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NARRATIVAS ORAIS DE UMA HAITIANA SOBRE PROFESSORES

NO BRASIL E HAITI: UMA ABORDAGEM DO DIREITO À


EDUCAÇÃO

GIOVANI GIROTO*
ERCÍLIA MARIA ANGELI TEIXEIRA DE PAULA**

Introdução

Compreender a formação da sociedade, desde o início da humanidade até os dias


atuais, implica reconhecer que as migrações contribuíram nessa construção. Seja por questões
econômicas, culturais, religiosas, políticas, ambientais ou por algum outro motivo, homens e
mulheres ao longo da história emigraram de seus países de origem e tornaram-se imigrantes
no Brasil. O ato de migrar não afeta apenas aqueles que de fato se deslocam geograficamente,
mas também seus descendentes e demais pessoas do novo convívio social.
Existem dois tipos de imigração: as voluntárias e as forçadas. Trata-se de uma
imigração voluntária aquela na qual as pessoas saem de seus países por vontade própria, ou
seja, arbitrariamente se deslocam para outro país, temporariamente ou não. Já as imigrações
forçadas são aquelas nas quais a pessoa precisa sair de seu país por correr algum tipo de risco,
como é o caso dos refugiados, por exemplo.

O conceito de refugiado é objeto de questionamentos perante a insurgência de novos


desafios. A depredação e a poluição do meio ambiente, com todas as consequências
que acarretam, provocaram a formação dos assim chamados “refugiados
ambientais”. Eles não fogem de um conflito armado ou da perseguição do poder
político, mas da seca, da desertificação do território ou de outras catástrofes naturais
(MARINUCCI e MILESI, 2003, p. 14-15).

Observamos que os refugiados ambientais são identificados por aqueles povos que
precisaram se deslocar forçadamente por conta de catástrofes naturais e/ou qualquer outro tipo
de modificação no ambiente que prejudique a vida no local. De acordo com Almeida (2017), a
população do Haiti vivenciou uma ditadura e, mesmo no processo de redemocratização,

*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPE, pela Universidade Estadual de Maringá –
UEM.
**
Professora Doutora Adjunta do quadro efetivo do Departamento de Teoria e Prática da Educação e professora
do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação – PPE, da Universidade Estadual de
Maringá – UEM.
sofreu golpes militares, o que gerou instabilidade econômica e política, empobrecimento e
saída dos haitianos do país. Além disso, “outro fator que deve ser pontuado como propulsor
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do êxodo haitiano são os desastres naturais que ocorrem com frequência no país”
(ALMEIDA, 2017, p. 57), forçando a saída de sua terra, marcada por “situações que mostram
a complexidade socioeconômica e política de uma população que passa a lutar por um direito
básico: a sobrevivência” (ALMEIDA, 2017, p. 72).
Devido à situação de insegurança nas qual essas pessoas se encontram, o Brasil, que é
um dos países de acolhida, passa a conceder visto humanitário para imigrantes haitianos.
Porém, ao chegar em território brasileiro, muitos ainda apresentam dificuldades de sair da
condição de vulnerabilidade. Os obstáculos que os haitianos enfrentam no Brasil são diversos
e semelhantes aos que viviam no país de origem. Além disso, passam também a vivenciar
novos conflitos, seja devido a problemas de comunicação, por conta de a língua ser diferente,
ou relacionados a casos de preconceito racial.
Presumir que esses imigrantes precisam lutar por sua sobrevivência, mesmo no país de
abrigo, parece-nos contraditório. Entretanto, de acordo com Freire (2001),

É exatamente a partir dessas contradições que nascem os sonhos coletivamente


sonhados, que temos as possibilidades de superação das condições de vida a que
estamos submetidos como simples objetos para tornarmo-nos todos e todas Seres
Mais. A epistemologia de Paulo nos convence e convida, sobretudo a nós educadores
e educadoras, a pensar e optar, a aderir e agir projetando ininterruptamente a
concretização dos sonhos possíveis cuja natureza é tanto ética quanto política.
(FREIRE, 2001, p. 15-16).

Aqui chegamos ao nosso ponto central: o papel do professor frente à desigualdade e ao


desafio de formar indivíduos, que, talvez mais que nunca, precisaram da educação para
garantir uma inclusão social. Pensar sobre educação em contextos sociais de vulnerabilidade
requer uma atenção especial. Dessa forma, o artigo tem o objetivo de responder à seguinte
pergunta: qual deveria ser a identidade do professor que leciona para alunos haitianos no
Brasil? A partir de cartas escritas e faladas de uma haitiana residente na região noroeste do
Paraná, nossos objetivos são conhecer o modo de vida no Haiti e os motivos para emigrar, a
comparação da identidade do professor no Haiti e no Brasil, e, por fim, a construção de uma
identidade para o professor que atua com alunos imigrantes. A metodologia utilizada
constituiu-se de escrita de cartas e diálogos com o pesquisador para análise dos dados.

História oral como recurso metodológico


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Apresentamos, primeiramente, uma breve fundamentação teórica sobre as reflexões e


caracterização da atuação docente em diferentes contextos. Nossa base é formada por textos
de Arroyo (2000), Freire, (1997), Paiva (2015) e Paula (2009).
Buscamos uma metodologia que se aproximasse ao máximo do saber popular e
permitisse “que a própria pessoa conte o que considera relevante, ao mesmo tempo em que
reflete sobre suas experiências. Essa perspectiva trata os indivíduos como capazes de serem
construtores e participantes da história” (CAPELLE, BORGES e MIRANDA, 2010, p. 6).
Nossa fonte oral é a história de vida de uma imigrante haitiana que reside em Maringá,
Paraná. Após entrevistas sobre as diferenças e semelhanças entre o Haiti e o Brasil, ela foi
convidada a escrever uma carta que abordasse sua história de vida, as diferenças entre a
escola e os professores do país de origem e do país de acolhida, bem como as principais
características necessárias a um professor que lecionasse para imigrantes. Porém, a
argumentação foi comprometida devido à sua dificuldade de escrita em português, pois fala e
escreve em francês e crioulo devido às línguas oficiais do seu país e por estar há pouco tempo
no Brasil. Dessa maneira, optamos por abordar os mesmos temas com base na entrevista
narrativa como método. A narrativa gravada em áudio, com a autorização da nossa
entrevistada, foi transcrita e mantida ao máximo de proximidade com a identidade de fala
haitiana, o que não acarretou nenhuma alteração de conteúdo, apenas forma. Tal prática
trouxe um olhar mais humano para a questão dos imigrantes que vivem no Brasil,
considerando-os protagonistas de suas próprias trajetórias e anseios.
A partir da leitura dos autores, observação e conversas informais com a aluna, além
dos métodos formais (carta e narrativa oral), pudemos conhecer mais sobre a história da
aluna, bem como conhecer mais sobre seu país. Depois tivemos acesso às comparações entre
ambos os países no que concerne ao papel do professor até chegar à identidade do professor
que intencionamos com o texto. Tal prática trouxe um olhar mais humano para a questão dos
imigrantes que vivem no Brasil, considerando-os protagonistas de suas próprias trajetórias e
anseios: a de definir quem é o professor ideal para sua formação.

Formação docente de múltiplas identidades e múltiplos contextos

É válido considerar que não há uma única definição de professor ou professora. Trata-
se de uma profissão que se traduz em múltiplas maneiras de acordo com o público do qual o
professor é parte. Tem sua variação de acordo com o contexto, o tempo, os recursos, a língua,
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a formação, dentre muitos outros fatores que se somam nessa conta e resultam sempre no
plural. De acordo com Arroyo (2000), existem

diferentes formas de ser professor e professora. Não somos apenas professores de


primário, fundamental, médio ou superior. Somos vistos com traços bem
diferenciados e terminamos vendo-nos e vendo o magistério com traços bem
diferenciados. Somos diversos. Há imagens sociais diversas do magistério e auto-
imagens diversas também (ARROYO, 2000, p. 30).

O ofício de ser professor é muitas vezes atribuído de acordo com o nível no qual se
trabalha. Existem diferentes perspectivas do atuar pedagógico, como já vimos acima, e muito
disso é caracterizado pela faixa etária dos alunos, condição econômica ou até mesmo contexto
social. Essas variações produzem imagens e autoimagens desses profissionais que assim
compõem suas histórias, vivências e aprendizados.
Os muros da escola tradicional limitam também possibilidades de uma pedagogia que
se aproveite ainda mais daquilo que a cultura tem a oferecer. “As novas gerações que
frequentam as escolas reconhecem que fora da escola há muitas vivências a experimentar e
muitos saberes a aprender” (ARROYO, 2000, p. 55). Isto é, a instituição escolar formal não é
o único espaço de formação e os próprios alunos juntamente à comunidade escolar passam a
perceber a riqueza de ampliar os espaços de formação. Como resultado nota-se uma
aproximação maior da realidade local. Por esse viés podemos considerar que é possível
ensinar em outros espaços, tais como ONGs, associações, igrejas, clubes, parques e até
mesmo na rua.
Devido à multiplicidade de contextos nos quais professores e professoras podem atuar,
a formação e identidade desses profissionais, também múltiplas, voltam a ser o centro de
nossa análise. Em relação aos educadores sociais de rua é possível perceber uma forte imagem
identitária. Trata-se daqueles que “ainda sonham, e talvez essa seja uma de suas mais belas e
intocáveis habilidades, sonhar com (im)possibilidades possíveis” (PAIVA, 2015, p. 30). Em
tal caso, observamos que a rua, além de ter a imagem de vulnerabilidade, também pode ser
imagem de saber. Além disso, é visível que a identidade desse educador é marcada pela luta
por direitos, pela esperança e pela aptidão de ensinar mesmo sem tantos recursos.
De acordo com Paula (2009), “o movimento de discussão da Pedagogia Social vem
ganhando novos contornos e problematizando a formação de professores alheios às questões
sociais, culturais e econômicas das classes populares” (PAULA, 2009, p. 6143). Ou seja, ao
passo em que crescem as discussões acerca da educação em espaços não escolares, também
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cresce a crítica aos profissionais da educação que se portam com indiferença frente a casos de
vulnerabilidade.
Educar é um ofício que está sempre em movimento, visto que cada aluno, cada escola,
cada contexto, cada prática, são universos, tanto singulares, por serem únicos, ímpares, quanto
plurais, no sentido de agregar conhecimentos e nunca desconsiderar que existe sempre um
“outro”.
Nosso ofício é revelar as leis da natureza, a produção do espaço, da vida, ensinar
matérias... mas sobretudo relevar-nos às novas gerações, revelar a humanidade, a
cultura, os significados que aprendemos e que vêm sendo aprendidos na história do
desenvolvimento cultural.
[...]
Aprendemos que educar é revelar saberes, significados, mas antes de mais nada
revelar-nos como docentes educadores em nossa condição humana. É nosso ofício. É
nossa humana docência (ARROYO, 2000, p. 66-67).

Antes de ser professor ou professora, aqueles que carregam tal ofício são humanos.
Mesmo com atribuições específicas e objetivas, mesmo o mercado e o Estado com cobranças
de saberes técnicos e/ou que visem apenas ao conhecimento estrutural contidos nos livros
didáticos. Mesmo sem o devido reconhecimento diário em sua profissão, os educadores têm o
potencial de promover humanidade, conhecer, manter e recriar a cultura e com isso considerar
cada aluno e a si mesmo nos processos históricos. Ser professor é uma tarefa muito ampla,
desafia a própria profissão, dificulta traduzir-se em um único conceito. Todavia, se fosse
preciso resumir em algo que sirva para todos os diferentes campos de atuação, poderíamos
dizer que educar é devolver o humano a ele mesmo.

Uma análise sobre história de vida e educação entre Haiti e Brasil

O estudo foi dividido em duas etapas: a primeira composta pela apresentação da aluna
e sua história de vida, seguida de comparações entre Haiti e Brasil, com ênfase na cultura
escolar e conduta dos professores, enquanto que a segunda é marcada pela caracterização do
ofício buscada ao longo do artigo, ou seja , a partir da perspectiva de uma haitiana,
compreender quais seriam os atributos fundamentais para um professor que atua junto a
imigrantes no Brasil. Recortamos trechos das narrativas, seja por meio da carta ou da
narrativa oral transcrita para fundamentar nossa análise e reflexão.
A partir de sua apresentação e história de vida buscamos aproximar e humanizar esta
pesquisa ao trazermos especificamente a perspectiva dessa aluna. Em uma de suas cartas, ela
conta que
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Primeiramente, minha vida, eu vivia com minha mãe só. Meu pai é separado de
minha mãe. Depois eu morei com minha mãe, meu padrasto e minha meio irmã. Eu
estudei todo o tempo na escola particular e foi minha mãe que fez tudo. Depois
conheci meu pai com 15 anos e com dois meses ele faleceu. Eu estudei desde
pequenininha até os 18 anos. Eu fiz tudo, tudo, tudo da classe. Depois comecei a
trabalhar e entrei na faculdade e depois de três anos meu tio me pediu pra vir aqui
(Brasil). Eu larguei a faculdade e vim pra cá. Cheguei no Brasil e descobri que estava
grávida. Aqui eu não tenho emprego formal e também não estou na faculdade. Agora
eu tenho 2 anos e 3 meses aqui e quero estudar mais. (ETANA, 2018).

O contexto familiar é marcado pela figura da mãe como central. Após dizer que os
pais eram divorciados, ela traz a afirmação de que a mãe foi a principal responsável por sua
formação. A relação familiar é marcada pelo convívio com o padrasto e sua filha, assim como
pelo falecimento do pai, que foi um marco em sua trajetória considerado na apresentação.
Uma das fortes características do Haiti, em relação à educação, é a privatização do
ensino, o que demarca uma “separação das classes sociais. Desde o início do sistema, com os
primeiros governantes haitianos, as poucas escolas nacionais existentes eram procuradas
somente pelas classes abastadas” (JOINT, 2008, p. 183-184). Dessa forma, é possível
considerar que ao narrar sobre sua escolarização no Haiti, a aluna informa que sua formação
se deu em escolas privadas. Além disso, sabemos que o Haiti é um país que também apresenta
índices altos de cidadãos não escolarizados. Nesse sentido, a condição social da aluna no Haiti
não era de vulnerabilidade. A vinda ao Brasil foi impulsionada pela figura do tio (também
haitiano), que já residia no país de acolhida.
Todavia, se seu passado não era marcado por condição de vulnerabilidade, seu
presente aponta para tal cenário, uma vez que no território brasileiro ela não tem trabalho
formal e acesso ao ensino superior, como tinha no Haiti. Fora isso, ainda tem o fato de que lá
ela era filha e aqui se fez mãe, uma responsabilidade a mais em sua luta pela vida digna no
Brasil.
A narrativa de apresentação também é marcada pelo anseio de estudar e buscar
formação acadêmica no Brasil. Nas conversas informais, ela expôs que, após se formar no
Brasil, deseja voltar para sua terra e fundar um instituto social. Ao falar sobre sua relação com
a escola e os professores, e também sobre a educação no Haiti, ela anuncia que

Na verdade eu amo a escola e os professores também, mas é difícil, amigo. Eles


querem você interessado na escola, na atividade, se você não quer estudar eles te
batem. Não é fácil não. Na faculdade não é assim, mas eles pedem pra vir com
parente as vezes na reunião. Eles pedem pra conhecer o seu parente. Não pode sair
qualquer hora que quiser, não pode vir com o que quiser, por exemplo um shorts. E
eles não querem os homens com cabelo de trança. Bastante coisas, mas é legal. Tem
que ir com a forma pra ir pra escola. Não pode perder aula. Se perder vai ter
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punição. Se o curso acaba com 4 horas, você vai ficar até 6 horas. Você vai ter uma
hora e meia pra ler o livro e depois pra fazer resumo. É difícil... (ETANA, 2018).

O apreço pela escola é demonstrado logo no início de sua fala quando é posta a
consideração do espaço escolar e também dos professores. Porém, a aluna faz menções às
dificuldades enfrentadas no ensino haitiano, como, por exemplo, o rigor autoritário dos
professores, que permite inclusive agressões físicas justificadas pelo objetivo de fazer o aluno
focar nos estudos na educação básica. Outra informação de destaque é a aproximação da
família, até mesmo nas instituições de ensino superior. Ou seja, as famílias haitianas
continuam responsáveis por seus filhos nos espaços universitários, o que implica a baixa
autonomia desses jovens e adultos.
A rotina de um aluno de graduação é apresentada como regrada na fala da aluna.
Percebe-se uma conduta específica esperada pelos estudantes de graduação, que vai desde a
indumentária, cuidados com higiene e estética pessoal, além da rigidez com a frequência e
pontualidade. Em casos nos quais não se obedeçam a tais normas, são aplicadas punições com
fins pedagógicos e formativos.
Em comparação à sua perspectiva da educação no Brasil, vemos que:

Aqui é muito diferente, sabe? Diferente porque você ama de verdade o que você faz,
você me deu seu tempo, você não tem pressa pra finalizar, mas se eu for na escola de
verdade eles vão ter pressa pra acabar com o livro, entendeu? E minha amiguinha
(professora de português) me deu o tempo dela também, o apoio, dizia “você pode
falar isso, você não pode falar isso”. Depois, na escola eu fiz um curso técnico. Foi
legal, mas eu não tinha um professor de verdade que me ensinava. Eu ia e colocava
meu fone e trabalhava sozinha no computador. Só se eu tivesse alguma coisa pra
falar eu entrava lá na administração e pedia pra uma pessoa e ela vinha me ensinava
e acabava. (ETANA, 2018).

O afeto e a estima pela profissão são pontos elencados como diferentes entre a
educação haitiana e brasileira. Os referenciais de professor no Brasil foram refletidos a partir
de dois casos de educação em espaços não escolares, pois o único contato com um ensino
mais formal foi desenvolvido a partir de uma instituição de ensino à distância, na qual a aluna
se via sozinha frente à sua formação.
Um ponto que nos chama a atenção é a característica de gratidão que a aluna tem em
relação ao tempo cedido por seus professores. Essa qualidade é o que distingue esses
professores daqueles que trabalham em instituições escolares, defendida pela aluna como
“escolas de verdade”. Há uma observação de que esses professores dos espaços não escolares
são mais sociais e mais preocupados com o desenvolvimento individual dos alunos, enquanto
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que os professores vinculados às instituições escolares estão mais preocupados em cumprir o


material didático.
Por fim, além de distinguir as formas de educação, a aluna faz menção à professora de
português como sua “amiguinha” enquanto que, no mesmo trecho, faz referência aos
“professores de verdade”. Essa separação tem origem na forma de ensino, relacionamento
entre professor-aluno e também espaço físico no qual as aulas são praticadas. Admite-se que o
ensino não formal é mais efetivo por atender a necessidades mais emergentes e mais pessoais,
enquanto o ensino formal atende a um conteúdo programático sem olhar a quem se destina.
Porém, supõe que o ensino não formal é temporário, flexível e não tem valor documental,
dessa forma, a busca por educação em instituições ainda é priorizada pela aluna.
Uma última proposta da carta solicitada à aluna era que registrasse características
essenciais que um professor brasileiro deveria ter ao lecionar para alunos imigrantes. A partir
disso, começamos a construir a identidade que este artigo propõe. Por esse ângulo, a aluna
expressa que “na verdade, pode ser um professor igual o professor dos brasileiros, mas vai ter
problema para conversar com nós. Eu acho que o professor tinha que fazer um curso da outra
língua para aprender a falar com os alunos” (ETANA, 2018).
O começo da sua fala é marcado pela não necessidade de se ter um professor
específico, diferente por conta de ser imigrante, todavia, logo em seguida ela aponta a língua
como um fator que prejudica a comunicação, automaticamente prejudicando a compreensão
do aluno em relação aos conteúdos mediados pelo professor. Mais adiante, a aluna
considerou que os professores brasileiros

têm que ajudar a ler e escrever também, entendeu? Mas pra falar o português é
difícil. Eles têm que começar na base, aprender os verbos, o alfabeto, fazer essas
coisas. Se você fizer essas coisas eu vou conhecer como fala e como escreve também.
É só me falar “essa é a televisão, essa é uma coisa, essa fecha, essa abre”, ensinar
como eu vou fazer pra falar. Tem que ter bastante paciência pra ajudar. Se vai me
ensinar alguma coisa eu vou ter um problema pra entender rapidinho, mas se Deus
quiser, pode ser! Mas se o professor não tiver paciência, não vai poder me ajudar de
verdade. Vai me dizer “ah, você não sabe nada”. Pra fazer tudo, tem que ter
paciência, não é? (ETANA, 2018).

Etana apresenta pela segunda vez argumentos que denotam uma aprendizagem mais
técnica, mais prática e mais associada ao treinamento que realmente ao ensino. A primeira
delas ao citar a professora de português, que orientava coisas que ela poderia ou não dizer, e
agora ao hipoteticamente descrever a atuação de um professor que ensina a língua nacional
brasileira. O fator de tal impressão é entendido dessa forma pela urgência de aprender a língua
e demais conhecimentos de forma rápida, pois também é uma questão de sobrevivência.
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Porém, os imigrantes também são merecedores de participar de práticas pedagógicas


mais críticas, isso não pode ser ignorado. É visto também que ela considerou o ato de ensinar
para imigrantes indissociavelmente do ensino da língua. Ou seja, independentemente do nível
de ensino, os professores precisam estar atentos à escrita, leitura e comunicação oral. É
preciso corrigir e auxiliar seus alunos para uma melhor compreensão da língua.
De forma gratuita, surge o primeiro atributo desse professor: a paciência. De acordo
com Arroyo (2009),

O educador que considera a educação como formação integral do ser e não como um
treinamento, tem que ser coerente com a maneira de falar com seus alunos: não de
cima para baixo, impositivamente, como se fosse dono de uma verdade a ser
transmitida para os outros, mas falar com escutá-los paciente e criticamente.
(ARROYO, 2009, p. 55).

A relação professor-aluno precisa ser colaborativa, respeitosa e também composta por


afeto. Um professor não pode considerar a aprendizagem efetiva de seu aluno se não leva em
conta o tempo necessário para que esse aluno aprenda, se não há uma comunicação
colaborativa e se não há confiança. Cabe ao professor o [...] “cultivo da sensibilidade e
paciência pedagógica para esperar os tempos do aprender”. (ARROYO, 2009, p. 29).
Por fim, a aluna finaliza com a seguinte consideração: “acho que as características do
professor, então, precisam ser paciência, tolerância e apoio” (ETANA, 2018). Nesse sentido,
pontuamos uma definição de Freire (1997) ao anunciar que “a tolerância é a virtude que nos
ensina a conviver com o diferente. A aprender com o diferente, a respeitar o diferente”
(FREIRE, 1997, p. 39). Ou seja, nas relações pedagógicas, lidamos comumente com os
diferentes, porque em nosso meio social assim também o é. Ser tolerante e possibilitar
respeito e empatia com o outro é um ponto imprescindível da identidade do professor.
Para encerrar esta seção aprofundamos o conceito de “apoio” como um componente da
identidade de professores pela perspectiva de Etana. Fundamentados em Freire (1989), vemos
que “a luta do educador é caminhar com o aluno no sentido de ajudá-lo a tornar-se efetivo,
integrante e transformador, através de uma convivência participativa e questionadora”
(FREIRE, 1989, p. 15). Demonstrar apoio é fundamental para a aprendizagem, seja em
espaços escolares ou não escolares.
Este trabalho teve uma dupla jornada: investigar a perspectiva da aluna haitiana ao
passo em que trabalhávamos no projeto do grupo de estudos preparatório para o vestibular.
Chegando ao fim dos dias de aplicação das provas, recebemos uma mensagem escrita no
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grupo virtual que criamos para facilitar a comunicação entre os envolvidos. O texto curto, mas
significativo, de autoria de Etana nos surpreendeu ao registrar a seguinte mensagem:

Olá, nada vale a vida, mas a vida vale tudo. Nesta curta frase, gostaria de
agradecer a Professora Ercília que, apesar das limitações de tempo, nos deu um
homem, um irmão, um conselheiro e um todo, que não é outro senão o nosso
Professor Giovani. Giovani Sinto falta das palavras para criar para agradecer por
sua devoção sua coragem sua paciência e tolerância, continue sendo o homem ideal
que você é, não mude. Agora estamos aguardando os resultados, obrigada
novamente e que Deus se dignou a abençoar grandemente sua vida espiritual e
social. (ETANA, 2018).

A gratidão em relação ao tempo e dedicação é algo que nos chamou atenção durante a
abordagem da pesquisa. Agradecer pelo tempo foi algo que consideramos bastante
significativo e original ao partir do trabalho com uma pessoa imigrante. Infelizmente as
alunas não obtiveram aprovação no vestibular, porém, a resistência e a persistência continuam
na busca do sonho. Sonho este que passa a ser não só das alunas, mas também dos
professores. Formar professores apoiadores pode fazer a diferença na vida de humanos de
todas as idades que, por precisarem emigrar, buscam formação e trabalho no Brasil. “Educar é
revelar saberes, significados, mas antes de mais nada revelar-nos como docentes educadores
em nossa condição humana. É nosso ofício. É nossa humana docência. (ARROYO, 2000, p.
67).

Considerações finais

Em suas cartas, Etana nos conta sobre sua trajetória escolar no Haiti e afirma buscar
uma continuação de seus estudos no Brasil – trata-se de um sonho possível. Observamos em
nossas análises uma consideração favorável aos ambientes escolar e universitário, assim como
um carinho e respeito pelo papel que o professor exerce. Ao comparar a educação haitiana à
brasileira, a aluna destaca o afeto dos professores brasileiros como um fator positivo, uma vez
que no Haiti os professores possuem uma conduta mais autoritária. Além disso, o sentimento
de gratidão aos professores que prestaram apoio à aluna no Brasil é muito presente em seu
texto.
Finalmente, retomamos nossa pergunta inicial: qual deveria ser a identidade do
professor que leciona para alunos haitianos no Brasil? A partir das vivências e ideias de Etana
em relação à sua formação, vemos que em um primeiro momento defende que não deveria
haver diferenças entre o professor atuante junto a brasileiros ou estrangeiros. A partir disso,
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concluímos que os estrangeiros que têm o Brasil como país de acolhida não querem serviços
diferentes daqueles oferecidos aos brasileiros, ou seja, querem ser tratados de forma
igualitária. Porém, quando levamos em consideração todos os desafios e percalços diários dos
haitianos, por exemplo, entendemos que ofertar o mesmo ensino não é sinônimo de igualdade.
A partir disso, Etana considera que esse professor em questão precisa ter três
características fundamentais: paciência, tolerância e apoio. Isso significa que essa humana
docência que defendemos é essencial para a formação dos haitianos que vivem no Brasil, pois
antes mesmo de compreender conteúdos, precisam romper a barreira da língua e da
sobrevivência. O Brasil não dá garantias de bem-estar social para imigrantes em
vulnerabilidade e não garante formação acadêmica. Assim sendo, a persistência é uma
característica que encontramos em muitos imigrantes, como é o caso de Etana, que, além de
cuidar de seu filho e trabalhar fora de casa, mesmo que informalmente, ainda conseguiu se
dedicar aos estudos e ao exame de vestibular. Essa persistência não vem só, é acompanhada
do senso de gratidão e da luta contínua por realizar os sonhos que nunca deixarão de ser
possíveis.

Referências

ALMEIDA, Cristóvão Domingos de. Haitianos no Brasil e sua relação com a


comunicação, o consumo e o trabalho. São Paulo: Paulus, 2017.
ARROYO, Miguel, G. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.
ARROYO, Miguel, G. Imagens quebradas: Trajetórias e tempos de alunos e mestres.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
CAPELLE, Mônica Carvalho Alves. BORGES, Ceyça Lia Palerosi. MIRANDA, Adílio Rene
Almeida. Um Exemplo do Uso da História Oral como Técnica Complementar de Pesquisa em
Administração. In: VI Encontro de estudos organizacionais da ANPAD. Florianópolis,
Santa Catarina, 2010. Disponível em: http://www.anpad.org.br/admin/pdf/eneo117.pdf
Acesso em: 11 dez 2018.
FREIRE, Paulo. Educadores de rua: uma abordagem crítica: Alternativas de entendimento
aos meninos de rua. Bogotá, Colômbia: Gente Nueva, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
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FREIRE, Paulo 1921-1997. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Araújo (Org.) São
Paulo: UNESP, 2001. 299p.
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MARINUCCI, Roberto. MILESI, Rosita.. Introdução. In MILESI, Rosita (Org). Refugiados:
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