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Acredito que algumas das questões mais importantes que devemos nos fazer,
como professores, mas também educadores em geral, e adultos, são essas:
1 Uso "cumplicidade" aqui no sentido de aliança ou solidariedade, que fazem as crianças e os adultos se
sentirem como se estivessem unidos, ligados por um desejo comum de compreender e conhecer e de
serem capazes de lutar e de se alegrar juntos.
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É por essa razão que eu gostaria de refletir um momento sobre aquilo que
chamamos, embora não seja original, a "pedagogia relacional e da escuta", que se
origina precisamente da ideia de que as crianças são os mais ávidos [p.207]
investigadores do significado e da significância, e produzem teorias interpretativas. Essa
ideia constitui não apenas a gênese dessa pedagogia relacional e da escuta, mas também
a possível origem de uma "criatividade relacional". Tanto para adultos quanto para
crianças, como afirmei anteriormente, entender significa elaborar uma interpretação, o
que chamamos de "teoria interpretativa", ou seja, uma teoria que dá significado às
coisas e aos eventos do mundo uma teoria no senso de uma explicação satisfatória.
Pegamos o termo "teoria", que normalmente tem uma conotação muito séria, e o
transformamos num direito de todo dia, reconhecendo esse direito na criança que
definimos como "competente".
Uma criança de três ou quatro meses de vida é capaz de desenvolver teorias?
Gosto de pensar que sim, porque sinto que essa convicção pode levar a uma abordagem
diferente e, em particular, aos conceitos de escutar e de criatividade relacional. Uma
teoria, portanto, é vista como uma explicação satisfatória, embora também provisória. É
algo mais do que simplesmente uma ideia ou grupo de ideias; deve ser prazerosa e
convincente, útil e capaz de satisfazer nossas necessidades intelectuais, afetivas e ainda
estéticas. Ou seja, deve nos dar a sensação de completude, que produz a sensação de
beleza e satisfação.
De certa maneira, se possível, uma teoria deve ser prazerosa para os outros
também, e precisa ser ouvida pelos outros. Isso permite transformar um mundo
intrinsecamente pessoal em algo partilhado: meu conhecimento e minha identidade
também são construídos pelo outro. Compartilhar teorias é uma forma de resposta à
incerteza e à solidão. [p.208]
Eis aqui um exemplo. Uma criança de três anos disse o seguinte: "O mar nasce
da mãe onda." Essa criança elaborou o conceito e está desenvolvendo a ideia de que
tudo tem uma origem. Reunindo todos os elementos que possui de modo criativo, ela
formula uma explicação satisfatória e, enquanto elabora o conceito, divide-a com os
outros. Eis outros exemplos:
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metafórico -, deixa de ser apenas uma palavra e se torna uma abordagem sobre a vida. É
assim que entendemos seu significado: escutar é uma atitude que requer a coragem de se
entregar à convicção de que o nosso ser é só uma pequena parte de um conhecimento
mais amplo; escutar é uma metáfora para estar aberto aos outros, ter sensibilidade para
ouvir e ser ouvido, em todos os sentidos. É uma palavra que não deveria ser dirigida
[p.209] somente às crianças. Em particular, escutar é dar a si próprio e aos outros um
tempo para ouvir. Por trás de cada ato de escuta, há um desejo, uma emoção, uma
abertura às diferenças, a valores e pontos de vista distintos. Por conseguinte, devemos
escutar e dar valor às diferenças, aos pontos de vista dos outros, sejam homens,
mulheres ou crianças, especialmente para lembrar que, por trás de cada ato de escuta,
restam a criatividade e a interpretação de ambas as partes. Desse modo, escutar é dar
valor ao outro; não importa se você concorda ou não com ele. Aprender a escutar é uma
tarefa difícil; é preciso se abrir para os outros, e todos nós necessitamos disso. A escuta
competente cria uma profunda abertura e uma forte predisposição à mudança.
Escutar é uma premissa para qualquer relacionamento de aprendizado. É claro
que o aprendizado é algo individual, mas também sabemos que é possível elevá-lo a um
patamar mais alto quando existe a possibilidade de agir e refletir sobre o mesmo.
Representar o ato de aprender e ser capaz de dividi-lo com os outros é indispensável
para a reflexividade que gera conhecimento. Desse modo, imagens e intenções são
reconhecidas pelo sujeito; elas tomam forma e evoluem por meio da ação, da emoção,
da expressividade e das representações icônicas e simbólicas. Essa é a base geradora das
linguagens, do aprendizado e da criatividade.
O conceito que mencionamos antes sobre o mar e a onda mãe foi provavelmente
uma resposta dada a urna questão, havia um contexto específico, e poderia ter sido ainda
mais maravilhoso e poderoso se pedíssemos à criança que o [p.210] representasse
graficamente. Para ser mais explícita: vamos pegar o exemplo de um desenho feito por
Federica (com a idade de três anos e dois meses) e ver como ela resolve o problema de
retratar um cavalo correndo (ver a figura 1).
Federica sabe que cavalos têm quatro patas; ela vira a folha de papel e desenha
as outras duas patas no verso (ver figura 2).
Ela conseguiu juntar linguagens múltiplas e aprendeu a codificá-las: isso é
expressividade, é criatividade. Uma solução semelhante foi encontrada por uma
garotinha de cinco anos que pegou o pedaço de papel e o colocou contra a janela,
fazendo traços no outro lado.
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Esses são momentos extremamente criativos, tanto no nível cognitivo quanto no
expressivo; as duas meninas buscaram a tridimensionalidade num meio bidimensional.
Figura 1
[p.211]
O que emerge com clareza aqui é uma imagem particular da criança e do
educador, assim como uma cultura de escuta. Por um lado, há escolas que não ouvem
nesse sentido, pois têm um currículo a seguir e tentam corrigir os "erros" imediatamente,
a fim de dar soluções rápidas para os problemas, não permitindo que as crianças tenham
tempo para encontrar as próprias soluções. Por outro, há escolas que consideram certo e
apropriado escutar com maior atenção e criar outras oportunidades em que essas
meninas possam continuar realizando a própria investigação, de modo a avançar tanto
no nível cognitivo quanto no comunicativo.
Figura 2
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em todas as suas facetas, ouvem os outros com boa vontade, percebendo rapidamente
como o ato de escuta é essencial para a comunicação. As crianças são biologicamente
predispostas a se comunicar e a estabelecer relacionamentos: é por isso que devemos
sempre lhes dar oportunidades plenas de representar suas imagens mentais e conseguir
representá-las para os outros.
Assim, ao passar de uma linguagem a outra, de um campo de experiências a
outro, as crianças podem crescer com a ideia de que os outros são indispensáveis para a
identidade e a existência delas próprias. Essa é uma concepção fundamental de valores
que podemos escolher seguir ou não. Percebemos não só que o outro se torna
imprescindível para nossa identidade, nosso entendimento, nossa comunicação e nossa
escuta, como também que aprender junto é prazeroso para o grupo, e que o grupo se
torna um lugar de aprendizagem. Criamos, então, aquilo que chamamos de "audiência
competente", que são sujeitos capazes de ouvir, de ouvir reciprocamente e de se tornar
sensíveis às ideias dos outros, para enriquecer as próprias e gerar ideias de grupo. Essa
é, portanto, a revolução que precisamos fazer: desenvolver a sensibilidade natural das
crianças para apreciar e expandir as ideias dos outros, compartilhando-as em conjunto.
[p.213]
E por isso que consideramos o processo de aprendizagem um processo criativo.
Por criatividade entendo a aptidão para construir novas conexões entre pensamentos e
objetos, trazendo inovação e mudança, tomando elementos conhecidos e criando novos
nexos. Eis um exemplo (ver figuras 3, 4 e 5): uma criança de três anos está brincando
com um pedaço de fio. Primeiro, ela faz uma pulseira e, depois, nas costas de uma
cadeira, o fio se transforma num cavaleiro montando seu alazão e, por fim, vira a orelha
de um cavalo.
Figura 3
Como sabemos, os seres humanos são equipados com duas formas de pensamento: o
pensamento convergente, que tende à repetição, e o pensamento divergente, que tende à
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reorganização dos elementos. [p.214]
Figura 4
Figura 5
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[p.216]
Por conseguinte, a dimensão do brincar (com palavras, "pregar" peças, e assim
por diante) é um elemento essencial ao ser humano. Se tirarmos essa dimensão das
crianças e dos adultos, estaremos eliminando a possibilidade do aprendizado, rompendo
o relacionamento dual entre brincar e aprender. O processo criativo precisa, em vez
disso, ser reconhecido e legitimado pelos outros.
A criatividade não é somente a qualidade do pensamento de cada indivíduo, é
também um projeto interativo, relacional e social. Exige um contexto que lhe permita
existir, se expressar, se tornar visível. Nas escolas, a criatividade deveria ter condições
de se manifestar em todo lugar e em todo momento. O que desejamos é aprendizado
criativo e educadores criativos, e não somente uma ''hora da criatividade". É por isso
que o ateliê deve apoiar e garantir todos os processos criativos que podem acontecer em
qualquer ambiente da escola, da casa e da sociedade. Devemos lembrar que não há
criatividade na criança se não há criatividade no adulto: a criança competente e criativa
existe se existir um adulto competente e criativo.
Pensemos em nossa relação com a arte: com muita frequência, separamos a arte
da vida e, assim como a criatividade, a primeira não tem sido reconhecida como um
direito cotidiano, como uma qualidade da vida. O desenvolvimento disciplinar das
ciências trouxe inúmeros benefícios; mas também nos legou problemas, como a
superespecialização e a compartimentalização do conhecimento. Em geral, nosso
sistema social também adere a essa lógica de separação e fragmentação. Somos sempre
ensinados a separar o que está conectado, a dividir em vez de juntar as disciplinas, a
eliminar tudo o que pode levar à desordem. Por essa razão, é absolutamente
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indispensável reconsiderar nosso relacionamento com a arte como uma dimensão
essencial do pensamento humano. A arte da vida cotidiana e a criatividade da vida
cotidiana devem ser direitos de todos. Para que a arte seja, assim, parte de nossas vidas,
de nossos esforços para aprender e saber.
Concluo, então, em homenagem a Gianni Rodari, que inspirou esta apresentação,
com uma citação de seu livro Gramática da fantasia: "Qualquer uso possível das
palavras deveria se tornar disponível para qualquer pessoa -isso me parece um bom
lema, com sonoridade democrática. Não porque todo mundo deva ser artista, mas
porque ninguém deve ser escravo."
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REFERÊNCIAS: