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9.

A CULTURA VISUAL ATRAVÉS


DA ESTÉTICA SURREALISTA EM
UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO
SUPERVISIONADO EM ARTE-EDUCAÇÃO
NO OESTE DA BAHIA
Uillian Trindade Oliveira
Anna Caroline de Jesus Araújo

Introdução

Compreender a sala de aula como espaço de produção de co-


nhecimento compartilhado é uma necessidade pedagógica quando
o estagiário, futuro professor de Arte, está atuando. A formação
do educando se dá nesse espaço, em que há interação direta en-
tre professor, estagiário e estudantes da Educação Básica, todos
atravessando e sendo atravessados por suas histórias de vida, vi-
são de mundo e pela cultura visual no processo de construção do
conhecimento. O componente curricular Estágio Supervisionado
é entendido como um espaço-tempo de aprendizagem e (re)sig-
nificação docente na formação inicial e da prática do licenciando
como formação em serviço. Autoras como Lima e Pimenta (2017)
consideram essa etapa na formação do estudante um campo de
conhecimento que se constrói na interação entre o curso de forma-
ção e o campo social. Nessa linha de pensamento, Pimenta (1994)
propõe que o estágio não apenas é atividade prática, mas, também,
uma ação teórica instrumentalizada da práxis docente. Nesse sen-
tido, é entendido como atividade de transformação da realidade
por meio do diálogo e intervenção no contexto social, perpassando
as coletividades e o desenvolvimento de uma identidade docente.
No transcorrer do estágio supervisionado, o estudante de Artes
Visuais vivencia experiências didáticas da sua futura profissão sob
orientação de um professor habilitado para tal responsabilidade,

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conforme Resolução 02/2015 do Conselho Nacional de Educação,


que define as “Diretrizes curriculares nacionais para a formação
inicial em nível superior”.
A experiência aqui relatada foi desenvolvida no Colégio Popu-
lar Oliveira Magalhães, cuja mantenedora é a Prefeitura de Santa
Maria da Vitória, município situado no oeste do estado da Bahia,
com uma área de 1.966,8 km² e que, até o último censo, realizado
em 2010, contava com 40.309 habitantes. Especificamente, o proje-
to foi realizado em uma turma do 6º ano do Ensino Fundamental,
regida pela professora Valdinete Lima de Souza. Abarcou um total
de 19 alunos, sendo 11 do sexo masculino e oito do sexo feminino.
Após as observações in loco, identificamos que havia a neces-
sidade de se trabalhar a criatividade, a imaginação, os sonhos, o
absurdo. Esse entendimento tem como base o que foi notado em
diálogos mantidos durante as observações: no discurso dos estu-
dantes, sobressaíam-se a afinidade e o gosto por elementos sobre-
naturais, fantasiosos, pois ouvem histórias de lendas locais e tam-
bém observam esse tema principalmente nas imagens do cinema,
nas telenovelas, séries e videoclipes. Assim, ficou delineado que a
estética surrealista seria o conteúdo a ser mediado com a cultura
visual destes estudantes.
As imagens desempenham possibilidades de reflexão e articu-
lação que evidencia a diversidade de sentidos. Estas não podem ser
desprezadas pelo professor de Arte, pois cada indivíduo lê e inter-
preta o mundo e as imagens de maneira singular, possibilitando
espaços para a diversidade. Além disso, é importante considerar que
os significados das imagens e sua constituição não se separam do
contexto em que elas são produzidas e vivenciadas. Na vida con-
temporânea, a fugacidade da imagem e o tempo da experiência não
conseguem caminhar juntos; duelam por espaço, atenção e afeto.
Nesse cenário, é nossa responsabilidade, como professores, propor
mudanças para enriquecer as nossas experiências e as dos alunos, a
partir das imagens da cultura que nos atravessa e/ou atravessa a es-
tes, pois é a educação crítica da maneira como olhamos, nos aproxi-

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Arte na educação básica: Experiências, processos e práticas contemporâneas II

mamos, nos relacionamos e compreendemos tais imagens que pode


nos fazer indivíduos críticos em nossa singularidade.
Por conseguinte, na contemporaneidade, ensinar arte é olhar,
analisar e valorizar a cultura local por meio da imagem como cam-
po de conhecimento, em aproximação com as mídias e percebendo
a sua potência tecnológica de comunicação e expressão, tudo isso
relacionado à cultura visual do aluno. Assim, após algumas reu-
niões para definir o projeto de intervenção em coparticipação, per-
cebemos a necessidade de uma ação educativa para a cultura visual
amplamente crítica, posicionando o jovem com autonomia frente a
qualquer imagem, visual, verbal ou sonora. Isso porque, conforme
entendemos, a educação cumpre seu papel de formação quando se
aproxima dos lugares onde os jovens estão, contribuindo para que
estabeleçam relações e delineiem suas opiniões e subjetividades, o
que se faz no conflito de gerações e identidades. Sobre isso, Lima e
Pimenta (2017) sugerem que a relação das experiências de vida dos
professores e alunos gera conflitos e contradições, em um jogo de
forças e interesses que nem sempre ambas as partes caminham na
mesma direção, mas, ainda assim, trata-se de um jogo potente na
atividade docente.
No âmbito do projeto de Estágio Supervisionado cuja experiên-
cia é aqui relatada, após as aulas de observação, foram estabelecidas
conversas entre o professor orientador, a estagiária e a professora
supervisora do estágio. A partir disso, ficou decidido que o projeto
abordaria a estética surrealista, com sua contextualização históri-
ca, seus principais artistas e obras, em diálogo com o desenho de
observação e a técnica da isogravura. Nesse contexto, pensar a pró-
pria prática no ensino de Artes é encontrar o estágio supervisionado
como espaço de carências que exige reflexão, questionamentos e
necessidade de renovação, razão pela qual Lampert (2015) sublinha
a “vivência em arte” como caminho profissional para superar essas
impossibilidades. Por esse prisma, a “vivência em arte” implicaria
tomar a arte como reflexão da vida na realidade sociopolítica.

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Contexto histórico do surrealismo

Rejeitando a razão para representar a realidade de maneira não


objetiva e realista, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
diversos artistas criticaram a cultura europeia vigente à época, as-
sim como a condição humana em meio a um mundo cada vez mais
desumano. Eles discordavam da participação de seus respectivos
países no conflito, reconhecendo que nem a religião, nem a ciência,
nem a filosofia foram capazes de impedir a barbárie que nele cul-
minou. Para esse grupo, a arte teria perdido seu sentido, já que a
guerra havia instaurado o irracionalismo na Europa.
Com esse sentimento, o poeta Tristan Tzara criou o movimento
dadaísta, pelo qual propôs uma arte livre do racionalismo e dos va-
lores tradicionais de uma sociedade por ele considerada hipócrita.
Como consequência, em 1924, na França, o poeta André Breton
escreveu “O manifesto surrealista”, defendendo a criação artística
a partir do automatismo psíquico puro, em que as produções ig-
noram a razão, a moral ou uma preocupação estética com o belo,
associando-se às imagens dos sonhos, das alucinações e do incons-
ciente (Breton, 1976).
Pesquisas de Sigmund Freud influenciaram de forma contunden-
te esse movimento artístico. Segundo Rebouças (1986), o Surrealis-
mo surge em louvor às descobertas freudianas no domínio da psica-
nálise e ao enaltecimento do sonho. Relata o mesmo autor que Breton
teria se interessado tanto por essas descobertas, que visitou Freud
várias vezes, trocando com ele correspondência sobre o assunto.

[...] Muitos dos surrealistas estavam profundamente im-


pressionados com os escritos de Freud, segundo o qual,
quando nossos pensamentos estão em estado vígil, ficam
entorpecidos, a criança e o selvagem que existem em nós
passam a dominar. Pois essa ideia fez os surrealistas pro-
clamarem que a arte nunca pode ser produzida pela razão
inteiramente desperta. Podiam admitir que a razão pode
dar-nos a ciência, mas afirmavam que só a não-razão pode
dar-nos a arte. (Gombrich, 1999, p. 592)

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Não é novidade que antes do Surrealismo muitos artistas bus-


cavam voos criativos que ignoravam a razão, haja vista que os ter-
renos inexploráveis da mente humana sempre geraram fascínio nos
artistas, conforme assevera Gombrich (1999, p. 592): “[...] Os an-
tigos referiam-se à poesia como uma espécie de “divina loucura” e
autores românticos como Coleridge e De Quincey realizaram deli-
beradamente experiências com ópio e outras drogas a fim de expul-
sarem a razão e deixarem a imaginação prevalecer”.
No Brasil, a estética surrealista tem como representantes a es-
cultora Maria Martins e os pintores Cícero Dias e Ismael Nery, este
também escritor. A escolha da estética surrealista como mote para
o projeto de Estágio Supervisionado também foi influenciada pela
afinidade que a estagiária possui com as novidades relacionadas à
cultura visual: ela é uma jovem de 21 anos que aprecia essa estética
mágica e fantasiosa da realidade, que exalta a criação a partir da
imaginação e dos sonhos. Com o projeto, seu objetivo foi propor-
cionar o contato dos alunos com uma contextualização histórica e
com referência visual do mundo contemporâneo. Quanto aos es-
tudantes envolvidos, muitos ainda eram crianças, enquanto outros
estavam entrando na adolescência.
Com a proposta surrealista, a fantasia ganha espaço para inva-
dir a realidade. Sobre isso, Breton (1976, p. 20) aduz:

O espírito que mergulha no surrealismo revive com exal-


tação a melhor parte da sua infância. Das recordações da
infância e de algumas outras provém uma sensação de
desmonopolizado e, por conseguinte, de desviado, que eu
considero a mais fecunda de todas as sensações. É talvez a
infância que mais se aproxima da verdadeira vida; a infân-
cia, para além da qual o homem não dispõe além do seu
salvo conduto, mais do que algumas estradas a seu favor,
a infância, onde, todavia, tudo corria para a posse eficaz e
sem eventualidades de si mesmo.

Nessa perspectiva, o encontro do Surrealismo na fase em que


estavam os estudantes poderia, no nosso entendimento, potenciali-

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zar o borbulhar que costuma afetar suas mentes na fase da vida em


que se encontravam, explorando sonhos e criatividade e levando a
imaginação a voos altos.

Cultura visual

A princípio, os estudos da cultura visual contestam as catego-


rizações hegemônicas, como estilos e “ismos”. Aqui, é exigida uma
abertura mais abrangente para a cultura local. Nessa direção, o pro-
pósito da cultura visual é, por meio de uma interpretação crítica,
desenvolver um conhecimento mais democrático, rico e complexo,
pondo em evidência as várias

[...] relevâncias que as representações visuais e as práticas


culturais têm dado ao olhar em termos das construções
de sentido e das subjetividades no mundo contemporâneo.
(Hernández, 200, p. 27)

A partir disso e sendo dotadas de uma visão crítica e responsável,


as pessoas tendem a estar mais conscientes para não serem manipu-
ladas pela vasta diversidade de imagens de arte, de publicidade, da
TV e da ficção. Em um primeiro momento, tais imagens parecem
despretensiosas, mas nos seduzem, influenciam e perpassam nossos
comportamentos. Por isso, o intuito do projeto foi destacar que as
imagens têm propósitos dominantes na cultura e exercem poder e
influência psicológica e social sobre os indivíduos. Na perspectiva
da cultura visual, a interpretação das imagens se constitui como
prática social que mobiliza a memória do olhar, aciona e atravessa
os sentidos da memória social construída pelo sujeito, influenciadas
pelo imaginário do lugar social. Segundo Martins (2006, p. 73),

As interpretações configuram processos de construção de


sentidos e significados. Concepção inclusiva, a cultura
visual se apropria do conceito de interpretação dialógica,
instituindo e ambientando o princípio da heterogeneidade,

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núcleo central das reflexões pós-estruturalistas. Ênfase des-


sas reflexões, o „conceito de autor‟, as
„teorias sobre o sujeito‟ e a questão das „múltiplas identi-
dades‟ geram deslocamentos conceituais e interpretativos,
abrindo espaço para a discussão sobre o modo como ima-
gem e arte nos interpelam.

Para Richter (2008), essa postura é especialmente indicada para


o ensino da Arte, pois dá ênfase às mais diversas manifestações
artístico-culturais, considerando suas visões de mundo e seus pró-
prios conceitos de arte, sem descuidar do conhecimento dos múlti-
plos códigos da arte, como acervo cultural de toda a humanidade.
O Surrealismo foi contextualizado e ressignificado pelos alunos na
cidade de Santa Maria da Vitória a partir da sua cultura, sendo
interessante observar como tal movimento artístico incide sobre in-
divíduos vivendo em lugar distante da Europa e tão distinto desta.
A atitude de o professor de Arte voltar os olhos para o lugar de
vida dos alunos tem suas origens na década de 1980. Segundo Ana
Mae Barbosa (2017), naqueles anos e na década seguinte, com a
virada pós-moderna, ocorreu uma significativa mudança no ensino
das Artes Visuais, a qual ficou conhecida como a “virada cultural”.
Com isso, o conceito de arte sofreu grande mudança, contorceu-se,
reinventou-se, estando, atualmente, interligado à cultura. Ensinar
Arte hoje não apenas é fazer atividades artísticas com técnicas ou
simples contextualizações; é necessário, adicionalmente, um sobre-
voo atento sobre a cultura contemporânea, abordando suas produ-
ções artísticas, valorizando a imagem como campo de conhecimen-
to que acolhe todas as mídias, visibiliza e respeita as diferenças e seus
contextos no espaço-tempo. A educação em Arte, nos dias atuais,
precisa dialogar com o multiculturalismo, o interculturalismo, os
estudos culturais, os estudos visuais, a cultura visual, as relações co-
munitárias com o vídeo, o cinema, a internet e a música, tudo isso
potencializado pelas novas tecnologias no ambiente virtual.

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A experiência do estágio atravessada pela cultura visual e a


estética surrealista

Antes de pousarmos sobre o tema Surrealismo com os alunos,


lançamos mão da experiência do desenho e seus processos, por
considerá-lo como um mediador inicial para desconstruir a ideia
do “não saber desenhar”, discurso marcante em suas falas. Assim,
foram sugeridas atividades de desenho de modelo vivo, a partir do
que alguns estudantes se propuseram a posar. A abertura ao diálo-
go sobre a desconstrução do desenho, ressaltando como cada um
possui um traço exclusivo, não existindo o certo e o errado, vez que
todos são desenhos, configurou-se como momento importante. Fri-
samos a relevância de se trabalhar o olhar e o traço gráfico de cada
um. A esse respeito, Cola (2014) argumenta que mediar o ensino do
desenho na escola requer consciência sobre seu objetivo em sala de
aula. Algumas técnicas artísticas podem ser descobertas pelo estu-
dante, em processo. As técnicas só aparecem à medida que o aluno
pratica o desenho, pois, segundo o mesmo autor, nascem com o
trabalho, à medida que novos desafios vão exigindo um olhar e
uma habilidade no fazer, sem imposição do professor; caso con-
trário, ensinar a técnica levará à inibição do aluno para o desenho
espontâneo. É responsabilidade do professor despertar a tomada de
consciência no aluno e reforçar que ele já traz consigo um conhe-
cimento intuitivo necessário para a expressão gráfica. Ana Mae
Barbosa (2017, p. 12) traz as sutis palavras do crítico Eduardo Veras
sobre as múltiplas funções do desenho:

O desenho é um dos instrumentos mais caros para a anota-


ção daquela ideia que irrompe de imediato, urgente, como
se brotasse de repente, do nada. O desenho é um dos meios
mais propícios para a construção daquela ideia que delineia
milimetricamente, passo a passo, como algo que se engen-
dra aos poucos, seguindo um plano que se estabelece no
ato mesmo de riscar a linha [...]. O desenho – generoso –
se presta a gestos díspares, à primeira vista contraditórios.

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[...] O desenho [...] registra ideias e as irradia. O desenho


detona conflitos e busca soluções. O desenho funda novas
realidades.

A ação planejada do projeto de estágio foi um trabalho prá-


tico, desenvolvido a partir da cultura visual dos estudantes, per-
passando o desenho e a isogravura. Essa última é uma linguagem
artística derivada da gravura, usando o isopor como matriz, em
vez de madeira, borracha, pedra ou metal. Pela metodologia uti-
lizada, foram necessárias dez aulas sequenciais. As duas primeiras
foram uma imersão no conteúdo, realizada com aulas explicativas
e expositivas sobre o Movimento Surrealista. Para embasar as ex-
plicações, utilizamos algumas reproduções de obras de Salvador
Dalí, como “Autorretrato com l‟humanité” (1923), “Construção
mole com feijões cozidos: premonição da Guerra Civil” (1936), “A
tentação de Santo Antônio” (1947) e “O relógio mole no momento
da primeira explosão” (1954).
Adicionalmente, foram usadas referências visuais de clipes de
artistas contemporâneos, como Lady Gaga (“Applause”). Mas o que
mais chamou a atenção dos estudantes, momento em que fizeram
várias indagações, foi a exibição do clipe “Up&Up” da banda inglesa
Coldplay. Lançado em 2015, este clipe possui uma estética retrô dos
anos 1920 e 1950, mas, também, surreal. Com produção de Vania
Heymann e Gal Muggia, a produção mistura pessoas, paisagens
e animais em diferentes situações. Nela, vemos cenas como: uma
tartaruga voando em uma estação de metrô, um vulcão expelindo
pipocas, paraquedistas que caem em direção a um prato de macar-
rão ao saltar de um avião, uma imensa borboleta pousada em uma
plataforma de petróleo em alto mar, um campo de futebol sobre
uma esponja de lavar louças e duas pessoas nadando de costas sobre
carros que transitam por uma avenida. Tais cenas trazem críticas
sociais de momentos históricos que marcaram o mundo. Porém, a
letra aponta para o que conclama o refrão “get it together”, que, em
tradução livre e formulada a partir de Musique (2017), convida-nos

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a viver com pensamentos e atitudes otimistas, a fim de recompor


uma vida digna.
Outra referência do Surrealismo bastante comentada pelos es-
tudantes foram as máscaras utilizadas pelos personagens na série
espanhola “La casa de papel” (2017), exibida pela Netflix. No enre-
do, personagens que representam ladrões usam máscaras caricatas
do pintor surrealista Salvador Dalí para cometer seus crimes. “La
casa de papel” é bastante popular entre os jovens, pois, na aula,
verificamos que os estudantes não conheciam Salvador Dalí, mas
as máscaras que serviram de referência à série, sim. Um estudante
assim expressou: “eu sabia que o conhecia [referindo-se ao pintor]
de algum lugar!”.
Nessa perspectiva, Rosa Iavelberg (2008) sugere que professores
necessitam de conhecimentos consistentes para transpor suas vivên-
cias para a sala de aula. Isso porque, como vemos, o diálogo sobre
a cultura visual dos estudantes possibilitou uma aproximação entre
estes, a estagiária e o professor orientador. Os discentes, mesmo
vivendo no oeste da Bahia, distante dos grandes centros urbanos,
possuem, a partir da internet, acesso ao mundo digital, redes sociais
e plataformas de filmes e entretenimento, como YouTube e Netflix.
Essa globalização promove seu contato, em tempo real, com tudo
que acontece em outras cidades ou países. Assim, os novos desenhos
animados, filmes, séries, novelas, músicas, moda e comportamento
fazem parte da vida da maioria dos alunos.
A potência da globalização, portanto, traz o mundo virtual ao
tempo que acontece o deslocamento de um movimento europeu e
sua estética, incidindo sobre a cultura visual de estudantes do oeste
baiano e possibilitando-lhes relacionar e perceber que seu olhar é
condicionado por forças externas, a cultura visual. Nessa dinâmica,
a cultura visual contesta e desafia os limites dos sistemas de artes e
suas instituições, ao estudar a desterritorialização dos objetos artís-
ticos, analisando-os como artefatos sociais, ao mudar o foco das ca-
tegorias artísticas tradicionais e acadêmicas no estudo dos objetos,
trabalhando deslocamentos da história e relações “[...] intertextuais

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ou intervisuais, com possibilidade de múltiplas associações visuais


e intelectuais” (Guasch, 2005, p. 10).
Corroborando as ideias de Martins (2006), ao desvelar as con-
fluências e dessemelhanças entre as diversas formar da arte popular
e da arte acadêmica; ao incluir e discutir o impacto das imagens
das artes visuais (cinema, moda, pintura, publicidade, jogos virtuais,
histórias em quadrinhos); ao ampliar limites culturais e educativos
que abrangem outros segmentos e grupos culturais, suas imagens e
artefatos; ao enfatizar, deliberadamente a relação arte e vida, ou seja,
arte e imagem como parte de uma convivência diária com nossa di-
versidade e complexidade cultural, a cultura visual pretende, como
campo de investigação, despertar, particularmente, nos estudantes,
uma visão crítica em relação ao domínio que as imagens e seus dis-
cursos possuem sobre o ser humano. Busca promover uma postura
responsável diante das liberdades decorrentes desse contato com as
imagens e seu poder. Tal responsabilidade tem claras implicações
éticas, as quais são assim explicadas por Freedman (2006, p. 27):

[...] As pessoas não apenas podem falar livremente; podem


acessar livremente, apresentar e duplicar, manipular eletro-
nicamente e televisionar mundialmente. As imagens e os
objetos da cultura visual são vistos constantemente e são
interpretados instantaneamente, formando um novo co-
nhecimento e novas imagens sobre a identidade e o entorno.

Trabalhar a estética de um movimento artístico europeu do iní-


cio do século passado para o interior do oeste da Bahia no século
XXI foi desafiador, no sentido de requerer que fosse estabelecida
uma ponte entre a arte europeia com a realidade local dos estu-
dantes. Durante a contextualização do conteúdo, alguns relataram
que conheciam a artista mexicana Frida Kahlo e que achavam suas
obras interessantes. Eles também fizeram referências às obras da
brasileira Tarsila do Amaral, pois algumas de suas pinturas esca-
pam à razão, indo em direção ao folclore, à mitologia, rondando a
imaginação das crianças. A graduanda em estágio teve o cuidado

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de explicar que, mesmo que as duas artistas tenham flertado com a


estética surrealista, elas não faziam parte da vanguarda europeia. A
partir de tudo o que viram e ouviram, os alunos ficaram fascinados
e atentos ao conteúdo e, entre outras observações, indagaram sobre
a relação das máscaras da série La casa de papel com o Surrealismo.
Após as explicações da estagiária, eles perceberam a existência de
um propósito em imagens culturais que consumimos em forma de
filmes, músicas, pinturas, moda.
Posteriormente às conversas, explicações e exposição das refe-
rências visuais do tema, passamos para a segunda etapa do projeto,
que consistiu na criação do desenho, um esboço do que, em seguida,
seria transferido para o isopor, por meio da isogravura. Percebemos
que, mesmo com as referências utilizadas, os estudantes demostra-
ram dificuldades na composição dos desenhos. Por isso, a estagiária
estabeleceu conversas individuais, indo à cadeira de cada um para
analisar o desenho e dar alguma contribuição a partir da criação/
ideia já existente. Nessa dinâmica, buscou respeitar o processo de
cada um, sem descartar o que já havia se construído de imagem.
Os alunos demostraram-se bastante receptivos às sugestões e
contribuições da estagiária. Também se mantiveram empenhados
em construir o desenho com maior proximidade com a temática
do Surrealismo. Dentre algumas criações, surgiram: uma sereia
descansando na borda de uma xícara de café; um unicórnio com
apenas duas pernas, cabelo de arco-íris, seios de mulher, rabo e lín-
gua de cobra; uma borboleta com cabeça humana e com face zoo-
mórfica. O que chamou a atenção foi que a criatividade gráfica dos
estudantes aconteceu sem pudores, sem juízo estético ou de valo-
res. Para realizar as experiências, utilizamos os seguintes materiais:
tinta guache (verde, amarelo, violeta, branco, preta, laranja, azul,
vermelho), estiletes, folhas A4, garrafas de vinho vazias para servir
como rolo de impressão, isopor, lápis 3b, esponja de lavar louças.
Após a produção dos desenhos, os estudantes fizeram a trans-
ferência para a matriz de isopor, para, em seguida, entintar (pas-
sar a tinta na matriz). A fase final do processo da isogravura foi

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a impressão. Esta foi a parte de que eles mais gostaram, pelo fato
de que puderam ter contato com as tintas – não se trabalha com
esses materiais em muitas aulas de Arte. Eles receberam orientações
sobre como fazer a técnica da impressão com a garrafa de vinho
vazia. A escolha das cores ficou a critério de cada um, sendo possí-
vel misturá-las para obter tons diferentes. Assim, eles fizeram im-
pressões com várias cores. Divertiram-se, aprendendo, desenhando,
pintando, gravando e imprimindo. Neste momento, um estudante
exclamou: “isso é um refúgio mental!” Não perguntamos o porquê,
para não interferir no seu momento criativo e espontâneo. Todavia,
pela sua feição de satisfação, deduzimos que a experiência lhe estava
sendo proveitosa.
Após a secagem das impressões, os estudantes foram convida-
dos a fazer a limpeza da sala de aula, explicando a necessidade de o
artista sempre manter o atelier limpo e organizado após o uso. Pos-
teriormente, fizemos um painel com as gravuras na parede da sala.
Não fazia sentido guardar as obras ou pedir que fossem levadas para
casa, ainda que esta também seja uma forma de valorização, de afir-
mar que a produção artística em sala de aula também é importante
para o processo de educação e formação dos estudantes como sujei-
tos pensantes e formadores de opinião. A criação do mural suscitou
alegria e orgulho para todos, pois possibilitou apreciar, analisar e
perceber as diferentes abordagens poéticas dos estudantes.
Na percepção da estagiária, a turma superou suas expectativas
quanto ao resultado final. Após conversas e análises entre estagiária,
orientador e supervisora de estágio, entendemos que isso aconteceu
pela maneira como a primeira conduziu a oficina, sendo bastante
flexível, afastando-se da imposição e atuando como participante do
processo de criação de cada aluno. Isso os ajudou a se sentirem segu-
ros e a acreditar na própria capacidade de criar um trabalho artístico.
Em sala de aula, todos os interlocutores se conectam e expe-
rienciam a estética, a cognição, o afeto e a vida. Assim, a media-
ção cultural significa perceber os códigos cultos por outras vias,
por exemplo, a fruição não espontânea, feita por um esforço diante
da cultura. O professor mediador utiliza resíduos e fragmentos de

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acontecimentos que guarda em seu estoque e cria novas oportu-


nidades de aprendizagem, revisitando textos, imagens e situações
materiais, acrescentando elementos de sua experiência e de seu re-
pertório cultural.
Nesse contexto, é necessário, também, valorizar o papel da re-
gente em sala de aula, que também atua como supervisora do es-
tágio. Mesmo não tendo formação específica em Arte, a professora
Valdinete foi fundamental para que a graduanda em Artes Visuais
pudesse conduzir a realização do projeto em sua turma. A profes-
sora acompanhou a experiência e transmitiu confiança à estagiária,
proporcionando-lhe liberdade para trabalhar com os alunos e co-
laborando a todo momento, ombro a ombro, sendo generosa no
processo de intervenção.

Considerações finais

O momento do estágio supervisionado requer a imersão in loco


dos estudantes de licenciatura, permitindo que vivenciem a dife-
rença entre teoria e prática, perpassado por inseguranças, experi-
mentações e felizes descobertas em relação à profissão docente. Este
foi o momento para a graduanda de Artes Visuais coautora deste
trabalho entender o que é ser professora de Arte. Na sua avaliação,
a realização do estágio foi um divisor de águas para a sua formação
como licencianda. No transcorrer da experiência, ela entendeu, na
prática, o que é ser professora, o que é mediar um conhecimento
vivenciado na universidade e fazer a transposição didática na Edu-
cação Básica. Compreendeu que o professor é um importante agen-
te na formação das crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em
que os estudantes da Educação Básica são fundamentais durante e
depois da formação acadêmica do licenciado.
Ao analisar e discutir todo o processo com a estagiária e a
regente/supervisora, concluímos que a prática e a teoria são duas
vias de mão dupla, que nunca podem se separar; uma prescinde da
outra. Nesse processo, tivemos o cuidado para não haver omissão
de nenhuma das partes. Ter domínio da teoria é fundamental,

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mas é necessário buscar caminhos para mediá-la em sala de aula,


de modo a não contribuir para a reprodução de métodos tradi-
cionais e transformar o rico momento da aula em uma atividade
tediosa e desinteressante.
O conteúdo Surrealismo poderia ter sido trabalho de maneira
mecânica, privilegiando apenas o movimento artístico europeu da
década de 1920, com a exibição de algumas imagens e realização
de releituras de obras consagradas. Porém, vimos a necessidade de
ir além, trazer a consciência do poder de influência que as imagens
possuem sobre nós, por meio da cultura visual e da valorização da
cultura local. Seguindo essa linha de raciocínio, optamos por trazer
referências da vida, do cotidiano perpassado pela cultura visual dos
estudantes, valorizando o conhecimento já existente na sua expe-
riência de vida, no seu contato com o mundo virtual. Trata-se, por-
tanto, de uma proposta que se alinha à perspectiva defendida por
Lima e Pimenta (2017), que sugerem que esta etapa na formação do
estagiário é como um campo de conhecimento que se constrói na
interação entre o curso de formação e o campo social.
No estágio supervisionado, é importante ter consciência de que
o professor compartilha os conhecimentos específicos de sua área
levando em consideração suas concepções de mundo, escola, de alu-
no, avaliação e da sua experiência de vida. Assim, o trabalho do
estagiário é mediar, experimentar, orientar, em vez de impor. Princi-
palmente na disciplina de Artes, é saber possibilitar momentos cria-
tivos, sem perder de vista a mediação em sala de aula. É, também,
ter uma relação afetuosa com o estudante, para que este saiba que,
naquele momento, a estagiária, a professora regente/supervisora, o
orientador do estágio e os alunos estão, todos, aprendendo uns com
os outros. Isso porque estar em sala de aula nos possibilita transitar
por este rico território do espaço-tempo, saberes-fazeres, procurando
brechas para promover outras formas de educação, que considerem o
estudante como protagonista da sua experiência, valorizando a ima-
gem que ele vê e consome, partindo de suas práticas culturais.
Ao pensarmos a subjetividade a partir da perspectiva pós-estru-
turalista, na qual a realidade é considerada como uma construção

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Daniel Santos Costa | Tiago Samuel Bassani (orgs.)

social e subjetiva, optamos pelo caminho da cultura visual, que faz


frente à hegemonia de discursos já consagrados. Nessa perspectiva,
a experiência promoveu a valorização da cultura dos estudantes, das
histórias folclóricas de seu lugar, além do respeito às suas singulari-
dades e a discussão sobre a cultura por eles consumida, despertando
a tomada de consciência da construção de sentidos de suas subjeti-
vidades no mundo contemporâneo.

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