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Porto Alegre, v.15, n.1, jan./jun. 2012.

INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática


ISSN impresso 1516-084X ISSN digital 1982-1654

Simondon e a Possibilidade
de uma Visão Ontológica da Educação Contemporânea

Simondon and the Possibility


of an Ontological Approach of the Contemporary Education

Resumo:
O presente trabalho tem por objetivo pensar nas especifi-
cidades da cultura contemporânea como cultura comunica-
Aline Verissimo Monteiro
cional e as características de um projeto educacional en-
gendrado de acordo com essas especificidades. A ontologia Universidade Federal do Rio de Janeiro
de Gilbert Simondon, ao pensar os processos de individu-
ação psíquica, coletiva e conceitual a partir dos conceitos
de metaestabilidade, informação e transdução, descreve
um cenário similar aquele que vivenciamos na cultura con-
temporânea. Reconhecendo a escola como instituição rep-
resentante de um projeto moderno voltado à formação de

O
cidadãos racionais, sobre bases estritamente epistemológi-
cas, entendemos que a permanência e a atuação contem-
projeto educacional moderno, em sua
porâneas dessa instituição exigem a revisão de seus agen- concepção original, objetivou a formação
tes e seus objetivos. Para aproximar a reflexão ontológica
sobre cultura contemporânea da revisão do projeto escolar de um indivíduo racional, civilizado, autô-
moderno, recorremos ao trabalho de Bruno Latour. Suas nomo, restringindo a relação homem/mundo a
teses sobre o não cumprimento do projeto moderno podem
nos auxiliar a entender e repensar nosso projeto educacio- aspectos epistemológicos. Essa redução reali-
nal, aproximando-o da dinâmica contemporânea. za uma cisão entre conhecimento e ser à qual
Palavras-chaves: Educação contemporânea. Cultura con-
temporânea. Simondon. correspondem outras duas reduções: a que
identifica o conhecimento à razão científica, e
Abstract:
The present work is aimed at reflecting the specificities of a que identifica o sujeito ao sujeito do conhe-
contemporary culture as a communicational culture and the cimento científico. Aproximar o pensamento
characteristics of an educational project devised in accor-
dance with these specificities. The Gilbert Simondon’s on- de Gilbert Simondon do campo da educação
tology, with its conceptions of psychic, collective and con- tem, neste trabalho, o objetivo de retomar sua
ceptual processes of individuation, based upon the concepts
of metastability, information and transduction, describes a dimensão ontológica, reconhecendo os limites
scenario similar to that we experience in contemporary cul-
e dificuldades para o projeto epistemológico
ture. Recognizing the school as a representative institution
of a modern design aimed at the formation of rational citi- moderno se realizar na contemporaneidade1.
zens on strictly epistemological bases, we believe that the
staying and the contemporary role of this institution require
A ontologia de Simondon nos permite pensar
a review of its agents and goals. To approximate the onto- um projeto educacional – pertinente ao tempo
logical reflection on contemporary culture of the modern
school design review, we turn to the work of Bruno Latour.
contemporâneo –, que nomearemos como Cul-
His thesis on the failure of modern design can help us to tura Comunicacional Contemporânea (CCC)2.
understand and to rethink our educational project, bringing
it closer to the contemporary dynamic.
Keywords: Contemporary education. Contemporary cul- 1 Tomaremos a contemporaneidade em suas diferenças em
ture. Simondon. relação à cultura moderna, no que diz respeito aos elemen-
tos que compõem e sustentam o projeto escolar como um
MONTEIRO, Aline Verissimo. Simondon e a possibilidade projeto institucional e científico de educação
de uma visão ontológica da educação contemporânea. Infor-
mática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 15, n. 2 Utilizaremos a sigla CCC de agora em diante por motivos
1, p. 171-185, jan./jun. 2012. de economia textual.

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Para uma compreensão da contemporanei- nibilizar, simultaneamente, diferentes fluxos,


dade como CCC, destacamos pelo menos três identidades e experiências espaço-temporais.
aspectos que se relacionam aos três termos O movimento e a aceleração possibilitados
que a nomeiam3. Primeiro, as mudanças en- pela digitalização dos corpos, teriam feito com
gendradas pelos elementos postos em jogo a que hierarquias e linearidades causais colap-
partir da segunda metade do século XX, se- sassem em fluxos de informações e comunica-
riam de tal ordem abrangentes, que corres- ções em tempo real e em instantes intensos-
ponderiam à organização de uma outra visão extensos. Tal fato permitiria a ressonância das
ou metáfora de mundo4; portanto, de uma ordens locais e globais e a sobreposição de
outra cultura. Isto porque estariam em cena, múltiplos tempos: multiplicidade com-tempo-
desde então, experiências de tempo como rânea6.
aceleração, de conhecimento como simulação Dois serão os pontos de partida da investi-
e de comunicação como interação. Essas ex- gação da afinidade do pensamento de Simon-
periências romperiam com as concepções de don com a contemporaneidade: a importância
tempo, conhecimento e comunicação vigentes da tecnologia; e o sentido e natureza da in-
na Modernidade, quais sejam: cronologia, re- formação. Como dito, as tecnologias digitais
presentação e linearidade5. Segundo, essas de comunicação são elemento chave e agente
mudanças decorreriam do advento e da difu- principal do processo de constituição da CCC
são das tecnologias digitais em suportes de e suas múltiplas experiências de tempo e ser.
comunicação cada vez mais portáteis e hibri- Também na obra de Simondon os objetos téc-
dados em nossas ações cotidianas, mesmo as nicos são tema em destaque e integram suas
mais prosaicas. Dessa forma, teríamos pas- reflexões ontológicas sobre o ser e o caráter
sado a viver nossa cultura segundo a ordem de devir do ser. Quanto à informação, ela é
do digital, sobretudo, da comunicação digital: o fio da e na tessitura da rede de conexões
uma cultura comunicacional. Terceiro, essa que seria a CCC – donde sua natureza Comu-
cultura marcada por aceleração, simulação e nicacional. Da mesma forma, em Simondon,
interação digitais, permitiria suportar e dispo- os conceitos de informação e transdução são
aqueles que realizam o processo de individu-
ação, operando a passagem do pré-indivudual
3 A conceituação desse cenário cultural foi tema de minha
dissertação de mestrado, e seus desdobramentos e implica- ao individuado. Assim, os conceitos simondo-
ções no campo educacional foram assunto de minha tese de
nianos aparecem como pertinentes ao pen-
doutorado e ambas são referência para todo esse parágra-
fo e tudo que discorreremos sobre Cultura Comunicacional samento de um projeto de constituição ou,
Contemporânea. (Cf. MONTEIRO, 1998, 2004).
nos termos do autor, de individuação de uma
4 Tomamos a expressão emprestada de Lucien Sfez em a proposta educacional que suporte a multipli-
“Crítica da Comunicação”. Metáforas seriam “ilhotas de ima-
ginário, que motivam a pesquisa e criam zonas de atração cidade do ser e do tempo na contemporanei-
para os conceitos. [...] Todo um conjunto de metáforas dade. Uma proposta que permita a abertura
substitui os conceitos, destaca-lhes algumas características
e oculta-lhes outras. Elas tecem um mundo de pressupos- de alternativas para que a educação envolva
tos que trabalham em surdina e permeiam nosso modo de aspectos epistemológicos e ontológicos, refle-
conceituar, de inventar ou de pesquisar.” (SFEZ, 1994, p.
26-27). Assim, elas condicionam nosso modo de ver o mun- tindo uma compreensão da totalidade do ser.
do e os sentidos que lhe atribuímos, portanto, condicionam
nossa cultura.

5 Cf. MONTEIRO, 1998, cap. O império da representação, p. 6 Daniel Bougnoux vai nomear “hierarquias emaranhadas”
16 - 38 e MONTEIRO, 2004, cap. A cultura comunicacional, esse colapso, esse feedback entre local-global e causas e
p. 22 - 75. efeitos. (BOUGNOUX, 1994, p. 46-62)

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Nesse sentido, um projeto escolar de forma- da metade do século XX. No entanto, para fa-
ção dos sujeitos seria um projetos de subje- larmos das bases do projeto escolar moderno,
tivação, de “individução psíquica e coletiva” 7, faremos um recuo maior para entender como
e não apenas de formatação de sujeitos do o campo da educação, e sua estruturação em
conhecimento. uma arquitetura escolar, remontam sua his-
Nesse intuito, este trabalho pretende rever tória à própria possibilidade do conhecimento
as bases modernas que sustentam o projeto afirmada pelo projeto metafísico. Como des-
da educação escolar tal como foi pensado em creve d’Amaral8, há na origem do projeto oci-
sua origem. Em seguida, vamos pontuar as dental o que podemos nomear de pressuposto
transformações ocorridas nesses elementos cognitivo-comunicacional, o qual afirmaria o
ao longo do processo de constituição da CCC pensamento platônico em detrimento do pen-
e, também, as inconsistências que passam a samento sofista. Sobre a possibilidade de co-
se colocar para o projeto escolar moderno. nhecer, compreender e comunicar teria se er-
Por fim, iremos analisar como a ontologia de guido o pensamento ocidental, que tomaria a
Gilbert Simondon oferece outras referências e forma científica no século XVII, e a forma es-
outro contexto para concebermos um projeto colar no final do século XIX. Assim, conhecer,
educacional mais próximo do Ser e do proces- compreender e comunicar seriam as ações em
so de individuação, com maior afinidade com jogo na educação e corresponderiam, respec-
o contemporâneo. Outro autor será funda- tivamente, ao conteúdo disciplinar, à aprendi-
mental para construirmos uma visão de con- zagem e ao ensino – se pensarmos em con-
temporaneidade que possa ser aproximada de ceitos e ações educacionais; ou ao currículo,
Simondon. B. Latour, ao aproximar humanos ao aluno e ao professor – se pensarmos em
e não-humanos, pensar a cultura e o social agentes escolares.
como rede sóciotécnica, e entender o proje- A essa longínqua fundamentação episte-
to moderno como um projeto de purificação mológica podemos juntar uma série de acon-
jamais alcançado, oferece instrumentos para tecimentos históricos que, desde o Renasci-
uma crítica de dentro da epistemologia, que mento, teriam se desdobrado e conjugado de
nos servirá para fazer uma crítica de dentro modo que, na passagem do século XIX para
da escola. o XX, o projeto escolar moderno se tornasse
uma realidade. O Renascimento e a expansão
1 As bases epistemológicas da dos domínios mundiais com o movimento das
educação escolar moderna grandes navegações nos séculos XIV a XVI
teriam criado uma diversidade de questões
O cenário cultural que estamos consideran- e demandas ao “Antigo Mundo”. Além disso,
do como anterior à CCC, nossa modernidade, diferentes movimentos de transformações
tem como marco inicial a assunção do modelo técnicas, culturais, econômicas, políticas to-
científico moderno como paradigma epistemo- maram conta do período moderno. Iluminis-
lógico, e compreende do século XVII à segun- mo, Mercantilismo, Absolutismo, Revolução
Industrial, Revolução Francesa, Liberalismo
percorrem o período do século XVII ao XIX
7 Referência ao título do livro do autor: “L’individuation
psyqhique et collective” que trata da individuação dos sujei- acarretando um ritmo de transformação, civi-
tos, dos pensamentos, dos significados, da personalidade e
do grupo social, estando todos esses elementos relacionados
como veremos depois. (Cf. SIMONDON, 1989a) 8 AMARAL, 1995, 1993, 1989.

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lização e complexificação das sociedades até identificará a episteme desse período com a
então não experimentado. O encontro com o mathesis universalis e com um regime de re-
“Selvagem” e com as culturas “primitivas” do presentação reduplicada. O acesso do cogito
“Novo Mundo” teriam autorizado uma compre- ao conhecimento se faria por um trabalho me-
ensão dessas mudanças como um movimento tódico da razão que, por sua vez, se expres-
de progresso e evolução, e estes valores te- saria por um discurso igualmente metódico e
riam se estabelecido como marcas do espírito, racional. Orientados por essa visão racionalis-
do tempo e do homem modernos. ta, o conhecimento identificava-se com o que
Além do sentido de evolução natural e his- havia de racional no mundo; a cognição com
tórica, a racionalidade científica tornara-se o o raciocínio metódico; o sujeito com o sujeito
outro grande valor da Modernidade. No sécu- do conhecimento, dotado de razão; a comu-
lo XVII, os sucessos da física newtoniana de- nicação com o discurso, igualmente racional.
terminariam o modelo científico das ciências Com base nessa concepção de comunicação,
naturais, que passariam a funcionar como pa- a cognição, a aprendizagem e a educação te-
radigma para qualquer saber que almejasse riam sido encerradas em um universo episte-
à verdade científica. Nesse contexto, a razão mológico de referências.
torna-se a marca da verdade e o motor do O sujeito racional, que em Descartes apa-
progresso, fazendo com que se supusesse um receria ainda sob a tutela de um Deus per-
objetivo para a marcha humana e um projeto feito (causa da regularidade do mundo, das
evolutivo a ser cumprido. A verdade da razão idéias claras e distintas e da razão humana),
científica garantiria a manutenção do contro- vai conquistando autonomia e independência
le dos movimentos de transformação dentro na proporção de seus sucessos e conquistas.
de um percurso evolutivo rumo ao melhor, ao No século XVIII, ele cederia lugar à imagem
verdadeiro, ao bem. Completando a cena, no do indivíduo como ser político e social cons-
comando do exercício da razão estaria um su- truído historicamente a partir de sua base
jeito cognoscente capaz de descobrir a verda- biológica natural, mas em um movimento de
de do projeto racional a ser consumado, e de afastamento e libertação dessa. Antropocen-
ser incluído nessa projeto por meio das ciên- trização, secularização e historicização acom-
cias humanas e da educação escolar. panham as revoluções industrial e francesa.
De volta ao séc. XVII, com o pensamen- O crescimento do movimento empirista – que
to de R. Descartes, podemos localizar a ori- estabelece uma fonte objetiva e natural para
gem desse sujeito e sua cognição racional. o conhecimento humano, posto que fornecido
Como identifica L. C. Figueiredo (1994), o co- pela experiência – e a tentativa de controle si-
gito cartesiano inaugura o que ele denomina multâneo da liberdade da natureza e da razão
de o psicológico, muito antes do surgimento feita por I. Kant em suas Crítica da Razão Pura
de uma psicologia científica. Psicologia que e Crítica da Razão Prática – onde estabelece
será responsável por gerar os conhecimentos o imperativo categórico do dever – denunciam
científicos que atenderiam às demandas de este fato. No século XIX, a “Teoria da evolu-
explicação, organização, previsão e controle ção das espécies” de C. Darwin e sua versão
escolar. O pensamento cartesiano também político-econômica, o Liberalismo, radicaliza-
teria servido à tomada da comunicação sob riam o afastamento humano de uma origem e
a forma do discurso, como objeto de estu- legislação divinas, e a sua aproximação de um
do pela Gramática Geral. M. Foucault (1992) percurso evolutivo histórico-social.

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Completando a composição das figuras (BUFFA; ARROYO; NOSELLA, 1988, p. 20).


epistemológico-conceituais que iriam ocupar É incorporando esse esforço que, no final
o cenário da educação escolar, vemos aconte- do século XIX, as ciências humanas e sociais
cer, acompanhando os movimentos técnicos, vão se estabelecer e atuar dando origem, le-
culturais, econômicos e políticos do século XV gitimidade e sustentação racional-científica
ao XVIII, o surgimento e o desenvolvimento ao projeto educacional, à instituição escolar e
da criança e da infância como figuras sociais suas práticas pedagógicas. As próprias ciên-
e conceituais, tal como nos descreve Philipe cias humanas e o projeto educacional, sendo
Áries (1981). Também Tony Booth (1976) des- também resultantes do projeto moderno, tra-
taca como esses novos personagens sociais ziam as marcas dos movimentos deste perío-
exigiriam novos discurso e instituições para do histórico. Em primeiro lugar, a crença na
inseri-los de forma ordenada na sociedade; e racionalidade científica como responsável pela
como lentamente a família cederia à escola o civilização dos indivíduos fez com que a esco-
lugar de responsável pela formação dos cida- la tivesse por obrigação o ensino das ciências
dãos. Junto a isso, os pensamentos sobre a e o adestramento e o treino metódico e me-
evolução do humano, partindo de um estado todológico das faculdades mentais envolvidas
animal e selvagem até um estado civilizado e na compreensão e exercício das ciências. O
de exercício autônomo da razão, vão se refle- ensino do conteúdo cientifico era o trabalho
tir no modo de inclusão e controle da criança e educativo por excelência e a razão o material
de sua infância através de um plano de escola- de trabalho da escola.
rização e educação para toda população. C. C. Salvador (1999), apresentando o sur-
M. G. Arroyo (1988), no artigo “Educação e gimento e a evolução histórica da Psicologia
exclusão da cidadania”, analisa como, desde o da educação destaca a vigência dos princípios
início, o projeto educacional vai se constituir de uma “teoria das faculdades” como a princi-
vinculado à ordem política, devendo ser o pro- pal característica do primeiro momento desta
motor do progresso social. área de saber.

A pedagogia adquiriu, nas formas de represen- a) Em primeiro lugar, postulam que a re-
tar o social, uma centralidade política nunca tida
alidade pode ser reduzida a algumas es-
antes. Passou a ser pensada como mecanismo
central na superação da velha ordem pela nova truturas primordiais que podem ser iden-
ordem. Aquela desprezada como tempo de bar- tificadas mediante a sua observação. Tais
bárie, de ignorância, de servidão, de despotis- estruturas, constituintes do conhecimento
mo; esta exaltada como tempo de racionalidade,
civilização, liberdade e participação (BUFFA; AR- verdadeiro da realidade, podem ser des-
ROYO; NOSELLA, 1988, p. 37). critas com uma linguagem simbólica [...]
A tarefa dos alunos [...] consiste, precisa-
Um indivíduo racional e livre exigiria esfor- mente, em aprender essas representações
ços que o mantivesse em acordo e coesão com simbólicas que descrevem as estruturas da
o corpo social. E. Buffa nos lembra que, já no realidade.[...]
século XVII, temos a proposta da Didática Mag-
na (1632) de Comenius, na qual ele vai defender c) Em terceiro lugar, [...] o currículo está
o ensino de “tudo a todos”, uma vez que todos formado por um conjunto de ‘representa-
eram homens e “porque o homem tem neces- ções simbólicas da realidade’, organizadas
sidade de se educar para se tornar homem” de maneira lógica e ordenadas no sentido

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de facilitar a sua captação por parte dos modo que, mesmo as possíveis variações e
alunos. [...] (SALVADOR, 1999, p. 20). diferenças que surjam necessitem ser reen-
caminhadas às definições conceituais. Mas,
Esse compromisso da escola com o ensi- e se o projeto científico moderno não tivesse
no da ciência, que em C.C. Salvador aparece acontecido? E como educar na e para a insta-
na figura das “representações simbólicas” da bilidade contemporânea?
realidade, é referido ainda em publicações do
final do século XX, que servem à formação 2 A tecnologia digital, os
dos professores atualmente. C. Davies e Z. de fluxos informacionais e a
Oliveira, citando Leontiev e Luria vão enfati- metaestabilização contemporânea
zar como tarefa da educação escolar o ensino
das “bases dos estudos científicos, ou seja, B. Latour em sua obra, mais particular-
[de] um sistema de concepções científicas” mente, em seu livro “Jamais fomos modernos”
(LEONTIEV; LURIA apud DAVIES; OLIVERIA, (1994), discute e analisa a característica do
1990, p. 22). projeto moderno de estabelecer clara e defi-
Vimos, então, como a concepção científi- nitivamente cisões, purificações, entre os rei-
ca do conhecimento toma o sujeito humano, nos da natureza e da sociedade, e entre não-
o conhecer e a comunicação como objetos de humanos e humanos. No entanto, defende o
estudo, capturando-os em conceitos e iden- autor, as tentativas de traduções necessárias
tidades fixas, as quais são endereçadas à entre esses reinos polarizados e simétricos
escola de modo a percorrerem um caminho terminavam por se fazerem sempre de for-
de desenvolvimento e formação também pré- mas assimétricas, estabelecendo dominações
conceituado e pré-estabelecido conforme as e hierarquizações entre os domínios. Assim,
pré-visões científicas. Nesse contexto, os su- B. Latour vai concluir que o projeto moder-
jeitos são reduzidos a objetos de estudo pelas no, malgrado suas intenções, na insistência
ciências humanas, sobretudo, as psicologias da diferenciação entre humanos e não-hu-
da educação, do desenvolvimento e da apren- manos tece a rede da hibridização – a rede
dizagem, responsáveis por orientar esse pro- sociotécnica –com maior velocidade e varie-
jeto escolar. Ao longo de todo esse percurso, dade do que os pré-modernos poderiam so-
o ideal de purificação científica e a redução do nhar 9. As tentativas de purificação, exigência
sujeito como sujeito do conhecimento revela da exatidão e precisão científicas, requerem
a redução da educação à questão epistemoló- um sem-número de instrumentos de tradução
gica, culminando com a arquitetura da esco- que proliferam seres híbridos, quase-sujeitos,
la como “laboratório” de formação científica, quase-objetos, e nos levam a, no momento
qual seja, a formação escolar, espaço dos “ex-
perimentos” envolvendo alunos, professores 9 Latour, ao descrever as hipóteses de seu ensaio, que é
como entende seu livro, defende que foi o processo de purifi-
e saberes científicos em processos de desen- cação que levou ao processo de tradução ou mediação entre
volvimento, ensino, aprendizagem conceitua- os pólos, posicionados de forma simétrica, mas explicados de
forma assimétrica. Para ele, “quanto mais nos proibimos de
dos também pela ciência. Experimentos que pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna possível;
precisam, simultaneamente, confirmar teorias este é o paradoxo dos modernos que esta situação excep-
cional em que nos encontramos nos permite enfim captar”
e abrir hipóteses para novas teorizações, de (LATOUR, 1994, p. 16-17). Sua segunda hipótese é que, o
que nos diferenciaria dos pré-modernos seria o fato de eles
pensarem os híbridos e manterem eles sobre controle, não
permitindo sua proliferação desmedida.

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contemporâneo, poder pensar que “jamais fo- encenação da dominação epistemológica so-
mos modernos”. Se fizermos corresponder à bre a dimensão ontológica, e será importan-
polarização sociedade X natureza, pretendida tíssima der ser revista em nosso movimento
pela modernidade, a polarização epistemolo- de reunião dessas dimensões pela proposição
gia X ontologia, podemos entender a afirma- de uma ontologia da educação.
ção de Latour de que o Ser jamais abandonou Bruno Latour é um autor oportuno neste
o projeto científico. E que, nem poderia tê-lo trabalho porque reúne, em sua obra, a discus-
feito, uma vez que, segundo o autor, o que a são de dois aspectos que servem de amalga-
modernidade intencionava era uma natureza ma entre nossa reflexão sobre tecnologia digi-
científica. Diz nos o autor: tal, CCC e desafios à educação; e a ontologia
de Simondon. Ele faz a passagem da episte-
Quem esqueceu o Ser? Ninguém, nunca, pois mologia à ontologia por dentro do laboratório
caso contrário a natureza seria realmente ‘vista
científico, através da tecnologia, assim como
como um estoque’. Olhem em volta: os objetos
científicos circulam simultaneamente enquan- nós intencionamos passar da epistemologia
to sujeitos, objetos e discursos. As redes estão científica moderna à ontologia da invenção/si-
preenchidas pelo ser. E as máquinas estão car- mulação contemporânea por dentro da escola,
regadas de sujeitos e coletivos. Como é que o
ente poderia perder sua continuidade, sua dife- através da educação.
rença, sua incompletude, sua marca? Ninguém Se recortarmos nosso trabalho identifi-
jamais teve tal poder, senão precisaríamos ima- cando nele uma tensão entre cultura / episte-
ginar que fomos verdadeiramente modernos.
(LATOUR, 1994, p. 65)10
mologia, veremos que movimentamos nosso
pensamento na direção do fortalecimento da
instabilidade da cultura em detrimento da ri-
Além do Ser, Latour analisa, em particular,
gidez epistemológica. Esta tensão é encenada
outro ponto importante para nosso trabalho:
sob a forma de uma preocupação com uma di-
a autonomia discursiva. Ele investiga “as ver-
nâmica onde, por um lado, a tecnologia digital
tentes semióticas”11 existentes, entendendo
configura uma cultura contemporânea; mas,
que elas não deixam de ser, também, concei-
por outro, desestabiliza a cultura epistemo-
tuações, recortes discursivos sobre os fenô-
lógica moderna. Tendo suas bases na cultura
menos da linguagem. O autor faz a crítica da
moderna, a cultura educacional escolar, frente
pretensa independência e autonomia da lin-
a essa desestabilização, é convidada a se re-
guagem, no caso, a científica, que sustenta-
inventar num modelo de educação contempo-
ria a supremacia e a eficácia da precisão e da
rânea.
definição do conceito sobre a variabilidade dos
Já em Simondon, podemos recortar uma
fenômenos, os quais seriam reduzidos à condi-
tensão entre cultura / ontologia, onde o mo-
ção de referente. Essa separação linguagem /
vimento do autor é também o de fortalecer o
mundo ou a definição desses elementos como
movimento, só que ele estaria no pólo onto-
signo / referente é mais uma das formas de
lógico, no Ser. A tensão estaria sob a forma
de um processo de individuação que permi-
10 Nesse ponto o autor dialoga com o pensamento heideg- tiria abarcar todos os indivíduos processados
geriano explorando a positividade da visão da relação entre pela cultura, sejam eles, físico-biológicos, psí-
Ente e Ser, mas, também, a negatividade da crítica que Hei
degger direciona à técnica. (Cf. LATOUR, 1994, p. 64-66) quicos, coletivos ou objetos técnicos12. Como
11 Título da sessão do autor dedicada ao tema. (Cf. LATOUR,
1994, p. 62-64) 12 Referência aos títulos dos livros que compõem a obra do

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já dissemos, Simondon se impõe a tarefa de do Ser. Passamos da cultura epistemológica


pensar o indivíduo a partir do processo de in- à cultura ontológica por uma reconfiguração
dividuação, e não o contrário. Ele desloca o discursiva: a passagem dos signos semióticos
estranhamento da instabilidade dos seres para aos sinais digitais como sendo a natureza da
a estabilidades dos seres pela afirmação da linguagem, da nova comunicação generaliza-
metaestabilidade13. Nesse sentido, o que pas- da da rede sóciotecnica digital.
saria a exigir explicação seria uma cultura de
indivíduos estabilizados, resistentes ao devir, 3 Simondon, ontologia e
e não a cultura da variabilidade dos mesmos. individuação na educação
Ao dirigir seu pensamento na direção de contemporânea
uma linha de fuga14 frente à rigidez da cultura
epistemológica moderna Latour reúne as duas Quando Bruno Latour se pergunta, toman-
tensões apresentadas e encena a passagem do Heidegger por referência, “Como é que o
de uma a outra. De uma cultura que tenta en- ente poderia perder sua continuidade, sua di-
cerrar o domínio epistemológico, isolando-o do ferença, sua incompletude, sua marca?” (LA-
ontológico pela distinção conceitual científica TOUR, 1994, p. 65), podemos reconhecer aí a
exata do que seja objeto e sujeito, natureza e questão simondoniana: afirmar o caráter de
cultura; chega-se ao cenário de proliferação devir do ser, a membrana metaestável que
de híbridos, um cenário de domínio da tecno- cerca toda individuação, o pré-individual que
logia e de reunião do natural e do cultural no insiste em todo indivíduo. Vamos agora apre-
digital. Na CCC, a aparente irrestrita simu- sentar mais detalhadamente a ontologia de
lação tecnológica da realidade, o permanen- Simondon para aproximá-la da individuação
te devir dos fluxos digitais de informação, a de um projeto educacional contemporâneo,
quebra de barreiras entre o vivo e o não-vivo incluindo na educação a ordem do ser e não
pelo regime da codificação permite – ou mes- só a do saber.
mo exige – que as questões ontológicas sejam A ontologia de Gilbert Simondon propõe a
recolocadas, tendo agora o movimento, o de- realização de uma investigação onde a onto-
vir, a invenção como aquilo que mais aparece gênese indique “o caráter de devir do ser”, em
vez de tratar apenas do indivíduo, aquele que
já tem identidade. Ele parte da compreensão
autor: L’individu et as gênese physico-biologique (SIMON-
DON, 1995); L’individuation psychique et collective (SIMON- de que a insistência na investigação de um
DON, 1989a) e Du mode d’existence dês objets techniques princípio de individuação, onde a ênfase está
(SIMONDON, 1989b).
posta no indivíduo, será sempre insuficiente
13 Como veremos adiante, a metaestabilidade caracterizaria e redutora do ser ao indivíduo. Além disso,
um sistema dotado de energia potencial.
considera que pouco será possível entender
14 Uma vez que “jamais fomos modernos”, e que nos in- sobre um processo considerando-se apenas
ventamos culturalmente, o autor nos liberta das discussões
sobre pré, pós ou hiper modernidade e coloca o foco do pen- seus resultados e generalizando-os por todo
sar no presente e na cultura que queremos construir, nos co-
nhecimentos que desejamos configurar. A tarefa não é mais
esse processo; ou, de outro modo, supondo
buscar uma precisão conceitual para identificar a cultura, que desde o início de um processo de indivi-
trata-se agora de uma tarefa ético-ontológica, de uma polí-
tica ontológica. Esse termo é de Annemarie Mol, autora que,
duação deva haver algo do indivíduo acabado.
como B. Latour pensa um campo de saber chamado Ciência, Para Simondon, aquilo que deveria ser pensa-
Tecnologia e Sociedade (CTS), onde o conhecimento, os hu-
manos, os não-humanos, a política e a sociedade estão in- do diante dos indivíduos é que haja individua-
trinsecamente relacionados e codeterminados em práticas. ção, que haja um processo produtor. Em seu

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trabalho, o que passa a ser foco de atenção é solução supersaturada. Supersaturada e rica
o processo, e não o seu fim. De acordo com em potenciais essa solução encontra-se em
esse enfoque o autor considerará o ser como estado de metaestabilidade. O surgimento,
aquilo que “devém enquanto é, como ser” (SI- nessa solução, de um germe estruturante, um
MONDON, 1989a, p. 13). E é nesse devir que pequeno cristal, seja por geração espontânea
o ser pode produzir indivíduos. Toda individu- do campo metaestável ou adicionado por um
ação passaria a ser uma fase do ser. Sendo o agente externo, implicará na cristalização de
indivíduo uma fase do ser, deve então haver toda solução. Essa cristalização ocorrerá gra-
uma realidade pré-individual onde não existe dativamente pela adesão dos componentes
fase, nem unidade e/ou identidade. da solução ao germe de cristal, seguindo sua
Para pensar essa ontogênese como “devir forma estrutural. De camada em camada o
do ser enquanto ser que se desdobra e se de- cristal vai crescendo e tomando todo o campo
fasa individuando-se” (SIMONDON, 1989a, p. da solução. Sua camada externa será sempre
14), Simondon vai recorrer às noções de in- essa borda de metaestabilidade, esse centro
formação, de metaestabilidade, e de operação de atividade entre o meio já estruturado, o
de transdução. O processo de individuação se cristal individualizado, e o meio supersatura-
daria através da tomada de forma de um cam- do metaestável, o domínio do pré-individual.
po metaestável pelo avanço gradual de uma Nesse exemplo, a informação transferida é a
informação a partir de um germe estrutural forma do cristal, sua estrutura. (SIMONDON,
com tensão de informação. A transdução seria 1989a, p. 58-60)
essa propagação gradativa de uma atividade Analisemos as novidades que o pensamento
no interior de um domínio, estruturando-o por de Simondon nos traz para pensarmos onto-
regiões: uma região estruturada serve de prin- logicamente as bases modernas da educação,
cípio de estruturação para a região seguinte. de modo a constituir uma educação contempo-
Por essa progressão a tomada de forma (ou rânea. Pra tal, como já vimos, três elementos
a individuação) e a operação de transdução (ou são fundamentais: o conhecimento, o sujeito
a propagação de atividade) são simultâneas. A e comunicação, os quais corresponderiam, no
individuação corresponderia à informação de projeto educacional escolar à ciência, ao aluno
um campo metaestável pela transdução de capaz de aprender ciência e ao ensino dos co-
uma forma. Esse campo metaestável dotado nhecimentos científicos. A comunicação pode
de energia potencial, capaz de ser informa- ainda ser referida à própria escola como insti-
do, defasado, é o campo do pré-individual: tuição, posto que, para se manter um coletivo,
intrinsecamente problemático, composto de faz-se necessário o estabelecimento de algo
tensões entre diferenças, sempre supersa- em comum, uma comunicação.
turado e por isso sempre capaz de “receber” Em primeiro lugar pensemos na metaesta-
uma forma. A própria supersaturação do cam- bilidade. Como já dissemos, a metaestabilida-
po propiciaria a formação de estruturas, que de caracterizaria um sistema dotado de ener-
se caracterizariam como germes, pois a par- gia potencial, portanto, um sistema potente,
tir delas, por transdução, uma estruturação capaz de produzir, de defasar. Quando ten-
maior, um processo de individuação ocorreria tamos explicar o mundo, ou conhecê-lo, to-
no campo. A imagem mais simples, fornecida mando o indivíduo como foco, buscando dele
por Simondon, para exemplificar a operação fazer uma representação verdadeira, adequa-
de transdução é a da cristalização de uma da, notamos que tal modelo só pode funcionar

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na crença de que o mundo é algo estável, um versas. A individuação psíquica e coletiva são
sistema em equilíbrio onde todas as transfor- um passo a mais na complexidade e respon-
mações já ocorreram. Como para Simondon dem ao surgimento da significação onde antes
a ênfase está no processo, o campo do pré- só havia sinal. Trata-se da passagem do não-
individual deve ser necessariamente metaes- vivo ao vivo. O vivo, como descreve o autor,
tável a fim de que a individuação ocorra. E é aquele que é ao mesmo tempo resultado e
como o indivíduo não esgota o pré-individual, teatro de individuação. Nele a metaestabili-
há no ser sempre essa metaestabilidade, esse dade não se resume à interação com o meio
centro de onde os processos se desdobram. exterior ainda não individualizado. Ele contém
É pela metaestabilidade que o ser pode ser uma metaestabilidade interna, condição da
intrinsecamente devir e movimento, diferente vida. A relação meio / indivíduo é resultante
em si de si mesmo. Não há nele nada de iden- da individuação que os individua, relação per-
tidade permanente. Ela só aparece tempora- manente, como comunicação incessante, que
riamente no indivíduo, como uma fase do ser. é a própria atividade do pré-individual15.
Se a metaestabilidade é indelével, assim A escola, cenário da vida, é composta por
como o pré-individual, o espaço escolar, pen- indivíduos em individuação, jamais acabados
sado nesses termos, terá a transformação, ou definitivamente estabilizados, os quais se-
a novidade como marca. A expectativa da rão sempre “mais que a unidade e mais que a
transmissão, da perpetuação de relações, da identidade” (SIMONDON, 1995, p. 24), posto
fixação de papéis e de uma meta predeter- que contém o pré-individual em si como meio
minada a ser alcançada ao final do processo em si e para si. Sendo mais que a unidade
educacional precisam ser revistas. A educação e mais que a identidade, aluno, professor,
pensada como formação pode ceder à trans- estudante são apenas fases do ser, recortes
formação, ao devir, à individuação. Reunindo limitados desses indivíduos. A menos que os
uma série de indivíduos, saberes, discursos e retiremos do domínio do vivo e os cristalize-
práticas diversas, cada qual individuado como mos, o que é impossível. Sendo sujeitos, eles
fase do ser, a escola serve ao pensamento de estarão na escola sempre como mais do que
um grande campo supersaturado, repleto de ela pode pensar de forma individualizada. Mas
potenciais. Potenciais que mobilizam a meta- também, sempre potentes para transformá-la
estabilidade a fasar o ser de formas sempre em um meio individualizado com eles e neles,
outras, em um processo incessante. Mas tal desde que a comunicação seja respeitada, en-
potencial de devir, tal característica proces-
sual não representaria um cenário onde a im- 15 “No domínio do vivo, a mesma noção de metaestabilidade
previsibilidade geraria a impossibilidade do é utilizada para caracterizar a individuação; mas a individua-
ção não mais se produz, como no domínio físico, de maneira
acordo e da comunicação? A escola contem- unicamente instantânea, quântica, brusca e definitiva, dei-
porânea não seria um caos? xando depois dela uma dualidade do meio e do indivíduo, o
meio empobrecido do indivíduo que ele não é, e o indivíduo
Mais uma vez, ao descrever a individuação não tendo mais a dimensão do meio. [...] o vivo conserva
psíquica e coletiva, Simondon nos ajuda. A em si uma atividade de individuação permanente; é não é
apenas resultado da individuação, como o cristal e a molé-
individuação do cristal é aquela mais simples cula, mas teatro de individuação.” (SIMONDON, 1995, p. 25)
que permite explicar o processo em sua base. A atividade do vivo não está concentrada em seus limites,
como uma membrana metaestável externa,na fronteira com
Mas as tensões e os potenciais que compõem o meio, mas ela “existe nele em regime mais completo de
ressonância interna exigindo comunicação permanente, e
o pré-individual encontram caminhos de reso- mantendo uma metaestabilidade que é condição da vida.”
lução sempre novos e de complexidades di- (SIMONDON, 1995, p. 25)

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tendida, considerada e valorizada como condi- problemática tendo sua própria metaestabiliade;
ção da vida e da individuação. ela exprime uma condição quântica, correlativa
à uma pluralidade de ordens de grandeza. (SI-
É nessa relação intrínseca e prévia com o MONDON, 1995, p. 27)
pré-individual que o psíquico e o coletivo se
encontram. O coletivo seria uma individuação A escola e seus agente são a solução da
suportada pela ligação metaestável e pré-in- problemática da diversidade que compõe o
dividual que reúne todo o vivo como já indi- campo educacional. Eles não são, nunca, os
viduado e em individuação, como indivíduo e problemas em si, mas soluções, resoluções.
meio em relação. A escola é um campo de tensões e potenciais,
mais de que qualquer individuação. Enxergá-la
Conforme essa maneira de ver a individuação,
uma operação psíquica definida será uma desco- como escola é já uma redução, uma estabiliza-
berta de significações em um conjunto de sinais, ção. Mas sua condição processual se faz pre-
significação prolongando a individuação inicial do sente e por isso ela fará sempre mais do que
ser, e tendo, nesse sentido, relação tanto com o
conseguiu recortar para si como meta identi-
conjunto dos objetos exteriores como com o ser
em si. (SIMONDON, 1989a, p. 126) tária moderna. Ao se pensar contemporanea-
mente, uma pluralidade de possibilidades de
Não se trata, portanto de relação entre os individuações escolares, psíquicas e coletivas
termos, mas relação neles, a qual os definem, pode surgir como legítimas dentro da escola.
um em relação ao outro, como resultantes da E elas serão sempre próprias ao coletivo e aos
individuação e em contínua individualização. sujeitos mutuamente, sem que se possa cul-
O sujeito, aquele em quem ocorre e quem, par nem um nem pelo que se estabiliza, mas
simultaneamente, é a própria individuação abrindo a possibilidade de mobilizar a ação co-
psíquica, é aquele que sustenta duas ordens, letiva no processo de se constituir novas indi-
duas organizações: a ordem temporal e a or- viduações. Por exemplo, se a violência se faz
dem espacial. Ele conjuga e suporta a estru- presente na escola, não se trata de culpar in-
tura – a estabilidade –, e o devir – a função. divíduos ou a instituição, mas de se mobilizar
(Cf. SIMONDON, 1989a, p. 126) No sujeito, in- os potenciais coletivos para que outras confi-
dividuo e individuação coexistem, e o meio do gurações, para além da violência, possam se
sujeito individuado-individuando será sempre estabilizar naquele espaço. A violência não é
um coletivo. Diz-nos o autor: um elemento exterior à escola, mas uma so-
lução que se configura como a possível em
[...] a individuação sob a forma do coletivo faz do determinado momento. E é possível porque
individuo um indivíduo de grupo, associado ao compartilhada, comunicada e individualizada
grupo pela realidade preindividual que ele traz
pelo coletivo, psíquica e socialmente. Mas,
em si e que, reunida àquela dos outros indivídu-
os, se individua em unidade coletiva. As duas in- assim como ela foi individualizada, potenciais
dividuações, psíquica e coletiva, são recíprocas não violentos estão disponíveis à individua-
uma em relação a outra; elas permitem definir ção, ou pelo menos, outras individuações da
uma categoria do transindividual que dá conta
da unidade sistêmica da individuação interior violência são possíveis, como, por exemplo, a
(psíquica), e da individuação exterior (coletiva). competitividade dentro de regras e com obje-
O mundo psico-social do transindividual não é tivos específicos, para tomarmos um exemplo
nem o social bruto nem o interindividual, ele su-
põe uma verdadeira operação de individuação a
de conhecimento comum.
partir de uma realidade preindividual, associada A segunda noção que Simondon nos apre-
aos indivíduos e capaz de constituir uma nova senta, e que pode mobilizar ainda mais o pen-

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samento dessa comunicação que reúne e in- do o qual um sistema se individua” (SIMON-
dividua os coletivos, é a noção de informação. DON, 1989a, p. 23), “a significação que surge
Simondon a utiliza no lugar da noção de for- de uma diferenciação.” (SIMONDON, 1989a, p.
ma, antigo conceito, desde Platão, associado à 28) Se há indivíduos, eles são resultantes de
Verdade e à identidade. Essa noção de infor- um processo de informação, não são aqueles
mação vai se diferenciar também da utilizada entre os quais a informação se transmite. Em
pelos teóricos da Teoria da Informação. A in- termos simondonianos comunicar será sem-
formação, tal como utilizada por esses teóri- pre criar uma novidade, individuar uma forma,
cos, seria um termo já dado e diferente tanto fasar o ser, simulá-lo no sentido de produzi-lo,
do emissor quanto do receptor. Além disso, e não de falseá-lo. A linguagem-comunicação
teria por função estabelecer uma correlação como uma individuação é já a informação que
entre os dois. Em um modelo representacio- surgiu como solução num campo de tensões.
nal, a linguagem-comunicação parece ter exa- Mas, como nenhum indivíduo esgota o pré-
tamente a mesma função: informar o homem individual, ela é ponto de tensão num campo
sobre o mundo e reconhecer que a passagem sempre maior que a unidade. Além disso, en-
dessa informação entre os homens supõe ser a tendida como informação, ela é simultanea-
comunhão de uma mesma imagem, o que ca- mente resultante da individuação e agente da
racteriza a comunicação. Para se conhecerem individuação, como já descrevemos acima.
e se relacionarem em sociedade, os homens Assim, não há transmissão de conhecimen-
devem ser capazes de partilhar a informação tos entre professores e alunos, mas a infor-
sem ruídos em sua transmissão. A divergên- mação desses elementos em comunicação.
cia no campo do conhecimento não é nem um Não se aprende ou se ensina algo pré-forma-
pouco bem vinda se este coincide com a Ver- do, mas aprender e ensinar são processos de
dade. Na escola moderna, a expectativa é a de individuação de formas, in-formações no/do
que o aluno reproduza exatamente o que lhe campo metaestável de correlatos psíquicos –
foi transmitido pelos professores e pela insti- os saberes, os conhecimentos – das resolu-
tuição, em sentido amplo. Ou seja, como in- ções dos potencias componentes do ser. As
formações transmitidas temos as disciplinas, individuações físicas que precedem as indivi-
que são tanto os conhecimentos científicos duações recíprocas coletivas e psíquicas, e a
como as regras de conduta. Assim, não será individuação de uma idéia, um conceito, um
admitido que o aluno construa qualquer outro conhecimento, são correspondentes umas às
saber ou resposta diferente das esperadas e outras. O que se vive, o que se pensa, o que
já “informadas” a ele, nem que se comporte se é, o que se compartilha são formas de indi-
de modo inesperado, o que será visto, em am- viduação de um mesmo campo problemático,
bos os casos como in-disciplina. mas jamais problemas em si. Também não faz
Em Simondon a informação não será mais sentido pensar em inadequações, pois não há
aquela que é transmitida entre dois pólos, ou elementos de naturezas diferentes que devam
seja, fazendo parte de um sistema de termos ser compatibilizados. O que há são compatibi-
pré-definidos: emissor – mensagem – recep- lizações de tensões e diferenças prévias que
tor. Se existe um sistema, este é o campo me- se defasam nas diferentes possibilidades de
taestável composto de diferenças intrínsecas fases do ser. Não há um conhecimento que
e potenciais. A informação será, nesse contex- representa ou não representa o ser, mas um
to, “sempre atual, pois ela é o sentido segun- conhecimento que simula o ser na forma de

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conceito. Portanto, Trata-se do ser em si, mas renças, as incompatibilidades e as tensões são
o ser conceitual, sendo o ser sempre mais que de fato as condições da solução, que não vai
a unidade, que a identidade conceitual, pois o recorrer a nada exterior ou transcendente ao
ser é também o pré-individual. campo. Explica o autor:
A in-formação desses conhecimentos é dis-
cutida por Simondon em termos de transdu- [...] nesse sentido, tanto a noção de relação
adaptativa do indivíduo ao meio, quanto a noção
ção. Eis a terceira noção do autor que nos im-
crítica de relação do sujeito do conhecimento
porta: a operação de transdução. Simondon a com o objeto conhecido devem ser modifica-
concebe como uma operação física, biológica, das; o conhecimento não se constrói como uma
mental e social, “uma noção simultaneamente abstração a partir da sensação, mas de maneira
problemática a partir de uma primeira unidade
metafísica e lógica; aplica-se à ontogênese e é tropística, duplo de sensação e tropismo, orien-
a própria ontogênese.” (SIMONDON, 1989a, p. tação do ser vivo em um mundo polarizado. (SI-
26) Desta forma, ela se aplica ao surgimento MONDON, 1995, p. 28)
de todo tipo de identidade, seja um ser ma-
terial ou um conceito, e nos permitiria com- Assim, ao discorrer sobre o processo de
preender o conhecimento como um processo individuação ao longo dos domínios indivi-
análogo ao processo de individuação que cria duados, tratando diretamente dos processos
a realidade. psíquicos, coletivos e do conhecimento, Si-
O conhecimento por transdução não coin- mondon nos oferece formas ontológicas que
cide mais com a descoberta de conceitos podem servir à individuação de um projeto
preexistentes, nem com uma criação entre educacional contemporâneo posto que nos
termos fixos e dados a priori. Tampouco com oferece alternativas às figuras modernas do
uma ação de simulação que criaria uma rea- aluno, do professor, da escola e da ciência. A
lidade diferente de uma realidade natural ou CCC ao dar visibilidade aos processos de indi-
que substituiria perfeitamente essa realida- viduação da cultura, da relação e dos sujeitos
de natural. O conhecimento seria a solução pela ação das redes de fluxo de informações
de um campo problemático de tensões pelo digitais, favorece que se pense ontologicamen-
estabelecimento de uma relação simultânea te o mundo como processo e devir. Da mesma
aos termos que ela individua nessa relação. forma, ao desmaterializar e codificar o mun-
Um indivíduo e um meio são conhecidos ao do digitalmente e disponibilizar tecnologias
mesmo tempo em que são individuados. Co- de composição dessa rede às ações individu-
nhecer por transdução não é olhar o mundo ais e cotidianas, a contemporaneidade como
à distância, mas individuar um mundo. É um que trouxe o laboratório para as ruas e fez de
“empobrecimento” do ser no sentido de uma cada sujeito um cientista que cria, simula e
defasagem, da estruturação de uma identida- inventa a si e ao mundo ao sabor dos cliques e
de, mas não é uma redução ao que há de co- das conexões em redes sociotécnicas-digitais.
mum e universal, nem uma solução no modo Um projeto educacional compatível e afim
de uma conclusão que ultrapassa o problema com esse contexto precisa, então, assumir a
(o que caracterizaria, respectivamente, os co- invenção, a participação e a novidade como
nhecimentos indutivos e dedutivos, segundo próprias da formação dos sujeitos porque pró-
Simondon). A solução por transdução abarca prias à vida. Portanto, próprias à escola, e não
todas as diferenças presentes no campo sem estranhas e nocivas a ela. Na CCC, pensar o
sintetizá-las, mas dimensionando-as. As dife- projeto educacional pode ser pensar a ontogê-

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nese do sujeito, da escola e do conhecimento como in-formação e transdução dessas identidades,


como resoluções provisórias, metaestáveis, do campo supersaturado que é o campo educacional
como campo da vida.

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Recebido em: 26 de setembro de 2011


Aprovado para publicação em: 24 de fevereiro de 2012

Aline Verissimo Monteiro


Professora Adjunta de Psicologia da Educação do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. E-mail: alinevemonteiro@gmail.com

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