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Márcio Souza (Prefácio)

A cozinha da região amazônica evoca paladares ancestrais, quando o mundo era jovem
e os povos do grande vale construíam suas civilizações sem a presença dos brancos. Um naco
de tucunaré, uma garfada de paxicá de peixe-boi ou um bocado de sarapatel de tartaruga
remetem a velha morada dos deuses dessas terras do sem-fim. E, claro que hoje os nossos
deuses selvagens foram banidos da terra, o status ontológico da Amazônia passou a ser
traduzido pelo potencial de energia elétrica de uma cachoeira ou pela viabilidade econômica
de uma mina de manganês. Tartarugas e peixe-boi estão em processo de extinção, graças a
esta ideologia míope de progresso que nos chega truncada e mal assimilada por tecnocratas
de pouca imaginação e políticos conformistas.

Mas a cozinha amazônica é a mais patente prova da superioridade cultural das


civilizações indígenas na, Amazônia. Durante mais de duzentos anos, entre 1530 a 1790, os
europeus constataram a sua própria inferioridade. Para sobreviver tiveram de se adaptar aos
costumes da terra, despir seus trajes de veludo e suas armaduras pesadas e reencontrar as
roupagens da primeira criação.

E possível que esta superioridade cultural tenha arranhado seriamente o narcisismo


europeu, porque os índios sempre representaram uma presença inquietante. Para os
primeiros colonos portugueses eles eram os senhores absolutos da região. Eram os índios —
representantes de uma humanidade considerada degradada pelos europeus — os únicos que
haviam conquistado o status de uma cultura que falava em todos os níveis a linguagem da
Amazônia. Apropriando-se dos métodos indígenas, os colonos, ao mesmo tempo que
fundaram as bases sociais da futura Amazônia, estabeleceram um conflito. E esse conflito
preside ainda hoje a cultura da região. Os índios, no entanto, nunca colocaram em risco a
estabilidade do meio ambiente amazônico, enquanto a nossa cultura, que se considera
superior, nem precisamos comentar as inúmeras agressões.

Em 1665, o padre Antônio Vieira visita Belém. Escreve algumas das mais vivas crônicas
sobre os costumes e a rotina de uma vila colonial na Amazônia. Naqueles meados do século
XVII, Belém é uma imunda e sonolenta vila arruada desordenadamente em torno do forte do
Presépio. Nada naquele aglomerado de taperas excita a premonição de que no futuro aquela
cidade será escolhida como capital de uma administração colonial e será em I900 uma das
mais lindas e trepidantes metrópoles da América do Sul. O que o padre Antônio Vieira vê
consternado é um forte militar meio em ruínas, com sua guarnição vestindo fardas imundas e
rotas, de soldados alquebrados e mergulhados na mais completa indisciplina e desmazelo em
seus próprios tratos pessoais. Os colonos, para Vieira, já haviam atravessado os mais
inimagináveis limites da degradação. Para escândalo de Vieira, roupas eles somente vestiam
quando precisavam sair à rua para alguma demanda importante. Assim mesmo, ataviavam-se
de forma esdrúxula, esquecendo às vezes a camisa ou os calções, como se já não lembrassem
mais o que era se vestir condignamente. Ao entrar nas casas de Belém, o padre Vieira não
parava de recuar horrorizado frente ao que via. Ali os colonos portugueses pareciam
desbotados tapuias, estirados nus nas confortáveis redes de cipó tucum, atendidos por
perfumadas cunhãs que lhes ministravam elaborados cafunés.

A mesa belenense de 1665 era puramente indígena, um festim permanente de peixes


moqueados, caças e frutas da estação. Embora ainda não fosse moda, tomar o vinho do açaí
era diário e muito apreciado. Mesmo na alimentação das autoridades e soldados, poucos
traços restavam da culinária portuguesa, e há casos de funcionários coloniais retornados ao
Reino que quase morreram de tanta nostalgia, especialmente pelas iguarias inventadas pela
cozinha indígena.

Olhando aquela Belém pagã e pondo de lado os preconceitos salvacionistas de Vieira,


o que se vê é menos um sinal de decadência que sabedoria dos portugueses. Num clima
equatorial úmido, com um verão constante, por que se aprisionar em roupas pesadas de
casimira ou veludo? O natural era cair na tentação de seguir os nativos, que transitavam em
trajes de Adão e respondiam aos argumentos do pecado original com um olhar de desprezo.

Ah! Como devia ser uma delícia viver naquela Belém indígena, não fossem os aspectos
cruéis e discricionários da sociedade colonial. O próprio Vieira não cessa de denunciar as
barbaridades cometidas contra os índios, mas é uma pena que o lado vitorioso das culturas
indígenas ele não possa perceber.

Na Amazônia dos primeiros tempos seria impensável uma cena como a dos puritanos
da América do Norte convidando os índios para um jantar de Ação de Graças. Para começar,
eram os índios que estavam sempre convidando os brancos, como tinham feito com Francisco
Orellana em seu trajeto pelo rio Amazonas, embora quase sempre a retribuirão fosse a captura
e escravização dos índios. Em segundo lugar, os índios certamente teriam uma péssima
impressão da cozinha europeia, ao provarem um pedaço do insípido peru, prato típico dos
americanos no jantar familiar do dia de Ação de Graças.

Diz um velho axioma que comer é conhecer. Por isso mesmo todas as grandes
culinárias do mundo são formas de conhecimento, sistemas de sinais culturais transmitidos
através do paladar e da inteligência. Um tempero sutil ou agressivo, a ênfase em certos
aspectos do reino animal e a apresentação dos pratos são formas explícitas e reveladoras de
uma civilização. Sendo o ato de comer algo tão vital quanto o sexo, as convenções e
construções culturais que se tecem em torno dessas duas atividades, por envolverem
sensações primárias, são em geral um desafio para as comunidades humanas. A culinária
portuguesa anterior aos descobrimentos era um conjunto de cozinhas cujas receitas se
baseavam na carne, na proteína animal. Depois das grandes navegações ela se torna uma
culinária também marítima, e não é à toa que em língua portuguesa (como no norueguês) se
podem nominar todos os peixes e crustáceos dos oceanos. O que se nomeia se digere.

Na medida em que o Brasil nasce da expansão portuguesa, e vai se consolidando


concomitante às transformações da culinária portuguesa, acabamos por nos beneficiar. Nossa
mesa é extensão direta das navegações e do amor português pelo sólido e pelas grandes
misturas. Aqui, embora a nossa versão do banquete puritano tenha sido a deglutição do Bispo
Sardinha, os portugueses encontraram gente refinada nos tratos da boca e do sexo.

Com os povos indígenas o Brasil aprendeu a moderação nos condimentos, no uso do


sal e nas virtudes do alimento consumido ainda fresco, sem defumações ou secagem ao sol.
Alguns grupos nômades se alimentavam preferencialmente com frutos, bulbos, raízes, túberas
e palmitos, além da caça assada na fogueira ou secada ao sol e ao vento. Outros, os que
realmente fundamentaram a cozinha amazônica e a arte culinária brasileira, porque viviam
sedentariamente em suas malocas, seus caçadores e pescadores usavam técnicas refinadas de
captura de presa, suas cozinhas já possuíam forno e fogão e a refinada cerâmica lhes
assegurava uma alimentação que transcendia a mera subsistência. Os grupos aruaques, por
exemplo, sempre se destacaram por suas receitas de peixe, suas bebidas fermentadas e pelo
uso de utensílios de cerâmica ricamente ornamentados. Uma parte sólida da cozinha
amazônica e herança direta dos aruaque, que sempre prepararam pratos ainda hoje de grande
reputação entre os caboclos amazônicos. Outros povos, como os goitacás, buscam no alimento
a conquista de poderes sobrenaturais enquanto os tukano se alimentam com uma variedade
enorme de grãos, ervas e frutas, mas são rigorosos na seleção de peixes. Estes, por exemplo,
jamais comem a piraíba, uma espécie de peixe de grande porte, que chega a atingir quatro
metros e é capaz de devorar um homem. Segundo um mito tukano, quando a Maloca dos
Mortos fica lotada, algumas almas são atiradas no rio e se transformam em piraíbas. Assim, um
tukano não come uma piraíba porque poderá estar comendo a própria avó.

Os povos indígenas da Amazônia não legaram apenas a rede que nos embala o sono e
alguns animais amansados pelas suas mãos, deram-nos também uma cozinha que aqui nesta
obra, no magnifica texto de Raul Lody, se celebra com reverência e um necessário
sensualismo. Neste belo livro, em que certos quitutes cujas receitas foram guardadas como
relíquias são reveladas pela primeira vez, registra-se para sempre uma das originalidades da
alma brasileira. E o banquete da cozinha gerada no coração dos mitos, temperada pelas mãos
das Amazonas guerreiras, saboreada por guerreiros incansáveis e legada generosamente a nós
por essas culturas que se desvanecem.

A Amazônia é ainda uma das pátrias do mito, onde ainda existe uma unidade entre o
pensamento e a vida numa constante interação de estímulos e afirmação. A Amazônia estará
viva enquanto se reconhecer que essa natureza é parte de nossa cultura, onde uma arvore
derrubada é como uma palavra censurada e um rio poluído é como uma página rasurada. A
Amazônia estará viva enquanto soubermos saborear com deleite um pato no tucupi, uma cuia
de tacaca, uma caldeirada de jaraqui ou um tambaqui assado na brasa.

Raul Lody

Mais do que um encontro, um confronto se dá entre a cozinha indígena e a ordem


europeia de comer e beber, enriquecida com a da África, não menos exuberante de óleos —
dendê — de temperos como o ataré — pimenta-da-costa — e de legumes e feijões, ampliando
modos de fazer e de servir pratos. Contudo, algumas folhas comestíveis da África foram
retomadas no Brasil, adaptando usos gastronômicos diante do manancial verde da floresta
amazônica.

O Atlântico é a porta de chegada e de saída de produtos, aproximando pelos sabores


as culturas nativas da América com Portugal e a vasta área de povos africanos da costa
ocidental, austral e oriental do continente.

Um território onde índios, donos da terra, conviviam com árvores que pareciam tocar
o céu, rios tão largos cujas margens não eram vistas, peixes imensos e mamíferos das águas,
como o boto e o peixe-boi e outros seres da mitologia da floresta, parecidos com os que
assustaram os navegadores portugueses nas rotas ultramarinas, em suas descobertas de
caminhos e novos mercados, por onde o Ocidente dialogava e se aproximava do Oriente.

A cozinha do Norte mantém um princípio farto, amplo, voltado ao que a floresta


oferece, ao que a água dos rios doa de peixes e principalmente na capacidade criativa e
adaptadora do homem da região em manter uma gastronomia de base indígena e de
acréscimos das cozinhas de Portugal, diga-se também da Índia, e da África.

Essa cozinha se alimenta de histórias, de fatos relatados por exploradores e viajantes


que, fascinados pela grandiosidade e riqueza vindas da natureza da Amazônia, sonharam, em
cenários que até hoje fascinam e comovem os que visitam a região não só pela imensidão das
florestas, mas pelo que elas significam de biodiversidade — reserva de vida para o Brasil e para
o mundo.

Exploradores, nos séculos XVII e XVIII, que buscavam ouro no Equador, e prata no
México e no Peru, enfatizavam o Eldorado de Manoa, terras de encantos, de águas límpidas.
Tantas são as projeções, que acabaram despertando conquistas e direitos ao paraíso — a
nossa Amazônia.

O exoticismo, o mistério, o diferente, são traduzidos nos cardápios fartos, de sabores


próprios, acrescentando sobre a caça e a pesca as carnes de gados bovino, caprino e suíno;
farofas, pirões, tortas salgadas, legumes, como o quiabo, por exemplo, e também o dendê,
visíveis no caruru e no vatapá à moda do Norte; casquinhas de caranguejo e de siri,
combinando cozinhas da terra (indígenas), do Reino (Portugal) e da costa (África).

O mesmo acontece com o doce — com a chegada do açúcar — tão especiaria como os
outros produtos do Oriente. A cana-de-açúcar a marca colonial mais evidente e determinada,
fortalecendo e ampliando receitas conventuais, de mosteiros, onde freiras e frades — gordos
de tanto experimentar caldas, massas de gemas de ovos, frituras com trigo e azeite de oliva —
vão legando e inventando opções de bolos, cremes, pastéis e urna infinidade de delícias doces.

As frutas nativas, da terra, têm seu uso gastronômico ampliado em pasta doce, em
caldas, em docinhos finos e individuais, fortalecendo o então exótico paladar dos primeiros
habitantes da Amazônia, os primeiros também a fazer fogo e descobrir como a mata e a água,
representados em bichos e folhas, podem servir à boca, ao corpo, ao espírito, integrando e
identificando singulares maneiras de preparar, servir e comer.

Os rituais da cozinha integram-se a outros rituais da casa, da família, e. no caso das


comunidades indígenas, dependem da mulher para preparar os alimentos bem como os
utensílios em barro, madeira e fibras, que fazem os principais instrumentos de secar, triturar,
moer, torrar, moquear e transportar raízes, frutos, folhas, farinha, caça e pesca.

Sem dúvida, a comida indígena permaneceu mais fiel à sua tradição do que a africana e
a europeia que aqui chegaram. Os viajantes, certamente com um olhar voltado para o
desconhecido, falam sobre os hábitos e costumes dos nossos índios, sua alimentação e
técnicas de cozinha.

Além do preparo imediato da comida, o moquém serve também para conservar os


alimentos, lembrando o fumeiro que é feito pelo europeu. Na verdade, o moquém desidrata,
conservando e ativando o sabor. Certamente o grande diferencial da cozinha indígena está na
descoberta e no emprego do fogo,' um elemento de forte conteúdo mítico, que integra
histórias de heróis fundadores; deuses que trouxeram algo capaz de transformar a vida. Essa
transformação muda o gosto do peixe, da tartaruga, da capivara, da raiz da mandioca, entre
muitas outras opções gastronômicas.

O biaríbi, forno no chão, é outra tradição indígena usada na preparação de alimentos.


Fazem um buraco no chão, forrando o fundo com folhas e, sobre estas, colocam a carne, que
também é totalmente envolta de folhas, e põem terra. Sobre o forno se faz uma fogueira que é
mantida acesa o tempo necessário para a carne assar.

Processos mais antigos demonstram ainda outras maneiras de preparar os alimentos,


mesmo antes da descoberta e do emprego da cerâmica, pois já se comia assado em muitos
grupos indígenas. Varetas de madeira serviam de instrumento para levar diretamente ao fogo
o peixe e a caça. Pelo olhar e o olfato, verificava-se então o ponto desejado do alimento.

Estar assado, estar cru, estar semicru são estágios que os conhecimentos técnicos e os
ideais gastronômicos de cada grupo irão conceituar e estabelecer em princípios próprios sobre
regras de alimentação.

Os índios defumam — moquém —, assam suas comidas, já os africanos refogam,


fritam, assam, segundo outros princípios, e os portugueses refogam, fritam, assam, cozinham,
também atendendo a modelos particulares, alguns já orientalizados.

A cozinha do Norte é uma convergência que reúne tradição local, acréscimos e


criações das vertentes europeia e africana, além de outros componentes, como a japonesa, a
libanesa, a italiana e a alemã, que chegaram pelas imigrações ou pelas migrações de
nordestinos que maciçamente vieram viver o apogeu do ciclo da borracha.

Farinha pouca, meu pirão primeiro


Sobre a culinária indígena, o primeiro registro feito pelos portugueses se deu com a
mandioca

A alusão ao inhame dá-se pela semelhança da raiz já conhecida na África Ocidental


com a então nova, exótica para o europeu, e tão nossa, brasileira, mandioca.' Karl Von den
Steinen aponta a mandioca como sendo mais importante para os americanos do que o milho.

O processo artesanal de transformar a mandioca resultava na uí-pon, uí-puba, massa


amolecida pela infusão, puba ou d'água. A mandioca é raspada crua e vai para o tipiti —
cilindro de fibras naturais trançadas —, que faz com que o caldo — ácido cianídrico — seja
retirado: depois de peneirado e seco, vai para o forno, por um período de algumas horas,
dando a textura, o sabor e o odor desejados para a boa farinha.

Costume da terra, indígena; descobertas em técnica, uso e aproveitamento amplo na


mesa do homem do Norte, ampliando-se para o Nordeste e o Brasil. A farinha acompanha
tudo o que o indígena come. Tudo tem farinha, tudo comporta o pão da terra, como se
referiam os primeiros colonos diante do alimento então novo e desconhecido. De
exclusividade indígena, a farinha ganha os caldos de carne e de peixe da cozinha portuguesa.
Integra decisivamente o cardápio do africano no Brasil, chegando ao popular pirão. No
processo indígena, a farinha de mandioca é torrada em uma ampla vasilha de barro de forma
arredondada chamada iapuna. As menores, de mesmo nome, têm uso diário no preparo do
beiju. Tanto as tarefas artesanais na feitura da iapuna, como o processo da torrefação e
produção dos beijus são destinados à mulher.

Na região Norte, a produção de farinha se dá fora das comunidades indígenas nas


chamadas casas de farinha, locais onde são realizadas todas as etapas do trabalho.
Inicialmente raspa-se a casca da mandioca, tarefa de mulheres e crianças, em seguida é
preparada a massa, e a torrefação é feita geralmente pelos homens.

A farinha é um alimento que satisfaz — a farinha com água é uma tradicional refeição:
o chibé. O chibé, que também é chamado de jacuba, não vai ao fogo e pode ser doce. Quando
a farinha fina vai ao fogo, até transformar-se em uma espécie de mingau, é denominada
caribé.
A designação papa-chibé para os naturais da região Norte, como ocorre com papa-
goiaba para o homem fluminense e papa-jerimum para o potiguar, são designações etno-
históricas que situam pelo alimento, as opções básicas dos habitantes de determinado lugar.
São termos relativizados, de conotação afetiva. O chibé é tão popular que chega a ser utilizado,
por alguns, como substituto de alimentos como o pão, a fruta, o peixe, a carne e até mesmo o
açaí.

Além da mandioca, outras farinhas fazem a culinária tradicional indígena, como as de


peixe seco, cará, amendoim, banana e, após o contato com o português, a de arroz.

Beiju e tapioca feitos de farinha e de goma ampliam-se em sabor com o emprego da


manteiga, acompanhando café, ou então são enriquecidos com leite de coco, chamados de
molhadas ou tapioca de coco, e ainda se acrescenta canela em pó misturada com açúcar,
costume muçulmano que o homem português assimilou e difundiu.

Creio ser essa a ceia mais tradicional do brasileiro. Tem base nativa, indígena,
incorporando os encontros dos mundos ocidental e oriental com a canela e o açúcar,
especiarias, nacionalizando costumes milenares, mais antigos do que os 500 anos da chegada
lusitana

Os frutos da terra
O açaí e o guaraná encabeçam o elenco de frutos da Amazônia, e outros, mesmo de
procedências exóticas, trazidos pelas rotas ultramarinas do homem português. já
abrasileiraram-se, compondo cardápios da região. Já são do Norte devido ao sabor, à boca que
escolhe e autentica.

A castanha-do-Brasil, antes conhecida como castanha-do-pará, chamada originalmente


na região como nha, yá. iniá, tocari, tucá, é muito valorizada na Amazônia e exportada para
muitos países. Uma única castanheira é capaz de produzir em torno de 500 quilos de frutos ao
ano. As castanhas são consumidas assadas, recobertas de chocolate, utilizadas em bolos,
tortas, balas e outras delícias doces. Na forma de óleo, substituem a gordura animal, e na de
leite são ingeridas com café ou empregadas no preparo de mingaus.

O piquiá, nativo da América, especialmente do alto Amazonas. é consumido cozido,


juntamente com a farinha de mandioca. A partir dele também se faz gordura e o tão conhecido
licor de piquiá ou de piqui. A pupunha, outra fruta tipicamente amazônica, é rica em proteínas,
carboidratos, cálcio, ferro, fósforo e vitamina A. Cozida na água e sal, a fruta pode ser
saboreada com farinha ou café.

O murici é amplamente consumido com farinha de mandioca, como sorvete, doce em


pasta, licor, entre outros usos. A fruta é popularmente conhecida como murici verdadeiro,
murici-da-mata, murici-de-capoeira, murici-rasteiro e murici-vermelho. E, sobre esta fruta, a
tradição diz o seguinte: "Em tempo de murici, cada um cuida de si."

Bacuri. uxi, uamari, bacaba, taperebá, cupuaçu, entre outros frutos regionais da
Amazônia, fazem parte dos cardápios de uso in natura ou, como manda o costume, com
farinha de mandioca.

Outra fruta, integrada à mesa do Norte, a banana, assume um forte símbolo tropical;
chamada genericamente de pacova, os colonizadores deram-lhe a denominação de banana-
da-terra. O gênero Musa reúne em torno de 40 espécies, sendo as mais comuns a Musa
paradisíaca, Musa sapientum e a Musa cavendishi. Popular é o gênero pacovão ou chifre-de-
boi, comprida ou pacovi, juntamente com a branca ou maçã; prata, d'água, peruá; inajá ou
ouro, são-tomé, roxa, entre outras.

São tantas e tão gostosas as frutas que fazem a memória dos sabores da Amazônia,
como araçá, pitanga, caju, jambo, ginja, grumixama, ingá, fruta-pão, jaca, ananás, maracujá,
ata, biriba, manga, cutitiribá. angá, camapu, camutim, carambola e cubiú, disponíveis nos
quintais das casas, nas feiras, nos mercados da região, ou mesmo nas ruas de Belém, por
exemplo, com suas famosas mangueiras.

Vistosas, coloridas e sedutoras, contudo ardidas, ferozes no tempero que queima,


também são frutas as pimentas que acompanham a maioria dos pratos salgados da culinária
amazônica.

Murupi, murici, camapu, ova de aruana, carsari, pimenta-rosa, olho-de-peixe, olho-de-


pomba, cajurana, mata-frade, pimenta Josefa, pimenta-pacova, de-cheiro, murupi ou a tão
popular malagueta. Há a malagueta americana, nativa, e há a malagueta da África, também
chamada de pimenta-da-guiné, conhecida desde a Idade Média na Europa como grão-do-
paraíso.

A bandeira anuncia: temos açaí


Bandeiras vermelhas, flâmulas de tecido em bambus ou em outras madeiras que
servem de mastros improvisados avisam que a casa tem açaí para vender. Pode ser um
estabelecimento comercial, casa de família ou qualquer outro ponto que assim anuncia e
promove o amplo consumo do açaí na Amazônia.

Também na região, a carne verde — geralmente de gado bovino — pode receber


promoção semelhante: a bandeira vermelha, analogia à cor da carne com a da bandeira, o
mesmo ocorre com o açaí, que é avermelhado, de um vermelho quase vinho. Coletar açaí é
tarefa que exige técnica e destreza.

O caboclo paroara vai coletar um bocado de açaí, mete-se em uma montaria (canoa)
buscando onde está o vicejante açaí, quase sempre à beira-rio, no alagadiço, na várzea. Com o
uso de jamaxis ou aturás — paneiros com pés, resistentes, especiais para o transporte dos
frutos — vivencia seu mister de coletor da natureza.

Munido de um cinto auxiliar para galgar a árvore, feito de fibras do próprio açaizeiro,
com a arte de um só golpe, retira um cacho repleto de frutos.

O açaí, processado artesanalmente, começa com o amolecimento da polpa em água


morna ou em água fria exposta ao sol. Em seguida, passa para a fase de amassar. Ft tradição é
amassar com as mãos, utilizando-se grandes recipientes de barro — alguidares. Em seguida, o
sumo é coado em urupema ou gurupema, sendo esta uma tarefa do mundo feminino — são
essas mulheres conhecidas como amassadeiras.

Os frutos processados têm variados consumos gastronômicos, iniciando-se com o


prato básico da região, que é o açaí misturado com a farinha de mandioca. Pode-se também
acrescentar camarão seco, peixe, arroz ou mesmo açúcar, ser tomado como um suco grosso,
nutritivo, e ainda como sorvete e outras combinações, pois tudo com açaí é bom e forte,
revigora. É o vigor do homem amazônico, cultivado no hábito de comer açaí.
O afrodisíaco guaraná
Atribui-se a este fruto propriedades miraculosas, e por isso seu consumo ganhou o
Brasil e outros países. O tão nosso, tropical, da terra, guaraná, tradicionalmente chamado de
uaraná, faz o vigor do homem e da mulher, ativando propriedades afrodisíacas.

O processo tradicional de transformação do guaraná é atribuído aos Maués do


Amazonas. A massa do fruto é moldada em bastões, e estes são ralados em línguas de pirarucu
e em seguida diluídos na água, ficando assim prontos para beber.

O celebrado guaraná compõe há muito a mesa indígena e seu uso ampliou-se para
casas de sucos, de produtos naturais ou nos espaços convencionais em feiras e mercados da
região Norte, recebendo grande procura e consumo diário.

Águas da Amazônia: águas de viver e de comer


Das águas vêm os símbolos de fertilidade. Na Amazônia os rios e lagos são habitados
por muitos seres fantásticos, que coexistem com milhares de espécies de peixes e répteis. O
peixe mais famoso da região é o pirarucu. Pirarucu é um nome indígena e significa peixe
vermelho, sendo urucu o nome de um fruto nativo, vermelho, do qual diferentes grupos
indígenas se utilizam do pigmento para pinturas corporais, entre diversos outros usos, na
madeira, fibras e cerâmica.

O pirarucu pertence à família dos osteoglossídeos — Arapaima gigas (Cuv.),


sistematicamente conhecido como Sudis gigas e Vastres. O peixe chega a dois metros ou mais
de comprimento e pode pesar entre 50 e 80 quilos. Após a sua salga, destina-se ao consumo
em quantidades que variam de 20 a 40 quilos.

Peixes, muitos tipos, gostos, modos de fazer, servir e comer. Cação, tainha,
piramutaba, gurijuba, camurupim, badejo, cherne, pratiqueira, garoupa, agulha, pacamão,
anchova, pescadas branca e amarela, pacu, xaréu, camurim, acará, acará-açu, acari, apapá,
anamaçá, aruaná, cangati, cascudo, curimatã, filhote, jaraqui, mapará, ituí, jatuarana, jandiá,
pirá-andirá, piranambu, pirapitinga, piracum, piranha, surubim, tucunaré, tambaqui, tamoatá,
entre tantos outros.

Cozidos, fritos, assados, como moquecas e salgados, geralmente acompanhados de


farinha de mandioca, limão e pimenta fresca, fazem o povo lamber os beiços, mais ainda
quando celebrados com a purinha, branquinha, água que passarinho não bebe, a nossa tão
nacional, brasileira, cachaça.

Além do consumo quase diário do peixe, uma das bases alimentares da região Norte,
presente em todas as camadas sociais, destaca-se o tradicional e festivo cardápio com carne e
miúdos de tartaruga. Em âmbito doméstico, os almoços fraternos ocorrem em torno de uma
tartarugada, ou de um banquete acrescido de tacacá, de farinha, de bebidas e certamente de
açaí, sucos, cremes e sorvetes das frutas da terra. Verdadeira farra de gostos, odores e
suspiros de prazer.

A tartaruga verdadeira é também conhecida como juruá-açu ou cunhãmum, a fêmea, e


capitari, o macho. Outros tipos, popularmente chamados de cabeçudo, pitiú, tracajá e
matamatá, são consumidos com o famoso mujanguê — farofa de ovos de tartaruga. Na região,
a culinária que se utiliza de espécimes e produtos controlados pelo Estado deve observar e
cumprir as normas legais que regulamentam a caça e a pesca, respeitando o equilíbrio
ecológico, a natureza.

O sabor da goma
Se. na Bahia. é o acarajé que impera nas ruas, no Norte é o tacaca, alimento que está
vivo no hábito diário do homem amazônico.

Tacacazeira, sempre na sua banca armada em rua de movimento, esquina já


conhecida, exibe uma panela brilhando de limpa, panos alvos, outro sinal de asseio e de
confiabilidade no zelo em preparar e servir, além das muitas cuias para o cliente comer de
mão, lambuzar a boca, pingar na roupa, transpirar bastante com comida/bebida quente em
ambientes de grande calor e umidade que vêm da floresta.

A pimenta ajuda também a esquentar. e o jambu, erva danada de boa, gostosa, faz o
lábio tremer, ficar quase adormecido: prazer e desejo daqueles acostumados em se servir de
tacacá.

O nortista, fora da sua região, assume sua identidade, seu ethos amazônico, quando se
depara com uma cuia quase transbordante de tacacá. Os olhos brilham, a saliva brota, o cheiro
é referência da mata, com a mão, começa a catar os camarões, o jambu, depois bebe o caldo e
pronto, eis a magia do contato pela boca. Certamente, o mais emocionado e direto contato do
homem com a sua cultura.

Cuia, o prato do Norte


Se a natureza marca a mesa — peixe, farinha de mandioca, frutos e folhas —, o
utensílio mais tradicional para servir também chega da natureza em forma circular, de cuia,
cuia do coité ou da cuia pitinga, ainda chamada de cuieira ou cabaceira.

O fruto, sem o miolo, exibe suas conchas ou cascas espessas, que, postas para secar ao
sol, adquirem flexibilidade e qualidade para serem decoradas — bordadas — com a técnica de
incisos, pinturas ou simplesmente lixadas, prontas para o consumo. São vasilhas utilizadas não
só para servir e beber água, como para tomar tacacá, açaí, mingau de milho, entre outros
alimentos.

Olhares de viajantes etnógrafos descrevem tecnologias tradicionais no preparo das


cuias para a vida diária. O polimento ocorre lixando-as com escama do peixe pirarucu, tanto
por fora como por dentro; depois, usa-se a folha do caimbé que, sutilmente, lustra. Em
seguida, as cuias são lavadas e pulverizadas com fuligem, que as índias chamam de tapeda da
madeira da uteira, e, segundo os viajantes, os moradores de Monte Alegre realizavam essas
técnicas e chamavam de fuligem de breu as de Santarém.

Pigmentos como curi, tabitinga, tauá, anil e urutu têm emprego na decoração das
cuias. Hoje, a tinta a óleo, retratando paisagens e outras cenas que circulam também nas
pinturas de bares, restaurantes, lameiros de caminhões e de bicicletas, integra definitivamente
as cuias em âmbito urbano, compondo a cultura material das cidades. Essas cuias são
verdadeiras obras de arte popular, integrando o imaginário do Norte como fortes símbolos da
região. Nelas, a mão do índio, o bordado do europeu e mesmo do africano, juntos, contribuem
para a identidade da Amazônia.

Feiras e mercados: onde se encontra de um tudo


A cidade acorda e vai até as feiras e os mercados. Com a primeira luz da manhã, as
montarias — canoas — chegam repletas de paneiros de farinha, frutas, peixes, pimentas,
folhas para o corpo e a mesa, entre demais produtos que temperam comidas, humores e
relações sociais. A floresta, as aguas, os bichos e os artefatos são oferecidos ao consumo,
seguindo uma seleção ditada pelo costume, pelas necessidades impostas na vida
estabelecida nos trópicos.

Feiras e mercados são locais privilegiados para os encontros, reencontros, onde


notícias circulam e o comércio ainda acontece de maneira personalizada, olho no olho.
Espaços de sociabilidade, de memória, de cultivo de identidades onde se ouvem relatos
sobre os caboclos, os grandes peixes, os seres fantásticos — iaras e botos sedutores que
fazem menina virar mulher.

Em Belém, a Baía do Guajará, formada pelos rios Guamá, Moju e Acará, é marcada pelo
mercado de peixe, pela feira do Ver-o-Peso, onde se encontra de um tudo: cachaça de Abaete,
ervas cheirosas para os banhos de conquista e de saúde, temperos coloridos e de sabores fortes,
cerâmica, rede de dormir, vidros com misturas de raízes, folhas, frutos e banhas de boto e de
tartaruga — vidros de magia —, peixe salgado e fresco; montanhas de paneiros com açaí, mulheres
fazendo comida na hora, na frente do freguês.

Tão popular e integrado à vida amazônica é também o Mercado Municipal de


Manaus, espaço de arquitetura art noueau, exibindo áreas monumentais e ferros
elaboradamente trabalhados que assumem um estilo suntuoso à beira-rio, o rio Negro,
onde está o porto, cenário de idas e vindas de centenas de passageiros que viajam horas,
dias, até chegar aos pontos mais distantes da floresta.

No mercado, muita comida, área especial para os peixes, outras para farinhas, cereais,
legumes e ainda para o artesanato local, predominantemente em trançados de fibras naturais, cuias,
objetos de adorno corporal com sementes e arte plumária. No entorno, bancas oferecem temperos a
granel: pimenta em pó, colorau, cravo e canela.

Ainda nesse contexto, do Mercado Municipal de Manaus, estão alguns restaurantes


populares onde se come um bom peixe frito, pastéis, bolinhos salgados, açaí com farinha de
mandioca e outras delícias da terra, além da lourinha suada e gelada — cerveja — ou da purinha,
acompanhada de uma rodela de limão, pronta para uma talagada, quase litúrgica.

Molhos de pimenta fresca com sal, limão, azeite de oliva e recipientes com farinha-
d’água – variação da farinha de mandioca – são convites permanentes para o acompanhamento
de carnes, aves, feijões ou miúdos refogados, preferencialmente consumidos em pratos fartos,
pirâmides transbordantes de tanta comida.

Os frequentadores das feiras e dos mercados têm comportamento típicos: agindo com
certa intimidade no trato com os produtos. Tocam e cheiram frutas, quase sempre provam uma
para ver se está boa, doce, no ponto.
Peixe, carne e legumes também são olhados, certamente exigindo um outro olho clínico
que vê cor e que também sente cheiro e textura, avaliando se o peixe é fresco, se a carne não é
congelada, se o legume está macio e tenro para o consumo.

Especialidade mesmo é a prova da farinha de mandioca.' O povo do Norte conhece. e


muito bem, os tipos de farinha e a qualidade de torrefação. A farinha é testada por arremesso.
Um bocado voa até a boca e o paladar confirma teor e gosto, somente sentidos se feito da mão à
boca.

Com as pimentas frescas o processo da escolha é mais intenso, o cheiro e ardor têm que
fazer os olhos marejarem d'água. Pois, pimenta boa é aquela que arde quando entra e arde
quando sai.

Nesses espaços públicos são mantidos os costumes de comer rápido. na banca, de pé, à
beira de um fogareiro. Assim, cozinhas a céu aberto atendem os frequentadores de feiras e
mercados, oferecendo peixe frito, tapioquinha, mingau, tacaca, além de frutas transformadas
em sucos e outras amassadas e misturadas com farinha de mandioca. Tudo é consumido nos
locais e, enquanto isso, a vida e o comércio acontecem em volta.

Rituais sociais das manhãs, pois tudo acontece cedo, enquanto ainda é possível conviver
com o sol abrasador e encontrar produtos novos e frescos.

O tempo temperado das festas

É costume comer bem nas festas. Pois o tempo da festa vai além do cotidiano e é tempo
em que tudo pode, porque o tempo é mágico. Vive-se como pessoa e como personagem.
Movem-se os sonhos com os autos dramáticos, com os ritmos e as danças, com os banhos
propiciatórios de ervas cheirosas, especialmente escolhidas e combinadas para purificar o corpo
e entrar também de espírito na comunhão sagrada com o santo da devoção.

Na Amazônia as festas celebram as florestas, os rios, os peixes, as aves, os seres


fantásticos. Unem¬-se matrizes indígenas, europeias e africanas e de uma mistura sempre em
processo, por isso vivos e dinâmicos estão os fundamentos da festa — ritual de todos,
celebrações entre o sagrado devoto e o sagrado sensual, suado, com cheiro de folha de mato, de
pimenta colorida que faz arder e gozar de prazer, de pirões, farofas, caldos temperados, bebidas
feitas com arte e segredo.8

Em junho vive-se um dos ciclos mais festejados do Norte — Santo Antônio, São João e
São Pedro, especialmente São João, pois é tempo de Bumbá — uma das mais notáveis
expressões do teatro popular brasileiro. Grupos e grupos de Bois, Bumba-Boi ou de Bumbá saem
às ruas, nas praças, nas arenas como em Parintins, Amazonas, promovendo emoções coletivas,
deslumbramentos pela imagem, som, cor, sensações sob o céu da selva. E, se há lua cheia, está
completa a magia.

Carimbó, Lundu, Cordões de Pássaros trazendo o corpo livre para vibrar com os toques
afro-ameríndios de danças ou com a ópera tropical, com os personagens nobres dos Pássaros
exibindo indumentárias elaboradas em espetáculos que somente a floresta é capaz de criar e de
viver ritualmente a cada ano, a cada São João no Norte.

Nesse tempo junino, vive-se pela boca cardápios formados de mungunzá, mingau de
banana, casquinhos de siri, de caranguejo, de muçuã e pastéis de camarão; vatapá e caruru,
maniçoba, queijadinha, bom-bocado, sopa de aviú — um tipo de camarão — além de bebidas
artesanais, quase sempre fermentadas como tarubá, mococoró, tiquira, caxiri, aluá e cassiuma,
ou ainda vinhos de cacau e de banana e a tão popular cachaça acrescida de diferentes frutas.

Em outubro, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré traduz outro exemplo de comoção, de


fé, de religiosidade que acompanha o caráter geral de monumentalidade que marca o que vem
da Amazônia. Belém celebra e amplia um culto na região, já nacional e internacional. Em tempo
de Círio vivem-se também cardápios específicos, como o pato no tucupi,9 como a maniçoba'° e
outras delícias com frutas regionais, peixes, camarões e temperos fortes de pimentas, além de
castanhas recobertas de chocolate, salame de cupuaçu, cremes, sorvetes e tudo o mais que se
acompanha com farinha de mandioca.

Comer sob o sol tropical

O Sol próximo ao planeta Terra — solstício — aumenta a luz, o calor, a intensidade das
cores, muda o humor, o corpo fica quente, sensualmente preparado para as frutas que têm
muita água. Frutas saborosas, um verde que se integra ao da mata, pois tudo encontra um
paladar que reproduz, com sinceridade, o desejo de comer a natureza.

Sensações, toques, texturas e gostos que somente a boca pode sentir, engolindo
florestas, rios, peixes, caças, farinhas do Norte. A cozinha fala, permanentemente, entre a água e
a folha. São descobertas e reencontros com a memória arcaica das primeiras chegadas do
homem aos territórios da Amazônia. Temperos fortes, castanhas oleosas que depuram espíritos,
mais ainda quando acrescidas de chocolate, de açúcar, da cana-de-açúcar, originária da Ásia, que
ficou tão brasileira, ou regionalmente nortista como o açaí.

Amazônia, território tropical; sol diário, sol delírio. O corpo tenta recuperação com os
sucos doces ou em outras águas retidas nos peixes de carnes brancas e suaves que provocam
outras águas: água na boca. Boca, porta, princípio que o homem encontrou para viver o mundo
representado pelos alimentos.

Norte, cozinha do Norte, identidades de povos, todos singulares pelas formas e destinos
de autenticar um ethos comum que se reproduz em cada cuia de tacacá, em cada maniçoba que
aguça a gula, em cada sorvete que refresca. No vatapá, no caruru, no pirarucu salgado. Nos
mingaus, na farinha em contato com a saliva, virando pasta engolida com gosto de ser d'água,
grossa, amarelada, daí ser do Norte.

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