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São Carlos
2017
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1) Resumo das atividades desenvolvidas e os resultados obtidos no período
a) Disciplinas na graduação
b) Pesquisa bibliográfica
c) Resultado parcial da pesquisa
Introdução
1. República livro III – primeira crítica à mímesis: crítica à poesia como forma
discursiva;
2
evidenciando os principais aspectos sobre a construção da polis ideal e sua relação com
a mímesis, a fim de melhor compreender a passagem 595a-b1 do livro X da República.
Para construir a imagem da cidade ideal Platão expõe duas imagens anteriores: o
modelo da cidade real e o modelo rústico. Na constituição do modelo ideal os
interlocutores consideram os limites do modelo rústico e os erros da cidade real,
evidenciando nesse processo a relação que os tipos de cidade estabelecem com os logoi
poéticos e com a mímesis.
Essa cena dramática montada para que a personagem Sócrates se veja obrigada a
socorrer a justiça do aparente ataque de Glauco, implicará a criação de uma imagem do
surgimento da cidade. Espera-se que, ao observar a imagem tal como se observa uma
maquete, os interlocutores possam encontrar a gênese da justiça e da injustiça no
surgimento das relações entre os cidadãos. A cidade surge da incapacidade dos homens
de satisfazerem todas as suas necessidades. Eles se unem para dividirem as tarefas e os
frutos do trabalho coletivo. A cidade não só é convencional como também é necessária,
ela facilita e aumenta a probabilidade de que os homens sobrevivam. Sócrates propõe,
com base na máxima que guia a formação dessa polis, segundo a qual cada trabalhador
deve se dedicar à tarefa para qual sua natureza está predisposta, um modelo de cidade
1
Passagem em que a personagem Sócrates defende que a poesia mimética não deve ser aceita na polis
idealizada.
3
que não se distancia das necessidades naturais dos homens. Trata-se de uma cidade
rústica e que não abriga as artes miméticas.
Cada um desses três modelos possui uma relação específica com as artes
miméticas, especialmente com a poesia. A cidade empírica foi educada pelos grandes
poetas. A cidade rústica, que Sócrates defende como sendo a constituição ideal (372e),
não abriga as artes miméticas, os hinos aos deuses são o único resquício mimético que
permanece nesse modelo. A terceira cidade, que podemos considerar como
intermediária entre a cidade real e a rústica, não mantém a mesma relação com a poesia
que os modelos anteriores mantêm. Platão não bane a poesia mimética, como faz na
cidade rústica, mas também não a coloca em um posto de referência ético/moral e
autoridade pedagógica, tal como a cidade real o faz. Os logoi poéticos permanecem na
cidade ideal, conquanto que sejam submetidos à censura filosófica.
Em contraste com o que é dito no livro II, a passagem 595a-b faria mais sentido
se o modelo ideal tivesse preservado a relação que a cidade rústica mantém com a
poesia. Todavia, Platão defende uma constituição intermediária como sendo a ideal. O
exame dos três modelos de cidade pode colocar luz sobre esse problema. Entender a
relação que os modelos empírico e rústico mantêm com a poesia pode ajudar a
esclarecer a ambígua relação que a cidade ideal mantém com os logoi poéticos.
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I – O “elogio à injustiça” e a imagem empírica da cidade.
1) A origem da justiça.
2
O que marca a diferença na postura de Glauco e Adimanto em relação ao sofista é o fato dos irmãos não
acreditarem na tese que defendem. Eles não só consideram que a justiça é algo em si mesma, como
cobram de Sócrates uma defesa da justiça no que ela é em si, sem se ater aos benefícios advindos de sua
aparência. O discurso de Glauco, fiel à doxa hegemônica da polis, demonstra como se dá a relação dos
cidadãos com os valores morais, mas não explora a causa dessa relação.
5
responde que ela pertence ao segundo: deve ser estimada por si mesma e por suas
consequências3. A partir da resposta de Sócrates, Glauco expõe a doxa da massa e seus
fundamentos. Para a multidão, a justiça pertence ao terceiro tipo de bem, ela é penosa e
não tem valor em si mesma, os que a praticam visam suas consequências (358a-b).
2) A justiça é convenção.
3
Marques (2010, p. 07) chama a atenção para a curiosa posição de Sócrates, que não recusa totalmente os
bens exteriores, optando pelos bens mistos e atribuindo importância aos bens aparentes. Se Sócrates for
representante da posição platônica, teremos que Platão reconheceque os valores exteriores não podem ser
suprimidos.
6
proveito da aparência de praticá-la. Ora, se a injustiça é o melhor caminho para
concretizar as ambições individuais e, portanto, seguir o caminho ditado pela natureza
humana, nada mais natural que os homens escolham esse caminho. Glauco conclui
assim que aqueles que conservam a justiça o fazem somente pela impossibilidade de
cometer injustiças. Com o poder de cometê-las sem serem pegos, tanto o justo quanto o
injusto, ao fim, estarão no mesmo lugar, guiados pela ambição.
A narrativa de Giges é proposta por Glauco como uma prova de que ninguém é
justo por vontade, mas apenas por convenção e por coação (360c). Podendo se tornar
invisível com o poder que um anel encontrado ao acaso lhe confere, Giges se sente
favorecido pelas circunstâncias que a invisibilidade lhe proporciona e usa o poder do
anel para se tornar rei (360b-c). A narrativa apresenta a justiça não como um bem
individualmente, para o agente que a pratica, mas como boa ao convívio pacífico entre
os homens devido ao seu poder de minimizar os resultados negativos da prática da
injustiça (359c-d). Segundo Marques (2010, p. 06), a doxa dos injustos é apresentada
aqui como uma racionalidade da eficácia cooperativa e se mostra como efetivação
radical da adoção exclusiva dos bens exteriores, aqueles que são busca dos e valorizados
visivelmente.
O injusto age como um artesão e distingue o que é possível realizar com sua
técnica do que não é possível, sendo capaz de corrigir-se quando necessário (360e –
361a). Através da analogia com o artesão, Glauco mostra em que sentido o termo
perfeito é posto na discussão. Trata-se, como salienta Marques (2010, p. 08-09), de uma
perfeita eficácia técnica. Caso cometa um erro ele é capaz de corrigi-lo, seja falando
7
para persuadir, seja através da violência, dos amigos ou das riquezas advindas de seus
empreendimentos injustos (361a). Faz parte de sua eficácia técnica não aparecer como
injusto. É necessário que além de não aparentar ser injusto, esse homem saiba articular
essa não visibilidade de suas injustiças à aparência da justiça, já que a extrema injustiça
é o parecer ser justo sem realmente ser (MARQUES, 2010, p. 09).
Por parecer ser justo nos conflitos públicos e privados o injusto leva vantagem,
pois não se priva de cometer injustiças e é capaz de manter intacta a aparência de justo.
Essas vantagens o farão enriquecer e fazer bem aos amigos e mal aos inimigos 5, além
de, com isso, poder fazer numerosos sacrifícios e prestar honras aos deuses e aos
homens. É natural, portanto, que ele seja mais favorecido pelos deuses e pelos homens
do que o homem justo6.
4
Grifo nosso. Há uma inversão de valor aqui: a injustiça é vista como a coisa real, a justiça como
artificial.
5
Essa é a definição de justiça apresentada porCéfalo.
6
É assim que se afirma, ó Sócrates, junto dos deuses e dos homens o homem injusto granjeia melhor
sorte do que o justo (362b-c). Segundo Marques (2010, p. 17), Glauco apresenta uma inversão do que
será exposto por Sócrates nos livros posteriores, aqui o perfeito injusto acede ao governo da cidade.
8
aparecer, e ainda,
Através do discurso de Glauco Platão mostrou o tipo de relação que a polis real
mantém com os valores morais e descreveu o cidadão perfeitamente integrado às
práticas sociais existentes. As ações dos cidadãos na cidade estão integradas a essa
lógica. O que se vê na cena política convencional é a representação dos valores. Os
cidadãos fingem ser o que não são para tirar vantagens particulares7. Glauco mostrou
que ser perfeitamente injusto é saber articular a prática da injustiça à aparência de
justiça; não basta ser injusto, deve-se imitar o valor em sua exterioridade, mesmo que
aquele que imite não conheça o que imita. Trata-se de uma imitação da aparência. O
injusto pode apenas imitar aquilo que imagina ser o justo, sem saber efetivamente se sua
opinião sobre a justiça é verdadeira ou falsa8.
Marques (2010, p. 11-12) destaca ainda que Glauco opera uma inversão no
sentido da reflexão inteligente: agir injustamente é agir com inteligência e agir
justamente é agir sem inteligência. Na polis os valores morais são vistos como pactos,
construções coletivas que visam diminuir os malefícios causados pela natureza humana,
que é essencialmente ambiciosa e egoísta. O discurso de Glauco naturaliza o agir
injustamente. Sua fala parece repousar em uma “concepção hobbesiana” de natureza
humana, segundo a qual o homem é essencialmente propenso à injustiça. Nesse
contexto a justiça é vista como um pacto, uma construção histórica e cultural que só tem
7
Trata-se de um tipo de imitação que se atém ao que parece ser o valor.
8
O cidadão integrado às práticas sociais da polis não tem condições de saber o que é a justiça em si
mesma porque não crê que a justiça seja algo em si, uma vez que acredita que ela é uma convenção
estabelecida quando os homens perceberam que podiam ser vítimas uns dos outros.
9
vigência graças aos seus resultados externos.
O problema ético moral da polis efetiva e sua relação com a educação tradicional
10
fama e à lei (364a). Os poetas formam e moldam a opinião da massa9. Leigos e artistas
do verso partilham a opinião de que a injustiça é em geral mais vantajosa que a justiça, e
que são felizes os maus, caso sejam ricos ou possuidores de alguma forma de poder.
Ambos são capazes de honrar esses homens em público e em particular e desprezar os
pobres e fracos, embora digam que estes são melhores que os primeiros (364a-b).
Nesse contexto da cidade real, uma pessoa que queira fazer mal a um inimigo, por
exemplo, quer justo, quer injusto, mediante pequena quantia, pode persuadir os deuses a
serem seus servidores (364e-365a). Sendo essas as afirmações sobre as virtudes e os
vícios e o valor que homens e deuses lhe atribuem, disseminadas por leigos e artistas do
verso na cidade, cabe a seguinte questão:
Ao ouvi-las, que pensamos que fazem as almas dos jovens que forem bem
dotados e capazes de, andando como que a volitar em torno de todas, extrair
delas uma noção de comportamento que uma pessoa deve ter e da espécie de
caminho por que deve seguir, a fim de passar a existência o melhor possível?
(365a-c)
Dado o fato da polis favorecer o modo de vida injusto, como foi mostrado até
aqui, Adimando questiona sobre como um jovem que ainda não firmou suas bases éticas
9
Nos livros V e VI Platão mostrará que é uma relação dupla: os formadores de opinião da massa dizem o
que a multidão quer ouvir.
11
poderá escolher o caminho da virtude, uma vez que esse é o caminho mais dificultoso e
o menos sugerido? A personagem coloca luz sobre as implicações éticas dessa
compreensão do agir injustamente como agir com inteligência e do aparentar ser justo
prevalecer sobre o ser efetivamente justo. No cenário descrito pelos irmãos, somente
alguém sem inteligência permaneceria no caminho da justiça. Um jovem, mesmo
advertido pelo “coro” da massa e dos poetas que se for justo e não aparentar, não tirará
proveito algum, apenas castigos, escolherá ser justo? Acrescenta-se a isso o fato de
saber que ao homem injusto que saiba articular suas injustiças com a aparência de
justiça, caberá uma vida plenamente boa. Ora, adverte Adimanto, rapidamente esse
jovem chegará a seguinte conclusão:
10
Possível referência aos poetas.
11
Adimanto expõe o paradigma de um jovem para pensar como os jovens se comportam na cidade.
12
Persuasão e violência são pensadas como ações que visam um mesmo fim. Essa relação será melhor
explorada no livro V.
12
b) Como não é possível enganar, passar despercebido ou exercer violência
sobre os deuses, o jovem pode procurar auxílio no seguinte argumento:
Ora, se eles não existem ou não se preocupam com as coisas dos homens,
para que havemos de importar-nos com o passar despercebido? Se, porém,
existem, e se preocupam, nós não sabemos nem ouvimos falar deles a mais
ninguém, senão através das leis e dos poetas que trataram de sua genealogia,
e são esses mesmos que dizem que eles são de molde a deixarem-se flectir
por meio de sacrifícios, preces brandas e oferendas. (365d-e)
c) Os ritos e iniciações podem livrar o jovem das penas que pagaria depois
da morte. Apesar de em vida o injusto ser favorecido por todas as
circunstâncias possíveis, na morte ele pagará a pena de suas injustiças,
cometidas por ele e por seus descendentes. Nesse caso, continuará o
jovem em seu raciocínio, basta procurar as iniciações, que garantirão que
ele e seus descendentes gozem de uma boa vida no Hades (366a-b).
Adimanto conclui sua exposição com a seguinte questão: como uma pessoa com
força de ânimo, capacidade econômica ou física, ou de bom nascimento, irá se dedicar
ao caminho da justiça? (366d). A tese de Glauco é forçada aos limites: ninguém é justo
voluntariamente, mas sim coagido pela covardia, pela velhice, ou pela fraqueza. Quem
censura a injustiça sofre da carência das qualidades que o permitiria se dedicar ao
caminho da injustiça. A justiça não é só falta de inteligência como também é falta de
coragem, juventude e de força. Marques (2010, p.11) destaca que no livro II da
República vemos uma perfeita inversão da filosofia platônica operada pelo próprio
13
Platão.
Para defender a justiça do ataque dos irmãos Sócrates propõe investigar qual a
natureza da justiça e da injustiça e qual a verdade acerca das respectivas vantagens de
possuí-las (369c).
Disse-lhes então qual era o meu parecer, que a pesquisa que íamos
empreender não era coisa fácil, mas exigia, a meu ver, acuidade de visão.
Ora, uma vez que nós não somos especialistas, entendo – prossegui – que
devemos conduzir a investigação da mesma forma que o faríamos, se alguém
mandasse ler de longe letras pequenas a pessoas de vista fraca, e então
alguma delas desse conta de que existiam as mesmas letras em qualquer outra
parte, em tamanho maior e em escala mais ampla. (368e).
A metáfora das letras pequenas e grandes serve para mostrar em que sentido a
investigação irá prosseguir. Uma vez que a justiça existe no indivíduo e na cidade, a
investigação empreendida por Sócrates se deterá primeiro na escala mais ampla, isto é,
na justiça da cidade, para depois procurá-la em escala micro, ou seja, no indivíduo
(368e-369a). O que se espera com a investigação empreitada é que ao se deter sobre o
início da cidade e do surgimento das relações entre os homens, possa-se encontrar
também a gênese da justiça e da injustiça. Para tal, Sócrates propõe a seus interlocutores
a criação de uma cidade em logos (369c).
A cidade surge devido ao fato do homem ter muitas necessidades e não ser capaz
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de suprir todas individualmente. Por necessitarem de muitas coisas, os homens se
associam voluntariamente com vistas ao bem comum: a cooperação mútua através da
divisão do trabalho. A primeira das necessidades a serem supridas é a obtenção de
alimentos, a segunda, a habitação e a terceira é o vestuário. A solução apresentada para
que a cidade possa fornecer essas coisas aos cidadãos é a divisão do trabalho. A
negociação é feita mediante troca e não há moeda, cada trabalhador deverá produzir
para si e para a troca (369d-370a). A divisão do trabalho deve respeitar a máxima
segundo a qual cada pessoa possui uma natureza diferente, portanto, aptidões distintas.
Conclui-se disso que cada trabalhador deverá executar uma única tarefa, que esteja em
harmonia com sua natureza.
15
É nesse ponto da discussão que Glauco faz uma intervenção precisa. Diz a
personagem: “se estivesses a organizar, ó Sócrates, uma cidade de porcos, não
precisaria de outra forragem para eles.” (372d). Sócrates retribui a intervenção
perguntando-lhe sobre como haveria de ser a cidade formada em logos, o que Glauco
responde: o de costume. Desse ponto em diante a discussão terá como objeto uma
cidade requintada, mais próxima à cidade real, a qual Glauco expôs em seu discurso.
Nesse modelo as necessidades se multiplicam e tornam-se necessárias uma gama de
outras profissões que não existiam na primeira polis13.
13
Se a personagem Sócrates representar a posição de Platão, teremos que a cidade ideal platônica não é a
teorizada desse ponto em diante da discussão (a cidade luxuosa), mas sim que, para Platão, a cidade
perfeita, sã e temperante, é a primeira. “A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como
uma coisa sã, mas, se quiserdes, observaremos também a que está inchada de humores” (372e).
14
Os interlocutores encontram a gênese da guerra.
16
A natureza do guardião
15
O tema da poesia vem novamente à baila quando os interlocutores se detêm sobre a educação. Platão
defende o ensino através dos logoi poéticos, mas o fato de preservar na educação dos guardiões ambos os
gêneros, tanto a falsa quanto a verdadeira, deu margem para grandes discussões entre estudiosos.
17
Hesíodo e Homero são os maiores criadores de fábulas falsas16 e são os
primeiros alvos da censura proposta. Eles devem ser censurados pelo primeiro critério
de censura apresentado por Platão:
a mentira sem nobreza não deve ser aceita na polis. Trata-se de desenhar
erradamente, “numa obra literária, a maneira de ser de deuses e heróis, tal como
um pintor que faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer
retratar” (377e). 17
o primeiro molde postula que os deuses devem ser retratados tal como realmente
são: essencialmente bons. Os poetas não poderão mais apresentar os deuses
como fonte de males, uma vez que o que é bom só pode ser causa do bom. Esse
primeiro molde determina assim que o divino deverá ser retratado como causa
apenas dos bens (379b-380d).
o segundo molde determina que os poetas não devem retratar os deuses como
seres que vivem a mudar de forma e iludem em palavras e atos, eles são simples
e verdadeiros18 (383a). O divino deve ser retratado como simples, causa apenas
16
O critério de censura proposto aqui não é a falsidade da obra, mas a dessemelhança. Esse tema será
explorado no decorrer do texto.
17
A poesia já é apresentada aqui em analogia com a pintura. Essa analogia será retomada em outras
passagens.
18
A mentira verdadeira é detestada pelos homens e pelos deuses. Mas a mentira por palavras é útil em
relação aos amigos e aos inimigos e é útil ainda “/.../ na composição de fábulas que ainda há pouco
referíamos, por não sabermos onde está a verdade relativamente ao passado, ao acomodar o mais possível
a mentira à verdade, não estamos a tornar útil a mentira?” (382b-d). Mas a divindade não está sujeita a
nenhuma dessas contingências: ela não precisa mentir tal como o poeta, pois não desconhece o passado;
também não necessita da mentira por temer o inimigo, ou para prevenir os amigos de seus atos. Em suma,
tudo o que diz respeito à divindade é alheio à mentira. “Por conseguinte, Deus é absolutamente simples e
18
dos bens e verdadeiro em atos e em ações.
verdadeiro em palavras e em actos, e nem ele se altera nem ilude os outros, por meio de aparições, falas
ou envio de sinais, quando se está acordado ou em sonhos” (382e).
19
Provavelmente Platão se refere aos sofistas.
19
No contexto da cidade os jovens são facilmente corrompidos ao caminho da
injustiça. Adimanto mostrou que na polis a justiça é vista como carência de inteligência,
coragem, juventude e força: o justo só é justo porque não tem coragem, é velho ou é
fraco demais para se dedicar a essa arte.
Através das falas das jovens personagens Platão responsabiliza os poetas pela
crise ética que a Atenas de sua época vivia. A velha divergência entre poesia e filosofia,
citada no livro X serve para mostrar que essa acusação não é nova. Segundo Villela
Petit (2003, p. 54), os estudos recentes sobre Xenófanes apontaram semelhanças entre
as preocupações do filósofo com a crise ético-religiosa e as que se manifestarão mais
tarde em Platão. Segundo a autora,
Devido ao fato do logos ser capaz de levar ao caminho da injustiça e dos vícios,
como Glauco e Adimanto tão bem mostraram ao examinar a opinião hegemônica da
polis, cabe a censura à poesia. Na passagem 387b, Platão diz através da personagem
Sócrates que quanto mais poético é o logos, menos ele deve ser ouvido por crianças e
homens que queiram ser livres. Soma-se a isso a passagem do livro X 595a-b:
20
O paradigma da atuação sofística é o caso do Elogio de Helena feito por Górgias (Ribeiro, 2008, p. 88-
89). Em determinado dia Górgias profere em Atenas um discurso já comum aos ouvidos da platéia,
acusando Helena de adultério e de levar sua familia e conterrâneos à carnificina. Terminado o discurso ele
pede que os ouvintes voltem ao mesmo local no dia seguinte para ouvirem o célebre Elogio de Helena.
Em seu segundo discurso aparecem elementos característicos da sofística: Górgias tira toda a culpa da
espartana, diz que Helena ou foi levada a força, ou caiu sob o domínio de Eros, ou então somente cumpriu
seu destino, que é desígnio dos deuses. Essa é uma das acusações que Platão faz à poesia no livro II, a
saber, que o logos poético responsabiliza os deuses e o destino pelas ações dos homens. O que merece
destaque é a hipótese central da posição de Górgias, segundo a qual Helena não é culpada, pois foi
arrastastada pelas palavras sedutoras de Páris. Ribeiro (2008), nos mostra essa possível posição de
Górgias com as palavras do sofista: “‘o discurso é um grande senhor’, pois, continua ele, ‘através do
menor dos corpos e do mais inaparente’, o simples som que entra pelos ouvidos, ‘leva a cabo as obras
mais divinas: é capaz de cessar o medo, diminuir a dor, realizar a alegria, despertar a piedade’”(2008, p.
89).
20
- Ora, a verdade é que – prossegui eu – entre muitas razões que tenho para
provar que estivemos a fundar uma cidade mais perfeita do que tudo, não é
das menores a nossa doutrina sobre a poesia.
- Que doutrina?
- A de não aceitar a parte da poesia de carácter mimético. A necessidade de
recusar em absoluto é agora, segundo me parece, ainda mais claramente
evidente, desde que definimos em separado cada uma das partes da alma.
- Que queres dizer?
- Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os
outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram
ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como
antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza (X, 595a-b).
21
605b 606 – 607a - b c d
21
a emergência do filósofo como governante não é a perfeição máxima da polis, mas é a
imperfeição por excesso e requinte que leva o filósofo ao governo (SOUZA NETTO,
1990, p.132). O filósofo deverá atuar como um remédio a esse mal. Segundo o autor
(SOUZA NETTO, 1990, p. 132), “não é pois a polis a mais perfeita, precisamente
porque mais perfeita, que tem a necessidade de ser governada pelo filósofo, mas aquela
que, com a sua simplicidade natural, perdeu também a sua verdade”.
A doutrina sobre a poesia também deve ser examinada sob essa perspectiva. Se a
posição de Sócrates refletir a de Platão, o ideal seria que a cidade preservasse somente
os hinos aos deuses e os discursos sobre os bons homens. No entanto, como a
personagem Glauco demonstra, essa doutrina depende de uma constituição diferente e
até mais primitiva que a vigente, em que os homens têm poucas necessidades a suprir.
Com o crescimento da polis as artes miméticas tornam-se uma necessidade. A censura
filosófica e a doutrina sobre a poesia que são expostas no livro II não parecem ser
necessárias porque a polis é perfeita, mas sim porque a intervenção do filósofo é
necessária para que ela não regrida ao primeiro modelo de cidade exposto. Platão
permite a poesia mimética na polis ideal e chega a atribuir aos logoi poéticos um papel
muito importante na educação dos guardiões. Para tal, os logoi miméticos deverão se
submeter à censura filosófica e a alguns critérios que definirão a boa imitação.
22
Esse tema da semelhança será mais bem estudado na sequência deste trabalho.
22
atenção para o fato desse critério não ser aplicável à poesia. Como já foi dito em 382b-d
sobre a composição poética, uma vez que o tema da poesia é o passado e sobre ele não
se sabe o que é verdadeiro e o que é falso, o poeta é livre para compor e transformar a
mentira em verdade. Soma-se a isso a passagem 365e, segundo a qual se os deuses
existem e se preocupam com os assuntos humanos, só se ouviu falar deles através das
leis e dos poetas que trabalharam sua genealogia, os mesmos que dizem que os deuses
são influenciados por meio de sacrifícios, preces brandas e oferendas. Temos assim,
dois problemas importantes: 1) os poetas transmitem uma ideia errada dos deuses; 2) o
logos poético não é falseável, uma vez que seu tema é o passado.
Orlandi (2011, p. 19-20) examina a censura à poesia com base na questão sobre
a permeabilidade dos objetos ao logos exposta no Sofista. No Sofista, quando o
Estrangeiro enuncia a proposição: “Teeteto está sentado”, ele deve buscar no real o
critério de verdade da enunciação. O que dá verdade à proposição é a constatação
sensível das relações dos objetos no real, se elas forem tais quais o logos apresenta, a
proposição é verdadeira, caso contrário, é falsa. No caso do Estrangeiro, ver Teeteto
sentado é o que dá verdade à proposição enunciada.
Segundo Orlandi (2011, p. 20), no caso do poeta ele não pode contrastar o seu
logos com o sensível a fim de determinar a verdade ou falsidade de seus discursos. Os
poetas não podem ver os objetos dos quais falam: fatos antigos, heróis, deuses e
gigantes. Sendo incapazes de ter acesso a esses/seus objetos, recorrem ao poder divino
para validar sua fala, no caso dos poemas tradicionais, começa-se recorrendo ao auxilio
das musas filhas de Zeus e Mnémonis (deusa da memória). Para Platão esses discursos
não são falseáveis, pois nem o leitor e nem o poeta têm acesso a esses objetos para
confrontá-los com o poema. Sendo assim, é necessária uma medida a esses logos. A
partir dessa constatação são estabelecidos dois moldes teológicos para a composição
poética:
Esses são os moldes que deverão guiar o poeta em sua atividade criadora na polis ideal.
Uma vez que seu logos não é falseável, a verdade de seu discurso deve ser procurada
através da comparação com os critérios expostos. Caso o logos poético contrarie os
critérios, o discurso é inverossímil, portanto deve ser censurado, caso não contrarie é
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verossímil e deve ser aceito na polis.
A tese que defende que há contradição entre os livros II e X não pode ser
sustentada sem que se examinem atentamente os critérios de censura à mimesis. Platão
estabelece como critério de censura o imitar dessemelhante, isto é, aquele tipo de
imitação que não leva em conta as propriedades do modelo. Esse critério não é estranho
ao livro X, em sua atividade imitativa o poeta é comparado ao pintor que foge à
imitação semelhante em ambos os livros. Ademais, os critérios para a censura proposta
são teológicos. A atividade criadora do poeta deve se ater à forma da divindade,
determinada através dos moldes expostos em 379b e 383a.
Considerações finais
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respeito aos critérios da censura proposta. No terceiro livro da República as personagens
platônicas examinarão a forma do discurso poético, o que os levará às primeiras
considerações sobre a imitação. Terminada a leitura desses primeiros livros da
República nos deteremos no livro VI, em que a filosofia é caracterizada como atividade
mimética. Os últimos passos do trabalho constarão de uma leitura do livro X a fim de
melhor compreendermos o problema da censura à poesia mimética. Por fim,
buscaremos no Sofista compreender a distinção entre cópia e simulacro (235a) como
fundamentação aos usos da mímesis na República.
Referências Bibliográficas
MARQUES, Marcelo P. Aparecer e vida política: sobre República II. In: Politeía II.
Belo Horizonte: Ed. Tessitura, NO PRELO.
25
2) Houve alteração no projeto de pesquisa?
Não houve alteração no projeto de pesquisa.
Orientador:
26
7) Outras informações relevantes que julgar necessário. Assinaturas do aluno e
orientador.
27