direito à saúde tem se constituído com uma aplica-
ção progressiva. É necessário, desde já, um trabalho de empoderamento que
envolva o acesso universal à educação, saúde, emprego, promoção de igual-
dade de gênero e grupos étnicos. As bases comunitárias, possuem um papel
fundamental no cuidado e intervenção nos centros e ainda mais nas zonas
rurais, essa intervenção busca garantir o acesso variado de serviços de saúde,
preventiva e de reabilitação (MULLIN et al., 2013; GILIO; FREITAS, 2008).
Atualmente, Moçambique gasta aproximadamente, 39 dólares per capita
em saúde. Esse valor é baixo comparativamente à média regional. Muito
embora o Produto Interno Bruto (PIB) esteja crescendo nos últimos anos, em
torno de 7% ao ano, o orçamento do Estado alocado ao sistema público de
saúde é de 6,6%, abaixo do recomentado em outras regiões da África, de 15%
(MULLIN et al., 2013; ONU, 2020).
É inevitável falar sobre política e gestão, quando quer se falar sobre
saúde e direitos. Percebe-se que está crescendo uma busca por serviços de
saúde, e também cresce a busca por profissionais, qualificação, tecnologia
médica, prática de saúde no campo e controle social. As práticas da medicina
tradicional estão se ampliando no território Moçambicano, mas é necessária
uma justa medida entre a ciência e estabelecer vínculo com a população para
128

ir até o médico, seguir o que é pedido, seja no que tange a medicação ou


alimentação (GILIO; FREITAS, 2008; MITANO et al., 2016).
Existem inúmeros desafios em Moçambique que dizem respeito as
necessidades médicas e comportamentais de saúde, não só o que tange a
saúde física, mas também a saúde mental, já que esta, ocupa um lugar de
estigma e que restringe ainda mais o acesso aos cuidados. Desafios éticos
como confidencialidade, múltiplas relações com os profissionais da saúde,
é uma situação complexa, pois psiquiatras e psicólogos não podem atender
pessoas conhecidas, amigos ou parentes (ONU, 2020; PATRÃO; VASCON-
CELOS-RAPOSO, 2011). Mas e se só houver esse profissional na região, o
que fazer? Como garantir que todos possam ter acesso aos cuidados de saúde?
A saúde pode ser olhada como uma questão de cidadania e de justiça
social, pois todos sujeitos tem direito ao acesso aos serviços de saúde, de
promoção de saúde, prevenção de doenças, habitação digna, educação efi-
ciente que sustentam o desenvolvimento humano. Intervir nos estilos de vida
e comportamentos individuais e coletivos que condicionam uma população a
ter menor expectativa de vida, e com potencial de desenvolver doenças que
em alguns lugares do mundo, já estão erradicadas (GAUDENZI, 2010).
Para diminuir a vulnerabilidade e a desproteção, a Bioética da interven-

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ção estabelece os 4Ps: Prudência, frente o desconhecido; Prevenção, frente a
possíveis danos e riscos de prejuízos; Precaução, diante de ameaças e perigos
que determinadas intervenções de tecnociência podem causar e proteção da
dignidade dos mais vulneráveis, desprotegidos e frágeis da sociedade (GAR-
RAFA et al., 2016).
Podemos relacionar a prudência com a realidade Moçambicana, no que
tange a negligência e falta de deliberação de casos que dizem respeito à
dignidade e acesso básico à saúde. A prudência teria relação com o artigo 20
da DUBDH, relativo à avaliação e gestão do risco. A Proteção, é como um
instrumento ético voltado para as condutas de vigilância sanitária, e abraçado
pela justiça social. Moçambique está sendo cuidado por quem? E a sua popu-
lação? A Precaução, busca dar atenção a recursos de inter-relação humana,
como por exemplo o impacto dos cuidados atuais da população e as próximas
gerações que nascerão naquele ambiente. E por último, a Prevenção, que
especificamente na área da saúde, visa as medidas destinadas não apenas a
prevenir as doenças e seus fatores de risco, mas em como lidar com os avan-
ços das doenças e as suas consequências. Esses quatro “Ps”, fazem parte de
um amplo processo de medidas que buscam trazer bem-estar no mais amplo
significado dessa palavra (GARRAFA et al., 2016).
A implantação e atuação dos serviços de saúde em Moçambique, reve-
lam-se um processo complexo, tanto na documentação produzida por esses
serviços, seus relatórios e boletins sanitários, quanto o conteúdo da elaboração
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 129

dos relatórios. Tais programas, aparentemente pontuam sobre o papel fun-


damental da saúde, a garantia da saúde e sua promoção, mas na prática, os
recursos financeiros, técnicos e o próprio esclarecimento de prioridades de
atuação torna o processo de cuidados da saúde, cada vez maiores, logo, a
fragilidade da operacionalidade e eficácia do sistema, são a anos, uma grande
questão a ser ainda mais discutida (ROQUE, 2014).
Dialogar sobre direito à saúde, perpassa por vários âmbitos, sejam eles,
saúde, direito, políticas financeiras, educacionais, tecnológicas, habitacio-
nais, saneamento e gestão. A ação do governo Moçambicano e as ações do
Estado, apontam para o distanciamento entre as políticas precárias e práticas
insuficientes de saúde. Existe cada vez mais, uma procura pelos serviços de
saúde, o que é muito bom, visto que as pessoas entendem cada vez mais sobre
o que são cuidados com a saúde, mas ao mesmo tempo, a cobertura universal
do direito a saúde e o acesso a este, não consegue andar no mesmo ritmo.
Apesar de ajuda técnica e formativa de países, falta profissionais qualificados
em várias regiões do país, e a própria fixação destes profissionais em cidades
moçambicanas. Além desta questão, existem poucas atividades interdiscipli-
nares, ou seja, em equipe, sendo práticas sistematizadas, como por exemplo,
um diálogo teórico-prático entre enfermagem, assistência social e as questões
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próprias de Moçambique (MITANO et al., 2016).


Moçambique enfrentou a necessidade de formação de profissionais de
saúde para preencher as lacunas existentes durante a expansão dos serviços
de saúde, especialmente nas zonas rurais. A falta de recursos humanos para a
saúde foi em função do êxodo de profissionais qualificados após a indepen-
dência. Hoje, para a reposição neste quadro, principalmente aos que atendem
as comunidades rurais, é exigido um nível educacional relativamente baixo o
que dificulta a capacitação em termos técnicos e controle mais adequado da
resolução dos problemas.
Ajuda internacional foi eminente para a reconstrução das questões sanitá-
rias para recomposição do país, e dos direitos elementares da população. Pla-
nos estratégicos de ação foram necessários para alinhar a redução da pobreza,
que está intimamente relacionada a dignidade e acesso e oferta de serviços
de saúde de qualidade.
Porém, os pacotes de reajustamentos estrutural financeiros internacio-
nais implicaram na exacerbação da discrepância entre os ricos e os pobres.
Para Matsinhe (2011), a existência de uma elite política que se enriquece
ilicitamente por meio de corrupção faz com que os fundos de Instituições
Financeiras Internacionais, ao invés de serem aplicados em projetos de desen-
volvimento foram açambarcados para fins que não estimularam a produção
interna de bens de consumo e de produção de desenvolvimento econômico e
social do país, refletindo diretamente no acesso aos direitos humanos. Autores
130

como Parkins (2004) e Matsine (2011), alertam para a dependências das pró-
ximas gerações nas violações dos direitos fundamentais que esses acordos
financeiros internacionais trarão de consequências como prisioneiros de uma
dívida, sem acesso a melhorias do país e vulnerabilidade imposta a população.
O domínio do poder econômico sobre o poder político nos torna reféns
e faz com que os ganhos não sejam compartilhados em benefícios de todos, o
que institui ao poder político uma distância do bem comum, onde as barreiras
culturais e morais de uma herança colonizadora dificulta uma inversão de
valores, com uma economia não submetida à política, e esta, orientada por
uma ética que promova a solidariedade, a compaixão, a justiça e a dignidade.
O modelo econômico está pronto para olhar em favor da vida humana e
do planeta? Ou apenas da vida do mercado capital? E deste mercado capital
que podemos visualizar todas as formas violações de ordem política, moral,
ética, ideológica, rural, urbana, humana, não humana e planetária (ROSA-
NELI, 2020).

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BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 131

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OS CÃES COMUNITÁRIOS NA
PAUTA DA BIOÉTICA AMBIENTAL
Marina Kobai Farias46
Patricia Feiz Nardinelli Bernardes de Carvalho47
Rafaela Teixeira da Costa48
Evelyne Paludo49
Marta Luciane Fischer50

A interação do ser humano com o cão é constituinte do seu processo de


civilização a cujos laços têm se estreitado em uma sociedade cujos processos
estão cada vez mais alterados distante do rápido avanço tecnológico.
Os canídeos surgiram na América do Norte e logo se espalharam para
Ásia, Europa, África (SCHLEIDT, 2003), sendo representados por 38 espé-
cies, na qual somente o Canis familiaris foi domesticado (ALBUQUER-
QUE, 2013). A domesticação do cão, provavelmente seja mais antiga do que se
acredita, dados arqueológicos apontam que já estavam presentes com os huma-
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nos há 16 mil anos, antes do advento da agricultura. As hipóteses apontam


que foram animais mais dóceis foram atraídos para os acampamentos devido
a restos de comida, passando a auxiliar na caça, pesca, guarda e companhia
(REID, 2009). A domesticação envolve um processo de neotenia, em que ani-
mais com características juvenis tanto morfológicas quanto emocionais atinge
a maturidade reprodutiva, assim, os cães domésticos, ainda uma subespécie
dos lobos, seriam nada mais do que lobos juvenis (ALBUQUERQUE, 2013).
Em um curto espaço de tempo, a seleção artificial realizada nos animais para
aprimorar suas funções na pesca, pastoreio, caça, guarda, ou simplesmente
companhia, resultam em aproximadamente 350 raças segundo a Federação
Cinológica Internacional (FCI). Porém a seleção estética de animais tem tra-
zido sérios comprometimentos para sua saúde física e mental e limitantes
éticos sérios amplamente explorados em séries como os Segredos do pedigree.
O papel do cão nas sociedades apresenta um forte componente social,
que transpassa a utilização para serviços e até como alimento (ALBU-
QUERQUE, 2013). Contudo, é na sociedade contemporânea que o cão
encontrou a oportunidade de ocupar um espaço para preenchimento de
um vazio de afetividade, transpondo das ruas e quintais, para a cama do
46 Bióloga e Mestranda em Bioética PPGB. E-mail: marina_kfarias@yahoo.com.br
47 Advogada e Mestranda em Bioética PPGB. E-mail: pf_nard@yahoo.com.br
48 Advogada e Especialista em Direito Animal-UNINTER. E-mail: adv.rafaelateixeira@gmail.com
49 Advogada e Especialista em Direito Animal-UNINTER. E-mail: paludoadvocacia@gmail.com
50 Bióloga, Docente Curso de Biologia e PPGB-PUCPR. E-mail: marta.fischer@pucpr.br
136

seu tutor. Os pets possuem regalias de membro da família, com status de


filho, e usufrui de toda uma gama de serviços e produtos qualificados por
uma indústria pet que atinge uma das maiores expressividade mundiais no
Brasil (ABINPET, 2021). Dados sociodemográficos já apontam que mais
da metade dos lares possuem animais de companhia, superando o número
de lares que possuem crianças. Concomitante a um cuidado extremo que
envolve desde os setores de alimentação, saúde, vestimenta, acessórios,
serviços de hotelaria e até funerários, é igualmente crescente o número de
animais abandonados nos centros urbanos, os quais segundo a Organização
Mundial da Saúde a estimativa é que chegam ao número de cerca de 30
milhões de animais abandonados, entre 10 milhões de gatos e 20 milhões
de cães (SEMAD, 2020). Os motivos para essa superpopulação vão desde
uma reprodução entre os animais errantes, bem como o abandono frequente
de pessoas que tutelaram animais por impulso, e por falta de conhecimento
e capacidade de adestrar seus animais, entram em conflitos com comporta-
mentos indesejados, porém frutos de relacionamento ruim.
Os cães que passaram a compartilhar a vivência com seres humanos tem
desenvolvido os mesmos problemas físicos e emocionais. Atualmente o setor
veterinário atende problemas de diabetes, diabetes, câncer e até depressão.

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As formas mais complexas como, latir, rosnar, urinar e mostrar as garras não
combinam mais com a vivencia dos cães com os humanos, porem os aspectos
que levaram a evolução do cão não combina mais com atual cenário de depen-
dência e leva a esses animais a serem diagnosticados como “doentes men-
tais”, apresentando agressividade, ansiedade e depressão (VLAHOS, 2008).
Concomitante ao seu papel como companhia, os animais podem ainda prestar
serviços sociais, seja no entretenimento, na saúde ou na educação. Desta-
ca-se os cães policiais e de guarda, animais utilizados para auxiliar cegos
e surdos, e na atividade assistida por animais, denominada de cinoterapia
(RIBEIRO, 2011). A Cinoterapia conhecida também como terapia com cães,
deve ser fundamentada na sensibilidade, concentração, sensibilização e a
motivação, além da relação sentimental, a responsabilidade ética deve ser
entrelaçada com o sentimento (RIBEIRO, 2011). Fischer e colaboradores,
(2015) destaca a necessidade de um de uma certificação e um registro oficial
do animal utilizado como coterapeuta e estimular constantemente técnicas de
adestramento e promoção de ambientes adequados para a terapia.
No caso de tratamento com crianças os cães funcionam como um cata-
lisador, pois expõe a mesma a diferentes situações, dando a ela o senso de si
mesma como autocontrole, gentileza e respeito. Em crianças autistas estudos
demonstram que a interação com o cão terapeuta traz resultados benéficos
ao desenvolvimento dos pacientes e ainda incentivam a continuação do tra-
tamento (NUNES, 2015).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 137

A interação do homem com o cão necessita de atitudes conscientes em


relação a saúde pública, uma vez que os mesmos compartilham os mesmos
espaços. Cuidados como abrigo, alimentação, afeto, vacinas, remédios e con-
trole populacional colaboram para a prevenção de zoonoses que acometem
cães e homens (CATAPAN, 2015) O alto índice de abandono de cães levou a
alguns municípios a fazer o controle destes a partir de recolhimento pelos Cen-
tro de Controle de Zoonoses (CCZ) conhecidos popularmente por carrocinhas,
com a justificativa de serem transmissores de zoonoses (FREITAS, 2006).
As carrocinhas promovem a captura e confinamento dos animais de rua e
promoveram a chamada “eutanásia humanitária” termo este que é usado de
forma errônea. O termo eutanásia foi proposto por Francis Bacon em 1623
como sendo uma medida de “tratamento adequado as doenças incuráveis”. O
uso inadequado do termo e da prática adotada em cães de ruas é impertinente
e ilegal perante a legislação (FREITAS, 2006).
A presente reflexão se propõe a introduzir a prática do cão comentário
pauta da Bioética Ambiental, entendendo que essa pode ser uma oportunidade
para mitigar vulnerabilidades resultantes de um processo de domesticação e
introdução do cão em um ambiente artificial. Assim, foi realizada uma análise
das notícias sobre cães comunitários veiculadas na mídia nacional e estrangeira
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e uma análise dos instrumentos legais que subsidiam essa conduta, para então,
finalizar com a perspectiva da Bioética ambiental.

Contexto Social Cão Comunitário

Para compreender o contexto atual foi realizado um mapeamento das


notícias que veicularam informações sobre cães comunitários na mídia digital
utilizando o buscador do google.com. Foram recuperadas as 100 primeiras
sugestões da ferramenta a partir da utilização dos termos: cães comunitários,
perros comunitários e communitary dog. As informações em português e espa-
nhol foram veiculadas principalmente por jornais digitais de 15 estados, com
predomínio de São Paulo e Paraná e 8 países com predomínio da Argentina.
As matérias se referiram a animais comunitários que vivem em ruas, principal-
mente cães (Figura 1). O termo em inglês não se refere a animais comunitários,
mas sim a animais de serviço que tem uma função comunitária. Nas notícias
nacionais foram citadas mais ONGs do que nas internacionais, no entanto a
frequência ainda é pequena, assim como de canais para voluntariar (Figura 1).
Nas matérias foram listados como critérios para ser cão comunitário a castração,
a vacinação, a identificação, o abrigo e a educação dos cidadãos (Figura 1).
138

Figura 1 – Fluxograma dos resultados do mapeamento das notícias


veiculadas sobre cães comunitários na mídia digital

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O conteúdo abordado nas matérias foram diversos, porém suficientes


para trazer a evidência que a sociedade está mudando a sua concepção do
valor dos cães e que podem ter uma vida digna, em liberdade, mas com os
cuidados que precisa para viver em sociedade.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 139

Boa parte das matérias falavam da implementação da lei do cão comu-


nitário. No Brasil foram encontradas 31 citações de leis, decretos, projetos
de leis, distribuídas em oito estados, sendo eles, Espírito Santo, Goiás, Minas
gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
O conceito do cão comunitário na legislação tem seu conceito predominante
como o Cão que estabelece vínculo de dependência e manutenção com a
comunidade local, podendo ter um tutor ou vários. Outras três citações de
leis de cães comunitários foram encontradas no Chile, Colômbia e Santiago.
Outro montante abordava a implementação do projeto cão comunitário
organizado por ONGs, grupos de amigos, instituições e comunidades e foram
encontrados um total de oito projetos de cães comunitários. Os projetos pos-
suem como semelhança a guarda comunitária dos animais de ruas de forma
a garantir comida, água e abrigo aos cães, além de incentivar a possível
doação futura destes animais. Existem também parcerias de prefeituras com
ONGs, como o caso de Curitiba, onde diversos cães vivem em terminais
urbanos onde recebem tratamentos, alimentação e abrigo. O apelo veiculado
é que o cidadão pode adotar um animal de rua sem necessariamente ter que
acolher ele em sua casa. Muitas vezes a falta de tempo e espaço podem se
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constituir de limitantes que colocam em risco a qualidade de vida de ambos.


Contudo, é possível assumir uma responsabilidade coletiva e cultivar um
propósito comum.
Algumas matérias mostram a mobilização da comunidade no caso de
maus tratos aos animais comunitários como manifestações contra tortura e
morte de cães comunitários sendo elas, por atropelamentos, envenenamento,
tiro de arma de fogo.
As imagens veiculadas nas matérias são carregadas de emoção e demons-
tram como o acolhimento coletivo de um animal pode demonstrar um senso
de pertencimento e mudar a concepção da sociedade (Figura 2).
No Rio Grande do Sul a Lei 13.193/2009 foi à pioneira na prestação do
atendimento a animais comunitários (Figura 2a) e depois regulamentado pela
Lei 15.254/2019.Oconceito do cão comunitário presente na legislação define
que o cão que estabeleça vínculo com uma pessoa ou sociedade recebe os
cuidados no local onde vivem. Os cuidados necessários com o cão comunitá-
rio como, alimentação, castração e vacinas são necessárias para garantir uma
vida saudável ao animal. Uma importante ferramenta muito utilizada em cães
comunitários é um tema importante debatido em Florianópolis (Figura 2b),
onde um cão comunitário chamado Berlim e muito conhecido pelos comer-
ciantes de Balneário Camboriú e que possui um tutor responsável, já foi
reconhecido e socorrido algumas vezes graças às informações presentes em
sua plaquinha de identificação.
140

A criação do cão comunitário é apontada como uma alternativa para


amenizar a vida dos cães abandonados nas ruas. Muitas vezes as pessoas
têm a intenção de ajudar, mas não podem recolher os animais, sendo assim,
amparam esses cães com abrigos, ração e cobertores. A legislação estadual
de são Paulo (Figura 2c) permite que a sociedade se junte para garantir certo
conforto e dignidade a esses cães através da instalação de casinhas, caminhas
feitas de pneus, disponibilidade de rações e água e cobertores.
Uma campanha de adoção de cães comunitários que ganhou as redes
sociais e que possui o apoio da Secretaria Especial dos direitos dos animais
(SEDA) (Figura 2d) tem o intuito de reforçar a importância de ajudar os cães
comunitários, colaborando assim com o bem-estar destes animais. No Chile
(Figura 2e) o cão comunitário também tem seus direitos garantidos através
da Lei de Posse Responsável de animais, onde os cães são registrados por um
tutor ou por uma comunidade. Esses animais passam a ter vacinas, esterili-
zação, manejo sanitário e chip de identificação garantidos pela comunidade
local. Em Florianópolis existe mais de 200 cães comunitários registrados
(Figura 2f) e que possuem seus direitos garantidos, porém a preocupação da
comunidade está no abandono dos cães devido à disponibilidade de cuidados

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e abrigos prestados pela comunidade. Sendo assim, a adoção destes cães se
torna necessária para uma conscientização de diminuir o abandono de cães.
Ao mesmo tempo que as organizações não governamentais e legislações
que protegem os cães comunitários, também temos exemplos de institui-
ções públicas que vão na contramão do projeto. Em São José dos Pinhais
(Figura 2g) o cão comunitário não existe como lei ou projeto e a proteção a
esses animais de rua fica sob a responsabilidade protetoras que se unem para
garantir abrigo e alimento para esses animais. Um abaixo assinado on line
contra a prefeitura pede a não retirada das casinhas das ruas principalmente
com a chegada do inverno onde os cães ficam desprotegidos. As casinhas
são muitas vezes colocadas na frente de casas de protetoras como forma
de garantir um pouco de conforto ao animal, porém vem sendo retiradas
pela prefeitura.
O cão comunitário vem ganhando o Brasil e alguns países da América
Latina como forma de trazer um bem-estar a esses animais e assim traz
afetuosidade entre a comunidade e os cães comunitários e quando um cão
sofre algum acidente a comoção passa ser de uma comunidade toda. O caso
do cão chamado “Amarelo” que foi atropelado (Figura 2h) por um moto-
rista causou comoção e revolta de uma comunidade de Araucária no Paraná
depois de surgir a suspeita de ter sido proposital. O motorista foi multado e
vai responder pelo crime.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 141

Figura 2 – Exemplos de imagens veiculadas em matérias


sobre cães comunitários na mídia digital
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Legislação sobre Proteção Animal


A relação entre o homem e o animal acontece desde os tempos mais
remotos, isso é inegável. Por outro lado, a preocupação com o sofrimento
animal e sua proteção, inclusive a partir da edição de normas, é algo bem
mais recente. Fischer e colaboradores (2019) discorreram que as normativas
relativas à proteção animal surgiram na Inglaterra, no século XVII, a partir
do questionamento das atividades desenvolvidas na experimentação animal,
que se valia de animais domésticos. Contudo, a discussão da utilização dos
animais na pesquisa científica no âmbito acadêmico foi um importante marco
para a proteção animal, sobretudo com a edificação do Princípio dos 3R:
reduzir, substituir e refinar as ações de pesquisas que se utilizavam de animais.

DUDA – Declaração Universal dos Direitos dos Animais


A Declaração Universal dos Direitos dos Animais – DUDA, publicada no
ano de 1978 na UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciên-
cia e Cultura), embora não seja um documento revestido de caráter normativo,
possui inquestionável valor ético e moral, na medida em que atribui aos animais a
condição de sujeitos de direitos, congregando, em especial, o direito de não serem
submetidos à crueldade. Fischer et al. (2019) reportam-se ao questionamento
142

feito por Tinoco e Correia (2014) diante da controvérsia de recai sobre a precisão
de dados da edição da DUDA. Ainda assim, é certo que tal Declaração pode ser
compreendida como uma “carta de intenções” que propõe uma transformação
na forma como os animais não humanos são vistos e tratados pelos homens.

Declaração Cambridge e a senciência animal


A Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos
e Não-humanos (2012)51 foi um importante documento científico que escla-
receu o conceito da senciência e da consciência animal, para além da espécie
humana. A partir dela, evidenciou-se que a consciência não é prerrogativa
apenas dos animais humanos, podendo ser estendida e verificada em diver-
sas espécies não humanas, como mamíferos, aves e muitas outras criaturas,
incluindo os polvos, substratos neurológicos que permitem experiências sub-
jetivas, comportamentos intencionais e estados afetivos.
A senciência é o parâmetro utilizado para a consideração moral dos
animais. Ataíde Júnior (2018, p. 115) explica que justamente pelo fato de
os animais serem seres capazes de sofrer é que faz-se necessário proibir a
crueldade animal. Ou seja, é exatamente o conhecimento acerca da senciência

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e da capacidade de sofrer que levou o legislador brasileiro a adotar a decisão
política de incluir no texto normativo mais importante do ordenamento jurídico
uma regra de proteção animal.

Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988

A Constituição Federal da República promulgada em 1988 inova no âmbito


da proteção animal ao trazer expressamente em texto a regra da proibição da
crueldade contra os animais (art. 225, §1°, inc. VII) (ATAÍDE-JÚNIOR, 2018).
Essa norma constitucional indica a preocupação do legislador brasileiro em
considerar os animais enquanto seres sencientes e que merecem ser tratados com
dignidade, e não na qualidade de coisas inanimadas. Isso porque a proibição de
condutas cruéis contra animais pressupõe que eles são capazes de serem vítimas
de sofrimento, existindo, portanto, o dever ético e jurídico da proteção aos animais.

51 De acordo com a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos (2012)
– documento que fora confeccionado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanato-
mistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge: “A ausência de um
neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam
que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados
de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o
peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a
consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo
polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto original, em inglês, disponível em:
http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf. Acesso em: 26 fev. 2021.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 143

Decreto 24.645 de 1934


Esse Decreto foi a primeira lei ordinária a estabelecer um estatuto geral
de proteção animal no Brasil, consignando expressamente que “todos os ani-
mais existentes no País são tutelados pelo Estado”.
Essa norma, de conteúdo muito vanguardista para a época de sua edi-
ção, também foi a primeira a prever e tipificar o crime de maus tratos contra
animais, elencando diversas condutas que caracterizam a crueldade contra
animais, prevendo punição para os infratores. Ataíde Júnior e Mendes (2020,
p. 61) sustentam a parcial vigência da referida norma, pois não houve lei
posterior com hierarquia suficiente para a sua revogação.

Lei Crimes Ambientais

A parte criminal do Decreto 24.645/1934 que disciplinava os crimes de


maus-tratos foi, atualmente, substituído pela Lei de Crimes Ambientais – Lei
nº 9.605/1998, mais especificamente pelo artigo 32, que prevê a seguinte redação:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais sil-
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vestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:


Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou
cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando
existirem recursos alternativos.
§1° A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas
no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa
e proibição da guarda. (Incluído pela Lei n° 14.064 de 2020).
§2° A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte
do animal.

A novidade legislativa trazida pela Lei 14.064/2020, lei que ficou


conhecida como “Lei Sansão”, em razão da prática de maus tratos contra
um cachorro da raça pitbull, no Estado de Minas Gerais, que foi amordaçado
com arame farpado e teve decepada suas duas pernas traseiras, numa atitude
despropositadamente violenta contra o animal. A referida lei aponta para um
recrudescimento penal para o indivíduo que pratica maus-tratos contra cães e
gatos, demonstrando a intenção do legislador ordinário em tutelar de maneira
mais eficiente a proteção animal contra a crueldade.
Não somente o legislador internacional e federal preocupou-se em edi-
tar leis que objetivassem a proteção dos animais. À semelhança da previsão
constitucional da regra da proibição da crueldade, existem Códigos Estaduais
144

– alguns, inclusive, com previsões mais amplas –, que tutelam juridicamente a


proteção animal, em exercício da competência concorrente entre a União e os
Estados e o Distrito Federal para legislar sobre a fauna (artigo 24, VI, CF/1988).

Legislações Estaduais sobre proteção animal

A disciplina legislativa do Direito Animal (ATAIDE-JUNIOR, 2018)


é de competência legislativa concorrente entre União e Estados, nos termos
do art. 24, VI e VIII da Carta Magna. O direito positivo brasileiro através do
inciso VII, §1°, do artigo 225, da Constituição Federal aponta de forma clara
e definitiva que os animais são sujeitos de direito e neste sentido foi seguido
por leis estaduais, como é o caso de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do
Sul, Paraíba e mais recentemente Minas Gerais (Figura 3).

Figura 3 – Legislação Estadual sobre Proteção Animal

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BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 145

Legislação sobre Cães comunitários

Da análise do ordenamento constitucional e infraconstitucional revela-se


irrefutável a responsabilidade do poder público em relação aos animais em
situação de rua e comunitários. Isso deve se dar tanto em atenção aos interesses
humanos, notadamente em relação à saúde pública, quanto aos indicadores de
bem-estar animal, que abrangem condições fisiológicas, biológicas, acesso às
necessidades básicas e sentimentos subjetivos desses animais, inter-relacio-
nadas e interdependentes, como seres conscientes e com dignidade própria.
Em outras palavras, a necessidade – obrigação – de cuidados e controle
populacional dos mais de 30 milhões de animais vivendo nas ruas do Brasil
não pende de controvérsias sob qualquer perspectiva que se adote, seja ela
antropocêntrica ou zoocêntrica, esta última pautada na ética animal, com foco
no indivíduo não humano.
Em atenção à responsabilidade e competência legislativa concorrente,
prevista no artigo 24, VI, da Constituição Federal exsurge o poder dever do
ente estadual e municipal de legislarem sobre o tema.
Em Cuiabá, a omissão do Poder Executivo motivou a propositura de Ação
Civil Pública pelo Ministério Público, a fim de obrigar o município a recolher
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todos os animais abandonados e vítimas de maus-tratos ou atropelamentos,


estimados em 11 mil, bem como a esterilização cirúrgica progressiva dos
animais abandonados nas vias públicas.
A despeito da necessidade de recolhimento e tratamento de muitos ani-
mais e das condições ideais de cuidados e bem-estar presumirem a criação
do animal no ambiente doméstico sob a responsabilidade de seus guardiões,
fato é que não há espaço nem recursos para recolhimento e manutenção
de todos os animais de rua em condições que respeitem os indicadores de
bem-estar animal.
Nesse contexto, ascende o animal comunitário, em sua maioria cães e
gatos, tido como aquele que, embora não tenha um tutor único, estabelece
laços de dependência e manutenção com a comunidade em que vive.
Alguns estados e municípios do Brasil possuem legislações acerca dos
animais comunitários, reconhecendo sua existência e o direito de viverem
nos espaços públicos que habitam, amparados pela coletividade de tutores
com quem estabeleceram uma relação de cuidado e dependência (Figura 4).
146

Figura 4 – Legislação Estaduais e Municipais que


apresentam a Lei Cão Comunitário

Legislação Estadual sobre Cães Comunitários


Os estados que apresentam a legislação Estadual do cão comunitário

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são: Rio Grande do Sul, na Lei 13.193/2009, voltada para a proteção ani-
mal em geral, reconhece a existência dos cães comunitários, aos quais prevê
esterilização, identificação, registro e posterior devolução à comunidade de
origem. Na mesma toada seguem os Estados de São Paulo (Lei 12.916/2008),
Paraná (Lei 17.422/2012, Pernambuco (Lei 14.139/2010), Minas Gerais
(Lei 21.970/2016), Sergipe (Lei 8366/2017) Mato Grosso (Lei 10.740/2018),
Paraíba (Lei 11.140/2018) e Manaus (Lei 4957/2019), esta última voltada
exclusivamente aos cães comunitários.
Em suma, não há divergências com relação ao conceito de cães comuni-
tários e ao controle populacional ético, consistente na esterilização cirúrgica,
com vedação ao extermínio de animais saudáveis. As distinções se acentuam
no tocante às políticas públicas disponibilizadas a esses indivíduos. Exemplo
disso é a recente lei sancionada no Espírito Santo, que limita-se a conceituar
o cão comunitário e seu cuidador, a quem será permitido, nos termos da
lei, “fornecer alimentação, água e local adequado para proteção do animal
comunitário quanto às intempéries climáticas e demais riscos.” O texto não
prevê nenhuma política pública que vincule poder executivo aos cuidados
dos animais em situação de rua.
A ausência de regulamentação e medidas específicas perpetua o deslo-
camento do dever do Estado para ONGs, protetores independentes e outros
indivíduos que, movidos por empatia e compaixão, utilizam recursos privados
para executar o que, embora seja um dever ético moral coletivo, é obrigação
legal do poder público.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 147

Legislações Municipais sobre Cães Comunitários

As legislações Municipais que referem ao cão comunitário são; A


Lei 4956/2008, do Rio de Janeiro, é exclusivamente destinada aos animais
comunitários e elenca os direitos destes e as obrigações do município para
efetivá-los:

Art. 3º O animal comunitário deverá ser mantido no local onde se encon-


tra, sob os cuidados do Órgão Municipal para este fim apontado e cujas
atribuições estão relacionadas a seguir;
I – prestar atendimento médico veterinário gratuito;
II – realizar esterilização gratuita conforme disposto na Lei nº 3.739,
de 30 de abril de 2004;
III – proceder à identificação a ser feita por meio de cadastro renová-
vel anualmente.
Sancionada em junho de 2017, a Lei 15.449, de Campinas/SP, inclui
expressamente o animal comunitário e seu cuidador nas políticas públicas
municipais, sobretudo de esterilização cirúrgica.
Art. 13 Todo animal deve estar devidamente domiciliado [...].
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§ 1º Excetuam-se do disposto no caput deste artigo os cães caracterizados


como comunitários.
[...].
§ 3º Os cuidadores de pequenos animais comunitários devem se registrar e
cadastrar os animais no Sistema de Cadastramento Animal do município,
segundo o estabelecido no Capítulo II deste Estatuto.

As demais disposições estabelecem cuidados gerais e práticas consi-


deradas maus-tratos, bem como hipóteses de recolhimento do animal em
situação de risco e vulnerabilidade. A cidade é referência no tratamento aos
animais, sendo pioneira no serviço de UTI móvel animal, conhecido como
SAMU ANIMAL.
No Estado do Paraná, Londrina (Lei 11.468/2011) e Maringá
(Lei 10467/2017) estão entre as cidades que possuem legislação municipal
que prevê a proteção do animal comunitário. Curitiba, por sua vez, além da
Lei 13.908/2012, voltada à proteção animal, possui o Programa Cão Comu-
nitário, do LABEA – UFPR, que consiste na relação de cuidado por ações
integradas entre a Prefeitura e os cuidadores do canídeo.
Os municípios de Campo Grande (Lei 395/2020), Pelotas
(Lei 6.321/2016), Florianópolis (Lei 643/2018), Salvador (Lei 9.108/2016),
São José do Rio Preto (Lei 12.047/2016), Natal (Lei 6.803/2018) são exemplos
148

de cidades – rol não exaustivo – que também possuem disposições legais em


relação a animais comunitários.
As cidades citadas são exemplos de inserção do animal comunitário em
âmbito executivo e legislativo municipal, ao longo de mais de 10 anos. Além
de outros municípios que também trazem o animal comunitário no bojo de
suas leis, é crescente a apresentação de projetos de lei acerca da proteção e
bem-estar animal, que não raro abrangem os animais comunitários.

Animais comunitários: harmonização entre saúde pública e bem-


estar animal

A esterilização é marca uníssona nas leis que envolvem animais comu-


nitários, sendo fator de aproximação entre os interesses zoocêntricos, que
objetivam o bem-estar animal, e antropocêntricos, com a finalidade de reduzir
o número de seres vistos como vetores de transmissão de doenças.
Nas palavras de Baptistella, referindo-se a trecho da Ação Civil Pública
proposta pelo MPMT contra o Município de Cuiabá: “o ideal é que estes
animais parem de procriar até serem extintos das ruas”, pela alegada questão

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de saúde pública.
Nesse contexto, a atividade legiferante ativa acerca da proteção animal e
do animal comunitário promove o reconhecimento legal expresso de tais ani-
mais, sendo um mecanismo de proteção desses indivíduos e seus cuidadores,
embora muitas vezes de eficácia questionável no tocante a políticas públicas
pela falta de regulamentação.
Isso porque, a proteção desses indivíduos é permeada de conflitos entre
os seus cuidadores e pessoas que os veem como incômodo e/ou vetores de
doenças, de forma que a legislação, ainda que muitas vezes deficiente na
efetivação de cuidados por meio de políticas públicas, legitima e protege a
atuação daqueles movidos por afeto e empatia.
Para Almeida, viabilizar a proteção e cuidados do cão comunitário é uma
forma de harmonizar saúde pública e bem-estar animal, pelo envolvimento
do poder público e fortalecimento do vínculo do animal com a comunidade,
que, a um só tempo, promove barreiras sanitárias e reprodutivas e mitiga a
vulnerabilidade decorrente da falta de um tutor específico.
Num cenário ainda carente de políticas públicas verdadeiramente efeti-
vas, bem como espaço e recursos para a salvaguarda da dignidade dos milhões
de animais abandonados, a ideia de animal comunitário desponta com um
passo factível no processo de conscientização dos seres humanos e promoção
do bem-estar dos animais não humanos.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 149

Transconstitucionalismo

Diante da catalogação de leis estaduais na seara de direito e proteção


animal, é oportuno perguntar: são sujeitos de direitos apenas os animais parai-
banos, catarinenses, riograndenses ou mineiros? Apenas os cães e gatos comu-
nitários paraibanos tem direitos e são dignos de proteção? Os demais animais
que tiverem seus direitos violados nos demais estados da federação, são menos
dignos? Enquanto na Paraíba, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul ou em
Minas Gerais os animais são sujeitos de direitos e os cães e gatos comunitários
tem seus direitos devidamente catalogados, nos demais Estados os animais são
coisa, objeto ou algo parecido? Justifica-se que em uma Federação, regida por
uma única Constituição, disciplinadora de tantos direitos fundamentais, dê-se
tratamento tão desigual a entes submetidos à mesma situação?

O acolhimento do pet comunitário pela Bioética Ambiental

O pet comunitário é uma prática que encontra acolhimento na agenda


da Bioética ambiental, uma vez que visa a mitigação de vulnerabilidades
decorrentes do desenvolvimento tecnológico. As vulnerabilidades atreladas
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aos pets abandonados congregam diferentes atores: os animais, os protetores,


a comunidade e os gestores públicos.
Os animais e companhia compõem a fauna urbana como um elemento
que possui funções sociais fortemente enraizadas. Logo, esses animais pos-
suem o direito a uma vida digna em que tenham as suas 5 liberdades aten-
didas: devem estar livres de fome e de sede, livres de doenças e injurias,
livres de dor e sofrimento, livres de medo e estresse e livres para expressar
seu comportamento natural. Obviamente que o ser humano deve assumir a
responsabilidade para suprir essas necessidades quando o animal está sob a
sua tutela, o que não exime o seu papel de proteção para espécies que vivem
livres. Deve-se atentar que especialmente os cães e gatos que tiveram sua
evolução concomitante com os desenvolvimentos das civilizações, submeti-
dos a um processo de seleção que modificou o fenótipo e o comportamento
para atenderem diferentes demandas sociais. Assim, se na atualidade animais
dependentes dos seres humanos coabitam os centros urbanos, é uma respon-
sabilidade de toda a humanidade.
Diante dessa concepção há uma mobilização mundial em se resgatar,
recuperar e encaminhar animais errantes para adoção. Conduta digna e que
deve ser altamente respeitada pela sociedade, principalmente brasileira, onde a
maioria dos protetores exercem seu papel de forma voluntária, comprometendo
recursos financeiros e o tempo de dedicação para seu trabalho ou familiares.
150

Contudo, embora muitos cães e gatos errantes representem um transtorno e


até risco para sociedade, seja na transmissão de doenças, ou como causadores
de acidentes por ataques ou atropelamentos, nem todos estão aptos a trocarem
a liberdade das ruas para o confinamento das casas ou apartamentos. Logo,
se por um lado a vida errante sem alimento, abrigo ou cuidados veterinários
comprometem a dignidade desses animais, subtrair a sua liberdade, pode ser
uma conduta que comprometerá até mais no seu grau de bem-estar-animal.
Do outro lado da balança que pondera as argumentações dos atores envol-
vidos em um conflito está a sociedade e a cidade. A rotina de grandes centros
urbanos, o tamanho dos lares e elevado custo de vida, podem ser impeditivos
de uma pessoa conviver com um animal. Essa relação quando intermediada
por condutas de alteridade e empatia é muito salutar para ambos e as pessoas
têm a oportunidade de vivenciar uma fonte de afeto genuína. A adoção por
impulso é um dos principais fatores para o abandono, que justamente abas-
tecerá continuamente esse segmento. Concomitantemente os gestores públi-
cos precisam enfrentar os animais abandonados como um problema público,
muitas vezes levando a utilizar estratégias extremas para higienizar as ruas
da cidade. Embora os meios não sejam lícitos, os argumentos são aceitáveis,
pois o animal abandonado está vulnerável a assumir condutas agressivas, se

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expor a situação de risco e sim contribuir para transmissão de zoonoses.
A partilha do animal de companhia é uma conduta que permeou a própria
história da humanidade, os cães e gatos transitavam entre diferentes atores que
ora os alimentavam, trocavam favores e afetividade. O pet comunitário permite
a partilha de um interesse unindo agentes morais que se responsabilizam pela
integridade do animal, ao mesmo tempo que vivenciam o prazer e satisfação.
Somente na atualidade que o animal de companhia, passou a ser o animal de
estimação. Trocou os quintais e sua autonomia que permitia decisões que o
empoderavam quanto sujeito, como escolher o que comer, a hora que comer,
a hora e onde dormir. Os pets têm sido tratados como objetos, brinquedos
animados e até mesmo como filhos eternos. Logo, passaram a ter um dono!
A Bioética Ambiental acolhe a retomada do cão e do gato comunitário
como uma solução justa para todos os atores vulneráveis da questão. A partilha
da responsabilidade para cuidar da alimentação, saúde e segurança desses ani-
mais beneficia os mesmos que ainda detêm a liberdade de circulação, beneficia
a comunidade que tema oportunidade de fazer parte de um objetivo comum
e beneficia as cidades, que resolve um problema complicado.
Esses animais são microchipados, castrados, possuem atendimento
médico e seres humanos que olham por eles. Como foi apresentado no pre-
sente texto, o Brasil e diferentes países latino-americanos já demonstram o
interesse de apoiar essa conduta amparado em legislação, trabalhos comu-
nitários e educação ambiental. Todos ganham! Esse tema é acolhido pela
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 151

Bioética Ambiental e caberia perfeitamente no escopo de comitês de Bioé-


tica ambiental. Esses espaços de acolhimento e deliberação coletiva devem
envolver a comunidade, gestores públicos, empresários e acadêmicos que
debateriam e orientariam condutas coletivas para resolução de problemas
locais. Compartilhariam problemas e soluções.
Vislumbramos um futuro em que instituições de ensino, clubes, parques,
bairros e condomínios possam adotar um animal de companhia comunitário.
Que possam desfrutar da interação mais intensa entre duas espécies tão dis-
tantes filogeneticamente que existe na natureza. Poder dividir a sua existência
com um animal é sem dúvida uma experiência enriquecedora e prazerosa. Os
animais, juntamente com todas as relações sociais – estabelecidas com pais,
irmãos, parentes, amigos, parceiros –se constitui de uma fonte de afetividade
ímpar e insubstituível. Essa relação é capaz de desencadear sentimentos de
plenitude, contudo não exime a responsabilidade de tratar o animal como um
animal. As pessoas precisam gostar do cheiro do animal, da forma do animal,
do comportamento do animal e almejar se relacionar com um cão ou com
um gato, e não esperar deles respostas que só um outro ser humano pode dar.
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152

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A PANDEMIA E O
NOVO REGIME CLIMÁTICO:
a tarefa ética de impor limites à ação humana
Jelson Oliveira52

Desde que a Organização Mundial da Saúde declarou a difusão do novo


coronavírus, a partir da China, como uma pandemia, muitos pesquisadores
vêm apontando para uma íntima relação entre a proliferação de vírus e suas
respectivas doenças e as questões ligadas à emergência ambiental. A Covid-19,
assim, como as demais epidemias e pandemias, está ligada diretamente não
apenas às políticas de saúde como, principalmente, às políticas ambientais
em andamento no mundo contemporâneo, já que é resultado de um desequi-
líbrio sem precedentes na ordem natural – algo que o filósofo francês Bruno
Latour tem classificado como “novo regime climático” (2020), derivado da
ação humana na era do Antropoceno. Em outras palavras, a crise sanitária é
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um dos produtos mais perigosos da crise ambiental.


Dando-se crédito a tais diagnósticos, é preciso acrescentar que o desgaste
do meio-ambiente, associado a outros fatores como aumento populacional e
intenso intercâmbio de pessoas e produtos no mundo globalizado, projetam
chances reais de que novos episódios pandêmicos sejam frequentes no futuro.
Trata-se de reconhecer a crescente vulnerabilidade humana diante das conse-
quências negativas dos processos de desenvolvimento e exploração desmedida
da natureza, que têm levado à destruição dos habitats naturais, ao desequilíbrio
ecológico e extinção de espécies. Some-se a isso, o sistema predatório e crimi-
noso que envolve o tráfico de animais silvestres, a biopirataria, os experimentos
farmacêuticos ilegais e uma série de procedimentos que envolvem o manuseio
de organismos vivos que podem levar ao surgimento e à difusão de patógenos.
A depredação da ordem ecológica traz consequências danosas para a
humanidade porque abrem caminho para o surgimento de patógenos e doen-
ças, dado que muitos hospedeiros originais desses vírus, por perderem seus
habitats, acabam se aproximando dos humanos, fato que se agrava quando
hospedeiros intermediários desses vírus são consumidos ilegalmente pelos
seres humanos. Passando pelo sistema digestivo e daí ao respiratório, esses
vírus passam a representar uma ameaça disseminada globalmente, apoiada

52 Doutor em Filosofia; professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, onde dirige a


Cátedra Hans Jonas. É coordenador do Grupo de Trabalho de Filosofia da Tecnologia e da Técnica, da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) do Brasil.
158

pelas redes de comunicação e transporte que caracterizam a vida moderna. No


caso do coronavírus, a hipótese mais provável apontada por especialistas, não
diz respeito apenas à destruição do habitat natural do Manis pentadactyla (uma
espécie de tatu que serviu de hospedeiro intermediário ao vírus, depois de ter,
provavelmente, comido insetos que se alimentaram das fezes de morcegos
selvagens), mas precisamente o comércio ilegal desse animal. Nesse sentido,
a relação entre a devastação ambiental e o tráfico de animais silvestres para
consumo humano, associados aos fatos antrópicos como as viagens intercon-
tinentais e a falta de políticas de controle sanitário e fitossanitário nas grandes
metrópoles, formam o cenário perigoso que tem levado à morte de quase três
milhões de pessoas ao redor do mundo.
A extração de animais silvestres de seus habitats naturais e a destruição
do equilíbrio ecológico do planeta, como se sabe, andam a passos largos e são
característicos do modelo de sociedade em que vivemos, baseada na explora-
ção irresponsável da natureza e no consumo desenfreado de bens materiais,
facilmente descartados em montanhas de detrito, em um círculo vicioso sobre
o qual estão assentadas as bases da atual emergência ambiental. Nesse sentido,
a proteção da natureza caracteriza-se como uma necessidade urgente, tanto
em vista dos direitos próprios dos demais seres vivos quanto de proteção da

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própria humanidade, agora e no futuro. Sem isso, a humanidade estará sempre
de novo à mercê de epidemias e pandemias, sempre mais perigosas porque
sempre mais baseadas no empobrecimento natural e no desequilíbrio ambiental.
As pandemias, assim, ao lado de outros eventos como guerras e mudanças
climáticas (com cataclismos cada vez mais comuns e mais severos) represen-
tam a trinca da catástrofe humana de agora em diante, pra o que a sociedade
precisa encontrar formas urgentes de enfrentamento. O que se nota, contudo,
é que as tentativas até agora fracassaram e os custos (em vidas humanas e
em prejuízos econômicos) são incalculáveis e se estenderão pelas próximas
gerações de forma insolúvel e agravadas cumulativamente. Foi o que apon-
tou Miguel Nicolelis, neurocientista e coordenador do Consórcio Nordeste,
em palestra no debate “Ciência e Natureza – Pandemia como parte da crise
ambiental: é possível enfrentar as mudanças climáticas sem mudar o sistema?”,
realizada em junho de 2020 durante o Fórum Popular da Natureza. Para ele,
há uma relação direta entre o sistema capitalista e os riscos impostos pelo
atual modelo civilizatório baseado no capitalismo que, para ele, é “um sistema
econômico que expôs a toda espécie e planeta a possibilidade de, quando a
gente avança nos ecossistemas, destrói as cadeias de relação de ecossistemas,
a gente abre o leque de possibilidades da espécie ser extinta”53. Nicolelis é

53 Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/04/cientistas-debatem-a-relacao-entre-o-capitalis-


mo-a-crise-ambiental-e-a-pandemia. Acesso em: 6 mar. 2020.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 159

taxativo a esse respeito: para ele, “o desequilíbrio com o meio ambiente e


na nossa interação com outras espécies animais e com a flora do planeta foi
exposto numa ferida que gerou um vírus que pôs o planeta inteiro de joelhos”.
O que ocorre, afinal, no modelo capitalista, é a transformação da natureza
em mercadoria – sejam as plantas, sejam os animais, sejam os próprios seres
humanos. Nenhum enfrentamento da catástrofe pode ser eficaz se não aceitar
mudar essas premissas, começando por reverter a convicção que contrapôs
a natureza ao progresso, elegendo este último como epíteto recomendatório
e como única chave para a felicidade humana, em detrimento de todos os
modos de vida que se mantém em relações equilibradas com a natureza ao
redor, como é o caso, por exemplo, dos indígenas e das demais comunidades
tradicionais no Brasil e em outros lugares do mundo.

Os limites naturais

Tudo isso diz respeito ao limite imposto pela própria natureza e ao


esforço que a humanidade precisa fazer para respeitar esse limite. O filósofo
alemão Hans Jonas, autor de um dos livros mais importantes da ética contem-
porânea, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
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tecnológica (1979) chamou atenção precisamente para esse aspecto da crise


ambiental. Para Jonas, o principal problema da chamada civilização tecnoló-
gica (especialmente aquela de tipo capitalista), é precisamente o fato de que
ela não considera o conceito de limite. E o faz por princípio, já que a aceitação
de algum limite colocaria em xeque a própria concepção de progresso e de
desenvolvimento que foi difundida com a crença (errada) de que a natureza
ofereceria condições e matéria-prima ilimitadas para a expansão desse modelo.
O problema não tratado e propositadamente ocultado nessa expansão é que
os limites, no caso, os recursos naturais, não são renováveis e incluem não
só a finitude das matérias primas (até agora, afinal, somos extratores e não
produtores de carvão, petróleo, gás natural, ferro, manganês, água etc.) mas
também os riscos de danos irreparáveis à herança natural e à própria conti-
nuidade da vida humana e extra-humana no futuro. Os números a respeito da
onda de extinção da vida no mundo contemporâneo são apenas a mais grave
das evidências quanto a esses prejuízos e a pandemia é o sinal mais claro de
como essa crise alcançou o próprio sistema que foi obrigado a repensar o seu
projeto – pelo menos pelo curto espaço de tempo de isolamento social e de
lockdown, quando as máquinas tiveram de ser paradas não, como insistiam
os ambientalistas, para salvar o planeta, mas para salvar a humanidade.
Escassez e limite são palavras de ordem que tornam ingênua, senão mal-
dosa, a defesa da velha ideia de desenvolvimento a todo custo: poluição do ar,
das águas e dos solos, acúmulo de lixo tóxico, extinção da vida e a mudança
160

insana no clima do planeta são sinais claros de que o ideal de desenvolvimento


precisa ser superado urgentemente. Hans Jonas analisa de forma direta essa
questão no último capítulo de sua obra magna, mais especificamente no item
que trata da “Crítica da utopia marxista” e das “Condições materiais que se
apresentam como limites à realização das utopias em geral”. Para o filósofo
judeu-alemão, “a primeira condição da utopia é a abundância material, de
modo a satisfazer as necessidades de todos; a segunda condição é a facili-
dade em adquirir essa abundância” (JONAS, 2006, p. 299), dado que o lazer,
“essência formal” das utopias, só pode existir com conforto, ou seja, com
abundância de bens de consumo, alcançados sem ou com mínimo esforço
(já que o lazer exige liberdade em relação ao constrangimento do trabalho).
Para Jonas, essa seria, afinal, a função social da técnica. Segundo ele,
difundiu-se a crença de que o “fomento da abundância e a comodidade na
sua obtenção podem ser obtidos pela radicalização da técnica avançada”, algo
que vem sendo alcançado pela reconstrução da natureza e pela mecanização
do trabalho. As máquinas são o modo segundo o qual é possível retirar da
natureza as suas riquezas de forma rápida e satisfatória. Mesmo nas socie-
dades marxistas, que prometem usar a técnica de maneira socialmente mais
adequada, as consequências negativas do uso da máquina aparecem como

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evidentes, já que, para fazer rimar abundância com lazer, “a palavra de ordem
tem de ser o crescimento da produção global e uma técnica mais intensa e
mais agressiva” (JONAS, 2006, p. 300).
O problema reside justamente nos “limites de tolerância da natureza” em
relação a esse crescimento exponencial do poder tecnológico: “a questão é
saber”, pergunta o filósofo, “como a natureza reagirá a essa agressão intensifi-
cada”, pouco importa que ela venha da direita ou da esquerda (JONAS, 2006,
p. 300). Afinal, “não se trata de saber precisamente o que o homem ainda é
capaz de fazer [...] mas o quanto a natureza é capaz de suportar”, até a mais
decisiva das fronteiras, ou seja, o desaparecimento das condições gerais da
vida, incluindo a própria humanidade: “os limites são ultrapassados, talvez
sem volta atrás, quando esses esforços unilaterais arrastam o sistema inteiro,
dotado de um equilíbrio múltiplo e delicado, para uma catástrofe do ponto
de vista das finalidades humanas” (JONAS, 2006, p. 301). Tal catástrofe está
ligada, portanto, ao desconhecimento ou ao desrespeito dos limites por parte
do desenvolvimentismo. Tais limites, contudo, podem ser facilmente conhe-
cidos por aquilo que Jonas chama de “domínio de saber da jovem ciência
ecológica” (JONAS, 2006, p. 301), a qual conjuga saberes tão diversos como
a biologia, a agronomia, a geologia, a climatologia, a economia, a engenharia
e o urbanismo, que devem, agora, fornecer à ética elementos capazes de ele-
var o grau de responsabilidade do ser humano diante do risco da catástrofe.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 161

Jonas, apoiado nos dados fornecidos pela ciência de seu tempo, ana-
lisa quatro desses limites: [1] o problema da alimentação: segundo ele as
tecnologias agrícolas baseadas na mecanização, no emprego extensivo de
fertilizantes e, hoje, na transgenia, tem levado ao esgotamento dos solos e
à poluição das águas, ao desmatamento e ao consequente aumento da tem-
peratura do planeta; [2] o problema das matérias-primas: esgotamento das
reservas naturais e, inclusive, consumo dos reservatórios mais profundos, a
imensos dispêndios de energia para acessar novas energias, numa corrente
cada vez mais autofágica; [3] o problema energético: fontes não-renováveis
como os combustíveis fósseis, contribuem para a poluição dos ares e agravam
o aquecimento climático; e as renováveis, por sua vez, como a energia solar
e a hidrelétrica, além de insuficientes para o progresso, são sempre soluções
parciais; enquanto a energia nuclear, além de arriscada, também está limitada
fisicamente; e [4] o problema térmico: o efeito estufa seria agravado pelo
consumo ilimitado e pela extração de matérias primas a níveis tão altos do
ponto de vista termodinâmico. Para Jonas, o desenvolvimentismo precisa
lidar com esse balanço energético negativo, no qual o processo produtivo
consome muito mais energia do que aquela gerada pelo produto, levando
ao insustentável divórcio entre o cálculo monetário e o material-energético.
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Os limites éticos

Diante desse cenário de tantos limites e de escassez de recursos, caberá


à humanidade construir processos de mediação capazes de satisfazer as suas
necessidades sem hipotecar o futuro em definitivo, de forma a impedir que
as gerações vindouras possam pagar a dívida contraída pelos seres humanos
do presente. Para Hans Jonas, esse é o novo papel que deveria ser assumido
pela ética: garantir as possibilidades de que “uma autêntica vida humana sobre
a Terra”, ou seja, que os efeitos das ações de agora “não sejam destrutivos
para a possibilidade futura de tal vida”, conforme ele mesmo insiste em seu
imperativo categórico (JONAS, 2006, p. 47). Isso tudo tem como horizonte
a “incerteza dos prognósticos de longo prazo” (JONAS, 2006, p. 83), dado
que a ação do ser humano no mundo é marcada por novas dimensões globais
de espaço e tempo quanto ao poder de impacto – ninguém sabe até quando
no futuro e até onde no espaço as consequências das ações de agora poderão
causar danos e impor riscos. Para Jonas, é parte do pensamento ético a exi-
gência de que não se pode admitir que “o meu agir afete o destino de outros”
(JONAS, 2006, p. 84), embora também não se possa evitar que isso aconteça,
dado o constante e indissolúvel entrelaçamento entre as questões que dizem
respeito à vida humana: “arriscar aquilo que é meu significa sempre arriscar
também algo que pertence a outro e sobre o qual, a rigor, não tenho nenhum
162

direito” (JONAS, 2006, p. 84). É esse “entrelaçamento dos assuntos humanos”


que torna a vida humana sempre uma vida coletiva, na qual as decisões de um
indivíduo podem afetar a vida de outros tantos, ainda mais quando se trata de
questões tão centrais como as que dizem respeito aos limites impostos pela
natureza. Essa é a nova consciência ética exigida das gerações do presente:
elas precisam saber que suas ações têm impactos indefinidos no futuro e devem
aprender a conviver com essa culpa e, inversamente, é preciso sempre incluir
os outros em qualquer aposta realizada nesse campo.
Ora, “a existência ‘do homem’ não pode ser objeto de aposta”
(JONAS, 2006, p. 86) e esse se torna o problema ético mais importante: trata-
-se de “um princípio que proíbe certos ‘experimentos’ de que a tecnologia se
tornou capaz”, e cuja “expressão pragmática” será a ideia de que é preferível
dar preferência ao prognóstico negativo, ou seja, à imaginação do mal possível
e provável, ao invés daquela defendida pelas utopias do progresso técnico,
cujo desenho de futuro dá preferência aos prognósticos positivos. Jonas, nesse
ponto, lança mão do conceito de “heurística do medo” (JONAS, 2006, p. 71)
como parte daquilo que ele chama de “futurologia comparativa”: ao desenhar
o futuro, devemos reunir o máximo de informações possíveis (que sejam, ao
mesmo tempo, imaginativamente criativas e cientificamente embasadas) e,

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nesse esforço prospectivo, dar prioridade aos danos possíveis, com o fim de
que a sua imaginação contribua para nos preparar para o seu enfrentamento
e, até mesmo, para despertar o sentimento de responsabilidade capaz de reo-
rientar a ação no presente a fim de evitar o mal futuro. Isso porque, para o
filósofo, “o princípio ético fundamental” é que “a existência ou a essência do
homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir”
(JONAS, 2006, p. 86). A simples possibilidade de que a ação do presente possa
afetar negativamente as gerações do futuro deve servir de freio para essa ação.
Para isso, Jonas insiste que é necessário alterar o modo como nos relacionamos
com a ideia de certeza e dúvida: “para tomarmos uma decisão, deveríamos tratar
como certo aquilo que é duvidoso, embora possível” (JONAS, 2006, p. 87).
O limite da ação, portanto, é o risco que ela impõe à vida em geral: “a
esse tipo de aposta de tudo ou nada se pode objetar, entre outras coisas, que,
em comparação com o nada, que aqui é assumido entre outros riscos, qualquer
coisa – mesmo a vida fugidia e passageira – torna-se uma grandeza infinita”
(JONAS, 2006, p. 87). A ética de Jonas é, portanto, uma ética que pretende
impor limites lá onde eles já existem ou, em outras palavras, ela reconhece
os limites impostos pela natureza e, a partir deles, estabelece freios à própria
ação humana. Isso se revela na proibição radical da aposta quando o que está
em jogo é a possibilidade de existência da vida no futuro: o princípio ético da
responsabilidade proposto por Jonas “proíbe que nos arrisquemos por nada,
impede que este risco seja admitido em nossa escolha – em suma, proíbe a
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 163

aposta do tudo ou nada nos assuntos da humanidade. Ora, tal imposição de


limites éticos advindos dos anteriormente reconhecidos limites da própria
natureza, “se faz a partir de um dever primário com o Ser, em oposição ao
nada” (JONAS, 2006, p. 87). Para Jonas, o ser humano é, eticamente falando,
o guardião do Ser porque agora ele adquiriu um poder capaz de afetar tanto
formalmente (ele pode redesenhar o ser) quanto substancialmente (ele pode
destruir o ser) a vida humana e extra-humana.
Vemos, assim, que a ética da responsabilidade está embasada em dois
pilares: os limites impostos pela própria natureza e a obrigação do humano
em relação aos demais seres, já que só ele é capaz de responsabilidade – e,
note-se: se só ele pode ser responsável, essa é uma característica própria que
ele deve desenvolver/assumir para se realizar plenamente como ser humano.
O ser humano está incondicionalmente obrigado a assumir essa responsabili-
dade porque, no seu caso, o poder se responsabilizar é parte de sua “essência”,
por assim dizer e assumi-la é a condição para que ele mesmo se realize como
ser humano. Para Jonas, isso “não é apenas um mero conselho de prudência
moral, mas [um] mandamento irrecusável” (JONAS, 2006, p. 87).
Diante dessa perspectiva, “a prudência, virtude opcional em outras cir-
cunstâncias, torna-se o cerne de nosso agir moral” (JONAS, 2006, p. 88).
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Assim, a prudência passa a ser a virtude por excelência da ética da respon-


sabilidade, embora a sua concretização se efetive na capacidade de previsão:
“com o aumento do poder humano, as possibilidades se fazem tão extremas,
[que] a projeção do futuro, a longo prazo, hipotética, cientificamente fundada”
(JONAS, 2013, p. 64) se torna, então, a virtude por excelência e o “primeiro
valor” da nova ética – valor é compreendido, aqui, como a ideia do “que é
bom, correto e almejável” capaz de orientar as nossas pulsões e desejos a
fim de evitar que a situação de emergência alcance os índices imaginados
e previstos. Para isso, o primeiro valor seria “o valor da máxima informa-
ção sobre as consequências tardias de nosso agir coletivo”, sendo que, para
o filósofo, “o sentido de ‘máxima’ inclui aqui a cientificidade da dedução,
aliada à vivacidade da imaginação”, para que, afinal, isso possa “ter força para
codeterminar nossa conduta, tão poderosamente dominada pelos interesses
do agora” (JONAS, 2013, p. 74). O novo nesse processo é o fato de que se
trata de colocar diante de nós aquilo que está longe dos olhos, ou seja, incluir
as consequências a longo prazo como parte dos atos do presente, “em con-
sonância com a proximidade dos objetivos ao alcance de nosso poder”, algo
para o que as experiências passadas pouco ou quase nada podem ajudar. O
que é novo, afinal, é que “a magnitude causal dos empreendimentos humanos
cresceu incomensuravelmente sob o signo da técnica; a perda do processo se
tornou a regra e a analogia com a experiência anterior deixou de ser eficiente;
os efeitos a longo prazo são calculáveis, mas também contraditórios; já não
164

se pode construir sobre as forças regeneradoras do conjunto que nossa ação


arrasta consigo” (JONAS, 2013, p. 75). Em outras palavras, “com a grande
técnica anotamos a frase de que o mundo de amanhã não será similar ao de
ontem” (JONAS, 2013, p. 75). O conhecimento, nesse caso, precisa alcançar
o máximo possível o poder; e a ética não pode, nunca, ser alijada do processo
técnico; sendo que o conhecimento deve ser o máximo possível um adianta-
mento dos riscos futuros, um conhecimento prévio. Isso é chamado por Jonas
de uma “nova ciência (ou arte) da futurologia”, um saber que” nos permite
ver os efeitos a longo prazo” e é precisamente nisso que o conhecimento se
encontrará novamente com a ética: “será nesta forma e função um novo valor
para o mundo de amanhã” (JONAS, 2013, p. 75).
A característica desse novo saber, que agora articula os dois âmbitos
que nunca deveriam ser desvinculados, ou seja, o âmbito do saber/fazer e
do dever, da técnica e da ética, é que ele “não serve para aumentar nosso
poder” como ocorre, por exemplo, nas ciências naturais, nas quais se apoia,
“mas para vigiá-lo e protegê-lo de si mesmo” (JONAS, 2013, p. 75). Jonas
é enfático nesse ponto: a ética precisa gerenciar o uso dos poderes em vista
daqueles limites impostos pela natureza e que se transformaram, com o conhe-
cimento dos riscos, em uma ameaça evidente. “Em última instância”, diz ele,

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isso seria um “poder sobre o poder precedente surgido das ciências naturais”
(JONAS, 2013, p. 75). Esse poder (da ética) sobre o poder (da técnica) é deri-
vado da capacidade de adiantar as informações sobre o provável ou possível,
a fim de que isso desperte em nós um sentimento adequado capaz de mover
a ação na direção da sua finalidade ética, ou seja, a garantia das condições da
vida futura. Para o filósofo, esse processo reconduziria a ciência e a técnica aos
trilhos dos quais ela jamais deveria ter desviado: “mediante esta vinculação
com o sentimento que responde a um futuro estado do homem, esta previsão
contribuirá para humanizar os conhecimentos científicos-técnicos que, ao
extrapolar o futuro, terão de se fundir com o conhecimento do ser humano”
(JONAS, 2013, p. 75). Ora, esse sentimento adequado seria o temor, cujo
valor Jonas recupera na sua ética da responsabilidade, na medida em que
ele poderia despertar em nós a obrigação de evitar que a realidade temida se
efetive. Diante do poder da técnica, o temor acompanha a responsabilidade,
que se situa, por si mesma, “no cume de todos os valores”, já que “seu objeto
é o maior entre os que somos capazes de pensar, e como objeto prático, ele
é até mesmo um objeto nunca antes pensado, com exceção da escatologia
religiosa: o futuro da humanidade” (JONAS, 2013, p. 76). É essa responsa-
bilidade diante de um objeto de tamanha grandiosidade que inclui o temor
como um dos pilares da ética, não para que ele sirva apenas de ameaça ou
de advertência amedrontada, mas, ao contrário, para que ele estabeleça as
condições para que o objeto seja protegido.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 165

Junto com o temor, Jonas elenca outros valores como essenciais para que
a ética consiga impor “freios voluntários” à técnica. Em seu texto No limiar do
futuro: valores de ontem e valores para amanhã, publicado em 1983 e acrescen-
tado como o terceiro capítulo de sua obra de 1985, Técnica, medicina e ética,
Jonas lista uma série de valores que seriam característicos dessa nova atitude
ética, necessária para os tempos do poder desmedido, da “vontade de ilimitado
poder” (JONAS, 2013, p. 34) que marca a civilização tecnológica: modéstia,
precaução previsora, frugalidade, continência, temperança, parcimônia, comedi-
mento e autonegação (JONAS, 2013, p. 76-77). O filósofo, contudo, reconhece a
dificuldade da sociedade contemporânea diante dessas virtudes, pois a tecnologia
e o sistema socioeconômico que a apoia e financia dão constante preferência
e valorizam comportamentos contrários, precisamente aqueles que têm a ver
com o que Jonas identifica como a “gula”. Para ele, recusa-se hoje qualquer
tipo de ideal ascético em nome de uma vida superior, agora associada à capaci-
dade consumo. Tal atitude é “favorecida por uma riqueza de bens exuberantes
e acessíveis a todos”, algo que “a converteu em uma colaboradora necessária
e meritória na marcha da moderna sociedade industrial, que proporciona, ao
mesmo tempo, a seus membros os ingressos para desfrutá-la”, tudo segundo o
modelo da produção e do consumo que é incitado constantemente pela publi-
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cidade. A gula, assim, de vício (como ocorria nas éticas tradicionais) tornou-se
uma virtude da civilização tecnológica, carregada de “coações e estímulos”
que criam um “clima de indulgência geral” amparada em inúmeras possibili-
dades materiais que fecham os olhos precisamente àquela lógica do limite e
da escassez apontadas anteriormente. Nesse contexto, a ética terá de lançar o
apelo para um valor que é tão antigo quanto novo: a frugalidade nos modos
de consumo, para o qual Jonas vê dois caminhos, ou o “consenso voluntário”
ou, já na emergência e na catástrofe, “a coação legal”. Obviamente, a ética
deveria nos salvar do pior também nesse campo, para que não seja necessário
que abramos mão da liberdade em benefício das garantias de continuidade da
vida. À consciência coletiva cabe assumir a tarefa de renunciar aos poderes e
às posses cujo resultado têm ultrapassado o limite do tolerável.
Esse apelo à “consciência voluntária” é a urgência de nosso tempo e para
ele devem se dirigir todas as energias éticas: “para deter o saque, o empo-
brecimento das espécies e a contaminação do planeta que estão avançando a
olhos vistos, para prevenir um esgotamento de suas reservas, inclusive uma
mudança insana no clima mundial causada pelo homem” (JONAS, 2013,
p. 77). É dessa consciência coletiva, portanto, que precisamos e, caso ela se
atrase, serão cada vez mais necessárias formas variadas (e indesejáveis) de
coações legais, que podem, inclusive, incluir certas atitudes associadas por
Jonas a uma tirania ecológica, que nos abrigarão a fazer aquilo que não fomos
capazes de fazer de livre e espontânea vontade. Para Jonas, a democracia
166

oferece poucas expectativas quanto às respostas cada vez mais urgentes nesse
campo, “de modo que a necessária legislação teria que se produzir de forma
autoritária, como parte de uma ordem política alternativa, o que em nome da
liberdade seria de se lamentar” (JONAS, 2013, p. 79).
Ora, esse é um cenário indesejado e o melhor caminho a tomar seria aquele
indicado pela ética da responsabilidade, pela qual a civilização tecnológica
assumisse voluntariamente a tarefa de identificar e respeitar os limites, seja
individual, seja social e politicamente. Isso incluiria abrir mão das “grandes
realizações” sonhadas pelos últimos séculos de desenvolvimento tecnológico,
algo que ninguém parece disposto a fazer, entre as quais Jonas aponta o prolon-
gamento da vida, a alteração genética, o controle psicológico do comportamento,
a produção industrial e agrária, a exploração dos recursos minerais, o incre-
mento de toda eficiência técnica. O freio do consumo, que está ligado ao freio
de produção e, em última instância, ao freio do poder torna essa uma exigência
cuja urgência está ligada à vida da humanidade no futuro: “pôr limites e saber
mantê-los, inclusive naquilo que com razão estamos mais orgulhosos pode ser
um valor completamente novo no mundo de amanhã” (JONAS, 2013, p. 80).
Essa, contudo, é uma exigência que pouco tem a ver com o ritmo do
atual progresso, “porque em toda parte se alcançam pontos nos quais a posse

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do poder leva consigo a tentação quase irresistível de empregá-lo, mas as
consequências de seu uso podem ser perigosas, danosas, e quando menos,
completamente imprevisíveis” (JONAS, 2013, p. 80). Para Jonas, a exigência
da ética é um paradoxo, na medida em que o apelo à moderação exerce um
efeito indesejado sobre os ouvidos da humanidade contemporânea, tão acos-
tumada à lógica do excesso imposta pelo progresso tecnológico e sua lógica
de consumo. Ninguém parece disposto a fazer concessões agora para salvar
o indefinido do amanhã. Hoje, o poder está de tal forma associado ao fazer
que se torna praticamente impossível evitar o seu uso. Por isso, para Jonas,
o melhor seria “nem mesmo possuir o aludido poder”, em outras palavras,
renunciar ao poder, algo que pode ser doloroso para todo espírito criador, mas
urgente para qualquer pessoa que reconhece a urgência dos nossos tempos.
Para Jonas, a crença de que “as feridas abertas pela técnica podem ser
curadas por uma técnica ainda melhor” (JONAS, 2013, p. 80), um argumento,
ademais, bastante comum entre aqueles que defendem o avanço do galope
tecnológico, não tem sentido do ponto de vista ético. Ao contrário, para ele,
um tal avanço desenfreado deve ser evitado a todo custo. Cabe agora à ética,
dada a gravidade dos fatos, evitar que novas feridas sejam abertas. Porque
nem sempre o progresso técnico é capaz de corrigir os seus próprios efeitos
negativos, resta apenas a contenção na descoberta do próprio poder. Além
disso, não se pode contar “com futuras milagres da técnica para se permitir
começar a ser audazes”: depois de inventado, mesmo com os vários riscos que
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 167

nele estão contidos, o poder encontra dificuldade de ser gerenciado e orientado,


leia-se, limitado, por qualquer “política de renúncia” (JONAS, 2013, p. 81).
A modéstia, torna-se, uma virtude difícil de aprender, portanto.
Em sua reflexão sobre as obrigações da sociedade de agora em relação à
persistência da vida humana no futuro, Jonas examina, nesse texto, o conceito
mesmo de “humanidade”, sobre o qual a ética agora reivindica a nossa atenção.
Para ele, a gravidade da situação exigiria que a humanidade como um todo
assumisse a responsabilidade sobre si mesma, entregando-se “a algo maior e
mais amplo”, embora isso seja de difícil identificação prática. “Sacrificar-se”
por alguma causa maior, não é algo estranho ao ser humano (JONAS, 2013,
p. 81), mas a resistência a esse empreendimento continua sendo muito forte
precisamente porque os ideais envolvidos parecem absolutamente abstratos
e, em sua maioria, alheios aos próprios agentes. Como se responsabilizar
perante esse “o todo” representado pela ideia de “humanidade”? O que nos
faria retomar a nossa responsabilidade por algo tão grandioso e, ao mesmo
tempo, tão abstrato e impalpável?
Para Jonas, seria preciso, primeiro, desenvolver cada vez mais um sentido
pleno do que este “todo” representado pela humanidade representa para cada
indivíduo. Eis porque, “o despertar, a manutenção, e inclusive a fundamentação
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de um sentimento pela ‘humanidade’ é uma importantíssima tarefa educativa


e intelectual para o mundo do amanhã” (JONAS, 2013, p. 82). Tratar-se-ia de
desenvolver cada vez mais esse sentimento e, também, essa consciência racional
em torno da ideia de humanidade, em torno da qual deveriam se formar redes
de solidariedades. Trata-se de um objeto ético representado pela “causa supra-
nacional da humanidade”, mas que se apoiaria na afirmação do mais próximo,
afinal é esse que encarna, concreta e cotidianamente, aquela ideia abstrata. Para
Jonas, seria importante que cada estado nacional favorecesse em seus membros
uma conduta cotidiana capaz de garantir a continuidade dessa abstração a partir
da concretude de suas existências. Cada vez mais, será preciso que os indivíduos
assumam a sua tarefa: “aqueles que reconheceram tal futuro e o risco que este
corre têm de converter-se em seus porta-vozes incansáveis – tão incansáveis
como essa mesma cotidianidade ameaçadora” (JONAS, 2013, p. 83).
Assim, a ética deveria nos ajudar a superar o “infame pessimismo e
fatalismo” que acaba por “justificar cruzar-se os braços” (JONAS, 2013, p.
83). Para Jonas, precisamos insistir e ensinar que “o ser humano deve ser” e,
para isso, precisamos de um “renovado saber da essência do homem e de sua
posição no universo”, um saber capaz de alterar e despertar no ser humano
a obrigação ética de sua própria preservação, ou seja, em cada indivíduo o
compromisso com o todo do qual ele é parte. Jonas sabe que esse é, afinal,
mais um obstáculo para a ética da responsabilidade, porque ela demandaria
o enfrentamento de um dos dogmas centrais do pensamento contemporâneo:
168

o enfrentamento de uma questão de estatuto metafísico. Em outras palavras,


falar de uma humanidade a ser preservada é colocar o pé no proibido terreno
metafísico. Trata-se de “criar as bases para um saber assim por cima do inson-
dável e dar à exigência de solidariedade humana, e especialmente à obriga-
ção para com o futuro distante, uma autoridade que nenhuma consideração
pragmático-utilitarista pode dar-lhe por si só – esta seria uma tarefa para a
metafísica, caiu em descrédito filosófico, a qual também teria de contar com
os entre os valores para o mundo de amanhã” (JONAS, 2013, p. 83). Embora
a necessidade disso seja evidente, Jonas tem consciência de que se trata de um
desafio a mais para a sociedade contemporânea: a ação ética, já tão difícil de
ser implementada, esbarra ainda no dilema de que seu objeto é de tal forma
grandioso, que precisa ser analisado nas antigas raias de um pensamento
metafísico, cuja atualidade e oportunidade parece superada.

Considerações finais

Para Jonas, como vimos, a ética deve [1] reconhecer e visualizar os


limites da natureza e [2] impor limites à própria ação humana, com o fim
de evitar a arbitrariedade em todos os níveis, “junto com as libertinagens,

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já não toleráveis, de um capitalismo desenfreado e seus excessos de con-
sumo, também algumas liberdades que nos são queridas, pessoais e coleti-
vas” (JONAS, 2013, p. 84). Será que a liberdade se tornará, nesse cenário,
apenas um luxo ultrapassado? Será que a crise nos aproximará cada vez mais
do fantasma da tirania? Será que seremos capazes de impor a nós mesmos,
voluntariamente, uma disciplina, ou melhor, uma autodisciplina, capaz de nos
salvar do pior? Será que seremos capazes de renunciar à licenciosidade que
rege os comportamentos atuais? Para Jonas, está claro: “cabe a nós evitar a
necessidade da tirania, controlando-nos e sendo mais uma vez rigorosos em
relação a nós mesmos” (JONAS, 2013, p. 84). Para ele, “como todos somos
cúmplices do sistema, enquanto consumimos os frutos de sua rapina, todos,
cada um de nós – podemos fazer algo para mudar o rumo de sua ameaça,
modificando nisso e naquilo nossa forma de vida – colaborando, por exemplo,
na reabilitação da autodisciplina em si” (JONAS, 2013, p. 84). Isso porque, no
fim, “a causa da humanidade se impulsionará a partir de baixo e não de cima”
(JONAS, 2013, p. 85), ou seja, a partir dos cidadãos comuns que assumem
sua responsabilidade, antes que sejam necessárias medidas autoritárias por
parte de leis e legisladores.
Todos esses esforços de contenção e moderação no acesso e no uso dos
poderes deve incluir um novo estilo de vida, o que exige também uma nova
relação com a natureza, um respeito para com as demais formas de vida e a
preservação de seus habitats naturais. Sem isso, destruiremos não apenas a
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 169

biodiversidade em seu direito próprio e intrínseco de existir, como também


colocaremos em risco a continuidade da existência da própria humanidade
no futuro. É essa, afinal, a tarefa que a ética da responsabilidade nos leva a
assumir – uma tarefa que a pandemia do novo Coronavírus evidencia com
assustadora clareza, exigindo o engajamento de todos os indivíduos, em
vista do bem comum. Os casos de desrespeito, negacionismo e desleixo,
contudo, também deixam claro o quanto será difícil para a nossa geração
cumprir tal tarefa.
Como bem apontou Bruno Latour (2020), esse é um problema central
de nossa civilização e, por isso mesmo, um problema político de primeira
grandeza. Para ele, a conclusão de que a natureza não é capaz de oferecer
indefinidamente e para todos os seres humanos, os insumos para a manutenção
do estilo de vida proposto pelo capitalismo, as “elites obscurantistas” optaram
pelo caminho da irresponsabilidade, rescindindo definitivamente os contratos
e pactos sociais que ligavam todos os seres humanos a um destino comum.
Estaríamos, nesse sentido, no tempo da pós-política, quando tais elites chegam
ao poder pelas mãos de governos negacionistas e proclamam o fim do sonho
de construção de um mundo comum, no qual todos os seres vivos possam
viver em harmonia. Estabelecer políticas para proteger os recursos naturais,
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promover uma mudança radical no estilo de vida, até mesmo desenvolvendo


tecnologias ecologicamente adequadas, é parte dessa tarefa que a humanidade
de agora precisa assumir em vista da preservação da humanidade de amanhã.
170

REFERÊNCIAS
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civiliza-
ção tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUCRio, 2006.

JONAS, H. Técnica, medicina e ética. Sobre a prática do Princípio Respon-


sabilidade. Tradução GT Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013.
(Col. Ethos).

LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antro-


poceno. Ubu Editora, 2020.

LATOUR, B. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno.


Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

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DESMATAMENTO:
o papel da ilegalidade dos mecanismos públicos
para a preservação da floresta em Moçambique
Trindade Filipe Chapare54
Robiran José dos Santos Junior55
Marta Luciane Fischer56

A presente reflexão, multidisciplinar e de colaboração internacional, versa


sobre a análise do desmatamento em Moçambique sob a perspectiva Bioética.
Nesse ensaio buscou-se dar voz para a natureza diante do papel da ilegalidade e
os mecanismos públicos que comprometem a preservação da floresta. A pesquisa
é descritiva sob uma abordagem qualitativa, com recurso ao método bibliográ-
fico, a técnica de observação e a coleta de alguns depoimentos. Percebe-se que
em decorrência da massificação da prática agrícola e da caça há incetivo para
técnica de queimadas, a exploração de madeira e a produção do carvão vegetal,
muitas vezes associados a práticas ilegais e corruptas. Os danos na floresta são
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cada vez maiores, com impactos significativos no meio ambiente com particular
realce para a degradação dos solos, alteração do micro clima, perda da biodiver-
sidade devido aos efeitos devastadores na derrubada das florestas agredindo todo
o ecossistema. O plantio de árvores (reflorestamento), a realização de palestras
de sensibilização, a fortificação da fiscalização, o combate a corrupção, para
além da garantia do uso sustentável dos recursos naturais, são apresentados
como algumas estratégias para mitigar esta problemática.

Contextualização

A sociedade vem se defrontando com um problema que afeta o mundo no


geral que é a degradação do meio ambiente e a exaustão dos recursos naturais. O
crescimento econômico está em desequilíbrio com a proteção do meio ambiente,
sendo assim, os esforços para mudar tal situação são válidos, a partir do momento
em que se estuda a possibilidade de um modelo sustentável de desenvolvimento.
No entender de Mourana e Serra (2010), Moçambique possui uma área
total de cobertura florestal estimada em 40,1 milhões de hectares, encontrando-
-se a maior massa na província do Niassa (23,53%), seguida das províncias da

54 Geógrafo e doutor em Humanidades Brasil/Moçambique. E-mail: chapare.trindade@gmail.com


55 Biólogo e Mestre em Bioética PPGB. E-mail: profrobiran@gmail.com
56 Doutora em Zoologia, Docente do Curso de Ciências Biológicas e Pós-Graduação em Bioética da PUCPR.
E-mail: marta.fischer@pucpr.br
172

Zambézia (12,63%), de Cabo Delgado (11,98%), de Tete (10,53%) e de Gaza


(9,43%). Ao longo do tempo, esta massa tem sofrido sérios e significativos
impactos, devido a uma combinação de fatores, entre os quais se destacam a
exploração de madeira, do carvão vegetal, da caça e da agricultura associada
a prática de queimadas. A forma como esta exploração vem sendo realizada
ameaça de modo considerável a preservação destes recursos a médio e longo
prazo, colocando em perigo a vida da própria população.
A perda de florestas em Moçambique no período 1990-2002, foi
de 219.000 hectares por ano, o que representa 0.58%, e em 2004 a taxa de
desmatamento foi de 0.81%, fato que atesta a evolução do desmatamento no
país (NUBE, 2013). Na perspectiva de Texeira (2006), o desmatamento é a
operação que objetiva a supressão total da vegetação nativa de determinada
área para o uso alternativo do solo (implantação de projetos de assentamento
de população, agropecuárias, industriais, florestais, de geração e transmissão
de energia, de mineração e de transporte).

Potencialidades e exploração florestal em Moçambique

Em Moçambique, praticamente todas as províncias sofrem o dilema

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do desmatamento. Na maioria dos distritos, como é o caso do distrito de
Chifunde, 90% da extracção da madeira é exportada para China através do
porto da Beira (MICOA, 2010). De acordo com a Constituição da República
de Moçambique (2004), desflorestamento é a destruição ou abate indiscriminada
de matas e florestas sem a reposição devida. Desflorestação, desflorestamento
ou desmatamento é o processo de desaparecimento de massas florestais, fun-
damentalmente causada pela atividade humana, principalmente devido à des-
truição de florestas para a obtenção de solo para cultivos agrícolas ou para
extração de madeira (IBAMA, 2010).
Em termos regionais, as zonas norte e centro de Moçambique são apon-
tadas por Sitoe et al. (2013) como as que apresentam maior taxa de desma-
tamento. Muitas províncias possuem vastas áreas de belas florestas prístinas
que as comunidades rurais usam para conseguir variados produtos para seu
sustento bem como por motivos culturais e espirituais. Contudo, a diversidade
florestal está escassamente documentada devido a razões como a vastidão
do país, a escassa rede de transporte, a longa guerra civil e a falta geral de
recursos financeiros e humanos.
As florestas produtivas (áreas florestais demarcadas para a produção e
a extração da madeira) cobrem aproximadamente 26,9 milhões de hectares,
enquanto 13 milhões de hectares têm sido definidos como áreas não adequadas
para a produção de madeira, principalmente onde estão localizados os Par-
ques Nacionais e as Reservas Florestais. As florestas que têm algum tipo de
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 173

proteção legal ou estado de conservação compreendem aproximadamente 22%


da cobertura florestal total de Moçambique.
O tipo de floresta mais extenso – que cobre aproximadamente dois terços
do país – é o chamado de Floresta de Miombo. Esse tipo de floresta ocupa
vastas áreas das regiões norte e centro de Moçambique sendo muito impor-
tante para a população local. A floresta é usada principalmente como fonte
de lenha, carvão e plantas medicinais, fonte de nutrientes e fertilizantes do
solo através de queimadas e reciclagem das folhas, e como fonte de alimentos
para os animais domésticos. Por terem geralmente solos férteis, as florestas de
Miombo também são usadas para a agricultura (MICOA, 2008). O segundo
tipo de floresta mais extenso no país é a Floresta de Mopane, que ocupa
especialmente a área Limpopo-Save e a parte alta do Vale do Zambeze, sendo
caracterizada predominantemente pela ocorrência de árvores e arbustos. Em
decorrência da inadequação dos solos e da ocorrência de grande quantidade de
fauna nas florestas de Mopane, há, em Moçambique, vastas áreas conservadas
como as que formam os parques de Banhine, Zinave e Gorongosa. Em geral,
o norte do país tem florestas mais densas e menos exploradas do que o sul de
Moçambique (MICOA, 1998).
O Programa Nacional de Florestas (PNF) do extinto Ministério para
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Coordenação da Ação Ambiental – MICOA (2000), cuja elaboração foi deter-


minada pelo Decreto n° 3.420/2000 tem a missão de promover o desenvol-
vimento florestal sustentável, conciliando a exploração com a proteção dos
ecossistemas, e de compatibilizar a política florestal com as demais Políticas
Públicas, de modo a promover a ampliação dos mercados interno e externo
e o desenvolvimento institucional do setor. Para MICOA (2000), o PNF está
organizada em duas vertentes: uma produtiva e outra estrutural. A primeira
envolve: a) ações voltadas para o manejo florestal sustentável; b) a criação e
implementação das unidades de conservação de uso sustentável; c) a recupe-
ração de áreas alteradas; d) o fomento e a reposição florestal; e) a produção,
industrialização e comercialização de produtos florestais; f) a agro silvicultura;
g) o apoio às populações tradicionais e indígenas. A vertente estrutural inclui:
a) ações direcionadas à adequação dos instrumentos legais e normativos,
especialmente, à atualização do Código Florestal; b) ao monitoramento e
controle; c) ao sistema de informações; d) à extensão florestal; e) à gestão
e fortalecimento institucional; f) ao treinamento e capacitação de recursos
humanos; g) e à educação, ciência e tecnologia.
O que acontece com a agricultura é bastante semelhante ao problema da
pecuária. Para que uma área se torne própria ao plantio em escala comercial,
os agricultores precisam primeiro “limpar a área”. Isso significa destruir ou
derrubar árvores, prejudicando diretamente o ecossistema local. Tal prática tem
prova evidente que se não for bem dimensionada pode trazer consequências
no sistema ecológico. Na província de Tete, por exemplo, as principais espécies
174

de árvores são a mapane e mutondo. Nessa região predomina uma vegetação


do tipo Savana de Mapomes com espécies do tipo Chanate, Messanhas, que
mais sofrem pressão e com riscos de extinção (MAE, 2005). Neste sentido,
alguns líderes nativos relatam que o processo destrutivo ocorre gradativa-
mente. Primeiro, os madeireiros exploram as espécies mais valiosas como:
chanate preto, chanfuta, umbila, que quase já não existem, para depois seguir
com outras espécies menos valiosas, até que a vegetação que antes era robusta
e densa, passe para uma paisagem desoladora, semidesértica.

Ameaças às florestas – extração ilegal de madeira e queimadas


Conforme o inventário florestal nacional de 2007, a principal causa do
desmatamento no país é a pressão humana que provoca as queimadas das áreas
florestais para abrir áreas de cultivo, coleta de lenha e produção de carvão. Ape-
sar de o inventário sugerir que os índices de desmatamento estão diretamente
relacionados com a quantidade de população por província, há vários estudos
que indicam que as principais causas de desmatamento são a extração ilegal e
insustentável de madeira, e em menor medida, as queimadas florestais. Contudo,
as queimadas provocadas pelo homem têm se generalizado no país, até o ponto

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de terem modificado o período de rotação, a frequência e a intensidade do fogo
nas florestas de miombo do norte de Moçambique. Essas ações têm importantes
impactos nos índices de sobrevivência das sementes e das plantas mais jovens,
já que o período entre as queimadas foi reduzido drasticamente. Além disso,
o baixo índice de crescimento da floresta de miombo faz com que as plantas
sejam incapazes de atingir um tamanho seguro antes da próxima queimada.
A exploração ilegal das florestas é um problema bem documentado e,
com base em estimativas de um estudo feito pelo DNFFB e a FAO (2003),
a produção clandestina de madeira em Moçambique pode ser responsável
por 50 a 70% da produção nacional total de madeira de primeira classe ou
maiores que o tamanho legal de 10 cm. Os exportadores asiáticos dominam
o mercado e estão mais interessados nos troncos porque o destino principal
(China) não impõe taxas (ou são muito baixas) aos troncos, porém impõe
taxas significativas sobre a madeira processada.
Apesar de alguns esforços com vista a proteção ambiental no mundo, os
incêndios florestais em Portugal, na floresta amazônica no Brasil, na Austrália,
representam o agudizar das preocupações atinentes ao desmatamento. Em
Moçambique, a área florestal tende a diminuir à um ritmo relativamente acele-
rado devido à prática de incêndios florestais que ocorrem anualmente em todo
território nacional, durante o período seco e no início das campanhas agrícolas
e de caça (MICOA, 2007). Estima-se que entre 6 a 10 milhões de hectares
(correspondente a 18% de florestas) são queimadas anualmente e entre 9
a 15 milhões de hectares de outras áreas (MICOA, 2007; SPFFBZ, 2003).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 175

Dentre estas 90 % das queimadas são resultado da atividade humana e as


restantes 10% são geradas por causas naturais e desconhecidas. A agricultura
e a caça são as atividades que estão mais associadas a incêndios florestais nas
zonas rurais (SPFFBZ, 2003). Conforme o estudo preliminar sobre incêndios
florestais no país, a Província do Niassa é a que mais focos de incêndios
registrou, seguido das províncias de Tete e Zambézia, no período de 2002
a 2010 (FERNANDES, 2009).
A extração da madeira aumenta a inflamabilidade da floresta, levando às
queimadas do sub-bosque que colocam em movimento um ciclo vicioso de
mortalidade de árvores, aumento da carga de combustível, reentrada do fogo
e, por fim, destruição total da floresta (COCHRAN et al., 1999).
De acordo com os estudos realizados pela Agência Britânica de Inves-
timentos Ambiental (AIA) 29 de Julho de 2014, revelou que as reservas
comerciais de madeira em Moçambique poderão chegar ao fim em 2029,
tendo em conta o ritmo alucinante do abate florestal no país. De acordo com
os estudos da organização a grande responsável por esta situação que esta a
tornar-se insustentável é a China, dando o seu estado de principal importador
de madeira a nível mundial. Segundo o relatório denominado “crise de pri-
meira classe”, a China é responsável pelo abate indiscriminado de árvores em
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Moçambique, sendo que o relatório sobre a importação de madeira moçam-


bicana registou a exportação de 281 mil metros cúbicos. Assim, segundo a
AIA cerca de 93% da exportação da medeia de Moçambique para a China é
efetuada de forma ilegal, uma vez que 66 mil metros cúbicos foram consi-
derados legais. Por fim a ONG refere que desde 2007 a exportação ilegal de
madeira já lesou o estado Moçambicano em cerca de 108 milhões de Euros
em taxas, acrescentando que esta atividade criminosa pode estar a contar
com apoio de altos responsáveis do governo moçambicano.
Em conjunto com o desmatamento, os agricultores da região passaram a
utilizar a prática da queimada para a limpeza da área facilitando o plantio. A
abertura de áreas de pecuária extensiva é realizada com a prática de queimadas
para a limpeza e plantio de gramíneas exóticas. As queimadas eliminam a
serapilheira e a camada de matéria orgânica no solo que amortecem o impacto
das águas pluviais nas camadas superficiais do solo, além de destruir a fauna
endopedônica responsável pela ciclagem dos nutrientes. Os incêndios flores-
tais em Moçambique têm se registrados com alguma frequência no início da
época agrícola e no fim das colheitas. Para Viegas (1993), a floresta explorada
intensivamente é altamente suscetível a incêndios. A luz penetra no interior da
floresta através das clareiras e seca a matéria orgânica morta (folhas, troncos
e galhos), tornando-a combustível. O fogo usado para a limpeza de áreas
desmatadas e pastagens, sem o devido controle, escapa para áreas exploradas,
com certas implicações para o meio ambiente, sobretudo na degradação dos
solos, emissão de dióxido de carbono, entre outras.
176

Produção de Carvão e Lenha


A produção do carvão também é considerada um dos fatores que causam o
desmatamento de largas árvores florestais (BEUKERING et al., 2007). O consumo
de combustíveis lenhosos (lenha e carvão) foi estimado em cerca de 9.3 e 5.5
milhões de toneladas por ano na zona rural e urbana, respectivamente, totali-
zando 14.8 milhões de toneladas a nível nacional (SITOE et al., 2007). A produção
de carvão vegetal está associada a um maior impacto ambiental do que a de lenha,
especialmente em áreas pré-urbanas (FAO, 2010), e tem sido referida como uma
das principais causas do desmatamento na África (CUVILAS et al., 2010).
A tecnologia de fabricação de carvão é simplesmente com base em fornos
tradicionais de terra, cujo o rendimento varia de 8 a 30% este método requer
grandes quantidades de madeira para a queima o que pode causar ou acres-
centar problemas de desmatamento se não for feita cuidadosamente. O país
deve explorar anualmente cerca de 17 milhões de m3 de madeira para geração
de energia principalmente para consumo doméstico (PEREIRA et al., 2002).
Com base no inquérito realizado pelo Ministério de Energia (S/d) 87% das
famílias no país que usam combustíveis lenhosos na zona urbana, usam car-
vão vegetal, enquanto os restantes 13% usam lenha ou uma combinação de

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lenha e carvão. De entre as famílias que usam carvão, algumas usam também
electricidade e gás ou petróleo como fonte alternativa de energia.

Figura 1 – Produção de lenha e carvão Vegetal em Moçambique

Mabote (2011), apontou que, a maioria da população em Moçambique


usa a lenha e o carvão vegetal para preparação dos seus alimentos. Apesar
do país produzir electricidade e gás natural, estas fontes de energia não são
acessíveis a todos cidadãos e a todos os lugares do país. O consumo anual
total de combustíveis lenhosos no país é estimado em 16 milhões de m³. Só na
cidade capital, são consumidos diariamente pelo setor doméstico cerca de 825
toneladas de lenha e 287 toneladas de carvão vegetal (MAGANO, 1998). A
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 177

lenha e carvão consumido no meio rural não passam pelos mercados, nem
transita pelos postos de fiscalização utilizados para o efeito. Ao mesmo tempo,
uma parte do consumo urbano não entra nas estatísticas oficiais, por um lado
devido à fuga ao fisco de operadores, muitos deles informais.

Figura 2 – Áreas devastadas da sua cobertura vegetal em Moçambique


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O processo da ilegalidade e os mecanismos


públicos para a preservação da floresta
Não existe um estudo para identificar as árvores para o abate, corte indiscri-
minado de árvores grandes e pequenas. Há quantidades de toras abandonadas na
floresta, quando os operadores florestais encontram os mínimos defeitos nas toras.
O preço de venda muito baixo, não vai de acordo com as restrições a respeito
desse mecanismo, sentidas tanto pelo Serviços Provinciais de Floresta e Fauna
Bravia (SPFFB) e pela população, associado ao negócios clandestinos, abate das
árvores nas horas noturnas. Os operadores ilegais apreendidos retornam às flores-
tas, fazendo o trabalho habitual. Em alguns casos, esses operadores voltam para
a área de corte, ameaçam os guardas das comunidades envolvidos no processo
de fiscalização. Isso quebra a confiança das comunidades no sistema e questio-
nam a utilidade de usar tempo e recursos para ajudar com o monitoramento das
florestas. O controle de fiscais é incipiente e a capacidade governamental para
aplicar as leis é extremamente fraca. O corte ilegal de madeira está, portanto,
generalizado, e os operadores florestais frequentemente cortam mais do que o
volume permitido pela licença, transportam as toras sem documentação.
A lei n. 10/99, a lei de florestas e fauna bravia, no seu capítulo III, artigo 24
versa: “não é permitida a utilização do produto principal de espécies de flo-
restas produtos de madeira preciosa de 1ª, 2ª e 3ª classe, para a produção
de lenha, carvão vegetal, bem como para a utilização de espécies florestais
raras, protegidas ou com valor histórico sociocultural”. No entanto, em quase
178

todos os distritos do país onde a exploração de madeira tem lugar, a lei não
é observada na sua íntegra, uma vez que a fiscalização é deficiente, aliado a
alegação casos de corrupção. Percebe-se que a fiscalização por parte do pessoal
da agricultura é deficiente, uma vez que os mesmos não dispõem de recursos,
como meios circulantes e efetivos para deslocar-se com certa regularidade
para os acampamentos dos extratores de madeira. Assim, cria-se um ambiente
fértil para a devastação das florestas e propícia a exploração ilegal da madeira.

Figura 3 – Transporte de Madeira bruta em Moçambique

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Para ultrapassar estas ilegalidades Barbosa (2000), sugere ser necessário
estabelecer parâmetros de avaliação e monitoramento, capazes de verificar
a qualidade dos reflorestamentos heterogéneos, bem como indicar a capaci-
dade de resiliência em áreas implantadas. De acordo com a FAO (2009), as
respostas ao desflorestamento podem ser consideradas sob várias categorias:

• Tentativa para pararem o desflorestamento através de legislação pro-


tetora, como a criação de Reservas Florestais, com proteção total ou
com formas de exploração da floresta limitadas e controladas. Contudo,
para estas medidas terem sucesso, devem para começar, ter em consi-
deração os fatores causais que são responsáveis pelo desflorestamento;
• Reabilitação da floresta degradada ou cortada, através do replantiu.
Isto pode ser conseguido por reformas de política com o objetivo de
melhorar a gestão da terra. A reforma da política florestal, fortalecendo
o direito ao uso da terra ou prolongando as concessões comerciais da
floresta para promover a replantação, é uma prioridade em muitos casos.
• A Lei n. 20/97, de 1 de outubro, que aprova a “Lei do Ambiente”
estabelece os princípios básicos gerais da política ambiental, dentre
outros, a utilização e gestão racionais dos componentes ambientais
de forma a promover a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos
e a valorizar as tradições e o saber das comunidades locais.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 179

Considerações Bioéticas em relação a problemática

Na perspectiva da Bioética a problemática ambiental do desflorestamento


se apresenta de forma complexa e plural, especialmente ao se considerar as
dimensões ecológica, ambiental, social, econômica, política, territorial, his-
tórico-cultural e espiritual.
Um importante aspecto Bioético a ser considerado em relação ao desmata-
mento é a sustentabilidade. O conceito da sustentabilidade ou desenvolvimento
sustentável estabelece o uso comum dos recursos naturais de maneira racionada
de modo a não dar falta para as gerações futuras (BOFF, 2012). Preconizado de
forma pioneira no horizonte dos tratados internacionais sobre o meio ambiente,
como a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (1972),
Conferência de Belgrado (1975) e a Conferência Intergovernamental de Educação
Ambiental (1977), o desenvolvimento sustentável se estabeleceu como aquele
que atende às necessidades do presente sem comprometer de as gerações futuras
atenderem a suas próprias necessidades (NOSSO FUTURO COMUM, 1991).
Aprofundando o conceito Sachs (1993), pressupôs a leitura da susten-
tabilidade em cinco dimensões observando o aspecto social, econômico,
ecológico, espacial e cultural. Esse dimensionamento da complexidade da
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sustentabilidade seria fundamental para se conciliar a melhoria da qualidade de


vida e da preservação ambiental. Segundo Sachs (1993) “todo o planejamento
de desenvolvimento precisa levar em conta, simultaneamente, as seguintes
cinco dimensões da sustentabilidade”

Sustentabilidade social: [...] a meta é construir uma civilização com


maior equidade na distribuição de renda e de bens de modo a reduzir o abismo
entre os padrões de vida dos ricos e dos pobres.

Sustentabilidade econômica: [...] que deve ser tornada possível através


da alocação e do gerenciamento mais eficientes dos recursos e de um fluxo
constante de investimentos públicos e privados.

Sustentabilidade ecológica: [...] que se refere ao uso potencial de recursos


dos diversos ecossistemas com mínimo de danos aos sistemas de sustentação da
vida: a) limitar o consumo de combustíveis fósseis e de outros recursos e produ-
tos que são facilmente esgotáveis ou danosos ao ambiente substituindo-os por
recursos ou produtos renováveis e/ou abundantes usados de forma não agressiva
ao meio ambiente; b) reduzir o volume de resíduos e de poluição através da
conservação de energia e de recursos e de reciclagem; promover a auto limitação
no consumo de materiais por parte dos países ricos e dos indivíduos em todo
planeta; intensificar a pesquisa para a obtenção de tecnologias de baixo teor de
180

resíduos e eficientes no uso de recursos para o desenvolvimento urbano, rural e


industrial; c) definir normas para uma adequada proteção ambiental desenhando
a máquina institucional e selecionando composto de instrumentos econômicos
legais e administrativos necessários para o seu comprimento.

Sustentabilidade espacial: [...] que deve ser dirigida para a obtenção de


uma configuração rural-urbana mais equilibrada e uma melhor distribuição
territorial dos assentamentos humanos e das atividades econômicas.

Sustentabilidade cultural: [...] incluindo a procura de raízes endógenas


de processos de modernização e de sistemas agrícolas integrados, processos
que busquem mudança dentro da continuidade cultural e que traduzam o
conceito normativo de ecodesenvolvimento em um conjunto de soluções
específicas para o local ou ecossistema, a cultura e a área.

O autor ainda denunciou a necessidade de se trazer as pessoas acima


da linha da pobreza promovendo-as em cenários culturais e ambientais dife-
rentes, para a possibilidade de um meio de vida sustentável. Removendo os
obstáculos políticos e institucionais relacionados à má distribuição da posse

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e propriedade de terras, a falta de uma reforma agrária adequada, a privati-
zação das terras comunais, a marginalização dos habitantes das florestas e
a exploração predatória dos recursos naturais, “que os impedem de ter uma
visão a longo prazo da preservação de sua base de recurso” (SACHS, 1993).
Do ponto de vista ético a sustentabilidade pode ser compreendida como
princípio ético, que ao ser agregada na formação de valores promoveria a
adoção de novas práticas e a consolidação de uma sociedade efetivamente
sustentável (CARNEIRO, 2015). Para Carneiro (2015), a sustentabilidade
como princípio ético vai além da dimensão normativa referente a introdução
de dispositivos legais presente nos documentos oficiais e nos discursos aca-
dêmicos, para alcançar patamares valorativos, capazes de se constituir como
um conceito ideológico e um princípio ético norteador de condutas.
Corroborando com o dito, Junges (2006) afirmou que o desenvolvimento
sustentável depende de uma mudança na percepção da nossa relação com a
natureza. Essa mudança de paradigma somente é possível a partir da incorpo-
ração de valores ambientais sustentáveis. Diante de uma possível dificuldade
em se consolidar no âmbito institucional, as escolas, projetos comunitários
e processos educativos informais, poderiam servir de berço para o desenvol-
vimento do princípio da sustentabilidade na formação dos futuros cidadãos
(SANTOS-JUNIOR, 2017).
A discussão Bioética em relação ao desflorestamento observado em Moçam-
bique contempla também a multiplicidade dos atores envolvidos que se interpõem
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 181

e assumem diferentes posições quando encarados em diferentes perspectivas


do local para o global, nas relações humanas ou com a natureza. Deste modo a
identificação dos agentes e pacientes morais é fundamental e indispensável para
a mitigação das pressões exercidas sobre as comunidades vulneráveis, sendo o
diálogo entre as partes envolvidas a principal ferramenta de ponderação.
Para Fischer et al. (2016), independente da área de atuação a Bioética
permeia o debate entre agentes morais, ou seja, os atores detentores de poder de
decisão diante de questões éticas. Segundo a autora o processo de globalização
aliado às crises ambientais, econômicas e sociopolíticas trazem contradições e
confrontos morais, com relação aos comportamentos tanto individuais quanto
públicos, indicando desafios para a consolidação de uma convivência adequada
entre os diversos povos e culturas do planeta (FISCHER et al., 2017).
Para além disso se faz necessário que o diálogo a respeito do estatuto moral
dos atores envolvidos na questão não permaneça centrado apenas na esfera do ser
humano, mas que considere os seres não humanos no âmbito da comunidade moral
(NACONECY, 2007; FELIPE, 2007). Jonas (2006) sugestionou a reformulação
dos princípios básicos da ética, que compreendessem a extrema vulnerabilidade
da natureza decorrente da intervenção tecnológica do homem. Para procurar não
só o bem humano, mas também o bem de coisas – extra-humanas, ou seja, alargar
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o conhecimento dos fins em si mesmos para além da esfera do homem, e fazer


com que o bem humano incluísse o cuidado delas (JONAS, 2014).
Para Potter (2018) a Bioética é “um sistema de moralidade baseado em
conhecimento biológico e valores humanos, com a espécie humana aceitando
a responsabilidade pela própria sobrevivência e pela preservação do ambiente
natural.” Esses aspectos se caracterizam como de fundamental importância
em relação à problemática do desflorestamento em Moçambique.
Assim, pode-se concluir que as respostas mais importantes seriam: con-
duzir estudos sociais, ambientais e econômicos para determinar os fatores
causais envolvidos no desmatamento; criar ou fortalecer instituições com
autoridade para verificarem estes fatores e desenvolver mecanismos de comu-
nicação dentro dos departamentos governamentais e entre as ONG’s e as
comunidades afetadas para facilitar a transferência de informação destes estu-
dos para ação política, prática e concreta.

Conclusão

O desmatamento em Moçambique está associado a pobreza nas zonas


rurais e a ganância dos Homens, fato que leva muitas vezes a população a
optar por práticas danosas ao meio ambiente, como o abate das árvores para
a extração de madeira, produção de carvão, procura do combustível lenhoso,
além dos incêndios/queimadas para a limpeza dos campos de cultivo e caça. Os
operadores madeireiros contribuem para no abate indiscriminado de árvores, o
182

que torna a exploração madeireira insustentável, associado a fraca capacidade


de supervisão bem como ao elevado nível de corrupção.
Ao se retirar a cobertura vegetal do solo, reduz-se a quantidade de água
evaporada do solo e a produzida pela transpiração das plantas (evapotranspira-
ção), acarretando numa diminuição no ciclo das chuvas. O desmatamento para
além de provocar os efeitos climáticos diretos, o calor adicional destrói o húmus
(nutrientes, microrganismos) que promove a fertilidade dos solos. A produção
do carvão aumenta a área de devastação da floresta primária, também contribui
para um aumento de gases na atmosfera através do processo de carbonização.
Outrossim, existem problemas sociais que influem na dinâmica populacional,
pois devido o baixo custo de produção, muitas famílias têm no carvoejamento a
única alternativa para garantir seu sustento. Estas ações concorrem para a perda
de biodiversidade, fraca produção e produtividade agrícola, aumento da tem-
peratura e gases de efeito de estufa, desgaste dos solos, entre outros impactos.
Dentre as medidas que podem fazer face ao desmatamento e os respec-
tivos impactos no país, constam o plantio de árvores, realização de palestras
de sensibilização para o uso sustentável dos recursos naturais, fortificar a
fiscalização dos recursos florestais, para além do uso adequado dos recursos
naturais e o combate serrado à corrupção.

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Neste cenário verificou-se que a Bioética Ambiental pode contribuir de
maneira significativa no enfrentamento desses dilemas. Proporcionando um
aporte multi/interdisciplinar e a identificação dos atores envolvidos, pode pro-
mover um diálogo importante para a mitigação dos conflitos. Destacou-se a
necessidade da ampliação do conceito da sustentabilidade à uma perspectiva
global que inclua as dimensões social, econômico, ecológico, espacial e cultural,
bem como princípio ético a ser agregado no campo valores e desta forma sendo
capaz de promover a adoção de novas práticas sustentáveis nos futuros cidadãos.
O desmatamento demostrado em Moçambique apresenta muitas seme-
lhanças com o vivenciado por inúmeras localidades brasileiras, com destaque a
pluralidade de atores e de vulneráveis. Logo, a temática encontra acolhimento
na agenda da Bioética Ambiental e reforça a necessidade e urgência de se ope-
racionalizar os comitês de Bioética Ambiental. Estes, aos moldes dos demais
comitês de ética, exerceria uma função deliberativa, normativa e educativa
por meio de um debate entre a população, os órgãos reguladores e gestores,
a economia, a saúde e a educação. Nessa partilha multidisciplinar problemas
locais seriam discutidos e a partir da determinação das prioridades um plano
de ação seria construído coletivamente, visando uma solução justa para todos.
Embora parte de uma perspectiva local, entende-se que as repercussões são
globais, viabilizando a existência planetária para esta e futuras gerações.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 183

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OS IMPACTOS AMBIENTAIS
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GENÉTICA, NÃO IMPORTAM?
Norton Nohama57
Jefferson Soares da Silva58
Daiane Priscila Simão-Silva59

Quando aprendi todas as respostas, eles mudaram todas as perguntas.


Mayana Zatz (2012)

Meio ambiente e globalização

A aventura Prometeica de nossa civilização pelo projeto distópico de domí-


nio da natureza, fundamentada no “tecnodogmatismo” de que o progresso é
integralmente benéfico, parece ter nos conduzido não apenas a um divórcio
com essa mesma natureza, mas antes, a um litígio baconiano. Nele, os herdei-
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ros arriscam não ter espólio para usufruir e, talvez, no futuro, nem mesmo eles
existam. E se existirem, correm o risco de serem “despejados” por uso predatório
de nossa “casa comum”. Neste sentido, os últimos 300 anos, desde o ilumi-
nismo, foram determinantes para a atualidade e suplantaram todos os demais
sete milhões de anos de evolução de nossa espécie. E, para além desses, talvez
o restrito espaço de tempo que nos resta neste século seja o ponto de ruptura
definitivo entre a mater natureza e a progênie homo sapiens sapiens, no qual
reste, ao olhar indiferente do kósmos, de um lado o planeta e do outo, o nada
(FISCHER et al., 2017; JONAS, 2006; KESSELRING, 2000; POTTER, 2018).
Os diversos estudos cuidadosamente coletados e consolidados pela comu-
nidade científica, sobretudo nas últimas décadas, e amplamente divulgados
acerca das agressões ao meio ambiente, denunciam o escândalo da maneira
como nossa sociedade tem se servido inapropriadamente do planeta. Justifi-
cado pela inevitabilidade emanada do “progresso” e sublimado pela crença
de recuperação da natureza por si mesma, e que naquilo que ela não tiver
capacidade de se refazer, será remediado pela tecnologia, particularmente pelas
biotecnologias (JONAS, 2006). Se de um lado, degradamos o meio ambiente
do qual dependemos para a sobrevivência da vida no planeta e ao que parece,
57 Filósofo e Mestre em Bioética.
58 Pedagogo e Doutor em Teologia.
59 Bióloga, Geneticista e Pós-Doutora em Bioética. Pesquisadora no Instituto para Pesquisa do Câncer – IPEC
– Guarapuava.
188

avançamos aceleradamente em direção a irreversibilidade, por outro, nossa


espécie não tem se mostrado suficientemente capaz de ao menos minimizar
os impactos do seu próprio “progresso”. É neste contexto, na linha proposta
na Bioética Global de Potter (1971), considerando que a ética implica ações
e valores que não podem ser dicotomizados dos fatos biológicos, que o pre-
sente capítulo objetiva discutir sobre a proporção dos impactos decorrentes
da ausência ou insuficiência de considerações bioéticas ambientais no que
tange a edição genética.

A promessa tecnológica

As últimas quatro décadas determinaram a consolidação do conhecimento


da biologia molecular, construída desde os experimentos como os de Mendel,
no século XVIII, cujas descobertas estabeleceram os princípios e fundamentos
da genética. A partir da compreensão de que as características fenotípicas de
um indivíduo eram repassadas hereditariamente através do genótipo, mate-
rializado na demonstração da estrutura molecular do DNA por James Watson
(1928-) e Francis Crick (1916-2004), o Projeto Genoma Humano (PGH) e
a tecnologia de DNA Recombinante, conduziram a humanidade a renovar

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sonhos e esperanças nos avanços desta área. Por certo, um exemplo inques-
tionável daquele progresso que representará, em algum momento, o ápice do
domínio da técnica sobre a natureza. Neste momento, o ser humano não apenas
terá o controle absoluto sobre a vida e o poder de subjugar a morte, mas para
além, poderá fazer nascer uma nova espécie, o pós-humano. Não será mais
fruto do acaso circunstancial e errático da evolução, mas o resultado perfeito,
pleno e absoluto de um projeto engendrado em laboratório.
Essa utopia recebeu um forte impulso e a promessa de célere materializa-
ção com o desenvolvimento das novas tecnologias de manipulação do DNA,
das quais seu mais impactante representante é a nova técnica denominada
CRISPR-Cas9. Desenvolvida a partir do sistema imunológico adaptativo de
bactéria e archae, a ferramenta molecular utiliza RNA guia para localização
de loci específicos, emparelhamento e clivagem da dupla fita de DNA alvo
para correção, adição ou knockout gênico.
Comparativamente às demais técnicas de edição do genoma que se valem
da afinidade proteína-sequência para localização dos loci alvo, as nucleases
CRISPR-Cas, por utilizarem RNA guia para esta tarefa, não requerem a mon-
tagem de uma proteína nova que contenha a especificidade necessária para
cada lócus alvo no DNA, o que por si só é uma grande vantagem. No caso de
CRISPR-Cas, alterações na região curta do RNA guia, que determina a espe-
cificidade, é suficiente para redirecioná-lo para novos loci, inclusive para múl-
tiplas edições simultâneas, o que também facilita sobremaneira a montagem
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 189

da ferramenta (GUERRERO, 2018; MAEDER; GERSBACH, 2016). Soma-


-se a tais vantagens, a maior facilidade na construção dos projetos, o acesso
fácil e de baixo custo aos insumos e a simplicidade na sua implementação,
possibilitando que inclusive Diy Biologists possam realizar experimentos, até
mesmo na garagem de casa (KUIKEN, 2016).
Segundo Lacadena (2017), CRISPR-Cas9 é o resultado da mistura de
três fatores: “curiosidade pessoal (tentar entender a repetição de sequências
no DNA de bactérias tolerantes ao sal), exigência militar (defesa contra armas
biológicas) e a aplicação industrial (melhorar a produção de iogurte)” (LACA-
DENA, 2017, p. 7).
A inovação rendeu a Jennifer A. Doudna e Emmanuelle Charpentier
um prêmio no Life Sciences de 2015 e em 2020, o Prêmio Nobel de Química
(BRIN et al., 2015; DOUDNA; CHARPENTIER, 2014; JINEK et al., 2012).
Ao mesmo tempo, a publicação quase simultânea da descoberta com outro
artigo, de Feng Zhang e associados (CONG et al., 2013), ensejou uma dis-
puta milionária nos tribunais norte-americanos pelos direitos comerciais rela-
cionados à técnica, mediante suas respectivas instituições: Universidade da
Califórnia contra o consórcio composto pelo Broad-Instituto de Tecnologia de
Massachusetts e Harvard (ACHENBACH; JOHNSON, 2017; COHEN, 2018;
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UNITED STATES PATENT AND TRADEMARK OFFICE, 2017)60.


Em termos econômicos, um outro aspecto interessante a respeito das
biotecnologias, é que quanto maior a necessidade humana neste tipo de pro-
gresso, maiores os investimentos de mercado e menores as restrições éticas.
Com isso, mais concessivas serão as análises de risco. Esta parece ser uma
condição indispensável para um mercado considerado de risco que se viabiliza
somente na condição do não estabelecimento de qualquer relação de causa e
efeito economicamente indesejado, sobretudo sobre o meio ambiente. Segundo
Erp et al. (2015, p. 88), essa “indústria global de biotecnologia” agremiou
entre 2013 e 2015, algo em torno de US$ 600 milhões em capital de risco,
com participações de empresas tradicionais, startups e gigantes de setores
farmacêutico, agrícola, biomédico e fornecedores de insumos para pesquisa,
no que ele denominou de a “mina de ouro da biotecnologia”.

Aplicações da edição genética

Se por um lado, o potencial da edição genética para uso humano ainda


está em fase muito inicial e há por parte da comunidade científica grandes

60 Até final 2014 ou início de 2015, constavam mais de dez novas patentes baseadas na técnica e uma
centena de novos pedidos que reivindicavam autoria ou descreviam aplicações baseadas em CRISPR.
(SHERKOW, 2015).
190

preocupações e um intenso debate relacionado à segurança na sua aplicação61,


por outro, as aplicações nos demais campos de interesse, como agropecuária,
indústria, meio ambiente e na produção de animais modelos para pesquisas
avançam muito rapidamente, sem maiores restrições (HEBMÜLLER, 2016;
KOSICKI; TOMBERG; BRADLEY, 2018).
Tais aplicações buscam os mais diversos propósitos, desde o aperfeiçoa-
mento de processos bioquímicos industriais, modificação ou implementação de
características fenotípicas em espécimes animais e vegetais de interesse comer-
cial, produção de microrganismos destinados a biorremediação de ambientes
degradados e até mesmo para o controle de pragas e espécimes invasoras
(BARRANGOU et al., 2007; WEBBER; RAGHU; EDWARDS, 2015).
Harrison et al. (2014) fizeram interessante painel sobre que tipo de
organismos vertebrados, invertebrados e plantas haviam sido editados com
CRISPR-Cas9 até 2014 (Tabela 1). Constam na lista 23 espécies submetidas
a edição gênica, em apenas dois anos desde a descoberta da técnica. Embora
uma atualização sejam bem vinda, o levantamento é suficiente para chamar
a atenção para quatro aspectos particularmente interessantes: 1º a variedade
de organismos editados em tempo célere, ainda em fase inicial de desenvol-
vimento da técnica; 2º o uso majoritário de mecanismo de reparo da dupla fita

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de DNA por NHEJ, sabidamente mais sujeito a falhas; 3º a ampla incidência
de edição em organismos inteiros, em detrimento de culturas celulares e, 4º a
alta ocorrência de edição na linhagem germinativa. Embora uma parte destes
espécimes de destinem a produção de animais modelos para pesquisa básica,
uma outra parte se destina invariavelmente a pesquisas de aplicação para
geração de produtos, alguns dos quais já dispõe de patentes e se encontram
disponíveis no mercado. Os procariontes, para os quais a lista é substanti-
vamente maior, não estão inclusos no levantamento e merecem uma análise
específica, dadas as implicações altamente relevantes e particularmente intri-
gantes, tanto do ponto de vista da biossegurança e bioproteção, como do papel
de desempenham no equilíbrio de micro e macrobiomas, além dos aspectos
evolutivos próprios de cada organismo envolvido e que podem impactar de
maneira singular no meio ambiente.

61 Em decorrência dos problemas intrínsecos à técnica, tais como os cortes off-target, as lesões genômicas
extensas, de longo alcance e distantes do ponto de clivagem e o mosaicismo, entre outros, bem como em
relação a sua aplicação em linhagem germinativa, cujos efeitos transgeracional não apenas são de difícil
detecção e compreensão, como de reversão praticamente impossível, bem como a ocorrência eventos
adversos em ensaios clínicos de terapia gênica que incluem óbitos por reação imunológica exacerbada e
possível evento carcinogênico decorrente de sítio de integração proviral.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 191

Tabela 1 – Organismos que foram modificados


usando o sistema CRISPR-Cas9 até 2014
Organismo Mutações induzidas em Mecanismo de reparo
Cultura de Organismo
NHEJ HDR
células (hereditariedade?)
Salamandra ✓ ✓
Rã ✓sim ✓
Humano ✓ ✓ ✓
Medaka ✓sim ✓
Vertebrados

Camundongo ✓ ✓sim ✓ ✓
Macaco ✓sim ✓
Porco ✓ ✓sim ✓
Coelho ✓ ✓
Rato ✓ ✓sim ✓ ✓
Tilápia ✓sim ✓
Zebrafish ✓sim ✓ ✓
Pulga de água doce ✓sim ✓
Invertebrados

Mosca da fruta ✓ ✓sim ✓ ✓


Lombriga ✓sim ✓ ✓
Bicho-da-seda ✓ ✓sim ✓ ✓
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Milho ✓
Hepáticas
✓sim ✓
(Marchantiophyta)
Arroz ✓sim ✓
Plantas

Sorgo ✓ ✓
Laranja doce ✓ ✓
Agrião thale ✓sim ✓ ✓
Tabaco ✓sim ✓ ✓
Trigo ✓ ✓

Fonte: Adaptado de Harrison et al. (2014, p. 1863).


Nota: na tabela acima estão inclusos somente organismos utilizados
para desenvolvimento de plataformas de pesquisa.

Quais os possíveis impactos ambientais do uso do sistema


CRISPR-Cas?

Se há incertezas prementes quanto aos efeitos do uso da técnica de edição


por CRISPR sobre os organismos editados, essas se ampliam exponencial-
mente ao se considerar o ambiente no qual tais organismos podem vir a ser
introduzidos. No entanto, cumpre observar que tais incertezas, em geral não
são consideradas com o mesmo rigor de critérios e cautela quando observada
a aplicação em seres humanos comparado aos demais seres vivos que compõe
nossa complexa biodiversidade.
192

A primeira diferença diz respeito aos valores atribuídos a cada vida e a cada
espécie. Em geral, nosso “antropocentrismo”, que atribui valor em si mesmo
para nossa espécie, o faz de modo relativo, utilitarista, às demais espécies. O que
permite, por exemplo, que a intensidade dos debates em curso sobre CRISPR,
que incluem propostas de moratórias, adotar uma lógica assimétrica, cujos pressu-
postos incluem: 1º que as implicações éticas no uso da técnica na espécie humana
não são elegíveis para as demais espécies; 2º que as barreiras levantadas no que
se refere à linhagem germinativa humana não são aplicáveis para as demais, isto
fica claro na Tabela 1; 3º persiste em boa parte a visão de que a natureza detém
uma capacidade de resiliência, resistência e de autorremediação que não é real, e
não leva em conta a escala e intensidade das interferências que a edição de genes
pode ocasionar ao longo de gerações. Mesmo porque o conhecimento acumulado
até o momento não é capaz de compreender e, menos ainda, de dimensionar a
extensão dessa ação sobre a imprevisível complexidade da dinâmica da vida
nos ecossistemas, num prazo de tempo evolutivamente adequado; e, 4º a visão
mecanicista, base e gênese do desenvolvimento das ciências, que robustamente
persiste no campo da genética, não raras vezes, determina análises minimalistas
dos riscos que tal progresso humano pode impingir ao meio ambiente.
Embora sejam passíveis de críticas as discussões que sinalizam a neces-

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sidade de superação das éticas antropocentristas (uma posição hegemônica,
ou ao menos, uma tradição) em favor da natureza e de todas as espécies que
existem no mundo, perece justo, ou apropriado, reconhecermos que não temos
sequer as categorias mentais mínimas para pensar fora de nossa limitada
experiência no mundo, e talvez seja necessário até mesmo outro léxico.
Na observação dos riscos, eixo central desta discussão, há que se men-
cionar o experimento de Gantz e Bier (2015) com CRISPR-Cas9, que resultou
no chamado gene drive. Trata-se, em síntese, de uma alteração nos genes de
um indivíduo de reprodução sexuada, de modo que determinada característica
possa ser transmitida a todos os descendentes, com taxa de sucesso na progênie
próxima a 100% (GANTZ et al., 2015; HAMMOND et al., 2016). Tal recurso,
que permite impor por exemplo, que os indivíduos de uma população sejam
estéreis ou letalmente vulneráveis a uma condição específica, exterminando
toda a descendência dentro de um bioma (daí a denominação de “bala de
prata”), tem sua utilidade para o controle de espécimes invasoras, no entanto,
uma vez liberado no meio ambiente, dificilmente poderá ser revertido (LED-
FORD, 2015; WEBBER; RAGHU; EDWARDS, 2015).
Heitman e associados, ao analisar relatório da Academias Nacionais de
Ciências, Engenharia e Medicina (NASEM) dos EUA a respeito de gene drive,
divulgado em 2016, classificam-no como “intrigante e eticamente assustador”.
Avaliam, simultaneamente, que os padrões regulatórios atuais são insuficientes
para lidar com esta biotecnologia e que:
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 193

“as abordagens para avaliação ambiental e avaliação de impacto ambiental


exigidas pela Lei Nacional de Política Ambiental [daquele país] atualmente
em uso, são limitadas demais para tratar a dinâmica populacional e os pro-
cessos evolutivos que podem ser afetados pela liberação de um organismo
geneticamente modificado em um ecossistema complexo” (HEITMAN;
SAWYER; COLLINS, 2016, p. 175, tradução nossa).

Consideram ainda, que inúmeros Comitês Institucionais de Biossegu-


rança carecem da perícia e dos recursos necessários para avaliar a segu-
rança das pesquisas genéticas nessa área, bem como para aconselhar a prática
de pesquisadores.

A imprevisibilidade da evolução do sistema CRISPR-Cas

Outra questão intrigante de Crispr-Cas diz respeito a evolução, em dois


sentidos: 1º saber se Crispr pode evoluir e, 2º se evoluindo, tem capacidade
de compartilhar tais recursos com outros seres vivos. CHAKRABORTY et al.
(2010) se debruçaram sobre esta questão nos seguintes termos: “As repetições
diretas (DR) e os genes Cas estão evoluindo? Se sim, qual é a base dessa coe-
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volução? E finalmente, qual é a possível origem dos sistemas CRISPR-Cas?”.


A conclusão, particularmente interessante, foi de que:

[...] considerando todas as evidências apresentadas neste estudo, nós racio-


cinamos que os genes DR e Cas compartilham uma origem ancestral
comum e coevoluíram como um pacote. A sua ocorrência em diferentes
genomas bacterianos pode ser conseguida por meio de eventos de transfe-
rência horizontais ou laterais através de megaplasmídeos ou bacteriófagos
(CHAKRABORTY et al., 2010, p. 886, tradução nossa).

Nessa mesma linha, Koonin e Makarova (2013) indicam que CRIS-


PR-Cas possivelmente é o resultado evolutivo de um sistema imune inato
para um sistema adaptativo, e portanto, “[...] o caso mais óbvio de herança
Lamarckista, pelo qual um organismo reage a uma sugestão ambiental ao gerar
uma modificação hereditária do genoma que fornece uma resposta adaptativa
a essa sugestão específica” (KOONIN; MAKAROVA, 2013, p. 679, tradução
nossa; SILAS et al., 2016).
Notável e nada sutil é a não há trivialidade em discernir tal fato, vez que é
uma subversão na ordem e dos alicerces que sustentam a tradição da biologia
e da genética, erigida nos últimos cem anos de estudos e cujas consequências
podem ser dramáticas, uma vez que, como bem reconhece Dennett, desafiam
os próprios fundamentos da evolução:
194

O raciocínio adaptacionista [no sentido dado por Darwin e pelos neo-


darwinistas] não é opcional; ele é a alma da biologia evolutiva. Embora
possa ser suplementado, e suas falhas consertadas, acho que deslocá-lo de
sua posição central na biologia é imaginar não só a ruína do darwinismo
como o colapso da bioquímica moderna e de todas as ciências da vida e
da medicina (DENNETT, 1998, p. 247).

Uma das consequências desse tipo de estudo, aos quais devem ser acres-
cidos aqueles que tratam de epigenética evolutiva, é que podem impactar de
maneira substantiva não apenas a compreensão que possuímos sobre a evolu-
ção das espécies, mas também sobre a pesquisa gênica, e como consequência,
sobre as questões de biossegurança envolvidas. Sobretudo se considerarmos os
possíveis eventos adversos e impactos de difícil previsibilidade, decorrentes da
introdução de organismos editados no meio ambiente e que podem afetar o equi-
líbrio de ecossistemas inteiros (COSTA; PACHECO, 2012; ENCODE PRO-
JECT CONSORTIUM, 2012; EZKURDIA et al., 2014; FANTAPPIE, 2013;
GENETIC SCIENCE LEARNING CENTER, 2013; HEBMÜLLER, 2016;
JABLONKA; MAXMEN, 2018; YOUNGSON; WHITELAW, 2008).
Além da imprevisibilidade da evolução do sistema CRISPR-Cas, várias

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outras questões são merecedoras de consideração. Quatro delas são singularmente
relevantes: 1º apesar da relativa precisão em nível genômico em comparação a
outras técnicas de edição gênica, CRISPR-Cas não é seletiva no nível do orga-
nismo como um todo, podendo atuar em todas as células passíveis de alcance
pelo vetor de transporte; 2º ocasionalmente, a enzima Cas cliva o genoma no
lugar errado (off-target62), inclusive em regiões eventualmente muito distantes
do alvo, com probabilidade de produzir efeitos imprevisíveis; 3º a incidência de
mosaicismo, decorrente de edições imprecisas, é um problema recorrente (GAJ et
al., 2013; LIANG et al., 2015; ZHANG, 2015) e, 4º,o sistema CRISPR-Cas não é
totalmente conhecido, desde sua conformação, funcionamento, as possíveis inte-
rações internas de seus componentes, e tampouco seus mecanismos subjacentes,
e ainda há lacunas não suficientemente esclarecidas acerca dos seus mecanismos
evolutivos (CHAKRABORTY et al., 2010; KOONIN; MAKAROVA, 2013).
Consideradas tais percepções, parece claro que o desenvolvimento de
produtos CRISPR (como tem sido evidenciado no registro de patentes), na
atual fase de domínio da técnica, assume como eticamente aceitável a ocor-
rência de tais eventos, ainda que não se tenha a compreensão necessária para
discerni-los, menos ainda para dimensionar os riscos e as consequências a
eles circunscritos.

62 Genomas grandes, como o humano, geralmente são compostos de múltiplas sequências de DNA que
são idênticas ou altamente homólogas às sequências de DNA alvo mediado por CRISPR-Cas9. Este fato
favorece a clivagem indesejada também nestas regiões (ZHANG; WEN; GUO, 2014).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 195

Adaptação, Evolução e os desafios

Uma maneira interessante e bastante pragmática para pensar as prováveis


repercussões das tecnologias de edição genética sobre o meio ambiente pode
ser deduzida a partir da observação dos eventos que se processam na natureza.
Evidentemente, não é uma forma absolutamente segura de afirmar verdades ine-
quívocas, considerando que nossa capacidade objetiva de apreender os fenômenos
é limitada pelos nossos sentidos e vieses culturais, mas, de toda forma, permite
o estabelecimento de analogias e correlações viáveis. Com essa consideração,
trataremos a seguir de dois exemplos singulares de como a adaptação e a evo-
lução atuam e sobre suas consequências para várias espécies, inclusive a nossa.
O primeiro exemplo diz respeito à conhecida Peste Negra e o segundo, às
aves migratórias que servem de carreadores de microrganismos patógenos em
evolução. Vale notar que os dois exemplos, apesar de envolverem processos
evolutivos no nível dos genomas dos espécimes implicados, não são exclusi-
vos, ocorrem o tempo todo, em todo o ecossistema, de modo que impactam o
meio ambiente e, não raras vezes, com consequências para os seres humanos.
Entender o significado disso para a edição de genes, é um desafio particular-
mente necessário e importante, tanto para garantir os resultados pretendidos
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nos projetos, como para as questões que envolvem biossegurança.


O estudo de Barros (2012) sobre a histórica Peste Negra, traz algumas
conclusões interessantes: Yersinia pestis é uma bactéria Gram-negativa da
família Enterobacteriaceae, cujo gênero engloba três espécies patogênicas
(Y. pestis, Y. enterocolitica e Y. pseudotuberculosis) e 14 não patogênicas
(ambientais). Os estudos indicam que Y. pestis é resultado muito recente da
evolução de Y. pseudotuberculosis. O principal meio de contágio é mediante a
picada de pulgas infectadas63. Mais de 80 diferentes espécies do inseto e 200
roedores participam do ciclo epidemiológico. As aves, embora resistentes à
peste, servem como meio de transporte destes insetos. A alta capacidade de
provocar epidemias em decorrência da formação de aerossóis, torna o agente
etiológico um candidato promissor a arma biológica. Se a Peste pode parecer
um exemplo distante no tempo, não seria incorreto observar que o agente etio-
lógico permanece ativo nos dias atuais, sem que exista uma vacina disponível.
O tempo presente trouxe outra novidade, não menos trágica, o vírus
SARS-CoV-2, que desencadeou a Covid-19 – Coronavirus disease 2019
(ZHU et al., 2020). Membro de uma família maior, outras duas variantes já
haviam sido responsáveis por manifestações clínicas distintas: a Síndrome

63 Embora o mecanismo de transmissão principal se dê entre roedor e humano através da picada de pulgas
infectadas, também pode ocorrer transmissão pela exposição direta (através da mucosa ou escoriações
cutâneas) a fluidos contaminados ou inalação de aerossóis contendo o bacilo (BARROS, 2012).
196

Respiratória Aguda Grave (SARS), registrada em 2003 na Ásia e a Síndrome


Respiratória no Oriente Médio (MERS), em 2012, na Arábia Saudita (SCRI-
PPS RESEARCH INSTITUTE, 2020). Além destas três variantes, outras
quatro, HKU1, NL63, OC43 e 229E são conhecidas por causar doenças con-
sideradas de baixa gravidade em humanos (ANDERSEN et al., 2020; CORO-
NAVIRIDAE STUDY GROUP OF THE INTERNATIONAL COMMITTEE
ON TAXONOMY OF VIRUSES, 2020; CUI; LI; SHI, 2019).
As semelhanças entre os dois casos não são, a rigor, espelhos de uma
coincidência fortuita. Com efeito, a moldura evolutiva que possibilitou o sur-
gimento de Yersinia pestis ou os coronavírus, com as trágicas consequências
vividas pela espécie humana, compreendem o ferramental endógeno e dos
recursos biológicos disponíveis na natureza. Não seria de todo improvável que
em determinado momento, dentre as circunstâncias evolutivas experimenta-
das por estes microrganismos, pudessem ocorrer interações dos mecanismos
selvagens com os pacotes de edição de genes mediados por CRISPR, com
eventual possibilidade de produzir resultados imprevisíveis. Além disso, de
fato, o ferramental molecular disponível atualmente em laboratório para edição
de genes também permite repetir tais sagas evolutivas, seja propositalmente,
acidentalmente ou porquanto consequência adaptativa de uma modificação

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de início aparentemente inerte, talvez imperceptível pelo pesquisador e/ou
que possa se manifestar apenas tardiamente.
Em relação as aves migratórias que servem de carreadores de microrga-
nismos patógenos em evolução, Ricklefs e associados (2017) fizeram inte-
ressante estudo intitulado “Avian migration and the distribution of malaria
parasites in New World passerine birds”. Nele, analisaram a dispersão de
parasitas haemosporidianos64 (Plasmodium e Haemoproteus) aviários por
intermédio de aves migratórias no continente americano (de regiões geográ-
fica e ecologicamente bastante afastadas) e buscaram determinar as cone-
xões entre faunas distantes. Em especial porque as aves são capazes de reter
infecções parasitárias durante o ciclo anual de vida e as vezes até por anos
(MOON, 2017). O estudo revelou que:

Todas as amostras foram vasculhadas à procura de DNA de parasitas da


malária por meio da tecnologia de reação em cadeia da polimerase (PCR).
Dentre as 24 mil amostras de sangue pesquisadas, foram identificadas
cerca de 4,7 mil com infecções, representando 79 parasitas da malária
pertencentes às linhagens de malária aviaria do gênero Plasmodium spp.
(42 linhagens em 1.982 indivíduos hospedeiros) e também do parasita

64 “Parasitas hemosporidianos aviários (filo Apicomplexa: ordem Haemosporida: Plasmodium, Haemoproteus e


Leucocytozoon), [...] são parasitas transmitidos pelo sangue entre seus hospedeiros vertebrados por insetos
dípteros que se alimentam de sangue” (RICKLEFS et al., 2017, p. 1114).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 197

Haemoproteus spp. (37 linhagens em 2.022 indivíduos hospedeiros), um


gênero de protozoários que parasita aves. [...] Entre os patógenos que
infectam humanos, as aves migratórias foram responsáveis, por exemplo,
pela rápida expansão pela América do Norte de uma doença emergente
como a Febre do Oeste do Nilo, originária da África (MOON, 2017).

Nos territórios euro-africanos, estudo semelhante foi realizado com “259


linhagens de parasitas em aves distribuídas entre a Europa e a África. Desco-
briu-se que 31 linhagens que infectam aves migratórias podem ser transmitidas
a aves residentes locais” (MOON, 2017).
Ao mesmo tempo em que os organismos vivos estão em permanente pro-
cesso de evolução (compreendida como adaptação frente aos desafios do meio
ambiente com vistas à sobrevivência), algumas espécies transitam por territórios
ecologicamente distintos e geologicamente distantes, ampliando os próprios
desafios adaptativos na necessária proporção da ampliação de suas chances de
sobrevivência. Contudo, os desafios capazes de produzir tais mutações e solu-
ções, por óbvio, não se restringem apenas aos ambientes naturais e tampouco à
sua origem. A interferência da ação humana sobre o meio ambiente força esses
microrganismos a se adaptarem com sucesso a novos desafios, principiando e
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atualizando condições evolutivas que poderíamos designar como “artificiais”.

Os genes não determinam tudo: a interferência


humana no meio ambiente

A proposta do uso da edição genética como ferramenta biotecnológica


capaz de, por exemplo, auxiliar em novas terapias, não deve circunscrever
apenas os riscos de uma cadeia linear de processos. Se faz necessário com-
preender toda a dinâmica ecológica envolvida desde a obtenção, utilização,
agentes, vetores e pacientes envolvidos no processo, e as vias de descarte.
Um caso paralelo e que serve de exemplo, diz respeito ao gerenciamento
de resíduos e seus impactos diretos para os seres humanos e que está rela-
cionado ao surgimento de genes de resistência a drogas antimicrobianas e de
superbactérias. O estilo de vida moderno, marcado pelo consumo e descarte
desordenado de antimicrobianos, tanto humano como referente à atividade
pecuária e aquicultura estão na origem do problema. Mas como essas molé-
culas chegam ao meio ambiente? Por três vias: as fezes e urina de pessoas e
animais que as consumiram, o descarte não seletivo das sobras dos medica-
mentos não consumidos e a atividade pecuária e aquicultura.
Umas das características interessantes dos antimicrobianos é que suas molé-
culas não são em grande parte degradadas, tanto no trato digestório de mamí-
feros, aves e peixes, como no ambiente, passando inalterada pelos sistemas de
198

tratamento de esgoto65 das cidades e pelos sistemas de tratamento de água potável.


Na atividade pecuária, os resíduos antimicrobianos seguem duas vias: a carne e
derivados destinados ao consumo – que contém resíduos antimicrobianos decor-
rentes do uso preventivo rotineiro e em larga escala no processo de criação, prin-
cipalmente de aves, gado e peixes que recebem o medicamento na própria ração
– e o descarte dos resíduos/dejetos orgânicos durante todo o processo de criação
e também no abate. Significa que os seres humanos consomem antimicrobianos
não apenas por necessidade clínica, mas também no consumo de carne, derivados
e água. Não por acaso, as primeiras bactérias resistentes à penicilina (β-lactâ-
micos) foram identificadas já na década de 1960 (FACHIN, 2016; MOURA
et al., 2017; NASCIMENTO et al., 2017). Com efeito, as novas gerações de
patógenos, a persistir o histórico das últimas décadas desde a descoberta da peni-
cilina, ao incorporarem genes de resistência progressivamente mais difíceis de
serem vencidos, tornam-se paulatinamente mais infectantes, virulentos e letais.
O desafio do gerenciamento dos riscos se amplia exponencialmente se
consideramos a inimaginável diversidade de espécies e vidas existente no
planeta. Mora et al. (2011) estimam que existem atualmente 8,7 milhões de
espécies no planeta (variando 1,3 milhões a mais ou a menos), das quais ape-
nas 1,2 milhões estão descritas e catalogadas, o que representa apenas 13,8%

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do total. Ou seja, não há compreensão sobre quais são as demais 86,2% das
espécies que coabitam esta pequena biosfera. Desta parcela conhecida, apenas
um ínfimo quantitativo tem o seu código genético mapeado, o que também
não significa muito, já que “ler” o código não é a mesma coisa que entender
como ele funciona, algo que o Projeto Genoma Humano deixou claro que
estamos muito longe de alcançar (LEITE, 2006).
Tomando por base este exemplo, o genoma de nossa espécie, que sem
dúvida é o mais estudado e conhecido, sabemos que dos 3,2 bilhões de pares
de bases que o compõe, possivelmente apenas 19 ou 20 mil genes codificam
proteínas. Isso representa apenas de 3% do nosso DNA, o restante é ainda
uma incógnita66, designado em certo momento de “lixo genético”67; possi-

65 Relatório da ONU Meio Ambiente de 2017 reforça este entendimento: “ao serem consumidos, até 80% dos
antibióticos são excretados sem ser metabolizados, junto com bactérias resistentes. Apenas no século XXI, o
consumo humano desses remédios cresceu 36%. Até 2030, o uso de antibióticos na pecuária deverá aumentar
em 67% [...]. Além disso, até 75% dos antibióticos utilizados em aquiculturas se disseminam no ambiente ao
redor das criações de seres aquáticos” (ONU MEIO AMBIENTE, 2017; UN ENVIRONMENT, 2017).
66 Ainda que os resultados sejam muito iniciais, é apropriado registrar que seguem em curso diversas iniciativas
no sentido de conhecer e entender se e que papel desempenham os 97% não codificante do DNA humano.
Apenas a título de exemplo, o The ENCODE Project Consortium publicou em 2012, na revista Nature, inte-
ressante artigo intitulado “An integrated encyclopedia of DNA elements in the human genome”, no qual se
registram alguns resultados promissores que apontam para o papel regulador de expressão gênica dessa
imensa região ainda desconhecida (CHI, 2016; ENCODE PROJECT CONSORTIUM, 2012).
67 O termo “lixo genético” (utilizado em ingles como “dark matter” ou “junk DNA”), é atribuído a Susumi Ohno,
que empregou o termo em artigo publicado em 1972, no Simpósio Brookhaven sobre Biologia em 1972, que
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 199

velmente “resíduo evolutivo”. Alguns também denominam essa parte não


codificante de “dark matter” (EZKURDIA et al., 2014; GEE, 2001; MAX-
MEN, 2018). O grande esforço empreendido até o momento para se saber,
daqueles 3%, quais expressões ao nível do fenótipo estão relacionadas a quais
genes, constitui um desafio ao conhecimento ainda em fase inicial, e tem-se
mostrado ainda mais difícil para as expressões poligênicas. No entanto, se o
nosso próprio código genético ainda é uma incógnita, o que ponderar sobre o
conhecimento acumulado sobre aquelas 8,7 milhões de espécies, cuja maioria
sequer há ciência de sua existência?
A tragicidade sobre essa imensa diversidade existente na natureza é que
a “Lista Vermelha, elaborada pela União Internacional para a Conservação da
Natureza e dos Recursos Naturais, estima que 19.625 espécies estão classificadas
como ameaçadas. Isso de uma amostra total de 59.508, ou [seja] menos de 1% do
total agora estimado de espécies”, e mais, “muitas espécies podem desaparecer
antes mesmo que saibamos de sua existência, de seu nicho particular ou de sua
função em ecossistemas” (AGÊNCIA FAPESP, 2011; MORA et al., 2011).
Este é um dado insólito e incômodo – já que parcela desta lista resulta de um
modelo de progresso – que deveria ser considerado em termos de impacto
sobre os micro e macrobiomas, bem como sobre o ecossistema global e o meio
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ambiente. Além disso, há implicações nesta equação de extinção de espécies


conhecidas e desconhecidas sobre biossegurança e estudos de impacto ambiental
envolvendo pesquisas com edição gênica que também devem ser considerados.
Aliás, se por um lado os macrobiomas constituem uma diversidade exu-
berante, os microbiomas reservam surpresas não menos impressionantes.
Segundo pesquisadores do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp): “Um único exemplar de cana de açúcar é lar de 23.811
tipos de bactérias e 11.727 grupos diferentes de fungos” (SOUZA et al., 2016).
Estima-se que no corpo de um humano adulto jovem, do sexo masculino,
com 1,70 m de altura e 70 kg, exista aproximadamente 38 trilhões de bactérias
e outros microrganismos, aproximadamente a mesma quantidade de células
humanas (SENDER; FUCHS; MILO, 2016). Grande parte deles convivem e
compartilham tarefas metabólicas e benefícios com seus animais hospedeiros.
Sem essa simbiose construída ao longo de pelo menos 500 milhões de anos de
evolução coadaptativa68 em diversas funções como imunidade, metabolismo

o utilizou para se referir à parte do DNA que mais tarde, no PGH havia sido inicialmente identificada como
não codificante e para a qual, naquele momento se supôs não desempenhava função alguma no contexto
genômico (OHNO, 2012).
68 A microbiota humana é composta por menos de 10 filos (principalmente 6) dos mais de 50 conhecidos.
Para explicar a razão evolutiva de tal restrição de diversidade a tão poucos filos, Cho e Blaser (2012)
consideram a possibilidade da existência de uma grande variedade de organismos de contingência e
genes de contingência que possam se conformar dentro dos limites permitidos pelo genoma humano, o
que talvez possa indicar algum nível de compatibilidade ou afinidade genética. Saber se esta afinidade
200

e reprodução, talvez nem eles e tampouco nossa espécie sobrevivesse. Esti-


ma-se que ao longo de uma geração, uma pessoa possa abrigar 1 milhão de
gerações de bactérias, acumulando diversidade genética e epigenética com
efeitos evolutivamente importantes tanto no metagenoma como no fenótipo
de ambos (CHO; BLASER, 2012). Se em certo sentido a diversidade parece
ser a regra da vida, conviver, compartilhar, coabitar aparentam ser uma con-
tingência primária, quiçá um imperativo.

Considerações finais

Diferentemente do número de publicações elencando os aspectos éticos


da edição genética para os seres humanos, as considerações bioéticas conside-
rando o meio ambiente ainda são insipientes. Nesse diapasão, há necessidade
de que a espécie humana compreenda-se como parte integrante do ecossistema
terrestre, e que este impacta e é impactado pelo progresso em geral, pelas ações
e intervenções tecnológicas, e em particular no nível dos genomas.
Os dados biológicos e reflexões apresentadas neste capítulo, esperamos,
possam servir de auxílio no reconhecimento do quanto somos limitados na
compreensão da diversidade da vida e da complexidade de sua de integração

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e interação nos ecossistemas. Mas essa limitação não é em absoluto, uma
limitação simples ou trivial, ela necessariamente implica no reconhecimento
de que, emprestando os ensinamentos de Potter (2016): não temos todo o
conhecimento e nem a sabedoria necessária para editar a molécula da vida, o
DNA sem pôr em risco o futuro.
Ao liberar para o meio ambiente material genético editado em laboratório,
com ferramentas como Crispr-Cas9 e gene drive, assumimos que um risco
desconhecido é eticamente aceitável, ainda que neste risco estejam inclusas a
imensa maioria das espécies que sequer sabemos que existem e quais efeitos
podem ser gerados sobre quais genomas, dentre todos os aqueles que sequer
compreendemos com funcionam, e por isso mesmo impossíveis de serem
previstos, quiçá protegidos.
Se não formos capazes de entender a dimensão planetária dos riscos que
nossas ações no campo da genética oferecem ao meio ambiente, a urgência
iminente de nossa responsabilidade no tempo presente em salvaguardar para
as gerações futuras, se não formos capazes de investir e buscar o conhecimento
de como usar o conhecimento para a sobrevivência de toda a biosfera, e não
para ameaçá-la, talvez a vida no planeta não acabe em uma grande explosão
nuclear, mas num silencioso knock-out gênico (JONAS, 2006; POTTER, 2016).

ocorre também em outras espécies e que importância tem para a edição de genes, constitui mais um
grande desafio às pesquisas atuais.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 201

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ESCOLHAS
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O CORONAVÍRUS E AS POPULAÇÕES
INDÍGENAS BRASILEIRAS:
a Bioética como forma de resistência
Fernanda Ollé Xavier69
César Augusto Costa70

A questão indígena e o contexto de lutas

O último censo demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro


de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que o Brasil possui um contingente
populacional de aproximadamente 817.963 indígenas, os quais estão organi-
zados em 305 etnias, e que falam 274 línguas diferentes. Esta cifra demonstra
que 0,4% da população brasileira é formada por índios. Deste total, 502.783
encontram-se na zona rural e 315.180 nos centros urbanos, ressaltando que 70
povos vivem em locais isolados, e que ainda não foram contatados.
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As populações indígenas no país enfrentam um longínquo histórico de


violências que permeiam os mais diversos campos: desde o antropológico, o
social, o político, o ambiental, o sanitário, e outros. A reprodução do capitalismo
impõe a transformação em mercadoria de todos os bens comuns naturais, o que
conduz, à destruição do ambiente. É aceitável que as populações que vivem em
relações mais próximas com a natureza sejam as primeiras vítimas desse ecocí-
dio, e que muitas vezes, tentam opor-se à expansão devastadora do capitalismo.
Assim, as comunidades indígenas na AL encontram-se em luta permanente
pelo meio ambiente. Constatamos não apenas mobilizações locais em defesa
dos rios ou das florestas, contra as multinacionais petrolíferas e mineradoras,
mas também propondo um modo de vida alternativo ao capitalismo. Tais lutas
podem ser sobretudo indígenas, mas com frequência elas ocorrem em aliança
com camponeses sem terra, ecologistas, comunidades cristãs, sindicatos, par-
tidos de esquerda, pastoral da terra e da pastoral indígena (LOWY, 2014).
Ressaltamos os desafios enfrentados quanto às suas lutas por territórios, e
nesse sentido, não se pode olvidar que o conceito de território indígena trans-
cende o sentido espacial do termo. Quando nos referimos a território indígena, o

69 Advogada. Doutoranda em Política Social e Direitos Humanos/UCPEL. Pesquisadora do Núcleo de Estudos


Latino-Americano (NEL/UCPEL). E-mail: feolle@yahoo.com.br
70 Sociólogo. Pós-Doutor em Direito e Justiça Social/FURG. Docente no Programa de Política Social e Direitos Huma-
nos/UCPEL. Coordenador do Núcleo de Estudos Latino-Americano (NEL/UCPEL) e Pesquisador do Laboratório
de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (LIEAS/UFRJ). E-mail: csc193@hotmail.com
216

antropólogo Gersem Luciano (2006), membro da etnia Baniwa, explica que este
se refere à condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de
um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvol-
vem todas as formas de vida. Território indígena, portanto, é o conjunto de seres,
espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e
o sentido da vida individual e coletiva, de onde tais comunidades extraem todos
os elementos necessários à firmação de suas identidades, enquanto grupo étnico
dotado de idiossincrasias e modos de vida determinados.
Ora, conforme consta do art. 231 da Constituição Federal de 1988
(CF/88)71, para que os direitos dos indígenas sejam garantidos demanda-se o
reconhecimento e a garantia desta definição de território!
Considerando a dimensão territorial do Brasil, que foi divulgada pelo
IBGE, e publicada no DOU nº 94 de 19/05/2020, conforme Portaria nº 177,
de 15 de maio de 2020, o país possui uma superfície calculada em 8.510.295,914
km2 72. No entanto, em que pese os indígenas constituírem os povos originários
deste país de grandeza continental, – e por isso mesmo, deveriam ser conside-
rados donos inequívocos destas terras –, atualmente, as terras indígenas (TI),
devidamente regularizadas, ocupam uma irrisória proporção do solo brasileiro.
Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão oficial executor

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da política indigenista do governo federal, existem apenas 462 terras indígenas
regularizadas, que representam cerca de 12,2% do território nacional, localizadas
em todos os biomas, com concentração na Amazônia Legal73.
Todavia, diante da atual conjuntura governamental do país, este espectro
tende a piorar, sobretudo o ambiental e o sanitário. Senão, vejamos: desde
que o atual presidente da república, Jair Bolsonaro, assumiu o mandato, já se
vislumbrou o desmonte das políticas ambientais no Brasil, as quais certamente
impactam a vida dos povos tradicionais brasileiros; frisando que neste caso,
está se tomando como sujeitos somente os indígenas.
É a partir dos elementos acima, que a intenção deste texto é apontar que
contribuições têm a Bioética enquanto forma de resistência para as popu-
lações indígenas. Desse modo, levamos em conta compreender o contexto
pandêmico para os indígenas, alinhados numa perspectiva de intervenção,
dos quais possui uma visão antissistêmica, pela opção política e insurgência
epistêmica contra a dominação epistemológica geopolítica do conhecimento

71 CF/88, Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições,
e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
72 Fonte: IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/estrutura-territo-
rial/15761-areas-dos-municipios.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 20 maio 2020.
73 Fonte: FUNAI. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Acesso
em: 20 maio 2020.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 217

do sistema-mundo moderno-colonial como contraposição à colonialidade do


poder (QUIJANO, 1997).
Tais aspectos se configuram também numa Bioética que leve em con-
sideração as insurgências epistêmicas que contribuíram para uma posição
teórica e política, apontando novos horizontes tanto para os povos indígenas
e povos tradicionais, como para o conjunto da população, a exemplo das
experiências da Bolívia e do Equador, as quais desenham uma tomada de
posição descolonial. Partindo da periferia do sistema-mundo moderno-colonial
(DUSSEL, 2002), a Bioética de intervenção pretende romper as fronteiras e
firmar-se como uma perspectiva Bioética libertadora (COSTA, 2013), posi-
cionando-se contra a imposição do saber bioético eurocentrado, de modo a
consolidar definitivamente seu processo de territorialização epistemológica.
Para o enfrentamento das questões, organizamos o artigo em dois grandes
momentos após essa introdução, que delineou algumas questões do cenário
da questão indígena frente às lógicas de violências. No segundo momento,
abordaremos a forma de atuação do Estado brasileiro mediante o desmonte
da política indigenista. E no terceiro, à guisa de conclusão, discutiremos
as contribuições teórico-políticas da Bioética da intervenção para refletir a
questão indígena em meio a pandemia de coronavírus.
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Os territórios indígenas e o desmonte da política indigenista

Os alardes de desmonte do presidente já implicaram algumas ações em suas


agendas, as quais afetaram diretamente nos ecossistemas brasileiros, na vida e
no exercício da cidadania de comunidades indígenas e tradicionais que vivem
especialmente nas zonas rurais do Brasil. Eis alguns exemplos: extinção da
Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas do Ministério do Meio Ambiente
– MMA, sendo que, inclusive, foi cogitada a extinção do próprio MMA, o que
sofreu severas críticas; extinção do Comitê Orientador do Fundo Amazônia;
reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade
(ICMBio) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama), os quais passaram a ser orientados por ideais liberais e em
defesa do agronegócio. Nesta senda, convém lembrar que o ministro do MMA,
Ricardo Salles, defendeu uma solução capitalista para a Amazônia, criticando
o modo como foram criadas as unidades de conservação e terras indígenas.
Desta medida, já se depreende o continuum do “carma” dos povos indíge-
nas em relação à conquista dos seus territórios. Sem contar, ainda, a contenda
da transferência da Funai do Ministério da Justiça para ser “arremessada” ao
Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos; e a demarcação de terras
indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, restando claro o
conflito de interesses dentro do mesmo ministério, e colocando em xeque os
218

direitos destas minorias identitárias, uma vez que a ministra desta pasta, Tereza
Cristina, foi líder da bancada ruralista no Congresso Nacional.
No entanto, em face de um “resquício de luz” do governo, estas reformas
administrativas não chegaram ao fim e ao cabo. Ainda na lista dos exemplos
de desmonte, merecem destaque as discussões levantadas no atual governo
sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas, no qual impera
a defesa de atividades econômicas de larga escala, o que inclui o plantio de
soja transgênica, exploração de madeira e mineração.
A partir destes lamentáveis eventos de matriz ambiental que se opõem à
luta dos povos indígenas pela conquista de territórios e consequente demarca-
ção e regularização de TIs, é que se argumenta no texto que estes sujeitos já
enfrentam historicamente batalhas em busca de direitos e exercício da cidadania.
Somando-se a estes, releva-se o atual enfrentamento pelo qual passam
todos os brasileiros perante um novo embate: a pandemia mundial, ocasionada
pela disseminação do coronavírus, que está dizimando a população através
da SARS-COV2, ou COVID-19. Esta doença atinge a todos indistintamente,
mas principalmente as pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade
social, econômica e sanitária, pois mais expostas aos fatores que influenciam
o contágio, como densidade populacional, uso e ocupação do solo, índice de

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desenvolvimento humano (IDH), dentre outros. E, em razão deste cenário,
alarmamos a situação dos povos indígenas, principalmente daqueles que vivem
nas regiões mais remotas do Brasil.
E é esta crise, como exemplo de desafio no campo sanitário, que se
levanta ao questionamento de como ela figura enquanto elemento adverso
que se sobrepõe aos povos indígenas: seria ela um novo enfrentamento, ou
mais um evento que potencializa o rol de suas lutas?
É neste contexto de lutas sociais que enfrentamos o fato de que as ideias
hegemônicas sobre justiça emergem num campo social dividido, no qual se
cria um conjunto de sujeitos “sem direitos” (COSTA; LOUREIRO, 2019) pela
força da colonialidade do poder. Dessa forma, o desafio é buscar perspectivas
teóricas ancoradas ao lado dos sujeitos historicamente destituídos de justiça,
onde a Bioética da intervenção possa ser uma relevante contribuição para os
povos indígenas em meio ao contexto pandêmico. Isto significa que:

A questão da justiça social, nos países periféricos, será de fundamen-


tal importância para as bioéticas sociais. Essa abordagem se estabelece
a partir dos sujeitos que são atravessados por realidades econômicas,
sociais e culturais, as quais afetarão o seu acesso aos serviços de forma
geral e, por conseguinte, a sua qualidade de vida (FULGÊNCIO; NAS-
CIMENTO, 2015, p. 48).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 219

Diante do referencial latino-americano, entendemos também a necessi-


dade de uma reflexão Bioética já indicada, alicerçada numa ética da libertação,
pois pontuamos que:

A Ética da Libertação não pretende ser uma Filosofia crítica para minorias,
nem para épocas excepcionais de conflito ou revolução. Trata-se de uma
ética cotidiana, desde e em favor das imensas maiorias da humanidade
excluídas da globalização, na presente “normalidade” histórica vigente
(DUSSEL, 2012, p. 15).

Isto significa dizer que, assumindo uma posição de politização dos con-
flitos morais, a Bioética de intervenção defende que o horizonte bioético
dos países periféricos onde impera relações de um “capitalismo dependente”
(FERNANDES, 1975), seja o enfrentamento dos dilemas sociais, econômicos
e políticos. Por tal razão, faz sua opção pelas populações vulnerabilizadas e
excluídas da sociedade e se propõe a lutar contra todas as formas de opressão
e pela promoção da justiça balizadas pelo capitalismo.

Populações indígenas do Brasil: para uma


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perspectiva Bioética de resistência

Sustentada pela memória histórica e nestas evidências científicas é que se


volta à indagação inicial do texto, de onde se questiona, se a atual pandemia
causada pelo novo coronavírus mostra-se inédita, ou como a permanência de
uma adversidade que sela a árdua trajetória suportada pelos povos indígenas: a
de se manterem vivos diante de um iminente etnocídio à brasileira. Nesse caso,
ousa-se posicionar que se está assistindo a um episódio anunciado há tempos.
Considerando o atual cenário de enfrentamento da COVID-19 junto aos
povos indígenas, os dados atuais da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI), órgão responsável por coordenar e executar a Política Nacional de
Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, vinculado ao Ministério da Saúde, reve-
lam um boletim epidemiológico com a seguinte situação: 156 casos suspeitos, 526
confirmados, 633 descartados, 271 com cura clínica, e 27 óbitos. O órgão informa
em seu site oficial, que as informações são obtidas junto a cada um dos trinta e
quatro Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI)74, sendo que o Distrito
mais acometido é o da região do Alto Rio Solimões, localizado no sudoeste do
Amazonas, onde foram registrados 212 casos confirmados, e 13 óbitos.
Em março de 2021, frente a subnotificação dos casos indígenas pelos
dados oficiais, a Articulação dos Povos indígenas do Brasil (APIB) vem

74 Fonte: Ministério da Saúde. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/. Acesso em: 21 maio 2020.
220

realizando um levantamento independente dos casos. Os números são supe-


riores aos notificados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai),
que tem contabilizado somente casos em terras indígenas homologadas pelo
governo federal. A reunião de dados da Apib tem sido feita pelo Comitê
Nacional de vida e Memória indígena e pelas Organizações indígenas de base
da APIB. Outras fontes de dados têm sido utilizadas, tais como os dados das
Secretarias Municipais, Estaduais de Saúde e do Ministério Público Federal75.
Esta situação remete à uma necessidade incessante de reflexão sobre a
situação dos indígenas ante a esta pandemia, principalmente porque o atual
contexto político e sanitário do país é lastimável, ou seja, todo o sistema
estatal está doente!
A história destes povos é cristalina no que tange à sua vulnerabilidade a
doenças infectocontagiosas e à dependência de um precário sistema de saúde,
desarticulado das redes estaduais e municipais de assistência médica. Assim,
seus membros temem serem dizimados por mais este surto epidemiológico.
Em artigo publicado sobre os desafios dos povos indígenas no combate
ao coronavírus, a professora e pesquisadora da USP, Christina Queiroz (2020),
demonstra que, segundo análise do médico especialista em epidemiologia e
saúde de populações indígenas, Andrey Moreira Cardoso, do Departamento de

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Endemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), o problema de disponibilidade de territórios tradicionais para o exer-
cício dos modos de vida indígena, de acesso a saneamento básico, os problemas
relacionados à desnutrição e anemia, assim como a emergência de doenças crô-
nicas, tornam estas populações ainda mais vulneráveis à esta atual pandemia76.
Retrata-se, pois, mais um caso de essencialidade do território tradicional
como elemento caro e imprescindível para a manutenção da vida dos povos
indígenas, ou seja, como um meio natural que alimenta e condiciona estes
seres humanos a um desenvolvimento sadio e apto ao enfrentamento de doen-
ças e de outras adversidades.
Vale ressaltar que os territórios indígenas devidamente preservados fun-
cionam como barreiras as desmatamento e equilíbrio da biodiversidade do
país. Estudos no Território Indígena Maró, na Amazônia Paraense, realizados
por Fábio Alckmin, doutorando em geografia humana pela USP, apontam evi-
dências sobre a correlação entre a destruição de TIs e o surgimento de grandes
doenças e pandemias, como a COVID-1977, à medida em que relata, a partir
da pesquisa de Aaron Bernstein, diretor do Center for Climate, Health, and

75 Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/.


76 Fonte: UOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/05/02/covid-19-e-indi-
genas-os-desafios-no-combate-ao-novo-coronavirus.htm. Acesso em: 20 maio 2020.
77 Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-autonomia-indigena-em-
-defesa-da-amazonia-parte-i/. Acesso em: 21 maio 2020.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 221

the Global Environment (C-CHANGE), da Universidade de Harvard, que o


desmatamento é prejudicial não só para as populações locais, mas para toda
a humanidade, e que o desequilíbrio desse ecossistema força a migração de
insetos e animais, os quais potencialmente podem contatar outros animais
e pessoas. E dessa interação, Bernstein explica que “podem surgir vírus ou
bactérias até então desconhecidas pela ciência, que tendem a se disseminar
rapidamente em sistemas monocultores e de larga escala”.
À luz do que foi apontado, consideramos a relevância de abordagens da
questão indígena no contexto pandêmico à luz do enfoque bioético pautados
numa visão de intervenção. Tal enfoque, possui uma perspectiva antissistê-
mica explicitada pela opção política e pela insurgência epistêmica contra a
dominação epistemológica geopolítica do conhecimento do sistema-mundo
moderno-colonial. Em sua raiz identitária latino-americana, a Bioética da
intervenção apresentada como uma das perspectivas mais importantes do
pensamento latino-americano atual, como contraposição à colonialidade do
poder (FEITOSA; NASCIMENTO, 2015). Urge repensarmos o papel das
insurgências epistêmicas e bioéticas que buscam repensar as perspectivas e
paradigmas teóricos e políticos. Desse modo,
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Aliada à insurgência política, tem ajudado a traçar novos caminhos tanto


para os povos indígenas e afrodescendentes como para o conjunto da popu-
lação. Tomemos como exemplo as experiências recentes da Bolívia e do
Equador, as quais desenham um horizonte descolonial, na medida em que
se desviam do que temos entendido como Estado, bem como das lógicas
e significantes que têm dado sustentação a tal entendimento. Trata-se de
experiências de refundação do Estado, ao transformar seu caráter uninacio-
nal e monocultural (Estado-nação) em plurinacional e pluricultural (Estado
pluralista e comunitário), tanto que levaram a mudanças substanciais nas
constituições da Bolívia e do Equador, aprovadas respectivamente nos
anos de 2008 e 2009 (FEITOSA; NASCIMENTO, 2015, p. 278).

A teoria dos quatro princípios, originada do “principialismo” e, portanto,


universalista, apesar de seu reconhecido uso para a análise de situações práticas
clínicas e em pesquisa, torna-se questionável para: a) análise contextualizada
de conflitos que exijam flexibilidade numa determinada adequação cultural; b)
enfrentamento de macroproblemas bioéticos diários enfrentados por populações
de países com significativos índices de exclusão social, como o Brasil e seus
vizinhos da América Latina. E para pensar a questão indígena não é diferente!
Apesar de algumas críticas pontuais aos postulados do referido prin-
cipialismo, sua adequação ao estudo dos conflitos e situações que ocorrem
nos países pobres da parte Sul do mundo é necessária. Enfocando dimensões
como “responsabilidade”, “cuidado”, “solidariedade”, “comprometimento”,
222

“alteridade” e “tolerância”, “proteção dos excluídos sociais”. Daí torna-se


pertinente uma Bioética comprometida com os mais vulneráveis, bem como
as questões ambientais que começam a ser incorporadas pela reflexão latino-
-americana crítica em suas reflexões, estudos e pesquisas (GARRAFA, 2005).
Entendemos ser necessário indicar que outras contribuições vêm se
somando, na concepção de confirmar uma perspectiva da Bioética de inter-
venção, o que lhe possibilita servir de instrumento de denúncia e discussão
sobre as situações de injustiça, sobretudo as populações indígenas, bem como
colaborar para a busca de alternativas. Recentemente, a Bioética de interven-
ção avançou em sua perspectiva de libertação (DUSSEL, 2002), instaurando
diálogos interepistêmicos, como advém a característica descolonial, entre
outros aportes críticos para a reflexão acadêmica.
Para Segato (2013), o pluralismo bioético vai além da pluralidade de
doutrinas, como postula o pensamento bioético ocidental. Propõe-se iden-
tificar e analisar outras experiências e teorizações de éticas da vida que não
são contempladas pela biopolítica ocidental, ou seja, não se limita à ideia de
humanidade universal. Assim, parte da inspiração no pluralismo jurídico, que
postula diferentes concepções de justiça e direito, influenciando práticas distin-
tas de resolução de conflitos, como aquelas adotadas pelos povos originários.

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Mais do que nunca, torna-se importante à análise acurada das respon-
sabilidades sanitárias e ambientais e na interpretação histórico-social do
contexto brasileiro, sendo essencial na determinação das formas de interven-
ção a serem programadas, na priorização das ações sanitárias para sujeitos
específicos. Ou seja, na atuação estatal frente à questão pandêmica para os
indígenas no Brasil, principalmente para os que vivem em territórios e em
situação de vulnerabilidade.
Sendo assim, os desafios no marco societário capitalista consistem na
preservação da sociobiodiversidade como um patrimônio que deve ser pre-
servado de maneira sustentada para as gerações futuras. Com isso, podemos
explicitar que:

a Bioética de intervenção conseguiu, com base em sua fundamentação


teórica e na colaboração com as demais bioéticas brasileiras e latino-a-
mericanas, assegurar, em âmbito internacional, a aceitação da dimensão
política na formulação e na prática Bioética, ao estabelecer como eixo
aglutinador dessa dimensão o paradigma dos direitos humanos. Ao pro-
por-se como ponte entre os sujeitos (cidadãos), a sociedade e o Estado, a
Bioética de intervenção assume forte caráter social. O termo “intervenção”,
em uma perspectiva histórica mais ampla, esteve geralmente associado
ao intervencionismo das grandes potências mundiais nos Estados nacio-
nais econômica e politicamente frágeis. Embora não se deva sucumbir às
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 223

rotulagens pejorativas historicamente construídas, também não se pode


ignorá-las (FEITOSA; NASCIMENTO, 2015, p. 283).

No que se refere à saúde das populações indígenas diante da pandemia,


postulamos que a Bioética de intervenção pode se constituir num paradigma
que vem sendo delineado e dos quais assume de maneira crítica e questiona-
dora as consequências do processo de produção de um conhecimento que se
propõe operar em duas dimensões: a epistemológica e a política. No episte-
mológico, por meio da crítica, desconstrução e reconstrução de saberes; no
âmbito político, pela reflexão e defesa de uma práxis comprometida com a
transformação da realidade.
A percepção da injustiça, para seu enfrentamento, que é a marca da afir-
mação dialética da justiça social apontada pela Bioética da intervenção, urge
da contextualização intercultural. Trata-se assim, de uma visão que parte da
realidade concreta de opressão e exclusão das comunidades indígenas oriundas
no sistema de exploração capitalista marcados pela lógica do sistema-mundo
moderno-colonial.
Consequentemente, a Bioética de intervenção ou como podemos deno-
minar de “resistência” no que tange as populações indígenas, pode ocupar um
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lócus importante no pensamento latino-americano no debate da pandemia de


covid-19. É com essa abertura epistêmica que a proposta vai fincando as bases
de sua territorialização epistemológica e formas de enfrentamento sanitário
em permanente articulação, aliadas às epistemologias e direitos insurgentes
da América Latina.
224

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RELAÇÕES ENTRE MOVIMENTOS
INTERNACIONAIS DE PROMOÇÃO
DA SAÚDE E DESENVOLVIMENTO
HUMANO SUSTENTÁVEL NA AGENDA
GLOBAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Roberto Eduardo Bueno78

Uma introdução às inter-relações teórico-conceituais de Promoção


da Saúde e Desenvolvimento Humano Sustentável

Os movimentos internacionais de Promoção da saúde e Desenvolvimento


Humano Sustentável, aliados na busca da sustentabilidade e qualidade de
vida, representam estratégias convergentes para a agenda global de políticas
públicas no enfrentamento dos problemas socioambientais e de saúde das
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populações mundiais. Compartilhando de uma concepção ampla de meio


ambiente e do processo saúde-doença e de seus determinantes e condicio-
nantes socioambientais, essa integração propõe articulações intersetoriais,
entre os saberes técnicos e populares, a mobilização participativa de recursos
institucionais e comunitários a favor do imperativo ético da qualidade de vida
humana e ecossistêmica planetária (BUSS et al., 2020).
A estratégia internacional de promoção da saúde engloba princípios, valo-
res e práticas direcionados a ampliar a autonomia de indivíduos, populações
e organizações frente aos determinantes e condicionantes socioambientais
do desenvolvimento humano, sustentabilidade, equidade, balanço de poder,
processos inclusivos e impactantes, e políticas de governo e de Estado, con-
forme Figura 1 (BUENO, 2011; BUENO et al., 2013).
A Política Nacional de Promoção da Saúde no Brasil consolidou a rele-
vância do Sistema Único de Saúde, SUS, para o acesso equitativo aos serviços
sociais e de vigilância ambiental, sanitária, epidemiológica e de saúde do

78 Pós-Doutorado, Doutor, Mestre e Especialista em Saúde Coletiva pela PUCPR. Especialista em Gestão
de Políticas de Saúde Informadas por Evidências pelo Instituto Sírio-Libanês. Especialista em Educação
Ambiental pelo IBPEX. Bacharel em Odontologia pela UFPR. Licenciado em Biologia pela UNERJ. Professor
dos Programas de Pós-Graduação: Políticas Públicas; Rede Nacional para Ensino das Ciências Ambientais;
Desenvolvimento Territorial Sustentável – UFPR. Professor do Bacharelado em Saúde Coletiva do Setor
Litoral da UFPR. Pesquisador dos grupos de pesquisas: Promoção da Saúde e Políticas Públicas da Facul-
dade de Saúde Pública da USP; Política, Avaliação e Gestão em Saúde da UFPR.
228

trabalhador para as articulações intrassetorial e intersetorial direcionadas aos


determinantes socioambientais da saúde individual e coletiva, envolvendo
setores específicos da saúde e de outros setores, de acordo com a Portaria
nº 2.446, de 11 de novembro de 2014 (BRASIL, 2014).

Figura 1 – Modelo Conceitual para Desenvolvimento


Humano e Promoção da Saúde

Desenvolvimento
Humano

Balanço
de
Poder
Governança Equidade

Promoção
da Saúde
Processo
Políticas de Inclusivo/
Governo/ Resultados
Estado Impactantes

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Sustentabilidade

Fonte: Bueno (2011).

A promoção da saúde amplifica a concepção teórica e pragmática do processo


saúde-doença e de seus determinantes e condicionantes socioambientais. Dessa
forma, articula as políticas públicas, os saberes técnicos e populares, a mobiliza-
ção participativa de recursos institucionais e comunitários. Uma agenda global
convergente ao movimento internacional da promoção da saúde corresponde aos
ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (BUSS et al., 2020).

A Agenda Global 2030 para políticas públicas sustentáveis


e saudáveis, sintetizadas nos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável

Os 17 ODS (Figura 2) sintetizam e unificam a Agenda 2030, estabelecida


pela Organização das Nações Unidas (ONU), e convergem às inter-relações
entre os movimentos internacionais de promoção da saúde e meio ambiente.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 229

No Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), promoveu a


“tropicalização” das metas dos ODS. Desta forma, foram adaptadas as metas
para que contemplasse as especificidades das políticas públicas municipais,
estaduais e nacional (IPEA, 2018).

Figura 2 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)


ODS Objetivo
1 Acabar com a pobreza, em todas as suas formas, e em todos os lugares.
2 Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição, e promover a agricultura sustentável.
3 Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.
Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao
4
longo da vida para todos.
5 Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
6 Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos.
7 Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos.
Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho
8
decente para todos.
9 Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável, e fomentar a inovação
10 Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles.
11 Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
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12 Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.


13 Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos.
Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento
14
sustentável.
Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as
15
florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade.
Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça
16
para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
17 Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

Fonte: IPEA (2018).

Os ODS podem ser compreendidos como uma agenda global de políticas


públicas para a abordagem teórica e desenvolvimento de práticas de promoção
da saúde e desenvolvimento humano sustentável. Esta integração de desen-
volvimento saudável e sustentável amplia a visão de mundo e esclarece que o
desenvolvimento humano não depende somente do desenvolvimento econô-
mico. O desenvolvimento humano também está atrelado ao desenvolvimento
social e ambiental do lugar em que vivem as pessoas, desfrutando das suas
capacidades para alcançar plenamente as potencialidades de liberdade. Assim,
o desenvolvimento humano sustentável promove a liberdade de escolhas das
pessoas. Ser humano livre para ter a oportunidade de uma vida sustentável e
saudável (SEN, 2000).
Os ODS, uma agenda global que integra o desenvolvimento humano em
suas várias dimensões políticas, sociais, culturais, institucionais, econômicas e
230

ambientais pode convergir de forma conceitual e pragmática com o movimento


internacional da Promoção da Saúde, por meio das diversas vozes ecoadas
nas Conferências Internacionais em vários territórios, as quais abordaremos
de forma sucinta e historicamente na sequência.

Breve história de movimentos internacionais estratégicos à


Promoção da Saúde através de Conferências pelo mundo

Em 1978, aconteceu a Conferência de Alma-Ata, realizada no Caza-


quistão, a qual é considerada um marco fundamental na história das Con-
ferências de Saúde. Nesta Conferência, a Atenção Primária foi reconhecida
como função principal para a reordenação dos sistemas de saúde, os quais
são estratégicos para o desenvolvimento humano sustentável e saudável. A
saúde foi vista como um direto humano fundamental e “a mais importante
meta social mundial”. Também foram abordadas as desigualdades sociais
em saúde existentes entre os países. Diante disso, foi estabelecida a meta
de “Saúde para todos” até 2000. Estavam no centro das discussões, temas
como: acessibilidade universal, equidade, responsabilidade do governo na

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implementação de políticas públicas para a saúde e participação comunitária
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1978).
Dentre as Conferências Internacionais especificamente sobre o campo da
Promoção da Saúde, destaca-se a Primeira Conferência Internacional sobre
Promoção da Saúde, concretizada em Ottawa, Canadá, em 1986, a qual traz o
conceito de Promoção da Saúde como o “processo de capacitação e participa-
ção da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde”.
Determinantes e condicionantes políticos, econômicos, sociais, e ambientais
influenciam a capacidade e oportunidade de promover a saúde das populações
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1986).
Em um movimento internacional sinérgico e integrativo à ampliação
do conceito e práticas de Promoção da Saúde e Sustentabilidade, o termo
“Desenvolvimento Sustentável” surge em 1987 no relatório de Brundtland,
chamado de “Nosso Futuro Comum”, inter-relacionando o desenvolvimento
e a sustentabilidade, “como aquele que responde às necessidades do presente
sem comprometer a capacidade das gerações futuras em atender as suas pró-
prias necessidades” (CMMAD, 1991).
Diante desses marcos históricos no campo da saúde e meio ambiente, a
presente geração está diante de um imperativo ético de produzir ações antró-
picas que sejam ecologicamente corretas, economicamente viáveis, social-
mente justas, aceitas culturalmente e potencialmente saudáveis (UNITED
NATIONS, 2002).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 231

Além disso, em 1988, a Conferência Internacional sobre Promoção da


Saúde, em Adelaide na Austrália, traz a intersetorialidade como princípio e
estratégia predominante às políticas públicas saudáveis e enfretamento dos
problemas socioambientais oriundos das desigualdades sociais nas populações
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1988).
Em consonância com esse percurso histórico, a Conferência Internacio-
nal sobre Promoção da Saúde, em Sundsvall na Suécia, em 1991, destaca a
justiça social como fundamento e prática para o combate a extrema pobreza.
A pobreza é um produto presente no modelo de desenvolvimento econô-
mico predatório do meio ambiente e excludente nas sociedades pelo mundo
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1991).
Uma representação do movimento estratégico da América Latina,
em 1992, a Conferência Internacional de Promoção da Saúde, concretizada
na Colômbia, explicitada na Declaração de Santa-Fé de Bogotá, conceitua
pragmaticamente a Promoção da Saúde com uma abordagem latino-ameri-
cana por meio da ação nos determinantes e condicionantes socioambientais
da saúde coletiva. Paralelamente, no Brasil aconteceu a Conferência Mundial
sobre Desenvolvimento Sustentável, chamada de Rio-92, a qual foi precursora
após 20 anos da Rio+20. Ambas convergiram teoricamente e com propostas
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de ações sobre o enfoque dos determinantes e condicionantes socioambientais


da promoção da saúde e desenvolvimento sustentável (BRASIL, 2002).
Além disso, a Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em
Jacarta na Indonésia, em 1997, também abordou os determinantes sociais da
saúde e a pobreza como principal produtora das iniquidades em saúde. E foi
o primeiro movimento internacional sobre Promoção da Saúde que pautou a
temática dos determinantes sociais da saúde com uma repercussão mundial
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1997).
Cabe ressaltar que os determinantes sociais da saúde já haviam sido
abordados na Declaração de Santa-Fé de Bogotá em 1992, embora com reper-
cussão restrita aos territórios latino-americanos.
Ainda na América Latina, em 2000, a Conferência Internacional sobre
Promoção da Saúde, no México, contemplou a Equidade como tema central
para o desenvolvimento social, ambiental e econômico. Destacou a importân-
cia da mobilização e participação da sociedade civil para as políticas públicas
sustentáveis e saudáveis (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2000).
Em 2005, a Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em
Bangkok na Tailândia, estabeleceu que a agenda de desenvolvimento global
deve ser fomentada por uma governança mundial e intercâmbio de políticas
públicas e ações integradas (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2005).
Após isso, a Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em
Nairóbi no Quênia, em 2009, pauta a Promoção da Saúde como estratégia
232

central na agenda de Desenvolvimento, além de reforçar a necessidade de


fomento aos processos participativos e de geração de conhecimentos e acesso
universal em saúde (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2009).
Em 2013, a Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em
Helsinki na Finlândia, estabelece como agenda prioritária a Saúde em Todas as
Políticas. A Equidade é a representação da Justiça Social. As políticas públicas
equitativas promovem a saúde, reduzem a pobreza e fomentam a inclusão
social e segurança pública (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013).
Já no Brasil, em maio de 2016, a 22ª Conferência Mundial de Promoção
da Saúde da União Internacional de Promoção da Saúde, realizada em Curi-
tiba, recomendou na Carta de Curitiba sobre Promoção da Saúde e Equidade
– Para garantir a Democracia e os Direitos Humanos em todos os países do
mundo – que: “o fortalecimento da promoção da saúde e maior equidade
podem melhorar a vida das pessoas, independentemente de onde vivam, traba-
lhem, brinquem e aprendam. Equidade é a meta; a continuidade da iniquidade
em gênero, raça e etnia é um sinal de falha do sistema” (OPAS, 2016).
Em novembro de 2016, a Conferência Global de Promoção da Saúde,
em Xangai na China, priorizou a saúde como um pilar fundamental do desen-
volvimento, do bem-estar e qualidade de vida das populações e como uma

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dimensão imprescindível para o Desenvolvimento Humano Sustentável. Na
Declaração de Xangai expressou que “promoveremos a saúde mediante a
adoção de medidas encaminhadas ao cumprimento de todos os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável – ODS”, contemplados na agenda global 2030
para o desenvolvimento sustentável. Também, destacou-se a dimensão política
desta Conferência estabelecendo que a saúde é política. Portanto as decisões
sobre políticas públicas são vitais para o campo e movimentos internacionais
estratégicos da Promoção da Saúde e Meio Ambiente (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2016).

Considerações finais

No final de 2019, surgem os primeiros casos da COVID-19, causada por


um novo coronavírus denominado SARS-CoV2, que em pouco tempo se dis-
seminaria rapidamente em uma pandemia envolvendo um mundo globalizado.
Esta pandemia da COVID-19, lançou novos e imensos desafios para a promo-
ção da saúde e desenvolvimento humano sustentável. Trouxe a imprescindível
e urgente necessidade de integração entre os movimentos internacionais de
promoção da saúde e meio ambiente. Estabeleceu relevantes e vitais conexões
globais entre a ética, a economia, a política, o meio ambiente e a saúde humana.
Por meio de uma breve análise das relações discutidas nas Conferências
entre movimentos internacionais de promoção da saúde e desenvolvimento
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 233

humano sustentável, verificou-se a existência teórico-conceitual de inter-rela-


ções convergentes nas declarações dos movimentos internacionais estratégicos
de promoção da saúde para o alcance do desenvolvimento humano sustentável
de forma global. Pela complexidade da temática e longe da pretensão de abran-
ger todas as inter-relações, fica a instigante necessidade de aprofundamentos
teórico-conceituais e pragmáticos para a implementação de política públicas
saudáveis e sustentáveis.
A agenda 2030, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, con-
grega e promove globalmente o direcionamento das políticas e ações nos
diversos territórios pelo mundo, os quais podem permear adaptações das suas
metas de acordo com a sua realidade local. Entretanto, persistem os conflitos
governamentais nas escolhas de prioridades na agenda e implementação de
políticas públicas efetivas de promoção da saúde integradas ao desenvolvi-
mento sustentável.
Diante da de um mundo globalizado em um contexto de pandemia da
COVID-19 e dos desafios de implementação da agenda 2030, em conformi-
dade com as realidades locais, recomenda-se a articulação de parcerias inter-
nacionais e intersetoriais para o estabelecimento de governança das políticas
públicas em prol da ampliação da participação social, equidade, sustentabili-
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dade e convívio ético para a promoção da saúde e desenvolvimento humano


sustentável no planeta Terra, rompendo as barreiras geográficas e políticas
para o bem-estar físico, mental, social e espiritual entre as nações.
234

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AS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES
LÁCTEAS DA REGIÃO CENTRAL DE
RONDÔNIA SOB A PESPECTIVA DO
MODELO ESTRATÉGICO DE PESTEL
Cleberson Eller Loose79
Odirlei Arcangelo Lovo80
Clodoaldo de Oliveira Freitas81
Eliane Silva Leite82

O meio rural vem se modificando intensamente a partir da degradação da


região, do êxodo e envelhecimento da população rural, com isso surge uma
nova forma de entender a vida no campo, questionando o modelo de moderni-
zação existente. Essa nova visão, mais ampla, considera, além dos aspectos de
produção como produtividade, mercados e rentabilidade os aspectos sociais,
ecológicos e beneficiamento. Com o objetivo de desenvolver iniciativas autô-
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nomas e capacidades próprias para abrir alternativas aos mercados tradicionais,


surge a agroindústria como uma alternativa na busca de novos nichos de merca-
dos, utilizando-se da maior diversidade de produtos existentes em grande parte
das propriedades e na diferenciação dos produtos por meio de beneficiamento
nas propriedades, com o uso da mão de obra familiar (WILKINSON, 2008).
Uma forma de atender este novo paradigma são as agroindústrias rurais
familiares que é uma alternativa para incrementar a renda da família e um meio
de utilização dos produtos excedentes. Inserida em um mercado bastante com-
petitivo, a agricultura familiar necessita de forte diversificação na produção e
de diferenciação de seus produtos. Gestão profissionalizada, informatização,
novos hábitos de consumo, tecnologias em constante avanço, padronizações de
qualidade, conservação ambiental, visão sistêmica e de agronegócio, complexo
agroindustrial ou cadeia alimentar são paradigmas presentes na atualidade
(BATALHA, 2007).
Mas, mesmo com todos os esforços existem muitos gargalos nesse setor,
quais sejam processos de comercialização e acesso aos mercados, inadequa-
ção de embalagens, instalações e tecnologia de produção e, principalmente,
no que diz respeito à legislação sanitária e à qualidade destes produtos. Nesta

79 Fundação Universidade Federal de Rondônia Câmpus Professor Francisco Gonçalves Quiles.


80 Fundação Universidade Federal de Rondônia Câmpus Professor Francisco Gonçalves Quiles.
81 Fundação Universidade Federal de Rondônia Câmpus Professor Francisco Gonçalves Quiles.
82 Fundação Universidade Federal de Rondônia Câmpus Presidente Médici.
238

conjuntura, o modelo estratégico de PESTEL (Político, Econômico, Sociocul-


tural, Tecnológico, Ecológico e Legal) pode ser usado como instrumento de
redução dos riscos, pois tem possibilidades de compreender o contexto em que
está inserida a organização, possibilitando a antecipação dos problemas vindou-
ros, dando ao processo de gestão a visão de como enfrentar os problemas que
ocasionalmente se apresentam para a entidade (KAPLAN; NORTON, 2008).
No presente trabalho, objetivou-se analisar por meio do Modelo Estra-
tégico de PESTEL as agroindústrias lácteas ligadas a agricultura familiar da
região Central de Rondônia. Para tal, elaborou-se um instrumental, tendo como
base o princípio da ferramenta FOFA, fez-se oficinas participativas e análise
de materiais secundários, de modo a determinar e analisar as agroindústrias
sob o modelo PESTEL – Político, Econômico, Sociocultural, Tecnológico,
Ecológico e Legal.

Agroindústria familiar e sua unidade de produção

Nas últimas décadas, a agricultura familiar vem assumindo papel de


destaque nas discussões sobre Desenvolvimento Local Sustentável. Sua impor-
tância socioeconômica e cultural começa a ser reconhecida por lideranças e

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instituições que até a pouco a negligenciavam ou a desconheciam.
O desenvolvimento rural que não seja somente agrícola, a exemplo do
que ocorre em outros países, tem despertado a atenção de produtores, lideran-
ças e instituições ligadas ao agronegócio, os quais buscam identificar alterna-
tivas como a agroindústria, o turismo rural, entre outras. A agricultura familiar
diversificada é a opção estratégica que melhor permite obter um alto grau de
dinamismo, flexibilidade e competitividade econômica no atual contexto de
mercados globalizados (FREITAS, 2015).
O paradigma de que a agricultura familiar não reúne condições materiais
para o seu desenvolvimento não mais se confirma. Nos países capitalistas
avançados, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, é fundamen-
talmente sobre a base de unidades familiares de produção que se constitui a
imensa prosperidade que marca a produção de alimentos e fibras nas nações
mais desenvolvidas (DIAS, 2018). Nestas, o agricultor interage com uma ges-
tão eficaz da propriedade e com estratégias bem definidas de comercialização.
Assim, a agricultura familiar, ao longo dos tempos, tem mostrado uma
curiosa capacidade de manter-se, reproduzir-se e adaptar-se aos movimentos
da conjuntura socioeconômica, independentemente dos regimes políticos nos
quais esteve inserida e/ou evoluiu (DIAS, 2018). Aos poucos, deixa de ser
vista como uma forma social de organização da produção agropecuária em
decadência, e passa a ser tratada como um produto do próprio desenvolvimento
da economia agrícola moderna e com um futuro próspero.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 239

No entanto, a simples expansão horizontal ou aumento da atividade


agrícola desenvolvida não gera renda satisfatória para o produtor (BONAC-
CINI, 2000). Para compensar esta perda, busca aumentar a produtividade da
estrutura da propriedade rural, intensificando o uso de tecnologia e identifi-
cando alternativas de agregação de valor (GUANZIROLI, 2010).
A agroindustrialização, de modo geral, vem adquirindo importância, com
impactos diretos no desenvolvimento rural brasileiro. A agricultura familiar
está intimamente vinculada a este processo, seja através da integração aos
grandes complexos agroindustriais, ou por meio de experiências individuais
e/ou coletivas de industrialização. O desenvolvimento da agroindústria fami-
liar é um dos caminhos para aumentar o valor dos produtos do meio rural.
Comercializar estes produtos no mercado final ou intermediário, acrescidos de
outros bens e serviços, possibilita aumentar o valor da matéria-prima principal,
gerando mais renda ao produtor (GUANZIROLI, 2010).
As iniciativas de agroindustrialização impulsionam a geração direta e
indireta de novos postos de trabalho, podendo gerar uma distribuição de renda
mais equitativa. Sendo assim, podem representar uma importante forma de
reinclusão social e econômica destes agricultores, melhorando sua qualidade
de vida (GUANZIROLI, 2010).
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As mudanças nos hábitos de consumo, ocasionadas pela abertura dos


mercados pode significar novas oportunidades para a agricultura familiar. Na
medida em que há demanda por produtos de melhor qualidade, torna possível
a produção em pequena escala, com produtos diferenciados e dirigidos a mer-
cados específicos. Para este tipo de agricultura, paradigmas como unidade de
grande porte, verticalização, grandes volumes de produção, podem ceder lugar
a unidades de pequeno porte, com proximidade do cliente, qualidade, produti-
vidade e respeito ao equilíbrio ambiental e à saúde humana (BATALHA, 2007).
Sendo assim, entre as alternativas que se apresentam aos agricultores
familiares encontra-se a agroindústria, uma saída possível e sustentável para
aqueles que buscam agregar valor a seus produtos. Porém, antes de sua ins-
talação, são necessários alguns cuidados para que esta alternativa se adapte
à estrutura de produção e se torne uma atividade rentável. Por isso, analisar
os fatores que interferem diretamente na eficiência e eficácia do negócio é de
fundamental importância. Realizar estudos sobre a disponibilidade de maté-
ria-prima, mão de obra, tecnologias, legislação, infraestrutura de produção e
comercialização, layout e mercado é essencial antes de se iniciar um projeto
agroindustrial (BATALHA, 2007).
Da mesma forma, a realização de estudo de mercado que sinalize o quê,
quanto, e em que época produzir, pode ser de muita valia. A instalação da
agroindústria deve ser precedida de informações, que irão auxiliar o planeja-
mento do investimento. Um levantamento detalhado deveria levar em conta
240

aspectos como: locais de comercialização, as exigências dos consumidores


com relação ao tipo de produto, sua qualidade, apresentação, preço e épocas
de maior consumo; além disto, devem ser cumpridas as exigências legais
feitas à pequena agroindústria que garantam ao produtor e ao consumidor
maior segurança.
São vários os fatores que proporcionam vantagens para o desenvolvi-
mento de agroindústrias rurais. A matéria-prima que abastece as agroindús-
trias tem origem nos estabelecimentos dos agricultores proprietários e/ou
associados a elas. O trabalho operacional das agroindústrias, na maioria das
vezes, é desenvolvido por familiares, sendo em alguns casos complementada
com mão de obra contratada, geralmente de vizinhos. Da mesma forma, o
gerenciamento é praticado por eles. Sendo assim, pode-se constatar que os
agricultores passam a atuar em toda a cadeia produtiva, até a colocação do
produto no mercado. Outra vantagem é a descentralização do desenvolvimento
para o interior dos municípios, diminuindo as migrações desordenadas, além
de reduzir o poder poluente das indústrias (BATALHA, 2007).
Mas, ao mesmo tempo em que se apontam vantagens para o desenvolvi-
mento de agroindústrias rurais familiares, também se realçam dificuldades ou
entraves, como a cultura (racionalidade) desses produtores, a falta de capacita-

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ção para o gerenciamento, a qualidade da mão de obra, a garantia de qualidade
do produto, a escassez de capital e a infraestrutura de comercialização.
No atual contexto de mercado, uma agroindústria rural familiar de qual-
quer região pode competir diretamente com agroindústrias de outras regiões,
estados ou países. É evidente que, neste processo, a competição não é apenas
por custo baixo, mas também, e principalmente, pela qualidade. As agroin-
dústrias rurais familiares necessitam inserir-se neste contexto de informa-
ções e mudanças, que são cada vez mais rápidas. Gestão profissionalizada,
informatização, novos hábitos de consumo, tecnologias em constante avanço,
padronizações de qualidade, conservação ambiental, visão sistêmica e de
agronegócio, complexo agroindustrial ou cadeia alimentar são paradigmas
presentes na atualidade (BATALHA, 2007).
Portanto, a gestão produtiva associada à comercialização pode ser consi-
derada um dos gargalos na viabilização das agroindústrias familiares, principal-
mente as de pequeno porte, que necessitam de apoio efetivo para potencializar
o processo de comercialização de seus produtos (FREITAS, 2015).
Conceitos como de desenvolvimento sustentável introduzem a noção
de equilíbrio na exploração e na utilização dos recursos naturais, bem como
provocam rápidas e importantes transformações nos hábitos dos produtores
e dos consumidores. Com isso, estão surgindo novos nichos de mercado que
podem significar, para a agricultura familiar, uma oportunidade importante
de afirmação e até mesmo de expansão (BATALHA, 2007).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 241

A análise da gestão da comercialização sob o aspecto de visão de cadeia


possibilita compreender o funcionamento e a relação entre as diferentes fases/
etapas da cadeia agroindustrial, podendo assim, contribuir na identificação de
aspectos nos diversos elos que poderão facilitar e/ou dificultar a comercia-
lização dos produtos e, consequentemente, interferir na viabilização destas
agroindústrias (BATALHA, 2007).

Modelo estratégico de PESTEL como ferramenta de análise


externa das organizações

Todas as organizações recebem várias influências, tanto de situações


internas como externas. Um dos papeis da gestão deverá ser entender e identi-
ficar estas possíveis influências e monitorar de modo cuidadoso estes aspectos
de modo a minimizar os possíveis impactos destes na organização. De modo
geral uma organização precisa identificar os fatores que afetam diretamente a
vida de seus associados e a capacidade de manter a organização. Os gestores
devem estar preparados para rastrear as tendências e desenvolver habilidades
para garantir a saúde da entidade (KAPLAN; NORTON, 2008).
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O ambiente em que se insere este tipo de organização pode variar de


estável a dinâmico, dependendo do nível de dependência do tipo de negócio
em relação a cada força interna ou externa, ou ainda de simples a complexo.
Quanto maior a complexidade, maior será a necessidade de conhecimento para
entender o seu contexto de atuação, mas este processo pode ser simplificado
à medida que se consegue dividir em componentes de fácil compreensão.
Seja qual for as características do ambiente da organização, suas mudanças
devem ser acompanhadas por todos os envolvidos diretamente, sob pena de
ser eliminada do mercado (NASCIMENTO, 2008).
Há diversos processos para se fazer análise estratégica externa, neste
caso em particular, será utilizado um que começa pelo estudo dos fatores mais
gerais que afetam ao meio. O modelo PESTEL, foi concebido para analisar o
meio de uma organização ou unidade produtiva e suas influências externas. Ao
entender como podem mudar os fatores contemplados no modelo, as entidades
podem desenhar sua estratégia para adaptar-se às grandes tendências que afe-
tam a todo o setor (WRIGHT; KROLLE; PARNELL, 2000; BETHLEM, 2004,
citados por NASCIMENTO, 2008; KAPLAN; NORTON, 2008).
Deste modo, o modelo de PESTEL pode ser usado como instrumento
de redução dos riscos estratégicos, pois tem possibilidade de compreender o
contexto em que está inserida a organização, possibilitando a antecipação dos
problemas vindouros, dado o processo de gestão a visão de como enfrentar os
problemas que ocasionalmente se apresentam para a entidade. Para Kaplan
242

e Norton (2008, p. 48) os gestores precisam: “compreender o impacto das


tendências macroeconômicas e setoriais.”
Para se analisar o setor das agroindústrias em Rondônia, deve-se perceber
cada um dos fatores que compõe o modelo de análise estratégica de PESTEL,
por meio da observação dos conceitos desenvolvidos por Machado (2005),
Bethlem (2004), Wright, Kroll e Parnell (2000) citados por Nascimento (2008)
e Kaplan e Norton (2008):
a) Fatores Políticos: Afetam à organização e podem ser compreendidos
como sendo a forma de relação com o governo, nos seus três níveis, municipal,
estadual e federal, verificando a estabilidade do governo, a política fiscal, a
legislação sobre comércio, a política de bem-estar social, as atitudes dos con-
sumidores em relação a seus produtos, bem como os esforços de marketing.
b) Fatores Econômicos: São caracterizados por impactar significativa-
mente nos negócios a partir de mudanças ocorridas em caráter geral, podendo
ser estas positivas ou negativas, estimuladoras ou desestimuladoras. Nesta
componente, analisa-se a distribuição e uso dos recursos econômicos da socie-
dade. Trata-se, por suposto, de um aspecto muito importante, pois os hábitos de
consumo recebem uma forte influência da taxa de desemprego, o rendimento
disponível, o tipo de mudança. Conhecendo a provável evolução de cada um

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destes fatores e como a afetará se for o caso particular, uma empresa poderá
introduzir medidas de prevenção para reduzir certos riscos. O setor de pro-
dução primária é bastante vulnerável às oscilações econômicas, o agricultor
precisa entender este processo para poder se defender dessas influências e
manter-se produtivo, tendo na sua organização de classe uma maneira de
alcançar este objetivo (NASCIMENTO, 2008).
c) Fatores Socioculturais: As mudanças nos padrões sociais e culturais,
bem como as tendências de crescimento demográfico pode se converter em
ameaças ou oportunidades, para o caso em questão, estas transformações
impactam diretamente dentro da organização. O componente sociocultural do
meio contém elementos como grau de escolaridade, a cultura da sociedade,
as normas éticas, os costumes, o estilo de vida, o nível de consciência em
relação ao meio, a distribuição de gênero e geração e, aspectos demográficos
(cor, etnia, religião, renda, origem) referentes à sociedade que devem ser
consideradas no processo de tomada de decisão nas organizações.
d) Fatores Tecnológicos: São as mudanças na tecnologia que afetam o
setor tanto em sua parte de produção, como em sua parte comercial e administra-
tiva. A introdução de novos equipamentos para conservação e beneficiamento,
teve um forte impacto sobre a produção primária. Antes, a modernização, era
destinada aos grandes empreendimentos, com o passar do tempo, possibili-
tou-se aos pequenos produtores se organizarem e garanti-las, e em muitos
casos como políticas públicas. As variáveis tecnológicas são compreendidas
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 243

no atual contexto como imprescindíveis para a manutenção da atividade no


Brasil, pois modificam sua estrutura de mercado de determinada economia
em escala, causando mudanças na gestão das organizações no que se refere
ao gerenciamento de custos, qualidade de produtos e serviços, entre outros.
e) Fatores Ecológicos: A repercussão sobre os problemas ambientais entre
dos produtores é crescente a partir do momento em que o mesmo compreende
as questões de responsabilidade ambiental, uma vez que o setor atua direta-
mente no meio focando na produção autossustentável e com princípios agroe-
cológicos e de cooperação, buscando um equilíbrio entre homem e natureza.
Destaca-se neste contexto, a análise de como e de que forma os agricultores
percebem situações como: produção de resíduos sólidos e líquidos, consumo de
energia e combustíveis, reciclagem, influência do turismo ecológico, atuações
de grupos ambientais entre outras situações pertinentes ao setor.
f) Fatores Legais: Inclui-se uma análise dos fatores legais referentes
às regulamentações, implantação que o empreendimento deve cumprir no
estado de Rondônia, junto ao governo, os clientes e canais de distribuições.
Analisar internamente significa entender a sua estrutura de funciona-
mento, para tanto Kaplan e Norton (2008, p. 48) afirmam que: “a análise
interna abrange o desempenho e as capacidades da organização.” Conse-
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quentemente as metodologias participativas apoiam a autoanálise e a auto-


determinação da organização pela participação dos indivíduos associados na
construção do desenvolvimento da entidade (VERDEJO, 2006).
Nessa análise interna, a organização é vista como uma forma viva. Por
meio dos seus membros, verifica-se as ameaças, pontos fracos e as oportu-
nidades, pontos fortes, fornecendo informações gerenciais de forma sucinta,
permitindo aos gestores traçar estratégias de desenvolvimento, como também
garantir o atendimento à comunidade, no caso produtos que garanta a quali-
dade e sustentabilidade (KAPLAN; NORTON, 2008).
A pesquisa de campo foi realizada de março de 2018 até junho de 2019,
nas agroindústrias lácteas na região Central de Rondônia, no município de
Presidente Médici, em três agroindústrias de derivados de leite bovino, devi-
damente regulamentada. Este processo se deu pelo método indutivo, no qual
parte de premissas particulares, geralmente empíricas, para chegar a uma
conclusão geral. Segundo Appolinário (2009), a indução é o motor da ciência
na produção de novos saberes.
A triangulação de forma coordenada entre: questionários semiestrutura-
dos, análise de documentos, outros materiais das agroindústrias e instrumentos
da oficina participativa, permitiu uma visão holística da gestão produtiva e
sustentável dos empreendimentos familiares, com vista às questões Políticas,
Econômicas, Socioculturais, Tecnológicas, Ecológicas e Legais – PESTEL.
Conforme Freitas (2015, p. 57): “A triangulação de dados constitui-se na
244

coleta de dados de diferentes fontes, diferentes tempos, locais e indivíduos.


[...], utilizando múltiplos métodos para estudar um determinado problema.”
Neste trabalho, foram levadas em consideração todas estas questões, para
garantir a execução com total isenção e qualidade dos dados.
Por meio de uma oficina participativa, que teve duração média de quatro
horas, com todos os operadores de cada agroindústria estudada, foi utilizado
algumas ferramentas como a FOFA, Matriz Histórica, Matriz Produção e outras
pertinentes para consolidar o levantamento de dados, juntamente com análise
de documentos e outros materiais disponíveis sobre os empreendimentos.
Para conhecimento das Fortalezas, Oportunidades, Fragilidades e Amea-
ças (FOFA) dos empreendimentos foi utilizado a Matriz FOFA, que segundo
Verdejo (2006, p. 41): “é um instrumento metodológico para análise de proje-
tos, organizações ou de ator social que se propõe a planejar, diagnosticando
sua situação e preparando propostas de ações estratégicas”.
Questionários semiestruturados foram elaborados sendo-os, inicialmente,
discutidos e aprimorados com os técnicos que prestam assistência técnica no
setor de cada município. Em seguida foi a aplicação do questionário piloto, que
possibilitou ajustes e correções de falha. Os questionários semiestruturados
foram padronizados de tal forma que as informações pudessem ser utilizadas

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em planilhas do Excel, com a finalidade de tabular os dados. Esses dados, após
tabulados, foram apresentados aos produtores e técnicos, de acordo com o
seu grupo de atuação para validar as informações e fazer ajustes necessários.
Neste trabalho, buscou-se analisar a gestão dos empreendimentos rurais
por meio dos elementos de PESTEL, que segundo Hitt (2005, p. 50) “[...] é
constituído dos elementos de alcance mais amplo na sociedade que influen-
ciam o setor e as organizações correlatas”. Este ambiente foi verificado a
partir da FOFA, de acordo com a metodologia participativa que é entendida
como um processo contínuo, caracterizado por não ser estático. Foi base para
o trabalho, o enfoque participativo que precisou ser adaptado a cada instante,
de acordo com cada subgrupo das atividades realizadas (KUMMER, 2007).
Para a efetiva validação e confrontação dos dados deste trabalho lançou-
-se mão de forma associada das informações a partir do arcabouço analítico
de triangulação de métodos, previamente construído com base nas referên-
cias teóricas, de: roteiro de questionários semiestruturado; análise de dados
secundários e outros materiais da entidade e; oficinas participativas. Enfim,
das possibilidades reais garantindo a participação dos empreendedores rurais
que neste cenário implicam no entendimento de que os atores sociais destas
populações não podem participar interativamente na transformação da rea-
lidade sem a ampliação da esfera pública local facilitando-lhes a tomada da
consciência epistemológica dessa realidade e da sua própria capacidade de
transformá-la (MINAYO, 2011).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 245

Em relação às questões Política as agroindústrias lácteas da região


estão acessando todas as possibilidades de políticas públicas disponíveis no
momento. A grande ameaça são as transformações ou exclusões que limitaram
algumas das políticas, diminuído as possibilidades de melhorar a renda da
propriedade. Os estados brasileiros têm de modo geral incentivado o processo
de agro industrialização rural por meio de aporte de políticas públicas, dando
novas perspectivas ao campo (GUANZIROLI, 2010).
No item fortalezas, encontrou-se que recebem assistência técnica por
meio da Emater/RO, são fiscalizados pelo Idaron/RO, recebem apoio irres-
trito da Prefeitura local por meio da SEMAT, dando todas as condições para
participar de eventos, das vendas públicas, entre outras.
Já quanto às fraquezas, os empreendimentos dependem eminentemente dos
órgãos públicos quanto às emissões de licenças, autorizações de funcionamentos,
que são morosos e caros. Quanto às oportunidades, encontrou-se o financiamento
por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar –
PRONAF, com juros abaixo do mercado financeiro, o acesso às políticas públi-
cas por meio de venda direta no Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e
no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Os empreendimentos
passaram a acessar outras licitações para hospital e outros setores.
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Os enormes aumentos no combustível e na energia elétrica foram as


grandes ameaças enfrentadas pelas organizações rurais. Acrescenta-se, ao
fato de que com a crise política no Brasil, houve uma drástica diminuição dos
recursos alocados as políticas públicas para atender o setor.
Já as questões Econômicas, apresenta como fortaleza a diversidade de
produtos produzidos, o controle do custo de produção, o processo de comer-
cialização em feiras, supermercados, eventos, por meio do PAA e PNAE. Para
facilitar o processo de comercialização as agroindústrias utilizam máquinas de
cartão de crédito/débito. Neste sentido, Zaluski et al. (2016, p. 3) afirma que:
“A agroindústria apresenta como pontos fortes: a diversidade, de produtos,
visto que possuem um portfólio grande de produtos [...]”.
A maior fraqueza colocada pelos empreendimentos pesquisados é a falta
de recursos para melhorar a genética do rebanho e a alimentação para produzir
mais matéria prima. Já no item oportunidades, as agroindústrias apresentam:
a gestão familiar, possibilidade de expandir a produção, e em função do bom
trabalho do PROVE tem aumentado os clientes que conhecem a boa qualidade
dos produtos. Em síntese, as agroindústrias rurais são bastante expressivas
em termos de sua contribuição para a renda familiar graça ao processamento
das matérias primas agregando maior valor econômico sobre a produção da
propriedade (GUANZIROLI, 2010).
Na perspectiva das ameaças, de acordo com os empreendedores, a crise
do país interferiu tanto na produção quanto na comercialização. Os insumos
246

e a energia elétrica utilizados na produção tiveram acréscimos significativos


em seus valores e como os consumidores buscam sempre por menores pre-
ços, consequentemente ficam chorando por desconto, tendo com isso uma
diminuição nas vendas, logo nos lucros. Acrescenta-se que as agroindústrias
não têm controle de toda a matéria prima, uma vez que adquirem de terceiros.
Quando se pensa as questões socioculturais tem-se a região central for-
mada por imigrantes, com características bem diversas. Neste quesito, a for-
taleza encontrada é a mão de obra eminentemente familiar, tendo funções
específicas e imprescindíveis tanto para os homens como para as mulheres.
Todos os empreendimentos apresentam pleno domínio do processo produtivo,
de acordo com a legislação vigente.
Quanto à fraqueza sociocultural destaca-se o desconhecimento da popu-
lação sobre o Selo de Inspeção Estadual – SIE, pois a população o rejeita,
pensando tratar de produto das grandes indústrias e na comercialização na
feira livre perde o status de artesanal.
A valorização dos integrantes da família, além de dispensar maiores cus-
tos com pessoas externas e ter certeza da qualidade no processo produtivo, gera
uma grande oportunidade de fixação dos familiares no campo, minimizando
o êxodo rural e possibilitando a garantia da sucessão rural. Neste sentido

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Guanziroli (2010, p. 11) afirma: “[...], a organização e a divisão das tarefas
dentro do grupo familiar tem acontecido com a inclusão de todos os membros
do domicílio nas atividades de beneficiamento da produção.” Completando,
Roldan e Schultz (2017, p. 6) afirmam: “A agroindústria, assim como o turismo
e o artesanato, são atividades complementares dentro da propriedade rural,
que promovem trabalho e complementam a renda. Além disso, possibilitam
a sucessão familiar e a valorização da mulher”.
Já as ameaças socioculturais se dão por desvalorização dos produtos
locais face aos produtos vindos de outras regiões e a grande burocracia que
desmotivam os agricultores familiares a beneficiar os produtos da proprie-
dade, preferindo a venda in natura, impedindo o aumento na renda por meio
da agregação de valores.
As agroindústrias familiares da região central estão garantindo qualidade
na produção em virtude do uso das tecnologias disponíveis no mercado. Neste
sentido, a fortaleza encontrada relacionada aos fatores tecnológicos foram
estruturas físicas e equipamentos que atendem todas as normas de produção,
sendo todo automatizado, garantindo produtos seguro para o uso da população.
No item oportunidades tecnológicas para aumentar a diversidade e criar
novos produtos, as agroindústrias estudadas precisam de: câmara fria, sela-
dora a vácuo para as diferentes formas de produtos, doceira para produção de
doce de leite, carro com câmara para transporte dos produtos e energia solar
no intuito de diminuir o custo de produção. Brito et al. (2016, p. 7) alerta: “a
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 247

empresa opta por vender apenas um tipo de produto, ficando sujeita a diversos
riscos atrelados a ele. A falta de variedades dos mesmos acarreta ainda mais
diminuição de clientes [...].”
A grande ameaça quando se trata de tecnologia é a energia disponibilizada
na região, pois apresenta grandes oscilações e quedas frequentes, afetando a
produção e comumente perdendo parte dos produtos.
Quando analisado as questões Ecológicas, encontra-se as seguintes for-
talezas: seguem as normas exigidas pelo PROVE, inclusive com a placa de
identificação conforme as especificações; sempre usam vestes, calçados brancos
adequados, toucas, máscaras e luvas; o soro resultante do processo de produção
é reaproveitado, como matéria prima para bebida lácteas e o excedente como
alimento para os bovinos e suínos da propriedade e dos parceiros, que são os
fornecedores de matéria prima; os outros dejetos líquidos são descartados nas
fossas sépticas, totalmente canalizadas e vedadas. Situação semelhante encon-
trado no estado do Pará, por Sena, Santos e Santos (2012, p. 68): “No caso do
soro, uma parte dos laticínios o devolvia aos produtores e a outra parte fazia
doação para uso na criação de animais. Quanto aos demais resíduos, algumas
empresas possuíam tanque de decantação e outras fossas sépticas”.
A água é controlada e analisada pela vigilância sanitária de acordo com
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a legislação vigente; as propriedades cumprem o Cadastro Ambiental Rural –


CAR, preservando as nascentes e as mata ciliares, práticas ecológicas estas que
ajudam na preservação, possibilitando ter água a disposição para a demanda
da agroindústria. Já quando se verifica as oportunidades, tem-se: práticas
ecológicas que poderá gerar oportunidade de renda associado ao ecoturismo;
melhorar o próprio rebanho e os dos parceiros para melhorar a produtividade
e a disponibilidade na compra dos produtos in natura.
A principal fraqueza encontrada no setor é que não tem controle de
toda a matéria prima para produção, uma vez que adquirem parte da maté-
ria-prima dos vizinhos. Já a ameaça principal é o uso de defensivos agrícolas
nas propriedades vizinhas, que contamina o ar, água e em alguns casos até
a matéria prima. Faz-se sentido, as agroindústrias rurais terem a missão de
buscar produtos mais favoráveis à saúde dos consumidores e para o meio
ambiente. Evitando no processo de produção a contaminação de água, ar ou
solo. A grande preocupação deverá ser o uso correto dos produtos químicos
incorporados ao sistema produtivo, como fermento, essências, conservantes
entre outros (GUANZIROLI, 2010).
Nas questões Legais (leis), encontrou-se as seguintes situações para for-
talezas: As propriedades cumprem o CAR e seguem todas as normas exigidas
pelo PROVE. Por iniciarem dentro das legalidades, nunca tiveram problemas
com a legislação. Neste sentido o PROVE tem como objetivo viabilizar a
verticalização da produção de pequenos produtores como forma de melhorar
248

a renda e o emprego no campo, evitando o êxodo rural, acrescenta-se o fim da


produção clandestina. Para isso, estão sendo viabilizadas condições técnicas,
financiamentos e assistência para garantir a efetividade do programa (GUAN-
ZIROLI, 2010). As críticas ao PROVE, de acordo com Flores e Campos
(2003), consiste em: produtores descapitalizados aumentando os subsídios
e os créditos governamentais; e falta de assistência técnica, de domínio das
técnicas de conservações e falta de conhecimento de gestão.
Quanto à gestão, a principal dificuldade enfrentada é controlar os custos
de produção, pois os empreendimentos não têm programa computacional e
nem conta com serviços de contabilidade específicos para esta função, apre-
sentam o controle de custos feito manualmente de modo rudimentar.
Já como oportunidades tem-se a necessidade de divulgar as boas práticas
e benefícios do consumo de produtos menos industrializados para aumentar
as vendas. Quanto às fraquezas legais, as agroindústrias regulamentadas são
altamente fiscalizadas de modo a garantir a produção de qualidade, porém
são obrigadas a competir junto ao mercado consumidor, com produtos sem
nenhum controle, dos produtores clandestinos.
Nas ameaças, a legislação atrapalha e interfere na produção e comer-
cialização, pois é muito rígida e demora a entregar as licenças solicitadas e

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obrigatórias para comercialização. As agroindústrias demoraram a conseguir o
selo SIE, e a data de validade é pequena, logo quando conseguem a liberação
já está quase com prazo de validade vencido, tendo que buscar a renovação
do mesmo quase que de imediato.

Conclusão

As agroindústrias são empreendimentos que visam beneficiar produ-


tos oriundos da agricultura, pecuária e aquicultura a fim de agregar valor
à matéria prima. Tendo a mão de obra predominantemente familiar, esta é
uma importante alternativa para escoar a produção, além de proporcionar
uma maior fonte de renda ao produtor, agregando valor a seus produtos.
Auxilia também na fixação do homem no campo, diminuindo o êxodo rural
e consequentemente o índice de desempregos na área urbana. Neste sentido,
entende-se a necessidade da manutenção das políticas públicas existentes
que atendem o setor, principalmente as capacitações em gestão, de modo a
garantir a sustentabilidade dos empreendimentos.
Politicamente, as agroindústrias são atendidas pela EMATER, IDARON e
pela prefeitura por intermédio da SEMAT e podem acessar financiamento por
meio do PRONAF. Entretanto, os tributos são elevados e a crise política atual
trouxe incerteza da continuação do PAA, PNAE e do PRONAF, aumentando
a insegurança quanto ao futuro dos empreendimentos rurais.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 249

Em relação às questões econômicas, as agroindústrias possuem um bom


leque de produtos, além de comercializarem em vários pontos (feiras livres,
mercados locais, eventos e nas unidades de produção) e acessam a progra-
mas como o PAA e PNAE. Possuem capacidade de expansão, entretanto não
possuem segurança e constância no fornecimento de matéria prima. Precisam
melhorar seus processos de gestão econômica que são bastante precários, visto
que não contabilizam os custos totais de produção.
No tocante da análise sociocultural é notória a presença da família como
mão de obra nas atividades, garantindo qualidade na produção e a certeza da
sucessão rural. São aspectos importantes na cultura local: dificuldade nas ven-
das de produtos rotulados, inserir novos produtos na rotina dos consumidores
e a desvalorização dos produtos regionais.
Quanto às questões tecnológicas, todas as agroindústrias são automatiza-
das. Porém para aumentar a produção serão necessários novos investimentos.
No entanto, sofrem com instabilidade da eletricidade da região. Outro ponto
importante é a implementação de máquinas de cartão de débito/crédito, que
facilitou o processo de comercialização.
Com relação as práticas ecológicas, os principais aspectos encontrados
foram a existência de destinação do soro para produção de bebidas lácteas ou
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reaproveitamento como alimento para bovinos e suínos da propriedade ou par-


ceiros; todas cumprem com o CAR e preservam as nascentes e as matas ciliares.
Entretanto, as agroindústrias não possuem controle sobre toda a matéria-prima
in natura, não tendo monitoramento sobre as práticas de produção que visam
à sustentabilidade, pois adquirem parte desta matéria-prima de parceiros. Os
demais resíduos do processo produtivo são descartados em fossas sépticas.
Sobre as práticas legais, todas as unidades produtivas seguem as normas
do PROVE e de qualidade da água segundo a legislação vigente, os equi-
pamentos e utensílios utilizados nas atividades são todos higienizados e as
dependências dedetizadas. Contudo, alguns aspectos da legislação atrapalham
e interferem na produção e comercialização, pois é muito rígida e são morosas
na emissão das licenças obrigatórias para comercialização.
Pode-se concluir que as agroindústrias familiares, da região Central
de Rondônia, são de pequeno porte, com pequena escala de produção, com
aumento da renda familiar, atendendo os mercados locais, com parâmetros
rígidos de controle sanitário e a produção se dá face ao uso de tecnologias,
ou seja, os saberes tradicionais não têm grande importância para o processo
produtivo. Quanto à gestão, encontram-se dificuldades em controlar os custos
de produção, por falta de programa computacional e qualificação para tal, ou
recursos para contratar serviços de contabilidade específicos para esta função.
250

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NEOEXTRATIVISMO E A INDÚSTRIA
PECUÁRIA COMO PADRÃO
ECONÔMICO EM RONDÔNIA:
um paradigma de desenvolvimento?
Charles Carminati de Lima83
Luciano Félix Florit84

Neoextrativismo é um modelo econômico caracterizado pela exploração


dos recursos naturais por atividades que envolvem grandes investimentos de
infraestrutura e que geram alta concentração de renda associada à impactos
socioambientais graves.
Normalmente as atividades que são consideradas pela literatura como
neoextrativistas são as de extração mineral e as monoculturas de grãos. Este
artigo contribui no sentido de ampliar a concepção do neoextrativismo também
para a atividade pecuária em Rondônia, principalmente após a implementação
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na década de 1970 de políticas de concessão de terras que estimularam grandes


empreendimentos econômicos voltados a indústria pecuária na Amazônia.
Pelo conceito do neoextrativismo, as políticas pautadas na exploração
primária dos recursos ambientais não conseguem correlacionar de modo
consistente o desenvolvimento com a questão das externalidades ambientais
negativas resultantes de sua exploração. No caso de Rondônia, sua dinâmica
socioeconômica padronizou o uso e a apropriação da terra para a exploração de
atividades complexas como a pecuária e a produção de grãos, que juntas resul-
taram em um conjunto de atividades econômicas que são legitimadas ao ponto
de justificar uma suposta “vocação” regional do estado para o agronegócio.
Neste estudo, o neoextrativismo fundamenta a importância da reflexão
normativa em torno dos padrões de desenvolvimento, que são muitas vezes
decorrentes de fatores econômicos condicionados pelas relações de poder e que
se consolidam como um modelo predominante de desenvolvimento no território.
No caso na indústria pecuária em Rondônia, é possível afirmar que a atividade
integra um processo de reprimarização da economia nacional e internacional
que impacta na formulação de políticas de desenvolvimento concentradoras de
recurso, com baixa remuneração e pouca geração de empregos diretos.
83 Doutor em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional de Blumenau (FURB) e Professor da
Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: charles@unir.br
84 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2003). Professor da Universidade
Regional de Blumenau (FURB), no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR).
E-mail: lucianoflorit@gmail.com
254

O percurso metodológico deste estudo exigiu a compreensão dos prin-


cipais conceitos sobre o desenvolvimento e da formação socioeconômica da
indústria pecuária brasileira e de Rondônia. Os dados pesquisados entre os
anos de 2018 e 2019, envolveram informações demográficas do Brasil e de
Rondônia retirados do IBGE, o levantamento sobre a produção bovina, o
abate e a indústria frigorífica rondoniense, e o levantamento dos empregos
e remuneração gerados pelo setor. Os dados sobre a produção bovina são
do Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA) e da Agência de
Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (IDARON). E as
informações sobre empregos e renda foram extraídas da Relação Anual de
Informações Sociais (RAIS).

O neoextrativismo em Rondônia como paradigma


de desenvolvimento
Embora possua diferentes significados, o conceito de desenvolvimento
constitui uma inesgotável fonte de discussão (THEOFANIDES, 1988). Para
Mathur, (1989), o termo desenvolvimento se refere quase sempre a possibili-
dades de mudanças sociais. Nos séculos XVIII e XIX, a partir da concepção

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da antropologia e da religião, se derivou a ideia de desenvolvimento. Contudo,
esse conceito só se expandiu no Século XX, pois anteriormente a concepção
otimista das coisas era tratada como progresso (FURTADO, 2005). O fato
de o conceito de desenvolvimento ter assumido um estilo fundamentalmente
econômico é comprovado pela concentração atribuída à acumulação de rique-
zas desde os séculos XVIII e XIX, em consequência da economia clássica
burguesa (HEIN, 1981). Posteriormente, o debate sobre desenvolvimento
passou a considerar como foco principal o crescimento da renda per capita,
em detrimento do aumento da riqueza material, reduzindo a discussão ape-
nas ao crescimento econômico (FURTADO, 2005). O foco na acumulação
de capital foi outra característica histórica que marcou a discussão sobre o
conceito de desenvolvimento. A discussão ganhou relevância com Karl Marx,
que analisou o conceito a partir da problemática sobre o modo de acumulação
capitalista de produção (THEIS, 2008).
Por outro lado, a discussão sobre desenvolvimento considera com grande
relevância a contribuição dos indicadores, que geralmente possuem objetivo
de evidenciar e mensurar o nível de desenvolvimento de uma região ou país,
que muitas vezes não leva em conta os custos da acumulação sobre os valores
culturais e da qualidade ambiental (GOULET, 1992).
De acordo com Furtado (2005), desde que o desenvolvimento começou
a ser medido, estabeleceu-se um grau de competição que considera como
padrão aceitável apenas os países que lideram o processo de acumulação, e
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 255

que são considerados pelos indicadores como modernos ou desenvolvidos, a


partir de sua contribuição per capita.
A partir desta lógica econômica que se justifica a existência do desem-
penho desses indicadores, mesmo que sejam considerados indiscutivelmente
complexos (ALTVAR, 1992; GOULET, 1992). Contudo, os indicadores não
podem ser responsabilizados pelos países que apresentam graus de desen-
volvimento diferentes. Necessita-se então, de uma análise de dimensões e
características mais qualitativas que não levem em conta apenas a acumulação
de capital (THEIS, 2008).
Para Lang (2016), do ponto de vista econômico, opor-se ao obstáculo
do desenvolvimento como padrão econômico é visto como um absurdo, algo
sem sentido, um erro. No entanto, existem inúmeras razões para desfazer-se
do conceito convencional de desenvolvimento por parte das economias que
são supostamente “doadoras” de tecnologias com objetivo de auxiliar os
países mais pobres, quando na verdade o objetivo é gerar renda e emprego
em seus próprios países.
Outro fato importante no debate sobre o desenvolvimento, diz respeito às
características naturais associadas as condições sociais no espaço geográfico.
Para Theis (2008) estão relacionadas às conexões entre sociedade e meio
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ambiente. Essa relação, é esclarecida por Peet (1991), a partir da tese do deter-
minismo geográfico, que tem sua origem no campo da geografia econômica
e parte do pressuposto que a ação humana é influenciada pelo meio natural.
No Brasil, desde a década de 1970, não se pode afirmar que sempre existe
relação entre o crescimento do PIB e consequentemente, o bem-estar da popu-
lação, sendo, portanto, processos distintos (LANG, 2016; FURTADO, 2005).
Neste sentido, o processo histórico de migração populacional na Amazônia,
definiu o modo de produção do espaço regional e o sistema de povoamento
urbano (KAMPEL; CÂMARA; MONTEIRO, 2001).
No início da década de 1970 o governo brasileiro adotou uma política
de ocupação e colonização, que não tinha por finalidade apenas integrar a
região, mas também expandir a fronteira agrícola e pecuária do país por meio
da concentração populacional em territórios geograficamente reorganizados,
principalmente em estados como o Pará, Amazonas, Acre e Rondônia (TEI-
XEIRA; FONSECA, 2001; MELLO, 2006; COSTA SILVA, 2014; COSTA
SILVA; CONCEIÇÃO, 2017).
Particularmente em Rondônia, os projetos de colonização foram implan-
tados nas décadas de 1970 e 1980 por meio da substituição de grandes áreas
de seringais nativos para um contexto fundiário, alterando a estrutura de posse
e uso da terra, inserindo Rondônia, dentro do sistema produtivo nacional com
grande incentivo para a criação de pecuária (OLIVEIRA, 2012).
Surgiram as obras de infraestrutura, como a pavimentação da BR 364
no trecho Cuiabá-Porto Velho, financiadas por recursos do Banco Mundial
256

e amplamente denunciadas por organizações e movimentos ambientalistas


internacionais. Tais fatos foram consequências do planejamento das políticas
governamentais que incentivaram o crescimento econômico, e que acentuou
um grande fluxo migratório para o estado (PAULA; SILVA, 2008; COSTA
SILVA, 2014; COSTA SILVA; CONCEIÇÃO, 2017). A expansão das ativida-
des rurais em Rondônia desenvolveu particularidades no espaço agrário que
configurou padrões econômicos para a formação do agronegócio. Por efeito,
ocasionou a exploração corporativa de grandes empresas do capital globali-
zado e estabeleceu relações subordinadas ao mercado econômico internacional
para a exploração primária de atividades como a pecuária e as monoculturas
(COSTA SILVA, 2014).
Igualmente, no continente latino-americano, com forte apoio do Estado,
o sistema de produção rural se apresenta como o carro chefe do desenvol-
vimento econômico regional. A apropriação de áreas para o agronegócio
passou a ser considerado como um ativo do capital nacional e estrangeiro,
que produz a expropriação do campesinato em suas formas coletivas de
produção agrícola, amplia a degradação ambiental e estimula os conflitos
agrários (FERNANDES, 2008).
Desse processo, se traduz resultados econômicos em escala global e

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consequências socioambientais em escala regional. Da mesma forma que são
evidentes os investimentos empresariais e os incentivos governamentais por
meio de políticas voltadas para o crescimento dessas atividades. Esse modelo
econômico e político de incentivo às indústrias primárias exportadoras de base
extrativa, vem sendo tratado pela literatura como neoextrativismo (GUDY-
NAS, 2009; ACOSTA, 2016; SVAMPA, 2016).
Neoextrativismo é definido como um modelo de desenvolvimento eco-
nômico focado na exploração de recursos naturais, em redes produtivas pouco
diversificadas e que na maioria dos casos abarca passivos ambientais devido a
impossibilidade da regeneração desses recursos (MILANEZ; SANTOS, 2013;
SCOTTO, 2011). Para Gudynas (2009), a contribuição dos setores extrativis-
tas continua sendo um pilar importante para os estilos de desenvolvimento
adotados na gestão dos governos latino-americanos, que embora promovam
“um novo extrativismo”, não se observa mudanças substantivas em sua atual
estrutura de acumulação econômica. Essa conclusão é corroborada por Scotto
(2011), ao afirmar que a dependência da extração dos recursos naturais como
vetor de crescimento econômico não é uma novidade na América Latina, pois
tem sido praticada desde o período colonial.
O conceito de neoextrativismo corresponde a uma reconfiguração do
extrativismo tradicional. Foi construído para definir um conjunto de ações
vinculadas a setores econômicos que extraem um grande volume de recursos
naturais. O conceito normalmente se refere a atividades de exploração dos
recursos minerais e de petróleo; podendo também ser associado a atividades
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 257

agrárias (ACOSTA, 2016; GUDYNAS, 2012a, 2012b). No entanto, não se tem


observado um caminho aberto para uma discussão de redistribuição das recei-
tas e dos bens patrimoniais oriundos desta exploração. Para Acosta (2016),
essa situação se explica pelo fato de ser relativamente fácil obter vantagem da
natureza sem precisar entrar na discussão dos impactos e dos custos ambientais
do processo extrativo. Pouco se questiona o papel das indústrias extrativas.
Ao contrário, busca-se criar argumentos para justificar sua adoção, a exem-
plo da justificativa que essas atividades são importantes para o crescimento
econômico regional (GUDYNAS, 2012b).
Outro argumento defendido é que as atividades extrativas são vistas como
fontes de riqueza e auxiliam na geração de empregos e no combate à pobreza,
e dessa forma tem impulsionado o apoio de sindicatos e outros movimentos
sociais para o aumento da extração dos recursos naturais. Nesse sentido uma
variação, em escala local, do discurso do crescimento econômico, diz respeito
às indústrias extrativas como vetores de desenvolvimento (GUDYNAS, 2012a).
No Brasil, o debate sobre neoextrativismo é recente, e a população dificil-
mente percebe o país como aquele que possui atividades predominantemente
de base extrativa. No contexto econômico brasileiro, a presença do neoextra-
tivismo pode ser entendida pelo processo de reprimarização85 da economia,
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medido pela participação da indústria extrativa no Produto Interno Bruto


(PIB), e pela exportação de bens primários, como os agrícolas e minerais
(BARTON, 2006; MILANEZ; SANTOS, 2013).
Por outro lado, apesar do alto resultado econômico na balança comercial,
grande parte dos graves problemas causados pelas atividades de concepção
neoextrativista diz respeito aos elevados custos econômicos dos impactos
socioambientais que são gerados por sua exploração, que de acordo com
Acosta (2016), se fossem contabilizados, grande parte de seus benefícios
econômicos e sociais desapareceriam.
Embora o debate sobre o neoextrativismo esteja concentrado nas ativi-
dades da indústria mineral e agrícola (ACOSTA, 2016; GUDYNAS, 2012b;
MILANEZ; SANTOS, 2013), seus sinais também são percebidos por meio
da criação pecuária e pela indústria da carne, pois essas atividades apresen-
tam características similares, a exemplo das diferentes escalas territoriais
necessárias à sua produção e comercialização e das externalidades ambientais
negativas geradas por sua exploração (ACOSTA, 2016; LIMA, 2019).
Na Amazônia brasileira, o desenvolvimento do sistema de produção rural
se expressa da relação econômica dirigida por capitais industriais e financeiros,
que avança com fortes impactos em regiões como o Mato Grosso, no sudeste
do Pará, no norte do Tocantins e no sul de Rondônia (COSTA SILVA, 2014).

85 Conceito derivado da economia, relacionado à desindustrialização. Isto é, maior valorização dos produtos
primários, minerais e agrícolas.
258

Da mesma forma, a pecuária extensiva em Rondônia também possui


categorias similares a essas, pois necessita para sua produção de grandes
extensões territoriais, o que produz impactos socioambientais diversificados,
e sua relação econômica está associada a capitais industriais subordinadas ao
mercado econômico internacional (LIMA, 2019).
O Brasil possui um dos maiores rebanhos bovinos do mundo, e assim
como a soja, a pecuária possui proeminência mundial na produção de carne
para exportação, sendo a atividade que ocupa a maior extensão territorial do
país (SCHLESINGER, 2010). Setores industriais como o grupo JBS-Friboi,
tem recebido a concessão de empréstimos governamentais, a exemplo do
BNDES (GUDYNAS, 2012a).
Outra similaridade da atividade pecuária com o modelo neoextrativista,
diz respeito ao grande apoio estatal para o movimento de internacionalização
do setor nas últimas décadas. De acordo com Schlesinger (2010), metade do
mercado mundial de carne bovina pertence a empresas frigoríficas brasileiras
como a JBS-Friboi e Marfrig Global Foods, que receberam apoio governa-
mental por meio do BNDES.
As externalidades ambientais negativas é outra característica comum às
empresas que integram o modelo econômico neoextrativista em Rondônia. A

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pecuária, juntamente com as atividades agrícolas e madeireiras, é apontada
como um dos principais vetores de expansão da fronteira agrícola, além de
impactar de maneira significativa os ecossistemas, degradar o solo, poluir os
recursos hídricos e contribui com o aumento da emissão de gases do efeito
estufa (ZEN et al., 2008).
Do ponto de vista social e econômico, as relações de apropriação da
natureza são construídas e naturalizadas historicamente, e dessa forma, são
legitimadas (GUDYNAS, 2012b, 1999). Da mesma forma, nas atividades da
pecuária e da indústria da carne, as relações mercantis são legitimadas como
supostas “vocações regionais” e a produção e a comercialização dos produtos
de origem animal são estabelecidas economicamente tanto em escala nacional
quanto internacional (FLORIT; GRAVA, 2013, 2016).
Essas supostas vocações se fortalecem nas relações sociais e políticas,
vinculadas aos grandes grupos econômicos e aos setores governamentais, e
desta forma, tendem a desconsiderar quaisquer outras possibilidades produ-
tivas no território (FLORIT; GRAVA, 2016).

Análise socioeconômica da indústria pecuária em Rondônia

O crescimento da indústria da carne em Rondônia possui grande relação


com as escalas do consumo brasileiro e do consumo em regiões da Europa
e Estados Unidos. Com base na estimativa de demandas nos próximos
anos, Heinrich Böll Foundation (2016), afirma que do total do crescimento
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 259

econômico previsto até 2022, até 80% poderá ser referente à produção de
carne. A tendência de maior crescimento deverá ser na China e na Índia,
devido à crescente demanda populacional.
O setor de produção de carne está concentrado em organizações empre-
sariais que estão se expandindo para além das fronteiras e diversificando as
espécies de animais para o abate. A empresa brasileira JBS86 possui capaci-
dade de abate de 85 mil cabeças de gado bovino, 70 mil porcos e 12 milhões
de aves diariamente, e fez com que o Brasil liderasse o mercado mundial de
carnes (HEINRICH BÖLL FOUNDATION, 2016).
Estimulado por políticas nacionais e internacionais de produção de carne,
o estado de Rondônia tornou-se uma das principais fronteiras agrícolas do
país e uma das regiões mais produtivas do norte brasileiro. Economicamente
Rondônia destaca-se pela produção da pecuária, seguindo pelo cultivo de grãos
em uma região com extensão territorial menor que os estados do Amazonas
e Pará (INPE, 2015, IBGE, 2019).

Tabela 1 – Rebanho bovino e bubalino no Brasil,


Região Norte e Rondônia (2000-2019)
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ANO BRASIL % REGIÃO NORTE % RONDÔNIA % Brasil %


Brasil Norte
2000 169.875.524 100 24.517.612 14,43 5.664.320 3,33 23,10
2005 207.156.696 100 41.489.002 20,03 11.349.452 5,48 27,36
2010 209.541.109 100 42.100.695 20,09 11.842.073 5,65 28,13
2015 216.590.996 100 49.455.342 22,83 13.404.354 6,19 27,10
2017 216.378.746 100 49.419.229 22,84 14.098.118 6,52 28,53
2018 214.913.122 100 49.537.084 23,05 14.374.043 6,69 29,02
2019 216.327.941 100 50.562.033 23,37 14.349.219 6,63 28,38

Fonte: Dados do estudo (2020), a partir de IBGE/SIDRA (2000-2018) e IDARON (2019).

Em termos de números (de cabeças), o rebanho bovino e bubalino no Bra-


sil, cresceu (em média) 26,51% em 19 anos (2000 a 2019). Na região Norte o
crescimento correspondeu a 102,05% no mesmo período. Em Rondônia houve
uma expansão de 153,76% do rebanho, uma proporção muito acima da pecuária
nacional. Em comparação a pecuária da região Norte, a produção de Rondônia
correspondeu a 28,38%, e a 6,63% do total da produção nacional em 2019.
Outra análise importante que caracteriza Rondônia como uma região de
“vocação” regional para a produção de carne, diz respeito às microrregiões do
estado com maior concentração per capita de bovinos e bubalinos em relação

86 A JBS S.A. é uma empresa brasileira fundada em 1953. É o maior frigorífico do setor de carne bovina do
mundo. A companhia opera no processamento de carnes bovina, suína, ovina e de frango e no processa-
mento de couros.
260

a população local. Para Grava (2013), as “vocações regionais” de um território


muitas vezes são estabelecidas de acordo com os interesses predominantes
de uma atividade econômica em detrimento de outra, sob pena de perder sua
viabilidade econômica.
O conceito de “vocação” para Weber (2004) tem uma conotação religiosa,
como “uma missão dada por Deus” (WEBER, 2004, p. 71). A palavra tem
origem na tradução da bíblia, do “espírito do tradutor”, e logo teria assumido
o significado atual “[...] na língua profana de todos os povos protestantes [...]”
(ibidem, p. 72) e da sociedade ocidental de modo geral.
No que se refere ao modelo econômico da pecuária, este não revela as
condições sociais e políticas de construção da chamada vocação, que é, essen-
cialmente, resultado das interações entre pessoas e o contexto social (FLORIT;
GRAVA, 2016).
Também chamadas de “especializações”, ou ainda de “polos econômicos”,
as “vocações regionais” se referem ao predomínio de uma ou outra atividade
determinada por características próprias de um território, sejam elas “naturais”
ou “culturais”, o que resultam na sua suposta “vocação” (GRAVA, 2013). Então,
o cálculo per capta de cabeças de animais em relação à população humana,
auxilia na análise da relação da quantidade de produção bovina em regiões onde

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é evidente o “padrão” econômico derivado da indústria da carne. O cálculo foi
baseado nas informações fornecidas em 2019 pela Agência de Defesa Sanitária
Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (IDARON/RO) e confrontadas com
o Censo populacional demográfico de 2010 do IBGE.

Tabela 2 – Produção bovina e bubalina per capita


nas microrregiões de Rondônia (2019)
Microrregiões produtoras Total de População por % da Concentração de
de bovinos em Rondônia cabeças microrregião população cabeças per capta
em 2019 de Rondônia
Regional de Porto Velho 2.340.774 520.974 33,35 4,49
Regional de Ariquemes 2.654.421 191.533 12,26 13,86
Regional de Ji-Paraná 2.062.911 239.153 15,31 8,63
Regional de Jaru 1.608.793 113.685 7,28 14,15
Regional de Cacoal 1.624.449 165.829 10,61 9,80
Regional de Rolim de Moura 1.527.096 130.431 8,35 11,71
Regional de São Francisco 1.154.246 63.170 4,04 18,27
Regional de Vilhena 1.383.265 137.534 8,80 10,06
Total de Rondônia 14.355.955 1.562.309 100 9,19

Fonte: Dados do estudo (2020), a partir de IDARON (2019); IBGE (2010).

O total da produção bovina em Rondônia foi de 14.355.955 (milhões) de


cabeças em 2019, uma proporção superior a 9 vezes a quantidade populacional
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 261

humana do estado. Pela análise é possível destacar que das oito microrregiões
do estado, cinco possuem o índice de concentração per capita de bovinos acima
do percentual populacional: 1º) São Francisco (18,27%), 2º) Jaru (14,15%), 3º)
Ariquemes (13,86%), 4º) Rolim de Moura (11,71%) e 5º) Vilhena (10,06%).
A regional de São Francisco é a menor região populacional de Rondônia, com
isso, a proporção de produção bovina acentua-se superior a quatro vezes em
relação a população local.

A indústria pecuária em Rondônia e a geração de empregos e salários


A trajetória do desenvolvimento econômico em Rondônia sempre esteve
pautada na legitimação da atividade pecuária, inclusive pela justificativa de
sua contribuição na balança comercial e na geração de empregos atribuídas
ao setor (LIMA, 2019). Contudo, de acordo com Grava (2013), no Brasil,
ainda que pese a relevância econômica da atividade pecuária para a balança
comercial, em termos socioeconômicos de geração de empregos não se pode
afirmar que o setor seja um grande empregador.
De acordo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS) correspondentes aos vínculos de empregos diretos (formais) gerados
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em 2018, tanto no Brasil como em Rondônia, dos oito setores apresentados


pela RAIS, o setor “agropecuária” é um dos que menos emprega, conforme
evidenciado na tabela a seguir:

Tabela 3 – Quantitativos de empregos por atividade


econômica (Brasil e Rondônia, 2018)
Atividades econômicas Brasil Rondônia
Empregos % Empregos %
Administração Pública 8.826.040 19,1 114.986 33,32
Comércio 9.264.904 20,1 82.733 23,97
Serviços 16.708.852 36,2 83.034 24,06
Indústria de transformação 7.148.013 15,5 35.929 10,41
Agropecuária, extração vegetal, caça e pesca87 1.476.219 4,3 13.551 3,93
Construção Civil 1.985.404 5,0 9.588 2,78
Serviços industriais de utilidade pública 429.435 0,9 4.016 1,16
Extrativa mineral 221.331 0,4 1.298 0,380
Total 46.060.198 100 345.135 100

Fonte: Dados do estudo (2020) a partir de RAIS/ME (2018).

Dos oito segmentos econômicos classificados pelas RAIS, o setor agro-


pecuária, extração vegetal, caça e pesca, correspondeu apenas a 4,3% dos

87 Esse setor compreende apenas as atividades relacionadas a criação animal, produção agrícola e
produção extrativa.
262

empregos diretos gerados no Brasil e a 3,93% em Rondônia. Contudo, os dados


referentes a este setor econômico, correspondem apenas aos vínculos de empre-
gos formais gerados pelas atividades relacionadas a criação animal e a produção
agrícola e extrativa. É importante destacar que existe uma proporção de empregos
ligados a este segmento que não são considerados formais, e desta forma, não
são registrados pelos vínculos de empregos do Ministério da Economia (ME).
Portanto, para uma análise mais detalhada da participação dos setores
ligados à indústria pecuária no total de vínculos de empregos gerados nas
microrregiões de Rondônia, foram sistematizados conforme a Classificação
Nacional de Atividade Econômicas (CNAE), os dois setores que abrangem
toda a atividade de criação, abate e transformação dos produtos derivados da
carne. São eles: a) Setor pecuária88, e b) Setor de abate e fabricação de pro-
dutos de carne89. A partir dos dados da RAIS/ME (2018), esses dois setores
juntos foram responsáveis pela geração de apenas 6,34% dos empregos totais
(diretos) em Rondônia, conforme demonstrado na tabela 4 a seguir.

Tabela 4 – Participação dos setores de criação e


abate nos vínculos de emprego (2018)

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Microrregiões90 Vínculos de emprego Total de Participação dos Média salarial
de Rondônia pelos setores empregos setores pecuária e paga pelos setores
pecuária e abate gerados abate nos vínculos pecuária e abate
totais de emprego
Alvorada D´Oeste91 1.342 7.631 17,59% 1.688,76
Ariquemes92 1.621 25.681 6,31% 1.524,90
Cacoal93 4.725 40.504 11,67% 1.617,73
Colorado D´Oeste94 988 7.268 13,59% 1.673,04
Guajará Mirim95 389 6.454 6,03% 1.417,99
Ji-Paraná96 5.447 51.521 10,57% 1.657,67
Porto Velho97 1.832 172.405 1,06% 1.615,83
continua...

88 Compreende a criação de bovinos, ovinos, caprinos, bufalinos para corte e leite, e a criação de equinos e suínos.
89 Compreende o abate em matadouros e frigoríficos. A produção de carne verde, congelada e frigorificada
de bovinos, ovinos, caprinos, bufalinos e equídeos, em carcaças ou em peças. A preparação de produtos
de carne e de conservas de carne e de subprodutos quando integrada ao abate. A obtenção e tratamento
de subprodutos do abate como: couros e peles sem curtir, lãs de matadouro, dentes, ossos, produção de
óleos e gorduras comestíveis de origem animal, produção de couros e peles.
90 Divisão de microrregiões em Rondônia feita pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS/ME).
91 Nova Brasilândia D’Oeste, São Miguel do Guaporé, Alvorada D’Oeste, Seringueiras;
92 Ariquemes, Machadinho D’Oeste, Rio Crespo, Alto Paraiso, Cacaulândia, Monte Negro, Vale do Anari;
93 Alta Floresta D’Oeste, Cacoal, Espigão D’Oeste, Rolim de Moura, Santa Luzia D’Oeste, Alto Alegre dos
Parecis, Novo Horizonte D’Oeste;
94 Cabixi, Cerejeiras, Colorado D’Oeste, Corumbiara, Pimenteiras D’Oeste;
95 Costa Marques, Guajará-mirim, São Francisco do Guaporé;
96 Jaru, Ji-Paraná, Ouro Preto D’Oeste, Presidente Médici, Governador Jorge Teixeira, Mirante da Serra, Nova
União, Teixeirópolis, Theobroma, Urupá, Vale do Paraiso;
97 Porto Velho, Nova Mamoré, Buritis, Campo Novo de Rondônia, Candeias do Jamari, Cujubim, Itapuã D’Oeste;
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 263

continuação
Microrregiões90 Vínculos de emprego Total de Participação dos Média salarial
de Rondônia pelos setores empregos setores pecuária e paga pelos setores
pecuária e abate gerados abate nos vínculos pecuária e abate
totais de emprego
Vilhena98 5.550 33.671 16,48% 1.774,73
Rondônia 21.894 345.135 6,34% 1.663,73
Brasil 1.003.390 46.631.115 2,15% 1.709,37

Fonte: Dados do Estudo (2020) a partir de RAIS/ME (2018).

Em Rondônia, no aspecto remuneração, em 2018, a média salarial, ofere-


cida aos trabalhadores desses dois setores (pecuária e abate) foi de R$ 1.663,73
(abaixo da média brasileira do setor, de R$ 1.709,37). Se elencados em um
ranking, os cinco setores que melhor remuneraram em 2018 no estado foram:
1º) Serviços industriais de utilidade pública: R$ 7.034,14, 2º) Administração
Pública: R$ 3.421,22, 3º) Serviços: R$ 2.226,11, 4º) Extrativismo mineral:
R$ 2.049,50, e 5º) Construção Civil: R$ 1.840,90 (RAIS/ME, 2018).
Contudo, ainda no que se refere a geração de empregos, algumas obser-
vações são necessárias: É evidente que existe uma proporção de empregos
ligados ao setor pecuária que são informais e que não constam na RAIS/ME.
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Estes não foram considerados, devido à imprecisão de sua mensuração.


Embora o objetivo desta análise esteja pautado no quantitativo de empre-
gos (diretos) vinculados às atividades de criação e abate de bovinos, também
é importante citar a proporção existente de empregos (indiretos) que estão
vinculados a outras atividades que são necessárias para a pecuária se desenvol-
ver, como a construção civil, o comércio de produtos agropecuários e imple-
mentos agrícolas, as indústrias lácteas etc. Como a RAIS é estruturada por
segmentos econômicos diferentes, não foi possível desagregar subcategorias
para um detalhamento da composição dos empregos ligados a esses setores.
Porém, mesmo com o fato de existir uma proporção de empregos indi-
retos ligados à setores próximos ao setor industrial pecuário, ainda assim se
justifica afirmar que se comparados os altos investimentos financeiros e de
infraestrutura que são necessários para o desenvolvimento da indústria pecuá-
ria em Rondônia, estes não impactam proporcionalmente da mesma forma,
na geração direta de empregos. E a renda gerada por esta atividade industrial,
está concentrada principalmente entre os proprietários do latifúndio e entre
os proprietários dos setores frigoríficos.

98 Pimenta Bueno, Vilhena, Chupinguaia, Parecis, Primavera de Rondônia, São Felipe D’Oeste.
264

A indústria do abate em Rondônia como região de


especismo intensivo

A problemática ambiental e a relação com a natureza têm provocado


estudos no campo da Ética ambiental99 a respeito dos processos de desenvol-
vimento que de certa forma envolvem relações com a Ética animal (FLORIT;
GRAVA, 2016). A necessidade da discussão sobre a categoria de especismo
animal, pode de alguma maneira contribuir na reflexão dos impactos existentes
entre a atividade empresarial da indústria da carne e os interesses de existência
dos seres sencientes não humanos100.
O termo “especismo” foi proposto pelo psicólogo britânico Richard
Ryder101 em 1970, e também está presente quando expressado no uso de
peças de vestuário com matérias-primas provenientes de animais, na realiza-
ção de operações ou estudos em animais vivos para o ensino ou observação
de determinados fenômenos, e no uso de animais em práticas “esportivas”
ou de “diversão”, a exemplo dos jardins zoológicos (BRÜGGER, 2009).
No entanto, a “categoria de especismo” é resultado de um longo processo
de construção social entre o homem, a natureza e os animais (FLORIT;
GRAVA, 2016). Especismo é uma discussão derivada da Ética Ambiental,

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que tem como um grande expoente teórico o filósofo contemporâneo Peter
Singer. O objetivo da reflexão sobre especismo, segundo Singer (2004) é
estabelecer consideração moral por parte das pessoas a todas as categorias
de seres não humanos que possuam a capacidade de responder aos diversos
estímulos físicos e emocionais, principalmente a capacidade de sentir dor e
sofrimento. Embora já existam leis e regulamentações que proíbam algumas
ações que perpetuam práticas especistas, para Brügger (2009), esses impedi-
mentos normativos não são suficientes para contribuir com a visão de parte
da sociedade que defende a ética e os direitos dos animais, a exemplo do fim
da exploração como alimento, como cobaias etc.
No contexto alimentar da indústria da carne, Singer (2004) afirma ser
evidente a necessidade de se pensar alternativas que no mínimo diminuam o
sofrimento dos animais. Por outro lado, a categoria de especismo e a reflexão

99 Campo de reflexão sobre os fundamentos éticos das nossas ações em relação à natureza e aos seres não
humanos. É a especialidade da ética que atende a questões como: justifica-se uma atividade que criará
empregos, mas provocará a extinção de espécies ou provoca a morte de animais? (FLORIT, 2016.)
100 A senciência, ou a capacidade para sentir, é o potencial de receber e reagir a um estímulo de forma cons-
ciente, experimentando-o a partir de dentro. Isto é, ter a capacidade de responder a sensação de emoção,
dores etc. Para vários autores, é uma característica definidora das categorias de seres com os quais teríamos
responsabilidade moral.
101 Richard Hood Jack Dudley Ryder, é um psicólogo britânico, que despertou a atenção ao se posicionar contra
os testes com animais. Após desenvolver estudos com pesquisa animal, se tornou um dos pioneiros no
movimento de libertação animal.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 265

sobre padrões morais e éticos podem auxiliar em um exame crítico desses


padrões de desenvolvimento (FLORIT; GRAVA, 2016). No que se refere à
indústria da carne em Rondônia, a discussão sobre o bem-estar animal pode
gerar consequências contraditórias entre os grandes centros consumidores de
carne (escala global) e as regiões de bovinocultura (escala regional). Para Flo-
rit e Grava (2016), a consequência dessa relação, além de causar uma ruptura
de grupos sociais vulneráveis, favorece ainda mais a condição para o estímulo
à exploração industrial de animais em determinadas regiões brasileiras. Este
fato que ocorre em diversas regiões do país, é denominado pelos autores de
Regiões de Especismo Intensivo (REI’S).
Nas regiões caracterizadas como REI’S, a legitimação da atividade eco-
nômica da indústria da carne, se fundamenta socialmente como uma “vocação
regional”, ou seja, quando há um predomínio de uma atividade econômica
em detrimento de outras, e desta forma, essa região pode ser considerada
importante apenas por possuir uma suposta “vocação” (SBARDELATI, 2015;
FLORIT; GRAVA, 2016).
A partir dessas “vocações”, seus agentes produtivos tendem a descon-
siderar outras possibilidades de atividade econômica no território. A ativi-
dade frigorífica existente nas REI’S se baseia no produtivismo industrial de
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“linhas de desmontagem animal”, que no caso dos bovinos, inicia após o abate
(GRAVA 2013; SILVEIRA, 1999).
Em termos proporcionais, em muitas regiões brasileiras, a quantidade de
bovinos abatidos pode ser equiparada ou superada à quantidade populacional
daquela região, fato que foi estudado e denominado por Florit e Grava (2016)
em um estudo realizado em Santa Catarina, de Índice de abate per capita.
Para os autores, o índice de abate per capita aponta a densidade de animais
abatidos em um território, e os compara em relação ao tamanho populacional
da mesma região. Esse índice se diferencia dos cálculos que expressam o peso
total das carcaças, o que não revela a quantidade dos abates. Assim, o índice
de abate per capita de um território pode ser considerado como um indicador
de especismo do padrão de desenvolvimento predominante naquele território.
A partir desta premissa, foi levantado em Rondônia e nos demais estados
da região Norte este indicador, com base nas informações do Sistema IBGE
de Recuperação Automática (SIDRA) no ano de 2019.

Tabela 5 – Abate de bovinos e bubalinos no Brasil,


na Região Norte e em Rondônia (2019)
Animais abatidos Total da % Populacional Abate
em 2019 população per capita
Brasil 32.436.451 190.755.799 100% 0,17
Região Norte 6.579.088 15.864.454 8,32% 0,41
continua...
266

continuação
Animais abatidos Total da % Populacional Abate
em 2019 população per capita
Acre 416.498 733.559 0,38% 0,57
Amapá -- 669.526 0,35% --
Amazonas 247.259 3.483.985 1,83% 0,07
Pará 2.407.912 7.581.051 3,97% 0,32
Roraima 82.553 450.479 0,24% 0,18
Rondônia 2.392.309 1.562.409 0,82% 1,53
Tocantins 1.032.557 1.383.445 0,73% 0,75

Fonte: Dados do estudo (2020) – SIDRA/IBGE (2019); IBGE (2010).

Observa-se que de todos os estados da região Norte, apenas Rondônia


apresenta um indicador de abate per capita mais expressivo. A análise da
relação desse indicador com o padrão de desenvolvimento predominante em
Rondônia envolve características da demografia do estado e do panorama
regional das REI’S no abate de bovinos e bubalinos. São eles:

1º) Representatividade populacional e de abate de bovinos:

A representatividade populacional na região Norte em relação ao total da

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população brasileira é de apenas 8,32% (IBGE, 2010). Contudo, em termos
de animais abatidos em 2019, a região Norte representou uma expressiva fatia
de 20% do total do abate brasileiro de bovinos. A população de Rondônia
representa 9,85% da população da região Norte, e apenas 0,82% da popu-
lação brasileira. Porém, quando se trata do abate de bovinos e bubalinos, a
proporção de Rondônia cresce para 36,36% em relação ao total de abates na
região Norte, e 7,38% em relação ao Brasil.

2º) Panorama regional de indicador de especismo:

O indicador de especismo evidencia as regiões brasileiras cuja “vocação”


regional está voltada na especialização de atividades que se apoiam na indús-
tria pecuária, e que são legitimadas ao ponto de serem consideradas como
padrão econômico predominante de desenvolvimento no território (FLORIT;
GRAVA, 2016). Dos sete estados da região Norte do Brasil, apenas Rondônia
possui um indicador de especismo que ultrapassa um ponto e meio percentual
associado ao abate per capita (1,53, tabela 05), isto é, a proporção de animais
abatidos em relação à quantidade populacional no estado excede em cem por
cento. É importante salientar, que o indicador de especismo é resultado do
estudo de Florit e Grava (2016), que inicialmente problematizou os padrões
de desenvolvimento econômico amparados na indústria e no abate de bovinos,
suínos e frangos em Santa Catarina. Diferentemente dos frangos e suínos, o
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 267

ciclo produtivo dos bovinos possui características diferentes. O período de


produção é menor, a quantidade produzida é maior e a criação exige grande
área territorial de pastagens (EMBRAPA, 2012). Em Rondônia, embora a
população seja proporcionalmente menor, se comparado à Santa Catarina,
ou aos maiores estados do norte brasileiro: Amazonas e Pará, a quantidade
de animais abatidos em Rondônia praticamente se equipara à quantidade de
abates do Pará, ao ponto do estado ser considerado o segundo na região Norte
com o maior número de abates em 2019 e o primeiro com maior índice per
capita de abates (1,53), o que segundo Florit e Grava (2016) representa uma
das principais características que caracteriza um território como uma região
de especismo intensivo (REI’S).

Considerações finais

O enfoque que a literatura faz sobre o neoextrativismo está voltado em


sua maioria no contexto da indústria da mineração e agrícola. Este artigo
contribuiu no sentido de ampliar a concepção do neoextrativismo também
para a atividade pecuária em Rondônia, principalmente nos últimos quarenta
anos a partir dos ciclos do agronegócio e das políticas de subsídios fiscais e
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concessão de terras que foram concedidas para incentivar a migração popu-


lacional para a Amazônia brasileira.
O agronegócio em Rondônia é financiado por grandes empresas do capital
globalizado, e as relações entre o campo e a cidade se tornaram subordinadas
aos interesses do mercado internacional. A indústria da carne apresenta carac-
terísticas similares ao modelo econômico neoextrativista, pois concentra altos
investimentos em infraestrutura (física e tecnológica), abarca as principais
políticas institucionais para seu fomento e desenvolvimento, e a riqueza eco-
nômica gerada pela atividade pecuária fica concentrada entre os proprietários
de terras e os setores agroindustriais como a JBS-Friboi e Marfrig Global
Foods. As externalidades ambientais negativas é outra característica das ati-
vidades que integram o modelo econômico neoextrativista. Em Rondônia, o
avanço da fronteira agrícola e pecuária também contribuiu com a degradação
ambiental, principalmente com o desmatamento para a formação de pastagens.
O rebanho bovino no Brasil, cresceu 26,51% em 18 anos (2000 a 2018). Na
região Norte o crescimento correspondeu a 102,05% no mesmo período. A
pecuária rondoniense em 2018, produziu 14.374.043 milhões de cabeças,
uma expansão de 153,76% do rebanho em duas décadas (2000-2018). Sua
produção em 2018 correspondeu a 29,02% do total da região Norte, e 6,69%
do total da produção pecuária nacional.
Em termos populacionais, a representação de Rondônia em relação à
população brasileira é de apenas 0,82% (IBGE, 2010). Porém, quando se trata
268

do quantitativo de bovinos abatidos no estado em 2019, a representação de


Rondônia cresce para 7,38% em relação ao total de abates no Brasil e 36,36%
em relação ao total de abates na região Norte.
A rotina de exploração da indústria pecuária em Rondônia nas últimas
décadas é o argumento utilizados pelos atores econômicos envolvidos para
legitimar uma suposta “vocação” regional do estado para o agronegócio. Em
termos socioeconômicos de emprego e renda, em 2018 os setores que com-
preendem às atividades de criação e abate de bovinos, responderam juntos
por apenas 6,34% do total de empregos (diretos) gerados. A média salarial,
oferecida aos trabalhadores desses dois setores foi de R$ 1.663,73 (abaixo da
média brasileira do setor, de R$ 1.709,37).
Desta forma, fica evidente que a maioria da renda gerada pela indústria
pecuária está concentrada principalmente entre os proprietários dos estabeleci-
mentos rurais e o capital industrial da carne, que se consolida de forma hege-
mônica a partir da concepção do agronegócio. Essas relações de poder político
e econômico manifestaram interesses pela apropriação do direito de exploração
dos recursos naturais por companhias multinacionais e pelo latifúndio, o que
historicamente produziu conflitos socioambientais graves em Rondônia.
Por fim, neste capítulo, o estudo do neoextrativismo fundamentou a

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importância da reflexão normativa em torno dos padrões de desenvolvimento,
que são muitas vezes decorrentes de fatores econômicos condicionados pelas
relações de poder, e desta forma se consolidam como padrão predominante
de desenvolvimento ao ponto de produzir grandes externalidades ambientais
negativas e alta concentração de renda. Complementam-se a isso, o fato que
os setores que integram a indústria da carne em Rondônia, que são predomi-
nantemente apoiados por políticas públicas e privadas, não são os setores que
mais empregam, nem tão pouco os que melhor remuneram adequadamente.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 269

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ECONOMIA CRIATIVA:
o artesanato indígena como resistência,
inserção social e economia da
mulher indígena Paiter Suruí
Suzenir Aguiar da Silva102
Leila Ruiz Ferreira (in memoriam)103
Nilza Duarte Aleixo de Oliveira104
Andreia Duarte Aleixo105

A economia tradicional é impulsionada pelo emprego de capital e força


de trabalho. Com o surgimento de novas tecnologias e de novas metodologias,
valorizou-se os recursos intelectuais e da troca de conhecimento e experiências,
em detrimento do serviço mecânico e o trabalho humano sucessivo e monótono.
Segundo as Nações Unidas (2010), é nesse contexto que surge então o
conceito de economia criativa, que utiliza ativos criativos que potencialmente
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geram crescimento e desenvolvimento econômico, que nada mais é do que


uma forma de criar um produto ou serviço, com um valor simbólico embutido,
servindo como uma ferramenta para o desenvolvimento econômico e social.
Abrange os bens e serviços que se valem da criatividade para gerar diferencial
e agregar valor, e, estabelece uma relação entre tecnologia, inovação, cultura,
criatividade e sustentabilidade.
O artesanato é um dos componentes da economia criativa que estimula a
expressão cultural e a participação dos cidadãos na vida política. Esse recurso
tem sido utilizado, não só como fonte de renda, mas como elemento capaz de
aumentar a qualidade de vida das pessoas.
Desde os primórdios das civilizações, as mulheres desempenham um
papel fundamental na sobrevivência dos núcleos familiares, causando um
empoderamento, feminino que pode ser definido, em termos bastante amplos,
como o processo de superação da desigualdade de gênero. Silva et al. (2017)
comenta que as mulheres indígenas da região norte do Brasil têm participado,
cada vez mais, de encontros, oficinas e conferências nacionais e internacionais
promovidos pelas organizações indígenas, instâncias estatais e não governa-
mentais, buscando maior inserção política e social, bem como a expansão de

102 Fundação Universidade Federal de Rondônia, campus prof. Francisco Gonçalves Quiles, Cacoal.
103 Fundação Universidade Federal de Rondônia, campus prof. Francisco Gonçalves Quiles, Cacoal.
104 Fundação Universidade Federal de Rondônia, campus prof. Francisco Gonçalves Quiles, Cacoal.
105 Fundação Universidade Federal de Rondônia, campus prof. Francisco Gonçalves Quiles, Cacoal.
276

empoderamentos. Estes novos espaços de discussão articulam mulheres de


diferentes etnias, o que propicia o fortalecimento de suas organizações e a
troca de experiências, assim como ocorre uma gradativa capacitação para seu
exercício na esfera política.
Dentre essas mulheres da região norte do Brasil pode-se citar as do Povo
Paiter Surui, em busca de um novo horizonte propiciado pelo conhecimento
adquirido por meio de capacitações e envolvimento no movimento indígena
feminino, porque sentem-se desafiadas a mudar suas vidas (SILVA et al., 2017),
seja por meio de maior participação econômica, política e/ou outras alternativas.
Diante desse propósito, este estudo teve como objetivo examinar, no
contexto da economia criativa, os papéis socioeconômicos, políticos e cul-
turais do artesanato para as mulheres indígenas que vivem na Terra Indígena
Sete de Setembro, identificando a participação da produção de artesanato na
economia doméstica e o que vem promovendo; verificando se a produção e
comercialização de artesanato tem promovido inserção social, econômica,
política e cultural e como isso ocorre (se for o caso), evidenciando a impor-
tância das capacitações recebidas pelas mulheres indígenas Surui.
Para tanto, foi feito uma pesquisa documental a partir dos resultados
obtidos no projeto de pesquisa executado por Silva e Ruiz (2018) sobre os

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“Resultados das capacitações recebidas a partir do projeto de Captação de
Carbono na Terra Indígena Sete de Setembro”.
Nos próximos itens pretende-se discutir sobre Economia Criativa e o
artesanato indígena como fonte de geração de renda, bem como a significância
disso para as mulheres Paiter Surui.

Economia Criativa – Conceitos e Aplicações

O conceito de Economia Criativa surgiu a partir da designação de indús-


trias criativas, iniciado em países industrializados nos anos 1990, para carac-
terizar os setores em que a criatividade é um elemento essencial do negócio
(MONTAG; MAERTZ; BAER, 2012), ou seja, veio como a ideia que estuda
as formas de comportamento humano resultantes da relação existente entre
as ilimitadas necessidades a satisfazer e os recursos que, embora escassos, se
prestam a usos alternativos.
Durante a maior parte da história da humanidade, o grande protagonista
foi o trabalho humano. Na era industrial, foi o capital. Na era da informação,
o protagonismo é da criatividade, do talento, da habilidade e da imaginação.
As pessoas possuidoras de ideias são mais poderosas do que as pessoas que
trabalham com as máquinas e, em muitos casos, mais poderosas do que as
pessoas que são donas das máquinas.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 277

Num momento em que o esgotamento dos recursos naturais e a poluição


do meio ambiente estão se tornando cada vez mais preocupantes, as indústrias
criativas têm a vantagem de criar valor a partir do nada, ao contrário de outros
setores da economia. A ampla e complexa herança cultural é que diferencia a
economia criativa de qualquer outro setor da economia. De fato, a atividade
cultural não esteve incluída como um componente da economia durante uma
boa parte da história humana (NEWBIGIN, 2010).
O conceito surgiu primeiramente na Inglaterra, em um relatório publicado
pela primeira-ministra Margareth Thatcher. O primeiro-ministro australiano
Paul Keating (1994) lançou o primeiro conjunto de políticas públicas de um
país com foco em cultura e arte. O documento chamado Creative Nation citava
o termo economia criativa. Logo depois, o primeiro-ministro britânico Tony
Blair incluiu o assunto em sua plataforma de governo, durante sua campanha
para o cargo de primeiro ministro em 1996 (CASTRO; FIGUEIREDO, 2016).
A economia criativa foca no potencial individual ou coletivo para produzir
bens e serviços criativos. Em particular, foca nas atividades baseadas no conhe-
cimento e que produzem bens tangíveis e intangíveis, intelectuais e artísticos,
com conteúdo criativo e valor econômico (CASTRO; FIGUEIREDO, 2016).
A economia criativa se assenta sobre a relação entre criatividade, o sim-
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bólico e a economia. O SEBRAE (2012) conceitua como um termo criado


para nomear modelos de negócio ou gestão que se originalizam em ativida-
des, produtos ou serviços desenvolvidos a partir de conhecimento, criativi-
dade ou capital intelectual de indivíduos com vistas à geração de trabalho
e renda, focando no potencial individual ou coletivo para produzir bens e
serviços criativos.
A economia criativa é o espaço de reencontro entre a lógica da necessi-
dade da economia e da liberdade típica da criatividade cultural. É um conceito
novo, mas que existe desde os primórdios. O desejo de criar coisas que vão
além da dimensão pragmática é tão antiga quanto a humanidade. Sempre
existiram e existirão pessoas com a imaginação e os talentos necessários
para consegui-lo, assim como pessoas que pagarão por ele. Esta é a base da
economia criativa (NEWBIGIN, 2010).
De acordo com a Organização das Nações Unidas para o Comércio
Internacional e o Desenvolvimento (UNCTAD), quatro são os setores de
atuação da economia criativa:

1. Herança ou patrimônio: expressões culturais tradicionais como arte-


sanato, festivais e celebrações, além dos sítios culturais (museus,
bibliotecas, exposições) e arqueológicos;
278

2. Artes visuais (pintura, escultura, fotografias e antiguidades) e per-


formáticas (música ao vivo, teatro, dança, ópera, circo, marionetes);
3. Mídia: reúne a produção de conteúdo criativo com o objetivo
de comunicação com o grande público, como o editorial (livros,
imprensa e outras publicações) e o audiovisual (cinema, televisão,
rádio e outras transmissões);
4. Criação funcional: grupo formado por atividades como design (de
interior, gráfico, moda, joias, brinquedos); a chamada nova mídia
(software, videogames e conteúdo criativo digitalizado); e os servi-
ços criativos, como arquitetura, publicidade, cultural e recreativo,
P&D, entre outros.

Segundo Firjan (2016), os 13 segmentos criativos do Brasil são divididos,


de acordo com suas afinidades setoriais, em quatro grandes áreas: Consumo
(design, arquitetura, moda e publicidade), Mídias (editorial e audiovisual),
Cultura (patrimônio e artes, música, artes cênicas e expressões culturais); e,
Tecnologia (P&D, biotecnologia e TIC).
Pelo que se observa, a economia criativa une capital intelectual, cultural
e criatividade para gerar negócios com valor econômico, e, estimula a geração

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de emprego e renda, além de produzir receitas ao passo que também diversifica
o desenvolvimento cultural e humano. Os recursos da economia criativa não
se esgotam, quanto mais se utiliza, mais de desenvolvem, se multiplicam e
se renovam. A melhor forma de aplicar a economia criativa é por meio da
gestão do conhecimento, seja para o desenvolvimento pessoal ou profissional
(CAPUCIO, 2017).

Economia criativa e artesanato

A economia criativa abrange ciclos de criação, produção e distribuição


de bens e serviços que usam criatividade, cultura e capital intelectual como
insumos primários. Segundo Firjan (2016), a cadeia da indústria criativa é
formada por três grandes categorias:

1. Indústria Criativa (núcleo) – é formada por atividades profissionais


e/ou econômica que utilizam as ideias como insumo principal para
geração de valor;
2. Atividades relacionadas – constituídas por profissionais e estabe-
lecimentos que provêm bens e serviços à indústria criativa. Repre-
sentadas, em grande parte, por indústrias e empresas de serviços,
fornecedores de materiais e demais elementos, considerados fun-
damentais para o funcionamento do núcleo criativo;
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 279

3. Apoio – constituídas por ofertantes de bens e serviços de forma


indireta, à indústria criativa.

De acordo com Soratto (2016) criativos criam. Pensam fora da caixa.


Buscam soluções para as questões que já existem e, mais importante, para
aquelas que sequer estão totalmente formuladas. A criatividade não é um dom
natural, todos tem um potencial criativo a ser desenvolvido e explorado. Não
é magia, não é truque e as pessoas não precisam ser excêntricas para criar.
Fica evidente a oportunidade gerada pela economia criativa, e o respeito às
raízes culturais de um país pode gerar negócios rentáveis.
Essa ampla e complexa herança cultural é o que diferencia a economia
criativa de qualquer outro setor da economia. Além do valor de troca (que
é o estágio final para que os bens e serviços encontrem o seu nível de preço
ótimo de mercado) e seu valor funcional (determinada pela maneira como se
usam no dia a dia), a maioria dos produtos e serviços das indústrias criativas
têm um “valor expressivo”: um significado cultural que pouco ou nada tem a
ver com os custos da sua produção ou utilidades (NEWBIGIN, 2010).
As ideias com valor expressivo geram novos pontos de vista, prazeres,
experiências; constroem conhecimentos, estimulam as emoções e enriquecem
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nossas vidas. A diversidade cultural do Brasil provém da colonização europeia,


população indígena e escravos africanos, que contribuíram com aspectos que
integram a cultura de um povo, tais como culinária, danças, festas populares,
artesanato e religião.
A ideia de economia criativa, além de ser uma alternativa de renda e dar
suporte a diversas famílias, agrega valor a produtos que não são fabricados
em massa por indústrias tradicionais e são, dessa forma, diferenciadas. Sendo
assim, o material gerado pela economia criativa ajuda a incrementar a diver-
sidade cultural de uma região (SORATTO, 2016).
Com muitas profissões tradicionais e setores sendo extintos pela tecno-
logia – assim como novos vão surgindo, a criatividade é perene. Ela sobre-
vive ao tempo e a qualquer mudança, pois é insubstituível, assim como os
valores humanos. Existem muitos grupos produtivos, sobretudo femininos,
que usam seus saberes como fonte de renda, tais como (RAIZES DESEN-
VOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, 2017):

1) Artesanato:

Projeto ArteCarste – promove geração de renda a partir do artesanato


identitário na região de Grutas, em Minas Gerais. Procura melhorar a quali-
dade das peças produzidas, inserindo-as no mercado turístico. Gera mais qua-
lidade de vida ao artesão, valorizando seu oficio e aumentando sua autoestima;
280

2) Gastronomia:

Projeto de geração de renda com mulheres do Morro d’Água em Catas


Altas – a ideia foi gerar renda vendendo os excedentes dos quintais e aquilo que
os residentes da região fazem de melhor. A essência do projeto era valorizar essa
produção orgânica e artesanal incrível que chega ao conhecimento dos turistas.
Preto Café – cafeteria onde nada tem preço. Tudo é gratuito – inclusive
a internet – e você paga pela experiência, mas quanto quer, se quiser.
Mapa da Cachaça – promove o reconhecimento da cachaça como ingre-
diente fundamental da gastronomia brasileira, apresenta a cachaça como iden-
tidade cultural do povo brasileiro, produz textos, vídeos, fotos, eventos, sites
que se constituam como fonte de informação histórica, social, cultural e téc-
nica sobre a cachaça, contribui para a valorização e divulgação da memória
brasileira falando de um produto de mais de 450 anos.
Laranja on-line – vende laranjas frescas pela internet. A laranja é mais
fresca do que as vendidas em supermercado, porque é colhida, ensacada no
pomar e levada para a casa do cliente em no máximo 3 dias.

3) Moda:

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Flores do Carmo Tecelagem Artesanal – promete invadir o mercado com
produtos amorosos feitos a mão, tendo como base o tear manual, mas também
utilizando as habilidades de costura, crochê e bordado.

4) Educação:

Perestroika – escola de atividades criativas. Extrapolar os limites do


ambiente escolar tem tudo a ver com a Perestroika, já que a experiência de apren-
dizado é tão importante para seus idealizadores quanto o conteúdo. Para eles,
a aula deve ter a cara de encontro entre amigos e por isso o aluno pode tomar
cerveja, sentar em pufes e inverter o papel com o professor enquanto aprende.
Profissionais criativos devem instigar e promover seu lado empreende-
dor, para que não fiquem reféns de uma sistemática antiquada, pouco ou nada
rentável. Mais que isso, a existência de profissionais, iniciativas e entidades
que promovam este link e a interlocução entre a parte criativa e a negocial, é
absolutamente fundamental, num universo tão plural e dinâmico como o das
indústrias criativas no campo cultural.
Nesse contexto, o artesanato, é um dos componentes da economia cria-
tiva, e traz também elementos da economia solidária que tem relação com o
conhecimento tradicional. Além de abrir oportunidades para empreendimentos
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 281

criativos e viabilizar a formalização de pequenos negócios, o artesanato esti-


mula a expressão cultural e a participação dos cidadãos na vida política.
Já o artesanato indígena assume uma face não apenas economicamente
produtiva, mas também política de inclusão e de resistência à opressão. É
considerado um patrimônio cultural vivo, ele promove a relação do indígena
com a natureza na coleta de matéria prima – o que passa por rituais de pedido
ou permissão por meio de oferendas, rezas e orações – a relação familiar
e grupal, estimulando o convício, o diálogo e a aprendizagem que integra
diferentes gêneros e gerações; e a relação com os, não indígenas, por meio
da comercialização que viabiliza o contato e o encontro da experiência de
diálogo intercultural (RIBEIRO, 2014).
Os objetos produzidos pelas culturas indígenas, apesar do evidente valor
estético, não são considerados “arte” pelos seus produtores, pois são de uso
cotidiano ou ritual, bem como para troca com povos vizinhos. Assim, entre esses
povos, destaca-se a importância da música, dança, arte plumária, cestaria, cerâ-
mica, tecelagem e pintura corporal. As tribos indígenas são caçadoras-coletoras
de tradição oral e, recentemente, estão se sedentarizando em reservas indígenas.
No caso da população indígena, a produção artesanal está se constituindo
como um meio importante de criação, de visibilidade social e de amplia-
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ção do alcance do apelo por direitos. Indígenas comercializam artesanato


pelas cidades muitas vezes sem qualquer apoio do poder público e em geral
são classificados como ambulantes formalizados (JESUS, 2017). Essa situa-
ção transforma o artesanato como sinônimo de resistência à marginalização
emposta aos indígenas.
Segundos Jesus (2017), o artesanato permite não apenas a geração de
renda no contexto de desenvolvimento da economia criativa, mas a promoção
de autoafirmação e resistências à marginalização dos indígenas em políticas
públicas e leis estaduais e federais e à sua invisibilidade em movimentos
sociais dos próprios artesãos.
Observa-se que a economia criativa não se limita, a reproduzir uma
concepção linear e evolutiva de desenvolvimento humano num contexto de
valorização do potencial individual e coletivo na produção de bens simbólicos
e intangíveis como forma de inclusão social e de reconhecimento da riqueza
das múltiplas expressões culturais, resistindo-se a tentativas homogeneizantes
de desmerecimento das culturas locais pela cultura de massa.
Heloísa Nunes dos Santos, em seu trabalho intitulado Mulheres Indíge-
nas Organiza-vos: Estudo comparativo sobre organizações de indígenas no
Paraguai, Brasil e Bolívia (1960-2008), coloca que as mulheres indígenas,
quando buscam organizarem seus próprios espaços, sejam eles independen-
tes, como organizações de mulheres indígenas ou ligadas a departamentos
dentro de organizações indígenas já existentes, essas mulheres estão carac-
terizando novos espaços de representação política. Iniciado o processo de
282

organização, tem-se além das próprias motivações das mulheres (busca por
igualdade, representatividade, melhores condições de vida), o apoio e incen-
tivo de instituições internacionais, com por exemplo acontece com algumas
organizações indígenas no Brasil.
Nesse contexto, a adesão das mulheres indígenas em organizações e
movimentos pode ser pensada como um rito de passagem do mundo privado
para o mundo público, colocando o sujeito frente a novas relações de poder
e, consequentemente, de tensão no interior da família, do local de trabalho,
nas relações de afeto e vizinhança.

O artesanato como fonte de geração de renda


O artesanato permite trazer soluções alternativas para problemas políti-
co-sociais das comunidades ao se mobilizarem seus talentos e recursos espe-
cíficos e autênticos, denunciando-se as relações de opressão as quais essas
comunidades são submetidas na sociedade capitalista e se permitindo gradual-
mente o debate crítico para a superação das desigualdades (JESUS, 2017).
Ao mesmo tempo em que gera renda, o artesanato pode funcionar como
meio de resistência (PEREIRA et al., 2012). A resistência torna-se viável a

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partir da expressão de subjetividade dos artesãos por meio do exercício da
criatividade, num movimento capaz de denunciar a trazer a reflexão sobre
condições objetivas de exclusão e marginalização, bem como de apontar
caminhos alternativos para a situação em que se colocam.
A produção artesanal, pelo caráter de transgressão à racionalidade tec-
nológica e à lógica da produtividade inerente à economia industrial, explicita
a relação entre o homem e o meio mediante a representação simbólica da
cultura e se constitui como registro de transmissão cultural, criticando o que
a própria sociedade traz de aprisionamento e explicitando a resistência ao
quem faz sofrer (SALGADO; FRANCISCATTI, 2011).
A introdução do artesanato como fonte de renda nos pequenos municípios
do Ceará, por exemplo, resultou em um impacto positivo, tanto na renda dos
moradores como no índice de qualidade de vida (FURTADO, 1984).
Em 1968, foi fundada a Manos del Uruguay, uma cooperativa sem fins
lucrativos que apoia os tecidos e produtos de artesãos rurais. Atualmente, a
empresa tem uma rede de dezessete cooperativas que empregam trezentas e
cinquenta trabalhadores qualificados, cujos produtos são vendidos em lojas
de moda nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.
O mundo está sempre em transformação social e cultural, e claro, as
comunidades indígenas, à exceção dos povos isolados, não estão imunes a
estas transformações. Só que estas transformações, além de novos desafios,
também vêm trazendo ventos de mudanças e expansão do papel da mulher
neste universo social e cultural. É cada vez mais comum esta participação nos
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 283

processos de tomada de decisão e representatividade do movimento indígena,


bem como de outros espaços ditos de “poder” que, até bem pouco tempo,
tinham a figura masculina como referência.
Nesse sentido há vários casos de sucessos em que o artesanato promove
a geração de emprego e renda, tais como: a) Movidas pela participação em
projetos realizados pelo SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural),
indígenas de Amambai, Mato Grosso do Sul, criaram a primeira cooperativa de
mulheres, com 15 cooperadas especializadas na fabricação de sabão artesanal;
b) Através do projeto “Com licença vou a luta”, as mulheres reconhecem suas
habilidades na gestão, criando uma visão empreendedora, para que elas possa
trazer renda às suas famílias através da venda de seus produtos com matéria
prima extraída da própria aldeia (MALDONADO, 2014).
A luta da classe feminina por uma igualdade de gênero se estende há
anos. As mulheres Paiter Surui, habitantes da Terra Indígena Sete de Setem-
bro, inserida nos estados de Rondônia e Mato Grosso, recentemente tomaram
conhecimento dessa luta e buscam o reconhecimento de suas capacidades
enquanto agentes sociais, e que podem sim contribuir com a luta diária de
seu povo. O empoderamento conquistado pelas mulheres indígenas mostra
o quanto suas lutas ao longo dessa trajetória não foram em vão, que o fato
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de ser membro de uma minoria, nos referindo aos povos indígenas, e ainda
mulher, onde as lutas de gênero estão presentes em praticamente todas as
organizações sociais, seus desafios se mostraram intensos.
Mindlin (1985), definiu o cotidiano das mulheres Suruí, em relação ao
artesanato, no início da década de 1980: “mesmo sem cozinhar as mulheres
Suruí estão sempre ocupadas. Talvez por isso só elas usem o “Akapê”, a esteira
pequena onde se sentam na casa, no metare ou no pátio; os homens se sentam
nas redes ou nos troncos. A qualquer hora do dia ou da noite fazem colares.
Estes podem ser só de contas de tucumã, de contas de dentes de macaco e
casco de tatu, de pelos de ouriço-cacheiro, de favas do mato.”

A economia criativa a partir das mulheres indígenas Paiter Surui

As mulheres Paiter Suruí vivem na Terra Indígena Sete de Setem-


bro, localizada nos estados de Rondônia e Mato Grosso, numa área total
de 247.870 hectares.
O contato entre o povo Paiter Suruí e a sociedade não indígena ocorreu no
ano de 1969 e, desde então, foram vítimas de grande queda em sua população,
sofrendo profundas alterações sociais devido à violência do contato com as
frentes extrativistas e colonizadores. Falam uma língua do tronco Tupi e família
Monde. Segundo os entrevistados, resistem energicamente às influências da
sociedade não índia, objetivando manter a vitalidade de suas tradições culturais.
284

Apesar de toda a pressão a que estão submetidos, todos são falantes da


língua indígena Paiter como primeira língua. Com muitas dificuldades, os mais
jovens e lideranças falam o português. Mantém uma memória remota, contada de
pai para filho, de um tempo em que teriam vindo dos lados de Cuiabá para Ron-
dônia, no século XIX, fugindo da perseguição de brancos (MINDLIN, 1985).
De acordo com a consultora entrevistada, as mulheres Paiter Suruí são
artesãs por excelência. Fiam seu próprio algodão, fazem redes, tipoias para
carregar crianças, cintos para homens e mulheres. Dominam a arte da cesta-
ria, produzindo cestos dos mais variados tamanhos e usos, além de esteiras
e abanos. Mas são especialistas na produção da cerâmica, desde as panelas
maiores para cozinhar para todos os membros da aldeia até as pequenas cuias,
utilizadas como pratos para servir as mais diversas iguarias.
Na maioria das famílias, o artesanato é feito pelas índias mais velhas, que
aprenderam com suas mães e avós. A partir da convivência com o entorno da
aldeia, às vezes pelo fato de estudar nas escolas das linhas ou até mesmo por
ter que estudar na cidade, houve uma falta de interesse das jovens Suruí em
aprender a confeccionar seus artefatos da cultura material.
Ao terem oportunidade de se reunirem e colocarem seus anseios para fora,
inúmeros foram os pedidos para que ocorresse uma revitalização do artesanato,

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um resgate da cultura de fabricação de peças únicas, que retratassem talentos
individuais e autênticos. Na pauta de geração de renda, o artesanato foi citado
como uma atividade possível de auferir renda e visibilidade para a artesã.
Na realização da pesquisa, um dos pontos visíveis foi a preocupação das
mães em ensinar a suas filhas o artesanato. Todas apresentaram satisfação
em passar adiante sua vontade de criar peças bonitas e elegantes, tanto para
o uso pessoal quanto para venda. As jovens, depois de participarem das ofi-
cinas, aprenderam a valorizar o trabalho feito por suas mãos, com materiais
disponíveis na natureza, aproveitando seu cunho criativo e as orientações
recebidas das mais velhas.
O início de todo esse processo deu-se com a elaboração do Diagnós-
tico Etno Ambiental Participativo e do Plano de Gestão de 50 anos da Terra
Indígena Sete de Setembro, que contempla em seus objetivos, a valorização
da cultura, a conservação, proteção e sustentabilidade da terra. As lideranças
indígenas buscavam apoio para ações que promovessem a valorização da
cultura, a conservação dos recursos naturais e a implementação de ativida-
des econômicas para o desenvolvimento sustentável no território, o que foi
contemplado no Projeto de Carbono Suruí.
As oficinas sobre artesanato fazem parte das prioridades definidas no III
Encontro das Mulheres Waleley Emasoemapine Same (Mulheres conquistando
espaço), realizado no período de 21 a 24 de novembro de 2013. As ativida-
des constam no projeto “Alavancando oportunidades para jovens e mulhe-
res indígenas na Amazônia Brasileira”, que teve como fonte apoiadora IKEA
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 285

FOUNDATION e responsabilidade institucional do Programa Iniciativa Comuni-


dades da Forest Trends, em parceria com a Associação Metareilá, cujo objetivo
era contribuir para o processo de empoderamento das Mulheres Paiter Surui.
Dentre os objetivos do projeto também está a instrumentalização dos
conhecimentos e apoio no desenvolvimento de ações cotidianas que promo-
vam melhorias na qualidade de vida familiar e coletiva. Além das oficinas
temáticas, houve a distribuição de kits de ferramentas para auxiliar na con-
fecção do artesanato e também a realização de intercambio sociocultural de
jovens artesãs Paiter Surui com mulheres Kaiapó da Cooperativa Cooba Y,
no município de Tucumã, no Pará, e mulheres Yawanawá, no Acre. Com a
implementação desse projeto, as artesãs foram contempladas com a Loja de
Arte Paiter, local onde podem deixar suas peças em consignação, que funciona
na sede da Associação Metareilá.

A Economia Criativa e os papéis socioeconômicos, políticos e


culturais do artesanato produzido pelas mulheres Paiter Surui
De acordo com as entrevistadas, dentre as peças mais produzidas e pro-
curadas, estão anéis, brincos, pulseiras e colares, dos mais variados materiais.
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Gostam de produzir peças com penas, mas agora é uma produção limitada,
em virtude de problemas na comercialização.
Muitas famílias não têm renda fixa; sobrevivem da venda de produtos da
roça e coleta de frutos. Para algumas mulheres (maioria das entrevistadas), a
renda obtida com o artesanato, apesar de não ser um valor expressivo, “con-
tribui bastante” para a compra de gêneros alimentícios, produtos de higiene
e beleza e vestuário, como as mulheres da aldeia Amaral. Algumas ajudam
os filhos na faculdade, como algumas da aldeia Lapetanha.
A pesquisa evidenciou que, antes da abertura da loja de arte Paiter, as
artesãs ofereciam seus produtos para os turistas e visitante que iam nas aldeias.
Algumas artesãs saem das aldeias para participar de feiras e eventos, mas não é
costume que elas assim o façam. Devido as ações do projeto, durante a pesquisa
foi possível encontrar mulheres que já viajaram ao exterior expondo suas peças,
visitando a Europa e a América. Com o funcionamento da loja, as mulheres dei-
xam as peças em consignação, recebendo o pagamento tão logo sejam vendidas.
A procura por artesanato nas aldeias, de acordo com a opinião das entre-
vistadas, é boa; algumas mulheres já têm uma clientela fiel, que as procura
em busca de peças únicas. Elas gostam desse comércio, pois por meio dele
conhecem e convivem com pessoas diferentes do seu meio, além da satisfação
de ver seus produtos sendo elogiados e levados para os mais diversos locais
do Brasil e do mundo.
Apesar do orgulho de fabricar peças autênticas, cujo valor reside nas pro-
priedades culturais e intelectuais, e que não podem ser reproduzidas em escala, as
286

mulheres indígenas não assumem nenhum papel de liderança dentro das aldeias.
Culturalmente, as mulheres Suruí não são iguais aos homens, não estão em
nenhuma chefia institucionalizada, não participam das decisões (MIDLIN, 1985).
Para a sociedade não indígena, a forma de organização dos Paiter Suruí
pode parecer machista. Mas ambos, homens e mulheres Paiter Suruí, têm
suas responsabilidades. As mulheres são empoderadas, na medida em que
são as grandes mantenedoras de suas tradições, são quem estão presentes no
dia a dia da aldeia, são quem estão na frente ensinando os filhos e garantido
a sobrevivência de toda essa cultura (JESUS, 2017). Dessa forma, agindo nos
bastidores, vão sendo interlocutoras entre a comunidade e as lideranças, sem
precisar exercer nenhum papel de destaque. Há aquelas que almejam mais,
aquelas que são mais politizadas. De acordo com as entrevistadas, os homens
estão aprendendo a respeitar suas vontades, apoiam nas decisões de viajar
para participar de capacitações e se sentem satisfeitos ao vê-las produzindo
e vendendo suas peças artesanais.
Com a efetiva execução do projeto, as mulheres indígenas participaram
de capacitações e receberam os kits de ferramentas para auxiliar na fabricação
de suas peças. Isso proporcionou um incremento na produção de suas peças,
com uma maior qualidade e com mais facilidade, proporcionada pelo uso de

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ferramentas adequadas, além de aprenderem com melhorar a qualidade das
peças para conseguir mais lucro.
Foi relatado que participaram também de intercâmbio com outras mulhe-
res indígenas artesãs, as mulheres do povo Kayapó e mulheres do povo Yawa-
nawá, onde trocaram experiências sobre modo de vida e cultura. Através
desse intercâmbio, verificou-se a que é possível desenvolver novos produtos
sem perder a característica tradicional, e que a organização rígida dos pro-
cedimentos é muito importante para o sucesso do negócio do artesanato.
Identificaram a importância do controle de qualidade das peças, é necessário
ser rígido no momento da compra das peças sob o risco da qualidade cair.
Sentiram a necessidade de um apoio maior por parte da loja de artesanato,
buscando novos parceiros para a compra da produção.
Com a consignação das peças na loja de arte Paiter, as mulheres encon-
traram uma forma mais fácil de expor e vender suas peças. De acordo com
representante da associação Metareilá, as responsáveis pela loja, mulheres Suruí
também, visitam as aldeias e examinam as peças, trazendo para a loja as que
apresentam qualidade padrão. Ali as peças ficam expostas, até serem vendidas e
o dinheiro é repassado para a artesã. A loja também mantém uma página na inter-
net para divulgação e venda. Com esse sistema, ficou mais fácil a administração
financeira das mulheres, pois sempre há um recurso a receber pela produção.
Esse sistema de vendas motivou as artesãs a produzir com mais fre-
quência e com uma qualidade superior, pois sabem que a venda é garantida.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 287

Vale ressaltar que, com o recebimento do kit de ferramentas, a produção foi


otimizada (PESQUISA, 2018).
Além disso, as mulheres se juntam mais para produzirem, trocam expe-
riências e dicas de fabricação. As mais velhas gostam de ensinar suas filhas
e netas a fazer peças delicadas e elaboradas, demonstrando seu orgulho em
ver suas peças sendo levadas para o Brasil e ao exterior.
No momento da pesquisa, foi relatado que a loja de artes está com difi-
culdades com seu capital de giro, em virtude da renovação do projeto que a
financia. Por causa disso, não está realizando a coleta do artesanato. Diante
dessa dificuldade, as mulheres estão vendendo seu artesanato por conta pró-
pria, o que acarreta uma diminuição acentuada na renda. Esta situação será
sanada ainda esse ano, com a chegada de novos recursos.
A partir da pesquisa realizada junto as mulheres, consultora do projeto e
representante da loja onde são comercializados o artesanato, mediante os obje-
tivos propostos, foi possível identificar as contribuições da Economia Criativa a
partir do artesanato produzido pelas mulheres indígenas Paiter Surui (Quadro 1).

Quadro 1 – Contribuições da Economia Criativa


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Objetivo Pretendido Resultado alcançado


Identificar a participação da produção do - Participação das mulheres na economia doméstica, proporcionando
artesanato na economia doméstica e o melhoras na alimentação, vestuário e produtos de higiene e beleza, além
que vem promovendo de proporcionar educação superior para seus filhos.
Verificar se a produção e comercialização - Maior visibilidade com o status de artesã;
do artesanato tem promovido inserção - Satisfação pessoal, ao participar de eventos locais, regionais e internacionais;
social, econômica, política e cultural e - Empoderamento feminino, ao participar da construção de política para
como isso ocorre (se for o caso) mulheres dentro da Terra Indígena Sete de Setembro
- Participação em intercâmbios culturais, conhecendo outras etnias e suas
formas de governança;
- Maior autonomia financeira;
- Convivência com outras pessoas fora do seu convívio habitual;
- Resgate de sua cultura, ao produzir e ensinar a fazer peças tradicionais;
- Orgulho de ver suas peças vendidas dentro e fora do país;
- Apesar de não exercer papel de liderança, participa ativamente da educação
dos filhos, contribuindo significativamente para a perpetuação dos costumes
e tradições ancestrais, ao repassar todo seu conhecimento.
Evidenciar a impor tância das - Produção de peças artesanais padronizadas e bem-acabadas, sem perder
capacitações recebidas pelas mulheres a essência única e inimitável;
indígenas Suruí - Trabalho otimizado, com a utilização do kit de ferramentas;
- Troca de experiências com outras etnias, aprendendo novas técnicas de
produção e comercialização;
- Capacitadas para melhor comercializar suas peças, auferindo mais renda;
- Garantia de um lugar para expor e comercializar o artesanato.

Fonte: Silva e Ruiz (2018).


288

Verificou-se que as mudanças ocorridas foram positivas, pois antes o


artesanato era considerado somente uma atividade de fabricação de peças
utilizadas no cotidiano da aldeia, agora, observa-se mulheres conscientes de
sua arte, do poder de transformação de suas mãos, do orgulho em ensinar sua
arte para filhas e netas, de ver suas peças levadas para até para o exterior. Além
disso, ainda proporciona a satisfação pessoal de contribuir com o sustento de
sua família, auxiliando até na formação superior de filhos e netos. Verificou-se
que as mulheres indígenas Paiter Suruí estão cada vez mais participando de
encontros e oficinas, interessadas em crescer.

Considerações finais

Esta pesquisa teve como objetivo examinar, no contexto da economia


criativa, os papéis socioeconômicos, político e culturais para as mulheres
indígenas que vivem na Terra Indígena Sete de Setembro.
Conforme abordado no referencial teórico, o artesanato, como parte da
economia criativa, se constitui como registro da transmissão cultural, permi-
tindo não apenas a geração de renda, mas promovendo também a autoafir-
mação e visibilidade dessas mulheres.

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O projeto “Alavancando oportunidades para jovens e mulheres indígenas
na Amazônia Brasileira” proporcionou a viabilidade da produção ao artesa-
nato, agregando valores conceituais da economia criativa, como a organiza-
ção da produção, a utilização de ferramentas adequadas e a gestão da loja
Paiter, da produção até a comercialização, garantido também um lugar para
exposição e venda.
Verificou-se que as mudanças ocorridas foram positivas, pois antes o arte-
sanato era considerado somente uma atividade de fabricação de peças utilizadas
no cotidiano da aldeia, sendo vendido somente quando alguém visitava a aldeia
e se interessava em comprar. Agora, observa-se mulheres conscientes de sua
arte, do poder de transformação de suas mãos, do orgulho em ensinar sua arte
para filhas e netas, de ver suas peças levadas para até para o exterior. Além
disso, ainda proporciona a satisfação pessoal de contribuir com o sustento de
sua família, auxiliando até na formação superior de filhos e netos.
Percebe-se que ainda há um longo caminho a percorrer. A loja de arte
passa por problemas com o capital de giro, ainda há problemas de gestão.
É administrada também por mulheres indígenas, que estão empenhadas em
obter sucesso. Como todo novo empreendimento, ainda está se adaptando,
com erros e acertos, mas com muita vontade de crescer e expandir. A locali-
zação da loja também vem sendo objeto de discussão, pois fica situada num
bairro afastado da cidade de Cacoal, o que dificulta a visita de turistas e da
população em geral.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 289

Verificou-se que as mulheres indígenas Paiter Suruí estão cada vez mais
participando de encontros e oficinas, interessadas em crescer. Há casos de
mulheres que viajaram para o exterior e levaram peças para vender. Algumas
preferem a forma tradicional de viver, quietas em suas casas, fazendo seu
artesanato e vendendo para visitantes. Outras, aproveitam a oportunidade de
sair, de vir na cidade, para divulgar seus produtos. Algumas utilizam a inter-
net e outras já têm uma clientela fiel, que as procura quando quer adquirir as
peças. Além de todos esses recursos, ainda podem contar com a consignação
da loja de artes, que logo estará funcionando normalmente.
A organização dessas mulheres, visando sua autonomia e visibilidade,
necessita de um apoio maior por parte do poder público, talvez com ações
dos Conselhos de Mulheres e de órgãos como o SEBRAE, através de outras
capacitações, estudos de mercado e orientações sobre a loja e comercialização.
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290

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DIREITO À AGRICULTURA
URBANA AGROECOLÓGICA
Maria Leticia Fagundes106
Polliana Schiavon107

O direito humano à alimentação adequada sob a perspectiva da


Segurança Alimentar e Nutricional

O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional sofreu algumas trans-


formações ao longo dos anos desde o surgimento do termo segurança alimentar
durante a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre os anos de 1914 e 1918.
Naquele período o termo estava restrito à expressão segurança nacional e à
capacidade de cada país em produzir seus próprios alimentos, sem depender
de questões políticas e militares (ABRANDH, 2013).
Após a Segunda Guerra Mundial, especialmente com a criação da Organi-
zação das Nações Unidas – ONU, em 1945, o conceito torna-se relevante nos
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recém criados organismos internacionais, nos quais já se observava uma tensão


política quanto ao tema, porquanto para a Organização das Nações Unidas
para Alimentação e Agricultura – FAO o acesso ao alimento já era tido como
um direito humano e por outro lado para o Fundo Monetário Internacional –
FMI, Banco Mundial, entre outros, a segurança alimentar seria garantida por
mecanismos de mercado (ABRANDH, 2013).
Nesse contexto, a segurança alimentar foi tratada estritamente como
a suficiência na produção e disponibilidade de alimentos, cujas iniciativas
correspondentes à assistência alimentar decorriam, de forma geral, dos exce-
dentes de produção dos países ricos. Para aumentar a produtividade de alguns
alimentos e reduzir a insegurança alimentar que atingia principalmente os
países em desenvolvimento, foi implementada experimentalmente na Índia,
a denominada Revolução Verde, cujo propósito era a utilização de sementes
de alto rendimento, fertilizantes, pesticidas, irrigação e mecanização, asso-
ciados ao uso de novas variedades genéticas, marcadamente dependentes de
insumos químicos. As consequências negativas ambientais, econômicas, e
sociais desse método foram observadas logo após, representadas pela redução
da biodiversidade, menor resistência a pragas, êxodo rural e contaminação
do solo e dos alimentos com agrotóxicos, sem, contudo, impactar na redução
da fome mundial como se pretendia.
106 Médica Ginecologista e Legista, Vereadora em Curitiba.
107 Nutricionista, Advogada e Assessora Parlamentar.
294

Notadamente, a fome que ainda persiste em inúmeras regiões do mundo


não se dá pela insuficiência na produção de alimentos, mas essencialmente
pela falta de acesso à terra para produção de alimentos ou pela incapacidade
de renda para adquiri-los, decorrentes da desigualdade e injustiça social.
Apenas no final da década de 1980 e início de 1990, as noções de acesso a
alimentos seguros, sem contaminação biológica ou química, e de qualidade
nutricional, biológica, sanitária e tecnológica, produzidos de forma sustentável,
equilibrada e culturalmente aceitável passaram a contemplar o conceito de
segurança alimentar, consolidado nas declarações da Conferência Internacio-
nal de Nutrição realizada em Roma, em 1992, pela FAO e pela Organização
Mundial da Saúde – OMS, passando a denominar-se de Segurança Alimentar
e Nutricional – SAN (ABRANDH, 2013).
Por sua vez, o movimento direcionado à reafirmação do Direito Humano
à Alimentação Adequada previsto na Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos de 1948 e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais – PIDESC de 1966, passou a se consolidar a partir do início da
década de 1990, tendo sido ratificada a indivisibilidade dos direitos huma-
nos na Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada em Viena,
em 1993. Ainda, a Cúpula Mundial da Alimentação, organizada pela FAO em

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Roma, em 1996, incorporou permanentemente o papel essencial do Direito
Humano à Alimentação Adequada para a promoção da Segurança Alimentar e
Nutricional, como uma importante estratégia para observar o Direito Humano
à Alimentação Adequada para todas e todos (ABRANDH, 2013).
A Cúpula determinou ainda, uma definição melhor dos direitos relativos
à alimentação previstos no Pacto, bem como solicitou ao Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos/
ONU, especial atenção às medidas específicas constantes do artigo 11 do men-
cionado documento para o monitoramento do Plano de Ação da Cúpula Mun-
dial de Alimentação, que culminou na edição do Comentário Geral número 12,
em 1999, o qual prevê que:

“O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher


e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e eco-
nômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para
sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto,
ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em
termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes
específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de
maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua
de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como
estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres,
naturais ou não” (ONU, 2021).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 295

De acordo com Norberto Bobbio (2004), os direitos humanos e as liber-


dades fundamentais nasceram da convicção partilhada universalmente, mani-
festada na Declaração Universal dos Direitos Humanos por meio da qual um
sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e reconhecido,
cuja validade é de consenso geral e contempla um movimento dialético que
se inicia na universalidade abstrata dos direitos naturais passando para a posi-
tivação desses direitos ao passo que tornam-se direitos positivos universais.
Leonardo Corrêa e Lucas Costa Oliveira, ao proporem uma visão crítica
de Direito Humano à Alimentação Adequada, afirmam que o DHAA deve
ser interpretado à luz da contextualização das lutas sociais reais, como por
exemplo, a luta pela erradicação da fome e da pobreza, o esforço pela sobe-
rania alimentar e a promoção de políticas públicas de saúde. Nessa ordem de
ideias, afirmam que:

“no lugar do homem como sujeito universal, uma visão crítica de DHAA
deve reconhecer a centralidade dos sujeitos coletivos como elementos fun-
damentais dentro dessa dinâmica conflituosa das demandas relacionadas
ao direito à alimentação. Daí a relevância de reconhecer a legitimidade –
discursiva e jurídica – da pluralidade das diferentes formas de produção,
circulação e produção de alimentos, ainda que externas à lógica neoliberal
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e mercadológica ainda vigente, tal como reivindicam a Via Campesina, o


Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, indígenas, quilombolas,
os extrativistas (seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, os castanheiros,
cipozeiros, piaçabeiros), ciganos, pescadores artesanais (caiçaras, maris-
queiras, pantaneiros), famílias ribeirinhas” (CORRÊA; OLIVEIRA, 2019).

No mesmo sentido, a rejeição ao universalismo favorece o reconheci-


mento das desigualdades de gênero, raça e classe relacionadas ao modo de
reprodução do sistema alimentar hegemônico e, portanto, a política de segu-
rança alimentar e nutricional, segundo uma visão crítica do Direito Humano
à Alimentação Adequada deve observar uma perspectiva multidimensional e
transversal da temática alimentar a partir do reconhecimento das demandas
feministas, do movimento negro, sindical, dos trabalhadores rurais e demais
minorais (CORRÊA; OLIVEIRA, 2019)
Na I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição ocorrida em 1986
foi proposto o conceito de SAN e consolidado na I Conferência Nacional de
Segurança Alimentar, em 1994, como sendo:

“a garantia, a todos, de condições de acesso a alimentos básicos de quali-


dade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o
acesso a outras necessidades básicas, com base em práticas alimentares que
possibilitem a saudável reprodução do organismo humano, contribuindo,
assim, para uma existência digna” (ABRANDT, 2013).
296

De todo modo, a expressão Segurança Alimentar e Nutricional passou


a ser mais divulgada no Brasil posteriormente à preparação da Cúpula Mun-
dial de Alimentação, de 1996 e com a constituição do Fórum Brasileiro de
Segurança Alimentar e Nutricional – FBSAN, em 1998 (ABRANDT, 2013).
O conceito ainda incorpora outras dimensões com o intuito de consi-
derar as inúmeras peculiaridades culturais de cada nação, manifestadas no
ato de se alimentar. Nesse sentido, os países enquanto Estados soberanos,
detêm soberania para garantir a Segurança Alimentar e Nutricional de seus
povos, incorporando a noção de soberania alimentar que contempla o direito
à preservação de práticas de produção e práticas alimentares tradicionais,
sedimentadas em bases sustentáveis nos aspectos ambiental, econômico e
social (ABRANDT, 2013).
Tais dimensões foram introduzidas pela II Conferência Nacional de SAN,
realizada em Olinda/PE, em março de 2004, passando o Brasil a adotar o
seguinte conceito de SAN, previsto no art. 3º, da Lei Orgânica de Segurança
Alimentar e Nutricional – LOSAN, Lei nº 11.346/2006, aprovada pelo Con-
gresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República em 15/09/2006:

“Art. 3º A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do

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direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade,
em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades
essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que
respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econô-
mica e socialmente sustentáveis” (ABRANDT, 2013, p. 13-14).

Ressalte-se ainda o importante avanço trazido pela LOSAN ao consi-


derar a promoção e a garantia do DHAA como objetivo e meta do Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, senão vejamos os
termos do art. 2º, a saber:

“Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano,


inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos
direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público
adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e
garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
§ 1º A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões
ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais.
§ 2º É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, infor-
mar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimen-
tação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade”.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 297

Notadamente, a LOSAN é uma conquista social, formulada com a parti-


cipação ativa do CONSEA108, cuja aprovação no âmbito do Poder Legislativo
foi unânime. A LOSAN é considerada uma legislação de vanguarda na área
da segurança alimentar e nutricional e tem inspirado alguns países. Além dos
avanços acima mencionados, a LOSAN instituiu mecanismos formais para o
diálogo entre sociedade civil e governo, com a possibilidade de participação
social na formulação, gestão, monitoramento e avaliação das políticas públi-
cas por meio da atuação do CONSEA. A adoção da LOSAN pelos Estados e
Municípios é um dos desafios perseguidos pelo CONSEA (BRASIL, 2017).
Em 2004 ainda, após dois anos de estudos, negociações e discussões com
representantes das partes interessadas e da sociedade civil, tendo sido inten-
sificadas as articulações com o Escritório do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos e com o Relator Especial da ONU sobre o
Direito à Alimentação, o Grupo de Trabalho Intergovernamental criado pela
FAO, elaborou as Diretrizes Voluntárias para apoiar os Estados Membros
a alcançar a realização progressiva do direito à alimentação adequada no
contexto da segurança alimentar nacional, adotadas pelo Conselho da FAO,
cujo objetivo é promover uma orientação prática para reforçar e aprimorar
os atuais sistemas de desenvolvimento, especialmente quanto aos aspectos
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sociais e humanos, enaltecendo a titularidade dos direitos das pessoas como


foco desse processo (FAO, 2015).
No contexto da Bioética, a qual tem expandido seu campo de ação e de
estudo, contemplando as temáticas relacionadas à qualidade de vida humana,
direitos humanos e cidadania, alocações de recursos humanos e materiais
escasso, preservação da biodiversidade, finitude dos recursos naturais, equi-
líbrio do ecossistema, alimentos transgênicos, racismo e outras formas de
discriminação, destaca-se a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos, publicada em 2005, que em seu artigo 14 dispõe sobre responsa-
bilidade social e saúde, considera entre outros, o acesso a nutrição adequada
e água de boa qualidade, assim como a melhoria das condições de vida e do
meio ambiente, como um dos meios de se efetivar o direito fundamental a
saúde (SALVADOR et al., 2018).
A Constituição Federal de 1988, por seu turno, por meio da Emenda
Constitucional nº 64/2010, passou a assegurar o Direito Humano à Alimen-
tação Adequada como um dos direitos sociais previstos no art. 6º da Carta
Magna, portanto também um direito fundamental (BRASIL, 2013).

108 O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA foi criado pela Lei nº 10.686 de
28 de maio de 2003 e foi regulamentado pela Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, conhecida como
Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN, que também criou o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e a governança para a gestão das políticas públicas.
298

Desse modo, todas as pessoas têm o direito a uma alimentação adequada


e saudável, sob os aspectos da saúde, do respeito à cultura alimentar, da sus-
tentabilidade econômica, social, ambiental, da disponibilidade permanente
aos alimentos de qualidade, sem prejudicar o exercício de outros direitos
próprios de uma vida digna, tais como a moradia, a educação, o emprego e o
lazer (GUERRA et al., 2019).
Portanto, sob a perspectiva da Segurança Alimentar e Nutricional bus-
ca-se efetivar o Direito Humano a Alimentação Adequada.

Políticas públicas e a agricultura urbana agroecológica

A adoção de políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição,


acesso, consumo de alimentos seguros e de qualidade, promoção da saúde e
da alimentação adequada e saudável em todos os níveis federativos é impres-
cindível para assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA.
O SISAN instituído pela LOSAN, é um sistema público que tem a finalidade
de coordenar de forma intersetorial as políticas públicas necessárias para a
garantia da Segurança Alimentar e Nutricional, cujo processo de implemen-
tação do SISAN deve se dar de maneira participativa e dialogada, em que a

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articulação com todos os setores relevantes da sociedade organizada e com
os órgãos públicos é fundamental 9ABRANDT, 2013).
Ressalte-se que o Decreto nº 7.272, de 25/08/2010, que regulamenta a
LOSAN, prevê que a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio-
nal – PNSAN tem como base, diretrizes que orientam a elaboração do Plano
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, dentre as quais destaca-se a
promoção do abastecimento e estruturação de sistemas sustentáveis e des-
centralizados, de base agroecológica, de produção, extração, processamento
e distribuição de alimentos109. Assim como institui como um dos objetivos
específicos da PNSAN, a promoção de sistemas sustentáveis de base agroe-
cológica, de produção e distribuição de alimentos que respeitem a biodiversi-
dade e fortaleçam a agricultura familiar, os povos indígenas e as comunidades
tradicionais e que assegurem o consumo e o acesso à alimentação adequada
e saudável, respeitada a diversidade da cultura alimentar nacional110. Nota-
damente, a agroecologia, segundo mencionado decreto deve ser estimulada

109 Art. 3o A PNSAN tem como base as seguintes diretrizes, que orientarão a elaboração do Plano Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional: [...] II – promoção do abastecimento e estruturação de sistemas sustentáveis
e descentralizados, de base agroecológica, de produção, extração, processamento e distribuição de alimentos.
110 Art. 4o Constituem objetivos específicos da PNSAN: [...] III – promover sistemas sustentáveis de base
agroecológica, de produção e distribuição de alimentos que respeitem a biodiversidade e fortaleçam a
agricultura familiar, os povos indígenas e as comunidades tradicionais e que assegurem o consumo e o
acesso à alimentação adequada e saudável, respeitada a diversidade da cultura alimentar nacional.
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 299

nos sistemas de produção e abastecimento de alimentos para a promoção da


segurança alimentar e nutricional.
A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, instituída pelo
Decreto nº 7.794, de 20/08/2012, por sua vez, tem como objetivo integrar,
articular e adequar políticas, programa e ações indutoras da transição agroe-
cológica e da produção orgânica e de base agroecológica, a ser implementada
pela União em cooperação com Estados, Distrito Federal e Municípios, assim
como organizações da sociedade civil e outras instituições privadas, com
vistas a contribuir para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida
da população, por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta
e consumo de alimentos saudáveis.
O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PLANSAN –
2016-2019, estruturado a partir de nove grandes desafios a serem enfrentados
no referido período, em seu desafio 6.4 prevê a promoção do abastecimento
e do acesso regular e permanente da população brasileira à alimentação ade-
quada e saudável, contemplando como uma de suas metas a 4.28, com previsão
no Plano Plurianual – PPA 2016-2019, conforme imagem abaixo:
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Fonte: Brasil (2017). Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Câmara


Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (2017), p. 43.

Registre-se que o Plano Plurianual – PPA 2016-2019 tinha forte relação


com o II PLANSAN, no qual uma das 28 Diretrizes Estratégicas do PPA
menciona o DHAA, que além do Programa Temático de SAN também con-
templava outros cinquentas e três Programas Temáticos, nos quais quinze
deles continham metas e iniciativas afetas à SAN (BRASIL, 2017).
De acordo com as orientações elaboradas pelo Sistema ONU Brasil no
sentido de ampliar a conscientização a respeito da Agenda 2030 para o Desen-
volvimento Sustentável, para alcançar o objetivo 2 que prevê acabar com a
300

fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a


agricultura sustentável, sugere como uma das oito estratégias adotar medidas
para fomentar a agricultura familiar e a agroecologia, bem como ampliar a
aquisição de insumos de pequenos produtores locais para a alimentação esco-
lar, incentivando a diversificação de suas produções em função da garantia
de um mercado consumidor (ONU, 2018).
No meio urbano, manifestamente os grupos de pessoas mais vulneráveis
à Insegurança Alimentar e Nutricional – IAN e à violação dos direitos funda-
mentais como a saúde, a educação, o trabalho e a moradia são compostos por
imigrantes, refugiados, idosos, mulheres e crianças. A violação dos menciona-
dos direitos atinge diretamente o DHAA. Nesse sentido, é necessária a adoção
de estratégias que contemplem o diagnóstico da população em situação de
IAN, o monitoramento e avaliação das políticas públicas e ações existentes e
as necessárias a serem implementadas, a formação de atores para atuar como
multiplicadores do DHAA e a articulação de ações para o acompanhamento
dos orçamentos públicos investidos na efetivação desse direito, associadas
às atividades intersetoriais conjuntas com segmentos da saúde, saneamento,
agricultura e abastecimento, educação, meio ambiente, habitação, comuni-
cação e trabalho, que visem a promoção da saúde (GUERRA et al., 2019).

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Da análise realizada por GUERRA et al. (2019), os estudos sugerem que
as estratégias de ação para a efetivação do DHAA são:

Políticas, programas e ações em diferentes cenários (domicílios, servi-


ços de saúde e escolas), com diferentes atores (gestores, profissionais de
saúde, professores, cuidadores, pais, movimentos sociais e associações
comunitárias) e a necessidade do envolvimento de outros setores como
educação e agricultura, ou seja, ações intersetoriais (p. 3391).

Entretanto, na contramão dos avanços até então conquistados, uma nova


ordem iniciada em 2016 e intensificada a partir das eleições presidenciais
de 2018 culminaram no desmonte e no enfraquecimento de políticas públicas
de garantia de direitos, de proteção a grupos populacionais em situação de
vulnerabilidade, de fortalecimento de sistemas alimentares sustentáveis e de
ambientes alimentares saudáveis (CASTRO, 2019). Destaca-se nesse aspecto,
a edição da Medida Provisória nº 870, de 2019, convertida na Lei nº 13.844,
de 18/06/2019, que extinguiu definitivamente o Conselho Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional.
Diante disso, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar
e Nutricional durante a “Oficina de Mobilização em Defesa da Soberania
e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN)”, realizada entre os dias 01
e 03/07/2019, no Rio de Janeiro/RJ, decidiu convocar a Conferência Nacional,
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 301

Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Ali-


mentar e Nutricional, que era uma das atribuições do CONSEA, a qual seria
realizada no primeiro semestre de 2020 e foi adiada em razão da pandemia
de COVID-19 (FÓRUM BRASILEIRO DE SOBERANIA E SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2019).
Dentre as ações realizadas pelo movimento, destaca-se a ampla mobili-
zação por meio do “Banquetaço” contra o fim do CONSEA e em defesa de
“Comida de Verdade”, da produção agroecológica e da alimentação adequada
e saudável, que ocorreu em 28/02/2019, simultaneamente em mais de quarenta
cidades brasileiras, com a distribuição de vinte mil refeições e fortalecimento
de fóruns e coletivos, cujas lemas: “Sem democracia não há Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional” e “Comida de Verdade, no Campo e na
Cidade”, assim como o compromisso com o combate à fome e à miséria e a
defesa da LOSAN e do SISAN, foram reforçados (FÓRUM BRASILEIRO
DE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2019).
Nesse cenário, indicadores sociais e de saúde já apontam a deterioração
das condições de vida e aumento da pobreza, evidenciando a relevância de se
manter e fortalecer políticas públicas voltadas à garantia do DHAA e da segu-
rança alimentar e nutricional e à redução das desigualdades (CASTRO, 2019).
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Com a pandemia de COVID-19, esse desafio se torna mais evidente não


apenas no Brasil, mas no mundo todo. É público e notório que a crise econômica
e social associada à emergência sanitária exacerba as desigualdades sociais e
atinge diretamente a segurança alimentar e nutricional. Desse modo, organismos
e entidades internacionais identificaram a necessidade de desenvolver ações em
três eixos centrais, a saber: (i) continuar com o fornecimento de alimentos para a
população, incluindo a adoção de medidas para facilitar o escoamento de alimentos
produzidos pelos pequenos produtores; (ii) apoiar os mais vulneráveis, assegu-
rando acesso a formas de produção e a alimentos adequados e saudáveis; (iii)
investir em sistemas alimentares sustentáveis e resilientes (GURGEL et al., 2020).
São inúmeros os fatores que agravaram os nefastos efeitos da pandemia
no Brasil, relacionados diretamente às causas estruturais de fome e desnu-
trição, como grilagem de terras, uso de agrotóxicos, promoção de alimentos
ultraprocessados e industrializados, privatização e financeirização do seg-
mento da saúde e aprofundamento das desigualdades. O momento em que o
país vive marcado pela estagnação econômica e paralisação dos programas
de SAN só aumenta a população em situação de vulnerabilidade social e
exige do governo a adoção de medidas urgentes para a proteção dessa parte
da população (GURGEL et al., 2020).
No contexto pandêmico, foram adotadas novas ações para a promoção
da Segurança Alimentar e Nutricional, a saber: Renda Básica Emergencial
(Governo Federal); Programas de Aquisição de Alimentos (PAA) estaduais
302

e a doação emergencial de alimentos (estados e municípios). Assim como


a adequação das estratégias já implementadas no país, como por exemplo,
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA) nacional, Programa Bolsa Família (PBF), Benefício
de Prestação Continuada (BPC) e a distribuição de alimentos por meio dos
equipamentos públicos de SAN (GURGEL et al., 2020).
O Programa de Aquisição de Alimentos, por sua vez, executado por
meio de compras governamentais de alimentos é uma importante estratégia
de promoção da SAN, porque

fortalece circuitos locais e regionais e redes de comercialização; valoriza a


biodiversidade e a produção orgânica e agroecológica de alimentos; incentiva
hábitos alimentares saudáveis e estimula o cooperativismo e o associativismo.
Sua vinculação a iniciativas como o PNAE minimiza a crise gerada pela
pandemia, garantindo alimentos in natura à população vulnerabilizada. Essas
estratégias asseguram a distribuição da produção da agricultura familiar, dado
que o acesso aos mercados foi profundamente afetado pela pandemia. Medi-
das similares foram recomendadas internacionalmente, e envolvem logística
para estabilizar a oferta de produtos da agricultura familiar, assegurando

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transporte e comercialização dos alimentos e minimizando a exposição ao
vírus. [sem grifos no original] (GURGEL et al., 2020).

Destaca-se nesse sentido, a importância da agricultura urbana agroeco-


lógica como política pública para a promoção da SAN e consequentemente
da saúde, tendo em vista que contribui para que as pessoas se reconheçam
como parte do meio ambiente, resgatando o sentimento de pertencimento ao
meio social ao qual integra, com o estímulo do protagonismo social, da parti-
cipação cidadã, da aquisição de habilidades pessoais e coletivas, viabilizando
ambientes favoráveis à saúde que transcendem as transformações individuais
e reverberam em toda a coletividade (RIBEIRO et al., 2015).
No município de Curitiba, em 2000, a então Secretaria Municipal de
Abastecimento, criada em 1986, por meio da Lei Municipal nº 6.817/1986,
passou por uma reestruturação contemplando três departamentos, a saber:
Abastecimento Social; Unidades de Abastecimento; e Educação Alimentar e
Nutricional. Este último responsável em desenvolver ações educativas voltadas
para a promoção de alimentação saudável; administração dos Restaurantes
Populares; das ações de agricultura urbana – Lavoura e Nosso Quintal; e o
programa Câmbio Verde (CARVALHO, 2017).
Por sua vez, o Decreto Municipal nº 1371/2015, ampliou as ações da
Secretaria Municipal do Abastecimento, incluindo dentre outras, a promoção de
ações de agricultura urbana e de promoção de práticas e hábitos alimentares sau-
dáveis, consumo consciente e proteção do meio ambiente (CARVALHO, 2017).
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 303

Em 2016, o município de Curitiba, tendo feito adesão ao Sistema de


Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN em 2015, aprova o seu pri-
meiro Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – 2016-2019
– PLAMSAN, elaborado pela Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar
e Nutricional – CAISAN – Curitiba, por meio do Decreto nº 1.361/2016. De
acordo com o documento, que tem como um dos eixos, a agricultura urbana,
que contempla as diretrizes 1, 2 e 3, destaca-se a diretriz 2 que prevê a pro-
moção do abastecimento e da estruturação de sistemas descentralizados, de
base agroecológica e sustentáveis de produção, extração, processamento e
distribuição de alimentos.
O I PLANSAN ressalta ainda que:

[...] a necessidade de manutenção e ampliação da participação de Curitiba


enquanto referência internacional na construção de um sistema agroalimen-
tar promotor de SAN e de desenvolvimento sustentável, considerando-se
conjuntamente aspectos econômicos, sociais e ambientais, em especial
frente ao compromisso assumido após a adesão ao Pacto de Milão e ao
protagonismo do município diante do C40 6 – Food Systems Network,
desde seu surgimento.
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Há que se pensar também na participação do sistema agroalimentar como


parte da solução para redução da geração e correta destinação de resíduos
sólidos orgânicos do município, em especial através da parceria estabe-
lecida entre meio acadêmico, o executivo municipal e o governo sueco,
pelo Termo de Entendimento (Memorandum of Understanding – MOU)
Curitiba-Suécia nº 21.158 de 12 de novembro de 2013, buscando a inserção
oportuna de entes privados, para o desenvolvimento do sistema alimentar
na cidade, sob a ótica da SAN e, particularmente, do ciclo de vida do
alimento (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 2016).

O II PLANSAN de Curitiba – 2020-2023 elaborado pela CAISAN, afirma


que o Poder Público Municipal, por meio da Secretaria Municipal de Segu-
rança Alimentar e Nutricional, antiga Secretaria Municipal do Abastecimento,
cuja alteração da nomenclatura se deu por força da Lei nº 15.461/2019, são
desenvolvidas ações de agricultura urbana, mediante três programas, a saber:

Hortas Comunitárias Urbanas, totalizando 38 unidades, caracterizam-se


pelo apoio ao cultivo em vazios urbanos na cidade de Curitiba, realizado
por cidadãos organizados por meio de Associação de Moradores ou Enti-
dade Social. Hortas Escolares, perfazem o total de 37 e caracterizam-
-se pelo apoio ao cultivo e ações de educação ambiental e alimentar em
pequenos espaços e terrenos localizados nas escolas regulares, integrais,
especiais ou centros de educação infantil no município de Curitiba, e As
Hortas Institucionais, que correspondem a 26 unidades, caracterizam-se
304

pelo apoio ao cultivo em espaços institucionais, tais como CRAS, CREAS,


Unidades de Saúde, ONG’s, realizado por funcionários e usuários destes,
com objetivos ocupacionais, terapêuticos ou de caráter social (PREFEI-
TURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 2019).

A Lei Municipal nº 15.300/2018, por seu turno, assegura no município


de Curitiba, o direito à utilização de espaços públicos e privados, por pessoas
físicas e jurídicas, para o desenvolvimento de atividades de agricultura urbana
como práticas relacionadas aos processos de segurança e soberania alimentar,
à manutenção e incremento da qualidade de vida, bem como à democratiza-
ção de práticas e espaços, servindo tanto para o abastecimento do Município
quanto à educação da população. Assim como prevê que as hortas urbanas
entre outros, compreendidas pelo cultivo de plantas comestíveis sem o uso
de agrotóxicos fazem parte do ecossistema da agricultura urbana.
Segundo a organização de direitos humanos Terra de Direitos, surgida
em Curitiba, que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos,
especialmente os econômicos, sociais, cultura e ambientais (Dhesca), a:

Agroecologia é, portanto, resistência na produção de alimentos saudáveis

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construída por comunidades rurais e, cada vez mais crescente nas comunida-
des urbanas. Na cidade está presente [...] nas hortas comunitárias, nos quin-
tais produtivos semeados predominantemente por mulheres, nas ocupações,
acampamentos e assentamentos urbanos, nas periferias e favelas, nas escolas,
nos terrenos baldios e desocupados, nos canteiros e jardins das calçadas. São
espaços que além do consumo, trazem a produção de alimentos e da biodi-
versidade, a democratização da cidade e a organização popular, especialmente
das associações de bairro, que veem na horta comunitária a criação de laços
de solidariedade a partir do trabalho coletivo (TERRA DE DIREITOS, 2021).

O Plano Plurianual do Município de Curitiba – 2018-2021, em síntese,


estabelece no âmbito da segurança alimentar e nutricional o aprimoramento da
estrutura e ações de agricultura urbana de forma articulada intersetorialmente e
ainda, o desenvolvimento de estratégias visando promover a cadeia regional de
produção, distribuição e consumo de alimentos, cujo Programa Viva Curitiba
Cidadã, determina a criação e a implementação de um Centro de Referência de
Agricultura Urbana, além da promoção da produção agroalimentar regional,
efetivamente concretizado com a construção da Fazenda Urbana.
De acordo com o portal da Prefeitura Municipal de Curitiba:

Espaço dedicado à educação para prática agrícola sustentável nas cidades,


a Fazenda Urbana de Curitiba é mantida pela Prefeitura e aberta a visitas
guiadas, organizadas pelo Departamento de Estratégias de Segurança
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 305

Alimentar e Nutricional, duas vezes por semana. Está localizada ao lado


do Mercado Regional do bairro Cajuru.
Nas visitas guiadas por engenheiro agrônomo, com duração de duas horas,
os participantes recebem informações sobre plantio e colheita de dezenas de
variedades agrícolas orgânicas cultivadas em hortas, com a produção de fru-
tas, legumes e verduras, além de ervas, temperos, chás, e as chamadas PANCs
– plantas alimentícias não convencionais. E conhecem outras instalações
que formam as etapas do ciclo alimentar: estufas e central de compostagem.
Também fazem parte da programação: oficina sobre o aproveitamento integral
dos alimentos e, ainda na cozinha-escola, o contato com programas do Muni-
cípio, que atendem pessoas em vulnerabilidade e risco social, com acesso a
produtos saudáveis (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 2021).

A fim de reforçar o fomento e as ações sobre agroecologia e instituir


como uma política pública de Estado e não de Governo, com o intuito de
conferir segurança jurídica ao programa, tramita na Câmara Municipal de
Curitiba, projeto de lei nº 031.00031.2020, que “Institui no Município de
Curitiba a Ação Municipal Educativa sobre Agroecologia e dá outras pro-
vidências”, direcionada para a redução do consumo de agrotóxicos e para o
estímulo à produção e ao comércio de alimentos orgânicos e agroecológicos,
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de autoria da vereadora Maria Leticia (PV).


No âmbito federal tramita no Senado, o Projeto de Lei 182/2017, que cria
a Política Nacional de Agricultura Urbana, cuja proposta estabelece ações que
devem ser empreendidas pelo governo federal, em articulação com estados
e municípios. Segundo a proposta, a agricultura urbana deverá estar prevista
nos institutos jurídicos, tributários e financeiros contidos no planejamento
municipal, especialmente nos planos diretores ou nas diretrizes gerais de uso
e ocupação do solo urbano, com o objetivo de abranger aspectos de interesse
local e garantir as funções sociais da propriedade e da cidade, muito embora
não mencione a obrigatoriedade de utilização das bases agroecológicas como
premissa para sua implementação (BRASIL, 2017).
Notadamente, embora observem-se inúmeros avanços na implementação
de políticas e programas públicos voltados à agricultura urbana agroecológica,
ainda há um longo caminho a ser percorrido. Considerando que a cidade de
Curitiba possui ao todo 75 bairros, o número de equipamentos urbanos (INS-
TITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO, 2021), que com-
preendem os programas de agricultura urbana do município ainda está aquém
do ideal para atender as diretrizes previstas no I PLANSAN, especificamente a
diretriz 2 que dispõe sobre a promoção do abastecimento e da estruturação de
sistemas descentralizados, de base agroecológica e sustentáveis de produção,
extração, processamento e distribuição de alimentos.
306

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ÍNDICE REMISSIVO
A
África 21, 109, 127, 132, 134, 135, 176, 197
Agenda global de políticas públicas 227, 229
Agricultura 9, 12, 15, 56, 57, 60, 63, 65, 67, 78, 109, 121, 135, 172, 173,
175, 178, 217, 229, 237, 238, 239, 240, 245, 248, 250, 251, 293, 298, 300,
302, 303, 304, 305, 306, 308
Agroindústrias 8, 12, 237, 238, 240, 241, 242, 243, 245, 246, 247, 248, 249
Agronegócio 58, 217, 237, 238, 240, 253, 256, 267, 268, 269, 270
Água 7, 12, 20, 23, 50, 51, 53, 56, 57, 65, 67, 70, 71, 74, 101, 107, 108, 109,
110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 123, 125, 127,
139, 140, 146, 159, 182, 191, 198, 229, 247, 249, 280, 297
Alimentação 25, 57, 59, 60, 64, 67, 68, 74, 101, 112, 116, 128, 136, 137,
139, 146, 150, 161, 245, 287, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301,
302, 306, 307, 308
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Alocação de recursos 88, 90, 92, 93, 94, 97, 98, 100, 102
Ambiente 3, 4, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 31, 50, 51,
52, 54, 55, 58, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 73, 74, 76, 77, 78, 101, 108, 113,
118, 119, 120, 123, 128, 137, 145, 155, 157, 159, 171, 175, 178, 179, 181,
183, 184, 185, 186, 187, 189, 190, 191, 192, 194, 195, 197, 198, 199, 200,
208, 215, 216, 217, 224, 227, 229, 230, 231, 232, 234, 241, 244, 247, 255,
270, 277, 280, 291, 297, 300, 302, 303
Animais 11, 15, 18, 19, 20, 26, 29, 31, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
66, 67, 72, 74, 75, 89, 135, 136, 137, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146,
147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 156, 157, 158, 159, 173, 190, 197,
199, 221, 247, 259, 260, 264, 265, 266, 267, 269, 271

B
Bioética 3, 4, 7, 8, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 27, 29, 30, 31,
33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 46, 47, 49, 51, 52, 63, 78, 87, 88, 89,
90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 102, 103, 107, 115, 116, 118, 119,
120, 128, 135, 137, 149, 150, 151, 153, 171, 179, 180, 181, 182, 184, 186,
187, 188, 204, 205, 207, 208, 209, 215, 216, 217, 218, 219, 221, 222, 223,
224, 225, 297, 308
Bioética ambiental 4, 7, 8, 11, 12, 15, 21, 22, 23, 27, 29, 30, 31, 40, 51, 118,
135, 137, 149, 150, 151, 182, 184, 186, 204
310

Brasil 3, 7, 19, 20, 21, 31, 46, 54, 55, 57, 59, 60, 65, 73, 87, 88, 89, 90, 91,
92, 93, 95, 96, 97, 98, 100, 103, 118, 131, 136, 139, 140, 142, 143, 145, 150,
152, 153, 154, 157, 159, 171, 174, 209, 211, 215, 216, 217, 218, 219, 220,
221, 222, 224, 225, 227, 228, 229, 231, 232, 234, 243, 245, 250, 254, 255,
257, 258, 259, 261, 262, 263, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 272, 273, 275,
276, 278, 279, 281, 282, 285, 287, 290, 291, 296, 297, 298, 299, 301, 305,
306, 307
Brasileira 29, 58, 89, 93, 94, 96, 97, 102, 118, 149, 152, 153, 154, 155, 156,
184, 185, 215, 219, 224, 251, 254, 257, 259, 263, 266, 267, 268, 269, 270,
272, 273, 275, 280, 285, 288, 299

C
Clima 59, 64, 67, 119, 160, 165, 171
Comunidades 45, 46, 55, 64, 65, 67, 68, 73, 77, 87, 108, 109, 117, 121, 123,
124, 129, 139, 159, 172, 177, 179, 181, 215, 216, 217, 223, 272, 282, 285,
298, 304
Consequências 20, 22, 27, 49, 53, 54, 57, 73, 87, 88, 109, 117, 128, 130,

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157, 160, 161, 163, 166, 173, 193, 194, 195, 196, 223, 256, 265, 293
Coronavírus 8, 54, 56, 60, 87, 90, 91, 95, 100, 157, 158, 169, 196, 215, 217,
218, 219, 220, 225, 232
Cultura 31, 40, 41, 44, 46, 52, 57, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 74, 76, 77, 125,
141, 180, 191, 225, 240, 242, 249, 275, 277, 278, 279, 281, 282, 284, 286,
287, 290, 298, 299, 304, 306

D
Decisão 50, 51, 88, 92, 93, 95, 97, 99, 100, 102, 103, 123, 124, 125, 142,
162, 181, 242, 283
Desenvolvimento 8, 12, 16, 17, 18, 22, 23, 24, 26, 27, 52, 56, 63, 66, 100,
101, 107, 108, 109, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 121, 122, 128, 129, 132,
136, 149, 157, 159, 160, 166, 171, 173, 179, 180, 184, 185, 186, 188, 190,
191, 192, 194, 218, 220, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 238, 239,
240, 243, 251, 253, 254, 255, 256, 257, 261, 263, 264, 265, 266, 267, 268,
269, 270, 272, 273, 275, 277, 278, 279, 281, 284, 285, 290, 293, 297, 299,
300, 303, 304, 306, 307
Desenvolvimento humano sustentável 227, 229, 230, 232, 233
Desenvolvimento sustentável 12, 16, 18, 22, 118, 179, 180, 228, 229, 230,
231, 232, 233, 234, 240, 279, 284, 290, 299, 300, 303, 307
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 311

Desmatamento 8, 12, 50, 53, 54, 55, 57, 59, 101, 161, 171, 172, 174, 175,
176, 179, 181, 182, 220, 221, 267
Diálogo 17, 20, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 63, 76,
79, 118, 119, 129, 181, 182, 186, 281, 297, 306
Direito 9, 12, 15, 17, 19, 22, 31, 49, 66, 88, 93, 96, 97, 114, 115, 116, 118, 126,
127, 128, 129, 135, 141, 144, 145, 149, 152, 154, 155, 156, 162, 169, 178, 185,
215, 222, 268, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 300, 304, 306, 307, 308
Direito humano à alimentação adequada 293, 294, 295, 297, 298, 306, 307
Direitos humanos 7, 20, 22, 29, 31, 51, 93, 94, 99, 100, 115, 118, 119, 121,
126, 130, 133, 184, 215, 217, 222, 232, 294, 295, 297, 304, 306, 307, 308
Diretrizes 19, 20, 98, 297, 298, 299, 303, 305, 308

E
Ecologia integral 4, 12, 18
Economia 9, 15, 27, 52, 55, 58, 76, 88, 130, 160, 182, 232, 239, 243, 250,
251, 253, 254, 257, 262, 269, 271, 275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 282,
283, 285, 287, 288, 290
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Economia criativa 9, 275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 283, 285, 287,
288, 290
Edição genética 8, 187, 188, 189, 195, 197, 200, 209
Ética 8, 11, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 27, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 36,
38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 50, 51, 52, 58, 78, 88, 89, 91, 92, 93, 95,
97, 98, 99, 100, 108, 114, 117, 118, 119, 130, 136, 145, 154, 157, 159, 160,
161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 181, 182, 183, 184, 185, 188,
204, 206, 207, 219, 224, 232, 264, 270
Ética da responsabilidade 93, 98, 99, 100, 163, 164, 166, 167, 169
Exploração 26, 52, 99, 100, 157, 158, 166, 171, 172, 173, 174, 178, 180,
182, 218, 223, 240, 253, 256, 257, 264, 265, 268

F
Família 73, 76, 123, 124, 136, 195, 217, 237, 246, 249, 282, 283, 288, 302
Força 55, 70, 116, 163, 197, 218, 221, 241, 275, 303

H
Humanidade 16, 17, 18, 19, 49, 77, 100, 149, 150, 157, 158, 159, 160, 161,
163, 164, 166, 167, 168, 169, 170, 188, 219, 221, 222, 276, 277
312

I
Ilegal 137, 158, 174, 175, 177, 178
Indígenas 8, 12, 39, 45, 46, 52, 64, 65, 66, 67, 159, 173, 215, 216, 217, 218,
219, 220, 221, 222, 223, 225, 275, 276, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287,
288, 289, 290, 291, 295, 298
Inserção social 9, 275, 276, 287

L
Legislação 115, 137, 139, 140, 141, 144, 145, 146, 147, 148, 150, 166, 178,
238, 239, 242, 246, 247, 248, 249, 297, 306
Luta 18, 27, 67, 113, 122, 215, 218, 283, 291, 295

M
Meio ambiente 3, 4, 15, 16, 17, 21, 22, 50, 51, 52, 55, 58, 66, 78, 101, 108,
118, 119, 123, 159, 171, 175, 179, 181, 183, 184, 185, 186, 187, 189, 190,
191, 192, 194, 195, 197, 198, 199, 200, 208, 215, 217, 224, 227, 229, 230,
231, 232, 234, 247, 255, 277, 291, 297, 300, 302, 303

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Moçambique 7, 8, 12, 107, 108, 109, 111, 115, 116, 117, 119, 120, 121, 122,
123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 131, 132, 133, 171, 172, 173, 174, 175,
176, 177, 178, 180, 181, 182, 183, 185, 186
Mulheres 66, 69, 109, 117, 124, 229, 246, 275, 276, 280, 281, 282, 283, 284,
285, 286, 287, 288, 289, 290, 291, 300, 304

N
Natureza 4, 7, 11, 12, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 31, 49, 50, 51,
52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 64, 65, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 108, 110,
113, 151, 157, 158, 159, 160, 162, 163, 164, 168, 169, 170, 171, 180, 181,
187, 188, 192, 195, 196, 199, 206, 215, 243, 257, 258, 264, 281, 284
Necessidade 22, 27, 51, 64, 68, 72, 89, 95, 99, 113, 115, 124, 129, 136, 145,
158, 168, 180, 182, 189, 192, 198, 200, 219, 220, 232, 233, 241, 248, 264,
277, 286, 300, 301, 303
Neoextrativismo 8, 12, 253, 254, 256, 257, 267, 268, 269, 272

P
Pandemia 8, 11, 39, 54, 55, 56, 59, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 98,
99, 100, 101, 102, 103, 131, 157, 158, 159, 169, 217, 218, 219, 220, 223,
225, 232, 233, 301, 302, 307
BIOÉTICA, SAÚDE GLOBAL E MEIO AMBIENTE 313

Perspectiva 7, 11, 12, 15, 16, 18, 21, 24, 25, 27, 28, 30, 33, 35, 36, 37, 38,
39, 42, 45, 50, 66, 88, 89, 96, 97, 110, 115, 116, 137, 145, 153, 163, 171, 172,
179, 182, 216, 217, 219, 221, 222, 225, 234, 245, 293, 295, 298, 306, 308
Política 11, 16, 17, 20, 23, 27, 34, 37, 39, 40, 47, 65, 70, 76, 109, 115, 117,
122, 125, 127, 129, 130, 142, 146, 166, 167, 169, 173, 178, 179, 181, 193,
215, 216, 217, 219, 221, 222, 223, 227, 232, 233, 234, 242, 245, 248, 255,
270, 275, 276, 281, 282, 287, 293, 295, 298, 299, 302, 305, 306
Políticas públicas 8, 101, 107, 124, 146, 147, 148, 173, 227, 228, 229, 230,
231, 232, 233, 243, 245, 248, 251, 268, 277, 281, 295, 297, 298, 300, 301
População 7, 12, 19, 22, 54, 107, 108, 113, 117, 118, 121, 122, 123, 124,
125, 126, 127, 128, 129, 130, 132, 133, 154, 172, 173, 174, 176, 177, 181,
182, 192, 215, 217, 218, 221, 237, 246, 255, 257, 260, 261, 265, 266, 267,
268, 279, 281, 283, 289, 296, 299, 300, 301, 302, 304
Populações indígenas 215, 216, 219, 220, 222, 223
Precaução 22, 128, 165
Promoção da saúde 8, 12, 30, 121, 125, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233,
234, 235, 298, 300, 306, 308
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Proteção 12, 15, 21, 52, 54, 89, 92, 93, 99, 100, 115, 116, 120, 123, 128,
140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 153, 158, 171, 173, 174,
178, 180, 184, 222, 284, 300, 301, 303
Prudência 128, 163

Q
Qualidade de vida 12, 20, 22, 23, 75, 76, 121, 126, 139, 178, 179, 218, 227,
230, 232, 234, 239, 275, 280, 282, 285, 297, 299, 304
Queimadas 53, 54, 55, 58, 171, 172, 173, 174, 175, 181, 183, 184, 185, 186

R
Recursos naturais 21, 22, 26, 52, 57, 89, 159, 169, 171, 179, 180, 182, 184,
186, 199, 217, 240, 253, 256, 257, 268, 277, 284, 297, 299
Responsabilidade 4, 7, 19, 22, 28, 49, 50, 51, 52, 53, 58, 68, 93, 98, 99, 100,
115, 118, 124, 136, 139, 140, 145, 149, 150, 151, 159, 160, 162, 163, 164,
166, 167, 168, 169, 170, 181, 184, 200, 206, 221, 230, 243, 264, 285, 297

S
Saúde 3, 4, 7, 8, 11, 12, 15, 19, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 42, 52,
53, 54, 55, 56, 60, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 73, 74, 75, 76, 78, 87, 88, 89,
314

90, 92, 93, 95, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 107, 108, 109, 111, 112, 113,
114, 115, 116, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129,
131, 132, 133, 135, 136, 137, 145, 148, 150, 157, 182, 184, 203, 219, 220,
223, 224, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 239, 241, 247, 294,
295, 296, 297, 298, 300, 301, 302, 304, 306, 307, 308
Saúde global 3, 4, 7, 11, 12, 15, 23, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 88, 89, 93, 100,
102, 108, 114, 116, 117, 124, 126
Segurança 17, 27, 55, 108, 112, 113, 114, 117, 127, 150, 190, 193, 229, 232,
240, 249, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301, 303, 304, 305, 306,
307, 308
Segurança alimentar 17, 229, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 299, 300, 301,
303, 304, 305, 306, 307, 308
Serviços de saúde 12, 101, 122, 125, 127, 128, 129, 133, 300
Social 9, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 30, 33, 39, 40, 43, 52,
57, 59, 63, 65, 66, 67, 69, 70, 72, 74, 76, 77, 83, 85, 88, 89, 93, 94, 99, 100,
101, 102, 113, 115, 116, 117, 121, 123, 124, 125, 127, 128, 129, 131, 135,
137, 159, 160, 166, 179, 182, 183, 215, 216, 218, 221, 222, 223, 229, 230,

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231, 232, 233, 234, 238, 239, 242, 244, 251, 258, 260, 264, 270, 271, 275,
276, 280, 281, 282, 283, 287, 294, 296, 297, 298, 299, 301, 302, 303, 304,
305, 306
Sociedade 15, 16, 17, 18, 20, 21, 25, 28, 29, 30, 50, 51, 63, 64, 68, 72, 75,
76, 87, 88, 100, 101, 128, 135, 138, 139, 140, 149, 150, 158, 165, 167, 168,
171, 180, 184, 187, 215, 219, 222, 231, 242, 244, 251, 255, 260, 264, 270,
271, 273, 282, 283, 284, 286, 297, 298, 299
Sustentabilidade 63, 68, 107, 117, 119, 131, 179, 180, 182, 183, 185, 227,
230, 233, 234, 243, 248, 249, 271, 275, 284, 298
Sustentável 8, 12, 16, 18, 21, 22, 64, 67, 75, 77, 116, 118, 171, 173, 179,
180, 182, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 238, 239, 240, 243, 270,
272, 279, 284, 290, 291, 294, 299, 300, 303, 304, 307, 308

W
World Health Organization 87, 91, 95, 103, 230, 231, 232, 235
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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