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CRIATIVIDADE COMO QUALIDADE DO PENSAMENTO (2000)

Acredito que algumas das questões mais importantes que devemos nos fazer,
como professores, mas também educadores em geral, e adultos, são essas:

● Como podemos ajudar as crianças a encontrar o sentido daquilo que fazem e


vivenciam?
● Como podemos responder à sua busca pelo sentido das coisas, pelo sentido da
própria vida?
● Como podemos dar respostas às suas constantes perguntas, aos seus "por quês" e
"comos", à sua procura por aquilo que gostamos de pensar que é não apenas o
sentido das coisas, mas o sentido da própria vida, uma procura que começa no
nascimento, no primei ro "por quê" silencioso da criança, e vai até aquilo que,
para nós, é o sentido da vida?

Essas são questões centrais.


Trata-se de uma busca difícil, especialmente para as crianças de hoje, que
têm tantos pontos de referência distintos em seu dia a dia: a experiência da família, a
televisão, os locais de socialização. Crianças pequenas fazem um esforço enorme para
juntar todos esses fragmentos, normalmente [p.204] desconexos, que elas encontram
não durante toda uma vida, mas no período de um único dia. E, nesse esforço, muitas
vezes elas são deixadas sozinhas, tanto por suas famílias quanto por suas escolas. Mas
continuam sua busca mesmo assim, com teimosia, sem cansar, cometendo erros e, em
geral, sozinhas, porém, perseverando. Desistir significaria baldar todas as possibilidades
e esperanças, impedindo a oportunidade não só de ter um passado, mas também de
garantir um futuro. E as crianças fazem isso desde o começo de suas vidas.
Essa procura pela vida e pelo eu, nasce com a criança, e é por isso que falamos
de uma criança competente e forte, engajada nessa busca em direção à vida, em direção
aos outros, em direção às relações entre o eu e a vida. Uma criança, portanto, que não é
mais considerada frágil, sofredora, incapaz; uma criança que nos pede que olhemos para
ela com olhos diferentes, de modo a fortalecer seu direito de aprender e saber, de
encontrar o sentido da vida e da própria vida, sozinha e com os outros. Nossa ideia e
nossa atitude em relação à criança pequena são diferentes, pois a vemos de forma ativa,
todos os dias, assim como nós, procurando entender alguma coisa, extrair um
significado, capturar um pedaço de vida.
O grande problema é compreender o significado daquilo que estamos
construindo, o porquê das coisas, é buscar razões e respostas. E isso não se prende a
uma idade específica - acredito que seja uma qualidade da vida humana. Ter uma
compreensão diferente da realidade não representa ter direitos diferentes. No entanto,
em geral, esse parece ser o caso de um tipo de hierarquia imposta, que cria certos níveis
[p.205] de compreensão e depois os relaciona ao reconhecimento dos direitos. É muito
comum as teorias e os entendimentos expressados pela criança serem definidos como
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"equivocados" ou "ingênuos" e, como tais, não merecedores de atenção ou de respeito.
Isso coloca a criança num patamar inferior, define como "imperfeita", considera
significante sua contribuição.
No entanto, sabemos muito bem o que representa ser o companheiro de viagem
da criança nessa busca por significados. Os sentidos que as crianças produzem, as
teorias explicativas que elas desenvolvem na tentativa de encontrar respostas são da
máxima importância, pois revelam, de maneira vigorosa, como as crianças percebem,
questionam e interpretam a realidade e seus relacionamentos com ela.
Essas teorias, essas explicações que as crianças produzem são maravilhosamente
meigas: "Está chovendo porque o homem da TV disse que ia chover"; ou "Está
chovendo por que Jesus está chorando". Essas afirmações, no entanto, não devem, de
maneira nenhuma, ser tomadas como "equívocos", termo normalmente utilizado na
cultura pedagógica e que quer dizer que alguma coisa deve ser corrigida. Deveriam, sim,
ser vistos como algo muito mais importante: a gênese do desejo da criança pequena de
fazer perguntas para si mesma, desde a mais tenra idade. Isso dá uma significação maior
às situações em que a criança fica observando uma flor, durante dez minutos, em que se
encanta com a chuva na janela e levanta suas várias indagações, seus "por quês". Os
momentos mais criadores da criança acontecem quando ela pergunta "por quê”.
[p.206]
Desde a mais tenra idade as crianças tentam produzir teorias interpretativas, dar
respostas. Alguns podem considerar essas teorias ingênuas e inocentes, mas isso tem
pouca importância: o que importa mesmo não é apenas dar valor a alguma coisa, mas,
acima de tudo, entender o que há por trás dessas questões e teorias, e o que há por trás
delas é algo verdadeiramente extraordinário. Há a intenção de produzir questões e
buscar respostas, o que constitui um dos aspectos mais excepcionais da criatividade.
A criança competente tem um adulto que a enxerga desse jeito: o nível de
expectativas é um fator determinante. Acredito, por exemplo, que para nós, em Reggio
Emilia, foi fundamental o afastamento da ideia de "observação objetiva", isto é, a
eliminação da objetividade em benefício do sujeito, mas, em especial, a possibilidade de
olhar para a criança com amor, com cumplicidade 1." Essa visão cúmplice também pode
ajudar a compreender que os elementos que fundamentam as observações das crianças
são os seus muitos "por quês", suas tentativas de explicar para si mesmas por que uma
flor é como é, por que a mamãe diz flor e o que é uma flor. Mas na flor existe o sentido
da vida, e no relacionamento com uma flor existe a busca pelo sentido da vida.

1 Uso "cumplicidade" aqui no sentido de aliança ou solidariedade, que fazem as crianças e os adultos se
sentirem como se estivessem unidos, ligados por um desejo comum de compreender e conhecer e de
serem capazes de lutar e de se alegrar juntos.
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É por essa razão que eu gostaria de refletir um momento sobre aquilo que
chamamos, embora não seja original, a "pedagogia relacional e da escuta", que se
origina precisamente da ideia de que as crianças são os mais ávidos [p.207]
investigadores do significado e da significância, e produzem teorias interpretativas. Essa
ideia constitui não apenas a gênese dessa pedagogia relacional e da escuta, mas também
a possível origem de uma "criatividade relacional". Tanto para adultos quanto para
crianças, como afirmei anteriormente, entender significa elaborar uma interpretação, o
que chamamos de "teoria interpretativa", ou seja, uma teoria que dá significado às
coisas e aos eventos do mundo uma teoria no senso de uma explicação satisfatória.
Pegamos o termo "teoria", que normalmente tem uma conotação muito séria, e o
transformamos num direito de todo dia, reconhecendo esse direito na criança que
definimos como "competente".
Uma criança de três ou quatro meses de vida é capaz de desenvolver teorias?
Gosto de pensar que sim, porque sinto que essa convicção pode levar a uma abordagem
diferente e, em particular, aos conceitos de escutar e de criatividade relacional. Uma
teoria, portanto, é vista como uma explicação satisfatória, embora também provisória. É
algo mais do que simplesmente uma ideia ou grupo de ideias; deve ser prazerosa e
convincente, útil e capaz de satisfazer nossas necessidades intelectuais, afetivas e ainda
estéticas. Ou seja, deve nos dar a sensação de completude, que produz a sensação de
beleza e satisfação.
De certa maneira, se possível, uma teoria deve ser prazerosa para os outros
também, e precisa ser ouvida pelos outros. Isso permite transformar um mundo
intrinsecamente pessoal em algo partilhado: meu conhecimento e minha identidade
também são construídos pelo outro. Compartilhar teorias é uma forma de resposta à
incerteza e à solidão. [p.208]
Eis aqui um exemplo. Uma criança de três anos disse o seguinte: "O mar nasce
da mãe onda." Essa criança elaborou o conceito e está desenvolvendo a ideia de que
tudo tem uma origem. Reunindo todos os elementos que possui de modo criativo, ela
formula uma explicação satisfatória e, enquanto elabora o conceito, divide-a com os
outros. Eis outros exemplos:

● "O clima nasceu da tempestade." Aqui, a criança faz uma associação e só


espera ser ouvida, não rejeitada. ela consegue criar representações compostas
com linguagens e combinações incomuns.
● "O vento nasceu do ar e tem o formato de bater nas coisas": uma
declaração como essa confere dignidade à expressão "criança competente".
● "Mas quando uma pessoa morre, ela vai para a barriga da morte e depois
nasce de novo?" É isso o que a busca de significado e a formulação de teorias
representa: aqui, a criança uniu todos os elementos que tinha em mãos e, talvez,
suas ansiedades.

A palavra "escutar", então - não somente no sentido físico mas também no

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metafórico -, deixa de ser apenas uma palavra e se torna uma abordagem sobre a vida. É
assim que entendemos seu significado: escutar é uma atitude que requer a coragem de se
entregar à convicção de que o nosso ser é só uma pequena parte de um conhecimento
mais amplo; escutar é uma metáfora para estar aberto aos outros, ter sensibilidade para
ouvir e ser ouvido, em todos os sentidos. É uma palavra que não deveria ser dirigida
[p.209] somente às crianças. Em particular, escutar é dar a si próprio e aos outros um
tempo para ouvir. Por trás de cada ato de escuta, há um desejo, uma emoção, uma
abertura às diferenças, a valores e pontos de vista distintos. Por conseguinte, devemos
escutar e dar valor às diferenças, aos pontos de vista dos outros, sejam homens,
mulheres ou crianças, especialmente para lembrar que, por trás de cada ato de escuta,
restam a criatividade e a interpretação de ambas as partes. Desse modo, escutar é dar
valor ao outro; não importa se você concorda ou não com ele. Aprender a escutar é uma
tarefa difícil; é preciso se abrir para os outros, e todos nós necessitamos disso. A escuta
competente cria uma profunda abertura e uma forte predisposição à mudança.
Escutar é uma premissa para qualquer relacionamento de aprendizado. É claro
que o aprendizado é algo individual, mas também sabemos que é possível elevá-lo a um
patamar mais alto quando existe a possibilidade de agir e refletir sobre o mesmo.
Representar o ato de aprender e ser capaz de dividi-lo com os outros é indispensável
para a reflexividade que gera conhecimento. Desse modo, imagens e intenções são
reconhecidas pelo sujeito; elas tomam forma e evoluem por meio da ação, da emoção,
da expressividade e das representações icônicas e simbólicas. Essa é a base geradora das
linguagens, do aprendizado e da criatividade.
O conceito que mencionamos antes sobre o mar e a onda mãe foi provavelmente
uma resposta dada a urna questão, havia um contexto específico, e poderia ter sido ainda
mais maravilhoso e poderoso se pedíssemos à criança que o [p.210] representasse
graficamente. Para ser mais explícita: vamos pegar o exemplo de um desenho feito por
Federica (com a idade de três anos e dois meses) e ver como ela resolve o problema de
retratar um cavalo correndo (ver a figura 1).
Federica sabe que cavalos têm quatro patas; ela vira a folha de papel e desenha
as outras duas patas no verso (ver figura 2).
Ela conseguiu juntar linguagens múltiplas e aprendeu a codificá-las: isso é
expressividade, é criatividade. Uma solução semelhante foi encontrada por uma
garotinha de cinco anos que pegou o pedaço de papel e o colocou contra a janela,
fazendo traços no outro lado.

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Esses são momentos extremamente criativos, tanto no nível cognitivo quanto no
expressivo; as duas meninas buscaram a tridimensionalidade num meio bidimensional.

Figura 1

[p.211]
O que emerge com clareza aqui é uma imagem particular da criança e do
educador, assim como uma cultura de escuta. Por um lado, há escolas que não ouvem
nesse sentido, pois têm um currículo a seguir e tentam corrigir os "erros" imediatamente,
a fim de dar soluções rápidas para os problemas, não permitindo que as crianças tenham
tempo para encontrar as próprias soluções. Por outro, há escolas que consideram certo e
apropriado escutar com maior atenção e criar outras oportunidades em que essas
meninas possam continuar realizando a própria investigação, de modo a avançar tanto
no nível cognitivo quanto no comunicativo.

Figura 2

O extraordinário na mente humana é não apenas a capacidade de passar de uma


linguagem para outra, [p.212] de uma "inteligência" para outra, , mas também a
habilidade de escuta recíproca, que é o que torna possível o diálogo e a comunicação.
As crianças são os ouvintes mais extraordinários de todos; elas codificam e
decodificam, interpretando dados com incrível criatividade: as crianças "ouvem" a vida

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em todas as suas facetas, ouvem os outros com boa vontade, percebendo rapidamente
como o ato de escuta é essencial para a comunicação. As crianças são biologicamente
predispostas a se comunicar e a estabelecer relacionamentos: é por isso que devemos
sempre lhes dar oportunidades plenas de representar suas imagens mentais e conseguir
representá-las para os outros.
Assim, ao passar de uma linguagem a outra, de um campo de experiências a
outro, as crianças podem crescer com a ideia de que os outros são indispensáveis para a
identidade e a existência delas próprias. Essa é uma concepção fundamental de valores
que podemos escolher seguir ou não. Percebemos não só que o outro se torna
imprescindível para nossa identidade, nosso entendimento, nossa comunicação e nossa
escuta, como também que aprender junto é prazeroso para o grupo, e que o grupo se
torna um lugar de aprendizagem. Criamos, então, aquilo que chamamos de "audiência
competente", que são sujeitos capazes de ouvir, de ouvir reciprocamente e de se tornar
sensíveis às ideias dos outros, para enriquecer as próprias e gerar ideias de grupo. Essa
é, portanto, a revolução que precisamos fazer: desenvolver a sensibilidade natural das
crianças para apreciar e expandir as ideias dos outros, compartilhando-as em conjunto.
[p.213]
E por isso que consideramos o processo de aprendizagem um processo criativo.
Por criatividade entendo a aptidão para construir novas conexões entre pensamentos e
objetos, trazendo inovação e mudança, tomando elementos conhecidos e criando novos
nexos. Eis um exemplo (ver figuras 3, 4 e 5): uma criança de três anos está brincando
com um pedaço de fio. Primeiro, ela faz uma pulseira e, depois, nas costas de uma
cadeira, o fio se transforma num cavaleiro montando seu alazão e, por fim, vira a orelha
de um cavalo.

Figura 3

Como sabemos, os seres humanos são equipados com duas formas de pensamento: o
pensamento convergente, que tende à repetição, e o pensamento divergente, que tende à
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reorganização dos elementos. [p.214]

Figura 4

O pensamento divergente é do tipo que vimos nesse exemplo. É a combinação


de elementos incomuns, que as crianças pequenas realizam com grande facilidade já que
não possuem nenhum fundamento teórico particular ou nenhum relacionamento fixo.
Por que, então, é tão difícil para os adultos utilizar o pensamento divergente? Em
primeiro lugar, porque o pensamento convergente é conveniente, mas também
porque mudar a mente em geral representa perda de poder. As crianças, por outro lado,
buscam o poder mudando a mente, com a honestidade que têm em relação às ideias e
aos outros, com a honestidade para escutar. Entretanto, rapidamente aprendem que ter
ideias divergentes das dos educadores ou dos pais e expressá-las no momento errado
não é algo positivo. Quando isso acontece, então, o que morre não é o pensamento
criativo, mas a legitimação da criatividade do pensamento. [p.215]
O pensamento criativo pode, ainda, levar à solidão. A criatividade é relacional;
precisa da aprovação para se tornar um bem compartilhado. É muito comum, no entanto,
temos medo dessa criatividade, mesmo da nossa, porque ela nos torna "diferentes".
Ao brincar, como observou Piaget, as crianças pegam a realidade nas mãos, de
modo a tomar posse dela; com liberdade, elas a decompõem e recompõem,
consolidando essa qualidade de pensamento convergente e divergente. Por meio da
brincadeira, as crianças confrontam a realidade e a aceitam, desenvolvem o pensamento
criativo e escapam da realidade, que é quase sempre opressiva. É aqui que alguns dos
nossos erros mais sérios criam raízes.

Figura 5

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[p.216]
Por conseguinte, a dimensão do brincar (com palavras, "pregar" peças, e assim
por diante) é um elemento essencial ao ser humano. Se tirarmos essa dimensão das
crianças e dos adultos, estaremos eliminando a possibilidade do aprendizado, rompendo
o relacionamento dual entre brincar e aprender. O processo criativo precisa, em vez
disso, ser reconhecido e legitimado pelos outros.
A criatividade não é somente a qualidade do pensamento de cada indivíduo, é
também um projeto interativo, relacional e social. Exige um contexto que lhe permita
existir, se expressar, se tornar visível. Nas escolas, a criatividade deveria ter condições
de se manifestar em todo lugar e em todo momento. O que desejamos é aprendizado
criativo e educadores criativos, e não somente uma ''hora da criatividade". É por isso
que o ateliê deve apoiar e garantir todos os processos criativos que podem acontecer em
qualquer ambiente da escola, da casa e da sociedade. Devemos lembrar que não há
criatividade na criança se não há criatividade no adulto: a criança competente e criativa
existe se existir um adulto competente e criativo.
Pensemos em nossa relação com a arte: com muita frequência, separamos a arte
da vida e, assim como a criatividade, a primeira não tem sido reconhecida como um
direito cotidiano, como uma qualidade da vida. O desenvolvimento disciplinar das
ciências trouxe inúmeros benefícios; mas também nos legou problemas, como a
superespecialização e a compartimentalização do conhecimento. Em geral, nosso
sistema social também adere a essa lógica de separação e fragmentação. Somos sempre
ensinados a separar o que está conectado, a dividir em vez de juntar as disciplinas, a
eliminar tudo o que pode levar à desordem. Por essa razão, é absolutamente
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indispensável reconsiderar nosso relacionamento com a arte como uma dimensão
essencial do pensamento humano. A arte da vida cotidiana e a criatividade da vida
cotidiana devem ser direitos de todos. Para que a arte seja, assim, parte de nossas vidas,
de nossos esforços para aprender e saber.
Concluo, então, em homenagem a Gianni Rodari, que inspirou esta apresentação,
com uma citação de seu livro Gramática da fantasia: "Qualquer uso possível das
palavras deveria se tornar disponível para qualquer pessoa -isso me parece um bom
lema, com sonoridade democrática. Não porque todo mundo deva ser artista, mas
porque ninguém deve ser escravo."

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REFERÊNCIAS:

RINALDI, Carla. Criatividade como qualidade do pensamento. In: RINALDI, Carla.


Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar, aprender. São Paulo: Paz e Terra,
2012.

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