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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Educação
Departamento de Metodologia do Ensino e Educação
Comparada

EDM0405 – Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I

A LÍNGUA PORTUGUESA EM PERSPECTIVA PRÁTICA: RELATÓRIO FINAL DE


ESTÁGIO

LUCAS VIDAL DA FONSECA SILVA - 10409578

São Paulo
2021
I. Apresentação da proposta de trabalho

O presente estudo tem por objetivo apresentar brevemente os dados provenientes de


40 horas de estágio supervisionado associado à disciplina de Metodologia do Ensino de
Língua Portuguesa I, sua análise e relação com as teorias, ideias e debates desenvolvidos ao
longo do curso. As horas de estágio contabilizadas foram estruturadas em torno da
observação e análise de minha própria prática docente, posto que já atuo como professor de
Oficina de Redação e Língua Portuguesa em um colégio particular da zona central de
Guarulhos. Ao efetuar tal análise, tornou-se possível (re)pensar criticamente formas de
apresentação e de regência do conteúdo programático para as séries de Ensino Fundamental
II.
Durante o período compreendido entre os dias 24 de abril de 2021 a 25 de junho de
2021 foram selecionadas 40 horas de atividades de regência junto ao Colégio Eniac1, que, em
virtude da excepcional situação de isolamento social imposta pela pandemia de COVID-19,
neste mesmo ano, ocorreram de forma presencial e virtual. As observações mais pertinentes -
e inquietantes - serão expostas sucintamente nas próximas seções deste estudo, levando em
consideração os pontos relativos a escrita; leitura e oralidade; literatura; e gramática.

II. Apresentação do contexto escolar em questão

A partir do período de início de observação e coleta dos dados que fundamentam este
trabalho, as aulas no colégio transcorreram de modo misto, com turmas presenciais e turmas
on-line. Devido ao Plano São Paulo de retorno parcial às atividades presenciais, decretado
pelo então governador do estado, João Dória, as turmas presenciais puderam retornar às salas
de aulas presencialmente com um limite máximo de 30% de sua capacidade. Assim, o colégio
Eniac se viu obrigado a realizar rodízios, de modo a alternar a presença dos alunos nas
limitações do espaço físico da escola. Esse rodízio funcionou a partir de pesquisas
respondidas pelos responsáveis dos alunos em formulários Google, a respeito do desejo ou
não de que o discente retornasse às atividades presenciais.
Desse modo, as práticas escolares encontraram-se, em certo sentido, limitadas, posto
que as atividades e avaliações deveriam ser feitas essencialmente em modelo on-line para
abarcar todos os alunos, até mesmo aqueles que optaram por não frequentar as aulas
presencialmente, e, por isso, não serem prejudicados.
As aulas on-line ocorreram por meio da criação de seções virtuais na plataforma
virtual Google Meet, com encontros das 7h às 12h45, no período matutino, e das 13h às
18h45, no período vespertino. Cada um dos alunos, ao ingressar no colégio, passa a ter
automaticamente um endereço de e-mail institucional Eniac e, a partir desses e-mails, foi
possível controlar o acesso às sessões de aulas on-line. Isto é, somente podiam acessar as
aulas virtuais aqueles cujo login deveria ser de domínio Eniac para, assim, evitar problemas
de invasões ou de outras naturezas aos quais professores, alunos e o ambiente escolar em sua
totalidade ficou suscetível durante a era do isolamento social - período esse que ainda se
mantém durante a elaboração deste relatório.
Ainda restritos ao acesso somente via login institucional, todo o corpo discente foi
matriculado em espaços digitais de interação, possibilitados pela plataforma Google
ClassRoom (ou Google Sala de Aula), para que as atividades e avaliações pudessem ser
facilmente acessadas e entregues virtualmente. Além do uso desta plataforma, o colégio
contou, ainda, com o Portal Eniac, um portal virtual, no qual os responsáveis pelos alunos
podiam consultar os boletins, informações cadastrais e registros de presença nas aulas, além
1
Colégio Eniac de Informática, localizado em Rua Força Pública, 89, Guarulhos - SP, é um colégio
particular que trabalha com todas as séries de Ensino Básico, desde a pré-escola ao ensino médio.
de informações afins. É fato notável, no entanto, que o uso de tais ambientes virtuais não
ocorreu somente em virtude da situação excepcional imposta pela pandemia, dado que o
colégio já possuía tais ferramentas como parte de seu instrumental pedagógico antes mesmo
de que a pandemia e o isolamento social se instaurassem, mas, é claro, tais ambientes digitais
simplesmente ganharam mais força, e seus usos deixaram de ser simplesmente fáceis e
práticos para se tornarem estritamente necessários, diante de um contexto pandêmico.
Ao analisar o documento Plano de Ensino Escolar (2021), do colégio Eniac, foi
possível identificar a preocupação com o ensino à distância, mediado pela tecnologia, com o
que o documento denomina como AVA (Ambientes Virtuais de Aprendizagem):
A utilização de Ambientes Virtuais de Aprendizagem - AVA - permite a
construção do conhecimento por parte do estudante em qualquer lugar e a qualquer
hora, inclusive por meio de dispositivos móveis. Inspirados na Deliberação CEE
nº77/2008 adotamos algumas atividades didáticas de ensino centradas na auto
aprendizagem [sic] com a mediação de recursos didáticos organizados em diferentes
suportes de informação, utilizando tecnologias de informação e comunicação
remota, conforme observação na matriz curricular. No próprio Colégio, os alunos
têm acesso a equipamentos e ambientes escolares adequados para o trabalho na
modalidade semipresencial. (p. 17)

Além da criação de espaços digitais de interação, o colégio possibilitou o empréstimo


de Chromebooks a seu corpo discente, visando auxiliar aqueles que possuíam alguma
fragilidade quanto aos meios físicos de se acompanhar as aulas on-line. É claro que outras
fragilidades estruturais, como a falta de acesso à internet ou impossibilidade de um espaço
próprio ao estudo no ambiente domiciliar do aluno, poderiam surgir e, nesses casos, o colégio
não parece ter encontrado uma solução efetiva para remediar a situação ou auxiliar o aluno, a
não ser a prorrogação de prazos de entrega de atividades ou avaliações, mediante pedidos de
pais ou responsáveis em situações atípicas.
Entretanto, as menções ao ensino à distância feitas no documento escolar parecem
estar associadas somente à oferta de ensino técnico, para o ensino médio. Em momento
algum, em todo o já referido Plano de Ensino Escolar não há sequer indicações à situação de
ensino à distância e sua irremediável necessidade oriunda da situação imposta pela pandemia
de COVID-19. Em outra passagem, o documento apresenta:
Não podemos conceber a metodologia da aprendizagem atual, sem que seja
colocado a serviço das atividades pedagógicas, esse grande potencial tecnológico,
que está presente nas diversas atividades produtivas, nos diversos ramos de mercado
e comércio, potencializando de forma quase incomensurável, praticamente, todas as
atividades humanas. (ibidem, p. 14)

Assim, ao mencionar a proposta educacional, o texto deixa entrever a noção de


potencial tecnológico. Isto é, mostra que está dialogando com as novas tecnologias para
possibilitar o processo de ensino. O fato de disponibilizar integralmente o material didático
em formato digital corrobora tal ideia. As turmas de 6º a 8º ano do Fundamental II têm acesso
ao material didático, oferecido pelo colégio em convênio com o sistema Etapa, por meio do
“Etapa Virtual”2, uma plataforma digital que contém todos os materiais didáticos de todas as
disciplinas, segmentados em 8 unidades que devem ser usados ao longo do ano inteiro. As
turmas de 9º ano, no entanto, utilizam o material estruturado pelo próprio colégio em
convênio com a produtora de materiais didáticos Sagah, divididos não em unidades, mas em
tópicos de conteúdo programático, segmentados por semanas. Ou seja, a cada semana
espera-se que seja abordado um único conteúdo.

2
O sistema digital da plataforma pode ser acessado no endereço eletrônico:
<https://www.sistemaetapa.com.br/login>
No que tange ao sistema de avaliação, o colégio trabalha com avaliações dissertativas,
realizadas trimestralmente, de modo exclusivamente on-line, com respostas coletadas em
formulários Google. Além disso, o restante da nota gira em torno de simulados criados pela
plataforma Evolucional3 e por atividades desenvolvidas pelo professor em aula. Esta última
mostrou-se uma nota muito mais efetiva e real com relação ao desenvolvimento do aluno,
dado que possibilita uma avaliação continuada e formadora do discente, não simplesmente
um dado numérico categórico. Apesar da nota de professor, proveniente das atividades
desenvolvidas em aula, também apresentar-se como um dado quantitativo, o professor pode
ter um olhar mais atento e íntimo com relação ao corpo discente, suas dificuldades e
fragilidades. A única peculiaridade observada é que as turmas de 9º ano, assim como as
turmas de ensino médio, realizam avaliações semanais compostas por questões objetivas,
conhecidas como “semanadas” no âmbito do colégio.

III. Observações e realizações a partir das atividades de regência

Para composição do estágio supervisionado foram selecionadas 45 aulas em que


foram ministrados conteúdos referentes às disciplinas de Língua Portuguesa ou Oficina de
Redação, de modo que nesta última alguns pontos mostraram-se surpreendentes em questões
de oralidade e escrita, ao passo que, naquela, ficaram mais evidentes questões relativas a
gramática e literatura. Porém, nada impediu que ambas as disciplinas dialogassem. Muito
pelo contrário: em diversos momentos, os conteúdos possibilitaram formas distintas de atuar
sobre um mesmo ponto - a oralidade, por exemplo, foi um elemento de profícua discussão em
aulas das duas disciplinas. Entretanto, em virtude da necessidade de brevidade na elaboração
deste estudo, serão apresentados apenas momentos mais pertinentes e frutíferos à discussão
sobre o ensino de Língua Portuguesa, momentos estes que, a partir de erros ou acertos,
fizeram com que os alunos e, até mesmo eu, professor, levantássemos dúvidas e hipóteses
para serem discutidas coletivamente e, assim, envolver o aluno ativamente no seu processo de
ensino.
Uma dessas importantes aulas ocorreu no dia 20 de maio de 2021, direcionada para a
turma presencial de 8º ano. Em virtude da situação atípica imposta pela pandemia, como já
explicitado na seção anterior deste trabalho, havia um número bastante limitado de alunos em
sala de aula: 18. Todos estavam sentados em carteiras distantes umas às outras, respeitando o
distanciamento social, além de todas as outras medidas sanitárias necessárias. As carteiras
disponíveis para utilização estavam marcadas com um adesivo para facilitar o respeito aos
protocolos de distanciamento.
Com o intuito de dar seguimento ao planejamento estabelecido, passei aos alunos uma
atividade da apostila Etapa relativa ao gênero textual podcast. Iniciei a discussão levantando
o questionamento a respeito do que seria, a princípio, um gênero textual. Muitos não
souberam responder e o silêncio tomou conta da turma. Então tratei de expor exemplos de
gêneros textuais e, assim, a questão parece ter ficado mais clara a eles. Ao fim, pedi para que
elaborassem um breve podcast. Todos fizeram a atividade usando somente o celular e o
aplicativo WhatsApp. Isto é, a tecnologia mostrou-se imprescindível e extremamente
produtiva para o trabalho em sala de aula, especialmente em tempos de pandemia.
Já no dia 17 de maio, foi desenvolvida uma breve aula expositiva com os alunos da
turma de 9º ano on-line, via Google Meet. Essa aula teve por intuito tratar essencialmente do
gênero diário. Durante os primeiros minutos de aula, antes mesmo de indicar o tema que seria
objeto de nossa discussão, apresentei trechos selecionados da obra Éramos jovens na guerra,
da autora Svetlana Palmer. Por tratar-se de uma obra literária em que são retratadas páginas
3
Evolucional é uma plataforma on-line que trabalha com a elaboração de provas objetivas e correção
de redações em modelo dissertativo-argumentativo.
de diário coletadas de jovens, os quais se encontravam em campos de batalha durante a 2ª
Guerra Mundial, julguei que seria uma forma impactante de se iniciar a aula. No entanto, ao
ouvir pequenos trechos da obra, a avó de um aluno, que estava atentamente acompanhando a
aula - tanto a avó quanto aluno - decidiu se manifestar e partilhar a história de seus avós
italianos, que haviam se conhecido durante a 2ª Guerra. O relato da senhora fez com que a
maioria dos alunos se sentissem confortáveis e convidados a participar da aula. Além disso,
antes do término da discussão, o avó leu para todos pequenos trechos de cartas e páginas de
diário as quais mostravam a relação amorosa entre os avós separados pela guerra. Desse
modo, a discussão foi extremamente produtiva, justamente pela participação - inusitada, é
claro - da avó de um aluno. Tal fato deixou entrever a forma viva do gênero textual em sua
necessidade comunicativa mais utilitária possível: mediar a relação de comunicação entre
duas pessoas, posto que, em certa medida, aquelas cartas apresentadas não simplesmente
refletiam a relação entre os amantes, mas era, de fato, a relação entre eles. Ou seja, baseada
na troca de correspondências.
É válido ressaltar que estavam presentes na sessão 37 alunos. Esse número tende a se
repetir com frequência nos encontros, porém somente 5 ou 6 participam ativamente das aulas
abrindo o microfone e cerca de 15 deles interagem via chat. Nesta aula, entretanto, a
interação foi muito mais intensa. Quase todos os alunos sentiram a necessidade de se
manifestar de algum modo e sentirem-se inseridos na discussão.
No dia 21 de maio, em aulas também com o 9º ano, em modelo on-line, auxiliei os
alunos na produção de uma carta argumentativa. Todos deveriam efetuar a entrega do texto
produzido via Google Sala de Aula. Logo nos momentos iniciais do encontro, indiquei a
proposta de redação a ser desenvolvida, mas boa parte dos alunos mostrava-se, a priori, com
dificuldades em elaborar o texto atendendo efetivamente à proposta com base nos critérios
avaliativos, também indicados inicialmente. Então uma aluna decidiu enviar-me o texto para
que eu fizesse uma breve correção e desse algumas dicas para uma melhor elaboração. No
entanto, o trabalho de correção foi efetuado conjuntamente. Com a devida permissão da
aluna, compartilhei o texto com todos os outros alunos que estavam na sessão e, juntos,
realizamos a alteração de segmentos textuais, reescrevendo certas passagens, excluindo e
adicionando outras. Com isso, foi notável a participação dos alunos no processo de reescrita
e, ademais, de como a alteração de pequenas estruturas textuais podem possibilitar mudanças
significativas de sentido. Julguei extremamente pertinente esse momento da aula, afinal o que
seria isso senão uma atividade epilinguística?
Durante o dia 06 de junho, foi trabalhado com a turma presencial de 7º ano uma
atividade a respeito dos conflitos, enquanto elementos estruturais, presentes nas narrativas.
Para tanto, fizemos conjuntamente a leitura de um texto narrativo na apostila Etapa: “A
dúvida e a dívida”. Logo após, preenchemos uma tabela e identificamos os conflitos e as
resoluções que se apresentavam na narrativa. A partir desta atividade, os alunos puderam
contribuir com suas perspectivas a respeito do funcionamento da estrutura do texto narrativo
e, assim, observar, na prática, o seu funcionamento. Uma aluna, Ana, achou extremamente
curioso o fato de que toda narrativa precisa apresentar um conflito. Ela, então, se propôs a
encontrar uma narrativa que não apresentasse um único conflito sequer e não conseguiu. A
aluna observou que em todos os textos narrativos que elencou, desde contos de fadas a
fanfics, havia conflitos que alimentavam o enredo. Desse modo, fica claro que a reflexão da
aluna não somente possibilitou a ela entender o funcionamento dos textos narrativos, mas
também justificar o seu pleno funcionamento prático.
Já na turma seguinte de 7º ano ministrei essa mesma atividade, porém, a aula
transcorreu de forma totalmente diversa. De igual modo fizemos a leitura do texto narrativo
apresentado na apostila, entretanto, pedi a alguns alunos que me auxiliassem nesse processo,
para que a leitura ficasse mais dinâmica. Entretanto, surpreendi-me com o resultado positivo,
pois um aluno, Felipe, se dispôs a ler e, diferentemente do que estava no texto, optou por usar
uma voz engraçada, similar a um personagem de desenho animado extremamente caricato e
substituiu palavras do texto por sinônimos ou expressões sinônimas, mais engraçadas, tais
como “Minas Gerais” por “terra do pão-de-queijo” ou “meninas” por “quase ‘mulé’”. Pude
notar, com isso, certo processo de reescrita que acontecia quase simultaneamente à leitura.
Ainda nesse mesmo dia, porém para a turma on-line do 7º ano, foi desenvolvida uma
breve atividade proposta pela apostila Etapa, atividade esta em que os alunos foram
orientados a produzir um texto, com dicas para evitar a falsificação de cédulas monetárias.
Com o intuito de auxiliá-los, transmiti um vídeo do youtube em que eram apresentadas dicas
para identificação de notas de dinheiro verdadeiras, como suas marcas d’água e texturas
diferentes4.
Logo após o vídeo, nos últimos 10 minutos de aula, foi solicitado aos alunos que iniciassem a
produção da atividade. Um aluno, curiosamente, afirmou que produziu seu texto
apresentando somente as dicas que julgava mais úteis e fáceis de serem seguidas por qualquer
pessoa, mas não todas as dicas apresentadas no vídeo. Isso, pois uma pessoa qualquer
provavelmente não teria uma luz negra em casa para realizar alguns dos testes demonstrados.
Assim, mostra-se interessante o fato de tal aluno ter pensado o texto a partir de um viés
prático. Isto é, imaginou que a sua produção está a cargo de sua vida prática e da de outras
pessoas. A escrita seria, então, um fenômeno que se estabelece de maneira utilitária, também
fora de sala de aula.
Partindo agora para o dia 17 de junho, foi dada sequência à discussão a respeito das
narrativas com a turma presencial de 7º ano. Para essa aula, propus a leitura de um texto
narrativo, “O dia que virou um dia”, de Diógenes de Lima, a partir de um parágrafo
localizado no meio da história. É claro que o enredo ficaria naturalmente confuso, mas pedi o
auxílio dos alunos para que tentassem imaginar e, com isso, para que tentássemos preencher
as “lacunas” que ficaram no meio da história. Todos rapidamente já associaram a história a
um assalto ou a um sequestro, mas não sabiam ao certo quem era o sequestrador ou quem
havia sido sequestrado. Passamos a criar hipóteses de leitura.
Por fim, lemos o texto integralmente e, logo no primeiro parágrafo, as hipóteses
elaboradas já começaram a ser comprovadas ou excluídas - o sequestro foi verificado como
hipótese verdadeira e o assalto como talvez uma tentativa fracassada, que desembocou no
sequestro.
Entretanto, essa mesma atividade foi trabalhada com a turma de 8º ano, que,
curiosamente, teve interpretações totalmente diferentes: no momento em que o sequestrador
puxa a vítima aproximando-a de seu corpo, os alunos pensaram diretamente em uma relação
amorosa e a palavra “refém” como sendo algo metafórico. A partir de então a discussão foi
totalmente direcionada para o gênero fanfiction, algo em que os alunos se mostraram muito
interessados. Entretanto, busquei direcionar mais assertivamente o foco da aula e testamos as
hipóteses de leitura. Todos ficaram muito decepcionados quando perceberam que a
interpretação que tiveram estava totalmente equivocada. Desse modo, foi plenamente
possível identificar o fato de que o público que recepciona o texto literário pode mudar tão
drasticamente a interpretação criada. Justamente por isso uma aluna, Sabrina, mencionou que
não gostou do texto e preferiria que a narrativa tivesse o final que ela escolheu. Preferiria ela
ter reescrito o início e o fim da história.
Por fim, a última aula selecionada foi ministrada à turma on-line do 9º ano. Foi
proposta uma sucinta discussão a respeito de variação linguística. Logo no início do encontro,
observamos vários textos (um fragmento de Dom Casmurro, charges e outros textos
veiculados na internet) e buscamos, com isso, identificar quais palavras tinham um
4
O vídeo pode ser acessado integralmente através do link:
<https://www.youtube.com/watch?v=7ZzkCmiueCg>
significado obscuro ou que talvez não fossem mais usadas na Língua Portuguesa, ou, tão
somente, não soavam comuns aos alunos. Destacamos e transcrevemos as palavras para
depois analisá-las. A seguir, apresentei os conceitos dos distintos tipos de variação
linguística, indicados no material didático: variação diatópica, diacrônica, diafásica e
diastrática. Após essa explicação, analisamos as palavras que haviam sido destacadas e
transcritas no início da aula como palavras “estranhas” e buscamos compreender o que as
tornavam palavras inusuais.
Já ao fim do encontro, foi solicitado um exercício prático: os alunos deveriam
reescrever um trecho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, adaptando-o à linguagem
atual ou simplesmente à sua própria linguagem, utilizada em seu dia-a-dia. Justamente nesse
momento da aula, dois alunos, que não interagiam tão ativamente durante os encontros,
partilharam com a turma as palavras “inusuais” próprias de suas variedades linguísticas,
posto que um dos alunos era natural do Rio de Janeiro, ao passo que o outro, natural de Rio
Grande do Norte.
Apesar de não serem contempladas nesta seção, as demais aulas ministradas também
mostraram-se produtivas e criaram discussões extremamente frutíferas. De todo modo, os
pontos observáveis relativos aos pilares que estruturam esse estudo - leitura, escrita,
gramática e oralidade - ficaram evidentes nas aulas selecionadas e serão analisados
criticamente com maior precisão e profundidade nas páginas seguintes.

IV. Análise dos dados obtidos e relação com o instrumental teórico do curso

Neste ponto do estudo, será apresentado o instrumental teórico considerado durante o


curso de MELP I para, assim, buscar uma análise crítica mais atenta aos dados coletados
durante as horas de estágio supervisionado. Ao retomar as observações de aulas apresentadas
na seção anterior, portanto, não será feito um caminho cronológico em relação às aulas, mas
tão somente um caminho de idas e voltas que busca um agrupamento de acordo com os
conceitos mobilizados ou áreas de aprendizado trabalhadas.
O primeiro ponto a ser destacado está na aula em que um aluno de 7º ano, ao ler o
texto incluído no material didático Etapa, “A dúvida e a dívida", efetuou uma série de trocas
lexicais, com o intuito de tornar a leitura mais divertida e engraçada aos colegas. O que para
este aluno pode ter significado apenas uma brincadeira, pode ser encarado, na verdade, como
um forte processo de domínio com respeito à atividade leitora e que revela muito sobre os
conhecimentos extra-sala que o discente consegue mobilizar ao estar frente a um texto de
qualquer natureza, seja ele literário ou não. A leitura, portanto, não pode ser considerada
outra coisa senão uma processo extremamente ativo de aprendizagem, posto que o aluno
estabelece um diálogo com outros textos e conhecimentos prévios construídos ao longo de
sua formação. É justamente essa a ideia que defende Daibello (2020), ao buscar dar
significação ao ato de leitura a partir de conceitos bakhtinianos:
O ato de ler, portanto, não se coloca como uma prática passiva, mas como uma
atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, uma vez que o
leitor mobiliza outros discursos que entram nessa cadeia discursiva, como denomina
Bakhtin, em relação às palavras materializadas no texto que, por sua vez, são lidas
numa alternância ininterrupta de interação, ou seja, dialógica. (DAIBELLO, 2020,
p. 98)

Assim, o aluno, ao efetuar diversas trocas lexicais no texto lido, faz mais do que isso:
efetua trocas também de cunho semântico. Desse modo, a sacralidade do texto é quebrada -
ato este extremamente positivo - e o processo de aprendizagem a partir do texto torna-se
potencialmente mais produtivo e revelador. Ainda com respaldo nas ideias de Daibello, que
por sua vez, baseia-se em Rouxel (2012), pode-se entender tal processo de leitura sob a
denominação de “leitura cursiva”, em que o aluno envolve-se efetivamente com o texto que
está lendo para, assim, compreender o sentido apresentado em sua totalidade, dialogando com
sua própria realidade:
“leitura cursiva”: um tipo de leitura previsto como uma forma livre, direta e
corrente, com foco em apreender o sentido a partir do todo. Rouxel (2012, p. 276)
defende essa proposta como uma nova perspectiva no trabalho com literatura na
escola: “Leitura autônoma e pessoal, ela autoriza o fenômeno de identificação e
convida a uma apropriação singular das obras. Favorecendo outra relação com o
texto, significa um desejo de levar em conta os leitores reais” (ibidem, p. 96)

Isto é, o trabalho em sala de aula com foco no próprio texto deixa entrever uma noção
de leitura extremamente rica, posto que os alunos podem agir diretamente sobre a obra lida,
de modo a apropriar-se dela. A leitura não pode ser considerada jamais uma atividade
passiva, pois, no processo de trocas lexicais - como o efetuado pelo aluno em questão - são
notáveis também indícios de autoria. Ao se apropriar da obra conhecida, o leitor pode destruir
o texto para depois tentar reconstruí-lo, pelo processo de substituição, criando grandes
mudanças de sentido. Ou seja, um novo texto é criado e o sentido anteriormente pensado pelo
autor pode ser plenamente compreendido, pois, para negar uma ideia, o leitor precisa, antes
de mais nada, apropriar-se dela.
Para dar mais profundidade a essa discussão, Daibello usa ainda a expressão “leitura
subjetiva” apresentando-a como um processo discursivo em que um leitor, a partir de seus
conhecimentos de mundo, constrói um texto singular, que não pode jamais ser reconstituído
por nenhum outro sujeito em nenhum outro momento:
Em outras palavras, podemos definir esta leitura como aquela em que um
leitor real, empírico, se engaja na produção de sentidos em relação ao texto,
permitindo-se afetar por ele. [...] Trata-se, entretanto, de considerar a leitura
realizada na existência singular de um sujeito real, em um ato único e irrepetível -
para usar uma expressão de Bakhtin - porque decorre de condições concretas que o
constituem e não poderiam ser repetidas na singularidade da experiência vivida por
nenhum outro indivíduo. (ibidem, p. 99)

O fato de se mobilizar informações que estão alheias ao texto, para buscar a


compreensão deste, também é defendido por Frank Smith (1999, p. 20). O autor, ao abordar
dita ideia, a denomina enquanto “informação não-visual”. É esta a informação que está “atrás
dos olhos”. Isto é, não é uma informação que pode ser acessada no contato direto com o
texto, mas precisa ser buscada com base em outros textos e conhecimentos construídos ao
longo da experiência leitora do sujeito em questão. Assim, também em Smith, é possível
notar o teor dialógico - segundo ideias de Bakhtin - no ato de leitura, posto que o indivíduo
precisa acessar informações que estão fora do domínio discursivo abordado no texto que está
sendo lido. É precisamente aí em que se insere inteligivelmente a noção de que a informação
não está diante dos olhos, mas atrás deles.
Todo leitor traz consigo experiências, conhecimentos e, até mesmo, receios
previamente construídos em sua experiência com distintos textos. Estimular o aluno a acessar
livremente tais informações é que seria um ponto de partida para o trabalho do professor,
enquanto mediador entre aluno e texto. Cabe ao docente a tarefa de apresentar a possibilidade
de criação de hipóteses de leitura para que sejam, assim, testadas ao longo do processo e,
talvez, sejam cometidos erros nesse percurso. É ponto importante também que os erros sejam
naturalizados e que o aluno acostume-se com eles. O ambiente de sala de aula é o ambiente
natural dos erros. Possivelmente os erros sejam tão valiosos - senão ainda mais - que os
próprios acertos para o processo de ensino-aprendizagem. O professor deve, então, estimular
o erro durante as leituras, pois, para Frank Smith (ibidem, p. 38), quando o aluno sente-se
intimidado pela possibilidade de errar, o texto perde seu sentido, gerando no leitor o processo
de “visão túnel”.
Pensando, ainda, no ato de efetuar trocas lexicais como um ato de apropriação do
texto, Sírio Possenti, em “Ensinar o estilo?”, desenvolve algumas considerações a respeito do
ato de leitura liado à concepção de estilo, enquanto elemento plenamente possível de ser
desenvolvido em sala de aula. Neste texto, o autor tenta dissociar o conceito de estilo de uma
concepção puramente subjetiva, mas demonstrar tal conceito como uma coisa possível de ser
ensinada no trabalho com os alunos em sala de aula. Para isso, lança mão essencialmente da
atividade de reescrita como um elemento formador de estilo, pois, assim, ao exercitar a
prática escrita os alunos podem apropriar-se efetivamente do texto escrito.
Possenti define estilo enquanto uma simples relação entre forma e conteúdo, isto é,
entre forma e sentido:
Estilo, assim, evidentemente, não pode ser pensado como expressão de uma
individualidade, mas implica, pelos exemplos vistos, ao mesmo tempo uma tomada
de posição (não importam os meios e as razões, o que importa é o efeito) e um
eventual efeito de singularidade [...].
Em suma, para mim, alguém se caracteriza como autor tomando posição e fazendo
com que seu texto vá além da adequação (necessária, mas insuficiente), dando-lhe
algum sal. (POSSENTI, 2021, p. 23)

A partir de tal passagem de seu texto, Possenti deixa entrever também que a reescrita
pode configurar uma manifestação de autoria. Isso, pois, é assim uma das maneiras de o
aluno apropriar-se do texto apresentado e, passando de um estágio inicial, de uma atitude
passiva, para uma atitude totalmente ativa, fazendo do texto também, em parte, seu, posto que
participa diretamente do processo criativo. E exatamente assim foi feito pelo aluno na aula
observada.
Partindo agora para as observações referentes a outros encontros selecionados para o
estágio supervisionado, é possível mencionar o quão produtiva foi a aula sobre a construção
de textos narrativos. Produtiva, pois a aula tornou possível observar como a recepção de um
texto por diferentes públicos pode gerar, também, grandes mudanças de sentido. Ao ministrar
esta aula às turmas de 7º ano, foram criadas hipóteses de leitura que se verificaram, a priori,
corretas, restando apenas pequenos pontos lacunares - tais como quem seriam os personagens
ou o que estariam fazendo antes de que a história tomasse o rumo irremediável que havia
tomado etc. O trecho apresentado da narrativa foi:
“Vem lá o transporte com Maria. O mesmo é avistado pelo marginal, que logo
conclui seu plano iminente de execução. E o faz. O aceno com a mão indica ao
motorista que pare o veículo e o deixe entrar. As vistas de Maria mudam
imediatamente de direção e cruzam-se com as de José. Este segue, como quem
mede os passos, ao encontro daquela. Fita-lhe mais uma vez os olhos e estende-lhe
os braços. Aquelas magras mãos tocam a moça e, brutalmente, puxam-na para o
mais perto de si: tem uma refém. [grifo meu]”5

Fato curioso é que o mesmo trecho, ao ser apresentado para a turma de 8º ano,
possibilitou interpretações de sentido totalmente diversas. Um dos alunos presentes entendeu
o termo “refém”, no segmento destacado, como um uso metafórico da palavra, gerando a
ideia de que os personagens seriam, na verdade, um par romântico e associaram o texto
imediatamente ao gênero textual fanfiction. Após a turma interpretar o texto como uma
fanfic, foi notável a participação de todos na discussão. Tal fato deixa entrever o quanto

5
Texto de autoria de Diógenes de Lima, extraído da internet e pode ser acessado a partir do seguinte
endereço virtual: <https://www.algosobre.com.br/redacao/narracao-com-exemplos.html> Acessado
em 14 de julho de 2021.
textos desse gênero fazem parte do cotidiano dos jovens e, desse modo, podem configurar
uma profícua fonte de estudos, pois, mesmo fora do ambiente escolar, os alunos demonstram
engajamento em textos que, segundo suas próprias convicções, nada tem a ver com textos
literários ou exercícios de Língua Portuguesa.
Suas experiências, enquanto alunos leitores, portanto, não devem ser desprezadas,
mas acolhidas, posto que, ao debater sobre um texto literário6 de tal modo, os alunos
possibilitam uma espécie de intercâmbio cultural. Seus gostos por um tipo específico de
literatura mostram como a interpretação de um texto pode ser potencializada, de modo
extremo, podendo levar uma simples narrativa a ser entendida como pertencente a outro
gênero textual. Isto é, o uso da linguagem possibilita a demonstração de uma forma de ver o
mundo e a criação de um texto totalmente diferente do que foi idealizado por seu autor.
Novamente se enxerga aqui o ato de dessacralização do texto literário. Os alunos tentaram
preencher as lacunas de sentido e conseguiram estruturar um novo texto. Esse uso da
linguagem enquanto elemento criador nas práticas pedagógicas é corroborado por Pietri
(2010), ao valer-se das ideias de Correia (2003):
O significado dos conceitos sociais está no mundo, na negociação entre as
pessoas; a própria cultura, que é um produto do uso da linguagem, precisa ser
interpretada por quem participa dela. E a cultura é, ao mesmo tempo, um processo
que está em constante recriação, através das interpretações e negociações de seus
participantes. Assim, a linguagem não tem a função apenas de transmitir, ela cria
realidades e consciência, fornece novos meios à cognição para investigar e explicar
o mundo. (CORREIA, 2003, p. 511, apud PIETRI, 2010, p. 79)

Portanto, fica claro que as experiências que os alunos possuem enquanto leitores não
devem ser desprezadas. Toda a informação não-visual - tomando as ideias de Frank Smith -
que o aluno possuir pode ser proveitosa no processo pedagógico. É justamente o que defende
também Marli André (1995), em um ensaio sobre o estudo etnográfico, em que a autora
sintetiza de modo certeiro a necessidade de partir, no trabalho pedagógico, da realidade em
que o aluno está inserido, em sua cultura, mas não impor uma cultura outra sobre o discente:
O estudo da dinâmica de sala de aula precisa levar em conta, pois, a
história pessoal de cada indivíduo que dela participa, assim como as condições
específicas em que se dá a apropriação dos conhecimentos. Isso significa, por um
lado, considerar a situação concreta dos alunos (processos cognitivos, procedência
econômica, linguagem, imaginário), a situação concreta do professor (condições de
vida e de trabalho, expectativas, valores, concepções) e sua inter-relação com o
ambiente em que se processa o ensino (forças institucionais, estrutura
administrativa, rede de relações inter e extraescolar). (ANDRÉ, 1995, p. 37)

Portanto, todas as aulas em que foram utilizados textos, literário ou não, para
subsidiar as discussões mostraram-se muito ricas. Porém, apesar de extremamente frutíferas,
observo agora a necessidade de trabalhar o texto em si, em sua materialidade; e não trabalhar
o texto somente visando outros objetivos de ensino, tais como gramática ou leitura. Caso
contrário, o rico teor literário das obras, por exemplo, passa a ser deixado de lado e o aluno
não é apresentado a uma experiência de formação embasada no teor crítico da literatura, mas
tão somente passa a ler literatura buscando conceitos gramaticais ou para exercitar suas
habilidades e competências relativas à interpretação de textos. Tais ideias encontram respaldo
em Daibello, ao defender que “A questão da leitura de literatura na escola [...] permanece
quase sempre à margem especialmente quando se trata de abordagens que valorizem o leitor e
sua experiência com esse tipo de texto.” (2020, p. 95). Outro autor que se debruça

6
Não será discutido neste breve trabalho o estatuto do gênero textual fanfiction enquanto texto
literário ou não.
criticamente sobre esse aspecto é João Wanderley Geraldi (1996, pp. 317-318), que, ao
analisar documentos de matriz curricular, nota a mudança, a partir da década de 70, em que o
texto passa a ser o centro do ensino. O ensino de Língua Portuguesa passa a ser
fundamentado, nos documentos oficiais, no trabalho com o texto. A partir do trabalho oral,
escrito etc., o aluno, através de um dialogismo, pode aprender sobre a língua.
Outro ponto de fulcral importância para a análise dos dados coletados está na aula
sobre variação linguística, em que os alunos com sotaques de Rio Grande do Norte e do Rio
de Janeiro mostraram-se entusiasmados em compartilhar com os colegas conhecimentos
sobre suas variedades linguísticas. O aluno natural do Rio de Janeiro elencou uma série de
expressões regionais típicas de sua variedade, tais como “gastação” e “caô”. Os colegas de
turma divertiram-se ao tentar adivinhar o significado das expressões. Foi justamente nesse
ponto em que um aluno mencionou a importância do ensino da variedade padrão da Língua
Portuguesa. Caso contrário, não seria possível estabelecer comunicação compreensível em
todo o território nacional.
Assim, tal discussão torna-se extremamente produtiva e necessária, uma vez que o
discurso que circula comumente entre os alunos é o de que há uma forma certa ou errada de
se falar - o que excluiria todas as variedades linguísticas a não ser a variedade padrão - ou
que, se não há uma forma errada de se falar, qual seria a importância, então, de se aprender
gramática e a norma padrão nas escolas? Tais dúvidas parecem ter sido esclarecidas, de modo
prático, durante a discussão estabelecida, mas não resolvidas, evidentemente, dada a
complexidade e inesgotabilidade do assunto em questão. A variação linguística ainda é tema
de profundas indagações em sala de aula. Dante Lucchesi (2006), de modo sintético,
estabelece algumas bases para o entendimento da problemática de hierarquização entre as
normas linguísticas:
A identificação de distintos sistemas de avaliação social de variantes
lingüísticas e processos independentes de variação e mudança dentro do cenário
lingüístico brasileiro foi o fundamento da visão de uma realidade lingüística
brasileira polarizada, distinguindo, como unidades autônomas de análise, os padrões
de comportamento lingüístico dos segmentos funcionalmente escolarizados, que
ocupam o topo da pirâmide social, frente às variedades lingüísticas da grande
maioria da população brasileira, alijada da educação e demais direitos sociais.
Define-se, assim, uma oposição entre uma norma lingüística culta e uma norma
lingüística popular, ou vernácula, no grande e complexo diassistema do português
brasileiro. (LUCCHESI, 2006, p. 86)

Assim, Lucchesi mostra que a base da discussão a respeito das normas linguísticas
socialmente aceitas - ou não - está calcada essencialmente no pertencimento a uma esfera
social de acesso à escolarização. Ou seja, as normas linguísticas consideradas socialmente
inferiores parecem não estar associadas ao acesso à educação formal. Talvez neste ponto
resida a dificuldade dos alunos com sotaques diferentes ao da variedade paulista em se
manifestarem e abrirem os microfones durante as aulas on-line. Parece haver um receio de
não serem aceitos ou serem estigmatizados em relação à turma. Por isso, torna-se tão
importante discutir em sala de aula o fato de que o ensino de Língua Portuguesa nas escolas
está voltado à variedade padrão e que isso não pressupõe a exclusão de outras variedades de
menor prestígio social.

V. Considerações finais

Portanto, a experiência em sala de aula, estruturada em torno das 40 horas de estágio


supervisionado para a disciplina de MELP I, possibilitou dados de observação extremamente
inquietantes, os quais são capazes de se fazer (re)pensar criticamente as abordagens de
conteúdos relativos à Língua Portuguesa para as turmas de Ensino Fundamental II.
Em virtude da necessidade de brevidade, este estudo sintetizou - em muito - a
experiência vivida em espaços de ensino e aprendizagem e optou-se por elencar somente os
momentos mais importantes e característicos das práticas de sala de aula, seja ela física ou
virtual. No entanto, tais dados relatados, ainda que breves, deixaram entrever pontos
necessários de discussão e reflexões a respeito de questões relativas ao exercício docente com
base em oralidade, escrita, literatura e gramática, a partir do trabalho com o texto, no
desenvolvimento de noções de autoria atrelada à reescrita e mobilização de conhecimentos
particulares do aluno para o seu desenvolvimento enquanto leitor capaz de compreender o
texto em sua totalidade.

Referências bibliográficas

ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Campinas, SP:
Papirus, 1995.
CORREIA, Mônica F. B. A constituição social da mente: (re)descobrindo Jerome Bruner e
construção de significados. Estudos de Psicologia, v. 8, n. 3, pp. 505-513, set./dez. 2003.
DAIBELLO, Cláudia de Oliveira. & OMETTO, Cláudia Beatriz de C. N. “A leitura pessoal
de literatura na escola como possibilidade de formação do leitor: contribuições da leitura
subjetiva”. In: Linha Mestra, Associação de Leitura do Brasil, n. 40, pp. 95-104. jan./abr.
2020.
GERALDI, J. W., SILVA, L. L. M. & FIAD, R. S. Linguística, Ensino de Língua Materna e
Formação de Professores. In: D.E.L.T.A., São Paulo, vol.12, nº 2, pp. 307-326, 1996.
GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história. 7. ed. Trad. Attílio Brunetta. Petrópolis:
Vozes, 2005.
LUCCHESI, Dante. “Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro”. Revista da
Abralin, v. 5, n. 1 e 2, p. 83-112, dez. 2006.
PIETRI, Émerson. “Sobre a constituição da disciplina curricular de língua portuguesa.”
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ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito
leitor? Tradução de Neide Luzia de Rezende e Gabriela Rodella de Oliveira. Cadernos de
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SMITH, Frank. “Leitura significativa”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
POSSENTI, Sírio. “Ensinar o estilo?”. Calidoscópio. v. 5 n. 1: Janeiro/Abril, 2021.

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