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© Copyright 1991 Joel Birman

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Coordenação Editorial:

Alberto Schprejer

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros

Birman, Joel, 1946-

B521f Freud e a interpretação psicanalTtica / Joel Bi£ man. — Rio de


Janeiro : Rei ume-Duna rã, 1991.

(A constituição da psicanãlise ; 2)

Relacionada com: Freud e a experiência psicana-

Htíca. — Rio de Janeiro : Taurus-Timbre, 1989.

Bibliografia.

ISBN 85-85427-02-7

1. Freud, Signund, 1856-1939. 2. Psicanãlise. I. Título. II. Série.

CDD - 150.1952 91-0800 CDU - 159.964.2

Copidesque:

César de Queiroz Benjamin

Composição e Arte:

Lilian Mota/Traço Gráfico

Fotolitos:
Projeta Estúdio Gráfico Ltda.

Capa:

Victor Burton

A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela
total ou parcial, constitui violação da lei 5.988. *

SUMÁRIO

Para Salinas, Patrícia, Renata, Daniela e Pedro

"... Se um médico perde o senso da medida, então está fracassado como


médico. Saúde é o que se deve ter; e saúde é medida; de modo que, quando
um homem nos entra no consultório e diz que é Cristo (uma ilusão comum)
e que tem uma mensagem, como a maioria deles, e ameaça, como
geralmente fazem, com o suicídio, tem-se de invocar a medida... Medida,
divina medida...”

Virgínia Woolf, Mrs. Dolloway. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 97.

Agradecimentos
Este ensaio corresponde às duas partes finais de minha tese de
doutoramento em filosofia, que foi defendida em julho de 1984 na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e se
intitula “Pensamento freudiano e a constituição do saber psicanalítico”. A
primeira e a segunda partes desta tese foram publicadas sob a forma de livro
em 1989 (J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica. A constituição da
psicanálise I. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre, 1989).

Agradeço às pessoas que, de diferentes maneiras, possibilitaram a realiz ção


deste trabalho:

O professor Luís Roberto Salinas Fortes, que me acolheu gentilmente no


curso de doutorado em filosofia e me acompanhou neste percurso.
A professora Marilena Chauí e o professor Paulo Arantes, pelas sugestões
estimulantes para esta investigação, no exame de qualificação.

Os componentes da banca examinadora, pelas críticas e sugestões: a


professora Marilena Chauí e os professores Bento Prado, Renato Mezan e
Paulo Arantes.

Patrícia Birman, com quem compartilhei todos os momentos da feitura


deste trabalho e os melhores momentos da minha vida.

Carlos Augusto Nicéas, interlocutor amigo em vários momentos desta


pesquisa.

Nylde Macedo Ribeiro, presença carinhosa nos meus momentos de


esperança e de horror.

Renata, Daniela e Pedro, por terem suportado amorosamente as minhas


ausências quando da elaboração deste trabalho.

Fátima Pequeno, pela paciência carinhosa no deciframento dos meus


garranchos e a impecável datilografia dos manuscritos.

Para esta publicação, mantivemos o texto original da tese —evidentemente,


todo revisado e corrigido —, com inclusão apenas da introdução^ que
escrevemos para este livro.

Nota introdutória sobre as edições


da obra de S. Freud
Nesta pesquisa foram consultadas inicialmente quatro edições das obras
psicológicas de Freud: a inglesa, a francesa, a brasileira e a espanhola. A
isso fomos levados pelo desconhecimento do alemão e a consequente
impossibilidade de utilizarmos os textos feudianos em sua versão original.

Porém, ao longo deste trabalho, utilizamos apenas as obras completas em


inglês e algumas publicações em francês. Descartei as edições em português
e em espanhol por diversas razões:

1. A edição espanhola,1,2 que se difundiu jio Brasil durante longo


período e foi muito utilizada até o fim da década de 1960, é de péssima
qualidade e não apresenta parâmetros mínimos de confiabilidade.
Apesar do mérito de ter sido traduzida diretamente do alemão,
apresenta nítidos e grosseiros erros de tradução. Além disso — mais
grave ainda —, o seu texto contém grande número de rasuras, sendo
interrompido em diversos pontos e deixando longos espaços vazios.

2. A edição brasileira,3 publicada a partir do fim da década de 1960 e


ao longo da de 1970, é uma tradução da edição inglesa. Também
apresenta erros grosseiros de tradução, invertendo frequentemente o
sentido dos enunciados em inglês e modificando inteiramente o
significado do texto. Além disso, é uma obra carente de boa
coordenação editorial. Os seus vários volumes foram traduzidos por
diferentes pessoas, que não receberam razoável uniformização de
termos e conceitos. Enfim, essa edição não apresenta a devida
homogeneidade terminológica das diversas noções do pensamento
freudiano, o que compromete sua confiabilidade.

Por isso, as referências que aparecem ao longo desta investigação dizem


respeito apenas às edições inglesa e francesa, por serem as únicas com
parâmetros seguros de confiabilidade. Conferimos uma relativa
principalidade à edição inglesa,4 considerando os seguintes pontos: >

1. Ela é completa no que se refere aos trabalhos “psicológicos” de


Freud, como indica o seu título. Alguns dos textos freudianos do
chamado período neurológico estão publicados em inglês, mas não
foram incluídos nessas suas obras “psicológicas” completas. Apesar
das críticas que essa tradução possa merecer a partir de uma
perspectiva epistemológica — como a de Bettelheim5 —, é, até aqui, a
única edição que inclui todos os textos psicanalíticos de Freud. Além
disso, apresenta um cuidado de uniformização terminológica que
merece ser destacado.
2. A edição francesa é incompleta. Em função da longa oposição da
cultura francesa à introdução da psicanálise, a tradução de Freud para
o francês foi tardia e lenta. Ainda não há uma edição completa de suas
obras psicanalíticas em francês, apesar de terem sido traduzidas as suas
obras fundamentais. Após a renovação da psicanálise francesa, com o
pensamento de Jacques Lacan e o seu projeto de “retomo a Freud”, as
traduções de Freud para o francês se incrementaram, com revisão de
traduções anteriores e realização de novas, da mais alta qualidade.

Face à incompletude da edição francesa, a edição inglesa se impôs como


fonte básica para esta investigação. As obras que compõem a tradução
francesa serão citadas na bibliografia geral que se encontra no final deste
trabalho, na medida em que foram utilizadas. Preferimos, no entanto, a
referência inglesa, para manter certa unidade das fontes básicas da pesquisa.

Não obstante isso, ao longo de nossa exposição daremos preferência ao uso


das edições francesas recentes, face à edição inglesa. São traduções
excelentes, realizadas com o empenho de constituir uma uniformidade
terminológica, que se origina de uma preocupação com a precisão e o rigor
epistemológico do pensamento freudiano. Assim, no que se refere às
traduções realizadas, revistas e coordenadas por J. Laplanche e J. B.
Pontalis, daremos preferência à edição francesa, pelo seu nível superior de
qualidade.6

Afora estas considerações, utilizaremos da edição francesa os textos de


Freud que se referem ao seu diálogo com Fliess, porque na edição inglesa
eles estão incompletos. Assim, para manter a homogeneidade da referência
a estes textos, utilizaremos este material na edição francesa, que inclui: a
correspondência de Freud com Fliess, diversos manuscritos de Freud e o
Projeto de uma psicologia científica, de 1895.7

Finalmente, quanto à uniformidade terminológica, problema que suscita


importantes discussões teóricas, usaremos como referência fundamental o
Vocabulário de psicanálise* de J. Laplanche e J. B. Pontalis, para fixar a
orientação desta obra como a mais adequada, considerando o trabalho de
precisão epistemológica que orienta sua leitura dos conceitos psicanalíticos.
1. S. Freud, Obras completas. Volumes I e II. Madrid, Editorial
Biblioteca Nueva, 1948. Traduçío de Luis Lopez-Ballesteros y de
Torres.

2. S. Freud, Obras completas. Volume III. Madrid, Editorial


Biblioteca Nueva, 1968. Tradução de Ramon Rey Ardid.

3. S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas


completas de Sigmund Freud. Vinte e quatro volumes. Rio de Janeiro,
Imago, 1969-1980.

4. S. Freud, The Standard Edition of the complete psychological works


of Sigmund Freud. Vinte e quatro volumes. Londres, Hogarth Press,
1978.

5. B. Bettelheim, Freud and man’s soul. Nova York, Alfred A. Knopf,


1983.

6. Trata-se das seguintes obras de S. Freud: La vie sexuelle. Paris,


Presses Universitaires de France, 1973; Névrose, psychose et
perversion. Paris, Presses Univcrsitaires de France, 1973;
Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968; Essais de psychanalyse.
Paris, Payot, 1981; Inhibition, symptome et angoisse. Paris, Presses
Universitaires de France, 1972.

7. S. Freud, La naissance de la psychanalyse. Paris, Presses


Universitaires de France, 1973.

8. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse. Paris,


Presses Universitaires de France, 1973, quarta edição.

Introdução
I
A interpretação psicanalítica é a problemática que pretendemos desenvolver
neste livro. Não queremos apresentar aqui o conceito de interpretação, tal
como apareceu ao longo da história da psicanálise, mas apenas estudar este
conceito no discurso freudiano. Estes limites teórico e histórico se
justificam por uma série de razões.

Antes de mais nada, eles remetem a uma questão da ordem do rigor, pois o
alargamento excessivo do campo histórico e a multiplicação dos discursos
em exame podem transformar a pesquisa num campo conceitualmente
inconsistente e com contornos imprecisos. Além disso, esse limite teórico
ao discurso freudiano se deve ao reconhecimento de que, no período pós-
freu-diano, se constituíram diferentes concepções de interpretação, que nem
sempre se coadunam com o conceito freudiano e até mesmo,
freqüentemente, se opõem a ele.

Apesar da existência de pontos de superposição — evidentemente


diferentes, de acordo com a tendência considerada —, as concepções de
interpretação defendidas pelas tendências da psicanálise contemporânea têm
muito pouco em comum com o conceito freudiano. Esta diversidade se
funda em diferentes concepções do ato de psicanalisar, forjadas pelas
diversas vertentes do pensamento psicanalítico pós-freudiano. São
diferenças tão marcantes que as diversas tendências do discurso
psicanalítico parecem originar-se historicamente de fontes teóricas
diferenciadas. Com efeito, que existe em comum entre as concepções
psicanalíticas de M. Klein, Winnicott, Lowenstein e Lacan? Muito pouco.
Portanto, é preciso que comecemos por reconheder a existência de uma
verdadeira Babel na psicanálise.

Restaurar o significado primordial da concepção freudiana da interpretação,


destacando as suas transformações e inflexões cruciais ao longo do percurso
freudiano, é uma maneira de intervir nas coordenadas constitutivas, nas
linhas de força, desta Babel psicanalítica. Nela, podemos registrar a
existência de linhas isoladas de leitura do conceito de interpretação, que se
inserem num conjunto sistemático no discurso freudiano. É a ruptura deste
sistema teórico que se destaca nessa diversidade de concepções da
interpretação e dos modelos do ato de psicanalisar.
Esta segmentação teórica do discurso freudiano tem uma série de razões
epistemológicas que se inscrevem na história da psicanálise. No primeiro
plano dessa questão, se inserem os efeitos políticos da transformação do
movimento psicanalítico em instituição psicanalítica e as modalidades
diferenciadas de incorporação social do discurso freudiano em tradições
culturais diversas. Não pretendemos retomar aqui esta problemática,1 mas
apenas sublinhar que todas as tendências da psicanálise se consideram
freudianas e encontram na palavra oracular do discurso freudiano a sua
genealogia simbólica. Desta maneira, se estabelece uma efetiva luta de
prestígio entre as diferentes tendências da psicanálise contemporânea, para
definir de quem é o lugar simbólico de herdeiro legítimo da obra freudiana
e quem é o interlocutor autorizado desse lugar transferenciai absoluto,
representado pela palavra sagrada do fundador da psicanálise.

Pretendendo superar essas querelas institucionais, a finalidade deste estudo


é estabelecer as condições de possibilidade para a constituição do discurso
freudiano como um saber da interpretação, no qual se enuncia ao mesmo
tempo uma concepção de sujeito que funda este campo de interpretação. No
discurso freudiano, não existe sujeito sem que se considere
simultaneamente a existência da interpretação, pois neste discurso o sujeito
é, de fato e de direito, um intérprete. Para que se demonstre esta proposição
é preciso destacar como, em psicanálise, o sujeito se funda em pressupostos
histórico e simbólico, de maneira que as categorias de arqueologia do
sujeito e de genealogia do sujeito possam se apresentar como legítimas para
a leitura da obra freudiana.

Além disso, no discurso freudiano, as concepções de sujeito do inconsciente


e de um saber da interpretação indicam também os seus limites teóricos e os
seus impasses, pois, com o desdobramento teórico da obra freudiana, as im-
possibilidades da interpretação se colocam progressivamente como uma
problemática crucial da experiência psicanalítica. Esta viragem no discurso
freudiano é fundamental, pois implicou uma releitura da metapsicologia
para definir os impasses da interpretação na análise e os seus limites
teóricos d« validade. Se esta ruptura teórica se apresentou pela constituição
de novos conceitos teóricos na década de 1920,2 ela já se anunciava,
contudo, desde os ensaios metapsicológicos de 1915.3
E preciso enfatizar que, nesse, contexto, o registro econômico da meta-
psicologia freudiana se deslocou em relação aos registros tópicos e
dinâmico,4 tomando-se teoricamente dominante na leitura metapsicológica
do psiquismo. Nessa conjuntura discursiva, o conceito de pulsão (Trieb)
passou a ser o conceito fundamental da teoria psicanalítica.3 Como destinos
das pulsões se derivariam os conceitos de recalque e de inconsciente. Em
seguida, pelas mesmas ordens da razão, o discurso freudiano forjou o
conceito de pulsão de morte,6 indicando a existência de uma modalidade de
pulsão situada absolutamente fora do registro simbólico, como uma
negatividade radical. Estas transformações conceituais na metapsicologia
freudiana revelam as remodelações que se processam simultaneamente no
conceito de interpretação no discurso freudiano, indicando os seus limites e
os seus impasses na experiência psicanalítica.

Enunciar as condições de possibilidade do discurso freudiano como um


saber da interpretação sobre o sujeito é formular, ao mesmo tempo, o campo
teórico no qual se torna possível a sua incidência e a sua eficácia
operacional na experiência psicanalítica. Além desses limites teóricos de
validade, a prática da interpretação se transforma numa operação vazia e
sem sentido, pois incide na ordem do impossível, já que só existe
interpretação se existem efeitos simbólicos do sujeito do inconsciente.

Evidentemente, é bastante sutil a fronteira simbólica entre os territórios do


possível e do impossível, mas indica rigorosamente onde se funda o
universo encantado pela palavra do sujeito e onde se inicia o silêncio
absoluto dos enunciados. Este limite teórico de um saber da interpretação
indica ao mesmo tempo a fonte inesgotável para o eterno recomeço do
sujeito, no seu balbucio insistente face ao território sagrado do impossível.
Portanto, é no contexto do silêncio da morte que a pulsão, como “força
contínua” e “exigência de trabalho”,7 se impõe ao sujeito como um jorro
inesgotável, como um excesso de pulsionalidade que demanda, em
contrapartida, a sua exegese pelo trabalho da interpretação e da
simbolização.

II
Primeiro, é preciso considerar o momento inaugural de constituição da
psicanálise como saber, para apreender em estado nascente as coordenaâas
teóricas que possibilitaram a produção de um saber da interpretação. Em

seguida, é necessário sublinhar as transformações deste saber e do conceito


de interpretação ao longo do percurso freudiano, pois o discurso da
experiência psicanalítica colocava questões cruciais para o discurso
metapsicológico, de maneira a exigir uma outra figuração teórica dos
processos psíquicos, que pudesse sustentar de forma rigorosa o que se
realizava no registro clínico da experiência analítica. '

Nesta perspectiva, o conceito de interpretação se transformou ao longo do


discurso freudiano, não sendo absolutamente o mesmo nos seus primórdios
e no apagar das luzes da obra freudiana. Nada seria mais ingênuo do que
considerar imutável a concepção de interpretação no discurso freudiano. A
leitura deste, mesmo superficial, não valida essa suposição. Podemos
destacar, no registro do conceito de interpretação, o que Hyppolite
enunciava como sendo o trabalho incessante de recomeço que se encontra
presente na escritura freudiana: “Nada é mais atraente que a leitura das
obras de Freud. Fica-se com o sentimento de uma descoberta perpétua, de
um trabalho em profundiade que não cessa jamais de questionar seus
próprios resultados, para abrir novas perspectivas." ’

Este trabalho perpétuo de transformação conceituai se regula por certas


exigências fundamentais, que autorizam as rupturas teóricas realizadas no
conceito de interpretação e nos demais conceitos freudianos. Estas
exigências teóricas se fundam na prioridade que assume a experiência
psicanalítica, centrada na intersubjetividade da transferência, para a
constituição do saber psicanalítico. Sem esta fundamentação na experiência
analítica, o saber psicanalítico perderia não apenas qualquer referência e
eficácia operacional, mas também qualquer razão para a sua existência.

O que implica enunciar que a metapsicologia freudiana deve receber uma


leitura que considere as vicissitudes da experiência psicanalítica, sem a qual
a metapsicologia perde as suas condições de possibilidade de constituição e
de fundamentação. Assim, a metapsicologia não é nem um domínio teórico
da psicologia, representada esta como Uma teoria geral da adaptação do
organismo ao meio ambiente,9 nem uma metafísica do psiquismo, que pode
enunciar pressupostos teóricos sobre a subjetividade sem se referenciar no
seu espaço intersubjetivo de validade como experiência.

Foi no campo desta experiência intersubjetiva que a metapsicologia se


constituiu como um saber teórico que transcende o campo da consciência,
como indica a existência do prefixo meta, já que, no contexto histórico da
constituição da psicanálise, a psicologia se definia principalmente como um
saber da consciência. A metapsicologia se define como uma concepção não
consciencialista da psique. O inconsciente é enunciado como sendo um
registro psíquico que se encontra além da consciência, indicando pois a
existência, na psicanálise, de um sujeito estruturalmente dividido
(Spaltung).

Entretanto, esta descoberta freudiana só foi possível na medida em que o


psiquismo foi pesquisado no campo da relação com o Outro, com a
eliminação do método da introspecçâo em que se baseava a psicologia
clásica.10 Assim, o psiquismo foi inscrito no contexto das relações com
outros psiquismos, sendo pois concebido num quadro dialógico. Este
deslocamento metodológico do contexto da pesquisa do psiquismo indica a
dívida teórica que Freud contraiu com Charcot, Bernheim e Breuer.

Portanto, o psiquismo foi deslocado do seu isolamento absoluto e do seu


ensimesmamento radical — onde, como uma mônada, existia apenas como
pensamento no registro da consciência — e inserido na relação com o
Outro, pela ação e pela linguagem. Pela constituição desta experiência
intersubjetiva fundada na fala, o psiquismo pode ser figurado como
transcendendo o campo da consciência, indicando o registro inconsciente de
sua existência pelos efeitos produzidos pela linguagem.

Para estabelecer este procedimento metodológico e superar a psicologia da


consciência, criando condições para a constituição da psicanálise, foi
fundamental no percurso freudiano o estudo sobre as afasias.11 Nesse
ensaio, propriamente denominado “estudo crítico”, Freud realizou a
desconstrução sistemática da concepção localizacionista das afasias. Com
isso, pôde criticar a concepção mecanicista do psiquismo, que, centrado nas
funções cerebrais, seria uma espécie de epifenômeno do funcionamento
nervoso. Desta maneira, Freud pôde conceber a existência de um circuito
funcional da linguagem relativamente autônomo e independente da
topografia anatômica do sistema nervoso. Na leitura crítica freudiana
existiría a dominância do registro funcional sobre o registro tópico.
Enuncia-se uma concepção em que a psique é fundada na linguagem.

Na genealogia dos conceitos psicanalíticos, o aparelho psíquico foi


formulado primordialmente como um aparelho de linguagem, o que
permitiu não apenas criticar a concepção mecanicista do psiquismo, como
também enunciar, no mesmo ano, que o tratamento psíquico se realizava
pela linguagem.12 O tratamento pela linguagem teria efeitos sobre o corpo e
sobre a psique, podendo pois ser eficaz no registro corporal e no registro
psíquico. Apesar de partir da crítica à concepção mecanicista da psique, ao
enunciar uma psique fundada na linguagem e como um aparelho de
linguagem, Freud realiza no seu ponto de chegada uma crítica radical da
psicologia da consciência. Se a psique é fundamentalmente um aparelho da
linguagem, a consciência é uma das <£ia-lidades da psique e não toda a
psique.

Se a psique se funda como um aparelho da linguagem e a consciência é


apenas um de seus domínios tópicos, o discurso freudiano pode realizar a
crítica do método da introspecção, presente na psicologia clássica e na
tradição consciencialista da psicologia, que se originou historicamente com
Descartes.13 Por isso, foi possível criticar sistematicamente o dualismo
entre os registros do corpo e do espírito, tal como fora estabelecido por esta
tradição teórica. O discurso freudiano perfila a possibilidade de articulação
entre o corpo e a psique, que era impossível na tradição cartesiana, dada a
separação absoluta entre o corpo (res extensa) e o espírito (res cogitans).

Um dos maiores efeitos teóricos da crítica freudiana à tradição


consciencialista da psique foi colocar como objeto possível de pesquisa a
problemática que enunciava como indagações cruciais o advento do registro
do corpo a partir do registro do organismo e a emergência do sujeito no
corpo. Mediante esta problemática se perguntava quais seriam as condições
de possibilidade para transformar o organismo num corpo e para surgir um
sujeito encarnado.
Essa problemática do discurso freudiano possibilitou a constituição
inaugural da psicanálise como um saber da interpretação e revelou a
posteriori os seus impasses, caso a psicanálise permanecesse presa a estes
limites epistemo-lógicos.

A questão crucial do discurso freudiano foi a de como o sujeito se constitui,


como um sujeito encarnado, pelo corpo e a partir do corpo. Em tomo desta
indagação esse discurso pôde constituir os conceitos de corpo erógeno e de
pulsão.14 Na medida em que constituía essa problemática teórica, o discurso
freudiano pôde enunciar inicialmente a concepção de corpo representado e,
depois, a de corpo fantasmático, isto é, registros da corporalidade marcados
fundamentalmente pelo investimento do Outro e pelos símbolos ordenados
pela linguagem. Da mesma forma, com o enunciado do conceito de pulsão,
o discurso freudiano pôde formular a existência de outro registro entre o
somático e o psíquico,13 mediação fundamental, capaz de dar conta da
constituição do corpo e do sujeito.

Nesta perspectiva, concordamos com a leitura do discurso freudiano


empreendida por Hyppolite, crítico da longa tradição francesa de
interpretação da psicanálise, que contrapõe no discurso freudiano a retórica
cientifícista e a retórica hermenêutica. Esta oposição teórica aparece em
Politzer, que contrapõe a inovação freudiana — representada, na cura
psicanalítica, pela inter-subjetividade fundada na linguagem — e a retórica
cientifícista da psicologia clássica, que existiria nos escritos
metapsicológicos.16 Dalbiez retoma a mesma oposição teórica quando
contrapõe radicalmente o “método” e a “doutrina” psicanalítica; o método
interpretativo revelaria a inovação teórica do discurso freudiano, e a
metapsicologia poderia ser descartada como não condizente com a
metologia.17 Ricoeur retoma a mesma oposição teórica quando contrapõe as
categorias de energética e de interpretação no discurso freudiano, para
demonstrar que a psicanálise é um saber hermenêutico.11

Hyppolite critica essa oposição teórica entre o modelo positivista da


metapsicologia freudiana e o modelo interpretativo da experiência
psicanalítica, sublinhando que isso revela a pretensão teórica, do discurso
freudiano em articular uma filosofia da natureza e uma filosofia do
espírito.19 Destacando a existência dessas retóricas como indício de uma
problemática teórica e não como um equívoco, a leitura de Hyppolite indica
a importância de se pensar as questões do sujeito e da interpretação no
discurso freudiano como fundadas no conceito de pulsão.

Isso não implica reconhecer que o discurso freudiano tenha solucionado


esta questão, mas define o campo teórico no qual a problemática pode ser
retomada ha modernidade. Com isso, podemos delinear a nossa leitura do
conceito de interpretação no discurso freudiano, indicando as coordenadas
que possibilitaram a constituição da psicanálise como um saber da
interpretação e os impasses posteriores que se colocaram para a redução do
espaço psicanalítico como sendo apenas o campo da interpretação.

Nesta perspectiva, podemos delinear a constituição e o desenvolvimento do


discurso freudiano no tocante ao conceito de interpretação. Inicialmente o
discurso freudiano acreditou na possibilidade de que a pulsão como força
(Drang) pudesse ser inteiramente transformada em símbolo pelo trabalho da
linguagem, constituindo o registro do inconsciente, de maneira que o sujeito
do inconsciente como historicidade seria a resultante deste processo de
transformação. Mas, no desenvolvimento da sua pesquisa, Freud foi
destacando os impasses existentes nesse processo, o que não implica
enunciar que o sujeito do inconsciente, como interpretação da pulsão pela
linguagem e pelo Outro, não se produza desta maneira. O que o discurso
freudiano passa a destacar agora são os impasses e as impossibilidades
desse processo de transformação. A pulsão como força se inscreve na
ordem simbólica mediante uma série de destinos,20 nos quais se transforma
a energia originária da pulsão pela linguagem. Mas os impasses cruciais e
os obstáculos para esta transposição começam a ser tematizados pelo
discurso freudiano como uma questão fundamental da psicanálise, nos
registros clínico e teórico.

A formulação da existência de uma pulsão de morte, de uma modalidade de


pulsão que não se inscreve diretamente no registro simbólico, é a revelação
mais eloquente desse impasse. No percurso da pulsão, existiría um
momento mítico em que ela seria pura negatividade e não se inseriria no
campo das representações. Por isso mesmo, o discurso freudiano a
representou pela figura do silêncio,21 para destacar a sua dimensão
antidiscursiva, algo que não é imediatamente dialetizável pelo discurso e
pelo Outro.

Entretanto, a sua articulação com a pulsão de vida produziría efeitos na


psique: a compulsão à repetição, a agressividade e a destrutividade. Esta
série revela as ramificações da pulsão de morte, pelo trabalho de
simbolização produzido pela pulsão de vida. Vale dizer, de negatividade
radical a pulsão de morte se ordena como símbolo e como linguagem,
passando a evidenciar os seus destinos no universo da representação.

Em função desses problemas colocados na experiência psicanalítica e os


seus desdobramentos no discurso metapsicológico, os impasses do trabalho
de interpretação passaram a se colocar de forma progressivamente mais
radical no percurso freudiano. De um saber triunfante sobre a interpretação,
o discurso freudiano passou a se indagar sobre os impasses e as
impossibilidades da interpretação. São as condições de possibilidade da
interpretação que passam a se destacar na obra freudiana.

Neste sentido é que se apresenta nos escritos freudianos a metáfora do


“excesso” pulsional e se enuncia com mais vigor a dimensão quantitativa da
pulsão. O encaminhamento do processo analítico e a sua resolução passam
a ser representados por algo imponderável, isto é, pelos investimentos das
forças que se opõem no conflito psíquico e suas imensidades.22 Assim se
constituiu o conceito de construção em psicanálise,23 algo diferente do
conceito de interpretação. O discurso freudiano passou também a figurar a
existência de um pólo pulsional da psique,24 anteriormente inexistente,23
representado pela figura exuberante do id.

Eis aí o percurso teórico deste livro. Nos deslocaremos por essas diferentes
temáticas para indicar a constituição do discurso freudiano como um saber
de interpretação, ao mesmo tempo que analisaremos seus impasses e
impossibilidades, que, em contrapartida, permitem estabelecer com maior
rigor as condições de possibilidade do campo do interpretável em
psicanálise.

1. Sobre isso ver J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica. Rio


de Janeiro, Taurus-Tünbre, 1989.
2. Sobre isso ver S. Freud, "Au-delà du príncipe du plaisir” (1920). In
S. Freud, Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981; “Le moi et le ça”
(1923). Idem. •

3. S. Freud, Métapsychologie (1915-1917). Paris, Gallimard, 1968.

4. Sobre isso ver S. Freud, "Uinconscient” (1915), capítulo 2. Idem.

5. S. Freud, “Pulsions et destins de pulsions” (1915). Idem.

6. S. Freud, “Au-delà du príncipe du plaisir”. In S. Freud, Essais de


psychanalyse. Op. cit.

7. Sobre isso ver S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. In S.


Freud, Métapsychologie, p. 18. Op. cit.

8. J. Hyppolite, "Psychanalyse et philosophie” (1955). In J. Hyppolite,


Figures de la pensée philosophique. Volume I. Paris, Presses
Universitaires de France, 1971, p. 373-374. O grifo é nosso.

9. H. Hartmann, Psicologia do ego e o problema da adaptação. Rio


de Janeiro, Civilização Brasileira, 1958.

10. Sobre isso ver G. Politzer, Critique des fondements de la


psychologie, capítulos 1 e 2. Paris, Presses Universitaires de France,
1968.

11. S. Freud, On aphasia (1891). Nova York, International Universities


Press, 1953.

12. S. Freud, Psychical (or mental) treatment (1891). In The Standard


Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
Volume II. Londres, Hogarth Press, 1978.

13. R. Descartes, “Méditations. Objections et réponses” (1641). In


Oeuvres et lettres de Descartes. Paris, Gallimard, 1949, p. 160-175.

14. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905), primeiro


ensaio. In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. Volume VII. Op. cit.

15. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. In S. Freud,


Métapsychologie. Op cit.

16. G. Politzer, Critique des fondements de la psychologie. Op. cit.

17. R. Dalbiez, La méthode psychanalytique et la doctrinefreudienne.


Dois volumes. Paris, Desclée de Brouwer, 1936.

18. P. Ricoeur, De Tinterprétation. Essais sur Freud. Paris, Seuil,


1966.

19. J. Hyppolite, “Psychanalyse et philosophie". In J. Hyppolite,


Figures de la pensée philosophique. Volume I, p. 409-410. Op. cit.

20. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. In S. Freud.


Métapsychologie. Op. cit.

21. S. Freud, “Le moi et le ça”. In S. Freud, Essais de Psychanalyse.


Op. cit.

22. S. Freud, Analysis terminable and interminable (1937). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume XXIII. Op. cit.

23. S. Freud, Constructions in analysis (1937). Idem.

24. S. Freud, “L’inconscient”. In S. Freud, Métapsychologie. Op. cit.

25. S. Freud, “Le moi et le ça”. Introdução, caps. 1 e 2. In Essais de


Psychanalyse. Op. cit.

Primeira parte Interpretação,


deciframento e sentido
“o que afirmássemos como sendo sua essência não seria a sua verdade,
mas somente o nosso saber sobre ela..."

G. W. F. Hegel, A fenomenologia do espírito1

Loucura e verdade
A psicanálise rompe com os campos da medicina e da psiquiatria ao
conceder à loucura o estatuto de verdade, considerando-a como portadora
de um sentido. Fica para trás o universo de subumanidade a que ela tinha
sido relegada pela então recente tradição psiquiátrica, que a considerava
basicamente resultante de uma anomalia na estrutura do corpo, sobre a qual
a palavra não possuía qualquer poder revelador.

Que, exatamente, significa essa proposição? Em que medida o discurso


freudiano representa efetivamente uma subversão na história recente da
medicina mental? Qual o alcance teórico dessa atribuição de sentido à
experiência da loucura?

Tentemos, em primeiro lugar, definir com maior rigor os contornos dessa


problemática e destacar os tópicos fundamentais para a sua enunciação,
percorrendo os textos em que aparecem indícios de que Freud atribuía
sentido às experiências psicopatológicas, codificadas como enfermidades
sem significação pelo discurso psiquiátrico.

Psicanálise, verdade e loucura


Em 1895, referindo-se a algumas formações de pensamento típicas da
neurose obsessiva, experimentadas afetivamente como verdadeiras pelos
pacientes mas caracterizadas como absurdas pelo discurso psiquiátrico —
pois não correspondiam a qualquer verdade situada na realidade extra-
subjetiva —, Freud afirmava peremptoriamente:

“... uma análise psicológica escrupulosa destes casos mostra que o estado
emotivo enquanto tal é sempre justificado...” 2 ,
Ou seja, mesmo se o discurso do paciente é aparentemente absurdo, seu
sofrimento mostra de maneira insofismável que sua experiência é
verdadeira. Nesses casos, o afeto, e não o discurso, revela imediatamente a
verdade que o sujeito atribui a si mesmo. Verdade que deve ser remetida a
outra dimensão psíquica da experiência, que ainda não pode ser enunciada
pelo sujeito através da palavra.

Esta última formulação — uma das construções metodológicas iniciais do


discurso freudiano — pressupõe o reconhecimento de uma dimensão
originária da questão: com seus tormentos, o sujeito está dizendo a verdade.
Com efeito, apesar de apresentar-se de forma aparentemente absurda se o
critério de verdade for a adequação do discurso a referenciais extra-
subjetivos, o sentimento expressa uma relação originária do sujeito consigo
mesmo e enuncia algo fundamental.

Remetendo a verdade da subjetividade a outro contexto fundamental de


referência, Freud indica que esta categoria não se sustenta apenas nos
objetos e situações pertencentes à experiência social imediata do sujeito,
circunscrita à atualidade histórica. A verdade que justifica os sofrimentos
toma como referencial o sujeito, suporte de uma experiência que se
desdobra numa história e se demarca num tempo que transcende o presente.
Ou seja, a verdade em questão considera como referência básica o sujeito, e
não os objetos reais, atuais, da experiência deste.

Em 1909, no relato da experiência analítica de “O homem dos ratos”, Freud


trata de uma situação similar. Colocado diante de uma estrutura obsessiva,
ele volta a contrapor o discurso aparentemente absurdo do analisando ao
sentimento deste — que acreditava ser um “criminoso real” —, atribuindo
ao sofrimento do paciente o valor de indicar uma verdade subjetiva. Neste
caso, ao contrário do anterior, Freud não apenas situa a questão. Constrói
também um esquema interpretativo que assinala a teoria dessa experiência
forjada em quinze anos de trabalho psicanalítico:

“... quando existe uma mésalliance, eu começo, entre um afeto e seu


conteúdo ideativo (neste caso, entre a intensidade do remorso e sua causa),
um leigo diria que o afeto é muito grande para a causa — que ele é
exagerado — e que consequentemente a dedução inferida deste remorso (a
inferência de que o paciente é um criminoso) é falsa. Ao contrário, o
médico (analista) diz: ‘Não. O afeto é justificado; o sentimento de culpa não
é para ser criticado, mas ele pertence a um outro conteúdo que é
desconhecido (inconsciente) e que precisa ser procurado. O conteúdo
conhecido da idéia só se introduziu na sua posição atual por causa de uma
falsa conexão. Nós não estamos habituados a sentir afetos injpnsos sem
conteúdo ideativo. Portanto, se o conteúdo está faltando, nós apreendemos
como substituto qualquer outro conteúdo, que é de alguma forma adequado,
assim como nossa polícia, quando não consegue pegar o verdadeiro
assassino, detém um outro em seu lugar. Além disso, a existência da falsa
conexão é o único caminho para explicar a impotência dos processos
lógicos para combater a idéia atormentadora...” 3

A construção metodológica a que nos referimos já se encontra realizada


aqui. Ela pressupõe a veracidade da experiência que se revela pelo afeto e,
dessa forma, confere outro contexto ao discurso aparentemente absurdo,
destacando o sujeito, e não a realidade objetiva, como eixo da experiência.
O afeto se refere a uma representação que está ausente do enunciado do
discurso porque foi substituída por outra, fazendo com que o discurso se
tornasse absurdo.

Reconhece-se, portanto, a existência de uma realidade psíquica que


transcende a consciência do sujeito e a determina, apresentando-se através
de fragmentos que escapam ao controle desta. O sujeito passa a ser
considerado como estruturalmente dividido (Spaltung). Sua verdade não se
situa apenas no espaço da consciência que se refere a objetos extemos, mas
também a objetos centrados na sua experiência interna. Quando se
reconhece a existência de um sujeito descentrado em relação à consciência
e ao mundo dos objetos extemos — devolvendo-se à psique toda a sua
materialidade — a experiência da loucura volta a ter sentido.

Considerando essa problemática, Freud formaliza um postulado


fundamental para a teoria psicanalítica, ao aprofundar a existência de uma
realidade psíquica que se contrapõe à realidade material, apresentando, em
relação a esta, materialidade de pregnância idêntica, porém de ordem e de
natureza diversas.

Quando se considera um referencial centrado na realidade psíquica (e não


na material), torna-se possível reconhecer um critério de verdade e um
sentido na experiência da loucura. Freud não atribui dimensão apenas física
à realidade material, pois reconhece que experiências de tipo sócio-cultural
instituem padrões subjetivos de avaliação do que seja verdadeiro ou falso.
Em relação a estas experiências, o discurso da loucura efetivamente se
caracteriza como absurdo e falso, destituído de racionalidade. Mas se o
referencial usado for a realidade psíquica, reencontra-se o sentido e outra
ordem de razão se impõe.

Isso significa que, na loucura, a problemática do sentido se insere num


plano bastante específico da experiência do sujeito. O sentido considerado
não se regula por uma concepção de verdade que seja o contraponto da
idéia de erro, num registro regulado pela oposição verdadeiro/falso.
Considerando a realidade psíquica como suporte e referencial de uma
verdade singular da subjetividade, podemos postular que neste plano da
experiência a verdade se coloca para o sujeito de maneira absoluta, como
um é radical, e se constitui como tal numa temporalidade histórica,
materializando-se nesta especificidade em que se enuncia.

Da experiência analítica com o “homem dos ratos”, Freud destaca o


sintoma da “onipotência dos pensamentos”, enunciado pelo próprio
analisando.4 O alcance conceituai dessa formulação é logo ampliado e
transformado, ganhando uma abrangência reveladora do processo originário
do sistema inconsciente.5 Será que não aparece aí a caracterização absoluta
desse é da verdade do sujeito, que não pode ser transformada apenas pela
apresentação de provas que demonstrem sua inadequação à realidade extra-
subjetiva?

Nesta perspectiva, no contexto da realidade psíquica a verdade se inscreve


num eixo regulado pela oposição serlnão ser. Alguma coisa é ou não é
verdadeira, sem se superpor absolutamente à problemática da verdade
regulada pela oposição verdadeiro/falso.

Face a esse deslocamento dinâmico de representações, Freud argumenta que


de nada adianta usar argumentos lógicos para provar ao analisando a
falsidade de sua proposição, baseando-se na adequação ou não da
proposição a referenciais objetivos. Além de não conduzir o paciente a
transformar sua convicção, essa tentativa não situa a questão no seu devido
lugar. Para tal, é preciso reconstituir as condições subjetivas que
conduziram o sujeito a substituir uma representação por outra, e isso exige
que se percorra a cadeia associativa dessas substituições. Seria preciso, por
exemplo, reconstituir o cenário do “crime” do “homem dos ratos”, para que
se pudesse restituir o sentido originário dessa identificação do analisando
com a figura do “criminoso”.

Se nos deslocarmos da neurose obsessiva para a melancolia,


reencontraremos comentários similares no texto freudiano. No caso da
melancolia não estamos mais no campo das neuroses de transferência, mas
no grupo das neuroses narcísicas, incluídas pela psiquiatria de então entre
as grandes psicoses, ao lado da esquizofrenia. Para o discurso psiquiátrico,
a melancolia é destituída de sentido em última instância. Por causa de um
distúrbio orgânico, teria havido uma ruptura na trama significativa do
percurso histórico da figura do melancólico, com quebra de sentido da sua
experiência subjetiva. Porém, desdobrando a trilha teórica entreaberta pelo
trabalho anterior de Abraham,6 Freud reencontra o sentido perdido dessa
experiência e formula que, assim como ocorre no modelo do luto, essa
situação subjetiva se sustenta numa dolorosa experiência de perda, isto é, de
algo dotado de enorme valor para o sujeito.7 Nas duas situações,
aparentemente diversas, uma experiência desse tipo remetería a uma
dilaceração da auto-estima. *

Se, numa primeira inflexão metodológica, o modelo normal do luto


possibilita reencontrar o sentido dessa experiência da loucura, permitindo
superar inicialmente, a oposição normal/patológico do discurso médico-
psiquiátrico, num momento teórico posterior ambas as experiências são
submetidas às mesmas coordenadas subjetivas, de forma a serem
consideradas como variantes possíveis de um mesmo dinamismo estrutural,
cujo traço marcante é a perda de um objeto interno investido de enorme
valor libidinal. Com isso, o normal e o patológico se encontram
identificados nos seus fundamentos, ultrapassando-se a oposição absoluta
que o discurso psiquiátrico atribuía a esses universos.

O melancólico se relaciona consigo mesmo na base de auto-acusações


fulminantes, percebendo apenas as dimensões negativas de si mesmo, que
remetem a uma abissal autodepreciação e a um esvaziamento mortífero da
auto-estima. Porém, considerando seus feitos e comportamentos na vida
cotidiana, as pessoas que com ele convivem não o reconhecem,
objetivamente, nessa imagem negativa. Recoloca-se aqui a oposição entre,
de um lado, a convicção subjetiva do paciente e, de outro, o que os demais
consideram um discurso absurdo. O afeto que se contrapõe à apresentação
objetiva do sujeito diz respeito, no entanto, a algo interno a ele. Por isso,
não adianta usar argumentos realistas para convencer o paciente sobre o
infundado de suas proposições, pois o registro do sentido não se reduz ao
discurso do verdadeiro/falso:

“Seria cientificamente, assim como terapeuticamente, infrutífero


contradizer o doente que dirige tais queixas contra o seu ego. Ele deve ter,
de alguma maneira, razão e descrever alguma coisa que é tal como lhe
parece. Nós somos forçados a confirmar imediatamente e sem reservas
algumas de suas alegações. Ele é efetivamente tão desprovido de interesse,
tão incapaz de amor e de atividade como ele diz. Mas, como nós sabemos,
isto vem secundariamente; é a consequência deste trabalho interior,
desconhecido para nós, comparável ao luto, que consome seu ego...”8

Até este ponto do texto, Freud apenas retoma as proposições que


destacamos anteriormente, mas a partir de agora ele avança formulações
ainda mais inovadoras sobre a relação entre loucura e verdade, invertendo
radicalmente a relação tradicional, estabelecida pelo discurso psiquiátrico:

“Em algumas de suas outras queixas contra si, ele nos parece igualmente
ter razão, e não faz senão apreender a verdade com mais acuidade que
outras pessoas que não são melancólicas. Quando, na susf autocrítica
exacerbada, ele se descreve como mesquiqho, egoísta, insincero, incapaz de
independência, como um homem em que todos os esforços não tenderíam
senão a ocultar as fraquezas de sua natureza, ele podería bem, segundo
nossa opinião, ter se aproximado bastante do conhecimento de si, e a única
questão que colocaríamos é de saber por que se deve começar por ficar
doente para ler acesso a uma tal verdade. Pois não há dúvida que aquele
que se descobre assim e que exprime diante dos outros uma tal apreciação
sobre si — uma apreciação como aquela que o príncipe Hamlet mantém em
reserva para si mesmo e para todos os outros — é doente, que ele diga
precisamente a verdade ou que ele se mostre mais ou menos injusto
consigo...” ’

Nesse momento do pensamento freudiano, a concepção de loucura se


associa fundamentalmente à idéia de verdade do sujeito sobre si mesmo e à
revelação ao outro dessa verdade descoberta. Sustentada no eixo subjetivo
onde se realiza o processo de autoconhecimento, a loucura passa a ser
concebida como um acidente que pode ocorrer ao sujeito, no processo de
revelação da sua identidade.

No seu autodesprezo, o sujeito pode estar sendo “mais ou menos injusto


para consigo mesmo”. Mas isso não coloca em questão o postulado
fundamental do discurso freudiano: existe a apreensão radical de uma
verdade pelo sujeito. Desconhecida até esse momento, essa verdade é
destacada com toda paixão e exibida publicamente sem qualquer reserva. O
sujeito define, para os outros, os contornos de sua recente identificação e,
nesse contexto, esquece uma série de outras verdades sobre sua própria
identidade.

Portanto, enlouquecer seria, para o sujeito, aceder a uma insuportável


verdade sobre si mesmo, estabelecendo-se, para o sujeito, um conflito
violento com a imagem forjada pelo ego, a respeito da sua identidade. Além
disso, seria assumir plenamente essa verdade recém-resgatada como sendo
a sua única verdade, apresentando-a ao outro sem qualquer rodeio, de forma
nua e crua.

Diante dessa veracidade subjetiva, toma-se secundário discutir se o sujeito


está sendo “mais ou menos injusto” consigo mesmo. De nada adianta usar
argumentos lógicos para corrigir o desvio no pensamento do paciente,
confrontando a sua auto-avaliação com a representação dos outros sobre sua
pessoa. A inadequação da verdade centrada na experiência psíquica dp
sujeito à sua experiência socialmente compartilhada com os outros não se
insere no registro dominado pela oposição verdade/erro, mas no registro do
sentido, em que a verdade se enuncia radicalmente como um é absoluto,
desligando-se, portanto, do quadro de referência que regula o mundo das
inter-relações comportamentais:
“Não é pois essencial se perguntar se o melancólico, na sua penosa
autodepreciação, tem razão, na medida em que sua crítica coincide com o
juízo dos outros. O que deve antes nos reter é que ele descreve
corretamente a sua situação psicológica. Ele perdeu o respeito por si e deve
ter para isto uma boa razão..." 10

Assim, não existiría na loucura uma perda absoluta da razão, como se


podería pensar a partir de uma análise que, incapaz de penetrar no âmago
desta experiência, considere apenas o juízo dos outros sobre o paciente e as
características personalógicas que estes lhe atribuem. A auto-apreciação do
paciente estaria sendo regulada por outra ordem de razão, cujo direito à
existência é tão legítimo quanto o da primeira. Na experiência da loucura, a
desrazão aparece quando pretendemos avaliar a razão do louco de acordo
com um discurso que se baseia na oposição verdadeiro/falso, utilizado pela
psiquiatria e pelos que compartilham o cenário da existência social do
sujeito.

Nessa perspectiva, incorre-se num evidente propósito de normalização


social quando se atribui a alguém a condição de doente mental, utilizando-
se uma concepção de verdade sustentada no eixo definido pela oposição
verdade/ erro. Neste caso, a experiência da loucura, identificada como
sendo da ordem da doença mental, é definida pela ruptura com um sistema
de regras que circunscreve a identidade social do indivíduo. E, no entanto,
evidente que o discurso normalizador é o correlato, no plano social, do
discurso do ego, isto é, das imagens unificantes do sujeito sobre a sua
identidade social.

Porém, se admitimos a existência de outros cenários na experiência psíquica


do sujeito, propondo que esta tem uma história que lhe confere uma
espessura, a razão da loucura reencontra o seu fundamento. Nesse contexto,
o sentido da experiência da loucura está situado de maneira absoluta no
plano do ser, impondo-se como uma verdade fundante do sujeito. Ela
ultrapassa o registro do verdadeiro/falso e não se regula pelo código
normalizador da identidade social.

Se nos deslocarmos agora para a temática da esquizofrenia, ou da “para-


frenia” como pretendia Freud, reencontraremos a mesma fundamentação
teórica sobre a questão da verdade. Completamente desarticulado,
estilhaçado em múltiplos fragmentos, sem unidade em tomo de um ego
totalizante e dizendo coisas disparatadas a respeito das suas relações com q
mundo, o paciente esquizofrênico também vive uma experiência dotada de
sentido, sustentada por uma verdade histórica que precisa ser restaurada.
Impossível de ser reconhecida e expressa na fala do sujeito, essa verdade
aparece, no disctfrso delirante, deslocada de sua posição originária.
Vejamos como Freud formula essa problemática no final de sua obra,
sublinhando a presença de um “método” e de outra forma de racionalidade
na experiência da loucura:

“Esta concepção sobre os delírios não é, eu penso, inteiramente nova, mas


enfatiza um ponto de vista que não se traz usualmente para o primeiro
plano. A essência disto é que não há apenas método na loucura, como o
poeta tinha já percebido, mas também um fragmento de verdade histórica; e
é plausível supor que a crença compulsiva que é atribuída aos delírios retira
precisamente sua força de fontes infantis desta espécie...” 11

Ao restaurar o sentido da experiência delirante, Freud não apenas rompe


com o discurso psiquiátrico sobre a doença mental. Identifica-se também
com o discurso poético, que sempre atribuiu significação ao processo de
enlouque-cimento. Assim, cabe destacar enfaticamente o sentido da
experiência esquizofrênica, e não medir de fora dela, baseando-se em
características formais, a adequação/inadequação do discurso delirante a um
código social de valores, definidos como normais pelo discurso
psiquiátrico.

A postura face à experiência psicótica se transforma, e isso influencia


diretamente a maneira de conduzir o processo analítico. De nada adianta
contradizer o discurso delirante com proposições lógicas e argumentos
realistas, pois isto não irá transformar a convicção do paciente. É preciso
possibilitar que o sujeito reencontre sua verdade histórica, restaurando
assim a continuidade temporal de sua existência, que foi rompida de
maneira radical:

“Seria provavelmente útil fazer uma tentativa para estudar casos da


desordem em questão, na base das hipóteses que foram aqui avançadas e
também realizar seu tratamento nestas mesmas linhas. Seria abandonado o
esforço vão de convencer o paciente do seu delírio e de sua, contradição
com a realidade; e, ao contrário, o reconhecimento deste núcleo de verdade
proporcionaria um fundamento comum sobre o qual o trabalho terapêutico
poderia se desenvolver. Este trabalho consistiría em libertar um fragmento
de verdade histórica de suas distorções e de suas ligações com os dias
atuais, conduzindo-o para o ponto do passado ao qual ele pertence. A
transposição do material de um passado esquecido para o presente, ou para
uma expectativa de futuro, é uma ocorrência habitual nos neuróticos, não
menos que nos psicóticos. Frequentemente, quando um neurótico é
conduzido por um estado de ansiedade a esperar a ocorrência de algum
evento terrível, ele está de fato meramente sob a influência de uma memória
recalcada (que está procurando entrar na consciência, mas não pode tomar-
se consciente). Alguma coisa que era naquele tempo aterrorizante realmente
aconteceu. Eu acredito que ganharíamos uma grande parcela de efetivo
conhecimento trabalhando desta forma com psicóticos, mesmo se não
conduzir a nenhum sucesso terapêutico.'”12

Como se vê, Freud não vincula diretamente o trabalho fundamental de


restauração da verdade histórica e o seu correlato (o restabelecimento da
continuidade da temporalidade subjetiva) à produção imediata do efeito
terapêutico. Ao agir assim, destaca o valor da restituição da verdade
histórica e lhe confere uma prioridade evidente no plano metodológico. Ou
seja, o método de investigação define o eixo fundamental que norteia o
campo da clínica psicanalítica, e o método de cura fica subsumido a esta
exigência fundamental.

A admissão da veracidade do sintoma e a tentativa de apreendê-lo num


contexto de referência que admita que ele está originalmente dizendo
alguma coisa implicam que se reconheça a existência de uma ordem mais
primordial. Nesta perspectiva, os delírios e as alucinações da psicose
esquizofrênica, que formalizam a experiência da loucura na sua
radicalidade, constituem uma narrativa da verdade do sujeito. Este narra a
sua verdade à sua maneira, com os meios psíquicos de que dispõe.
Reconhecer efetivamente essa situação é um pressuposto fundamental para
admitir a existência dessa verdade histórica e poder aceder até ela. Isso
implica não considerar os sofrimentos mortíferos como subprodutos de um
corpo e de um cérebro naturalmente inferiorizados. O suporte da
experiência da loucura é um sujfeito, e não um corpo de natureza involuída
e uma mentalidade cujos valores básicos foram originariamente pervertidos,
gerando uma subjetividade essencialmente defeituosa.

Reconhecer sentido na experiência da loucura implica conferir, à palavra do


louco, direito de existência e poder de manifestação. Não por acaso, todo o
empreendimento psicanalítico será cenffado no ato de falar, no convite a
poder dizer tudo e nos obstáculos encontrados pelo analisando no exercício
dessa prática discursiva que toma a si próprio como temática. Enfim, se
retiramos a loucura da ordem do corpo patológico e a instalamos na ordem
do sentido, no plano da história da subjetividade, e se abrimos espaço para
que esta possa falar, ela recupera o estatuto de verdade que foi silenciado
pela recente tradição psiquiátrica.

O saber psiquiátrico e a abolição do sujeito na


experiência da loucura
Assim, tendo enunciado a problemática da verdade na experiência da
loucura em diversas estruturas psicopatológicas e destacado vários eixos
teóricos que sustentam a sua postulação no discurso freudiano, podemos
retomar nossas interrogações iniciais e delinear a ruptura fundamental que
esta concepção introduziu face ao discurso da recente tradição psiquiátrica.

Como se colocava, no discurso psiquiátrico de então, a relação entre a


experiência da loucura e as temáticas da verdade e do saber? O que
representou o deslocamento realizado pela “revolução psiquiátrica”, que
passou a situar a problemática da loucura no contexto de uma teoria da
enfermidade? Qual o significado desse deslocamento histórico da
problemática da loucura para a da enfermidade mental, e que
transformações houve na representação da natureza da loucura quando esta
se inscreveu na recente ordem psiquiátrica? Qual a implicação, no plano
intersubjetivo, dessa transformação havida na representação da natureza da
loucura?

Encaminhemos esquematicamente os eixos básicos que definem o espaço


teórico no qual estas interrogações podem encontrar solução. Na medida em
que a loucura passou a ser considerada como uma forma especial de
enfermidade, o sujeito perdeu o lugar de suporte fundamental dessa
experiência. Nesse percurso, a loucura foi dessubjetivada. Apesar do
discurso psiquiátrico tratá-la como um “excesso” de subjetividade que
carece de um reconhecimento da “realidade”, de um “interno” que se volta
contra o “externo”, esta subjetividade assim enunciada corresponde a uma
abolição do sujeito, pois este supõe essencialmente, no discurso
psiquiátrico, o reconhecimento do “real”.13 Portanto, o “excesso” subjetivo
e passional da loucura correspondería a uma ausência efetiva de
subjetividade, pois, se esta existisse mesmo, reconhecería a existência da
“realidade”.

Com essa subtração constituinte, o louco passa a ser marcado por uma
minoridade essencial, que o caracteriza negativamente em diversos planos
— complementares e necessariamente articulados entre si — de sua
existência. Ele se apresenta marcado essencialmente por uma minoridade
psicológica, social e ética, que produzirá como contrapartida fundamental a
sua minoridade jurídica.

A figura do louco terá um percurso bem delineado ao longo dos trajetos que
atravessam o espaço social, com áreas de restrição absoluta e com interditos
bem definidos, tanto no plano real quanto no simbólico. Sendo negatividade
essencial, a loucura tem como contrapartida a mutilação de seu personagem
social. Por isso, todos os traços de positividade atribuídos à loucura terão
como efeito e finalidade constituir um corpo para esta negatividade
originária, funcionando como um discurso que a legitime.

Passamos assim a nos defrontar com formas diversas de transfiguração de


uma figura alienada. Em última instância, elas remetem à retirada do lugar
do sujeito na experiência da loucura. Esta subtração, que seria a sua
alienação fundamental, vai ser inversamente codificada pelo discurso
psiquiátrico como sendo da ordem de uma alienação mental. Portanto, a
figura da enfermidade mental, lançada sobre a loucura, justifica e encobre a
operação fundamental em pauta, isto é, a retirada do lugar do sujeito desSa
experiência, atribuindo-se à natureza do louco uma negatividade originária.

Evidentemente, esse silenciamento do lugar do sujeito na experiência da


loucura não é produzido apenas pelo discurso psiquiátrico, que se constituiu
e se desenvolveu para responder a uma demanda sócio-histórica mais
abrangente, na passagem do século XVIII para o XIX.14 De qualquer forma,
a psiquiatria deu corpo a esta negatividade, formulando um discurso
positivo sobre a loucura. Pelo logos médico, a loucura se constitui como
corpo negativo e como moralidade alienada, sendo delineada como uma
figura que deveria ser domesticada pelo isolamento absoluto em relação ao
espaço social e pela tecnologia do tratamento moral — formas de
normalização do louco para sua inserção no social.

A subtração do sujeito e as figuras instituintes de sua minoridade se


condensam na prática da exclusão asilar e no interdito da circulação social,
que elevam ao plano do símbolo essa negativação absoluta que marca de
modo indelével a identidade social da loucura. Tomando o corpo negativo
da loucura como suporte, a normalização asilar empreendida pelo
tratamento moral seria a maneira de se construir uma personagem social
regulada pelas normas.

A alienação do lugar do sujeito na loucura pode ser formulada pelo discurso


psiquiátrico em dois registros teóricos que, embora diferentes, não são
excludentes. São até mesmo complementares. Pode-se pressupor que essa
negatividade essencial existe basicamente no plano do corpo biológico e
tem efeitos secundários no plano da organização moral. Ou, ao contrário,
que ela é basicamente moral e deixa indene a organização somática. Alguns
teóricos do emergente alienismo, como Falret, tematizaram a articulação
necessária entre corpo e psique para a produção da alienação mental.I5> 16

Contudo, em qualquer alternativa destacada pelas diferentes tendências do


então recente pensamento psiquiátrico, admitia-se que um defeito
fundamental do sujeito produziría a perda da razão. Tendo perdido a posse
sobrési mesmo, o sujeito deveria ser curado por um outro, detentor do saber
sobre o corpo negativo e sobre a moralidade alienada e, por isso, apto a
restaurar a normalidade. Esta restauração não supunha o confronto entre
dois sujeitos que se encontravam, mas apenas a oposição entre um sujeito
presente e uma ausência de sujeito. O primeiro iria modelar o segundo de
acordo com uma concepção de normalidade, construindo uma personagem
adequada aos princípios que norteiam um espaço social historicamente
determinado.17
Esta estratégia fundamental do discurso psiquiátrico tem dois pressupostos
básicos, que opõem de maneira bem determinada as figuras do psiquiatra e
do louco face às temáticas da verdade e do saber. Se, na experiência da
loucura, o sujeito é silenciado e subtraído enquanto representante de
qualquer poder constituinte, não se reconhece na figura do louco a
capacidade de deter nenhuma forma de saber sobre si mesma. A loucura é
radicalmente considerada como sendo a inexistência de qualquer verdade.
Como efeito dessa subtração, a negatividade essencial do sujeito se
constitui com muita precisão.

Esta formulação terá consequências fundamentais. Despossuída de um


saber sobre si mesma, a loucura passa a situar-se no limite inferior do
humano, sendo representada como figura de passagem entre a animalidade
e a humanidade, a natureza e a cultura. Esvaziada de saber, posicionada
entre duas ordens cósmicas, a loucura é vista como uma figura humana em
decomposição, materializando a perda do especificamente humano e sendo
a explicitação desordenada de seus constituintes fundamentais. A alienação
mental seria a figuração desta decomposição, a marca de alguém que habita
os limites da condição humana.

Esta representação do louco é inseparável da representação da figura do


alienista, estando ambos contrapostos como pares complementares. A
negatividade essencial de uma das figuras corresponde ao excesso de
positividade da outra, que passaria a funcionar como fonte absoluta de
positivação da primeira. Estabelecido numa escala de essências, este
contraponto se duplica e logo se situa também numa escala ética, de forma
que o negativo e o positivo originários adquirem uma dimensão de valor,
com a oposição absoluta entre o Bem e o Mal.

No momento de sua constituição histórica, o projeto psiquiátrico procura


sustentar-se no combate mítico das forças do Bem contra as do Mal,
eternamente recomeçado ao longo da história da humanidade. Todo o
projeto terapêutico do discurso psiquiátrico encontra seu suporte neste
pressuposto central, de forma que, de ato positivo, a cura se transforma
também em ato moral. Enquanto processo de normalização social, o
tratamento moral se sustenta nesta operação em que a oposição
positivo/negativo se duplica na oposição Bem/Mal.
"

Suporte da terapêutica, o alienista é colocado no lugar soberano de detentor


absoluto de um discurso sobre a normalidade e a anormalidade morais. Por
meio do saber, o psiquiatra pretende não apenas avaliar a anomalia
originária do doente mental para convertê-lo à normalidade moral, mas
também legitimar todas as implicações éticas, sociais e jurídicas que
atribuem à loucura uma minoridade constituinte.

Estes postulados não permitem que o louco detenha qualquer sentido de sua
própria experiência. Reduzido a uma negatividade essencial, ele não possui
qualquer saber sobre si mesmo. O psiquiatra é o detentor soberano de toda a
ciência positiva, a única que pode definir a verdade da loucura.
Transformada em doença mental, esta recebe não apenas uma redução
explicativa, mas passa também a ter fora de si o eixo fundamental de
sustentação de sua verdade. O saber explicativo torna-se a via que sustenta
o ato terapêutico sobre a loucura, despossuída de qualquer verdade. Por este
caminho o louco recebe uma verdade que o discurso psiquiátrico se arroga
o direito de possuir.

A oposição entre sentido e explicação deve ser considerada aqui de forma


rigorosa, pois neste contexto os dois conceitos correspondem a diferentes
formulações da problemática da verdade (inclusão/exclusão do sujeito da
experiência como referencial fundamental da verdade, consideração da ade-
quação/inadequação da verdade do sujeito a um objeto situado fora dele).
Além disso, vem para o primeiro plano uma questão fundamental: quem é o
portador do código de verdade na experiência da loucura?

O discurso psiquiátrico apresenta uma série de argumentos para explicar os


motivos que fazem o sujeito perder a razão e se tornar desvairado. Detendo
a verdade sobre a essência negativa da loucura, a psiquiatria pode justificar
seu empreendimento terapêutico. A verdade da loucura se encontra definida
no âmbito do saber psiquiátrico, que tenta capturar esta experiência no
quadro de suas teorias explicativas.

Tais teorias podem ser construídas em bases conceituais diferentes, que


postulam o privilégio da ordem orgânica ou da ordem psicológica, como se
faz insistentemente desde a primeira metade do século XIX, quando se
opunham as escolas somaticista e psicológica, até hoje. Estas diferentes
formulações não se contrapõem efetivamente, pois sua oposição aparece
apenas na superfície do discurso psiquiátrico, isto é, no plano dos seus
enunciados, e não do núcleo fundamental de suas enunciações.

Com efeito, quando nos deslocamos do plano formal dos enunciados para o
plano das condições de possibilidade desses discursos, podemos ver como o
eixo fundamental da problemática permanece inalterado, pois não se trtÉis-
formam absolutamente nem o locus onde se enuncia a verdade da loucura,
nem tampouco o referencial e o agente enunciador desta verdade. Em
ambas as alternativas, ela continua situada no interior do saber psiquiátrico.
Afirma-se a não-verdade da experiência da loucura através de um
referencial localizado fora do sujeito, e o detentor deste discurso se
transforma no senhor soberano da verdade.

Ao considerar a loucura como alienação mental e silenciar sobre o lugar do


sujeito nessa experiência, a ordem psiquiátrica constituída na aurora do
século XIX retira dela qualquer sentido que lhe seja inerente, destituindo o
louco de qualquer saber e de qualquer verdade. Reduzida ao estatuto de
enfermidade mental, a loucura perde sua dimensão simbólica e se insere no
horizonte dos objetos científico-naturais. Seu código de verdade se toma um
atributo, um privilégio absoluto, da psiquiatria, que usa um discurso
explicativo causai. Ele passa a ser o quadro de referência que envolve a
experiência da loucura e justifica a adoção de uma série de tecnologias
terapêuticas.

Pelas razões que assinalamos — isto é, o local onde se enuncia a verdade da


experiência da loucura, a sua referência fundamental e o detentor do seu
código — essas tecnologias terapêuticas são essencialmente marcadas pela
estratégia da normalização social. Mesmo sem considerar aqui os canais
sociais pelos quais o sujeito foi despossuído na experiência da loucura,
mesmo fixando apenas as operações epistemológicas que fundamentam o
tratamento moral, podemos assinalar que a normalização é o efeito desejado
destas operações. Como poderia ser diferente? Afinal, a verdade formulada
no eixo regulado pela oposição normal/anormal é definida no contexto do
discurso psiquiátrico, que considera o espaço social como o referencial
primordial em que se avalia a adequação/inadequação do discurso da
loucura. O sujeito, como vimos, não é a referência fundamental de sua
própria experiência.

A normalização social da experiência da loucura implica a presença, como


fundamento, de um discurso explicativo em que o referencial da verdade é
algo localizado fora do sujeito. Esta exterioridade é deslocada para o espaço
social, que define as normas de avaliação da adequação/inadequação dos
termos do discurso da loucura.

No contexto da relação intersubjetiva, tal discurso explicativo tem efeitos


muito específicos, pois implica não apenas a oposição das duas figuras em
pauta (representantes da verdade e da não-verdade), como também reduz a
relação terapêutica a uma relação pedagógica. O processo terapêutico é
representado como um ato de domesticação, com a implantação de uma
verdade onde não existe nenhuma e com a imposição arbitrária da ordem da
cultura à ordem da natureza. Desta maneira, se autoriza no saber
psiquiátrico qualquer ato de vidlência, pois se pretende impor a ordem do
Bem à ordem do Mal.

O saber psicanalítico e o restabelecimento do


sujeito
Evidentemente, esta não é a única possibilidade de existência de um
discurso explicativo sobre a experiência da loucura. Tal discurso podería ter
outra espessura epistemológica. Para isto, contudo, sua construção deveria
obedecer outra ordem de prioridades, invertendo as bases do discurso
anterior. Isto é, a construção do novo discurso explicativo sobre a
experiência da loucura deveria fundamentar-se no primado do sentido do
sujeito.

Nessa nova ordem explicativa, o sentido do sujeito se torna o único


caminho seguro para fundar os postulados e os suportes da teoria, que passa
a poder ser incessantemente transformada de acordo com os novos índices
fornecidos pela emergência do sentido na experiência da loucura e por suas
oscilações. Esta passa a questionar permanentemente a construção teórica
estabelecida.

Não seria esse o significado mais fundamental da démarche freudiana?


Freud repensou intermitentemente as suas construções teóricas, sempre
reconhecendo que estas ficavam muito aquém da exuberância do sentido
que a experiência analítica originária possibilitava explicitar. Ao reconhecer
que, de diferentes maneiras, na experiência analítica o sentido se apresenta
sempre mais além, ao recusar-se a coagular no discurso explicativo a
verdade do sujeito da experiência. Freud é impelido a questionar
permanentemente o seu próprio discurso teórico.

Por isso mesmo é que destacamos em outro trabalho a transformação


sofrida pelo significado original do movimento psicanalítico. Nos seus
primórdios, a base para a construção do discurso teórico da psicanálise era a
prioridade conferida ao sentido do sujeito na experiência da loucura. Mas a
psicanálise pós-freudiana se norteia principalmente pelo congelamento
dessa verdade conquistada, através de sua codificação num discurso
explicativo. Assim, enquanto o discurso original estava permanentemente
aberto à retificação conceituai, considerando que o sentido do sujeito da
experiência resistia à teoria estabelecida e ao psicanalista, o discurso
posterior se transforma na coroação soberana da verdade e apresenta-se
como pouco sensível ao sentido do sujeito da experiência.”

Em função desta transformação fundamental nas condições dq possibilidade


do saber psicanalítico, a psicanálise pós-freudiana passa a ter uma postura
predominantemente corretiva, baseando-se num discurso explicativo sobre
a anomalia psíquica. Orientada por princípios voltados para a nornja-lização
social, sua prática se apresenta com marcantes características
pedagógicas.19

Pode-se continuar falando em complexo de Édipo, sexualidade infantil,


perversão polimorfa infantil e mesmo em inconsciente, mas estes conceitos
adquirem frequentemente sentidos muito diferentes daqueles que possuíam
nos seus primórdios. No novo contexto eles são marcados principalmente
por uma conotação definida no quadro de uma psicologia genético-
evolutiva. Quando de sua permanência tardia na história do sujeito, seriam
indicadores de uma maturidade falha. Assim, deixam de ser radicalmente
interpretados como elementos fundamentais na constituição da
subjetividade.20

Porém, a ruptura teórica introduzida pelo discurso freudiano na tradição


psiquiátrica sobre a loucura representou exatamente essa reviravolta
fundamental. Ela inverteu totalmente a ordem de prioridades estabelecida
pelo discurso psiquiátrico, patrocinando um retomo à principalidade do
sentido do sujeito na experiência da loucura e um afastamento da verdade
codificada primordialmente como explicação. O pressuposto fundamental
do discurso explicativo da psicanálise freudiana é o sentido, eixo de
articulação ao qual estão submetidas as construções teóricas que
consideram o sujeito da experiência como referencial originário da verdade
psíquica. Por isso mesmo, o discurso teórico da psicanálise pode apresentar
diversas rupturas ao longo do percurso freudiano, pois o seu critério
fundamental de verdade é a adequação/ inadequação ao sentido da
experiência do sujeito, que a psicanálise pretende restaurar plenamente,
colocando-se como seu porta-voz.

A restituição do sentido na experiência da loucura implica o


restabelecimento do sujeito como seu suporte, como portador de um saber
sobre si mesmo e como revelador de uma verdade, com todas as
consequências que isso tem para a ordem teórica. O louco é re-situado no
centro de sua experiência, sendo portador de uma verdade singular. Esta só
pode ser apreendida pela figura do psicanalista quando este se situa, no
espaço analítico, na posição de escuta. Não pode ser constituída e instituída
originariamente por este. Por isso mesmo, o discurso psicanalítica é um
discurso interpretativo e não explicativo. O sentido está situado de modo
imanente no sujeito da experiência da loucura, e o que o analista realiza
com o analisando é a operação de deciframento de um enigma.

Na ruptura teórica realizada pela psicanálise existe efetivamente uma


revolução copemicana, para usarmos a linguagem kantiana, na medida em
que o centro das questões da experiência da loucura se desloca do discurso
psiquiátrico para a própria loucura. A verdade passa a girar em torno do
sujeito da experiência da loucura e não brota mais no interior do saber
psiquiátrico. A figura do louco retoma o centro do sistema, afastando dessa
posição a figura do psiquiatra. Retomando o lugar de oráculo da verdade da
loucura, o louco rompe com o quadro invertido do discurso psiquiátrico.

Em torno desta reviravolta teórica, deste deslocamento do discurso da


loucura para o primeiro plano do cenário analítico, o discurso explicativo da
psicanálise se constitui e se desenvolve, apresentando uma espessura episte-
mológica de outra ordem em relação à explicação psiquiátrica. As
categorias que circunscrevem o campo da explicação psicanalítica têm
como fundamento o sentido da experiência da loucura nas suas diversas
configurações possíveis e se ordenam em função dos discursos desta. Sem
considerá-los e reconhecê-los devidamente, o discurso da psicanálise não
seria absolutamente diferente do psiquiátrico.

Podemos destacar como o discurso psicanalítico também pode se inverter,


silenciar a marca de sua originalidade epistemológica e retornar às regras
que norteiam o discurso psiquiátrico, com todas as conseqüências teórico-
clínicas que daí decorrem. Neste caso, os conceitos de verdade e de saber se
recolocam como fundamentos, trazendo de volta seus loci e agentes
próprios. Com efeito, se o discurso explicativo da psicanálise se toma
autônomo em relação ao processo analítico originário, ele passa a funcionar
de modo epistemicamente idêntico ao discurso psiquiátrico, transformando-
se, assim, num discurso que se arroga soberanamente o direito de possuir a
verdade do analisando, passando então a normalizar a psique deste último
nos menores detalhes e funcionando como discurso pedagógico.
Certamente, não é um acaso que a incidência problemática deste modelo
sobre a estrutura do superego se transforme na grande questão das análises
“didáticas”, questão que há cerca de trinta anos perturba os psicanalistas
mais lúcidos do mundo inteiro.21

Esta reversão epistemológica da psicanálise no discurso psiquiátrico é uma


possibilidade sempre aberta no curso de um processo analítico, até mesmo
porque a resistência à experiência da análise é uma escansão básica que
marca as vicissitudes deste processo, caracterizado pela incessante
oscilação entre momentos de analisibilidade e de resistência, que dizem
respeito às duas figuras comprometidas nessa relação intersubjetiva. Nem o
eixo que sustenta a resistência analítica, nem o eixo que é o suporte do
desejo de análise se concentram inteiramente numa das figuras do espaço
analítico, mas se distribuem entre as duas figuras. O sentido e a verdade se
encontram permanentemente nos dois pólos da relação e entre as duas
figuras, não sendo, portanto, privilégio de qualquer um dos agentes em
causa.

Destaquemos esquematicamente os eixos centrais dessa problemática no


campo da experiência analítica, circunscrevendo nossa abordagem à figura
cíb analista, principalmente ao funcionamento de sua economia psíquica, de
forma a delinearmos o quadro em que a teoria psicanalítica centrada no
sentido se transforma na teoria explicativa da psiquiatria.

Trata-se de uma transformação relativamente fácil de acontecer. No nível


interno de funcionamento do processo psicanalítico, podemos sublinhar a
possibilidade desta reversão epistemológica, o que nos abre mais um
caminho, entre os que já assinalamos, para interpretar os desvios da
psicanálise pós-freudiana face às condições de possibilidade da existência
da experiência analítica propriamente dita.

Para que esta reversão possa se estabelecer, basta o analista “esquecer” que
entre sua figura e o discurso teórico da psicanálise existe necessariamente a
sua própria experiência analítica originária, com todo o simbolismo que esta
condensa, apontando para a sua mortalidade e a singularidade de suas
marcas pulsionais. A partir deste “esquecimento” o psicanalista passa a
pautar sua escuta pelo discurso teórico que “aprendeu”, e não pelas fendas
abertas no seu ego pela experiência analítica originária. Com isso, a
singularidade significativa de um destino subjetivo que se apresenta diante
de si é silenciada.

Neste contexto, a figura do analista coloca seu corpo libidinal fora do


processo psicanalítico e passa a “explicar” a figura do analisando a partir de
um suposto código universal de verdades sobre a subjetividade. O silen-
ciamento da singularidade da figura do analisando é o correlato e a
contrapartida necessária do silenciamento da especificidade da figura do
analista. Com isso, no interior do processo analítico se infiltra um cenário
pedagógico, cuja trama alcança todos os eixos fundamentais da análise,
produzindo inevitavelmente uma prática de normalização da psique.
A condição de possibilidade da existência do processo analítico é a
experiência psicanalítica originária do analista. Ela tem que estar presente
na figura do analista como uma pulsação permanente, não apenas para que
se torne possível perceber a experiência da singularidade do analisando,
mas também porque é através dela que se estabelece a mediação entre a
figura do analista e o discurso explicativo da psicanálise, única forma de
não transformar a teoria psicanalítica num oráculo de verdades universais
sobre o prazer, a sexualidade, a dor e a morte. Nesta eventualidade, estamos
lançados inteiramente num discurso pedagógico normalizador.22

A exigência epistemológica de manter em aberto a categoria do sentido, da


verdade emergente da experiência do sujeito na análise, implica
necessariamente que esta abertura esteja também presente em relação ao
analista. Sem ela, este aliena sua singularidade no discurso explicativo da
psicanálise, que se transforma inevitavelmente num discurso de tipo
psiquiátrico sobre a normalidade e a anormalidade psíquicas.

Com isso, evidentemente, o suporte da experiência transferenciai se coloca


no primeiro plano do cenário psicanalítico, nos dois eixos possíveis de
desdobramento deste, isto é, o que promove o processo analítico e o que a
este faz obstáculo, como resistência ao movimento de revelação do sentido
da experiência do sujeito. Entretanto, a resistência, como contraponto
necessário e inevitável do processo de análise, pode se materializar tanto na
figura do analista quanto na do analisando, não existindo, também aqui,
privilégios neste obstáculo à emergência do sentido.

A representação da cura psicanalítica como um processo que se realiza


entre alguém que apenas transfere e outro que apenas interpreta, entre uma
figura que está sempre aberta à emergência da verdade e outra que apenas
resiste, entre uma figura que detém a verdade e outra que é despossuída de
qualquer saber verídico sobre si mesma, não é senão a ficção constituída
por uma psicanálise fundada sobre as ordens explicativa e pedagógica, isto
é, uma psicanálise que perdeu seus liames com os obstáculos que
necessariamente se colocam à articulação do sentido e que se estabelece
literalmente como uma teoria explicativa que se pretende definitiva.
Quando a figura do analista se desloca da experiência analítica originária
para o discurso explicativo, ela mesma se encontra num evidente
movimento de resistência ao processo psicanalítico. Esse deslocamento e
essa oscilação são uma escansão fundamental que marcam a espessura
secreta desse processo, movimentando a figura do analista,
interminavelmente, entre a singularidade de sua experiência analítica e a
universalidade da teoria psicanalítica. Ou seja, quando o analista estanca o
seu movimento e estaciona no lugar da teoria analítica, ele mesmo se toma
obstáculo ao processo psicanalítico do analisando.

Pode-se, é verdade, afirmar justo o contrário: o estancamento da figura do


analista no pólo da singularidade de sua experiência originária também
funciona como obstáculo ao processo psicanalítico. Esta formulação é
absolutamente correta. Destacamos aqui o obstáculo anterior porque
queremos assinalar de forma rigorosa a transformação epistemológica
promovida pelo discurso psicanalítico.

No contexto deste segundo obstáculo epistemológico, entretanto, a figura


do analista permanece capturada pelo fascínio da transferência originária e
perde a capacidade de se sensibilizar por outras configurações
transferenciais. Nessas condições o analista também não pode apreender o
sentido singular do novo processo analítico que tem diante de si. Portanto,
nessa outra vertente em que se ordena o obstáculo ao processo psicanalítico,
a figura do analista ficA capturada na sua singularidade. Não podendo
aceder assim à universalidade de outras possibilidades existenciais, não
pode abrir-se para apreender a singularidade da figura do analisando.

Através desses dois paradoxos que indicam os obstáculos epistemológicos à


experiência psicanalítica, podemos sublinhar como o funcionamento da
economia psíquica da figura do analista é uma dimensão absolutamente
fundamental na sinalização das condições epistêmicas básicas para o
funcionamento do saber psicanalítico, sem o que este saber retorna a um
modelo explicativo da mesma ordem que o discurso psiquiátrico. Enfim, a
interpretação destes dois paradoxos também nos indica que a psicanálise é
um processo que se realiza dialeticamente entre a singularidade e a
universalidade, não podendo ficar estancada em nenhum destes termos,
condição fundamental para garantir a diversidade dos sentidos e das
verdades, presente, aliás, nos sujeitos da experiência da loucura.

Para apreender a especificidade da configuração pulsional de cada


analisando, a figura do analista precisa contrapor dialeticamente a
singularidade de sua própria subjetividade à universalidade simbólica das
experiências possíveis. Assim, o funcionamento da economia psíquica do
analista tem enorme destaque no processo analítico, o que implica
necessariamente um questionamento à figura do alienista, centro absoluto
do código de verdade sobre a normalidade e a anormalidade mentais. A
verdade não tem mais lugar fixo. E essencialmente circulante,
movimentando-se interminavelmente entre as figuras do analista e do
analisando, colocados na posição de interrogadores de enigmas que
assumem múltiplas formas e se apresentam em arranjos fantas-máticos.
Para serem resolvidos, resta às duas figuras, submetidas que estão a este
movimento infinito, a possibilidade do deciframento.
A constituição do espaço intersubjetivo
A passagem crucial do momento originário da cura catártica para o
momento mítico da emergência da psicanálise sensu stricto implicou uma
assunção radical, pelo sujeito Freud, de sua própria loucura. Freud
transformou radicalmente a psiquiatria em psicanálise na medida em que se
colocou no lugar do paciente, e não apenas no do terapeuta, identificando-se
com a figura do doente.23 Essa passagem mítica para o saber psicanalítico
só pôde realizar-se quando o homem Freud se representou a si mesmo, na
sua mortalidade, como marcado pelo não-sentido em algumas de suas
experiências fundamentais e pôde admitir a existência do sentido que se
apresentaria sob a forma da ausência, partindo então para a sua restauração
e decifrando as variadas configurações desta ausência através dos índices
fragmentários que estavam à sua disposição.

A auto-análise de Freud ocupa um lugar mítico nessa travessia simbólica


que teria originado a psicanálise. Posteriormente, seus discípulos vão saudá-
la como um mito de origem, circunscrevendo-a minuciosamente com o
olhar de veneração pela aventura inédita, pois Freud teria penetrado pela
primeira vez num continente humano até então desconhecido.24 Mesmo
fora de qualquer registro do “mito do herói”, a auto-análise de Freud ocupa
um lugar epistemológico de primeira ordem, sem o qual seria impensável a
constituição do saber psicanalítico.25 Com ela se construiu a experiência
analítica originária, marcada em suas coordenadas básicas pelos eixos da
transferência e da resistência.

A auto-análise de Freud, ou a análise originária de Freud realizada através


do diálogo com Fliess como pretendem alguns autores,26 representa
simbolicamente o início da revolução no campo dos saberes sobre a psique,
não apenas porque sublinha enfaticamente o lugar da subjetividade do
médico na sua prática terapêutica, pois o retira de uma posição soberana,
como também porque descentra a figura do médico do lugar absoluto da
verdade e do saber, distribuindo agora estas potencialidades entre as figuras
do analista e do analisando.
Esta revolução copernicana implica uma reviravolta fundamental dos
lugares e das posições no espaço terapêutico, relativizando a gigantesca
importância atribuída anteriormente à figura do psiquiatra. Quando o
processo da cura se identifica com a possibilidade de que o próprio
analisando reconheça a verdade singular de sua história, o espaço
terapêutico se transforma em espaço psicanalítico e fica subvertida a
concepção de terapêutica estabelecida segundo os cânones do modelo
médico-psiquiátrico. Freud ultrapassou as fronteiras instituídas, transgrediu
a organização do espaço terapêutico e abriu a possibilidade de constituição
de um espaço intersubjetivo dotado de novo limiar simbólico.

Breuer não conseguiu o mesmo. Enredado em uma miragem de onipotência


desenhada por sua paciente, ficou prisioneiro do lugar de super-homem
fascinante que apaixonara Anna O. e que a engravidara.27- 28 Capturado
nessa posição de êxtase, abandonou aterrorizadamente o caso e se afastou
definitivamente desse campo de investigação que ameaçava romper o
éSpaço terapêutico. Para ele, foi impossível desvanecer essa miragem de
transcendental grandiloqiiência, desmascarar a tragédia da traumaturgia
terapêutica e revelar a tragicomédia de uma paixão que não podia ser
enunciada. Com isso, ele revelou a sua impossibilidade de se situar, na
relação terapêutica, em outra posição que não fosse a de fonte soberana da
verdade e da totalidade do' sentido, com todo o revestimento estético e
erótico inerente a tal posição.

Quando tal posição foi questionada por Anna O., que através de sua
inquietação transferenciai procurava se deslocar desesperadamente do lugar
da não-verdade, Breuer abandonou em debandada o cenário passional.

Ao se deslocar dessa posição, Freud rompe com as coordenadas que


sustentam esse cenário encantado. Considera a fascinação com que o
paciente procura revestir o seu corpo como sendo da ordem de uma
miragem. Reconhece plenamente a veracidade da paixão, mas reafirma que
não é para a sua figura que ela está endereçada. Ele ocupa o lugar de um
outro, do amante que não pode ser amado, funcionando, portanto, como
substituto para uma ausência.

Com isso, Freud formula enfaticamente que o paciente detém uma verdade
e um saber sobre si mesmo, que se revela através dessa posição de êxtase
amoroso. Esta “falsa associação”2’ revelada pela experiência transferenciai
supõe a existência de uma verdadeira associação. Isto é, existe uma verdade
do sujeito na experiência da loucura e é precisamente ela que deve ser
decifrada no processo analítico, condição sine qua non para a existência de
um saber sobre a loucura.

Por isso, a condição de possibilidade dessa novidade histórica denominada


psicanálise é o encontro de duas figuras plenas de sentido (mesmo
considerando as suas lacunas), defrontando-se pelo fascínio e pela repulsão.
Sem este encontro não podemos falar legitimamente de intersubjetividade.
Nesta articulação singular de sujeitos que são suportes de sentido,
analisando e analista condensam uma trama da mesma ordem, de forma que
na relação de ambos a figura do analista permite ao analisando aceder à
singularidade de sua verdade, e a figura do analisando possibilita ao analista
a revelação de certas particularidades de sua história. Assim, o analista vai
relativizando cada vez mais a singularidade de sua experiência originária e
possibilitando o reconhecimento de outras particularidades pulsionais. A
teoria psicanalítica, representante da universalidade possível das
experiências dos sujeitos, vai sendo remodelada através dos impasses e dos
progressos deste interjogo de subjetividades.

Marcando as oscilações desse processo intersubjetivo com um ritmo e uma


melodia particulares em cada contexto, a interpretação é uma forma de
saber que se constitui entre as duas figuras envolvidas, permitindo que
ambas se situem face aos mesmos enigmas e procurem aceder às suas
singularidades. É outra forma de dizer que no processo psicanalítico todos
são, ao mesmo tempo, sujeitos e assujeitados. Destrona-se a miragem que
afirma a existência de um centro absoluto de verdade que emana de uma
figura soberana e se devolve ao interpretante, sustentado na espessura da
experiência transferenciai, o lugar soberano na disposição dos lugares e das
verdades. •

Nesta perspectiva, sublinhemos como Freud precisava dos insighls de seus


analisandos no momento mítico da constituição da psicanálise, não apenas
para possibilitar a continuidade de seu próprio processo analítico, mas
também como garantia epistemológica de universalidade na constituição do
discurso teórico da psicanálise, de modo que este discurso não privilegiasse
uma experiência singular. Com isto, a revolução do espaço terapêutico e a
redis-tribuição neste dos lugares das personagens implicadas, que
indicamos anteriormente, já se encontram em pleno movimento,
constituindo-se um espaço intersubjetivo para a revelação dos sujeitos.

O questionamento da possibilidade efetiva de uma auto-análise constitui um


fragmento fundamental do discurso freudiano, pois nele se explicita a
necessidade, para que exista análise, da presença de um outro, representado
como sujeito e como discurso. Assim, o progresso na análise de Freud fica
na estreita dependência do processo analítico de seus pacientes:

“Minha auto-análise permanece sempre planejada. Eu compreendí agora a


razão disto. É porque eu não posso me auto-analisar senão me servindo de
conhecimentos objetivamente adquiridos (por um estranho). Uma
verdadeira auto-análise é realmente impossível, sem o que não haveria mais
enfermidade. Como os meus casos me colocam ainda outros problemas, eu
me vejo forçado a parar minha própria análise." M

Neste contexto, o discurso é representado como o “conhecimento


objetivamente adquirido”. Porém, este “objetivamente” se refere à
experiência analítica com outros sujeitos, que seria o contraponto
necessário para a construção do discurso teórico. Além disso, o
“conhecimento objetivamente adquirido” representa a presença do outro por
um caminho diverso, como se através deste discurso Freud pudesse se
contrapor a uma outra subjetividade, estando a auto-análise mediada,
portanto, “por um estranho”. Enfim, o processo analítico de Freud caminha
junto com o de seus analisandos, sendo necessárias não apenas a presença
destes como também a elaboração psíquica dos pacientes para que sua
análise possa seguir caminho.

Num outro fragmento de sua correspondência com Fliess, datada agora de


1899, Freud explicita ainda mais esta intersubjetividade radical, na sua
mediação com o discurso teórico. Na sua singularidade, o processo de
elaboração psíquica do analisando não apenas consolida a construção
teórica, còmo também permite a Freud a interpretação de alguns de seus
sintomas.
“Você conhece (colocado entre os sonhos absurdos) o sonho em que me ,,
prometo obstinadamente o fim do tratamento de E..., e você sabe também a
importância que tem para mim este doente perseverante. Parece agora que o
sonho deve se realizar. ‘Parece’, digo eu prudentemente, mas estou
firmemente convencido disso. Nós descobrimos uma cena que remonta à
época primitiva (anterior aos seus 22 meses) que, profundamente sepultada
sob todos os fantasmas, satisfaz a todas as nossas exigências e na qual
deságuam todos os enigmas ainda não resolvidos; uma cena
simultaneamente sexual, anódina, natural etc... Com dificuldade, eu ouso
verdadeiramente acreditar nisso. Tudo sê passa como se Schliemann tivesse
novamente trazido à luz do dia esta cidade de Tróia, que se acreditava
imaginária. Aliás, este paciente está descaradamente bem. Por um rodeio
surpreendente Ide sua análise], ele conseguiu demonstrar a mim mesmo a
realidade de minha doutrina, e isto me forneceu a explicação (que me tinha
escapado até este dia) sobre minha fobia de trens...” 51

Assim, a auto-análise de Freud corresponde a um momento fundamental,


em que a ruptura epistemológica se estabelece e a psicanálise se constitui,
afastando-se do modelo psiquiátrico. O espaço terapêutico é
redimensionado e, como resultante, se constrói o espaço analítico. Neste, o
lugar do terapeuta é relativizado e a verdade perde qualquer fixidez,
estabelecendo-se como essencialmente circulante, movimentando-se entre
as duas figuras da relação intersubjetiva. Portanto, a auto-análise de Freud é
o momento crucial, no qual se ultrapassa um limiar simbólico e a categoria
de sentido se constitui como o eixo fundamental que sustenta o discurso
explicativo em psicanálise. Enfim, pelo destaque conferido à categoria de
sentido o que se torna pregnante é a relação intersubjetiva, sublinhando a
especificidade de um processo que se realiza entre as duas figuras
envolvidas. Nenhuma delas é alienada de seu lugar de sujeito, nem
inteiramente assujeitada a um código universal de verdades.

Considerando a experiência psicanalítica originária, um discurso


explicativo se constitui e se transforma conforme as interrogações
colocadas pela relação intersubjetiva. As transformações teóricas que se
realizam ao longo do percurso de Freud, com as novas configurações e
reordenações do seu pensamento, podem ser consideradas como um
exemplo instigante dessa particular condição epistemológica do saber
psicanalítico.

Em função dessa problemática fundamental, que sustenta a epistemologia


da psicanálise, Freud pôde postular que, se — e somente se — o analista
adota uma postura não preconcebida, o processo analítico pode fornecer
ensinamentos para o desenvolvimento da teoria. Assim, quanto menos
identificado estiver o analista com o saber constituído em teoria explicativa,
tanto mais aberto ele estará à escuta do sentido singular que se articula na
relação intersubjetiva. O discurso teórico pode se desenvolver em novas
direções, e mesmo se retificar, através das novas articulações possibilitadas
por esse processo singular. Para isso, entretanto, é necessário que o
funcionamento da economia psíquica do analista esteja permanentemente
aberto à experiência da surpresa.

Vejamos como Freud destaca a relevância desta questão, ao terminar os


comentários introdutórios de “O homem dos lobos”, recordando a célebre
passagem do Hamlet de Shakespeare:

“No conjunto seus resultados coincidiram de maneira satisfatória com nosso


conhecimento anterior, ou foram facilmente incorporados nele. Contudo,
muitos detalhes me pareceram tão extraordinários e incríveis que eu hesito
em pedir aos outros para acreditar neles. Eu solicitei que o paciente fizesse
uma crítica severa de suas lembranças, mas ele não encontrou nada
improvável nas suas afirmações e ficou fiel a elas. Que o leitor fique
assegurado, em todo o caso, que eu estou apenas relatando o que se
apresentou a mim como uma experiência independente, e não influenciada
por minha expectativa. Assim, só me restava recordar as sábias palavras
que diziam que há mais coisas entre o Céu e a Terra que o que pode sonhar
nossa filosofia. Aquele que consegue eliminar mais radicalmente ainda as
suas convicções preexistentes pode descobrir indubitavelmente mais coisas
ainda." 31

Enquanto sistema explicativo, a teoria psicanalítica é colocada radicalmente


em questão na análise de qualquer caso clínico, em qualquer processo
analítico. Por isso mesmo, o relato de “O homem dos lobos” é o contexto
ideal para que Freud possa responder, de modo fundamentado, às críticas
levantadas por Adler33 e Jung34 a certas formulações da teoria, pois é a
singularidade de um processo analítico que fornece os melhores argumentos
contra o que a “vã filosofia” resiste em acreditar.33 Apenas o processo
exaustivo de análise de um caso clínico permite destacar rigorosamente não
apenas as implicações do conceito de neurose infantil, como também as
superficialidades teóricas e os efeitos normativos36 das teorias de Adler e
Jung. Enfim, a análise do “homem dos lobos”, assim como a discussão que
Freud promove neste texto sobre a teoria psicanalítica como um todo, é uma
demonstração concreta de que a análise exaustiva de cada caso particular
coloca em questão o saber analítico.37,3’ Isso é uma outra forma de conferir
à categoria de sentido a sua principalidade epistemológica na construção da
teoria em psicanálise.

Este destaque conferido ao sentido na experiência da loucura é a forma de


admitir, como dissemos, a existência da verdade na loucura. Nesta
experiência, existiría uma sabedoria que o processo analítico precisa
restaurar, articulando-a pela palavra, o que não teria sido possível até aquele
momento da história do analisando.

Por isso, desde os “Estudos sobre a histeria” Freud pôde asseverar de forma
reiterada — não apenas teoricamente mas também clinicamente, através da
análise detalhada de casos — uma formulação que repetirá de diferentes
maneiras ao longo de sua obra: o analisando sempre soube a razão do seu
enlou-quecimento. Não há propriamente novidade para ele no que se diz ao
longo da análise. Freud registra insistentemente que, no final de suas
análises, os pacientes afirmavam que sabiam desde sempre o que fora
formulado, mas que até então não podiam reconhecer, nem falar, o que
sabiam.3*

A verdade na realidade psíquica


Esta principalidade epistemológica da categoria do sentido face à categoria
da explicação no pensamento freudiano confere à figura do louco não
apenas uma particularidade fundamental. Também possibilita uma
circularidade essencial entre o discurso psicanalítico e o discurso da
loucura.
Nesta perspectiva, retoma-se uma antiga representação do louco, figurado
como aquele que tinha um acesso trágico à verdade e sabia formulá-la,
como aparece nas tragédias de Shakespeare e em outras produções do
imaginário da Renascença. Essa representação continuava presente no
período histórico anterior à Idade Clássica,40 momento que antecedeu à
exclusão originária do louco41 e à institucionalização psiquiátrica.

Schreber é representado como o louco que conhece mais a verdade da


loucura que os sábios oficiais, isto é, os psiquiatras. Sua autobiografia42 é
de uma tal sutileza na apreensão dos seus processos internos, que ele
consegue falar sobre a loucura com uma veracidade que lhe garante uma
autoridade superior à de qualquer psiquiatra.

A partir de 1910, para analisar situações que se colocavam na teoria, na


prática e no movimento psicanalítico, as cartas de Freud e de Jung
frequentemente utilizam termos formulados nas Memórias de Schreber.43
Numa imagem jocosa, este era apontado como merecedor de um lugar
especial em qualquer biblioteca psiquiátrica por ter cunhado a expressão
“pequeno Flechsig”.44 Mais do que isto, Schreber é um revelador da
verdade sobre a loucura, dotada de uma autoridade superior a qualquer
psiquiatria instituída. Por sua sabedoria, deveria ocupar uma cátedra
universitária e ser diretor de um asilo de alienados.45

Esta formulação incisiva de Freud, destacando a sabedoria do discurso


delirante e a ignorância do discurso psiquiátrico, não fica restrita ao segredo
de sua correspondência com Jung. É literalmente postulada em seu ensaio
sobre Schreber:

“Finalmente, os psiquiatras poderíam ter aulas com este paciente pois,


apesar de seu delírio, ele se esforça para não confundir ò mundo do
inconsciente com o mundo da realidade. ” 44

Para Freud, evidentemente, os psiquiatras são diferentes dos psicanalistas.


Estes, conseguindo ter acesso ao universo da loucura, podem dialogar com
Schreber, escutar seu discurso oracular e apreender totalmente a verdade
por ele pronunciada. Assim, Freud trata o delírio como uma “tentativa de
cura” que cabe ser escutada na sua plenitude reveladora,47,4*
contrariamente ao que postulava o discurso psiquiátrico, que nele percebia
apenas virtudes negativas. Por isso mesmo, é preciso que a psicanálise
adquira hegemonia sobre o campo da loucura, destituindo o discurso
médico-psiquiátrico do lugar que ocupa, já que o discurso psicanalítico fala
a “língua fundamental”4’ da loucura e tem, por causa disso, a possibilidade
de escutá-la plenamente.

Sublinhando esta veracidade oracular do delírio de Schreber, que consegue


captar minuciosamente os movimentos da loucura, Freud formula a
concordância e a identidade entre a teoria analítica da psicose e o discurso
de Schreber, sabendo que com isso vai desagradar os psiquiatras:

“Não temendo a minha própria crítica mais que a dos outros, eu não tenho
qualquer razão em silenciar uma semelhança que fará dano, possivelmente,
à nossa teoria da libido na avaliação de muitos leitores. Os ‘raios de Deus*
de Schreber, que se constituem da condensação de raios de Sol, de fibras
nervosas e de espermatozóides, não são senão a representação concreta e
projetada no exterior de investimentos libidinais; e elas emprestam ao seu
delírio uma surpreendente concordância com nossa teoria..." 50

Nesta perspectiva, se estabelece uma circularidade essencial entre os


postulados fundamentais do discurso psicanalítico e as verdades construídas
pelo discurso da psicose. O sentido articulado na experiência da loucura
demonstra plenamente a veracidade da teoria da libido. O discurso
explicativo da psiquiatria, fundando-se na pretensão epistemológica de
conferir à loucura uma negatividade essencial, não pode apreender os
alicerces fundamentais da experiência da loucura, que se enunciam através
da “língua fundamental”. Consequentemente, não pode escutar a verdade
desta experiência.

Assim, o que está em questão na experiência da loucura é sempre a


realidade psíquica e nunca a material. O discurso delirante de Schreber não
superpõe estes registros, pois, como Freud destaca enfaticamente, “ele se
esforça para não confundir o mundo do inconsciente com o mundo da
realidade”. Por isso mesmo, Schreber podería legitimamente ensinar aos
psiquiatras essas distinções básicas, que poderíam abrir para eles acesso à
“língua fundamental” da loucura. O discurso explicativo-normativo da
psiquiatria, ao pretender avaliar as formulações da realidade psíquica com
os princípios da realidade material, não podería jamais ter acesso ao sentido
da experiência da loucura.

Fica assim estabelecida uma relação de exclusão recíproca entre a


psicanálise e a psiquiatria, sem existir entre elas qualquer possibilidade
intermbdiária que represente uma solução de compromisso. Pelo
compromisso fundamental que estabelece com o sentido da experiência da
loucura, a psicanálise representa uma ruptura com a psiquiatria e indica a
possibilidade de sua superação histórico-epistemológica.

O saber psicanalítico exclui o discurso psiquiátrico e vice-versa. No plano


epistemológico não existe qualquer possibilidade de articulação e de
compromisso entre ambos, pois os paradigmas que os sustentam são não
apenas inteiramente diversos mas também fundamentalmente
incompatíveis.51 Por isso mesmo, quando a psicanálise começa a
estabelecer relações de compromisso e de boa vizinhança institucional com
a psiquiatria, o seu paradigma epistemológico começa a se esboroar. A
lógica normativo-explicativa da ordem psiquiátrica começa a dominar os
postulados do discurso psicanalítico.

Exatamente pela relevância fundamental conferida à categoria de verdade


na loucura e à circularidade essencial entre a teoria psicanalítica e o
discurso da psicose, Freud pode terminar o ensaio sobre Schreber
contrapondo duas grandes oposições: loucura/verdade e
psiquiatria/psicanálise. Elas destacam eixos que podem delinear um mesmo
espaço de convergência ou se anular totalmente, constituindo um não-
espaço, pela exclusão radical que implicam. Nesta conclusão, numa
brilhante declaração de princípios sobre a relatividade da verdade, Freud
pôde deixar em aberto para o futuro, ironicamente, se a loucura era sua, por
acreditar na verdade do discurso schreberiano, ou se o delírio é portador de
uma verdade em que seus contemporâneos resistiam a acreditar. Enfim, foi
sua definitiva abdicação do lugar soberano ocupado pelo discurso
psiquiátrico.

“Fica para o futuro decidir se existe mais delírio na minha teoria que eu
pretendia, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que os outros
estão preparados para acreditar.” 52

A psicanálise e a demonologia
Movimentando-se nesse mesmo sistema de oposições, assinalando
rigorosamente o eixo fundamental que orienta a sua investigação da loucura
e marcando simbolicamente o retorno à tradição ocidental em que a loucura
era representada como proferindo a verdade, Freud lembra nostalgicamente
um período histórico em que o discurso da loucura podia falar a linguagem
dos “espíritos” e não ser silenciado pela redução às positividades
explicativas do discurso psiquiátrico.

Em seu ensaio sobre “Uma neurose demoníaca do século XVII”,53 Freud


formulou não apenas a relativa facilidade com que se pode interpretar o
sentido da experiência da loucura quando esta se enuncia numa linguagem
demo-nológica, como também como as noções básicas do discurso
psicanalítico se identificam com os termos usados na linguagem desta
experiência, encontrando-se, portanto, no mesmo espaço de possibilidades.

Destaquemos algumas articulações fundamentais deste texto instigante.


Freud retoma aqui uma tradição recente, inaugurada por Charcot, que
enfatizava uma leitura histórica das neuroses e, em particular, da histeria.
Neste campo de investigação, a inovação de Charcot foi começar a realizar
essa leitura da histeria, através da representação artística e do registro de
possessões coletivas,54 que tiveram o seu apogeu na Idade Média mas que
continuaram posteriormente e ainda eclodiam com grande riqueza
expressiva no momento em que Charcot ensinava.55 A psiquiatria da
primeira metade do século XIX já realizava esta abordagem histórica no
que dizia respeito à alienação mental, genericamente considerada,
estabelecendo as diferentes formas de estruturação em que se apresentava a
alienação mental ao longo da história do Ocidente.56

Freud supera a abordagem de Charcot, pois desloca o espaço em que a


interrogação histórica se coloca e, com isso, ultrapassa uma preocupação
meramente nosográfica. Com efeito, enquanto Charcot pesquisa o
fenômeno da possessão e da blasfêmia religiosa para constatar a existência
da histeria — preocupado basicamente com a variabilidade histórica na
composição do quadro clínico da doença —, Freud procura interpretar o
cenário demoníaco em que se situa o sujeito, como indicador privilegiado
de sua posição singular e do conflito psíquico em que este está
dramaticamente inserido. Os demônios que encantavam assustadoramente o
mundo da Idade Média são tratados como representantes das forças
poderosas que terrorificamente encantam a realidade psíquica. Freud realiza
este trabalho interpretativo sempre tentando apreender o sentido da
experiência da loucura.57

Na tentativa de captar esta ordenação do sentido em estado quase “puro”,


numa mise-en-scène fantasmagórica em que se multiplicam as imagens
cósmicas de “espíritos”, do demônio e do pacto de morte, Freud se debruça
sobre uma monografia fascinante que lhe caiu inesperadamente em mãos.3'
Articulada em linguagem demonológica, a experiência da loucura permitiría
apreender de modo quase direto o sentido da situação do sujeito, sem exigir
muito esforço de interpretação:

“Esta história demonológica de um caso conduz verdadeiramente para


achados valiosos, que podem ser trazidos à luz sem muita interpretação —
da mesma forma como um filão de metal puro pode ser descoberto, que
deve ser trabalhosamente refinado em outras circunstâncias para ser retirado
o ouro.” 39

O pressuposto freudiano é de que nesse momento histórico a loucura podia


falar de forma quase direta, sem os complexos revestimentos da censura,
que posteriormente foram sendo superpostos, e de forma a retirar a
transparência em que a verdade se articula. Assim, da mesma maneira como
a neurose infantil permite explicitar a ordenação em que se estrutura a
neurose do adulto, pela menor presença das camadas psíquicas de censura, a
neurose que fala de forma mais direta na linguagem dos “espíritos” nos
permitiría ter um acesso quase imediato ao sentido da neurose moderna, que
se encobre na linguagem da hipocondria:

“As neuroses da infância nos ensinaram que muitas coisas podem ser nelas
vistas facilmente, a olho nu, que mais tarde são descobertas somente após
uma investigação aprofundada. Nós podemos esperar que o mesmo se
confirmará como verdadeiro a respeito das doenças neuróticas dos séculos
passados, com a condição de estarmos preparados para reconhecer sob
outros nomes, diferentes dos das neuroses atuais. É necessário não ficar
surpreso em encontrar que, enquanto as neuroses do tempo moderno não
psicológico tomam um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas
como doença orgânica, as neuroses daqueles tempos passados
desenvolvem-se em ornamentos demonológicos..." 60

A medicalização do social não transforma radicalmente a linguagem de


enunciação da loucura, fazendo surgir uma ordenação hipocondríaca que
silencia o discurso demonológico? Evidentemente, na perspectiva colocada
pelos pressupostos metodológicos definidos acima, nossa resposta é
afirmativa. A marca do processo histórico de medicalização da loucura se
apresenta pela transformação simbólica desta numa figuração
hipocondríaca. *

Entretanto, quando procuramos circunscrever rigorosamente a leitura


freudiana, isto não vem ao caso. Freud enuncia a questão de forma bastante
semelhante. Mas na sua resposta ele a desloca para o plano das teorias que
interpretavam a possessão e o êxtase demoníacos, não se perguntando
absolutamente sobre os processos histórico-sociais que possibilitaram esta
transformação.

Assim, a “teoria demonológica” da loucura foi substituída pela “teoria


somática” da “ciência exata”. O discurso demonológico foi substituído pelo
discurso médico-biológico, que alienava num corpo patológico o sujeito da
experiência da loucura. O discurso freudiano pretendia restaurar o discurso
demonológico como verdade da subjetividade, conferindo — bem
entendido — uma interpretação renovada aos demônios. Articulados no
espaço da realidade psíquica, eles seriam considerados como representantes
de desejos repreensíveis para o sujeito, como ramificações de pulsões que
foram recalcadas e que aparecem projetadas no espaço exterior sob a forma
de entidades cósmicas:

“A teoria demonológica daqueles tempos de trevas venceu finalmente todas


as concepções somáticas do período da ciência ‘exata’. Os estados de
possessão correspondem às nossas neuroses, para a explicação dos quais
nós temos que recorrer uma vez mais aos poderes psíquicos. Para nós, os
demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de pulsões que foram
repudiadas e recalcadas. Nós eliminamos simplesmente a projeção destas
entidades no mundo externo, o que se realizou na Idade Média; em lugar
disso, as consideramos como tendo surgido na vida intema do paciente,
onde residem.” 61

Incisivos e rigorosos, os termos do discurso freudiano não deixam margem


a qualquer dúvida: o discurso demonológico sobre a loucura tinha razão
contra todas as interpretações somáticas provenientes da “ciência exata”,
isto é, elaboradas pelo modelo médico-psiquiátrico. A interpretação
freudiana pretende renovar esta tradição silenciada pela concepção médica
da loucura. Transformada em enfermidade mental, esta perdeu qualquer
relação com a verdade, e o sujeito, alienado do sentido de sua experiência,
se emudeceu num corpo patológico.

Visando a restaurar o sentido da experiência da loucura, o discurso


freudiano implica não apenas uma ruptura com o modelo médico-
psiquiátrico. Também retoma uma representação da loucura em que esta diz
algo e na qual os seus movimentos recebem uma interpretação modelada
numa linguagem cósmico-religiosa. Para isso, contudo, é preciso articular o
sentido do sujeito numa espacialidade psíquica particular, transcendendo-se
a identificação entre psique e consciência e o correlato necessário disso, ou
seja, a idéia de que os objetos da realidade material são o referencial
privilegiado do sujeito. O inconsciente é delineado, então, como o espaço
psíquico primordial. A ele podemos denominar realidade psíquica
propriamente dita.

Para realizar essas operações metodológicas e empreender a ruptura


epistemológica construída pela psicanálise, seria necessário reconhecer toda
a materialidade que os fantasmas possuem, caucionando a sua existência no
plano da realidade psíquica. Os fantasmas não existem, nem no registro da
realidade material, nem em qualquer teoria científica que pretenda se
construir tendo como referência os objetos dessa realidade. Mas, no registro
da realidade psíquica, eles são materialidades poderosas que perturbam a
existência humana, habitando as trevas da vida e assaltando na escuridão
dos sonhos de cada um.
Ao se defrontar com um pacto entre Christoph Haizmann e o diabo, Freud
enuncia uma operação metodológica capaz de revelar um cenário fan-
tasmático em que o sujeito se relaciona com a figura paterna. Assinala que,
para isso, é preciso dar a devida relevância à figura do diabo no imaginário.
E, de modo notável, acrescenta que acreditar na psicanálise e no diabo
acaba por significar a mesma coisa:

“Se nós estamos corretos em conceber o pacto de nosso pintor como um


fantasma neurótico, não há necessidade de qualquer justificativa posterior
para considerá-lo psicanaliticamente. Mesmo pequenas indicações têm
sentido e importância, especialmente quando estão relacionadas às
condições sob as quais se origina a neurose. Pode-se, seguramente,
superestimá-las ou subestimá-las, e é uma questão de julgamento saber até
onde pode-se ir na exploração delas. Mas se alguém não acredita na
psicanálise — ou mesmo no diabo — deve ser deixado a fazer o que puder
do caso do pintor, tanto que consiga fornecer uma explicação pelos seus
próprios meios, quanto que não veja nada que necessita ser explicado.” 62

A partir deste ponto de sua leitura do pacto que Christoph Haizmann fez
com o demônio, Freud reencontra uma série de formulações que haviam
sido articuladas quando da interpretação das Memórias de Schreber,
estabelecendo, assim, um vínculo fundamental entre os fantasmas e os
conflitos das duas subjetividades em pauta frente à figura paterna e à
angústia de castração. Com isso, os fundamentos do discurso moderno e do
discurso demonológico sobre a loucura se identificam, pois remetem a uma
verdade singular da história dò sujeito na experiência da loucura.
*

O retorno freudiano à tradição mito-poética


Ao promover uma ruptura epistemológica com o saber psiquiátrico e um
retorno simbólico a um tempo da história ocidental em que a loucura era
representada como portadora de verdade, Freud se encontra com a
linguagem poética e se identifica com as verdades ditas sobre a
subjetividade pelo discurso literário. Reiteradamente, em toda a sua obra
aparecem minuciosas referências aos grandes textos da tradição literária,
onde busca avidamente interpretações forjadas pelo imaginário dos poetas
para o sentido da experiência da loucura. Para Freud, estes textos
constituem uma fonte permanente de inspiração e de identificação. Procura
apreender neles não apenas os modelos de simbolização capazes de ordenar
a interpretação das singularidades no processo psicanalítico, como também
outras formas de confirmação para as suas construções metafóricas,
realizadas no plano clínico.

A presença de referenciais literários no pensamento freudiano, ocupando o


lugar privilegiado de conceitos fundamentais na teoria psicanalítica, é digna
de nota. Os conceitos de catarse, de romance neurótico e de complexo de
Edipo são exemplos marcantes. Da mesma forma, passagens importantes de
poemas, romances e peças de teatro funcionam na economia interna dos
textos freudianos como argumentos decisivos para a interpretação de certas
temáticas, referentes a contextos intra e intersubjetivos. Na constituição do
novo campo do saber, Goethe, Shakespeare, Sófocles, Nestroy e outros são
mais importantes para Freud que a grande maioria de seus antecessores,
estudiosos do pensamento neurológico e psiquiátrico.

Charcot, Breuer, Bernheim, Jackson, Fliess e Meynert são os autores dos


discursos neurológico e psiquiátrico que Freud destaca de diferentes formas
ao longo de sua obra, caracterizando-os como indicadores de problemáticas
para a constituição da psicanálise. Assim, é pequeno o número de autores e
parcas as suas presenças ao longo dos textos freudianos, principalmente se
comparados à multiplicidade de poetas frequentemente citados. Qual o
significado desta particularidade estilística? Que assimetria é esta entre as
tradições médico-psiquiátrica e literária no discurso freudiano?

Ela deve ter uma dimensão estrutural, remetendo ao sentido da obra e


revelando o significado fundamental deste campo de investigação. Ou seja,
esta particularidade estilística seria indicadora de uma particularidade
epistemológica do discurso psicanalítico, destacando que a relação deste
com a tradição literária não tem nada de acidental. Remete a uma
problemática de fundamentos, que colocaria novamente em questão a
principalidade epistê-mica conferida à categoria de sentido face à categoria
de explicação, estando, portanto, subsumida a construção da teoria
explicativa ao valor pregnante atribuído ao eixo epistemológico da
significação.

Nesta articulação decisiva do pensamento freudiano, reencontramos a


problemática epistemológica do conhecimento, tal como a delineamos
anteriormente. A temática da verdade centrada no eixo regulado pelas
oposições verdadeiro/falso e adequado/inadequado ao objeto da realidade
externa se toma secundária frente à temática da verdade considerada como
sentido, na qual o que importa é a oposição ser/não ser. Na experiência
subjetiva esta oposição adquire um valor absoluto, de maneira que a
realidade psíquica é 0 eixo epistemológico fundamental face à realidade
material.

Por isso mesmo, Freud dedica uma longa obra à leitura cuidadosa de Gra-
diva, de Jensen. Como Schreber na sua autobiografia, esse autor consegue
não apenas demonstrar certos postulados básicos da teoria psicanalítica,
como também realiza na sua narrativa romanesca uma reprodução perfeita
do que seja um processo psicanalítico.“ Como teria sido isso possível? Qual
a condição de possibilidade dessa inédita façanha? O que teria permitido a
Jensen realizar esta obra sem ter qualquer informação sobre a existência da
psicanálise?

‘ Eis a grande interrogação que, na leitura deste romance, inquieta e fascina


Freud. Tendo como única fonte de inspiração o imaginário, o poeta
consegue demonstrar aquilo que provoca resistências nos psiquiatras
contemporâneos de Freud, que no entanto conhecem os escritos deste,
plenos de referências teóricas, clínicas e técnicas ao trabalho psicanalítico.
Considerando esta disparidade, Freud realiza um irônico processo do saber
psiquiátrico e da psicologia explicativa, criticando-os exatamente pelo
silenciamento daquilo que é fundamental e que é desenhado pela narrativa
romanesca com bastante rigor, isto é, o sentido da história de uma
existência que se revela pelo discurso delirante da personagem central, o
arqueólogo Norbért Hanold.

Freud inicia sua argumentação contestando o próprio Jensen, que


subestimava o valor de verdade do seu romance, alegando que o relato era
apenas uma “fantasia”, desprovida portanto de qualquer pretensão a ser uma
“figuração verídica”.64 Trata-se de um pensamento que implicitamente
estabelece como opostos no seu valor de verdade o relato romanesco e o
discurso do saber psiquiátrico. Freud critica essa contraposição, afirmando
que Gradiva podería ser considerado um “estudo psiquiátrico” de primeira
ordem, pela absoluta veracidade de seus procedimentos na composição das
personagens e de suas interpretações da trama delineada.63 Porém, esta
veracidade da narrativa romanesca só se revela quando se considera a
leitura psicanalítica do sujeito na experiência da loucura, e não a
interpretação realizada pelo discurso psiquiátrico propriamente dito.

Vejamos como Freud desenha a linha de partilha entre as abordagens


realizadas pelo discurso poético e pelo discurso psiquiátrico e como destaca
que o discurso psicanalítico se identifica com os pressupostos que orientam
Jensen na leitura do delírio de Norbert Hanold. Após tentar caracterizar
psiquiatri-camente a possível classificação nosográfica dessa formação
delirante, oscilando entre a paranóia e o fetichismo — pelo interesse
excessivo de Norbert Hanold nas posturas dos pés de Zoé —, Freud não
apenas ironiza o valor disso tudo para a revelação do sentido da experiência
delirante, como também circunscreve o lugar preciso onde se encontram o
romancista e o psicanalista e onde se realiza a ruptura destes com o
psiquiatra:

“Entretanto, todos estes sistemas de nomenclatura e classificação das


diferentes formas de delírio, de acordo com o seu conteúdo, têm algo de
precário e de infecundo.

Além disso, desde que nosso herói era uma pessoa capaz de desenvolver um
delírio na base de uma tal estranha preferência, um psiquiatra rigoroso o
caracterizaria logo como um dégénéré e investigaria a hereditariedade que
inexoravelmente o precipitou neste destino. Mas aqui o autor não
acompanha o psiquiatra e por uma boa razão. Ele deseja trazer o herói para
próximo de nós e tornar mais fácil a ‘empatia’. O diagnóstico de dégénéré,
seja ele correto ou errado, antes de mais nada afasta o jovem arqueólogo
para longe de nós, pois nós, leitores, somos pessoas normais e mesmo o
padrão da humanidade. Nem está o autor muito inquieto com as
precondições hereditária e constitucional do estado, mas por outro lado ele
mergulha fundo na disposição psíquica pessoal, a qual pode fazer nascer um
delírio deste tipo.” 66

Assim, são caracterizadas duas posturas diametralmente opostas.


Estabelecendo o delírio como uma perturbação da razão, no qual a
“realidade” é apreendida de modo “falso”, a psiquiatria realiza uma segunda
operação pela qual esta concepção “irreal” do mundo é atribuída a uma
disfunção ou a uma lesão corporal. A loucura é definitivamente fixada
como produto inexorável de um corpo patológico, marcado pela
degeneração. Veremos posteriormente a relevância deste conceito no
percurso epistemológico de Freud para a constituição da psicanálise.

Esta “realidade”, considerada “falsa” na interpretação psiquiátrica da


experiência delirante, se refere ao mundo material e não ao psíquico.
Entretanto, na leitura poética é secundária a referência à verdade pela
consideração da realidade material, pois caberia captar fundamentalmente a
experiência do delírio como reveladora do sentido da história concreta do
sujeito.

Nestas duas posturas, que se contrapõem em todos os pontos, aparecem


efetivamente duas concepções de verdade. Elas se chocam, e não há
qualquer possibilidade de que uma possa ser reduzida à outra. Para o
discurso freudiano, identificado' com a leitura poética, só é possível
apreender o sentido da experiência da loucura transcendendo a concepção
de verdade centrada na oposição verdadeiro/falso. Por isso, a crítica do
critério de verdade do saber psiquiátrico se duplica ao longo do texto, como
no ensaio sobre Schreber, com ironias sobre a surdez psiquiátrica diante da
verdade do sujeito na loucura.67>6*

Entretanto, é fantástico como Freud sublinha rigorosamente que a


caracterização psiquiátrica da realidade material é essencialmente marcada
pelo eixo sustentado pela oposição normal/anormal. Ao categorizar
normativamente o delírio pelo critério do verdadeiro/falso, a psiquiatria
impede a identificação do psiquiatra com as posições ocupadas pelo sujeito
na experiência delirante. Representante da realidade da norma, o psiquiatra
é essencialmente o não-louco; agente do universo da normalidade, ele
ocupa o lugar de legislador do universo da anormalidade, aplicando
penalidades aos anormais. A mais importante delas é a afirmação de que
estes não são sujeitos de sua experiência, pois daí resultam todas as demais
penalidades, caracterizadas pela exclusão social do louco. Portanto, a norma
se transforma no critério supremo que define a verdade e delineia as
fronteiras entre verdade e não-verdade.

No seu romance, Jensen consegue realizar com mestria a interpretação de


uma formação delirante, considerando a necessária articulação desta com as
vicissitudes da história passional de Norbert Hanold. Este pressuposto da
interpretação psicanalítica69 é perfeitamente respeitado pelo poeta que o
realiza, desconhecendo absolutamente as publicações freudianas.70 Começa
a se impor então, com grande vigor, o processo da psiquiatria, na medida
em que — orientando-se pelo eixo do sentido e podendo captar a verdade
no contexto da realidade psíquica — o discurso romanesco consegue o que
é impossível para o discurso psiquiátrico.

Freud afirma o acesso legítimo da literatura a este domínio da experiência


da loucura. Porém, tal legitimidade não se funda apenas na ordem do fato
— dado que a relação dos poetas com a temática da experiência subjetiva é
tradicionalmente anterior à introdução da medicina neste campo —, mas
também na ordem do direito, pois na perspectiva psicanalítica o poeta
consegue delinear o sentido da verdade na loucura, o que não se realizaria
com a psiquiatria:

“Talvez, estejamos também fazendo ao romancista um mau serviço aos


olhos da maioria das pessoas, considerando sua obra como sendo um a
estudo psiquiátrico. Um romancista, diz-se, deve se manter afastado de
qualquer contacto com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição dos
estados mentais patológicos. Em verdade, nenhum escritor
verdadeiramente criativo jamais obedeceu a esta injunção. Com efeito, a
descrição da vida psíquica humana é o seu domínio próprio; ele tem sido o
precursor da ciência desde os tempos imemoriais, e particularmente da
psicologia científica. Entretanto o limite entre os estados psíquicos
descritos como normais é, por um lado, convencional e, pelo outro, tão
flutuante que cada um de nós o atravessa muitas vezes por dia.” 71
Superando a concepção de verdade no registro da realidade material e o seu
correlato, a oposição normal/anormal, o discurso poético consegue
apreender como idêntico o sentido que se articula nestes dois universos,
aparentemente diversos, da realidade psíquica. Por isso, o romancista
consegue captar a verdade da experiência delirante e o psiquiatra, não. Este
coloca uma fronteira rígida entre os dois universos e não transcende esta
oposição. Tendo sempre ocupado este domínio da subjetividade que apenas
recentemente foi ocupado pela psiquiatria, a literatura deve manter-se nele
com todos os seus direitos. Assim como o psiquiatra não o cede ao poeta,
este também não deve ceder o seu lugar àquele:

“Deste modo, o escritor criativo não deve ceder o seu lugar ao psiquiatra,
nem o psiquiatra ao romancista, e o tratamento poético de um tema
psiquiátrico pode ser correto sem qualquer sacrifício de sua beleza. ”72

A psicanálise é o campo comum em que se toma possível esta identificação


entre literatura e psiquiatria. O discurso psiquiátrico stricto sensu,
silenciando o que é fundamental na experiência da loucura (sua articuação
na realidade psíquica), torna impossível esta identidade de domínio. Este
processo da psiquiatria, realizado ao longo do ensaio freudiano, só pode ser
tematizado na sua radicalidade se for destacada a sua articulação com outra
temática que lhe é correlata: o processo da ciência positiva e,
particularmente, o processo da psicologia explicativa.

Com efeito, o processo da psiquiatria se realiza pari passu ao processo da


psicologia explicativa que a sustenta, isto é, aquela que se estabelece
considerando fundamentalmente o campo da consciência como seu objeto
na sua correlação com a realidade material e que postula a concepção de
verdade apenas no eixo regulado pela oposição verdadeiro/falso. Já
destacamos várias articulações fundamentais da obra de Freud no que se
refere ao discurso çja psicologia explicativa. Perfila-se nelas uma temática
mais abrangente, a da indeterminação da ciência na subjetividade do agente
da ciência.

A ciência se inscreve na subjetividade do cientista por tramas desejantes


que transcendem de forma absoluta a racionalidade de cada um dos
discursos I científicos. Voltado para o rigor nas determinações dos objetos
da realidade material, o saber científico sofre a poderosa incidência do
campo do desejo no registro da subjetividade do cientista, de forma a fazer
com que este se movi-. mente por critérios outros que a verdade definida
pela oposição verdadeiro/ !!| falso. Sem a consideração desta
particularidade fundamental na leitura do discurso freudiano, este perde a
força de sua interpretação, que reside na sutileza com que indica seus
desdobramentos.

Vamos circunscrever esquematicamente esta temática pela pontuação do


texto freudiano. Norbert Hanold é um arqueólogo, um cientista cuja paixão
está na pesquisa de objetos antigos e enterrados pela história. Inicialmente í
acreditava que os pés da escultura de Gradiva lhe despertavam interesse
meramente científico, apesar de olhar avidamente para os pés das mulheres
no meio da rua, buscando símiles vivos desse andar maravilhoso73 e
revelando assim o erotismo investido na sua pesquisa. Pouco a pouco a
ilusão se desfaz, explicitando-se o desejo que norteia o campo de sua
investigação. O objeto que o fascina na sua experiência delirante começa a
apresentar-se sem o disfarce de qualquer interesse científico.74 Hanold é
passionalmente impelido por alguma particularidade que desconhece. Esta
atração poderosa acaba por levá-lo a uma viagem a Pompéia, um dos
lugares privilegiados pelos que se dedicam a pesquisar a Antigüidade.

O que norteia os seus movimentos é uma outra investigação, e


aparentemente Norbert Hanold nada sabe sobre ela. A verdade marcada na
sua realidade psíquica, constituída na singularidade de sua história
pulsional, é que se coloca como a instigação efetiva de sua pesquisa, e não
o discurso científico, ! a procura objetiva da verdade, regulada pela
oposição verdadeiro/falso. Em alguns momentos cruciais de seus
comentários, Freud assinala como, em cer-i tos acontecimentos, a convicção
de Norbert Hanold podería ser facilmente cri-' ticada pelos
procedimentos metodológicos do saber arqueológico. Mas isto se toma
impossível, pois o que instiga o desejo de saber do arqueólogo é uma outra
verdade, inscrita no registro da realidade psíquica.75

I Norbert Hanold está imerso numa experiência delirante. A psiquiatria con-


i cluiria pela não-verdade do seu discurso a partir do uso de critérios
baseados | na realidade material e no discurso científico que lhe é correlato,
e não numa concepção em que a verdade se articula na realidade psíquica.
Se esta for usada como critério, não apenas o discurso delirante de Norbert
Hanold, o discurso cósmico de Schreber e as experiências de possessão
demonológica j adquirem a espessura da verdade. Também uma série de
produções simbólicas, como a religião, se inscrevem na ordem do sentido,
apesar de não obedecerem às regras da ciência positiva.76 O romancista
fornece uma contribuição positiva para o saber psiquiátrico ao demonstrar,
pela sua narrativa, que existe verdade no delírio, quando este adquire um
sentido na subjetividade implicada. Ele não silencia esta veracidade, usando
a referência à realidade material como critério de avaliação.

A barreira do recalque, que estabelece a fronteira tópica entre os sistemas


inconsciente e pré-consciente/consciente, constitui a realidade psíquica e
necessariamente a camufla frente à realidade material. Esta se apresenta ao
ego como sendo a “realidade” em si, porque no processo constitutivo da
psique uma dimensão do sujeito é clivada e impedida de ter livre circulação
no contexto da realidade do ego. As regras que ordenam o ego passam,
então, a estabelecer a concepção de verdade na oposição verdadeiro/falso,
considerando como erro e loucura tudo aquilo que não se adequa ao seu
sistema de regras. Porém, apesar do recalque, a dimensão clivada da
subjetividade continua a imprimir as suas marcas na existência do sujeito,
subvertendo o domínio da razão e da ciência, como na experiência modelar
de Norbert Hanold.77

O desejo de saber que instiga Norbert Hanold, subvertendo a organização


do seu ego e a ordenação positivista da sua ciência arqueológica, acaba por
arrastá-lo de modo inexorável a uma investigação sobre a indeterminação
do seu próprio desejo. Freud pontua rigorosamente que esta investigação só
encontra o seu objeto quando decifra o desejo que orienta passionalmente o
sujeito. Só então a formação delirante começa a desmoronar. Ela não se
esvai pelo convencimento racional do sujeito sobre o seu “erro”, a sua
ilusória “irrealidade”, mas apenas pelo reencontro do cenário erótico que
norteia o seu desejo de saber.7’

A uma arqueologia positiva, Freud contrapõe uma arqueologia que pretende


remontar a história do sujeito nas suas marcas pulsionais e restaurar o
sentido que norteia o seu desejo de saber. Trata-se necessariamente de uma
arqueologia do sujeito, pois pela decifração de suas marcas pulsionais o
recalque do inconsciente vai sendo superado, restituindo-se ao sujeito o
sentido de sua história.

Esta investigação interpretativa de Gradiva se desdobra num interesse de


Freud em decifrar em que condições o autor constituira a sua obra
romanesca, isto é, que marcas pulsionais e que ordenação inconsciente de
sua memória funcionaram como condição de possibilidade para o
romance.79 Mas Freud não obteve êxito nisso, pois Jensen não quis
participar de um trabalho què evidentemente implicaria a sua própria
análise. Impossibilitado de desenvolver a pesquisa nesta direção, Freud
procura realizá-la por outro caminho metodológico, que se ateve ao registro
estrito do discurso poético.

Freud prosseguiu seu trabalho interpretativo procurando destacar as


similaridades estruturais possivelmente existentes entre Gradiva e outras
obras do autor — O guarda-chuva vermelho e Na casa gótica —, de forma
a inquirir a articulação subjacente entre elas. Caberia decifrar o cenário
original capaz de levar o sujeito a engendrar estas ordenações temáticas
aparentemente diversas,*2 como se um mesmo discurso estivesse sendo
apresentado em diferentes versões. Paradoxalmente, estas apresentações
diversas seriam a condição possível para o deciframento do discurso
originário, eixo ordenador das variações temáticas. Por esta via, Freud
acabou por desvendar essas articulações simbólicas, inicialmente obscuras
(pelo menos no que se refere a Na casa gótica), quando descobriu que
Jensen publicara conjuntamente as duas úlitmas novelas sob o título de
Potências soberanas.*3

Com isto, Freud imprime nova inflexão nas suas interrogações iniciais e,
em seus escritos, dá às relações entre psicanálise e literatura o perfil
definitivo. Esta inflexão permite assinalar o eixo em que se desdobra a
arqueologia do sujeito. Gradiva permitira demonstrar como as teorias
analíticas sobre o inconsciente eram verídicas, pois poderíam ser
reencontradas por alguém que não possuía qualquer conhecimento sobre
psicanálise. O poeta chegara até elas pela via imaginativa e numa outra
formação discursiva. Isso conferia a esta demonstração um caráter
particular de enorme relevância, já que revelava que a estrutura do
inconsciente era universal.
Agora, cabia considerar a totalidade das formações simbólicas do sujeito
como diferentes ordenações de uma estrutura universal do inconsciente,
sendo estas formações, portanto, equivalentes nos seus valores de
simbolização do sujeito. Este podería se apresentar simbolicamente de
diferentes formas, que no entanto remeteríam a uma mesma estrutura
constitutiva, fundamento comum das variações possíveis. Assim, as obras
poéticas e as outras formas de produção artística — e também os mitos —
teriam a mesma organização simbólica que o sonho, o lapso e o sintoma,
remetendo à mesma estrutura fundamental que delineia o sujeito.

Considerando-se a realidade psíquica como referencial básico na


articulação do sentido, a experiência da loucura e as produções simbólicas
mais valorizadas na cultura passam a ter a mesma ordenação fundamental.
Assim, a recuperação do valor de verdade da experiência da loucura implica
necessariamente considerar que a matéria-prima e as leis de formação desta
experiência são as mesmas que marcam as grandes produções do espírito
humano. _

Na série de obras que realiza em seguida, sobre literatura em particular e


sobre arte em geral, Freud tenta decifrar não apenas a estrutura
fantasmática subjacente a estas formações discursivas e o sentido que
revelam, mas também de que maneira esta estrutura se articula no contexto
subjetivo que se constitui na história do autor.*1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 86

O modelo metapsicológico do sonho se toma o eixo metodológico que vai


funcionar como ordenador dessas diferentes formações simbólicas,
permitindo reencontrar continuidade na arqueologia do sujeito, função
epistêmica já realizada anteriormente na interpretação dos lapsos*7 e do
chiste,** exatamente pelo lugar que ocupava como paradigma
metodológico de uma formação inconsciente.

Em 1908, Freud realizou este desdobramento da arqueologia do sujeito em


“A criação literária e o devaneio”, no qual o modelo do sonho vai ser
utilizado através do destaque metapsicológico conferido ao
devaneio,‘permitindo aceder à estrutura simbólica da obra pela ordenação
de seus movimentos fantasmáticos fundamentais.89 Neste ensaio foi
definitivamente fixado todo o alcance interpretativo do conceito de
fantasma, que se torna o caminho privilegiado para aceder à fantasmática
inconsciente e às marcas pulsionais que definem o percurso para a
arqueologia do sujeito.

12. S. Freud. Idem, p. 267-268. O grifo é nosso.

13. J. Birman, A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de


Janeiro. Graal, 1978, cápítulos II e III.

14. NSo tematizamos aqui os caminhos histórico, social e


epistemológico que, na aurora do século XIX, possibilitaram a
constituição dessa nova representação da loucura. Esta problemática já
foi bem delineada em investigações anteriores. Sobre isto, ver
principalmente: J. Birman, A psiquiatria como discurso da moralidade
e M. Foucault, Histoire de la folie à Tãge classique, 3* parte. Paris,
Gallimaid, 1972.

Nossa preocupação é destacar apenas alguns pressupostos que nortearam


essa transformação instituída pelo discurso psiquiátrico, para assinalar a
ruptura epistemológica que o discurso psicanalítico realizou com esses
tópicos fundamentais da “revolução psiquiátrica”. Por isso, o nosso
percurso teórico se sustenta no eixo marcado pela relação de oposição entre
a loucura e a psiquiatria com as temáticas do saber e da verdade. No
desdobramento desta problemática se coloca necessariamente a abordagem
dos efeitos produzidos no plano da relação intersubjetiva — isto é, os
efeitos que o discurso psiquiátrico produz sobre a figura da loucura —, para
analisarmos então a inovação introduzida pela psicanálise nesta
problemática.

15. J. P. Falret, Des maladies mentales et des asiles cTaliênís. Paris,


J.B. Baillière et fils, 1864.

16. J. P. Falret, "Du traitcment générale des aliénés”. Idem.

17. A violência que orienta essa forma de prática “terapêutica"


encontrou em Leuret a sua máxima exuberância, permitindo que os
seus princípios fundamentais pudessem ser evidenciados com clareza.
Sobre isto, ver F. Leuret, Du traitement moral de la folie. Paris, J.B.
Baillière, 1840.

18. Sobre isso, ver J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica,


segunda parte. Rio de Janeiro, Tauros-Timbre, 1989.

22. Idem, primeira parte.

23. De modo pertinente, Mannoni destaca a identificação de Freud aos


enfermos de Charcot. Sobre isto, ver O. Mannoni, “L’analyse
originelle”. In Clefspour 1’imaginaire ou Tautre scène. Paris, Seuil,
1969, p. 123.

24. Sobre isto, ver, entre outros, E. Jones, La vie et l'oeuvre de


Sigmund Freud. Volume 1, capítulo XIV. Paris, Presses Universitaires
de France, 1970; D. Anzieu, L'auto-analyse de Freud et la découverte
de la psychanalyse. Volumes 1 e 2. Paris, Presses Universitaires de
France, 1975; M. Schur, La mort dans la vie de Freud. 1* parte,
capítulos III e IV. Paris, Gallimard, 1975.

25. Sobre isso, ver J. Birman, Freud e a experiênciapsicanalítica. Op.


cit., primeira parte.

26. O. Mannoni, "L’analyse originelle”. In Clefspour 1'imaginaire ou


l'autrescène. Op. cit.

27. O relato de Breuer a Freud sobre o desenlace do tratamento de


Anna O. aparece em E.

Jones, La vie et íoeuvre de Sigmund Freud. Volume 1, capítulo XI, p. 247-


250. Op. cit.

28. J. Breuer, “Frãulein Anna O.” In S. Freud e J. Breuer, Studies on


hysteria, capítulo II,

1. In The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund


Freud. Volume II, p. 21-47. Op. cit.
29. S. Freud, “The psychoterapy of hysteria”. In Studies on hysteria,
capítulo IV. Idem, p. 301-305.

30. Carta de Freud a Fliess, 14 de novembro de 1897. In "Lettres a


Wilhem Fliess, Notes et Plans (1887-1902)". In S. Freud, La naissance
de la psychanalyse. Paris, Presses Universitaires de France, 1973, p.
207-208. O grifo é nosso.

31. Carta de Freud a Fliess, 21 de dezembro de 1899. Idem, p. 271-


272. O grifo é nosso.

32. S. Freud, From the history of an infantile neurosis (1918). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume XVII, p. 12. Op. cit. O grifo é nosso.

33. S. Freud, Idem, p. 22-24, 102-103.

34. S. Freud, Idem, p. 53-57, 102-103, 115-116.

35. S. Freud, Idem, p. 48-49, 105-106.

36. S. Freud, Idem, p. 70-71.

37. S. Freud, Idem, p. 48-49.

38. Ver o destaque que Lacan confere a essa questão na estrutura deste
texto de Freud. J. Lacan, “Variantes de la cure-type” (1955). In Écrits.
Paris, Seuil, 1966, p. 358.

39. S. Freud, Studies on hysteria (1815). In: The Standard Edition of


the complete psychological works of Sigmund Freud. Volume II. Op.
Cit.

40. M. Foucault, “Stultifera navis”. In Histoire de la folie à Tâge


classique, 1* parte, capítulo 1. Op. cit.

41. Estamos nos referindo à constituição do Hospital Geral. Sobre isto,


ver M. Foucault Idem, 1* parte, capítulos II e III.
42. P. Schreber, Mémoires d’un névropate (1903). Paris, Seuil, 1975.

43. S. Freud e C. G. Jung, Correspondance. Volume II. Paris,


Gallimard, 1975, p. 39,63, 79, 150, 157, 206.

44. S. Freud e C. G. Jung. Idem, p. 95-96.

45. S. Freud e C. G. Jung. Idem, p. 43-44.

46. S. Freud, Psycho-analytic notes on an autobiographical account of


a case of paranóia (Dementia Paranoides) (1911). In The Standard
Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
Volume XII, p. 43. O grifo é nosso.

47. S. Freud, Idem, seção III.

48. S. Freud, “Pour introduire le narcisisme”. In La vie sexuelle. Paris,


Presses Universitaires de France, 1973, p. 82-83.

49. Termo fundamental da construção delirante de Schreber. Sobre


isso, ver S. Freud, Psycho-analytic notes on autobiographical account
of a case of paranóia. (Dementia Paranoides). In The Standard
Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
Volume XII, seção II, op. cit.

50. S. Freud, Idem, p. 78. O grifo é nosso.

51. Sobre isso, ver T. Kuhn, A estrutura das revoluções cientificas. São
Paulo, Perspectiva, 1975.

52. S. Freud, Idem, p. 79.

53. S. Freud, A seventeen-century demonological neurosis (1923). In


The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume XIX, op. cit.

54. Sobre as referências de Freud ao trabalho de Charcot nessa direção,


ver S. Freud, Report on my studies in Paris and Berlim (1886). In The
Standard Edition cf the completepsychological works qf Sigmund
Freud. Volume I, p. 11-13, op. cit.; S. Freud, Charcot (1893). Idem.
Volume III, p. 20; S. Freud, A seventeen-century demonological
neurosis (1923). Idem. Volume XIX, p. 72.

55. J. Carroy-Thirard, “Possession, extase, hystérie au 19e siècle". In


Psychanatyse à

68 Freud e a interpretação psicanalítica

l'université. Volume 5, número 19, p. 499-516. Paris, Réplique, 1980.


*

56. Sobre isto, ver J. Birman, A psiquiatria como discurso da


moralidade, capítulo IV, op.

cit.'

'

57. Freud já tratara dessa temática: S. Freud, Carta a Fliess, 17 de


janeirode 1897, “Lettres

a Wilhem Fliess, Notes et Plans (1887-1902)". In La naissance de la


psychanalyse, p. J I 165-166, op. cit.; Carta a Fliess, 24 de janeiro
de 1897. Idem, p. 166-168; “Caractère et I

érotisme anal” (1908). In S. Freud, Névrose.psychose etperversion, p. 143-


148. Op. cit. ’ ! 58. S. Freud, A seventeen-century demonological
neurosis. In The Standard Edition of the

complete psychological works qf Sigmund Freud. Volume XIX, p. 73. Op.


cit.

i 59. S. Freud, Idem, p. 73. O grifo é nosso.


60. S. Freud, Idem, p. 72. O grifo é nosso.
(

i 61. S. Freud, Idem, p. 72. O grifo é nosso.

62. S. Freud, Idem, p. 84.

63. S. Freud, Delusions and Dreams in Jensen‘s ‘Gradiva’ (1907). In


The Standard Edition , of the complete psychological works of
Sigmund Freud. Volume IX. Op. cit.

64. S. Freud, Idem, p. 41.

65. S. Freud, Idem, p. 42-43.

! 66. S. Freud, Idem, p. 45.

< 67. S. Freud, Idem, p. 43-48, 51-53, 80-82, 88-89.

68. Se a verdade do sujeito se refere à realidade psíquica, e não à material,


supera-se a oposição verdadeiro/falso, conforme desenvolvemos
anteriormente. Porém, considerando semanticamente a questão, se existe
adequação da verdade do sujeito à realidade psíquica é possível afirmar que
a oposição verdadeiro/falso se recoloca neste contexto, ' se bem que em
outros termos. Tentemos afastar o mal-entendido semântico que isso '

possa colocar: a oposição verdadeiro/falso adquire uma qualidade


diferenterio contexto j

da realidade psíquica, pois não se sustenta num código extra-subjetivo e se


caracteriza pela oposição ser/não ser que já destacamos. Como veremos
adiante, ao temadzarmos os conceitos de pulsão e enunciarmos a existência
do sujeito como desde sempre intérprete, esta verdade do sujeito é
necessariamente múltipla e constituída num contexto intersubjetivo desde
as suas origens. Assim, ela é permanentemente recriada pelo su-

i jeito ao longo de sua história, num interminável trabalho


interpretativo, através do qual i
' se delineiam as suas identificações. Então, o conceito de verdade
do sujeito é uma outra j

maneira de delinear o conceito de identificação (que não tematizaremos


neste trabalho) j no discurso psicanalítico. Existindo a adequação da
verdade do sujeito à realidade | ' psíquica, não se podería dizer que
ela não se marca pela oposição verdadeiro/falso,

respeitando aqui o sentido semântico das palavras. Porém, a concepção de


verdade

, articulada com a adequação/inadequação em relação ao universo


das coisas da realidade \

74. S. Freud, Idem, p. 64-65.

75. S. Freud, Idem, p. 51-52, 77-78, 80-81.

76. S. Freud, Idem, p. 70-72.

77. S. Freud, Idem. Sobre isto, ver os capítulos II e III da obra, e


particularmente a argumentação das páginas 80-81.

78. S. Freud, Idem. Sobre isto, consultar o capítulo IV da obra,


particularmente as páginas 87-90.

79. S. Freud, Idem, p. 94. “PostScript to the second edition” (1912).

80. S. Freud, Idem, p. 94.

81. Sobre isto, ver S. Freud e C. G. Jung, Correspondance. Volume I,


op. cit., p. 98-102, 105, 118.

82. S. Freud, Delusions and Dreams in Jensen's 'Gradiva', “PostScript


to the second edition (1912)”, p. 95. In The Standard Edition ofthe
complete psychological works of Sigmund Freud. Volume IX.

83. S. Freud, Idem, p. 95.


84. Sobre isto, ver principalmente S. Freud, Creative writers and day-
dreaming (1908). In The Standard Edition of the complete
psychological works of Sigmund Freud. Volume IX; Leonardo da Vinci
and a memory of his childhood (1910). Idem, volume XI; The theme of
the three caskets (1913). Idem, volume XII; The Moses of
Micheangelo (1914). Idem, volume XIII; Some character-types met
with in psychanalyse work (1916). Idem, volume XIV; A childhood
recollection from 'Dichtung und wahrheit’ (1917). Idem, volume XVII;
The 'Uncanny' (1919). Idem, volume XVII; Humour (1927). Idem,
volume XXI; Dostoiévsky and Parricide (1928). Idem, volume XXI.

85. Esta última inflexão metodológica, realizada nas primeiras


interpretações psicanalíticas das obras de arte, vai ser abandonada
posteriormente, com justeza metodológica, por Freud e pelo
pensamento analítico. Com efeito, não se pode analisar um sujeito
considerando-se apenas a sua obra, exatamente porque não se pode
considerar uma série de enunciações fundamentais de sua história que
só podem ser apreendidos no curso do processo psicanalítico. Porém, o
princípio metodológico que norteia a interpretação da obra poética
continua não apenas legítimo mas rigoroso nestes limites que se
colocam, pois se estabelece que o fundamental é decifrar o sentido
inconsciente da obra pela leitura de sua estruturação fantasmática.
Seria isso, inclusive, o que importa numa aplicação da psicanálise ao
campo da estética, pois permitiría fornecer os índices para o campo
dos possíveis efeitos psíquicos da textura da obra sobre os seus
consumidores. Nesta perspectiva, permanecem como modelos
exemplares do rigor metodológico da aplicação da psicanálise ao
deciframento da obra poética os seguintes textos: S. Freud, The theme
of the three caskets (1913). Idem, volume XII; The 'Uncanny' (1919).
Idem, volume XVII.

86. O registro das seções da Sociedade Psicanalítica de Viena,


correspondentes a este período histórico do movimento psicanalítico,
fornecem inúmeros exemplos desta interpretação analítica da obra de
arte, realizadas por discípulos de Freud. Sobre isto, ver Les premiers
psychanalystes. Volume I. Minutes de la Sociétí Psychanalytique de
Vienne. 1906-1908. Paris, Gallimard, 1976.
87. S. Freud, The psychopathology of everyday life (1901). In The
Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume VI. Op. cit.

88. S. Freud, Jokes and their relation to the unconscious. Idem,


volume VIII.

89. S. Freud, Criative writers and day-dreaming. Idem, volume IX.

A constituição de um saber interpretativo


Além de implicar uma ruptura epistemológica com o saber médico-
psiquiátrico, a constituição de uma arqueologia do sujeito pressupõe
também, como vimos, o retomo simbólico a um momento histórico da
tradição ocidental, no qual podia haver verdade e sentido na experiçncia da
loucura. Agora, na modernidade, cabia decifrar essa potencialidade
significativa. Embora o contexto histórico que cercou a constituição da
psicanálise tenha induzido a formalização de um saber fiel a determinado
ideal científico, esse processo revalorizou o pressuposto epistemológico que
conferia pregnância à categoria de sentido, tomada principal face à
categoria de explicação no estudo da experiência da loucura.

Dotado de imensa significação epistemológica, o retomo simbólico a um


momento histórico em que a loucura dizia a verdade nos permite interpretar
o investimento teórico realizado por Freud a respeito de certos fenômenos
mentais que a psicologia explicativa do século XIX considerava resíduos da
atividade psíquica, desprovidos de significação.1 Ao privilegiar o sentido na
experiência do sujeito, Freud pôde construir modelos metapsicológicos para
fenômenos da experiência subjetiva que eram ininteligíveis para a
psicologia explicativa de então. Na verdade, eles eram também
completamente destituídos de interesse científico, pois o saber psicológico
estava sustentado numa concepção epistemológica da verdade que
privilegiava a relação entre a psique e os objetos da realidade material. Em
Freud, o sonho, o lapso, o ato falho e o chiste transformam-se em
fenômenos privilegiados, pelos quais se pode ter acesso ao universo de
sentido da subjetividade. Esses fenômenos não podiam ser considerados
pela psicologia explicativa como um problema teórico, pois, para ela, não
passavam de resíduos das atividades mentais superiores, responsáveis pela
adaptação ao mundo externo.

Com efeito, a psicologia explicativa estava voltada para a investigação


abstrata das funções mentais. Isolava o sujeito e o seu contexto
intersubjetivo, submetendo-o ao método introspectivo e pretendendo
reconstituir a individualidade psicológica após a fragmentação do indivíduo
em funções parceladas, segundo um modelo preestabelecido por esta
montagem funcional. A postura epistemológica e metodológica da
psicanálise é inteiramente diversa. Na verdade, é inversa. Na sua
investigação, Freud considera imediatamente o sujeito numa posição
intersubjetiva, tratando como secundário o estudo das funções mentais. Para
decifrar o sentido da subjetividade, ele centra sua atenção exatamente onde
se realiza a quebra na performance da individualidade funcional da
psicologia positiva.

Para Freud, o sujeito se revela fundamentalmente — e de modo fulgurante


— pelas fendas rompidas na totalidade de seu ego, ou seja, exatamente ali
onde a individualidade psicológica se apresenta como falha nas
possibilidades de realização ideal de suas funções mentais, consideradas em
conjunto. O resíduo passa a ser o paradigma metodológico da revelação
subjetiva. A enun-ciação da verdade do sujeito pode ser apreendida num
flash quando se rompe, mesmo momentaneamente, a individualidade
psicológica, concebida nos termos da referência à realidade material.

Invertendo completamente as démarches epistemológica e metodológica,


reestruturando absolutamente o campo de fenômenos a serem valorizados e
interpretados no seu espaço de investigação, a psicanálise constitui um
campo original de saber, que se estabelece também por uma ruptura
epistemológica com a psicologia explicativa do século XIX,
fundamentalmente subordinada ao saber psiquiátrico então dominante.2
1

G.W.F. Hegel, La phénomenologie de 1'esprit. Volume I. Introdução, p. 73.


Paris, Aubuer, 1941.
2

S. Freud, “Obsessions et phobies” (1895). In S. Freud, Névrose.psychose


etperversion. Paris, Presses Universitaires de France, 1973, p. 40. O grifo é
nosso.
3

S. Freud, Notes upon a case of obsessional neurosis (1909). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
Volume X. Londres, Hogarth Press. 1978, p. 175-176.
4

S. Freud, Notes upon a case of obsessional neurosis. Idem, 2* parte, B, p.


233-236.
5

S. Freud, Totem and Taboo (1913). Idem. Volume XIII, capítulo III.
6

K. Abraham, "Préliminaires à l’investigation et au traitement


psychanalytique de la folie mániaco-dépressive et des états voisins” (1912).
In Rêve et myth. In Oeuvres Complètes. Volume 1. Paris, Payot, 1973, p. 99-
113.
7

S. Freud, “Deuil et mélancolie" (1917). In Métapsychologie. Paris,


Gallimard, 1968, p. 147-162.
8

S. Freud, Idem, p. 152-153. O grifo é nosso.


9
S. Freud, Idem, p. 153. O grifo é nosso.
10

S. Freud, Idem, p. 154. O grifo é nosso.

11., S. Freud, Constructions in analysis (1937). In The Standard Edition of


the complete psychological works of Sigmund Freud. Volume XXIII, op.
cit., p. 267.

A psicanálise como interpretação


Sustentado no eixo epistemológico que implica o retomo simbólico ao
passado da história da loucura, Freud se apóia na tradição milenar do senso
comum sobre o sentido do sonho, renovada na sua exuberância mito-poética
pela então recente tradição romântica. Rompe assim com as concepções
oriundas da psiquiatria e da psicologia explicativa, que, fortalecidas ao
longo do século XIX, destituíam o sonho de qualquer sentido, reduzindo-o a
um resíduo da atividade fisiológica. Freud, ao contrário, postula que o
sonho é um fenômeno psíquico e, além disso, um acontecimento situado na
ordem do sentido. Conferindo materialidade absoluta ao fantasma no
espaço da experiência subjetiva, essa formulação é o equivalente moderno
(inserido no registro da realidade psíquica) dos “espíritos” medievais (que
se inseriam no contexto cósmico).

Para restaurar o sentido da experiência do sonho, restituindo materialidade


ao fantasma no registro inconsciente do psiquismo, o percurso teórico de
Freud começa pela ruptura absoluta com quase toda a tradição científica
sobre o sonho, incapaz de fornecer qualquer contribuição efetiva para
desvendar os enigmas que o cercavam:

“Pois, apesar dos esforços milenares, a concepção científica do sonho se


desenvolveu pouco — um fato geralmente tão admitido na literatura que
parece desnecessário citar exemplos como prova. Nestes escritos, que
aparecem em lista no final do meu livro, encontramos muitas observações
estimulantes e uma certa quantidade de material interessante tratando do
tema, mas pouco ou nada que trate da natureza essencial dos sonhos, e que
ofereça uma solução final para qualquer um dos seus enigmas.”3

Freud reconhece apenas duas exceções — Scherner e Th. Fechner —, cujas


formulações retoma ao constituir sua nova perspectiva para a interpretação
dos fenômenos oníricos. O trabalho do romântico Scherner procurou
restaurar, de alguma forma, a atividade onírica na ordem do sentido,4
enquanto os Elementos de psicofisica, de Fechner, postularam que a
diferença entre as atividades do sonho e da vigília não dizia respeito à
localização cerebral: “o cenário dos sonhos é diferente daquele onde se
desenrola a vida representativa na vigília”.5

Atividade inscrita na ordem do sentido, o sonho se ordenaria em um espaço


psíquico diferente daquele em que se articulariam as representações mentais
da vigília. Para interpretar este fenômeno seria necessário construir outra
concepção da psique, de forma a poder incluir na estrutura básica desta as
possíveis diferenças de cenário, que restituiriam ao sonho o seu lugar na
ordem psíquica. A concepção fundamental de uma tópica psíquica,
desenvolvida por Freud no final de A interpretação dos sonhos, encontra
nesta indicação de Fechner uma de suas condições de possibilidade para o
seu desenvolvimento.6

Nesse contexto histórico-epistemológico, o maior obstáculo teórico para


inscrever o sonho na ordem psíquica é representado pela concepção
somática absolutamente dominante, proveniente do pensamento psiquiátrico
que procurava reduzir qualquer fenômeno mental a um simples
epifenômeno da atividade cerebral e pretendia sempre circunscrever sua
localização anatômica.7 Qualquer tentativa de restituir à psique uma relativa
autonomia face à ordem sorná-utica levantava objeções imediatas, como se
representasse um retorno às formulações da “filosofia da natureza” e a uma
concepção “metafísica” do espírito: “É verdade que a dominância do
cérebro sobre o organismo é afirmada com aparente convicção. Contudo,
qualquer coisa que pode indicar que a vida mental é de alguma maneira
independente das transformações orgânicas demonstráveis, ou que suas
manifestações são espontâneas de alguma maneira, alarma o psiquiatra
moderno, como se um reconhecimento destas coisas restaurasse
inevitavelmente os tempos da Filosofia da Natureza e da concepção
metafísica da natureza da alma. A desconfiança dos psiquiatras colocou a
alma em tutela, e agora eles insistem que nenhum dos seus impulsos
deveria ser admitido, para não sugerir que ela tem um poder próprio. Este
comportamento apenas mostra quão pouca confiança eles realmente têm na
validade de uma conexão causai entre o somático e o mental. Mesmo
quando a investigação indica que a causa excitante primária é psíquica, uma
pesquisa mais profunda traçará futuramente o caminho e descobrirá uma
base orgânica para o fenômeno mental. Mas, se no momento nós não
podemos ver além do mental, não há razão para recusar a sua existência”.’

Neste plano em que se realiza o debate teórico, reaparecem as oposições


psicanálise/psiquiatria e psicanálise/psicologia. Reconhecer a autonomia da
ordem psíquica significa não apenas criticar a concepção somática da
psiquiatria, mas também reencontrar o mito de um retorno ao passado
histórico no plano da tradição das idéias, retomando as formulações da
“filosofia da natureza” e da “concepção metafísica da natureza da alma”.
Assim, as oposições ciência/filosofia e ciência/religião remetem à oposição
mais fundamental corpo/alma. Nesse contexto histórico, postular a
existência relativamente autônoma da psique face à ordem corporal
significava restabelecer o universo metafísico da alma.

Situadas no registro das tradições filosófica e científica da história


ocidental, essas oposições se desdobram em outras oposições fundamentais.
Todas assinalam decisivamente como, para Freud, a postulação de que a
atividade onírica se inscreve na ordem do sentido implica romper com a
tradição científica estabelecida e retomar simbolicamente a problemática de
um outro momento histórico da concepção do sujeito.

Vejamos outros desdobramentos desta crítica da concepção científica do


sonho. Freud caracteriza como estéril a tradição científica neste campo. Sua
incisiva formulação se insere em outro contexto de oposições, bastante
demonstrativas para a interpretação que aqui empreendemos do seu
pensamento. Não apenas a tradição científica se contrapõe à tradição do
senso comum sobre o sonho; esta oposição remete a uma outra, considerada
mais fundamental, entre a explicação e o sentido.

Considerando o sonho como um resíduo da atividade fisiológica, a tradição


científica o retirava da ordem do sentido e buscava construir um esquema
explicativo em que a ordem corporal era o suporte da atividade onírica. Esta
formulação ia na direção oposta à da tradição do senso comum, para a qual
o sonho sempre tinha um sentido, mesmo quando sua apresentação plástica
fosse abSurda e seu significado permanecesse obscuro e enigmático.

É evidente o posicionamento epistemológico de Freud face a essas


tradições. Criticando a posição teórica da psiquiatria e da psicologia
positiva, que destitui o sonho da ordem do sentido e procura construir para
este uma explicação fisiológica, ele retoma a tradição milenar do senso
comum, que confere ao sonho sentido pleno. Assim, a oposição
ciência/senso comum se desdobra em outra oposição, considerada mais
fundamental, entre explicação e interpretação, de maneira a delinear de
forma bastante rigorosa o instrumento epistemológico da psicanálise. Esta
constitui um novo campo do saber, que se sustenta no eixo do sentido e no
qual a estratégia fundamental de conhecimento se denomina interpretação.
Isso pressupõe atribuir à atividade onírica um sentido originário. Nesse
debate vigoroso e no percurso crítico desse conjunto de oposições, Freud
postula que sua pretensão teórica é interpretar o sonho, e não explicá-lo:

“O título que escolhí para o meu livro indica qual tradição de idéias sobre
o sonho me inclino a seguir. A finalidade a que me propus é mostrar que os
sonhos podem ser interpretados; e qualquer contribuição que eu possa
realizar para a solução dos problemas tratados no último capítulo será
apenas subproduto no curso da realização da minha tarefa. A suposição de
que os sonhos podem ser interpretados coloca-me imediatamente em
oposição à teoria predominante dos sonhos e, de fato, a todas as teorias do
sonho, salvo a de Scherner; pois * interpretar’ um sonho implica atribuir a
ele um 'sentido', isto é, substituí-lo por alguma coisa que se insere na
cadeia de nossos atos mentais, como um elo dotado de validade e
importância igual ao resto. Como vimos, as teorias dos sonhos não
deixaram lugar para qualquer questão de interpretá-los, pois para elas o
sonho não é absolutamente um ato mental, mas um processo somático que
sinaliza sua ocorrência por indicações registradas no aparelho psíquico. A
atitude do senso comum sempre foi completamente diferente. Exerceu o seu
direito irrevogável de se comportar de modo inconsistente; e, embora
admitindo que os sonhos fossem incompreensíveis e absurdos, não ousou
declarar que não tinharp absolutamente significação. Conduzido por algum
obscuro sentimento, parece admitir que, apesar de qualquer coisa, cada
sonho tem um sentido, mas um sentido oculto, que os sonhos são
designados a ocupar o lugar de algum outro processo de pensamento, e que
devemos apenas desfazer corretamente a substituição para atingir este
sentido oculto.”’

A pretensão teórica fundamental do pensamento freudiano é demonstrar a


veracidade da concepção do senso comum frente às formulações
estabelecidas pelo pensamento científico do século XIX, reconhecendo que
o sonho se inscreve na ordem do sentido e não é um resíduo do
funcionamento cerebral. Freud não está preocupado em responder às
indagações levantadas pela tradição científica, pois antes de mais nada quer
demonstrar a veracidade teórica do seu postulado fundamental, retirando
dele todas as consequências possibilitadas pelo objeto de sua investigação.
Pretende inaugurar uma nova tradição científica, capaz de adotar o
postulado do sentido como eixo teórico fundamental da subjetividade e
romper com o pensamento então estabelecido. Por isso, ele pode tratar
como secundárias as questões levantadas pela tradição, com a qual está
rompendo explicitamente para constituir um espaço científico original, que
comporta interrogações diferentes.

Para Freud, constituir um campo epistemológico original era a única


possibilidade de criar uma teoria científica sobre os sonhos, cuja
emergência histórica estava obstaculizada pela perspectiva do modelo
explicativo sustentado em bases somáticas, que silenciava o postulado do
sentido. Um visível indicador da inexistência de uma tradição científica
fecunda era o eterno recomeço das investigações dos teóricos. Com efeito,
apesar de existir o postulado teórico da explicação, inexistia continuidade
no trabalho dos pesquisadores. Cada autor estava sempre começando do
princípio absoluto, compelido a recolocar as questões fundamentais, sem
poder continuar uma linhagem teórico-experimental anterior.10

Para estabelecer uma tradição científica nova e teoricamente fecunda, era


necessário constituir um novo campo do saber que não apenas rompesse
com a tradição instituída, mas também assumisse características
epistemológicas radicalmente inovadoras, criticando radicalmente o saber
explicativo. Era necessário constituir uma ciência da interpretação que
efetivamente rompesse com a perspectiva epistemológica da psiquiatria e da
psicologia explicativa do século XIX. O destaque conferido por Freud à
problemática do sujeito e do sentido conduz necessariamente a este saber da
interpretação.

Esse espaço teórico original é a condição de possibilidade para que se


desenvolva uma nova concepção sobre a psique, na qual cabe interpretar o
sonho. Com efeito, quando a atividade onírica se inscreve na ordem do
sentido, estabelece-se a interpretação como ato de conhecimento, pois p^fa
apreender o sentido é necessário interpretá-lo. Não cabem mais explicações
redutoras de seu movimento, pois elas implicam objetivar a subjetividade e
petrificá-la no corpo anátomo-funcional. A interpretação deve permitir que
o sujeito possa dar livre curso ao seu movimento, desfazendo os obstáculos
que impedem a ordenação e a explicitação de sua verdade psíquica singular.

O deciframento freudiano
Qual a especificidade desse método de interpretação na perspectiva
freudiana? Seria ele idêntico aos modelos tradicionalmente utilizados pelo
senso comum?

Para o pensamento freudiano, a interpretação psicanalítica se caracteriza


como uma produção teórica original, tanto do ponto de vista epistemológico
quanto metodológico. Ao pretender restituir ao sujeito a verdade singular de
sua história, ela se afasta dos modelos representados pela tradição do senso
comum, pois pretende realizar uma apreensão do sentido que se relaciona
essencialmente à captação pontual dos movimentos do sujeito.

Na perspectiva freudiana, a interpretação psicanalítica tem uma


particularidade epistemológica que a distingue dos tradicionais métodos de
interpretação do senso comum, realizando, também em relação a estes, uma
inflexão teórica fundamental. Mas, na medida em que Freud reconhece na
tradição do senso comum a existência do postulado do sentido, a ruptura se
dá, neste caso, num plano diverso em relação à realizada com os
pensamentos psiquiátrico e psicológico do século XIX.
Ao contrário do modelo de interpretação do senso comum, a concepção
freudiana de interpretação estal>elece uma relação fundante, dialética, entre
sujeito e sentido. O sujeito, naquilo que tem de mais fundamental,
necessariamente remete ao sentido, e vice-versa. Assim, a interpretação
psicanalítica passa a ser uma leitura rigorosa que visa a restaurar o sentido
singular da história de uma subjetividade.

Esta ruptura epistemológica se desdobra numa ruptura metodológica entre a


concepção freudiana de interpretação e o modelo interpretativo da tradição
do senso comum. Por isso, antes de introduzir os comentários teóricos que
sustentam o seu novo método de interpretação dos sonhos e realizar a sua
apresentação sistemática através do sonho paradigmático da “Injeção de
Irmã”,11 Freud critica rigorosamente os métodos de interpretação utilizados
por essa longa tradição do senso comum, que teria sempre sustentado sua
interpretação dos sonhos na utilização de dois grandes modelos
metodológicos — o método de interpretação simbólica e o método de
deciframento —, dotados de características bastantes diferentes.

Pelo método de interpretação simbólica, considera-se o sentido do sonho de


um modo abrangente, como uma totalidade, e procura-se substituí-lo, na
operação de interpretação, remetendo esta totalidade a um conteúdo
inteligível que lhe seja análogo. O exemplo modelar é o fragmento bíblico
no qual José interpreta o sonho do faraó.12 Para Freud, este método tem
uma fragilidade essencial, pois fracassa diante dos sonhos mais comuns,
que são incompreensíveis e confusos. Além disso, o êxito da interpretação
passa a depender essencialmente da “intuição imediata” e da
“engenhosidade” do intérprete, o que constitui um obstáculo fundamental
para a formalização do método enquanto tal e, portanto, para a sua
cientificidade. Com efeito, a tradição que cerca o método de interpretação
simbólica o caracteriza como “arte de interpretação” e deixa claro que ele
exige um talento especial por parte de seus intérpretes.13

O método de deciframento considera o sonho como um “escrito cifrado”.


Cada signo é remetido, na operação de interpretação, a um signo do senso
comum, de acordo com um esquema fixo que circunscreve essas relações.
Articulando os exemplos mais significativos da tradição greco-romana, Ar-
temidoro de Daldis construiu um relato ordenado que percorreu a história e
ainda era a melhor codificação deste método no final do século XIX.14 Sua
superioridade inicial face ao método da interpretação simbólica, assinalada
pela substituição de um sentido único totalizante por uma diversidade de
núcleos de significação e indicada pela representação do sonho como sendo
um tecido articulado de signos, se fecha imediatamente num universo
restrito e predeterminado de sentido, pois se supõe neste caso um esquema
fixo de significações, ou uma “chave dos sonhos”, conforme a
caracterização de Freud. A composição fixa de signos remete a um esquema
definido e finito de significações, de maneira que, nesta perspectiva, o
sentido fica marcado num mapa onírico para sempre delineado e escrito.

A inovadora perspectiva inaugurada por Freud permite superar esses


modelos de interpretação, ao constituir um instrumento metodológico
original, adequado ao novo objeto de investigação que estava sendo
construído. Se a problemática da singularidade do sujeito era a sua questão
fundamental, este novo campo precisava deixar para trás o método de
deciframento estabelecido por uma tradição que fazia uma cartografia fixa
de signos e os referenciava num código de significações preexistentes. Ela
fechava a possibilidade de existência de um livro de signos que fosse tão
ilimitado quanto a multiplicidade quase infinita dos sujeitos e a diversidade
infinita de posições subjetivas.

Freud se insere principalmente na tradição do método de deciframento, mas


o renova em tópicos fundamentais. Para construir um saber da interpretação
este método é superior ao da interpretação simbólica, pois nele o ato da
interpretação se desloca da “intuição” e da “engenhosidade” fluidas do
intérprete para a solidez do instrumento metodológico. Além disso, ao
considerar o sonho como uma tessitura multifacetada de signos — sem
atribuir a ele, a priori, um sentido totalizante —, pressupõe que sua
estrutura seja análoga à de um texto, reencontrando assim a linguagem,
paradigma do sentido por excelência. Porém, este deciframento tradicional
deve ser superado, tanto para se romper a relação biunívoca dos signos com
um livro preestabelecido de significações, quanto para se construir um livro
aberto ao sentido, tão ilimitado quanto as possibilidades de referência e de
combinação destes signos. Só assim se pode fazer frente ao universo
infinito de posições subjetivas e à diversidade ilimitada de sujeitos.
Considerando o sonho como um “escrito cifrado”,15 Freud propôs o método
psicanalítico de deciframento, para tomar este texto acessível à leitura e
deixá-lo falar sem preconceitos, na singularidade de sua linguagem. Os
signos não remetem mais a nenhum sentido fixo, mas a uma diversidade de
significações. O sentido específico de cada signo fica na estrita dependência
da combinatória de todos os signos presentes no sonho. E ela que define o
contexto do “escrito cifrado”, cujo deciframento exige considerar a priori
cada fragmento-signo como uma representação complexa, que remetería
simultaneamente a uma série de outros fragmentos-signos do mesmo sonho
e a uma série de outros fragmentos-signos da experiência histórica do
sujeito. Apenas assim podem ser rigorosamente decifrados o sentido
singular de cada fragmento-signo do sonho e sua combinatória específica.
Enfim, o “escrito cifrado” do sonho quer dizer algo singular a respeito do
sujeito que sonha, remetendo tanto para o momento passado da sua história
quanto para a atualidade da sua experiência psíquica.

Ao reencontrar, nesse percurso, algumas crenças sobre o sentido dos


sonhos, formuladas pela tradição milenar do senso comum, Freud
reconhece a verdade que elas revelam, mas as submete a um processo de
reinterpretação, decifrando seu sentido em outra direção. Na crença mais
enraizada, os sonhos são uma previsão do futuro. Ao interpretá-la, Freud
afirma que ela corresponde a uma representação do desejo do sujeito,
movimento que dá origem a qualquer sonho. O sujeito busca a satisfação do
seu desejo em qualquer tempo, mesmo num momento futuro de sua história.
Assim, o sonho é um “escrito cifrado” que revela os desejos originados num
tempo pretérito da história do sujeito e sinaliza a demanda para a sua
satisfação. Se os desejos são inconscientes, são também indestrutíveis.
Buscam eternamente ^ satisfação.16

Existe uma analogia fundamental entre as rupturas epistemológicas


realizadas pelo pensamento freudiano com a psiquiatria e a psicologia do
século XIX e com os saberes interpretativos sobre o sonho, também
criticados na constituição do deciframento psicanalítico. Vimos que, para
empreender o corte epistemológico com os saberes psiquiátrico e
psicológico, a psicanálise abandonou o lugar soberano do intérprete e
retirou a sustentação deste num código universal de verdades. A mesma
problemática se colocou no que se refere aos métodos de interpretação do
senso comum. O método da interpretação simbólica conferia à “intuição”
do intérprete e ao seu código “estético” uma soberania absoluta, enquanto o
método tradicional de deciframento atribuía uma soberania absoluta ao
sentido definido pelo saber interpretativo de um livro de relações fixas,
apagando a singularidade do sujeito.

Freud mantém a relevância que esses métodos tradicionalmente conferem


ao sentido dos sonhos, mas propõe uma inovação fundamental e aponta
onde o deciframento psicanalítico rompe com esta tradição hermenêutica.
Nesta, a interpretação sempre foi considerada como uma operação racional
que pressupunha a priori a existência de um sentido na configuração a ser
interpretada, como assinalou Foucault em relação à hermenêutica no
Renascimento: “Apenas existe comentário se, sob a linguagem que se lê e
se decifra, cone a supremacia de um texto primitivo...”17

O campo do interpretável tinha, no Renascimento, uma extensão


incalculável para nós. Herdeiros das revoluções científicas dos séculos
XVII e XVIII, ocupamos vários dos seus espaços com uma racionalidade
causai e explicativa que transformou profundamente as concepções
originárias do universo cósmico, do mundo das plantas e dos animais. Eles
deixaram de ser signos de um “texto primitivo” e se tornaram universos
restritos, regulados por uma racionalidade causai que visa a sua
classificação e explicação.18

Não vamos sumariar aqui este percurso, tratado de forma rigorosa por
Foucault em sua arqueologia das ciências humanas. Importa ressaltar, no
entanto, que na segunda metade do século XIX só se admitia a existência do
sentido em um campo muito restrito, situado aliás fora do domínio da
ciência. Freud postula a existência do sentido no plano da realidade
psíquica, e não no contexto da realidade material, ocupado pela
racionalidade das ciências naturais. Postula também que no deciframento
psicanalítico a interpretação pretende- apreender um sentido que existe, e
não criar um sentido novo, pela linguagem do intérprete, a partir dos signos
apresentados na configuração a ser interpretada. Laplanche pontua
rigorosamente esta questão quando assinala que a palavra germânica
Deutung tem um significado bastante “realista”, pois circunscreve uma
operação racional que visa a captar o sentido na sua especificidade,
considerando-o inscrito numa singularidade. Não se trata de um sentido a
ser recriado pelo intérprete, segundo um outro código.19

Se o sentido está inscrito em sua própria particularidade e não constitui algo


a ser criado pelo intérprete, deve-se retirar desde logo a soberania
tradicionalmente concedida ao código interpretativo e à figura deste mesmo
intérprete. Submetidos às vicissitudes do “escrito cifrado”, nenhum dos dois
pode recuperar o sentido no registro que lhes interessar. Isso não vale só
para a intepretação simbólica, mas também para o deciframento tradicional,
no qual o código estava definido a priori e a “arte da interpretação” atribuía
à “intuição” do intérprete um lugar fundamental.

Esta singularidade do sentido, definida pelo deciframento psicanalítico,


pressupõe algo fundamental: uma relação de fundação entre sentido e
interpretação. O sentido do sonho já constitui uma interpretação do sujeito
sobre o seu próprio desejo, de modo que o trabalho de deciframento visa a
explicitar a interpretação cifrada do sonho. O “escrito cifrado” não é uma
combinatória de marcas/signos cuja interpretação demande um código que
lhe seja exterior, mas uma combinatória que se ordena por um código
simbólico determinado. Nestes termos, a interpretação psicanalítica passa a
ser a tentativa de descobrir um código simbólico, explicitando suas regras
de funcionamento e pontuando o sentido singular que ele articula num
determinado contexto onírico.

Freud formula literalmente que a narrativa onírica já é uma interpretação.20


Cabería ao deciframento psicanalítico a remontagem deste processo
interpretativo que se encontra materializado nas imagens do sonho.
Fundamenta-se aí a formulação freudiana, que destacamos anteriormente,
sobre a verdade da subjetividade. Esta pressupõe uma concepção na qual o
sujeito é basicamente sentido e, por isso, deve ser também
fundamentalmente intérprete. Portanto, o processo psicanalítico supõe
necessariamente a intersubjetividade, pois, na relação analítica, a figura do
analisandose insere a priori na posição de um intérprete e não na de um
objeto interpretável.

No contexto intersubjetivo do processo psicanalítico o analista-decifrador


precisa permitir que o sujeito-interpretação possa falar sobre o que está
marcado no registro das imagens oníricas, para abrir as fendas que
possibilitem descobrir os percursos de sua enunciação pelo discurso. Porém,
para que este sujeito possa falar inteiramente cabe superar os obstáculos da
censura, incluindo-se nela principalmente o discurso do analisando que se
dirige essencialmente para a realidade material e seus referenciais objetivos.
A regra fundamental das associações livres pretende suspender a ação deste
discurso voltado para a realidade material e fazer emergir o sujeito-
intérprete, qu< se articula no contexto da realidade psíquica.21

Para que o sujeito-intérprete possa falar e articular-se através da palavra, o


analisando deve dizer tudo aquilo que lhe vetn ao espírito, mesmo o que
aparentemente não faz sentido, se a referência for a realidade material. A
figura do analista valoriza tudo o que é relatado no sonho (mesmo o que é
considerado secundário para a concepção de verdade no registro da
realidade material), destacando cada detalhe das seqüências e das imagens
oníricas (mesmo as pequenas variações de forma e de intensidade
cromática) e atribuindo a cada imagem a condição de fragmento de um
discurso que ainda não pode articular-se no plano da palavra.

Pelo método do deciframento o analista visa a inicialmente desarrumar o


conteúdo manifesto22 do sonho, que se formaliza definitivamente através do
que Freud denomina elaboração secundária,23 para apreender as cadeias
associativas que articulam o conteúdo latente,1* isto é, os pensamentos que
ordenam o “escrito cifrado”. Esta é a maneira pela qual se pode apreender o
trabalho de interpretação do desejo, realizado pelo sujeito no processo do
sonhar.

A reordenação do discurso manifesto do sonho pelo trabalho de elaboração


secundária é o produto de uma organização que visa a transformá-lo num
discurso que se adeque às regras de verdade da realidade material,
tornando-o apto a se articular com a consciência, centrada na adaptação à
realidade material. Pelo método das associações livres, cabe desarrumar
essa ordenação e ir além dessa organização narrativa, fracionando o
discurso manifesto em quantos fragmentos forem necessários e atribuindo a
cada fragmento uma espessura, como centro de cruzamento de grande
número de cadeias associativas, com a finalidade de se apreender as marcas
constitutivas da realidade psíquica de um sujeito singular.25
A inovação fundamental introduzida por este método de deciframento é
que, no procedimento das associações livres, cada passagem de um
elemento a outro, cada percurso no deslizamento minucioso através dos
detalhes, cada caminho aberto nas ramificações das diversas cadeias
associativas, é o próprio trabalho de interpretação. Estes procedimentos de
fragmentação contínua não constituem apenas uma preparação para uma
interpretação final que englobará todas as associações. São interpretações
em si mesmas e, pelo próprio desdobramento do processo, conduzem
progressivamente a outras interpretações. Cada percurso associativo
decifrado abre novas interrogações e se encaminha para outras redes de
sentido que se encontram materializadas nas encruzilhadas das cadeias
associativas.

Para Freud, o sentido do sonho é necessariamente diversificado e plural em


sua singularidade. Sua tessitura constitui uma construção arquitetônica que
leva à postulação fundamental de que o sentido do sonho é sobredeter-
minado.26 Ao se desdobrarem pelo deciframento numa grande variedade de
contextos e de cadeias associativas, as imagens oníricas revelam múltiplas
significações.

Os sentidos que progressivamente se revelam também anunciam a


singularidade específica deste sonho particular, que se articula pelo
desdobramento revelador das associações. Porém, cada nó na articulação
entre estas cadeias associativas também é o início de novos enigmas que
difratam um centro totalizador e multiplicam as linhas de interrogação,
retomadas por outros sonhos e outras formas de rememoração elaborativa
no processo psicanalítico. Abrem-se assim outras cadeias associativas. Por
isso, dissemos numa outra pesquisa que o processo analítico, apesar de
pretender elucidar enigmas, se realiza pela abertura necessária de novos
enigmas.27 Esta abertura é uma das condições de possibilidade do processo
analítico, que não abole aquilo que o toma possível — a angústia de
castração — e termina anunciando o enigma da feminilidade,2* que
simboliza a totalidade dos enigmas entreabertos no curso da experiência
analítica.29

Para recuperar essas inserções que sinalizam o sentido, o deciframento


psicanalítico não se vale de um código de significação definido a priori.
Nem tampouco transforma a ordem e a linguagem específicas em que elas
se enunciam, para submetê-las à ordem e às fontes da linguagem do
intérprete, como se realizava na interpretação simbólica e no deciframento
tradicional. Ao contrário, é fundamental que os fragmentos associativos se
abram em ramificações progressivas, cujos desdobramentos e percursos
devem ser acompanhados.

Nesta perspectiva, a relação de oposição entre conteúdo manifesto e


conteúdo latente não pode ser absolutizada, como assinala Laplanche com
pertinência,50 pois o conteúdo latente de certo conteúdo manifesto se
transforma no conteúdo manifesto de outros deslizamentos e ramificações
associativas. Num processo incessante, a interpretação compõe uma
ramificação complexa, que fotja uma arquitetura infinita de cadeias
associativas.

Portanto, a figura do analisando é parte constitutiva do processo de


deciframento, pois é condição fundamental para um empreendimento que
abre sucessivas cadeias de associação para a pontuação de enigmas. Sem a
participação ativa do analisando não existe qualquer possibilidade de existir
interpretação, pois o deslizamento através dos nós das cadeias associativas
se realiza fundamentalmente através dele, pelo seu trabalho de articulação
de sentido. Então, a figura do analisando compõe a tessitura de
significações de sua própria história, reencontrando os eixos centrais que
delineiam seus cenários e suas personagens até então naturalizadas, de
forma a descobrir os enigmas que lhe instigam a elucidar e preencher os
vazios de sua narrativa histórica. Esta se reconstitui progressivamente
enquanto verdade singular do sujeito, pontuando-se através dessas
marcações e que estabelecem as linhas constitutivas desta subjetividade.

Ao contrário do método de interpretação simbólica e do deciframento


tradicional, a interpretação psicanalítica não é um ato pontual que pretenda
em si mesmo a totalização do sentido. Ela adquire um estatuto bastante
específico, e sua materialidade pode ser mais bem representada pela figura
do verbo do que pela do substantivo. Com efeito, enquanto movimento
incessante de deslizamento de um fragmento discursivo a outro, a
interpretação psicanalítica se transforma num interpretante ou, dito de outra
forma, num processo de interpretação, como Pontalis31 a caracterizou.
Enquanto processo de interpretação que não se restringe ao ato pontual e
definitivo, a decifração psicanalítica anuncia a necessária e interminável
temporalidade de um processo de desvendamento do sentido.

Processo de elucidação de enigmas, o deciframento psicanalítico conduz


necessariamente à abertura de novos enigmas, exatamente porque o analista
interpretante não deve responder aos enigmas com seus códigos subjetivos
e com os códigos explicativos referentes à realidade material. Com isso, o
percurso psicanalítico se impõe como um processo interminável, pois
impele o sujeito a um movimento de interrogação incessante, que
permanentemente recoloca as encruzilhadas de sua história, materializadas
nas inserções presentes nas suas múltiplas cadeias associativas.

Ao impor um trabalho incessante de retorno às origens históricas da


subjetividade, o deciframento analítico se torna uma genealogia do sujeito.
Não se trata, bem entendido, de uma origem pontual, mas múltipla e
diversa. A realidade psíquica não tem um início absoluto, pois o sujeito se
constitui ao mesmo tempo como intérprete e como interpretação. O sentido
sempre implica a interpretação e vice-versa.

Pelo destaque conferido a estas coordenadas fundamentais do deciframento


psicanalítico, concordamos com a rigorosa formulação de Foucault sobre
uma das características básicas da interpretação freudiana, postulada como
uma tentativa de retorno a uma origem sempre fugidia e móvel, jamais
atingida de forma absoluta. Ela remete sempre para um mais além
originário, impondo assim, ao intérprete, o deslizamento infinito pelas
cadeias de associação:

“Já se vê em Marx, que não interpreta a história das relações de produção,


mas interpreta uma relação que já se dá como interpretação, visto que se
apresenta como natureza. Da mesma forma, Freud não interpreta signos,
mas interpretações. Com efeito, sob os sintomas, o que Freud descobre? Ele
não descobre, como se diz, ‘traumatismos’, mas fantasmas, com sua carga
de angústia, isto é, um núcleo que já é no seu próprio ser uma interpretação.
A anorexia, por exemplo, não reenvia ao desmame como o significante ao
significado. Como signo, sintoma para interpretar, ela reenvia aos fantasmas
do seio materno mau, que é uma interpretação, que já é um corpo falante. É
por isso que Freud não tem que interpretar de outra forma, senão na
linguagem de seus enfermos, o que seus enfermos lhe oferecem como
sintomas; sua interpretação é a interpretação de uma interpretação, nos
termos em que esta interpretação foi dada. Sabe-se que Freud inventou o
‘superego’ no dia onde um enfermo lhe disse: ‘eu sinto um cão sobre
mim’.”32

Esta formulação teórica é fundamental para a leitura que estamos realizando


do deciframento freudiano. Através dela, Foucault pretende encontrar um
dos pontos de articulação da concepção freudiana de interpretação com as
concepções presentes nos pensamentos de Marx e de Nietzsche, de forma a
caracterizar um certo perfil inovador da modernidade no que se refere à
“possibilidade de uma hermenêutica”.33 Foram transformados os
fundamentos do espaço simbólico no qual os signos podem ser signos.34
Assim, para Freud a interpretação remete de modo infinito a uma
interpretação, na medida em que a verdade do sujeito já é uma
interpretação. Portanto, resultante ele mesmo de uma interpretação, o signo
não é a matéria-prima ingênua que nunca recebeu uma operação
interpretativa.

Uma das representações mais antigas do processo psicanalítico é a figura da


arqueologia, que já se encontra presente na correspondência entre Freud e
Fliess e atravessa todo o pensamento freudiano como uma metáfora
recorrente.35 O trabalho psicanalítico é caracterizado como um processo
análogo ao da redescoberta de antigas civilizações, que existiram antes e
estão soterradas pelas civilizações mais recentes. A identificação entre
psicanálise e arqueologia assinala incisivamente que o sentido singular da
história do sujeito se encontra marcado em múltiplas inscrições. Como as
antigas civilizações desaparecidas, a verdade da realidade psíquica se
encontra soterrada pela verdade definida pelos cânones da realidade
material.

O arqueólogo procede ao levantamento das diversas camadas de sedimentos


superpostos para reconstruir as civilizações antigas. De forma análoga
procede o psicanalista no seu deciframento, explorando as diversas
sedimentações de sentido» que já são interpretações das marcas originárias.
.Esta metodologia freudiana, na qual o deciframento se realiza através das
camadas superpostas de sedimentação do sentido, recebe a sua primeira
formalização teórica em A psicoterapia da histeria,36 texto fundamental que
sublinha a direção definitivamente assumida pelo método psicanalítico.37

Na verdade, encontramos a formulação originária deste método na análise


de Elisabeth von R., de 1892, referida por Freud como a sua primeira
análise completa de uma histeria. Por isso mesmo, suas démarches
metodológicas foram minuciosamente relatadas nos casos clínicos dos
Estudos sobre a histeria:

“Portanto, em primeiro lugar, eu fui capaz de fazer sem hipnose, com a


reserva, contudo, que poderia fazer uso dela posteriormente, se no curso da
confissão surgisse algum material cuja elucidação a sua ‘memória’ não
fosse capaz. Deste modo, resultou que nesta, a primeira análise completa de
uma histeria realizada por mim, eu alcançasse um procedimento que
desenvolví posteriormente num método regular e delibera-damente
empregado. Este procedimento consistia na eliminação camada por
camada do material psíquico patogênico, e gostaria de compará-lo com
a.técnica de escavamento de uma cidade enterrada. Eu começava
conseguindo que o paciente me dissesse o que lhe era conhecido, anotando
cuidadosamente as passagens nas quais alguma associação permanecia
obscura ou alguma ligação na cadeia causai parecia estar ausente.
Posteriormente, cu penetrava cm camadas mais profundas de sua
memória...”38

Pelo deciframento, num processo equivalente ao da escavação


arqueológica, a psicanálise pretende reencontrar os eixos fundamentais que
sustentam as marcas significativas da subjetividade, transformar estas
marcas em palavras e fazê-las irromper no contexto da realidade material.
Esta remontagem da genealogia do sujeito constitui o processo
psicanalítico. Representada como arqueologia, a psicanálise se desdobra
numa outra oposição, também recorrente, que atravessa todo o pensamento
freudiano desde a época do diálogo com Fliess.” Trata-se da contraposição
entre as figuras da história e da pré-história, que marcam dois tempos
diferenciados da estrutura subjetiva. Enquanto a figura da pré-história
aponta para a ordem da verdade subjetiva que se articula no contexto da
realidade psíquica, a figura da história aponta para a verdade definida no
contexto da realidade material. A metáfora da pré-história representa todas
as marcas inscritas no inconsciente, que delimitam o sentido da
singularidade do sujeito mas não se articulam no registro do discurso
verbal. A metáfora da história, por sua vez, diz respeito ao que figura no
registro da consciência e do ego do sujeito.

A oposição pré-história/história se desdobra em outras oposições


conceituais que são fundamentais no pensamento freudiano. Uma delas se
estabelece inicialmente entre os processos primário e secundário, cujas
características fundamentais, em termos de oposições, estão indicadas na
presença/ausência de tempo e na presença/ausência de regulação pelos
cânones da lógica formal.4041 Esta oposição processo primário/processo
secundário se desdobra em outra, que se caracteriza pela contraposição
entre a representação de palavra e a representação de coisa, termos
fundamentais que acabarão por definir as tópicas do inconsciente e a do
pré-consciente/consciente, sustentando o que define em última instância a
ruptura estrutural entre as figuras da pré-história e da história.42

O processo psicanalítico pretende trazer para o registro da história o que,


até então, existia apenas no registro originário da pré-história, procedendo
como num trabalho arqueológico de reconstrução de uma civilização do
passado, soterrada pelo impacto das civilizações mais modernas. Para isso,
é necessário recuperar para o registro temporal da história o que está
situado fora dele, fazendo o registro da representação de palavra
reapropriar-se do registro da representação de coisa, de modo que a
realidade psíquica possa reconstituir-se no plano do discurso. Assim, a
arqueologia do sentido impõe necessariamente a genealogia do sujeito, e
ambas implicam a inscrição temporal de fragmentos da pré-história do
sujeito que, até então, se inseriam num espaço caracterizado miticamente
pela ausência desse registro temporal. Enfim, o processo psicanalítico de
deciframento tenta exatamente inscrever esses fragmentos da experiência
subjetiva na ordem da temporalidade.

As fronteiras do deciframento psicanalítico


Nem todos esses pressupostos teóricos e consequências da metodologia da
psicanálise foram efetivamente destacados em A interpretação dos sonhos,
obra princeps de 1900. Diversos efeitos dessa ruptura teórico-metodológica
só vieram a formalizar-se numa etapa posterior do pensamento freudiano,
com o paulatino desdobramento do método do deciframento para as demais
formações do inconsciente, entre as quais o sonho, que funcionou como um
paradigma fundamental.

Nesta perspectiva, a experiência psicanalítica originária é o espaço


simbólico e operacional no qual a metodologia do deciframento se desdobra
e atinge toda a sua potencialidade, encontrando, em contrapartida, os seus
limites epistemológicos de possibilidade. Não poderia ser diferente. Com
efeito, se a clínica psicanalítica se fundamenta na intersubjetividade, o
ponto fundamental de sustentação do deciframento é a relação com o outro,
o que permite explicitar as consequências inovadoras dos pressupostos
presentes em A interpretação dos sonhos.

O conceito de pulsão constitui o último pressuposto teórico que justifica a


especificidade epistemológica do deciframento psicanalítico, considerado
como deslizamento insistente no campo das representações, que percorre
frag-mentariamente o psiquismo, do particular ao particular. Este
pressuposto é fundamental, principalmente na sua concepção-limite de
pulsão parcial, pois é ele que possibilita fundamentar as teorias sexuais
infantis e interpretar a sexualidade infantil como perversidade polimorfa.
Por isso, a partir do caso Dora,43 o lugar fundamental conferido no processo
psicanalítico ao conceito de transferência — retirado do lugar periférico que
ocupava em A psicote-rapia da histeria** — revela a incidência, no plano
da experiência psicanalí-tica originária, do conceito de pulsão. A análise da
transferência revela as potencialidades dos pressupostos do deciframento
psicanalítico.

Adiante, quando tematizarmos a problemática do campo transferenciai,


poderemos destacar como esta metodologia inovadora de deciframento se
constitui paralelamente ao estabelecimento das coordenadas fundamentais
da experiência analítica originária, retirando então todas as conseqüências
teóricas dos pressupostos estabelecidos. A espessura intersubjetiva da
experiência transferenciai é o cenário que possibilita estes desdobramentos
teóricos e impõe as subseqüentes transformações da metodologia
psicanalítica, que se constrói através de várias rupturas, rigorosamente
marcadas pela ordenação do deciframento. Assim, na medida em que se
consolida sua oposição à estratégia da construção, a estratégia da
interpretação se remodela e se circunscreve conceitualmente com maior
precisão.

Com efeito, a estratégia da construção psicanalítica é um procedimento


metodológico diverso da interpretação. Ao contrário desta, a construção
pretende delinear um contexto histórico de origem, isto é, um cenário —
inscrito no tempo — que seria o eixo ordenador das diversas estratificações
das inserções do sentido. Por isso o procedimento se chama construção,
pois implica uma ruptura com a estratégia do deciframento, considerada
como deslizamento que se realiza fragmentariamente de inscrição em
inscrição. Vejamos como Freud contrapõe as duas estratégias:

“O termo interpretação se refere à maneira de se ocupar com um elemento


particular do material, uma idéia súbita, um ato falho etc. Mas pode-se
falar em construção quando se apresenta ao analisado uma parte de sua pré-
história esquecida...”45

Criação do processo psicanalítico, a construção se contrapõe ao sentido


realista que se constitui pelo deciframento, sendo formulada no setting
analítico pela figura do analista, sem a participação direta da figurado
analisando. A construção não se acompanha de uma correspondente
rememoração do analisando, ao contrário do que se realiza na interpretação,
na qual este último continua as pontuações do analista com novos
deslizamentos associativos.46 Porém, na perspectiva freudiana, esta criação
do processo analítico não,se caracteriza pela arbitrariedade, na medida em
que o analista deve utilizar o procedimento da construção num estágio
avançado da análise — o que implica longo trabalho de deciframento —,
articulando-o a partir do uso meticuloso de todos os índices revelados pela
experiência transferenciai.47

A constituição teórica da estratégia da construção aponta não apenas para


que a estratégia do deciframento se estabeleça com maior rigor, como
também circunscreve os limites da interpretação psicanalítica. Mas, num
momento posterior da história da psicanálise, se perde a cuidadosa
utilização dessa estratégia, tal como usada no processo psicanalítico
realizado segundo a perspectiva freudiana. Os conceitos de interpretação e
de construção se fundem, e suas diferenças fundamentais se apagam.

Freud pontua que a construção é a criação, pela figura do analista, de algo


até então inexistente no registro mnêmico do analisando. Para o sujeito,
portanto, esse algo passa a existir a partir da experiência analítica, que
sustenta transferencialmente a sua veracidade.48

A construção psicanalítica aponta para uma concepção mítica da história do


sujeito. A verdade da subjetividade é inscrita fundamentalmente no registro
do mito e não no registro da factualidade cronológica. Assim, a genealogia
do sujeito encontra um cenário mítico para a sua ancoragem, após percorrer
diversas marcas do sentido, que se estratificam e se ramificam em múltiplas
direções. Com isso, evidentemente, se explicita também que, em
psicanálise, a verdade do sujeito é a verdade simbólica, correlato de uma
história mítica do sujeito, como tratou Freud em Moisés e o monoteísmo.*9

Para além do confronto teórico com o conceito de construção, a


especificidade epistemológica do deciframento psicanalítico pode ser
destacada também por sua contraposição a outros instrumentos técnicos que
Freud incorporou parcialmente ao trabalho analítico, particularmente alguns
elementos dos métodos tradicionais de interpretação. Freud retirou tópicos
da interpretação simbólica e do antigo método de deciframento,
principalmente através das contribuições de Stekel, considerado detentor de
grande talento “intuitivo” para estas formas de interpretação50 e autor de
alguns esquemas de simbologia sexual (chave dos sonhos)51 que depois se
tomaram clássicos. Contudo, para a delimitação metodológica da
interpretação psicanalítica é significativa a maneira como estas técnicas se
articulam no interior da estratégia do deciframento.

Vejamos como essa problemática se constituiu no campo psicanalítico.


Apenas em 1911, na terceira edição de A interpretação dos sonhos, Freud
passou a destacar a incorporação dessas técnicas como instrumentos
auxiliares no trabalho de interpretação dos sonhos.52 Stekel foi o grande
promotor desse tipo de técnica,53,54 gerando, na comunidade psicanalítica,
desconfianças consideradas legítimas por Freud. Com efeito, para Freud o
método interpre-tativo de Stekel correspondia a um retorno às formas
tradicionais de interpretação, na medida em que não respeitava a
especificidade do processo associativo do analisando, ou seja, o
deslizamento insistente de uma inscrição particular a outra, sustentando-se
então num código fixo de significações e, mais do que isso, na “intuição”
do intérprete.55

Freud era muito cuidadoso na avaliação teórica dessa modalidade de técnica


e na discussão sobre de que maneiras seria possível utilizá-las no trabalho
psicanalítico. Criticava a maneira como Stekel usava este instrumento, pois
ela se sustentava numa concepção teórica que representava o retomo a um
momento pré-psicanalítico da interpretação e abandonava a especificidade
metodológica do deciframento analítico. A crítica freudiana se desdobra
numa avaliação incisiva sobre a não-cientificidade da técnica de Stekel, que
se sustentava basicamente na “intuição” do intérprete, com o arbítrio e a
dependência que isso implicava em relação às características pessoais
deste.56

Se Freud não considerava cientificamente fundamentada a técnica


“intuitiva” de Stekel, como podia fazer uso da mesma? Como resolvia a
contradição teórica entre o deciframento psicanalítico e as técnicas
tradicionais de interpretação, de forma a tomar possível a articulação entre
ambas?

Antes de mais nada, o interesse de Freud por esse tipo de problema surgiu a
partir de certas questões empíricas colocadas pelo trabalho de interpretação
de sonhos. Apesar das especificidades relativas a cada sujeito, existiam nos
sonhos temáticas recorrentes, que transcendiam diferenças subjetivas. Estes
“sonhos típicos” começaram a ser recenseados por Freud,57 que se
defrontou assim com a problemática do símbolo.58 O universo simbólico se
refere a um contexto que transcende a singularidade subjetiva mas incide
sobre cada sujeito de forma particular, pois os símbolos são utilizados de
maneira singular por cada sujeito.

Se existe um contexto simbólico que transcende o sujeito e incide sobre este


de forma singular, a questão que se coloca é a de tentar circunscrever como
se articulam a universalidade simbólica e a singularidade subjetiva. Por
isso, na perspectiva freudiana, a concepção de interpretação simbólica
necessariamente se transforma. Preserva a mesma denominação, mas não
mantém a significação que lhe fora atribuída por Stekel, que não colocara a
questão freudiana da articulação entre a universalidade do contexto
simbólico e a singularidade do sujeito.

Freud procura delinear os limites teóricos dentro dos quais se pode usar no
trabalho psicanalítico a interpretação simbólica, de forma a tomar
compatível a articulação desta técnica com a metodologia do deciframento,
cujos fundamentos epistemológicos são diferentes. Para ele, a interpretação
simbólica é um procedimento secundário na interpretação psicanalítica e
seu emprego é legítimo como instrumento auxiliar, sempre subsumido à
principalidade metodológica do deciframento que acompanha
meticulosamente o desdobramento associativo.

Após formular que o deciframento se torna praticamente impossível se o


analisando não realiza o processo associativo,59 Freud comenta que este
obstáculo pode ser superado se o analisando “empregou elementos
simbólicos no conteúdo do sonho”.60 A interpretação se torna possível na
medida em que o analista lança mão de um “método secundário e auxiliar
da interpretação do sonho”.61 Assim, Freud destaca pplo menos dois tópicos
fundamentais para circunscrever os limites de validade epistemológica da
técnica da intepretação simbólica:

1. A existência de um obstáculo no processo das associações livres,


sem o que não se deve utilizar a interpretação simbólica, pois o
deciframento analítico detém efetiva principalidade epistemológica no
processo de interpretação;

2. Esta condição necessária para a utilização da interpretação


simbólica não constitui em si mesma condição suficiente. Nem todo
relato onírico autoriza a interpretação simbólica como procedimento
legítimo. A superação do obstáculo existente no processo associativo
só se torna possível quando o sonho efetivamente apresenta uma
ordenação simbólica que possa transcender a especificidade histórica
do sujeito. Neste caso, a interpretação simbólica se transforma num
procedimento legítimo. Mas nem sempre se encontra presente esta
ordenação que transforma o obstáculo acima referido em condição
suficiente para o emprego legítimo da técnica da interpretação
simbólica.

Assim, Freud pôde impor um limite rigoroso para o arbítrio da “intuição”


do intérprete, para investigar a condição de possibilidade e a circunscrição
de um campo psíquico para a existência de uma “simbólica” que
transcendesse os limites de uma subjetividade singular, isto é, de um mundo
de símbolos que pudesse ter alcance universal. Em seguida, ele pôde
postular a possibilidade de uma combinação de ambos os procedimentos no
contexto do trabalho psicanalítico. Nesta articulação em que a técnica da
interpretação simbólica se encontra subsumida ao método de deciframento
psicanalítico, estamos Bastante distantes do método de Stekel e da
hermenêutica pré-psicanalítica, pois Freud pretende construir uma teoria
dos símbolos que encontra o seu fundamento no postulado da existência de
um psiquismo inconsciente:

A técnica de interpretação baseada nas associações livres do sonhador,


como uma regra, nos engana quando nos aproximamos dos elementos
simbólicos do conteúdo do sonho. O respeito pela crítica científica nos
impede de retornar ao juízo arbitrário do intérprete do sonho, como foi
empregado nos tempos antigos e parece ter sido revivido nas interpretações
de Stekel. Somos obrigados, então, tratando-se daqueles elementos do
conteúdo do sonho que devem ser reconhecidos como simbólicos, a adotar
uma técnica combinada que, por um lado, permanece nas associações do
sonhador e, por outro, preenche as lacunas pelo conhecimento dos
símbolos do intérprete. Devemos combinar uma crítica prudente na
determinação dos símbolos com um cuidadoso estudo deles nos sonhos que
particularmente proporcionam claros exemplos de seu uso, de forma a
desmantelar qualquer arbitrariedade na interpretação do sonho. As
incertezas ainda presentes em nossas atividades como intérpretes de sonhos
provêm, em parte, de nosso conhecimento incompleto, o que pode ser
progressivamente melhorado com o avanço futuro, mas provêm também de
certas características dos próprios símbolos do sonho. Eles têm
freqüentemente mais de um e mesmo vários sentidos e, como na escrita
chinesa, a interpretação correta em cada ocasião só pode ser alcançada pelo
contexto. Esta ambigüidade dos símbolos se articula com a característica
dos sonhos de admitir a ‘superinterpretação’, pois, num simples fragmento,
representam pensamentos e desejos amplamente divergentes na sua
natureza.”62

Na concepção freudiana, a interpretação simbólica se abre para uma


minuciosa investigação das formações inconscientes dotadas de um sentido
universal que transcende a singularidade de cada sujeito. Se os princípios
que regulam o sistema inconsciente são similares nas suas diferentes
formações — isto é, são os mesmos no contexto do universo simbólico e no
da subjetividade singular — a interpretação simbólica e o deciframento
psicanalítico podem realizar-se de maneira articulada, possibilitando a
combinação da universalidade simbólica e da singularidade subjetiva.
Enfim, a existência do processo primário (na sua contraposição estrutural ao
processo secundário)63-64 é a mediação necessária para a passagem entre as
diferentes formações do inconsciente.

Assim fundamentada, a investigação desta “simbólica” permite que Freud


constitua um sistema de equivaiências entre diferentes sistemas simbólicos,
como o sonho, o mito, a poesia, o folclore, a linguagem etc.65 O
iníèressepela “simbólica" conduz Freud à exploração minuciosa do
significado das palavras, no seu deslizamento semântico que admite duplos
sentidos, como assinala no texto sobre Abel, onde sublinha a similaridade
entre a linguagem inconsciente e a linguagem “primitiva”, ambas admitindo
a polissemia. 66 Fonte inesgotável de potencialidades simbólicas, a
linguagem é destacada na concepção inovadora proposta por Freud para a
interpretação simbólica, superando assim a concepção de Stekel e
submetendo-a ao deciframento psicanalítico.

Freud pode conferir à concepção da interpretação simbólica — devidamente


transformada — um lugar específico no trabalho psicanalítico. Mas ela
funciona como técnica secundária e auxiliar na metodologia do
deciframento, subsumida à principalidade epistemológica deste. A
validação da interpretação simbólica passa necessariamente pelo processo
associativo do próprio analisando, isto é, pelo que emerge no sujeito como
desdobramentos de sentido que seja capaz de permitir o deciframento do
sonho. Assim, os índices indiretos para a avaliação da veracidade da
interpretação são fornecidos pelas cadeias associativas que se constituem
como efeito da interpretação simbólica, critério que Freud também
considera fundamental no que se refere à validação da veracidade da
construção psicanalítica.67

O posicionamento de Freud frente às concepções teóricas de Groddeck


também destaca de forma prdeisa a especificidade epistemológica do
deciframento psicanalítico e o espaço de validade no qual esta metodologia
interpretativa encontra suas condições de existência. Com Groddeck, a
psicanálise realiza uma nova tentativa de retorno a uma hermenêutica pré-
psi-canalítica, que pressupõe a existência da mesma tessitura simbólica em
todo o mundo da natureza. Assim, o campo do sentido abandona o contexto
do espaço psíquico, onde o deciframento percorre as cadeias associativas do
particular ao particular. Toda a natureza se encontraria submetida ao
funcionamento de uma “simbólica”, de maneira que a oposição entre os
registros somático e psíquico perde qualquer valor conceituai como
referência a duas diferentes ordens, silenciando-se as articulações
específicas que, com o conceito de pulsão, o saber psicanalítico pretendeu
construir entre estes registros.

Encaminhemos esquematicamente esta problemática da pulsão, para situar


um outro nível de fundamentação da metodologia psicanalítica do
deciframento e sublinhar onde se localiza a ruptura de Freud com as
diferentes concepções de interpretação de Groddeck. Assim, poderemos
assinalar também onde se realiza, num outro plano, a ruptura radical do
saber psicanalítico com os saberes psiquiátrico e psicológico, considerando
agora a relação fundamental que a psicanálise estabelece entre as ordens do
corpo e da psique através do conceito de pulsão. No contexto do debate
teórico do fim do século XIX, a articulação entre estas duas ordens encontra
um novo caminho com o discurso freudiano, recebendo deste uma
formulação original.

Definida como um “conceito-limite” entre o somático e o psíquico, a pulsão


procura ultrapassar a relação de oposição tradicionalmente estabelecida
entre essas duas ordens do mundo. Para a teoria psicanalítica, existe entre
ambas um espaço virtual que realiza a mediação fundamental para regular
as passagens de uma a outra:

"... o conceito de ‘pulsão’ aparece como um conceito-limite entre o psíquico


e o somático, como o representante psíquico das excitações oriundas do
interior do corpo e chegando ao psiquismo, como uma medida da exigência
de trabalho que é imposta ao psíquico em conse-qüência de sua ligação ao
corporal.”6*

O psíquico se origina do somático, mas as relações entre ambos não são


simples e diretas, pois é necessário um “trabalho” psíquico para que a
passagem possa realizar-se. Antes de mais nada, este “trabalho” pretende
dominar as “excitações” corporais, em função do desprazer provocado pela
pressão pulsional permanente e a impossibilidade de outras formas de
apaziguamento capazes de instaurar a hegemonia do prazer. Este “trabalho”
de ligação das “excitações” corporais é a fonte originária específica da
psique, considerada como o espaço simbólico onde as “excitações”
corporais se inscrevem no universo da representação. Mediante este
“trabalho” a psique se reproduz permanentemente enquanto tal, enfrentando
uma pressão pulsional insistente e ininterrupta ao longo da vida.69 Enfim, as
relações entre a ordem corporal e a psíquica não são lineares, nem se
restringem a uma causalidade simplificada. Existe uma heterogeneidade
fundamental entre ambas as ordens, e isso exige um “trabalho” de
transposição para que as “excitações” corporais se inscrevam no universo
da representação.

O conceito de pulsão permite pensar de maneira inovadora a passagem


entre os diferentes registros, superando o paralelismo psicofísico que
colocava obstáculos intransponíveis para a psicologia desde a segunda
metade do século XIX e possibilitando a autonomia do campo conceituai da
ordem psíquica, que deixa de ter uma relação de dependência estrita com a
ordem corporal. A ordem psíquica é retirada do lugar de receptáculo
passivo das emanações corpóreas, onde estava restrita à condição de um
epifenômeno ou de simples auto-expressão da ordem somática.

Desde 1891, quando realizou a sua grande obra sobre a afasia,70 o


neurologista Freud já estava se inserindo nesta linha de investigação, pois
questionava de maneira incisiva a teoria localizadora das funções psíquicas
no cérebro e os efeitos deste postulado básico na teoria dominante sobre a
afasia, representada por Wernicke. Esta investigação de Freud questiona as
formulações dos maiores teóricos da neurologia da segunda metade do
século XIX, que se baseavam numa concepção mecanicista do psiquismo.
Criticando os pressupostos mecanicistas da concepção de Wernicke sobre a
afasia e as transformações desta formulação por Lichtheim, caminhando
para uma concepção funcional da afasia que considerava as recentes
investigações neurológicas de Huglings Jackson, Freud se posiciona numa
linhagem teórica que procura resolver de forma original as relações entre o
psíquico e o somático, de modo a considerar esta articulação de maneira a
permitir à ordem psíquica uma autonomia relativa face à ordem orgânica.

Em Sobre a afasia, a problemática do estatuto da linguagem leva Freud a


estas interrogações. Ele considera o campo da linguagem como o espaço
privilegiado onde se poderia investigar esta articulação entre o orgânico e o
psíquico. A passagem entre as duas ordens é formalizada como
transposição, isto é, como inscrição do somático no universo da
representação.” Nesta construção teórica já é básica a oposição conceituai
entre representação de palavra e representação de coisa, tal como será
desenvolvida posteriormente por Freud nas suas obras metapsicológicas
fundamentais.72173

A passagem da ordem somática para a ordem psíquica — antiga


problemática da tradição ocidental desde Descartes — constitui a questão
fundamental do pensamento freudiano. A ordem psíquica propriamente dita
se constitui no plano da representação, figurando a única forma de
existência capaz de regular as “excitações” corporais, que, de outra forma,
seriam uma fonte permanente de desprazer. Assim, o princípio do
prazer/desprazer é considerado como o pressuposto teórico fundamental
que regularia as demandas colocadas para a realização desta transposição.74
sendo a ordem psíquica considerada como o único lugar onde se pode
dominar a insistente “pressão” pulsional.

Enquanto energia — noção com evidente conotação econômica e


quantitativa —, a pulsão teria que se inscrever na ordem da representação.
Esta inscrição constituiría o momento mítico fundamental, no qual se
realizaria a passagem de um registro para o outro, de maneira a possibilitar
a estruturação da ordem psíquica. Por isso, a psicanálise investiga a
problemática das pulsões no plano de seus representantes psíquicos e não
no plano intermediário entre o biológico e o psíquico, no qual as pulsões
seriam consideradas incognos-cíveis. Pelo mesmo motivo, Freud qualifica a
teoria das pulsões como a “mitologia” da psicanálise, e a metapsicologia
como uma “mitologia” das pulsões.75

Situada no contexto da ordem psíquica e considerada através de seus


representantes psíquicos, a pulsão se apresenta como afeto e como
representante-representação. Os destinos da pulsão na ordem psíquica
podem ser apreendidos através das vicissitudes que norteiam a apresentação
destas duas dimensões de sua representação na ordem psíquica. Porém, para
captar a inscrição da pulsão na ordem psíquica confere-se uma evidente
prioridade epistemológica ao representante-representação frente ao afeto,
sendo o primeiro considerado como a inscrição por excelência, o marco da
passagem entre as duas ordens, a única forma em que se pode investigar a
especificidade desta inscrição.

Para a interpretação que estamos encaminhando do pensamento freudiano, é


muito significativo que a investigação da pulsão se realize principalmente
através do representante-representação, que marca a inscrição da pulsão no
universo da representação. Ele é o representante da pulsão no universo da
representação, como pode ser inferido do sentido etimológico da palavra
latina representante, que significa delegado.7077 Enquanto inscrição da
pulsio-nalidade na representação, esta passagem da ordem do corpo para a
da psique define rigorosamente a especificidade teórica deste objeto
construído pelo pensamento freudiano.

Apesar da evidente prioridade epistemológica atribuída ao representante-


representação da pulsão na tópica freudiana, a questão do afeto também nos
permite indicar a especificidade com que Freud define os termos desta
problemática. Com efeito, nos seus escritos metapsicológicos de 1915
Freud distingue conceitualmente afeto e quantum de afeto, considerando
que o primeiro só existe no plano psíquico enquanto experiência de afeto.
Contudo, isto pode ocorrer apenas no plano da consciência, pois o afeto
supõe necessariamente uma vivência concreta do sujeito. Afora isto
existiria o quantum de afeto, conceito-limite entre o psíquico e o somático.”

A oposição ikto/quantum de afeto será retomada em 1923 por Freud, em


outros termos, mantendo-se no entanto esta mesma diferença conceituai que
indicamos. Em O ego e o id esta oposição é formulada por Freud através da
contraposição conceituai entre afeto (experiência afetiva localizada na
ordem psíquica da consciência) e sensação afetiva (situada no espaço
intermediário da pulsionalidade).7’ A sensação afetiva só recebe a qualidade
de afeto quando passa a existir no plano da representação. Sem este
investimento nas cadeias associativas do representante-representação da
pulsão o afeto retornaria ao estatuto econômico de quantum de afeto, isto é,
à ordem da pulsionalidade, localizada miticamente entre o somático e o
psíquico.

O campo da psicanálise é fundamentalmente definido pela inscrição da


pulsionalidade no universo da representação (através do representante-
repre-sentação da pulsão), pelas dificuldades existentes nesta inscrição e
pelos obstáculos sempre colocados para este trabalho de transposição entre
as duas ordens, assim como pela dinâmica constituída por estes
representantes-re-presentação da pulsão movimentados pelo investimento
do afeto. Deslocar o ser da pulsão para um dos pólos da oposição
somático/psíquico e silenciar a inovação teórica que o define como ser de
mediação entre estas duas ordens implica submeter o objeto teórico da
psicanálise a uma transformação fundamental, que conduz a uma concepção
biologizante ou a uma concepção psicologizante deste objeto.

Assim, o objeto teórico da psicanálise é fundado na investigação e na


tentativa de apreender a constituição mítica do psiquismo, considerado
como ordenação da pulsionalidade no universo da representação. Este
objeto teórico sofre uma transformação radical ao se considerar — como o
faz uma parcela significativa do pensamento psicanalítico pós-freudiano,
principalmente o norte-americano, mas também o inglês80 — que a pulsão
(Trieb) pertence fundamentalmente à ordem somática, passando a
considerá-la como “instinto” (Jnstinkt) que se dissolve nas suas fontes
corporais. Transformação análoga de objeto teórico também ocorre se se
considera — como também faz, a partir do movimento culturalista, uma
parcela significativa da psicanálise norte-americana — que a pulsão
pertence à ordem psíquica.

Procurando apreender especificamente a passagem entre o somático e o


psíquico pela inscrição da pulsionalidade no universo da representação, o
pensamento freudiano afirma sua originalidade epistemológica face à
biologia, à psicologia e à psiquiatria. Para enfrentar os impasses colocados
nesta inscrição e realizar esta transposição — que, na ordem psíquica, se
apresenta ligada aos destinos da pulsão — a primeira tópica freudiana
considerou a oposição inconsciente/pré-consciente/consciente. Ocupando
uma posição intermediária entre o psíquico e o somático, a pulsionalidade
estaria aquém desta problemática, pois, como diz Freud, “a oposição entre
consciente e inconsciente não se aplica à pulsão”.81

A problemática de um psiquismo inconsciente só se coloca de forma


legítima quando se consideram as inserções de diversos tipos produzidas
por estas pulsionalidades no universo da representação, de forma a marcar
esta passagem pela diversidade de inscrições. Também por isso, o
deciframento psicanalítico se legitima epistemicamente como a
metodologia adequada para a apreensão deste campo teórico. Com efeito,
esta concepção de pulsão e a demanda para a sua necessária inscrição no
universo da representação nos permitem esperar da metodologia
psicanalítica o deciframento diversificado destas inscrições e de sua
dinâmica na ordem psíquica.

O debate de Freud com Groddeck se situa no centro desta problemática,


pois este último não considera devidamente a especificidade teórica do
objeto teórico em tomo do qual se constitui o campo psicanalítico, a
particularidade da inscrição em pauta e os seus efeitos na dinâmica
intersubjetiva. Por isso, transpõe para o registro do somático operações cujo
espaço epistemológico de validade está no registro do psíquico. Groddeck,
com efeito, considera toda a natureza como sendo marcada pelo sentido,
funcionando exatamente como o registro psíquico e inserida no universo da
representação. Por isso, suas formulações retomam os eixos fundamentais
de uma hermenêutica pré-psica-nalítica.

Ao aplicar a psicanálise ao campo das enfermidades orgânicas, criando uma


linha de investigação que posteriormente se consolidará como medicina
psicossomática, Groddeck pretende expandir o campo de validade do saber
psicanalítico. Considera que todas as enfermidades orgânicas são
constituídas pelas mesmas forças que produzem as denominadas
enfermidades mentais e sustentam as formações psíquicas em geral. Os
sintomas das enfermidades somáticas se constituiríam através dos mesmos
mecanismos descobertos pela investigação psicanalítica na ordem psíquica.
Os conceitos de condensação, deslocamento, processo primário e processo
secundário, entre outros, passam a funcionar como instrumentos para
interpretar as enfermidades orgânicas e nortear a prática clínica de
Groddeck, que usa a técnica das associações livres com a finalidade de
interpretar sintomas orgânicos.’2”

Freud se posiciona de maneira bastante precisa frente à formulação


sistemática de Groddeck, pontuando que o deciframento psicanalítico
encontra a sua condição de possibilidade na tessitura das inscrições
psíquicas e que apenas neste contexto as associações livres constituem uma
técnica fundamentada teoricamente. A interpretação psicanalítica só é
epistemologicamente possível se seguir o minucioso percurso através das
cadeias associativas pelas quais circulam as inscrições pulsionais,
deslizando pelo contexto onde as pulsões se inscreveram no universo da
representação.

Ao querer reencontrar no contexto da ordem somática os mecanismos


presentes na ordem psíquica, Groddeck realiza um salto que transforma a
natureza da ordem biológica. Considera que esta apresenta a mesma
tessitura de sentido presente na ordem psíquica. Esta operação teórico-
metodológica representa um evidente retomo a uma concepção pré-
psicanalítica de interpretação, pois toda a natureza se transforma num
grande texto a ser decifrado, como assinalou Foucault ao tratar da
hermenêutica do Renascimento.*4

Incorporando a poderosa tradição do Romantismo alemão, Groddeck toma


as concepções de Goethe como fontes fundamentais de
inspiraçãtrteórica*5’6 e renova a perspectiva interpretativa do
Renascimento. Mas freud percebe com clareza que essa perspectiva teórica
representa o retorno a um velho modelo hermenêutico. Considera Groddeck
pantagruélico, indicando — com esta identificação com a personagem de
Rabelais87 — que sua$ formulações reconstruíam uma hermenêutica pré-
psicanalítica, na qual toda a natureza era atravessada pelo sentido,
tornando-se um livro a ser totalmente interpretado.
Ao promover o salto da tessitura psíquica do sintoma mental para o
contexto do sintoma orgânico e pretender conferir a toda a natureza a
estrutura do sentido, Groddeck realiza uma construção psicanalítica — para
retomar o conceito de Freud —, embora pretenda estar realizando uma
interpretação na perspectiva do deciframento. Com isso, Groddeck adota
corno metodologia fundamental de interpretação a “simbólica” de Freud,
transformada e deslocada do lugar secundário e auxiliar que ocupava na
metodologia freudiana de deciframento. Recoloca-se, na relação
psicanalítica, o arbítrio do intérprete, que Freud pretendia limitar
epistemologicamente. Com isso, se anunciam também certos modelos da
prática psicanalítica contemporânea, realizados sobretudo por M. Klein,
cuja concepção de interpretação sO fundamenta no modelo freudiano de
construção, como veremos adiante.

A concepção freudiana da metodologia do deciframento tio? permite


reencontrar as diferenças fundamentais entre o pensamento freudiano e o
pensamento jungiano sobre o saber psicanalítico. Com efeito, o
procedimento freudiano que estabelece o deslizamento permanente através
d^s cadeias associativas, percorrendo minuciosamente as inscrições do
particular ao particular no campo das representações, atravessando todas as
ramificações indicadas pelo eixo do sentido, circunscreve rigorosamente o
que Freud considera ser o alo de psicanalisar. Nesta perspectiva, não se
pretende inserjr em qualquer outro código de significação o sentido que se
constitui pela emergência das inscrições no processo de interpretação. Por
isso, o método preconiza a abertura permanente a todas as direções
enunciadas pelo analisando.

Estes dois tópicos não estão estabelecidos na concepção jungiana, que


confere prioridade metodológica à síntese. Ao articular imediatamente, com
outras inscrições, cada marca que se diferencia, ela coloca um obstáculo
fundamental para que a abertura das cadeias associativas se maJize de modo
tendencialmente infinito pelo trabalho do analisando. Além disso, com a sua
concepção de interpretação simbólica, Jung pretende traduzir npm outro
código de significação as marcas pulsionais que se revelam na experiência
do sentido e que vão sendo reveladas pelo processo psicanalítico,”
Estes dois procedimentos metodológicos de Jung acabam por se encontfar
num ponto básico, que apresenta dupla face: a des-sexualização Jas pulsões
e a orientação “moral” e “espiritual” que a concepção jungiana pretende
impor aos analisandos. Por isso, na teoria de Jung o complexo de Edipo se
transforma em “símbolo” de alguma outra coisa, silenciando a violência
amorosa e agressiva que o caracterizava na teoria freudiana, e a libido se
dissolve numa amorfa “energia psíquica em geral”.”

Preocupado em manter a inovação epistemológica representada pela,


metodologia do deciframento psicanalítico, Freud não pôde acompanhar
Jung nas transformações que este procurava imprimir a esse saber. Elas
levariam a silenciar a teoria das pulsões, uma das problemáticas
fundamentais do campo psicanalítico. Acompanhar estas transformações
indicadas por Jung implicaria silenciar a concepção de pulsão na sua
radicalidade — isto é, como pulsão parcial —, pois o procedimento
psicanalítico de percorrer insistentemente fragmento por fragmento,
deslizando através de várias cadeias associativas que abrem o sentido na
direção da diversidade, pressupõe necessariamente a multiplicidade
pulsional e o seu arranjo combinatório diversificado em diferentes
contextos psíquicos.

1. Sobre o destaque conferido por Freud para estes fenômenos


residuais, no contexto da psicologia do século XIX, ver os comentários
de J. Lacan, “Au-delà du principe de realité". In Écrits. Op. cit.

2. Sobre a relação de subordinação teórica c metodológica do saber


psicológico ao saber psiquiátrico no século XIX, ver G. Canguiíhem,
“Qu’est-ce que la psychologie?" (1956). In: Études d'histoire et de
philosophie des Sciences. Paris, Vrin, 1968, p. 365-381.

3. S. Freud, The interpretation of dreams (1900), capítulo I,p. l.In: The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume IV. Op. cit. O grifo é nosso.

4. S. Freud, idem, p. 83-87.

5. G. T. Fechner, Elemente der Psychophysik. Leipzig, 1889. Volume


2, p. 520-521. Citado por S. Freud, idem, p. 48.
6. S. Freud, idem. Volume V, capítulo 7.

7. S. Freud, idem. Volume IV, p. 41.

8. S. Freud, idem, p. 41-42. O grifo é nosso.

9. S. Freud, idem, p. 96. O grifo é nosso.

10. S. Freud, idem, p. 5-6.

11. S. Freud, idem, capítulo 2, p. 106-121.

12. S. Freud, idem, p. 96-97.

13. S. Freud, idem, p. 97.

14. S. Freud, idem, p. 98-99.

15. S. Freud, idem, p. 97.

16. S. Freud, idem, capítulo 2, p. 118-121 e capítulo 3.

17. M. Foucault, Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966, p. 56.

18. M. Foucault, idem, capítulos 3, 4, 5, 6.

19. J. Laplanche, “Interpréter [avec] Freud”. In L’arc, número 34. Aix-


en-Provence, 1968, p. 38.

20. S. Freud, The interpretation of dreams. In The Standard Edition of


the complete psychological works of Sigmund Freud. Op. cit. Volume
V, capítulo 4, p. 498-501.

21. S. Freud, idem. Volume IV, p. 98,102-103, 241-242, 280-281, 307,


311; volume V, p. 353, 360, 523, 527-532, 636-641, 683-685.

22. S. Freud, idem. Volume IV, capítulos 3, 4, 5.

23. S. Freud, idem. Volume V, capítulo 6.


24. S. Freud, idem. Volume IV, capítulos 3, 4, 5.

25. S. Freud, idem. Volume V, capítulo 6.

26. S. Freud, idem. Volume IV. p. 149,219,283-284,306-308,309, 330;


volume V, p. 489, 505, 652-653.

27. J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica. Segunda parte, op.


cit.

28. S. Freud, Analysis terminable and interminable (1937), capítulo 8.


In The Standard Edition of the complete psychological works of
Sigmund Freud. Volume XXIII. Op. cit.

29. J. Birman; Freud e a experiência psicanalítica. Segunda parte, op.


cit.

30. J. Laplanche, "Interpréter [avec] Freud”. In L'arc, número 34. Op.


cit., p. 39-40.

31. J. B. Pontalis, “Interpréter en analysc”. In Bulletin de 1’Association


Psychanaty tique de France, número 5. Paris, 1969, p. 5-11.

32. M. Foucault, "Nietzsche, Freud, Marx”. In Nietzsche. Cahiers de


Royammont. Philosophie n* VI. Paris, Minuit, 1967, p. 189-190.

33. M. Foucault, idem, p. 185.

34. M. Foucault, idem, p. 186.

35. Carta de Freud a Fliess, 21 de dezembro de 1899. "Lettres a


Wilhelm Fliess, Notes et Plans” (1887-1902). In La naissance de la
psychanalyse. Op. cit., p. 272.

36. S. Freud, "The psychotherapy of hysteria" (1895). In S. Freud e B.


Breuer, Studies on hysteria. In The Standard Edition of the complete
psychological works of Sigmund Freud. Volume II. Op. cit., p. 287-
292.
37. Kaufmann articula este método de investigação por camadas,
empreendido por Freud, às recentes inovaçOes metodológicas no
campo da pesquisa histórica e na investigação da linguagem,
destacando a importância dos trabalhos de M.Müller, G. Curtius, J.
Grimm e Bopp. Sobre isto, ver P. Kaufmann, “Freud: la théorie
freudienne de la culture”, capítulo 3. In F. Châtelet, Le XX e siècle.
Histoire de la philosophie. Volume VIII. Paris, Hachette, 1973. Sobre a
significação epistemológica destas investigações e a relevância
histórica destes autores, podem ser consultados: E. Cassirer, La
philosophie des formes symboliques. Volume I. Le langage, capítulo 1.
Paris, Minuit, 1972; M. Foucault, Les mots et les choses. Op. cit.,
capítulos 8 e 9.

38. S. Freud, “Frãulein Elisabeth von R.” In S. Freud e B. Breuer,


Studies on hysteria. In The Standard Edition ofthè complete
psychological works of Sigmund Freud. Volume II. Op. cit., p. 139. O
grifo é nosso.

39. Cartas de Freud a Fliess, 6 de dezembro de 1896 e 10 de março de


1898. “Lettres a Wilhelm Fliess, Notes et Plans" (1887-1902). In La
naissance de la psychanalyse? Op. cit., p. 153-160, p. 218.

40. S. Freud, “The psychology of the dream-processes", G. e F. In The


interpretation of dreams, capítulo 7. In The Standard Edition of the
complete psychological works cf Sigmund Freud. Volume V. Op. cit.

41. S. Freud, “L'inconscient” (1915), capítulo V. In Métapsychologie.


Op. cit.

42. S. Freud, idem, capítulo VII.

43. S. Freud, Fragment of an analysis of a case of hysteria (1905). In


The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume VII, Op. cit., p. 116-120.

44. S. Freud, “The psychoterapy of hysteria" (1895). In S. Freud e B.


Breuer, Studies on hysteria. Idem. Volume II. Op. cit., p. 301-304.
45. S. Freud, Constructions in analysis (1937). Idem. Volume XXIII.
Op. cit., p. 261. O grifo é nosso.

46. S. Freud, idem, p. 260-265.

47. S. Freud, idem.

! 48. S. Freud, idem, p. 257-259, p. 265-269.

! 49. S. Freud, Moses and Monotheism: three essays (1939). Idem.


Volume XXIII. Op. cit.

'I 50. S. Freud, The interpretation of dreams (1900). Idem. Volume V,


capítulo 6, E, p. 350-

! 351.

i 51. S. Freud. idem, capítulo 6, E.

52. S. Freud, idem. Volume IV. “Preface to the Third Edition". Op. cit., p.
XXVII.

I 53. S. Freud, idem.

54. S. Freud, idem. Volume V, E. Op. cit., p. 350.

55. S. Freud, idem, p. 350-351.

56. S. Freud, idem.

57. S. Freud, idem. Volume IV, capítulo 5, D. p. 241-276.

58. S. Freud, idem. Volume V, capítulo 6, E e F, p. 350-425.

59. S. Freud, idem. Volume IV, capítulo 5, p. 241.

60. S. Freud, idem.

61. S. Freud, idem.


62. S. Freud, idem. Volume V, capítulo 6, p. 353. O grifo é nosso.

I 63. S. Freud, idem. Volume V, capítulo 7, E.

64. S. Freud, "L'inconscient" (1915). Capítulos 5 e 6. In


Métapsychologie. Op. cit.

65. S. Freud, The interpretation of dreams (1900). "Preface to the


Third Edition”. In The

; Standard Edition of the complete psychological works pf Sigmund


Freud. Volume IV.

' Op. cit., p. XXVII-XXVIII.

[ 66. S. Freud, The antithetical meaning of primai words (1910). Idem.


Volume XI. Op. cit.,

I p. 155-161.

| 67. S. Freud, Constructions in analysis (1939). Idem. Volume XXIII,


p. 262-265.

í 68. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions” (1915). In


Métapsychologie. Op. cit., p. 18.

69. Sobre alguns dos pressupostos teóricos do conceito de pulsão, ver S.


Freud, “Pulsions et destins des pulsions”. Idem, p. 11-25.

I 70. S. Freud, On Aphasia (1891). New York, International Universities


Press, 1953.

í 71. Sobre a importância teórica de Sobre a afasia na constituição do saber


psicanalítico. ver j I. Nassif, Freud. L‘inconscient„ capítulos 2 e 3.
Paris Galilée, 1977; L. Binswanger,

“Freud et la constitution de la Psychiatrie”, In Discours, Parcours et Freud.


Paris,
i Gallimard, 1970, p. 189-190.

| 72. S. Freud, The intepretation of dreams (1900). In The Standard


Edition ofjfte complete

psychological works of Sigmund Freud. Op. cit. Volume V, capítulo 7.

73. S. Freud; "L’inconscient" (1913). In Métapsychologie. Op. cit.,


capítulo VII.

74. S. Freud, “Esquisse d’une psychologie scientifique” (1895). 1*


parte, Introduçlo, 1, 2, 3, 4. In S. Freud, La naissance de la
psychanalyse. Op. cit.

75. S. Freud, “New introductory lectures on Psycho-analysis” (1933).


Conferência XXXII. In The Standard Edition of the complete
psychological works ofSigmund Freud. Op. cit. Volume XXII, p. 95.

76. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse.


Paris, Prestes Universitaires de France, 1973, p. 412-413.

77. Sobre o conceito de pulsão podem ser consultados: a. Os verbetes


pulsion, représentant da pulsion, représentant psychique, représentant-
représentation, représentation, in J, Laplanche e J. B. Pontalis,
Vocabulaire de lapsychanalyse. Op. cit., p. 359-362, p. 410-416; b. J.
Laplanche, “L’angoisse". Problématiques 1. Paris, Presses
Universitaires de France, 1980; c. J. Laplanche, “La sublimation”.
Problématiques III. Paris, Presses Universitaires de France, 1980; d. 1.
Laplanche, “L’inconscient et le ça". Problématiques IV. Paris, Presses
Universitaires de France, 1981; e. J. Laplanche, Via et mort en
psychanalyse. Paris, Flamarion, 1970; f. M. Tort, “Le concept freudien
de ‘Représentant”’. In Cahiers pour analyse. Volume 5. Ponctuation
de Freud. Paris, Seuil, 1966, p. 37-63.

78. Sobre isto, ver S. Freud, "Le Refoulement”. In Métapsychologie.


Op. cit., p. 53-57; S. Freud, “L’inconscient". Idem, capítulo 3.
79. S. Freud, “Le moi et 1c ça" (1923). In Essais de psychanalyse.
Paris, Payot, 1981, capítulo 2, p. 233-235.

80. Como fica claro na tradução de Strachey para a Standard Edition,


onde Trieb 6 traduzido por instinto.

81. S. Freud, "L’inconscient”. In La Métapsychologie. Op. cit., p. 82.

82. Sobre isto, ver G. Groddeck, “Détermination psychique et


traitement psychanalitique des affections organiques” (1917). In G.
Groddeck, La maladie, Tart et le symbole. Paris, Gallimard, 1969; G.
Groddeck, “Le ça et la psychanalyse” (1925), idem; O. Groddeck,
“Travail du rêve et travail du symptome organique” (1926), idem; O.
Groddeck, Le livre du ça (1923). Paris, Gallimard, 1973.

83. O debate Freud-Groddeck pode ser acompanhado pela


correspondência de ambos: O. Groddeck e S. Freud, “Correspondance
Georg Groddeck-Sigmund Freud". In O. Groddeck, Ça et moi. Paris,
Gallimard, 1977.

84. M. Foucault, Les mots et les choses, capítulo 2. Op. cit.

85. G. Groddeck, “Du langage” (1909). In La maladie, l’art et le


symbole. Op. cit.

86. G. Groddeck, “Caractere et type” (1909). Idem.

87. S. Freud, Correspondance de Sigmund Freud avec le pasteur


Pfister. Op. cit., p. 126-127.

88. Sobre isso, ver C. G. Jung, "The theory of psychoanalysis” (1913),


in Freud and psychoanalysis. In The collected works ofC. G. Jung.
Volume IV. Londres, Routledge & Keagan Paul, 1974; C. G. Jung,
Symbols of transformations (1911-1912). In The collected works ofC.
G. Jung. Volume V. Op. cit.

89. Idem.
A fundamentação de um saber
interpretativo
A inovação estilística do escrito freudiano
Estabelecemos a especificidade epistemológica do deciframento psicana-
lítico, destacamos seus eixos fundamentais de sustentação e procuramos
diferenciá-la tanto das formas tradicionais de interpretação quanto de
tentativas de renovação de uma hermenêutica pré-psicanalítica, levadas a
efeito por alguns discípulos de Freud. Agora, podemos reencontrar a
articulação do pensamento freudiano com a tradição poética, considerando
o procedimento das associações livres, uma das condições básicas da
metodologia psicanalítica.

Em 1919, Havelock Ellis publicou Thephilosophy ofconflict, que tinha um


capítulo (“Psycho-analysis in relation to sex”) dedicado ao exame de
algumas das formulações psicanalíticas fundamentais. Ellis questionava a
cientifici-dade do método freudiano por causa do lugar relevante que este
conferia & técnica das associações livres, rotineiramente utilizada por
alguns poetas para se ausentar das preocupações do mundo real e abrir o
espaço para a emergência do universo imaginário, percorrendo assim,
livremente, os caminhos indicados pelos seus devaneios.1

Para validar sua formulação, H. Ellis se refere a Garth Wilkinson qué,


apesar de médico, era mais conhecido como poeta e místico. Para
possibilitar a criação poética, este último preconizava, em meados do
século XIX, o “método da impressão”, que — idêntico ao procedimento
das associações livres preconizado por Freud2— submetería o poeta às
mesmás condições exigidas à figura do analisando no trabalho
psicanalítico.

Frente às formulações de H. Ellis, Freud não se mostra preocupado em


reivindicar originalidade. Recorda inicialmente que Otto Rankjá lhe
assiaala-ra a similaridade existente entre a técnica analítica e o
procedimento sugerido por Schiller em 1778, em carta a Kõrner, para
possibilitar a criação poética, afastando as preocupações imediatas com o
cotidiano e permitindo a emergência do imaginário.3 Esta passagem de
Schiller já tinha sido referida por Freud na segunda edição de A
interpretação dos sonhos como uma comprovação histórica importante para
a validade desse instrumento analítico.4 Nessa ocasião, Freud afirmara que
o procedimento das associações livres não era inspirado nesse texto, que até
então desconhecia.

Posteriormente, entretanto, Ferenczi leu um pequeno artigo de L. Bõrne, de


1823, intitulado “A arte de se tornar um escritor original em três dias”.
Nele, estavam presentes formulações semelhantes às de Schiller e
Wilkinson. Por meio de um procedimento idêntico à técnica freudiana das
associações livres, Bõrne sugeria um instrumento que considerava seguro
para possibilitar a criatividade literária.5

Freud reconheceu que havia lido o artigo de Bõrne — ganhara as obras


deste autor aos catorze anos e as preservava desde então, tal a impressão e a
admiração que tinham causado em seu espírito — e admitiu que retirara
dele, inconscientemente, a sugestão que lhe conduziu a pensar na técnica
das as- , sociações livres. Esquecido, o procedimento literário de Bõrne foi
reinventado por Freud quando da criação de seu procedimento analítico.4

Assim, o dispositivo metodológico inventado por Freud para constituir a


psicanálise apresenta uma articulação fundamental com o que alguns poetas
preconizavam para dar livre curso aos seus devaneios e se libertar do
discurso voltado para a realidade material, permitindo que o fantasiar se
realizasse sem obstáculos, possibilitando a emergência do sentido e a sua
ordenação no contexto da realidade psíquica. Esta articulação entre saber
psicanalítico e tradição literária é um tópico fundamental, uma das
condições de possibilidade para que se empreenda a metodologia
psicanalítica e se possa realizar efetivamente o ato psicanalítico,
conduzindo à constituição dos seus enunciados teóricos. Nesta articulação
essencial, reencontramos o que Freud formulara em 1908 sobre as relações
entre o devaneio e a criação poética. O fantasmar seria a condição de
possibilidade do devaneio, o eixo central de origem tanto dos sonhos e
devaneios quanto das diferentes formas de criação artística.7
No dispositivo metodológico da psicanálise, a figura do analisando é
convidada a ocupar o lugar de um criador permanente, formando redes de
sentido com os fragmentos estilhaçados de sua pré-história e tendo que
realizar um trabalho insistente de interpretação de sua própria existência. A
história reconstruída pelo deciframento psicanalítico é o analogon de um
romance, isto é, do percurso mítico de uma personagem inserida em
cenários e temporalida-des diversas, através de encontros e desencontros
com outras persoqggens que partilham do seu destino, que delineia a
tessitura de uma criação romanesca.

De forma pertinente, Roustang compara o trabalho da figura do analisando


ao de um romancista.' O analisando articula e rearticula permanentemente a
tessitura de suas associações, numa recomposição insistente dos cenários e
das posições ocupadas por diferentes personagens fantasmáticas.

Figura mítica de primeiro analisando, Freud realizou a criação originária


desse romance que a psicanálise demanda dos analisandos no curso do
processo analítico. A interpretação de sonhos — obra inaugural desse novo
campo de saber que mantém relações fundamentais com a poética — reuniu
vários fragmentos, tendo sido marcada pela posição de analisando ocupada
por Freud (que teceu sua história mítica e reconstruiu suas origens) e pela
elaboração teórica dessa experiência originária. A obra monumental de
1900, que apresenta de modo articulado as vertentes científica e mito-
poética, é permeada nos seus menores detalhes pelas marcas da
(auto)análise de Freud, iniciada com o evento épico da morte de seu pai. No
prefácio à segunda edição,’ o próprio Freud indica este procedimento —
pouco usual em trabalhos científicos do início do século — que atravessa
toda a obra, onde são analisados muitos sonhos do autor. Trata-se da
primeira sistematização teórica do saber psicanalítico, tal como estava
formalizado até então.

No prefácio à primeira edição desse monumento simbólico do saber


psicanalítico, Freud anuncia esta articulação original dos discursos
científico e poético, tão estranha aos procedimentos estilísticos dos
representantes da ciência positivista de então, que silenciavam a presença
do sujeito na figura do cientista. Freud sublinha esta característica, estranha
num discurso científico, pois até então só na tradição poética a
subjetividade do autor ocupava o primeiro plano.10

Ao sublinhar a articulação fundamental entre a ciência e a literatura,


constituir um saber interpretativo voltado para a genealogia do sujeito e
realizar uma arqueologia do sentido, solicitando à figura do analisando que
construa o romance de sua história mítica, este discurso teórico original
inaugura também a constituição de um estilo científico diferente. Os
escritos clínicos de Freud têm um evidente estilo romanesco, reproduzindo,
na reconstrução teórica da psicanálise de um sujeito, a espessura mito-
poética que caracteriza o processo psicanalítico.

Se o deciframento psicanalítico solicita ao analisando que reconstrua o


romance de sua história mítica através da dramaticidade transferenciai do
processo analítico, o ensaio clínico do saber psicanalítico, realizado por
Freud, deve reproduzir necessariamente a tessitura mito-poética deste
mespio processo. Desde 1895 Freud sublinhava esta característica
fundamental de seus escritos clínicos. Quando da apresentação do caso de
Elizabeth von R., cie comentava que o relato de seus processos de cura
eram semelhantes aos relatos romanescos:

“Eu não fui sempre psicoterapeuta. Como outros neurologistas, fui treinado
para empregar diagnósticos locais e realizar prognósticos pela ele-
troterapia. Ainda me impressiona como estranho que as históricas clínicas
que escrevo se lêem como contos e que lhes falta, como se diz, a impressão
de seriedade científica. Devo me consolar com a reflexão de que a natureza
do tema é evidentemente responsável por isto, e não qualquer preferência
pessoal. O fato é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam a
lugar nenhum no estudo da histeria, enquanto uma descrição detalhada dos
processos mentais como nós estamos acostumados a encontrar nos
trabalhos dos romancistas permite-me, com o uso de pequeno número de
fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma forma de compreensão do
curso daquela afecção. Histórias de caso desta espécie devem ser julgadas
como as psiquiátricas; elas têm, entretanto, uma vantagem sobre estas
últimas: uma conexão íntima entre a história dos sofrimentos do paciente e
os sintomas de sua doença, uma relação que procuramos em vão nas
biografias de outras psicoses.””
O objeto específico da investigação psicanalítica seria responsável pelo
estilo particular do escrito clínico, conduzindo à produção de uma escritura
similar à de um romance. A “história dos sofrimentos do paciente” toma-se
fundamental para compreender os sintomas da enfermidade. Este eixo
teórico sustenta tanto a transformação do objeto e da metodologia da
investigação quanto a consequente remodelagem do escrito clínico.

Sublinhemos como as primeiras frases que introduzem o relato do caso


Katharina parecem mais o início de um romance que um ensaio clínico,
considerando-se os cânones estilísticos das monografias médico-
psiquiátricas:

“Nas férias de verão de 189..., fiz uma excursão ao Hohe Tauem para que
pudesse esquecer por um tempo a medicina e principalmente as neuroses.
Eu tinha quase conseguido, quando um dia me desviei da estrada principal
para escalar uma montanha um pouco distante, re-nomada por seu
panorama e por sua cabana bem cuidada. Tinha alcançado o topo após uma
fatigante escalada e, sentindo-me revigorado e descansado, estava
mergulhado na contemplação de uma vista magnífica. Estava tão perdido
em pensamentos que não relacionei imediatamente comigo quando estas
palavras alcançaram os meus ouvidos: «Você é médico, senhor?’”'2

Quando da publicação do caso Dora, em 1905, Freud destaca novamente a


presença desse estilo que caracteriza seus escritos clínicos, assinalando
agora, contudo, que issó não deve ser motivo para que os leitores
subestimem seu valor científico.13 Na composição da escritura, o estilo
romanesco do relato clínico era o correlato do objeto da investigação
psicanalítica, mas não havia razão para transformar a leitura num
divertimento destituído de ensinamentos teóricos.

Como podería ser diferente? Para se construir, o novo campo do saber teve
que romper com os saberes científicos existentes sobre a loucura e com as
formas tradicionais de interpretação, inventando uma metodologia original
de deciframento. O mesmo movimento levaria também a uma renovação
estilística do escrito clínico. Assim, se a ruptura epistemológica com a
medicina, a psiquiatria e a psicologia conduziu inicialmente à busca de uma
tradição não psiquiátrica para circunscrever a experiência da loucura como
verdade singular da história do sujeito, como se formulava em outros
períodos históricos, a ruptura metodológica com as tradições médico-
psiquiátrica e hermenêutica implicou também uma reinvenção estilística.
Portanto, a constituição (nos planos epistemológico e metodológico) de
uma nova forma de clínica implicou necessariamente um estilo original
para o escrito clínico da psicanálise.

Freud inaugura uma forma de saber que tem a pretensão de reconstruir as


origens do sujeito, pontuando a estruturação mítica da história deste e a
emergência de sua verdade singular. A figura do analisando é o romancista
desta reconstrução. Porém, como o deciframento psicanalítico se sustenta
fundamentalmente no eixo da intersubjetividade, a figura singular do
analista ocupa um lugar primordial nesse processo.

Personagem da maior relevância, constitutiva da tessitura deste romance, o


analista é necessariamente uma constituinte essencial do relato clínico. Sem
ele, as peripécias do romance não seriam exatamente as mesmas. Na
presença de outro interlocutor, elas se ordenariam de forma diferente. No
ensaio clínico da psicanálise freudiana a figura do analista está presente na
sua singularidade e nas diversas posições intersubjetivas que lhe são
colocadas pela figura do analisando, cuja história tem um sentido singular
que se quer revelar. Isso não pode resultar num relato clínico que se
restrinja à terceira pessoa, com o autor apresentando apenas acontecimentos
objetivos que digam respeito ao analisando e não tenham relação com a sua
própria experiência e a reconstrução do sentido de sua própria história.

Os pressupostos epistemológico e metodológico do saber psicanalítico


sustentam as diferenças estilísticas fundamentais entre o escrito clínico
freudibno e o de seus contemporâneos. Comparemos esquematicamente o
escrito clínico de Freud e os relatos de casos feitos por Charcot, Bernheim e
Breuer,14 para permanecermos nos grandes mestres que o influenciaram no
campo da clínica. Apesar de evidentes diferenças de estilo pessoal, os
escritos clínicos destes autores — representantes da avant-garde científica
dos saberes médico e psiquiátrico — são estruturalmente idênticos,
caracterizando-se como relatos médicos propriamente ditos, no sentido em
que Foucault estabeleceu os contornos da clínica médica na aurora do
século XIX.'5
Com efeito, nesses textos o relato de casos se realiza através das seguintes
coordenadas: apresentação sistemática do quadro clínico da enfermidade,
consideração da história patogênica de sua constituição, destaque das
possíveis correlações anátomo-patológicas, relato das técnicas terapêuticas
utilizadas na cura e das possíveis transformações que estas realizam no
quadro clínico considerado. Assim, o relato clínico circunscreve a
apresentação à figura da enfermidade. É ela que perpassa toda a
monografia. Por isso, são apresentados muitos pequenos exemplos para
provar certas características da enfermidade e discutir as possíveis formas
de terapêutica.

Nesses escritos clínicos existe uma evidente preponderância da semiologia


qualitativa. Além disso, a preocupação terapêutica supera as considerações
fisiológicas. A bem da verdade, estas estavam bastante presentes em Breuer,
conforme a marca característica da tradição médica alemã, que se
diferenciava da tradição francesa, mais ligada à terapêutica e à minuciosa
descrição semiológica. O discurso marcado pela exuberância na
caracterização semio-lógica dos casos encontrou o seu paradigma nas
Lições clínicas, de Trousseau, que foi ao longo do século XIX o grande
modelo do escrito clínico, cujo apogeu foi marcado pelos escritos de
Charcot.16

Apesar da riqueza semiológica na caracterização dos contornos da


enfermidade e do esforço exigido por esse procedimento de
individualização dos casos, a figura do paciente enquanto subjetividade
estava evidentemente silenciada, reduzida a mero suporte de uma
enfermidade somática ou mesmo de uma doença mental. As
particularidades das histórias biológica, geográfica e higiênica eram tratadas
como coordenadas relevantes para a individualização da enfermidade na
figura do paciente, mas a subjetividade deste era inexistente — no limite,
ausente —, sendo destacada apenas para acentuar algo relevante da
enfermidade que o acometia.

Mesmo Charcot — que possuía magnífico estilo pessoal, desenvolveu com


muita originalidade o modelo do escrito clínico consagrado por Trousseau e
era intemacionalmente famoso pela clareza didática que caracterizava a sua
exposição de casos — não conseguiu escapar desse modelo inevitável, pois
a mesma concepção de clínica o identificava aos outros autores. "

Teóricos de diferentes linhas, historiadores da medicina e da psiquiatria,


chegaram a formular que a emergência histórica, ao longo do século XIX,
de certas práticas curativas com características mágicas foi, na origem, uma
reação a este modelo de prática clínica que silenciava a figura do enfermo
na figura da enfermidade.17*18 Diferentes formas de saber constituídas no
século XIX teriam em comum um mesmo eixo fundamental, que se teria
iniciado com Mesmer,19,20 continuado com o hipnotismo, a sugestão e a
persuasão21 e encontrado em Freud o seu último representante no final do
século.

Outros teóricos formulam que a pregnância histórica assumida pela


problemática da histeria na segunda metade do século XIX se deveu a uma
reação dos pacientes, que tentavam reafirmar sua subjetividade frente a um
discurso clínico que os objetivava progressivamente. O grande impacto
teórico representado pela figura da histeria seria a contrapartida, no plano
do saber, da crise que o modelo da clínica experimentava.22,23 Esta
encontraria o seu apogeu em Charcot, que, paradoxalmente, procurou
introduzir o hipnotismo no contexto de investigação desta clínica, criando
assim uma das condições para a quebra da dominância deste método e para
a constituição do saber psicanalítico, que inaugurou uma nova forma de
clínica.

Com Freud, pela constituição de uma nova concepção de clínica, a estrutura


e o estilo do escrito clínico também se transformam. Com efeito, no escrito
clínico freudiano se destaca como temática fundamental a reconstrução
histórica da constituição mítica do sujeito, mediante a relação inter-
subjetiva possibilitada pelo processo psicanalítico. Não se trata mais da
descrição de um quadro clínico e da história de uma enfermidade. Daí a
necessária renovação estilística do escrito clínico, reproduzindo na estrutura
do texto as rupturas epistemológica e metodológica com os cânones da
clínica médico-psiquiátrica.

Estas diferenças fundamentais entre os escritos clínicos freudianos e os da


clínica médico-psiquiátrica podem ser apreendidas de maneira evidente
numa comparação superficial entre o relato de Breuer sobre o caso de Anna
O. e os casos apresentados por Freud nos Estudos sobre a histeria.1*
Apesar de ser a primeira apresentação do método catártico na cura da
histeria, o escrito de Breuer é um relato em que Anna O. está sozinha com
seus males e infortúnios. Breuer é o relator ausente no eixo das trocas
intersubjetivas, o que não ocorre nos escritos freudianos.

Por isso mesmo, os literatos sempre admiraram e se identificaram com os


escritos clínicos freudianos. Interpretaram corretamente que a démarche que
investiga o sentido da experiência da enfermidade realiza uma evidente rnp-
tura com os saberes médico e psiquiátrico, com a pretensão de constituir a
história mítica de uma subjetividade, como ocorre na trama romanesca.
Pretendendo construir uma hermenêutica original sobre a genealogia do
sujeito, Freud foi impelido a chocar-se contra as ciências dominantes que
temati-zavam a problemática da loucura, tornando-se um critico incisivo da
medicina, da psiquiatria e da psicologia. Voltou-se para os poetas e
dramaturgos, que há séculos se dedicavam à interpretação do sujeito na
experiência da loucura.

Nos anos 20, numa das primeiras obras de fôlego sobre a epistemologia da
psicanálise, Politzer assinalou que no final do século XIX as tradições
literária e teatral eram as únicas que tinham algo sólido a legar sobre esta
problemática, diante do silêncio, mantido pelas ciências dominantes, sobre
a psique e a verdade da experiência “dramática” da subjetividade.2536 O
mesmo argumento de Politzer foi retomado por Althusser, que, em outros
termos, também assinalou a inexistência, na tradição científica, de
precursores junto aos quais Freud pudesse encontrar fontes para a
constituição de um saber sobre o sujeito.27 Na ausência de qualquer saber
teórico sobre esta problemática, só restou a Freud a possibilidade de se
debruçar sobre o rico manancial legado pelas tradições da literatura e da
dramaturgia.

Com efeito, os saberes existentes sobre a experiência da loucura nada


tinham a oferecer para a construção desse campo original. Ao contrário. Os
representantes oficiais dos saberes científicos criticavam Freud por
apresentar um saber diferente e estranho, no qual percebiam a presença de
evidentes dimensões científicas, articuladas no entanto com dimensões da
tradição literária e mítica. Freud era censurado por não apresentar critérios
objetivistas-experimentais para demonstrar a cientificidade do corpo de
saber que estava constituindo.

Quando, em 1896, Freud proferiu no Psychiatrischer verein uma


conferência sobre A etiologia da histeria,2* Krafft-Ebing teria dito que sua
teoria não passava de um “conto de fadas científico”.2’ Outros renomados
professores também reagiram criticamente à publicação de A interpretação
dos sonhos, caracterizando a obra como marcada pelo misticismo e a
preponderância da “imaginação artística” sobre a ciência.

Em 1901, nas páginas de Zeitschrift für Psychologie und Physiologie der


Sinnesorgane, William Stern denunciou o perigo de ver “os espíritos não
críticos fascinados em brincar com semelhantes idéias e afundar num
misticismo e num arbítrio totais.”30 De forma similar se pronunciou o
professor Liepmann, de Berlim, em artigo também publicado em 1901 no
Monatschrift für Psychiatrie und Neurologie: “a imaginação artística
arrebatara [Freud], sobrepondo-se ao pensamento do pesquisador
científico.”3' *

O fantasmar na intersubjetividade e na
metapsicologia
Esta crítica sobre o caráter não científico do saber psicanalítico atravessa
todo o século e chega até a atualidade. Ela se baseia numa concepção
abstrata do que seja o saber científico, sustentada no modelo de
cientificidade das ciências naturais — sobretudo da física —, sem
considerar a especificidade epistemológica de cada campo científico, na
singularidade da constituição de seu objeto e de sua metodologia da
investigação.

Sensíveis a estas críticas e desejosos de validar a cientificidade do saber


psicanalítico, muitos teóricos optaram por desarticulá-lo do seu eixo
epistemológico fundamental, isto é, da experiência analítica originária,
sustentada na relação intersubjetiva. Depois do saber psicanalítico ter sido
separado do seu espaço de fundação epistemológica, realiza-se uma
segunda operação, que continua a descaracterizar a especificidade do
discurso psicanalítico. Pretende-se impor às formulações do saber analítico
os critérios objetivistas da psicologia experimental.32 Porém, o sujeito,
enquanto verdade, inserido no contexto da realidade psíquica, não é
passível de objetivação. Pelo contrário. Sua verdade singular só se objetiva
pelo processo de subjetivação possibilitado pelo contexto intersubjetivo da
análise, que pretende romper o ego enquanto instância de objetivação
alienante do sujeito, revelando a singularidade da verdade deste. Com esta
estratégia metodológica de validação objeti-vista-experimental se si lencia
exatamente o que existe de mais fundamental na psicanálise, ou seja, a
experiência da intersubjetividade. O discurso teórico sobre tal experiência é
a tentativa de constituir coordenadas básicas que permitam estabelecer as
condições de sua possibilidade.

A metapsicologia freudiana é marcada fundamentalmente pelas estratégias


que caracterizam o processo psicanalítico na sua espessura transferenciai e
nos seus contornos intersubjetivos. Assim como a figura do analisando é
colocada na posição de criador permanente de sua história mítica, tendo que
fantasmar insistentemente sobre cadeias associativas que se desdobram de
forma interminável, a figura do analista também funciona no contexto
intersubjetivo pela fantasmatização permanente.

O conceito de fantasmar, essencial para que as duas figuras da relação


intersubjetiva possam interagir de modo a realizar o processo psicanalítico,
ocupa um lugar fundamental na elaboração teórica da metapsicologia
freudiana, definindo uma forma de funcionamento da teoria na constituição
dos conceitos e na articulação das construções do saber psicanalítico.

Seja na elaboração metapsicológica, seja no processo psicanalítico, a figura


do analista está submetida em última instância ao fluxo imponderável das
associações inconscientes. Neste contexto teórico ele tem melhores
condições í para inquirir e criticar as bases de suas construções conceituais
e sistematizar ' os contornos de sua interpretação. Por isso, Freud nunca
considerou que essa fantasmatização fosse um processo puramente
intuitivo, pois sua sistemati- < zação conceituai exigia uma crítica
permanente de suas fontes. Apesar disso, esta estratégia reproduz, no plano
da construção metapsicológica, o mesmo procedimento a que as figuras do
analisando e do analista estão submetidas no processo psicanalítico, que faz
a mediação necessária para a investigação do inconsciente.

Esta articulação fundamental entre a metapsicologia e a estratégia da


fantasmatização — de tal forma básica que seria impensável se representar
a existência de uma sem a outra — permitiu a Freud conferir à
metapsicologia e à teoria das pulsões o estatuto mítico,31 quando comparou
a construção da ; teoria psicanalítica com os critérios objetivistas-
experimentais do saber re-conhecido então como científico. Esta
comparação entre a cientificidade do : saber psicanalítico e os critérios
objetivistas-experimentais do saber científi- | co, então dominantes, se
desdobra numa representação da metapsicologia í como “bruxaria”. As
representações da teoria como “mito” e como “bruxaria” ' se identificam na
contraposição que ambas estabelecem com o discurso científico positivista
do início do século XX.

Freud estabelece estas articulações fundamentais entre a fantasmatização e j


a “feitiçaria” metapsicológica em Análise terminável e interminável, de
1937., Entre elas se destacam de forma significativa os termos
intermediários “teo-rização” e “especulação”, indicando as passagens e as
superposições destas diversas representações:

“... Se perguntarmos por que métodos e meios este resultado é alcançado,


não é fácil encontrar uma resposta. Nós podemos dizer apenas: ‘Somuss
denn doch die hexe dranl’ — a Feiticeira Metapsicologia. Sem especulação
metapsicológica e teorização — eu quase disse ‘fantasmatização’ — nós
não conseguiremos ir adiante. Infelizmente, aqui como em outras partes, o
que nossa Feiticeira revela não é muito detalhado...”34

Estas articulações conceituais não tiveram que esperar o fim do percurso


teórico, ou seja, não resultam de uma reflexão a posteriori sobre os
procedimentos utilizados. Elas se encontram presentes desde o início do
percurso freudiano. Em 1895, debruçado sobre a construção originária da
metapsicologia, Freud enviou carta a Fliess, referindo-se assim aos
procedimentos construtivos utilizados no Projeto de uma psicologia
científica
“Todas as noites, entre 11 e 2 horas, eu não faço senão imaginar
[Phantasieren], transpor, adivinhar, para não me interromper senão quando
me choco com alguma coisa absurda ou quando eu não posso mais...”35

Neste fragmento do início do pensamento freudiano podemos encontrar,


portanto, as mesmas articulações que reaparecerão posteriormente,
associadas à representação da metapsicologia (que vai se desdobrar em
outras equações então inexistentes). Entretanto, aparece neste contexto a
estratégia da transposição^ que será um conceito fundamental, no qual
Freud vai pensar a inscrição da pulsionalidade no universo da
representação. Será também um instrumento fundamental da construção
metapsicológica do psicanalista, submetido ao fluxo insistente dos enigmas
lançados pelo inconsciente. Além disso, Freud indica também o critério do
absurdo para limitar a construção metapsicológica, que não deve realizar-se
como uma intuição sem que seja submetida a uma crítica sistemática.36

Ao atribuir tal relevância ao conceito de fantasmatização — que funcionaria


como mediação fundamental entre o contexto intersubjetivo do processo
analítico e a construção teórica da metapsicologia — o saber psicanalítico
rompe epistemologicamente com os critérios de cientificidade da ciência
objetivista-experimental do início do século e, ao mesmo tempo, se
encontra com o legado proporcionado pela tradição literária sobre a
experiência do sujeito na loucura. Pela articulação entre o conceito de
fantasmatização e a idéia de “especulação” a metapsicologia freudiana se
encontra com a filosofia.

No percurso de construção da metapsicologia psicanalítica, entre os


sucessos de suas elaborações conceituais e os insucessos de sua teorização-
fantasmatização, Freud revela a Fliess que, com a constituição da
metapsicologia, estava realizando um velho sonho de juventude, ou seja, o
exercício da filosofia:

“... Eu espero que você queira também dar ouvidos a algumas questões
metapsicológicas (...) Eu não aspirei, nos meus anos de juventude, senão
aos conhecimentos filosóficos e estou agora no ponto de realizar este voto,
passando da medicina à psicologia. Foi apesar de mim que me tomei
terapeuta...”37
Tendo em vista a posição crítica de Freud frente à filosofia de seu tempo —
exceção feita às filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche — esta
formulação pode parecer estranha, mesmo quando se leva em conta a
correspondência revelada pela primeira vez por Ernest Jones, que traz
formulações idênticas.3’ Para Freud, a filosofia, como a religião, seria uma
forma de Weltanschauung, isto é, uma forma ativa de promoção cultural da
ilusão, se bem que a filosofia realizaria esta promoção ilusória de maneira
bastante diferente da religião. ”

Por isso mesmo, Freud via na filosofia — como na medicina e na


psiquiatria — uma forma particular de resistência à psicanálise.40 Porém,
nesta caracterização da filosofia estava sempre em pauta uma problemática
bastante precisa: a filosofia como uma defensora ativa da psicologia da
consciência, identificada totalmente, portanto, com a psicologia
propriamente dita.41

Não nos interessa examinar aqui as relações ambíguas de Freud com a


filosofia, que mesclavam fascinação e repulsa, a intensidade da repulsa
sendo possivelmente a contrapartida da fascinação. Contudo, para
interpretar o pensamento freudiano é decisivo analisar esta articulação
realizada por Freud entre a metapsicologia e a filosofia, cujas mediações
fundamentais são o conceito de fantasmatização e a representação da
filosofia como “especulação”.

Ao chamar sua nova psicologia de metapsicologia, e não apenas de


psicologia, assinalando ao mesmo tempo a sua aproximação com a
filosofia, Freud indica certamente a diferença fundamental que quer
estabelecer entre a psicanálise e a psicologia existente no final do século
XIX. Da mesma forma, este deslocamento para a metapsicologia representa
uma ruptura definitiva com a medicina. Romper com a psicologia
dominante na virada do século representava criticar de forma sistemática
uma concepção abstrata que circunscrevia a psique a um conjunto de
funções centradas na consciência, sem que se considerasse como
fundamental a experiência do sujeito.

A aproximação da metapsicologia com a filosofia e com a tradição mito-


poética é a maneira de se realizar a representação epistemológica do saber
psicanalítico como sendo essencialmente diferente dos discursos científicos
da medicina, da psiquiatria e da psicologia, baseados em critérios
objetivistas-experimentais. Na construção do novo sistema conceituai, o
conceito de fantasmatização ocupa um lugar epistemológico privilegiado.
Além de estar presente na relação intersubjetiva que sustenta o processo
analítico, ele é a mediação entre o que se passa neste processo e o plano da
construção metapsicológica.

Para uma nova forma de saber sobre a psique, que destaca a problemática
do sujeito e pretende ir além da consciência, se impõe necessariamente um
novo nome: metapsicologia. Como vimos, a constituição do campo
psicanalítico teve que realizar uma ruptura epistemológica que acabou por
impor também rupturas metodológica e estilística com diversas formas de
saberes. Esta série articulada de rupturas foi coroada com uma denominação
original para o novo campo do saber.

Situada mais além da consciência, a metapsicologia freudiana também está


além da psicologia, constituindo-se numa nova forma deste*saber,
intimamente relacionada à metafísica. Necessitando lançar mão da
estratégia da fantasmatização para caminhar em direção ao mais além, a
metapsicologia desenvolve uma dimensão “especulativa”42 semelhante à
que Freud identificava na filosofia, contrapondo-se à ciência positiva, uma
forma de saber experimentalmente controlado. É por isso que Freud
aproxima o saber metapsicológico e a “feitiçaria” e confere à
metapsicologia uma dimensão mítica.

Convencido da importância da ciência como instrumento para ir mais além


das ilusões humanas, Freud se preocupava permanentemente com o estatuto
da psicanálise, assinalando que esta era uma ciência que tinha a pretensão
de reconstruir a verdade do sujeito. Mas, sem dúvida, a articulação da
psicanálise com as representações da literatura e da filosofia mostra que os
fundamentos e as outras formas de validação da ciência que Freud pretendia
construir eram diferentes dos da ciência experimental.

Szasz assinala acertadamente que, mais do que um sinal de positivismo, a


insistência de Freud no discurso da ciência face às diferentes formas
culturais da ilusão humana, como a religião e a filosofia, revela uma
problemática mais fundamental do seu pensamento. Com efeito, perpassa
toda a sua obra uma investigação interminável sobre a problemática da
verdade do sujeito,43 contra todas as ilusões que este engendra
permanentemente para não apreender certas marcas que colocam em xeque
a sua imagem narcísica. Esta pesquisa insistente sobre a verdade da
subjetividade face às diferentes formas de ilusão norteou o destaque
conferido por Freud ao discurso científico.44

Bleuler chamou “psicologia profunda” a esta nova forma de saber


psicológico que se fundamenta no pressuposto da existência da verdade do
sujeito, rompe com o sistema de referência da realidade material e, na
representação freudiana, se articula com a filosofia e a literatura para
sublinhar a sua ruptura com o discurso científico baseado em critérios
experimentais.45 Para constituir-se como campo original e tentar apreender
o sujeito mais além das funções psíquicas abstratas, a psicanálise tem que
empreender uma ruptura epistemológica com a psicologia “superficial” e
promover a reconstrução mítica da história do sujeito através da
intersubjetividade.

Freud minimizou a importância dos trabalhos experimentalistas em


psicanálise. Eles não teriam qualquer valor para um saber que pretendia a
reconstrução mítica da subjetividade e usava uma metodologia de
investigação centrada na intersubjetividade. Assim, Freud não atribuía valor
científico, para o saber psicanalítico, às pesquisas de psicologia
experimental feitas por Jung com o “teste de associação de palavras”,46 que
teriam apenas valof de propaganda para a psicanálise.47 Nada
acrescentavam ao discurso analítico. que não se fundamenta numa
explicação objetiva do outro, mas no sentido que se constitui na espessura
transferenciai da relação intersubjetiva.

Aplicada à psique, a metáfora da profundidade se articula no mesmo campo


de representação que está na origem do termo metapsicologia, ambos
reenviando para um mais além que define o campo de objetividade do saber
psicanalítico: mais além das funções abstratas, visando a apreender o
sujeito; mais além da consciência, visando a captar o inconsciente; e
também, quando esta problemática foi tematizada na segunda tópica, mais
além do ego, visando a apreender o inconsciente. Permeando as diferentes
dimensões destacadas, o mais além aponta para uma problemática precisa
no pensamento freudiano, ou seja, a existência da realidade psíquica, na
qual se insere algo que Freud denomina inconsciente e que se contrapõe à
realidade material. Enfim, este mais além indica a existência do
inconsciente como fundamento da realidade psíquica, no qual se inscrevem
as diversas marcas em que se sustenta o sentido de uma história singular e
que constitui o eixo da verdade mítica do sujeito.

A realidade psíquica se materializa nas diferentes marcas da representação


psíquica das pulsões e na dinâmica que se estabelece entre estas,
configurando um caleidoscópio de múltiplos arranjos, dotado de movimento
incessante. O percurso metodológico do processo psicanalítico, através de
todas as direções destas marcas e em todos os seus níveis de ordenamento,
leva à representação teórica da psique como uma estratificação complexa
de diferentes camadas, nas quais se distribuem as inscrições pulsionais.

A metáfora da psique como profundidade se sustenta nesta representação e


é um desdobramento da démarche metodológica do deciframento
psicanalítico. Com efeito, essa metáfora materializa a forma de trabalho
exigida das figuras do analisando e do analista, que percorrem cada nível
em que se ordena este sistema de inscrições, seguindo o traçado vetorizado
pelas inscrições, de maneira a ultrapassar as camadas “superficiais” da
psique, ou seja, a consciência, o ego e a verdade referida ao sistema da
realidade material.

Segundo Freud, o processo psicanalítico enfrenta dificuldades semelhantes


à ordenação de um arquivo, metáfora que articula simultaneamente a
démarche da metodologia do deciframento e a construção estratificada do
psiquismo. Em A psicoterapia da histeria ele indica como se constitui e se
organiza este arquivo, assinalando como os fragmentos psíquicos
encontrados no curso da investigação se distribuem segundo diferentes
formas de ordenação: cronológica, temática e lógica. A ordenação lógica é a
mais importante, na medida em que as duas primeiras são formas
descritivas de organização que não consideram o sentido das diferentes
inscrições.48 Enfim, a ordenação lógica costura marcas situadas em
camadas de diversos níveis, indicando a forma como as inscrições se
articulam pelo eixo do sentido.
E o deciframento psicanalítico que constitui este eixo do sentido, através de
um traçado que reconstrói a verdade mítica do sujeito. A imagem do
arquivo indica exatamente como a construção teórica do psiquismo
materializa metaforicamente, no plano do espaço, um processo que se
realiza no plano do tempo, isto é, a démarche da metodologia do
deciframento que se sustenta na intersubjetividade.

Este arquivo de representações é figurado como um sistema de inscrições


psíquicas, num dos esboços iniciais da metapsicologia freudiana sobre a
constituição das diferentes formas de neurose e do “aparelho psíquico”,
construído logo após o Projeto de uma psicologia científica. Nesta obra,
Freud esboça pela primeira vez a lógica da posterioridade
(Nachtrãglichkeit), através do contraponto entre o momento traumático da
sedução e o momento da simbolização do trauma, que seria constitutivo do
sintoma, centrado na investigação da histeria.4’ No manuscrito de 1896,30
porém, esta questão é tratada através de um esquema mais complexo.

Freud pretende circunscrever os momentos traumáticos das diferentes


formas de neurose, isto é, os pontos de fixação (numa escala temporal) da
histeria, da neurose obsessiva e da paranóia, assim como suas condições
posteriores de simbolização através dos sintomas, com a conseqiiente
eclosão clínica da neurose. Com isso, ordena-se a estrutura das diferentes
psico-neuroses como sistemas de inscrição e de simbolização e constrói-se
o modelo psicanalítico da psique como um sistema com tais características.

A constituição do conceito de posterioridade marca a oposição entre o


tempo da inscrição traumática e o tempo da simbolização, com a produção
do sintoma, e fundamenta a lógica constitutiva das cadeias associativas.
Pode-se, assim, começar a pensar como, apesar de mantida a marca
primária, uma inscrição originária é transformada numa sequência
articulada de inscrições, que seriam simbolizações desta inscrição. Com
isso, a existência de um sistema de equivalência entre as diferentes
representações psíquicas encontra a sua sustentação teórica, tornando
legítimo o método de investigação que se baseia no deslizamento insistente
através das cadeias associativas.

Ganha materialidade a representação da realidade psíquica como um


conjunto de marcas significantes. E, definido como simbolização, o sintoma
se estabelece como um núcleo de verdade, na medida em que é uma
interpretação do trauma originário. O processo psicanalítico pretende abrir
o sintoma, para deixá-lo falar e tentar decifrar para qual sistema de
inscrições ele aponta. Reencontramos aqui a concepção de um processo de
reconstrução da verdade do sujeito na experiência da loucura.

Na sua construção metapsicológica da psique, Freud substitui a teoria da


sedução pela teoria do fantasma, mas mantém o conceito de trauma —
sustentando-se agora na experiência traumática da pulsão — e a mesma
lógica da posterioridade. Esquematicamente:

1. Embora mantido, o conceito de trauma se desloca para o contexto


das relações entre a pulsionalidade e o tecido de representações do
infante capaz de absorvê-la. A pulsão passa a ser considerada
necessariamente traumática, quando se encontra com um espaço
psíquico carente de representações e, por isso, incapaz de fixá-la e
dominá-la adequadamente.51 Trata-se de uma situação estrutural,
constitutiva da realidade psíquica, pois este contexto define a posição
de todos os infantes.

2. Mantém-se também a lógica da posterioridade. Cada cadeia


associativa parte de uma inscrição originária da pulsão, e as
representações subseqüentes resultam de um processo contínuo de
interpretação de cada inscrição anterior. Assim, as cadeias associativas
são sequências de interpretações que se constituem a partir de uma
interpretação originária da experiência pulsional, delineando, portanto,
uma série de representações que definem o traçado do sentido e que
são o vetor indicativo da verdade singular do sujeito.

Para que este processo de investigação da verdade subjetiva possa realizar-


se, as figuras do analista e do analisando devem estar submetidas às
mesmas coordenadas, ou seja, à fantasmatização no contexto intersubjetivo.
A fantasmatização na atenção flutuante do analista é o contraponto da
fantasmatização nas livres associações do analisando. É este mesmo
processo que se reproduz depois, na figura do analista, durante a construção
metapsicológica.
Portanto, situa-se neste plano a mediação epistemológica entre o que se
constitui no contexto intersubjetivo da clínica e o que se reproduz no
contexto da construção metapsicológica, pois o mesmo conceito é operante
em ambos, indicando uma forma ideal de funcionamento mental, passível
de revelar o inconsciente, se bem que em diferentes níveis de
complexidade. Na construção teórica o analista procura elaborar esquemas
conceituais sobre a estrutura mental, de maneira a circunscrever quais as
condições de possibilidade para a existência de certas formas de experiência
intersubjetiva.

Esta construção metapsicológica não se baseia numa intuição ilimitada, mas


há fronteiras bem determinadas para ela. Freud formulou inicialmente o
critério do absurdo como instrumento metodológico para colocar limites à
construção conceituai,'52 Para o sujeito, o absurdo corresponde à
possibilidade de uma experiência de teorização similar à experiência do
delírio, com uma fantasmatização ilimitada, transformada em ordem da
realidade por não se examinarem mais as fontes subjetivas das construções.

Teria sido esta a razão por que Freud nunca quis publicar o Projeto de uma
psicologia científica? Apesar de conter múltiplas indicações e intuições
geniais — que depois vão originar outros desenvolvimentos na teoria
psicanalítica — esta obra se caracteriza por uma sistemática frágil,
exatamente porque pretende transformar a ordem do fantasma na ordem da
realidade neurofi-siológica. A linguagem neurofisiológica deste texto
confere um tom absurdo à construção freudiana, que, como a construção
delirante, não perde entretanto o seu núcleo de verdade, desde que a
interpretemos considerando a linguagem do fantasma que Freud desenvolve
logo em seguida.

O critério do absurdo foi um instrumento fundamental no curso da


teorização freudiana, funcionando como sinal que deveria reconduzir o
teórico para o exame permanente das bases subjetivas de sua
fantasmatização. Por isso, Roustang se equivoca quando pretende conferir o
estatuto de delírio para a teoria psicanalítica,53 pois esta teorização usa a
fantasmatização mas pressupõe também a crítica permanente das fontes
desse procedimento.
Além do critério do absurdo, outros critérios estruturais se constituem
posteriormente, definindo limites à fantasmatização na construção teórica.
Na construção metapsicológica a fantasmatização do analista está limitada
pelas fronteiras intersubjetivas da experiência analítica. Da mesma forma,
no processo analítico essa fantasmatização encontra o seu limite na
singularidade da experiência transferenciai do analisando e na presença
deste como outro, isto é, outro sujeito-intérprete da mesma experiência.

Com a formulação destes outros limites, a fantasmatização encontra novos


obstáculos para se transformar num delírio interpretativo do analista. Não
devemos esquecer que, para Freud, o paranóico constitui um dos
paradigmas do intérprete, captando o outro à custa de sua fantasmatização
projetiva.54 A possibilidade do analista resvalar para o delírio interpretativo
está sempre presente. Considerar fundamental o limite colocado pela
experiência transferenciai implica definir o eixo da transferência como o
solo originário para o trabalho de interpretação, e não o contrário, como
pontua Mannoni55 com pertinência, sustentando a perspectiva freudiana
contra as formulações de alguns jovens discípulos de Lacan.54

Enfim, mesmo considerando a diferença de níveis entre a clínica e a


metapsicologia, há entre ambas uma identidade definida pela metodologia
do deciframento, que dá a linha comum que perpassa estes níveis diversos,
indicando assim que o fantasmar é uma forma de interpretar e, por isso, é o
fundamento da psique, concebida essencialmente como interpretação.
O outro, a interpretação e o desejo de saber
Podemos nos encaminhar agora para tratar do fundamento último do
deciframento psicanalítico. Encontraremos a fantasmatização e a
interpretação como dimensões básicas do processo de construção da psique,
ou seja, como matéria-prima da organização psíquica. Esta questão nos
envia novamente à teoria freudiana das pulsões, para circunscrevermos a
concepção da psique como sendo essencialmente fantasmatização,
interpretação insistente e infinita.

Assim, vejamos. Na especificidade da realidade psíquica é fundamental a


forma pela qual a pulsão se inscreve no universo da representação e
constitui a psique, isto é, como a pulsionalidade se representa através dos
seus representantes psíquicos. Partindo de cada inscrição originária se
constituem múltiplas ramificações das cadeias associativas, que são formas
de transformação das inscrições primárias. As inscrições iniciais são, ao
mesmo tempo, mantidas nessas ramificações e transformadas pelos novos
contextos.

Mas, como vimos, para que a pulsionalidade se inscreva no universo da


representação é necessário um trabalho de fixação e de domínio da pressão
pulsional,57 de modo que esta inscrição originária possa se desdobrar
posteriormente nas cadeias associativas de seus derivados. São diversas as
marcas deste processo de inscrição. Elas e suas ramificações associativas
circunscrevem os percursos que definem a especificidade dos trajetos num
sujeito singular, delineando a sua história libidinal e o seu destino. Mais
tarde, Freud perceberá que este processo de fixação e de domínio pulsional
é muito mais complexo do que inicialmente pensara. A segunda teoria
pulsional se constitui para responder às dificuldades colocadas por esta
problemática. A formulação dos conceitos de pulsão de morte e de
compulsão à repetição está ligada à necessidade de interpretar este
obstáculo no plano das inscrições originárias.51 Por isso mesmo, eles vão
indicar os limites da metodologia do deciframento psicanalítico,
desenhando-se assim as fronteiras do campo da interpretação. Após os anos
20, a construção psicanalítica se expande como instrumento complementar
à interpretação senso strictu, exatamente para possibilitar esta inscrição
através do processo analítico.

Porém, considerando a inscrição realizada, este trabalho de fixação


pulsional na representação constitui em si mesmo um processo de
interpretação, e as diversas ramificações de uma dada inscrição numa
cadeia associativa constituem um trabalho de reinterpretação permanente de
uma marca específica. Assim, a psique — marcada como sentido e como
verdade seria interpretação por excelência. O saber sobre a realidade
psíquica deve ter a mesma estrutura que a psique assim constituída, ou seja,
deve ser um saber fundamentalmente interpretativo.

Este saber interpretativo se fundamenta também na relação intersubjetiva e


tem nela a sua condição de possibilidade. Para Freud, esta fundamentação
da interpretação psicanalítica conduz às bases da representação psíquica da
pulsão e ao posicionamento originário do outro como intérprete.
Considerando estabelecido o fundamento interpretativo da realidade
psíquica, é necessário que circunscrevamos agora a sua contrapartida
intersubjetiva, sem a qual, na perspectiva freudiana, a concepção da psique
como interpretação não se sustenta.

No momento mítico da constituição da psique, o infante estaria submetido a


uma enorme pressão pulsional, sem possuir nenhum meio de domínio desta
pulsionalidade. Falta-lhe um sistema de representações capaz de dominar e
fixar as pulsões. Diante da incapacidade representativa do infante, a
pulsionalidade originária é traumática. O organismo tem meios funcionais
de proteção contra os estímulos externos, mas o mesmo não ocorre no caso
das pulsões.5’ O futuro sujeito se encontra assujeitado à pressão pulsional
constante. Diante da impossibilidade de descarga, tem que dominá-la e fixá-
la no universo da representação, para sobreviver.60

Esta impossibilidade originária de exercer domínio pulsional é atribuída por


Freud a uma carência fundamental do sujeito: a sua prematuridade
originária.61 Diante da pressão pulsional o infante fica colocado numa
posição de desamparo.62,63 Esta prematuridade faz com que a experiência
originária da pulsão seja essencialmente traumática, pela inexistência de um
sistema de representação que possa promover seu domínio e sua fixação.
No contexto da violência pulsional, esta condição de desamparo obriga o
infante a ter que se ordenar psiquicamente. Enfim, para sobreviverão
bombardeamento pulsional, o infante tem que fixar e dominar de alguma
forma as pulsões no universo da representação e, na expressão de
Laplanche,64 realizar o processo de simbo-lização primária.

Quanto mais imaturo é o infante mais aterrorizante é a experiência de


desamparo, pois mais carente se encontra de um sistema de representação
apto a dominar o constante fluxo pulsional. Com isso, o futuro sujeito é
obrigado a ter que contar com o outro como suporte, face à sua
impossibilidade de elaborar representações. Tem que se assujeitar ao outro
para se proteger da terrível experiência de desamparo frente à violência
pulsional. Colocado nesta posição de suporte do infante, o outro representa
o intérprete de sua pressio pulsional. Ao interpretar a demanda pulsional do
infante, domina as pulsões, que se fixam na representação.

Por sua função interpretante desde os primeiros balbucios do infante, a


figura materna seria a possibilitadora desta inscrição, a mediadora desta
passagem da ordem da pulsionalidade para a ordem da representação,
permitindo a transposição das pulsões para o registro do representante-
representação. Desde o Projeto de uma psicologia científica, Freud
destacava a importância desta problemática que estaria nas origens da
“compreensão mútua”:

“O organismo humano nos seus estados mais precoces é incapaz de


provocar esta ação específica, que só pode ser realizada com uma ajuda
externa e no momento em que a atenção de uma pessoa cuidadosa se dirige
para o estado da criança. Esta última a alertou por uma descarga que se
produz pela via das mudanças internas (pelos gritos da criança, por
exemplo). A via de descarga adquire assim uma função secundária de
importância extrema: a da compreensão mútua. Assim, a impotência
original do ser humano se torna a fonte primeira de todos os motivos
morais.”65

Nesta perspectiva, o apelo humano seria a resultante desta função


interpretante originária, de maneira que a “ação específica” capaz de
satisfazer a demanda pulsional se realizaria no contexto intersubjetivo, fora
do qual o infante não teria qualquer possibilidade de domínio pulsional:

“ (...) é uma parte da via conduzindo às modificações internas, único meio


de transbordamento enquanto a ação específica não é ainda conhecida. Esta
via adquire uma função secundária, devendo chamar a atenção de uma
pessoa compassiva (que é comumente o objeto desejado) sobre as
necessidades e a aflição da criança. Por este meio, que vai se integrar na
ação específica, o acordo com o outro se encontra assegurado.”“

Estas inscrições originárias são passíveis de transformação. Não


permanecem absolutamente imutáveis. Do constante influxo pulsional e de
novos contextos intersubjetivos resulta uma maleabilidade que permite
ramifica- f ções, formadas a partir de cada núcleo de inscrições originárias.
Assim, o registro desta série associativa de ramificações se realiza nos
diversos momentos fundamentais em que, através do outro, se estruturam as
relações do s sujeito com o mundo, vale dizer, nos novos contextos
intersubjetivos em que o sujeito se encontra posicionado. Assim, nos
diferentes contextos as inscrições originárias se transformam, mas não se
silenciam as inscrições básicas que estão na origem de cada cadeia.

Para Freud, as diferentes fases do desenvolvimento libidinal67 não


constituem apenas momentos de maturação das pulsões, mas também
posições de estruturação do sujeito a partir do destaque adquirido por
determinada zona erógena corporal na relação com o outro, num contexto
in-tersubjetivo. A ordenação pulsional decorrente de cada fase libidinal está
na estrita dependência desta dialética intersubjetiva. Com a constituição do
conceito de organização da libido, formulado em 1913 no artigo A
disposição à neurose obsessiva,6* as teses sobre o desenvolvimento
libidinal formuladas nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ganham
uma interpretação estrutural, considerando-se que a cada fase de
organização da libido corresponde um conjunto específico de fantasmas e
de posições do sujeito, constituído a partir de uma zona erógena e ordenado
no contexto intersubjetivo.69 As várias organizações nas quais se realiza a
estruturação libidinal constituem momentos fundamentais, nos quais as
marcas anteriores se reinscrevem em outros níveis de complexidade, de
maneira que as primeiras interpretações do infante são reinterpretadas num
novo contexto intersubjetivo.

Evidentemente, esta construção da teoria freudiana se fundamenta na


experiência do processo psicanalítico. A constatação do fenômeno da
regressão na relação transferenciai leva Freud a formular a teoria desta
questão. No contexto do processo psicanalítico, a regressão se realiza pelo
caminho destas cadeias de inscrições, mas numa direção inversa daquela em
que se constituíram. Assim, no contexto do intersubjetivo do processo
analítico é possível apreender o movimento do sujeito através destas
cadeias de inscrições e nos contextos intersubjetivos originários que
nortearam o processo de interpretação de suas inscrições.70

A relação intersubjetiva é absolutamente fundamental neste processo de


inscrição originária das pulsões e nas suas reinterpretações subsequentes,
nos vários momentos em que se ordena o registro libidinal do sujeito. Esta
fundamentação teórica justifica epistemologicamente não apenas por que a
psicanálise deve ser de fato e de direito um saber intepretativo, como
também por que ela deve ser uma hermenêutica intersubjetiva.

Ainda no pensamento freudiano, a importância do outro —intérprete


fundamental da experiência pulsional do infante — tem um desdobramento
bastante elucidativo. Para a constituição do infante como sujeito, a presença
da figura materna continua a ser considerada fundamental por Freud,
mesmo depois que este se desloca da teoria da sedução (na qual o trauma da
sedução sexual ocupa o lugar absoluto na constituição das neuroses)71,72
para uma teoria dos fantasmas que se ordenam em torno das fixações
pulsionais, passando a centrar sua atenção na sexualidade infantil.73,74 A
noção de trauma se rlian-tém, pelo gap existente entre a força da
pulsionalidade e a insuficiência representativa do infante, revelando
dinamicamente este processo interpretativo da pulsionalidade, que
pontuamos.

Além das oposições que destacamos no desdobramento do pensamento


freudiano — inscrição/interpretação e interpretação/intersubjetividade —, a
figura materna se delineia também como a constituinte fundamental do
sujeito sexualizado. Com efeito, a partir dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade esta figura emerge como a sedutora originária do infante, pelos
cuidados primários que realiza, fundamentais na constituição do sujeito. O
investimento amoroso-sexualizado (ternura) permite que o infante aceda ao
plano inter-humano, seja instigando a emergência da pulsionalidade e sua
referência ao outro na figura materna interpretante, seja pela possibilidade
que isto abre para a fixação e domínio pulsional através das inscrições
mediadas pela interpretação materna da demanda infantil.75

Esta sexualização originária, resultante da relação com o outro, coloca em


funcionamento as zonas erógenas do infante (que, centradas no eixo
intersubjetivo, deixam de ter um estatuto meramente biológico) e investe
narcisi-camente o infante como outro. Seu assujeitamento ao desejo e aos
ideais dos pais começa a colocá-lo no campo de possibilidade de ser sujeito,
como Freud desenvolve magnificamente em seu trabalho sistemático sobre
o narcisismo.76 Esta participação fundamental da figura materna na
articulação interpretante da pulsionalidade e na sua sexualização correlata
faz com que a inscrição da pulsionalidade na representação fique para
sempre marcada pela presença do intérprete.

Subjacentes às diferentes formas de experiência da loucura, Freud encontra


estruturações diversificadas deste sistema de inscrições, constituído como
interpretações na relação intersubjetiva. Ao processo psicanalítico cabe
abrir esta rede singular de inscrições, que marca a história de um sujeito e
que define o seu destino. O objetivo é reconstruir a história mítica do
sujeito, transformando em história esta pré-história marcada na experiência
originária do seu corpo. A verdade da realidade psíquica pode ser
interpretada novamente no contexto intersubjetivo da relação psicanalítica,
que pretende criar as condições para que esta transformação da pré-história
em história seja mediada pela linguagem.

A experiência psicanalítica pretende realizar uma genealogia do sujeito,


pressupondo não apenas que exista esta inscrição multifacetada da verdade,
mas também que o sujeito, ao longo de sua história, tenha construído várias
versões míticas sobre as suas origens — tantas versões quantos foram os
registros libidinais que marcaram seu corpo e sua trajetória de constituição
em sujeito. Por isso, a genealogia empreendida pela psicanálise exige que
esta investigação genealógica vá tão fundo na história do sujeito quanto o
próprio sujeito, desde que este se perguntou pela primeira vez: quem sou
eu? Esta questão se reapresenta de forma recorrente ao longo do percurso
histórico da criança, sendo formulada através da interrogação infantil: como
eu nasci? Ou, então, numa outra variante desta questão: de onde eu vim?

Freud afirma que esta interrogação constitui, para o sujeito, o primeiro e o


mais importante “problema da vida”. Ou seja, este enigma fundamental
constitui o paradigma de todos os enigmas posteriores, a fonte instigante
para as interrogações infinitas sobre as suas origens e a sua constituição
como sujeito:

“Sob a incitação destes sentimentos e destes cuidados, a criança vai se


ocupar agora do primeiro, do grande problema da vida, e se coloca a
questão: de onde vêm as crianças?”77

O pensamento freudiano assinala que, na medida em que o sujeito vai se


constituindo, a interrogação insistente, feita por ele mesmo, sobre as suas
origens são o enigma fundamental da sua identidade. Portanto, a
problemática da identidade do sujeito está indissoluvelmente articulada à
genealogia de suas origens. Como poderia ser diferente? Constituído na
relação intersubjetiva com o outro, numa pré-história que o transcende e
deixa marcas indeléveis no seu corpo, o sujeito se afirma como o pólo ativo
de sua subjetivação libertando-se deste assujeitamento originário e
constituindo a genealogia de suas origens, através de suas diversas versões
míticas.

As diferentes teorias sexuais infantis78 são, para Freud, as versões míticas


que o sujeito constitui sobre sua própria identidade, considerando
fundamentalmente as suas origens. As diferentes fases da estruturação
libidinal definem o campo constitutivo das diversas teorias sexuais infantis
sobre as origens do sujeito. Transformam-se, nesse processo, as partes
corporais através das quais se definiríam essas origens: ânus, vagina,
relação sexual entre os pais.

Além disso, para se constituir, o sujeito elabora diferentes teorias sexuais


infantis que definem o eixo fundamental para o surgimento e o
desdobramento do desejo de saber, isto é, a paixão pelo saber e a
curiosidade em conhecer.” O envolvimento do sujeito na investigação sobre
o enigma de suas origens se transforma no paradigma que lhe abre
definitivamente o espaço psíquico para as demais interrogações,
desdobrando a sua circulação no universo da representação e instigando o
desejo de saber. Se as interpretações sobre as origens são essencialmente
sexuais, é lícito que se pergunte se a “teoria” não é fundamentalmente
sexual, tendo sido originariamente marcada por essa questão que nunca se
responde inteiramente e que impulsidna o desejo de saber.

A concepção do psiquismo como interpretação e como mito encontra aqui o


seu fundamento último, pois a verdade da realidade psíquica sempre se
inscreveu como interpretação e se formulou no universo mítico. A
experiência psicanalítica pretende investigar essas interpretações e essas
diversas versões míticas constitutivas do sujeito, pois é fundamentalmente
frente a isso que se encontram as figuras do analista e do analisando, tendo
que realizar o deciframento insistente dessas teorias sexuais infantis,
retomando para isso as interpretações materializadas nas diversas versões
míticas sobre as origens do sujeito. Através deste processo vai sendo tecida
a reconstrução mítica da história do sujeito.

1. S. Freud, The prehistory of analytic technique (1920). In The


Standard Edition of tfu complete psychological works of Sigmund
Freud, volume XVII. Op. cit., p. 263.

2. S. Freud. Idem, p. 263-264.

3. S. Freud, Idem, p. 264.

4. S. Freud, The interpretation of dreams. Idem, volume IV, p. 102-


103.

5. S. Freud, The prehistory of analytic technique. Idem, volume


XVIII, p. 264-265.

6. S. Freud, Idem, p. 265.

11. S. Freud, “Frãulein Elizabcth von R.” In Studies on hysteria


(1895). Idem, volume II,® III, p. 160-161. O grifo é nosso.
12. S. Freud, “Katharina”. Idem, p. 125.

13. S. Freud. Fragment of an analysis of a case of hysteria (1905).


"Prefaiory remarks’*', Idem, volume VII, p. 9.

14. Para essa comparação, consideremos as seguimos obras destes


autores: H. Bemheim,

Chystirie. Deflnition et conception. Pathogínie. Traitement. Paris, O. Doin


et filsi 1913; J. M. Charcot, CHystérie. Textos escolhidos e apresentados
por E. Trilliai Privat, Toulouse, 1971; I. Breuer, "Frãulein Anna O.”, Studies
on hysteria. In Tht Standard Edition of the complete psychological works of
Sigmund Freud, volume II Op. cit.

15. M. Foucault, Naissance de la clinique. Paris, Presses Universitaires


de France, 1963, Capítulos VII, VIII e IX.

16. J. Léonard, La médecine entre les pouvolrs et les savoirs. Paris,


Aubier, 1^81. Capitulei VIll.p. 136-137.

17. G. Swain, Le sujet de la folie. Naissance de la psychiatrie.


Toulouse, Privat, 1978.

18. P. L. Entralgo, La relación médico-enfermo. Historia y teoria.


Madrid, Revista de Occidente, 1964.

19. F. A. Mesmer, Le magnétisme animal. Paris, Payot, 1971.

20. F. Rausky, Mesmer et la rívolution thérapeutique. Paris, Payot,


1977.

21. Sobre a constituição histórica destes sabercs, ver: D. Barrucand,


Histoire de 1’hypnose en France. Paris, Prcsscs Univcrsilaircs de
Francc, 1967; L. Chcrtok e R. Saussure, Naissance du psychanalyste.
Paris, Payot. 1973; P. Janet. Les médications psychologiques, volumes
1 c II. Paris, Félix Alcan, 1919; E. M. Thomton, Hypnotism, hysteria
and epilepsy. An historical syntesis. Londres, William Heinemann,
1976.

22. M. Foucault, O poder psiquiátrico. Conferências 9-12. Seminário


do Collège de France. Paris, 1973-1974. Resumo das conferências (12)
feito por Roberto Cabral de Melo Machado e Jurandir Freire Costa.
Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social da UERJ, 1979,
mimeografado.

23. J. Nassif, Freud. L'inconscient. Paris, Galilée, 1977.

24. S. Freud e J. Breuer, Studies on hysteria (1895). In The Standard


Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud,
volume II. Op. cit.

25. G. Politzer, Critique des fondements de la psychologie (1928).


Terceira edição. Paris. Presses Universitaires de France, 1968.
Capítulos I e II.

26. Apesar da grande riqueza revelada por sua análise e das múltiplas
indicações que sua obra oferece para posteriores investigações,
principalmcntc no que se refere ao contraponto da psicanálise com a
psicologia clássica e com a psicologia do início do século XX, a
perspectiva teórica de Politzer apresenta um obstáculo fundamental
para apreender os desdobramentos básicos do saber psicanalítico. Com
efeito, se Politzer sublinhou rigorosamente a inovação epistemológica
introduzida pela psicanálise na tradição da psicologia clássica, pela
formulação da problemática do sujeito e circunscrevendo como objeto
teórico a “vida dramática do homem”, não restringindo a sua
investigação à análise das funções psíquicas que abstraem a existência
do sujeito no “drama” de sua experiência e o transforma num sujeito
“abstrato", a limitação da sua análise está em restringir o sujeito à
primeira pessoa e não sublinhar outras possibilidades para a sua
existência no plano fantasmático, onde o sujeito podería ocupar
também outras posições, na condição de segunda e terceira pessoas.

Com isso, a inovação teórica introduzida por Freud com o conceito de


fantasma não é totalmente apreendida por Politzer nos seus efeitos sobre a
concepção do sujeito, o que vai se revelar príncipalmente com a introdução
da segunda tópica, na qual o ego será considerado como um conjunto de
marcas resultante da identificação com os outros. Ou seja, destacamos a
relevância histórica da obra de Politzer, que ocupou um lugar fundamental
na renovação da psicanálise francesa e na qual Lacan encontrou indicações
precisas, mas acompanhamos Laplanche e Lcclaire quando pontuam
críticamente a presença, em Politzer, de um sujeito restrito à primeira
pessoa. Sobre isto, ver J. Lacan, “Les complexes familiaux dans la
formation de 1’individu”. In Encyclopédie française sur la vie mentale,
volume VII. Paris, 1936; J. Laplanche e S. Leclaire, “L’inConscient: une
étude psychanalytique" (1960), primeira parte. In L‘inconscient.
(Coordenado por H.Ey). VI Colloque de Bonncval. Paris, Desclée de
Brouwer, 1966.

27. L. Althusser, “Freud et Lacan I". In Positions. Paris, Sociales,


1976.

28. S. Freud, The aetiology of hysteria (1896). In The Standard Edition


of the complete psychological works of Sigmund Freud, Op. cit.,
volume III.

29. Sobre isto, ver os comentários do editor J. Strachcy, in S. Freud,


The Aetiology of j

hysteria. Idem, p. 189-90. í

30. Citado por E. Jones, La vie et l'oeuvre de Sigmund Freud, volume


1. Paris, Presses J

Universitaires de France, 1970, p. 396. |

31. Citado por E. Jones, Idem.

32. Sustentando nas duas operações destacadas, que silenciam o que é


epistemicamente

fundamental na constituição do saber psicanalítico, epistemólogos e


psicanalistas i norte-americanos realizaram diversas tentativas nessa
direção, para sustentar a validade ; científica da psicanálise ou para negá-la
definitivamente. Sobre o recenseamento teó- ' rico e histórico desta
problemática, podem ser consultados: A. Bourguignon, “Quelques ’
problèmcs cpistémologiqucs posés dans 1c champ de la psychanalyse
freudienne”. In ■ Psychanalyse à 1'université, volume 6, número 23. Paris,
Réplique, 1981, p. 381-414; i M. Legrand, “Le statut seientifique de la
psychanalisc”. In Topique, número 11-12.1 Paris, Presses Universitaires de
France, 1973, p. 237-258. i

33. S. Freud, New introduetory lectures onpsycho-analyses (1933),


XXXII Conferência. In The Standard Edition of the complete
psychological works of Sigmund Freud, volume. XXII, Op. cit., p. 95.

34. S. Freud, Analysis terminable and interminable (1937). Idem,


volume XXIII, p. 225. 1

35. Carta de Freud a Flicss, 25 de maio de 1895. In “S. Freud, Lcttres a


Wilhelm Fliess..

notes et plans (1887-1902)". In La naissance de la psychanalyse. Paris,


Pressef Universitaires de France, 1973, p. 107.
>

36. Sobre a análise sistemática do conceito de fantasmatização, podem


ser consultados: P.i

L. Assoun, Freud. La philosophie et les philosophes. Paris, Presses


Universitaires dQ France, 1976. Primeira parte, capítulos III, IV e V; P. L.
Assoun, Introduction 4 l' epistémologie freudienne. Paris, Payot, 1981.
Primeira parte, capítulo III, 3, p. 90-94; P. L. Assoun, “Freud et la
mystique". In Nouvelle Revue de Psychanalyse, número 22; Paris,
Gallimard, 1980. |

37. Carta de Freud a Flicss. 2 de abril de 1896. In “S. Freud, Lettrcs a


Wilhelm Fliess, noted

et plans (1887-1902)”. In La naissance de la psychanalise. Op. cit. p. 143-


144. |
38. Para sistematização e recenseamento cuidadoso das posições de
Freud face à filosofia; ver P. L. Assoun, Freud. La philosophie et les
philosophes. Op. cit.; P. L. Assouq Freud esNietzsche. Paris, Presses
Universitaires de France, 1980.

39. S. Freud, “The question of a Wcitanschauung". In New


introduetory lectures á

44. A linha de desenvolvimento dessa investigação tem sublinhado o


paradoxo colocacfl pelo saber psicanalítico na perspectiva freudiana:
de um lado, realçamos a ruptitíi epistemológica realizada pela
psicanálise no campo de saberes sobre a,psique existenty no final do
século XIX, o que foi um acontecimento fulgurante no campo da
história da{ ciências; por outro, destacamos que os fundamentos do
discurso psicanalítico transcendem o campo da ciência e apontam para
uma nova forma de saber. Enquanto saber interpretativo fundado na
experiência intersubjetiva e que encontra na fantasmatização a sua
estratégia primordial, a psicanálise é representada como muito
diferente do discurso científico e próxima da tradição mito-poética e
filosófica. Com isso, um paradoxo marca o pensamento freudiano, que
se constitui no campo da história das ciências pelas várias rupturas que
marcam a sua formalização, mas não fica circunscrito a este campo,
pois se apresenta como uma forma original de interpretação,
sustentada na relação intersubjetiva. Com Freud, o saber psicanalítico
transcende em muito a condição de novo “método de conhecimento"
sobre a psique. Sobre a argumentação epistemológica na psicanálise,
ver o primeiro volume desta pesquisa, Freud e a experiência
psicanalítica. Op. cit.

45. S. Freud, “L’inconscient” (1915). La métapsychologie. Op. cit., p.


77.

46. C. G. Jung, “Studies in word association” (1904-1910).


Experimental researches. In The collected works of C.G. Jung, volume
2. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1974.

47. S. Freud, On the history of the psycho-analytic movement, capítulo


2. In The Standard Edition of the complete psychological works of
Sigmund Freud, volume XIV, op. cit., p. 28-30.

48. S. Freud, “The psychotherapy of hysteria”. Studies on hysteria. In


The Standard Edition ofthe complete psychological works of Sigmund
Freud, volume II. Op. cit., p. 286-290.

49. S. Freud, "Esquisse d’une psychologie scientifique” (1895),


segunda parte. In La naissance de la psychanalyse. Op. cit.

50. Carta de Freud a Fliess, 6 de fevereiro de 1896. In S. Freud,


“Lettres a Wilhelm Fliess, Notes et plans” (1887-1902). In La
naissance de la psychanalise. Op. cit., p. 153-160.

51. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions" (1913). In


Métapsychologie. Op. cit., p. 11-25

52. S. Freud, Carta de Freud a Fliess, 25 de maio de 1895. In S. Freud,


“Lettres a Wilhelm Fliess, Notes et plans” (1887-1902). In La
naissancede lapsychanalise. Op. cit.,p. 107.

53. F. Roustang, Un destin sifuneste. Paris, Minuit, 1976..

54. S. Freud, “Sur quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie,


la paranóia et 1’homosexualité”. In Névrose, psychose et perversion.
Op. cit., p. 273-278.

55. O. Mannoni, “L’analyse originelle (suites)”. In Un commencement


qui n’en ftnit pas. Paris, Seuil, 1980, p. 41-55.

56. Sobre a crítica a Mannoni, ver S. Coitct, Freud et le désir du


psychanalyste. Capítulo IX. Paris, Navarin, 1982.

57. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions” (1915). In


Métapsychologie. Op. cit., p.

62. S. Freud, “Esquisse d’une psychologie scientifique” (1895). In La


naissance de la psychanalyse. Primeira parte. Op. cit., p. 336, p. 339.
63. S. Freud, Civilization and its discontents (1930), capítulos I e II. In
The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume XXI. Op. cit.

64. J. Laplance, L' inconscient et le ça. Problématiques IV. Paris,


Presses Universitaires de France, 1981.

65. S. Freud, “Esquisse d’une psychologie scientifique" (1895). In La


naissance de la psychanatyse. Op. cit., p. 336.

66. S. Freud, Idem, p. 376.

67. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905), segundo


ensaio. In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud, volume VII. Op. cit.

68. S. Freud, "La disposition à la névrose obsessionelle” (1913). In


Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 189-197.

69. Sobre isto, ver o verbete “Organization de la libido”, in J. Laplance


e J. P. Pontalis, Vocabulaire de lapsychanalyse. Op. cit., p. 297-298.

70. A formulação mais elaborada de Freud sobre isso aparece em S.


Freud, Inhibition, symptôme et angoisse. Op. cit., capítulo VIII.

71. S. Freud, “Nouvellcs remarques sur les psychonévroscs de


défense” (1896). In Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 61-81.

72. S. Freud, “L’étiologie de 1’hystérie” (1896). Idem, p. 83-112.

73. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume VII. Op. cit.

74. S. Freud, My views on the part played by sexuality in the aetiology


of the neurosis (1906). Idem.

75. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). Idem, p.


222-224.
76. S. Freud, “Pour introduire le narcisisme” (1914), segunda parte. In
S. Freud, La vie sexuelle. Op. cit., p. 95-96.

77. S. Freud, “Les théories sexuelles infantiles” (1908). In La vie


sexuelle. Op. cit., p. 17.

78. S. Freud, Idem.

79. S. Freud, Idem. p. 17.

Segunda parte Estratégias e limites


da constituição do campo
psicanalítico
“A humanidade sabia que era dotada de espírito; eu devia lhe mostrar que
também existiam as pulsões.

Mas os homens estão sempre insatisfeitos, não podem esperar. Eles querem
sempre alguma coisa pronta e acabada..

S. Freud em diálogo com L. Binswaríger, Souvenirs sur Sigmund Freud1

A constituição da clínica psicanalítica


A construção teórica que levou ao modelo metapsicológico do sonho
transformou-se no paradigma metodológico do saber psicanalítico, pois
delineou a possibilidade de interpretação sistemática das diversas
formações do inconsciente. Nele, o pensamento freudiano foi inscrevendo
as mesmas coordenadas e as mesmas regras do funcionamento mental que
circunscreviam as fronteiras do recém-descoberto território do inconsciente,
considerado o representante básico da realidade psíquica e, portanto, o
fundamento estrutural do aparelho psíquico.
Assim, através de um fenômeno empiricamente circunscrito — ou seja, o
sonho —, Freud analisou uma forma de funcionamento psíquico que
posteriormente pôde ser transposta para outras formações mentais. Além
disso, ao assinalar num fenômeno psíquico normal a presença de postulados
teóricos construídos no campo das estruturas patológicas, o pensamento
freudiano pôde transpor as fronteiras interditas entre o normal e o
patológico. Com isso, Freud teve condições de subverter o espaço
epistemológico da psicopatologia, passando a investigar a realidade
psíquica num plano em que o universo da normalidade e o das diferentes
estruturas psicopatológicas eram perpassados pelas mesmas regularidades.

Mas o modelo metapsicológico do sonho não foi a construção teórica que


deu origem ao discurso psicanalítico. As estruturas psicopatológicas,
inseridas no eixo metodológico da psicanálise em vias de constituição,
foram as condições de possibilidade de construção desse modelo
metapsicológico. Só depois ele ocupou um lugar epistemológico
privilegiado, transformando-se no paradigma metodológico do saber
psicanalítico e permitindo transcender a oposição entre o normal e o
patológico pela delimitação de um espaço teófico comum, do qual a
normalidade e as diferentes estruturas da psicopatologia seriam variantes
possíveis. Nas primeiras linhas de A interpretação dos sonhos, Freud
introduz essa problemática e ressalta a equivalência metapsicológica dessas
diferentes estruturas:

“Eu tentei expor, neste volume, a interpretação dos sonhos; e, fazendo isso,
não fui além do campo de interesse da neuropatologia. Pois a investigação
psicológica mostra que o sonho é o primeiro termo de uma série de
fenômenos psíquicos anormais. Os termos posteriores, como as fobias
histéricas, as obsessões e os delírios, devem interessar os médicos por
motivos práticos. Como será visto em seguida, os sonhos não podem
pretender ter esta importância prática; mas o seu valor teórico como
paradigma é proporcionalmente maior. Aquele que não consegue explicar a
origem das imagens do sonho pode esperar em vão para compreender as
fobias, as obsessões e os delírios, ou para exercer sobre eles uma influência
terapêutica.”2
Essa articulação fundamental entre a estrutura dos sonhos e as diversas
estruturas psicopatológicas indica a existência de um espaço psíquico
originário, para onde deve convergir a genealogia das diversas estruturas
mentais. Derivações do mesmo campo psíquico de possibilidade, elas
apresentam uma equivalência estrutural.

Além do texto acima, que abre a obra sobre os sonhos, Freud retoma sua
formulação no capítulo metodológico de A interpretação dos sonhos, antes
de efetuar o modelar deciframento do sonho da “Injeção de Irma”. Afirma
que estava apenas transpondo, para a análise sistemática dos sonhos, a
metodologia que vinha usando no campo das psiconeuroses.3 Assim, a
construção metapsicológica originária do saber psicanalítico se sustentou
fundamentalmente no campo da experiência da loucura, que foi inserida no
espaço analítico em constituição, antes de se transformar num paradigma
para o modelo do sonho, i

Um longo percurso freudiano de construção teórico-clínica precedeu a 1


formalização do modelo metapsicológico do sonho e tornou possível uma
série de rupturas epistemológicas com os saberes existentes sobre a loucura,
que funcionaram como condições de possibilidade para a constituição do
campo psicanalítico.

Da lógica da anatomia à lógica da representação


A ruptura teórica do pensamento freudiano com o modelo médico-psi-
quiátrico não se realizou de uma só vez. Durante anos Freud se afastou
progressivamente do campo da neuropatologia e se voltou para os
ingincados problemas colocados pelas neuroses. Esse transcurso foi
marcado por um conjunto de minuciosas rupturas teóricas e articulações
conceituais, que resultaram na composição inicial do campo psicanalítico.

Neste contexto histórico-epistemológico a figura da histeria ocupa um lugar


estratégico, como o ponto central de um cenário no qual foi subvertido o
espaço da medicina e constituído o campo psicanalítico. Os outros
elementos deste cenário se orientam e se situam a partir do que ocorre na
posição da histeria, eixo teórico que estrutura a dissolução do antigo espaço
discursivo e possibilita a constituição da nova forma de saber. Charcot foi o
ponto de partida, a orientação inicial, do percurso freudiano. Mas, para
restaurar a loucura no seu estatuto de verdade, Freud precisou se emancipar
de Charcot, radicalizando as perspectivas entreabertas por ele. Apenas então
a desorde-nação corporal da histeria foi apreendida na sua expressividade,
inserida no contexto da realidade psíquica e definida como uma forma de
linguagem, capaz, portanto, de inscrever-se no campo da verdade.

Vamos delinear a posição estratégica da histeria e as rupturas teóricas que


se realizaram através deste seu lugar privilegiado como operador
conceituai. A figura da histeria provocou uma evidente ruptura na
racionalidade médica, pois, apesar de se manifestar através de uma
variedade quase infinita de sintomas corporais muito complexos, não se
deixava reduzir teoricamente pela racionalidade da medicina somática, que
pretendia relacionar as diversas composições sintomáticas com lesões
anatômicas específicas. Historicamente, a figura da histeria foi o ponto de
falência do método anátomo-clínico que, no início do século XIX, marcou o
advento da medicina moderna como um saber do individual.4 Resistindo a
esta redução explicativa e não se adequando ao registro da racionalidade
médica, a histeria colocou em xeque a moderna clínica constituída a partir
da racionalidade anátomo-patológica.

Neste contexto histórico se destaca a figura de Charcot. Intemacionalmente


reconhecido em sua autoridade, rigorosamente formado na tradição neuro-
patológica do século XIX, ele propõe formulações fundamentais, dotadas de
relevantes efeitos teóricos. Enquanto saber, diz, a neuropatologia chegara ao
limite. Suas possibilidades de investigação teórico-clínica estavam
esgotadas, pois suas pretensões e seus pressupostos teóricos haviam sido,
no fundamental, realizados. O processo de demarcação clínica da
articulação entre as enfermidades nervosas e as alterações anatômicas havia
sido completado, de acordo com os cânones do método anátomo-clínico.

A formulação de Charcot demarca explicitamente os limites da


neuropatologia e da sua metodologia de investigação. Porém, essa negati-
vidade teórica funciona como um operador epistemológico que tambéní
define um novo campo de positividades. Na perspectiva teórica de Charcot,
esta constatação deveria incentivar o estudo das neuroses, sobretudo da
histeria, cujo espaço de investigação volta a se abrir.5A?

As formulações fundamentais de Charcot implicam o reconhecimento


parcial das impossibilidades colocadas pelo método anátomo-clínico, pelo
menos no que se refere a diversas positividades pertencentes ao campo da
clínica médico-psiquiátrica. Aparece uma demanda explícita por outra
metodologia de pesquisa, cujo instrumento metodológico será a hipnose.

Essas proposições de Charcot tiveram efeitos marcantes no contexto


ideológico da medicina européia no final do século XIX. Com a força do
seu prestígio científico, Charcot assinalou os limites do método anátomo-
patoló-gico e legitimou a importância teórico-clínica da histeria para o
campo da medicina, trabalho que fora iniciado na tradição médica francesa
pelo enorme recenseamento clínico realizado por Briquet.

Tanto do ponto de vista clínico quanto ético-social, a figura da histeria foi


parcialmente valorizada. O gesto teórico de Charcot resgatou do limbo esta
figura, que deixou de ser considerada como típica de um universo de
mentirosos e simuladores.8,910 A conseqüência dessa postura foi o
desenvolvimento de investigações etiológicas e clínicas sobre a histeria,
principalmente por Charcot e seus discípulos na Salpêtrière, mas não só por
eles, nem só na França.

Embora Charcot anunciasse os limites do método anátomo-clínico e


privilegiasse a investigação hipnótica da histeria, sua ruptura com a ordem
médica foi apenas parcial, como mostra sua insistente busca de uma
ctiologia anatômica para a histeria. Se, ao contrário do que ocorria nas
demais enfermidades nervosas, não existia uma lesão localizada, deveria
existir uma “lesão dinâmica”, idiopática, sustentada numa hereditariedade
familiar.1,12 Enfim, Charcot se manteve no interior da racionalidade médica,
apesar do lugar que abriu para o reconhecimento da figura da histeria (e do
seu discurso) na instituição médica.

Bemheim formulava justo o oposto. Com ele, a figura da histeria foi


completamente desarticulada da racionalidade anátomo-clínica, pois todos
os sintomas decorreríam de processos de sugestão, que adquiriam assim um
prodigioso estatuto material. Ao situar-se nas bases dos efeitos corporais da
histeria, a sugestão apontava o caminho racional para a sua terapêutica, pois
a própria eficácia da hipnose seria decorrente de um efeito sugestivo. Neste
contexto teórico, portanto, o corpo da histeria se desarticula de qualquer
materialidade anatômica.

No fim do século XIX, entre as escolas de Salpêtrière e de Nancy se


polariza um conflito de tendências teóricas sobre a histeria. Alguns
tentavam mantê-la no campo da patologia nervosa, apesar das reconhecidas
impossibi-lidades metodológicas; outros queriam tomá-la mais autônoma
em relação a este campo, hipostasiando o conceito de sugestão, transmutado
às vezes para uma auto-sugestão que adquiria características etiológicas. A
sugestiona-bilidade seria a marca fundamental da histeria, decorrendo daí a
eficiência da hipnose como método de cura.

Na condição de neurologista, Freud foi aluno de Charcot em Paris, numa


viagem que transformou seu destino. Tendo seguido para fazer estudos neu-
ropatológicos, ele concentrou toda a sua atenção na histeria, no hipnotismo
e na sugestão. O prestígio do mestre, que decretara o limite teórico da
neuropatologia e passara a investir na pesquisa da histeria, foi decisivo.
Porém, na medida em que se aproxima deste campo de investigação, Freud
çomeça também a se interessar pelas formulações de Bernheim. Depois de
Paris, onde esteve em 1885-1886, foi a Nancy, em 1889, para assistir as
curas de Bernheim.

Assim, entre Charcot e Bernheim circula o jovem Freud, que tenta


participar do moderno empreendimento de explicação etiológica e de cura
da histeria. Ele oscila entre uma tendência e outra, criticando aspectos de
ambas, divulgando as suas obras numa Viena marcadamente hostil às
transgressões com o método anátomo-clínico. Assim, vai construindo o seu
próprio objeto de investigação. A influência destas tendências fica marcada
na sua leitura dos fenômenos histéricos e nas traduções que faz para o
alemão de algumas obras destes autores.

Com a legitimidade conferida pela ciência européia, Charcot cauciona a


aproximação de Freud com a histeria e o hipnotismo. Com isso, Freud pode
prestar atenção em Bernheim, não compartilhando do desdém que os
teóricos dos países de língua alemã manifestavam em relação aos
fenômenos sugestivos e às démarches clínicas baseadas neles.I31415,16,17
Mas Freud transcende os dois mestres. A partir da questão colocada pela
figura enigmática da histeria, constitui uma problemática teórica original,
embora mantenha certas exigências metodológicas fundamentais, que não
encontravam soluções teóricas sólidas no contexto das investigações nem
de Charcot, nem de Bernheim.

Da formulação de Charcot, Freud mantém fundamentalmente a demanda


para descobrir os pequenos meandros que conduzem à constituição do
sintoma histérico, reconhecendo neste a presença de uma arquitetura
complexa, que merecia ser desvendada nos seus menores detalhes.
Acompanhando Charcot, Freud reconhece a especificidade do sintoma
histérico, que não podia ser diluído na categoria geral de sugestão, mas, ao
contrário, devia ser delineado de forma rigorosa e específica. Mas Freud
supera a perspectiva de Charcot, ao não reduzir esta singularidade do
sintoma histérico à ordem racional da âná-tomo-patologia. Em vez disso,
desbasta as camadas estratificadas que formam a complexa arquitetura do
sintoma, seguindo o caminho aberto pela revelação I discursiva do próprio
histérico, até atingir o ponto culminante desse percurso i no momento
histórico em que o sujeito constituiu o sintoma.

Para isso Freud teve que incluir a investigação do sintoma histérico num I'
contexto intersubjetivo, enfrentando a evidente debilidade inicial desse eixo
! metodológico. Este caminho o leva a reconhecer a relevância da pesquisa
de Bemheim. Porém, atribuindo importância teórica fundamental ao
desvenda-mento da arquitetura do sintoma histérico, Freud critica Bemheim
por reduzir toda a questão da histeria à sugestionabilidade. A sugestão não
seria uma realidade primeira e demandaria uma interpretação teórica:

“Mas, o que é de fato esta sugestão que está na base de todo o hipnotismo,
da qual todos estes resultados são possíveis? Levantando esta questão nós
tocamos num dos lados fracos da teoria de Nancy. Nos recordamos
involuntariamente da questão de onde São Cristóvão está sustentado quando
encontramos que o trabalho exaustivo de Bernheim, que culmina na
afirmação 'Tout est dans la sugestion’, em nenhum lugar procura se
perguntar sobre a natureza da sugestão, isto é, sobre a definição do
conceito...”1’
O questionamento à formulação de Bernheim é bastante denso, pois Freud
não indaga sobre o fundamento da sugestionabilidade para justificar o
descarte desse conceito. Pretende ir além dele, interrogando-se sobre o que
efetivamente o sustentava. Desta inquirição teórico-clínica se constituirá
posteriormente, no percurso freudiano, o conceito de transferência, através
do qual o discurso psicanalítico vai conseguir articular a exigência
charcotiana de reconhecimento da singularidade do sintoma histérico e a
racionalidade sugestiva de Bemheim. Para isto, será necessário transcender
os contextos teóricos que deram origem a estas exigências e constituir uma
outra metodologia de leitura do sintoma, de modo a inseri-lo
definitivamente no registro do sentido.

Em 1904, Freud destaca como Bemheim ocupou um lugar importante em


seu próprio percurso, ao sublinhar o poder curativo da sugestão apesar de
toda a oposição que essa abordagem provocava na mentalidade médica de
então. Formula que o fenômeno transferenciai estaria na base da
sugestionabilidade19 e, com isso, define a genealogia conceituai da
transferência, que passa a ocupar um lugar fundamental na metodologia
psicanalítica. De A psicoterapia da histeria20 até o estudo monográfico
sobre Dora,21 as novas modelagens que sofre o conceito de transferência
definem o alcance do discurso psicanalítico e a distância que toma em
relação às suas origens. *

Indo além de Charcot e sempre atento aos movimentos de Bemheim, o


pensamento freudiano especifica o seu objeto teórico de investigação e
realiza uma interpretação radical dos fenômenos histéricos, subvertendo não
apenas um fragmento da questão, mas o próprio espaço epistemológico em
que ela se situava. Freud propõe que a figura da histeria se articula no
campo da representação e não no campo do corpo anátomo-patológico.
Este deslocamento epistemológico rompe com a racionalidade médico-
psiquiátrica e constitui uma nova problemática teórica. A partir dela, Freud
pode situar a figura da histeria no campo da verdade. Passa a existir algo a
ser decifrado na própria histeria. O corpo do histérico não é originariamente
defeituoso e, por isso mesmo, suporte de anomalias a serem corrigidas e
eliminadas como resíduos.
Com base neste postulado e levando adiante uma sugestão de Charcot, entre
1883 e 189322-23 Freud empreende um estudo original para diferenciar as
paralisias orgânicas e as histéricas. Esse longo período, utilizado para a
formalização teórica de proposições que já estavam indicadas no estudo de
1888 para a enciclopédia médica de Villaret, marca o tempo levado por
Freud para realizar a ruptura teórica com a teoria de Bernheim e,
principalmente, a de Charcot. Não é casual que esse escrito tenha sido
publicado originalmente em francês, destacando-se assim, de maneira
simbólica, a ruptura teórica em vias de constituição. Começa a se delinear
com nitidez o momento da teoria catár-tica na constituição do pensamento
freudiano, cuja aventura teórica passa a ser momentaneamente
compartilhada com Breuer.

No escrito de 1893, Freud formula algo fundamental para a sua


interpretação da histeria e provoca perplexidade entre os médicos: os
sintomas corporais da doença, aparentemente caóticos, não podiam ser
explicados pela racionalidade anátomo-clínica, pois estavam centrados num
corpo representado, e não na estrutura do corpo anatômico. Portanto, a
confusão teórica provocada pela figura da histeria desaparece quando
deslocamos nosso quadro de referência de uma lógica da anatomia para
uma lógica da representação, com todas as conseqüências desta passagem.24

Na interpretação freudiana, os sintomas histéricos se articulam num sistema


coerente, fundado na imagem do corpo e não na estrutura do corpo,
subordinada esta última às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos
sistemas funcionais. O importante passa a ser como o histérico vivência a
sua corporalidade, ou seja, de que maneira investe as diferentes partes do
seu corpo e as interpreta como superfícies dotadas de significação. Por isso
é inviável qualquer tentativa de articulação entre composições sintomátiéas
e lesões anatômicas.

O postulado teórico que afirma a existência de um corpo representado como


eixo de sustentação da histeria é a primeira construção positiva que define a
possibilidade de existir outra ordem corporal, diferente daquela circunscrita
pelos cânones da anátomo-clínica. Além dessa conseqüência, fundamental
para a constituição de outra problemática teórica, a formulação freudiana
apresenta implicações que se situam no plano dos fundamentos: confere à
anatomia e à patologia uma configuração imaginária, na medida em que o
histérico produz os seus sintomas somáticos e sofre as suas dores na
imagem do corpo, e não na materialidade de sua estrutura anatômica. Neste
contexto pode-se enunciar que “é sobretudo de reminiscências que sofre o
histérico”,23 conferindo assim materialidade legítima ao campo da
representação, com todas as consequências que isto terá para a constituição
de um novo espaço clínico e para a realização da cura catártica.

A existência de um corpo representado é uma formulação teórica que


influencia de forma bastante concreta a leitura que Freud realiza sobre o
encaminhamento clínico da histeria e sua terapêutica. Freud pôde superar o
esquema semiológico da crise histérica, ordenado por Charcot em quatro
fases, destacando a terceira destas, denominada de “fase das atitudes
passionais”. Ela conduziría ao eixo teórico do corpo representado, enquanto
as demais estariam circunscritas ao registro do corpo anátomo-funcional.26

No plano da leitura clínica da crise histérica, o destaque atribuído à


passionalidade alucinatória é o correlato do destaque conferido à temática
do trauma na constituição da histeria, de maneira que o eixo teórico do
corpo representado se articula intimamente com a questão do trauma. As
marcas da experiência traumática incidem sobre a imagem do corpo do
histérico — corpo representado, essencialmente inserido na temporalidade
da história do sujeito —, e não sobre a do corpo anatômico.27 Assim, a
figura da histeria se desloca do plano biológico e se inscreve no registro da
história do sujeito, marcada pela escala do tempo e pela constituição de uma
estrutura que se ordena no plano do sentido.

Em 1905, com a formulação da teoria da sexualidade infantil, a psicanálise


encontra um novo desdobramento, com a descoberta de um corpo erógeno
que se constitui a partir deste corpo representado originário.2’ Com isso, o
corpo representado da histeria adquire uma singularidade e uma
complexidade inauditas. A passionalidade alucinatória da crise histérica se
transforma em signo de uma luta gigantesca entre posições sexuais no
contexto fantasmático do sujeito. Na histeria, as posições masculina e
feminina dos fantasmas sexuais lutam pela posse do corpo representado.2’30
A lógica da representação e a cartografia do
universo da loucura
Este delineamento do campo da representação e a construção do seu corpo
correlato servem como eixo epistemológico para uma dupla operação
teórica que faz um mapeamento particular do universo da loucura.

Examinemos esquematicamente as incisões realizadas pela primeira


operação. Ao penetrar na investigação da histeria, Freud se defronta
simultaneamente com patologias próximas a ela, situadas nos limites do seu
campo clínico e também irredutíveis ao domínio da neuropatologia e da
racionalidade anátomo-patológica. Encontra-se com a neurastenia, definida
nosologica-mente pelo norte-americano Beard, dotada de grande
importância médico-social nesse contexto histórico, por sua enorme
ocorrência, e caracterizada como uma resultante do esforço exigido pelo
processo “civilizatório”. Freud começa por discriminá-la da histeria pelo
duplo caráter de presença/ausência de representação na produção do
sintoma e pelo tipo de economia sexual que lhe era subjacente. Ao estudar a
experiência neurastênica, ele não realiza a mesma operação metodológica
que o levara a inserir a histeria no plano do corpo representado. A
neurastenia é articulada no plano do corpo biológico, sendo apresentada
como a resultante de uma certa disfunção da economia sexual.

Utilizando o novo eixo epistemológico como critério teórico de


diferenciação, Freud procura delinear os contornos do corpo representado,
estabelecendo sua oposição e seus limites face ao corpo biológico. Com
isso, o pensamento freudiano se afasta de sua concepção primeira, de uma
psico-gênese generalizada e absoluta, que em verdade se sustentava na
teoria da sugestão.31 Manejando esse quadro mais complexo de oposições,
Freud pode estabelecer outras clivagens fundamentais no território da
loucura.

A neurastenia de Beard é deslocada do lugar onde se inseria e passa a


articular-se num outro espaço, que se sustenta em novas coordenadas
teóricas. Sua figura se remodela e recebe novo traçado. Sua etiologia se
transforma de maneira radical, não sendo mais pensada como sendo o
produto do “esgotamento” provocado pelo processo “civilizatório”, mas
como o resultado primário de uma disfunção da economia sexual, no
interior do qual o citado “esgotamento” podería eventualmente funcionar
como causa precipitante para a sua eclosão no plano clínico.

Se nesse momento do percurso freudiano a transformação das coordenadas


teóricas de Beard sobre a neurastenia já se coloca de maneira fundamental,
posteriormente essa transformação se torna mais radical. Com a
constituição da teoria da sexualidade infantil em 1905, a formulação
freudiana se desdobra ainda mais, chegando mesmo a uma inversão
completa dos postulados de Beard. Em 1908, Freud formula que a “doença
nervosa” dos “tempos modernos” não se devia primariamente ao impacto
genérico do “processo civi-lizatório” sobre as pessoas. Esta incidência da
“civilização” sobre os indivíduos era intermediada pelas formas básicas de
constrangimentos que o estilo “moderno” da existência social impunha às
demandas originárias da sexualidade. Enfim, a neurastenia de Beard seria
uma estrutura psicopatológica privilegiada na história da modernidade, ao
lado de outras organizações neuróticas, na medida em que remetia
fundamentalmente à forma de ordenação da “moral sexual” dos “tempos
modernos”.32

Antes desse desdobramento, outros efeitos importantes foram produzidos


pelo deslocamento do espaço teórico em que se pensava a neurastenia.
Incisões fundamentais não só construíram uma nova figura da neurastenia.
Deram origem a outra figura, a neurose de angústia, também situada no
plano do j corpo biológico mas caracterizada por outra forma de disfunção
sexual. ‘

Na neurastenia havería um “excesso de perda” da energia sexual somática,


produzindo conseqüentemente o esvaziamento sexual do indivíduo. Na
neurose de angústia existiría a “contenção excessiva” da excitação sexual
somática, ou a impossibilidade de incorporá-la no registro psíquico. Neste
caso, a excitação levaria à produção de sintomas somáticos pela
impossibilidade de descarga.33

Enfim, a oposição corpo representado/corpo biológico permite configurar a


existência de dois grupos de neuroses — as psiconeuroses e as neuroses
atuais. A histeria e a neurose obsessiva estariam entre as primeiras,
enquanto a neurastenia e a neurose de angústia pertenceríam ao segundo
grupo.3<-33-36

Com isso, podemos delinear as incisões realizadas pela segunda operação


teórica. Nesta divagem do território da loucura se insere também a
sexualidade, que circularia de diferentes maneiras no campo da
representação e no campo do corpo biológico, cujas relações são
complexas, conforme assina- , laremos adiante. Cabe ressaltar, no entanto,
que o corpo representado é sexua- ' lizado e que o seu investimento sexual
não é o mesmo que estaria presente no , corpo biológico. A articulação
entre corpo representado e traumatismo sexual, < que apontamos
anteriormente, já indicava este investimento sexualizado do 1 corpo
representado. 1

A sexualidade circulante no campo da representação é que estaria em |


questão na produção dos sintomas das psiconeuroses, as únicas formas de'
neurose passíveis de uma psicanálise, justamente porque seriam
constituídas por mecanismos psíquicos. Nas neuroses atuais, ao contrário, a
excitação* sexual produzida no plano do corpo biológico não teria acedido
ao corpo representado e, por isso, não circularia num quadro de
representações. As perturbações sintomáticas se originariam justamente
desta impossibilidade, com os signos revelando o extravasamento, para o
plano do corpo somático, do que não pode circular no plano psíquico, onde
podería haver um canal adequado de descarga. Enfim, o mecanismo das
neuroses atuais seria somático, inexistindo elaboração psíquica da excitação
sexual.

A oposição entre as neuroses atuais e as psiconeuroses, sustentada pela


ruptura epistemológica entre o corpo biológico e o corpo representado,
indica incisivamente a importância, no pensamento freudiano, do critério da
representação para as partilhas que se realizam no universo da loucura.
Indica também que este critério funciona para estabelecer os limites
epistemológicos do campo psicanalítico e suas fronteiras com o campo
médico-psiquiátrico. A articulação entre essas formulações se torna ainda
mais fundamental se considerarmos que o critério epistemológico do corpo
representado é o correlato da metodologia freudiana de investigação,
baseada na análise de representações.

Com efeito, a psicanálise só pode examinar sintomas que se inscrevam no


campo da representação, contribuindo para a sua superação e
desaparecimento através de uma análise de representações mentais, das
forças nelas investidas e da dinâmica interna deste espaço de
representações. Só são passíveis de elucidação e de resolução clínica pela
psicanálise os sintomas produzidos através de mecanismos psíquicos. Entre,
de um lado, a partilha, a ordenação e o estabelecimento de diferenças
estruturais no campo da loucura e, de outro, o método freudiano de
investigação em vias de constituição existe uma relação fundamental, que
marca inclusive os próprios limites epistêmicos de validade deste método.

Esse eixo teórico estará sempre presente no tratamento dado por Freud à
oposição entre grupos de neurose, que nunca é pensada como um sistema
metafísico de essências. O pensamento freudiano procura estabelecer
relações muito importantes entre as estruturas atuais e as representadas.
Consideradas de forma pura, as neuroses atuais e as psiconeuroses são
construções teóricas, tipos ideais. Mesmo assim, em certas situações
limites, podem existir empi-ricamente. Isso, no entanto, não é comum, já
que na prática clínica as neuroses são principalmente mistas, apresentando
características das neuroses atuais e das psiconeuroses.

Nesta perspectiva, as neuroses atuais são causas precipitantes das


psiconeuroses, pois podem desequilibrar o campo da representação e levar
ordenação da tessitura psíquica típica dos sintomas psiconeuróticos.37'3*
Ba-seando-se nas associações presentes nos quadros clínicos ou na analogia
sintomática, Freud estabelece relações — inicialmente esparsas mas
posteriormente sistemáticas — entre os dois grupos: entre a neurose de
angústia e a histeria, e entre a neurastenia e a neurose obsessiva.

O pensamento freudiano sempre sustentou esta articulação, num quadro de


oposições básicas. Em Para introduzir o narcisismo, de 1914, Freud postula
a existência de uma terceira neurose atual — a hipocondria — que estaria
articulada à genealogia das psiconeuroses narcísicas, mantendo as mesmas
articulações anteriores.39 Porém, a existência da articulação entre grupos
diferentes de neuroses não significa absolutamente o fim da oposição
estrutural entre duas ordens diversas de realidade.

A articulação entre diferentes tipos de neurose permite apreender a


complexidade da realidade clínica, mas nem por isso a diferença estrutural
desaparece. A análise das representações mentais permanece como um
procedimento válido apenas para os sintomas que se situam no campo da
representação, e a psicanálise como método de investigação nada pode fazer
diante dos sintomas da neurose atual: como qualquer médico, o psicanalista
pode “dar conselhos” sobre a prática sexual desses pacientes, sem situar-se
no entanto no campo psicanalítico propriamente dito, já que se trata de
fenômenos que estão inscritos numa outra ordem de realidade.

Reconhecendo-se a existência desse sistema básico de oposições, pode-se


acrescentar outra nota nestas relações entre diferentes tipos de neurose,
tornando mais complexa e mesmo invertendo a genealogia já referida, como
fez o próprio Freud num momento posterior. Se a neurose atual é capaz de
desequilibrar o sistema psíquico de representações e levar à emergência da
psi-coneurose, a articulação inversa também é possível. Com efeito, uma
forma de psiconeürose pode estar na base de uma neurose atual, não como a
sua causa precipitante mas como uma estrutura mental que funciona como
sua condição de possibilidade.

Tomando novamente como exemplo a figura da neurose de angústia,


recordemos que um de seus eixos de estruturação é a impossibilidade de
incorporar a excitação sexual ao plano da representação, o que pode ocorrer
por várias razões, até mesmo por uma psiconeürose. Então, o recalcamento
sexual pode funcionar como condição de possibilidade de uma neurose
atual que, com a estase da economia sexual, fornece em contrapartida novos
elementos! para o intrincado sistema de representações da psiconeürose.
Enfim, pelo mesmo caminho demonstrativo, poderiamos assinalar outros
pontos no que sei refere à neurastenia: algo situado no campo da
representação mental impossibilita a incorporação psíquica da excitação
sexual do corpo biológico e suá transformação.
*

Do corpo biológico ao corpo erógeno


Subjacente às relações de oposição estrutural e de articulação clínica entre
diferentes tipos de neurose, o pensamento freudiano discute algo mais
fundamental: a forma de articulação entre o corpo biológico e o corpo
representado.

Esse pensamento não se ocupa do corpo anátomo-patológico, marcando


assim sua ruptura epistemológica com a ordem médica. Superado, o corpo
anatômico se encontra com o corpo biológico, que está inserido na
problemática de um campo teórico original, que pretende estabelecer as
relações fundamentais entre o este corpo e o corpo representado.
Assinalamos anteriormente que desde 1891, quando estava trabalhando na
temática da afasia, Freud se encontrava na trilha dessa reformulação teórica
fundamental, na medida em que superava a teoria localizadora da afasia e
postulava que a especificidade deste fenômeno estava numa relação original
entre o corpo funcional e o corpo representado.40

Nesse momento do seu percurso, o pensamento freudiano se mantém na


linha de interpretação inaugurada em Sobre a afasia, mas, sem dúvida, de
forma mais ousada, pois agora a relação entre o corpo biológico e o corpo
representado está sendo pensada num nível mais genérico e, portanto, mais
fundamental. Mas, para que se pudesse circunscrever de maneira rigorosa o
campo da psique como objeto de investigação, seria preciso encontrar a
articulação teórica entre os planos biológico e representado.

Por isso, a função sexual — e não todas as funções biológicas do organismo


humano — é o que interessa especificamente a Freud na relação entre corpo
biológico e corpo representado. Em primeiro lugar, na configuração clínica
e na etiologia das neuroses é esta função que aparece como uma temática
empiricamente relevante. Além disso, por suas características
especificamente humanas, a função sexual do sujeito parece ser a única,
entre as diversas funções biológicas, cuja realização funcional no organismo
depende de uma passagem pelo registro da representação psíquica! Revela-
se assim a singularidade do organismo humano no plano biológico e
finalmente se encontra a via privilegiada para investigar esta passagem do
registro corporal para o registro psíquico.

A inquirição teórica decisiva se realiza em torno do sexual — especial-


inente, de sua passagem do plano funcional para o da representação
psíquica41 —, na medida em que apenas por este canal pode emergir e ser
delimitada a problemática humana original e específica. Esta maneira de
colocar a quesj^o das relações entre corpo biológico e corpo representado
abre a via metodológica para constituir o conceito de pulsão (Trieb), que na
economia interna da l' psicanálise vai desempenhar depois o papel de
operador teórico que circunscreve esta problemática.

É necessária a “pressão” do corpo biológico para que o corpo


representado SE COLOQUE EM MOVIMENTO E POSSA REALIZAR A FUNÇÃO SEXUAL.
MAS ESTA RELAÇÃO NÃO É DIRETA, NEM AUTOMÁTICA. E MEDIADA POR
OBSTÁCULOS QUE PRECISAM SER transpostos. A “pressão” sexual não impõe
imediata e automaticamente a excitação sexual ao campo da representação
psíquica, nem a satisfação sexual se realiza como resultante direta desta
“pressão”. É necessário todo um complexo processo de incorporação
psíquica da excitação somática para que a , satisfação seja possível.

Portanto, a sexualidade é formulada pelo pensamento freudiano como uma'


demanda especificamente humana que não se restringe ao corpo biológico,
como afirmava a tradição médico-fisiológica. O sexo pode inserir-se no
registro da fisiologia, definido como uma função do organismo, voltada
para a. reprodução da espécie. Mas a sexualidade se articula numa outra
economia, ‘ que passa necessariamente pelo campo da representação,
onde o sujeito busca basicamente o prazer. É preciso um investimento
particular do campo psíquico da representação para que a sexualidade possa
realizar-se enquanto economia do prazer.

Para se constituir como uma nova forma de saber sobre a psique, a


psicanálise precisou romper teoricamente com a questão do instinto
(Instinkt), que estava centrada na problemática do corpo biológico. Só
assim o pensamento* freudiano estabeleceu as condições para construir
outro objeto teórico, depois denominado pulsão sexual. Para que esta pulsão
entre em movimento, energia somática do instinto sexual é condição
necessária, mas não suficiente^

E preciso algo mais, de outra ordem, um investimento denominado libido.


Não se trata, portanto, de uma substância hormonal, pois o que está em
questão neste tópico é a ordem da sexualidade, e não a do sexo. Regulada
pela oposição prazer/desprazer, a economia da sexualidade se insere nesta
articulação fundamental entre a ordem biológica e a da representação. Por
isso, para construir teoricamente o conceito de corpo erógeno pensamento
freudiano tem que romper com o registro da fisiologia. Nos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade essas relações entre diferentes orden de
realidade foram sistematizadas e conceitualmente formalizadas. O ponto de
partida da demonstração freudiana é o de que a sexualidade pretende
fundamentalmente o prazer.42 Portanto, não é um instinto, nem se localiza
no plano do corpo biológico. Entre os constituintes da pulsão, objeto é o
elemento mais variável e diversificado. A satisfação pulsional pode-se se
realizar através de grande multiplicidade de objetos, rompéndo-se assir com
a estrutura fixa da organização do instinto.43 Enfim, a teoria psicanalítica
pretende demonstrar que a sexualidade humana se estrutura por um
funcionamento pulsional diversificado, que visa à obtenção do prazer e ao
evita-mento do desprazer, através de uma série multifacetada de objetos que
se apresentam ao campo da representação ao longo da história do sujeito.44

A investigação inicial de Freud esteve centrada na incidência do somático


sobre o espaço da representação. Mas, em seguida, o campo psíquico da
representação passa a funcionar como uma estrutura que também
transforma a energia do somático, podendo incidir sobre aquilo que emerge
como excitação proveniente do corpo biológico. Com a constituição do
conceito de pulsão estas relações biunívocas passam a existir intrincadas na
própria materialidade que define o ser da pulsão, pois é na ordem da
representação que se realiza a articulação entre o representante-
representação da pulsão e o afeto que a constitui.45

Mesmo que às vezes o afeto receba um estatuto que o aproxima de uma


energia indiscriminada (quantum de afeto), só no plano da consciência —
isto é, da representação — o pensamento freudiano o define como afeto
propriamente dito.4647 Além disso, quando na segunda tópica o estatuto
teórico do afeto se torna novamente problemático — incidindo sobre ele o
conjunto de contradições teóricas e clínicas, que conduzem à mudança da
tópica centrada no registro do inconsciente para outra, sustentada no
registro do id48 — Freud distingue entre afeto e sensação afetiva. Esta
última não se insere no plano do corpo biológico, mas se define como algo
que ainda não adquiriu qualquer relação com o representante-representação
da pulsão. A passagem pelo registro da consciência marca esta mudança
entre a sensação afetiva e o afeto propriamente dito.4’

A constituição da tópica pelos conceitos de conflito


psíquico e de defesa
A especificidade do campo da representação mental se constitui nesse
percurso teórico. Suas articulações possibilitam a emergência conceituai do
corpo erógeno, cuja ordenação tem no corpo biológico a sua condição
necessária, mas não suficiente. O saber psicanalítico pretende apreender a
dinâmica desse campo psíquico de representações, estruturalmente
heterogêneo, ou seja, constituído por representações de textura desigual e
inscritas em diferentes registros mentais. Representando diferentes
exigências do sujeito, estas representações contêm investimentos libidinais
diversos e, além disso, se confrontam entre si.

Embora as diferentes teorias pulsionais ao longo do discurso freudiano


tenham transformado a natureza da oposição, Freud nunca abriu mão do
conceito de conflito mental, que esteve sempre subjacente na reafirmação
do dualismo pulsional do saber psicanalítico. Esse conceito sustentará o
campo heterogêneo de representações, fornecendo a linha para um corte
fundante, no qual as representações psíquicas serão distribuídas numa
tópica, suportando oposições entre si e com diferentes investimentos
libidinais envolvidos nesse locus de oposições.

Nesse ponto do percurso teórico de Freud o conceito de defesa se constitui


como a dimensão positiva do conflito psíquico, ocupando o lugar de
operador teórico deste conflito, para ordená-lo na tópica psíquica de
representações. Esta noção teórica, que se encontra no início da genealogia
do conceito de recalque, se articula e é abundantemente definida
nesse.período em que os textos freudianos destacam as diferentes formas de
estruturação do conflito mental.
Os escritos freudianos da década de 1890 assinalam a emergência teórica,
inicialmente tímida, e a posterior implantação do conceito de defesa, que
passa a ocupar um lugar fundamental para pensar o campo heterogêneo das
representações psíquicas. O conceito de defesa consolida os alicerces
fundamentais dessa estrutura teórica constituída em torno do campo da
representação. As psiconeuroses — e o plural se coloca efetivamente,
diante dos vários tipos de psiconeuroses, que utilizam diferentes operações
— seriam formas diversificadas de defesa face a experiências mentais,
dolorosas ou prazerosas, que não podem ser recordadas pelo sujeito.

Para o que estamos considerando, acompanhar a constituição do conceito de


defesa é bastante revelador, pois no seu surgimento tímido, nas suas va-
cilações primeiras e na sua consolidação definitiva podemos apreender não
apenas a estruturação deste campo de representações como também a
instalação do seu correlato, o corpo erógeno, que supera o corpo funcional.

O conceito de defesa vem à cena teórica em 1894, articulado à delimitação


do campo das psiconeuroses. Freud assinala como estas se originam de um
conflito situado no plano da representação e como a defesa impede que a
representação dolorosa/prazerosa aflore no campo da consciência do
sujeito.' A defesa seria um mecanismo ativo, marcando os movimentos
heterogêneos de um psiquismo que se protege de incorporar e reconhecer
uma certa experiência mental.50 Portanto, o conceito de defesa pressupõe a
existência de um1 sujeito fundamentalmente dividido, isto é, não unitário,
nem coeso em torno; de urpa consciência. O ego se constitui
conceitualmente como sendo um conjunto articulado de representações que
exclui para o seu exterior tudo aquilo; que não é compatível com a lógica
do seu campo representativo.51

Esta divisão (Spaltung) da psique é sustentada num conflito mental. Um


processo conflitivo leva a uma dissociação no sujeito, pois o ego não aceita
incorporar no seu espaço algo que contraria a lógica de suas representações.
Por isso, Freud critica as formulações de Janet, para quem esta divagem,
constatada na histeria, seria baseada numa “incapacidade primária de
síntese psíquica”.52
Porém, no campo da histeria, que é o centro de todo este remanejamento
teórico, Freud avança lentamente na universalização do conceito de defesa.
Em 1894 aparece o conceito de histeria de defesa, contraposto aos outros
dois tipos de histeria — hipnótica e de retenção — nos quais não haveria
defesa.53 No ano seguinte Freud começa a admitir que estes outros tipos
sejam redu-tíveis à histeria de defesa.54 Em 1896 o campo teórico-clínico já
se encontra definitivamente remanejado, de forma que a partir de então
existe apenas a histeria de defesa e não as demais. As outras formas são
agora redutíveis a esta última e não mais se originam de um mecanismo
diferente.55 A partir desse í momento, Freud passa a falar só de histeria,
sem outros qualificativos.56 Consolida-se definitivamente o campo da
representação como algo que é universal na psique e não particular a certas
patologias. Esta ruptura final do pensamento freudiano, lançando-se num
espaço teórico inteiramente original, | absolutamente diverso do
universo da ordem médica, é a mais difícil e cautelosa, porque aqui Freud
rompe com a última de suas influências fundamentais, representada pela
figura de Breuer. Esta ruptura é mais complicada e J tortuosa, exatamente
porque anuncia uma absoluta inovação teórica.

Os escrúpulos e titubeios iniciais de Freud, antes de universalizar a histeria


de defesa, mostram o seu confronto com a concepção de Breuer, iniciador
do í método catártico que instrumentalizara as rupturas anteriores57 e autor
da idéia !de histeria hipnóide, na qual a divagem mental seria produzida por
um estado anômalo da consciência que levaria automaticamante à
constituição dos “grupos psíquicos separados”.58 Breuer rompe com a
concepção de Janet, não admitindo mais como primária a “incapacidade de
síntese do eu”, que seria um estado produzido e situado no campo da
representação. Contudo, este campo permanece destituído de um
dinamismo capaz de produzir a própria divagem. Assim, fica
implicitamente aberta a possibilidade de que o campo da representação se
ligue diretamente ao campo biológico, de maneira causai, como se fosse
apenas um epifenômeno da fisiologia. O estado anômalo da consciência é
que levaria à dissociação de grupos de representação no campo da
consciência e, então, à estruturação da neurose.

Para conferir autonomia teórica total ao campo da representação, estZaná-


lise afirma a existência de uma oposição marcante. Breuer explicita isso no
seu capítulo teórico dos Estudos sobre a histeria, não apenas pela cautela
com que introduz a temática da representação, como também por uma
articulação rápida demais entre esta e as questões biológicas.”
Universalizando o conceito de defesa na histeria, Freud rompe com a
concepção de um estado inicial anômalo de consciência — estado hipnóide
— e formula que é a defesa, acionada pelo conflito mental, que leva à
constituição dos “grupos psíquicos separados”, destacando do campo da
consciência tudo aquilo que não é coerente com a lógica de suas
representações.

Da degeneração à defesa e à sexualidade infantil


Com o conceito de defesa, o campo da representação está inteiramente
estabelecido. Sua dinâmica e suas fronteiras estão circunscritas. A ruptura
epistemológica com a racionalidade médica se completa, não se
restringindo à ruptura com o corpo anátomo-patológico, mas se realizando
também com o corpo biológico, que, enquanto tal, se situa fora do campo
psicanalítico.

Nesta ruptura final o maior contraponto do pensamento freudiano é com o


conceito de hereditariedade, particularmente na sua formulação mais
avançada no final do século XIX, ou seja, o conceito de degeneração. A
ideologia da degeneração ocupava um lugar destacado no campo médico-
psiquiátrico, oferecendo em última instância uma explicação para a loucura.
Quando não se conseguia reduzi-la ao modelo anátomo-clínico,
considerava-se que ela era uma forma de enfermidade mental, legitimando
assim sua incorporação ao campo da medicina.

Inseridos no contexto da teoria da degeneração, os discursos teóricos de


Charcot e Janet esbarravam em impasses teóricos. Tudo o que não se
reduzia aos cânones do modelo anátomo-clínico tinha sido deslocado para o
campo da degeneração, de modo que só ao chegar nele a ruptura com a
racionalidade médico-psiquiátrica se realiza completamente. O campo da
loucura fora inteiramente lançado nesse espaço teórico, onde, aliás, não
estava sozinho. Diante das impossibilidades teóricas encontradas pelo
modelo anátomo-clínico, o discurso da degeneração assumira o lugar de
fundamento explicativo também para várias enfermidades somáticas.

- Além disso, o conceito de degeneração — introduzido por Morei e muito


importante na psiquiatria francesa e alemã na segunda metade do século
XIX 60 — permitia solucionar um paradoxo. Por um lado, ele procurava
mostrar que o destino moralmente negativo de certas histórias de vida era
da ordem da loucura, legitimando assim a incursão do discurso médico-
psiquiátrico neste campo e, ao mesmo tempo, justificando sua impotência
terapêutica. Por outro, sancionava a continuidade do processo de
medicalização do social, que ia de vento em popa na segunda metade do
século XIX. Apresentando-se como um projeto de “higiene da civilização”,
a medicina experimentava então enorme expansão de seu poder social.61

As exigências que o “processo civilizatório” fazia aos indivíduos estariam


na origem das enfermidades e anomalias imputadas à degeneração, pois um
certo atavismo constitucional supostamente impedia que esses indivíduos
respondessem de forma adequada às demandas sociais. Pela via da anorma-
lização degenerativa dos socialmente inferiores, este discurso legitimava as
diferenças de desenvolvimento entre as nações, as culturas, as classes
sociais e os indivíduos. Assim, um discurso aparentemente “progressista”
justificava a adoção de uma escala absoluta de higiene social, que pretendia
realizar mudanças na espécie humana — ou seja, nas “raças inferiores” —
para aperfeiçoá-la.62 Na virada do século eram enormes as possibilidades
abertas para a ideologia da degeneração, que recebia alento na própria
genética. Os efeitos desse processo se explicitaram de fonna paulatina,
atingindo o clímax nas décadas de 1920 e 1930, com os mortíferos projetos
nazistas de eugenia.

Para instalar definitivamente a experiência da loucura no espaço da


representação e consolidá-lo no plano teórico, o pensamento freudiano teve
que romper com mais este sustentáculo fundamental da racionalidade
psiquiátrica. A constituição do conceito de defesa, que é a dimensão
positiva da ruptura com o conceito de degeneração, define a autonomia
epistemológica do campo psíquico. No início, Freud assume tranqüilamente
o conceito charcotiano de etiologia hereditária da histeria,63 mas no
necrológio de Charcot64 e nas notas à tradução alemã das Leçons du Mardi
de la Salpêtrière é muito contundente a crítica a esta concepção.65

A negação do conceito de degeneração é fundamental para que o saber


psicanalítico se constitua. Essa direção já está presente quando o
pensamento freudiano quebra e remodela a figura da neurastenia de Beard,
que se situava inteiramente no espaço teórico da degeneração. Por isso, as
críticas psiquiátricas levantadas contra o trabalho escrito por Freud em 1895
— que procurava discriminar teórica, clínica e etiologicamente as figuras da
neurastenia e da neurose de angústia a partir da remodelação da neurastenia
de Beard66 — lhe permitem realizar a primeira crítica sistemática à teoria
que atribuía à hereditariedade um lugar primordial na etiologia das
neuroses. Além disso, Freud justifica o conceito de neurose atual,
salientando as suas diferenças estruturais em relação ao conceito de
psiconeurose.67

Em defesa da racionalidade médico-psiquiátrica, Lõwenfeld criticou de


forma sistemática o saber original criado por Freud, no qual a
hereditariedade perdia para os conceitos de defesa e de sexualidade — em
vias de constituição — o lugar soberano que ocupava no discurso
psiquiátrico. A resposta de Freud no texto de 1895 é de uma importância
primordial, pois nela se esboça pela primeira vez um esquema dinâmico de
relações entre o hereditário e o adquirido, o inato e o histórico. Aparecem as
coordenadas básicas do conceito de série complementar, que se constituirá
posteriormente.68 O conceito de hereditariedade é definitivamente
secundarizado, num contexto teórico que começa a destacar como temática
fundamental a constituição do sujeito no percurso de sua história. Com a
formulação da categoria de história como o eixo fundamental na
constituição do sujeito, a ordenação deste passa a ser considerada
basicamente na espessura do tempo, de forma que a noção de adquirido se
desloca para o primeiro plano na teoria da neurose, substituindo a noção de
inato que até então ocupava a posição primordial.69

Estes comentários perpassam todos os escritos de Freud nos Estudos sobre


a histeria. Nestes textos, o pensamento freudiano realiza um insistente
trabalho crítico voltado para desenhar o histérico como uma figura humana,
com todas as características positivas que haviam sido retiradas da figura da
histeria por causa de sua negatividade moral, decorrente de sua inserção no
contexto da teoria da degeneração. Nas descrições romanescas que
empreende, Freud se preocupa permanentemente em destacar as virtudes
positivas dos histéricos, tanto na dimensão ética quanto na intelectual,
desenhando uma imagem da histeria que era justo a oposta da imagem da
degeneração.70

A formulação da teoria originária das psiconeuroses, que se baseava na


existência de um traumatismo sexual, também introduz a noção de um
sujeito que se constitui na temporalidade de sua história, tratando a
estruturação da neurose como uma vicissitude desta trama histórica.7172-73
Com isso, o conceito de hereditariedade é deslocado para plano secundário
e mesmo minimizado, perdendo qualquer relevância no contexto da teoria
psicanalítica. Esta confere um lugar cada vez mais pregnante ao conceito de
defesa, que se insere num psiquismo marcado pelo conflito mental,
operador teórico desta construção de um sujeito basicamente inserido no
curso do tempo.

No mesmo texto, Freud postula o conceito de defesa e critica as


coordenadas teóricas fundamentais de Janet, que considerava básicas as
formulações da teoria da degeneração. Em última instância, a degeneração
seria o motivo da fragilidade dos mecanismos de “síntese do eu” na
histeria74 e estaria presente também na estrutura da psicastenia.75

Completado o lento trabalho de neutralizar conceito de hereditariedade/


degeneração, Freud retoma o debate, mas em outra perspectiva. Elabora
criticamente o lugar deste conceito na etiologia das perturbações mentais e
lhe confere uma posição bastante restrita. A hereditariedade possivelmente
funcionaria como uma condição básica na etiologia das neuroses, mas não
teria qualquer importância na especificidade destas para a teoria e a prática
psica-nalíticas,76,77 na medida em que estas se situam numa outra ordem da
realidade.

Com a constituição do conceito de série complementar o lugar da


hereditariedade é admitido, mas com todas estas limitações fundamentais
que assinalamos. Posteriormente, quando Freud se refere episodicamente a
esta temática, as suas formulações — feitas aos opositores ao pensamento
psicanalítico — são marcadas por certa ironia. Ele assinala a ausência de
sentido deste problema para o campo teórico da psicanálise. Nesta, não está
em questão a problemática da enfermidade, mas a constituição mítica do
sujeito e sua explicitação metódica no contexto intersubjetivo.78

Antes deste desdobramento, o conceito de hereditariedade também foi


neutralizado num lugar fundamental do pensamento freudiano, que liberta
epistemicamente a psique e a trata como um objeto teórico autônomo. Nos
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, a sexualidade se constitui como
o conceito correlato do corpo erógeno, a partir do conceito dé pulsão.
Porém, para constituir este último seria preciso conceber o sexo fora do
registro exclusivamente biológico e instintivo, onde estava inserido. Os
conceitos de hereditariedade e de degeneração se tomam objetos
privilegiados da crítica freudiana.

A demonstração freudiana se inicia exatamente com a tentativa de


desvincular a temática do homossexualismo e o contexto da teoria da
degeneração, indicando como esta concepção não conseguia explicar de
modo coerente a figura do homossexual.79 Somente após a realização deste
trabalho crítico, que desmonta o conceito de degeneração, é que pôde ser
anunciada uma sexualidade que se sustenta no eixo definido pela oposição
prazer/desprazer, constituindo-se então, no texto freudiano, o conceito de
pulsão.80

Com isso, Freud pôde formular pela primeira vez o conceito de sexualidade
infantil, indicando como esta sempre esteve presente na estruturação do
sujeito. Além disso, pôde caracterizá-la como perversidade polimorfa,
constituída primariamente por uma diversidade de pulsões parciais que se
ordenam em zonas erógenas. A sexualidade se constituiría no tempo
contado a partir das origens da história do sujeito, que cria um eixo voltado
para a busca do prazer e o evitamento do desprazer. Só depois ela teria,
além disso, uma funcionalidade ligada à reprodução, sem perder, contudo, a
sua característica fundamental de pretender o prazer.81

Esta negativação que os conceitos de defesa e de conflito mental produzem


em relação ao conceito de degeneração é fundamental para a constituição da
teoria da sexualidade. Freud retoma esta problemática, numa perspectiva
clínica, quando relata o processo analítico do pequeno Hans, texto que
procura assinalar de maneira insistente: (a) a existência efetiva da
sexualidade infantil na sua configuração de perversidade polimorfa; (b) a
articulação desta sexualidade infantil nos processos de estruturação psíquica
do menino, mostrando que não se tratava de qualquer degeneração mental:
Hans era uma criança como as outras e não um degenerado.82
,

O texto freudiano desenha o pequeno Hans com feições positivas,


lembrando a maneira como Freud procurava delinear os histéricos nos casos
clínicos dos Estudos sobre a histeria. Hans é apresentado como um menino
' saudável, com características éticas e intelectuais positivas, apesar da
existência de uma sexualidade perverso-polimorfa, como se através desta
imagem o pensamento freudiano procurasse negar de maneira enfática que
a criança sexualizada fosse um pequeno degenerado.

Nas conferências realizadas em 1909 na Clark University83 — que são o


primeiro esboço histórico da constituição da psicanálise — Freud indica de
forma simbólica esta série de momentos teóricos que balizaram o percurso
de seu pensamento até silenciar o paradigma epistemológico da
hereditariedade/ degeneração, presente na teoria psiquiátrica, e construir o
discurso psicanalítico, no qual os conceitos de conflito mental e de defesa,
inseridos no campo da representação, ocupam o lugar de operadores
fundamentais.

Para além da oposição entre normal e patológico


Depois de todas essas rupturas teóricas, a problemática da loucura se
inscreve definitivamente no campo da representação, cuja heterogeneidade
é marcada pelas operações de defesa, que definem um psiquismo
fundamentalmente cindido (Spaltung). Assim, realiza-se um processo de
desmedicalização e de despsiquiatrização da loucura.

O conceito de defesa permite constituir a concepção de psiconeurose como


1 contraposta à de neurose atua) e, além disso, destacar que um mecanismo
análogo estaria presente no campo das psicoses e da paranóia. Nestas, os 1
sintomas se ordenariam no plano da representação e se constituiríam por
meio de um mecanismo psíquico. Freud formaliza estas investigações nos
anos 1894-1896,84,85 trazendo assim toda a experiência da loucura para o
plano da representação.

Esta experiência se homogeneiza em torno do funcionamento mental, em


que operam defesas num quadro psíquico de representações. É qyidente que
isso não implica o fim das diferenças no campo da loucura. Cada estrutura
gera suas próprias defesas. Assim, pode-se estabelecer uma diversidade de
estruturas no eixo básico da unidade do campo da representação.

Este remanejamento teórico coloca em outros termos a oposição entre o


normal e o patológico. A ruptura freudiana não apenas estabelece os limites
entre os dois campos, antes considerados universos sem contato. Além
disso, os define como sustentados nos mesmos fundamentos, sem qualquer
diferença essencial. Os princípios que ordenam os universos da
normalidade e da patologia passam a ser os mesmos. A psique é
apresentada como fundamentalmente cindida e mantida pelos mesmos
mecanismos. Enfim, uma psicologia do normal passa a fundamentar uma
psicopatologia que não se sustenta isoladamente, ao contrário do que
ocorria na perspectiva psiquiátrica, que opunha dois universos distintos.

O estudo dos sonhos funciona como um lugar epistemologicamente


estratégico, que permite sublinhar num outro plano as analogias entre esses
dois universos e destacar neles as mesmas regularidades. Da oposição
sonho/sinto-ma o pensamento freudiano pode deduzir a existência de um
mesmo espaço psíquico, que possibilita estas diferenças no interior de um
campo unitário. Em 1900,” Freud consegue formalizar o que não era ainda
realizável em 1895,” quando sua ruptura teórica não avançara inteiramente
e seu trabalho permanecia amarrado a uma linguagem neurológica, que
funcionava como obstáculo para conferir autonomia ao registro do fantasma
e permitir que este pudesse circular livremente no campo das
representações.

O deslocamento teórico da experiência da loucura para o espaço mais


abrangente da representação permite elaborar consequências que a
metodologia de análise sanciona. Com isso, Freud constrói um modelo em
que a psique é fundamentalmente dividida, se sustenta na existência do
inconsciente enquanto realidade psíquica propriamente dita e se define
como um sistema particular de registro, marcado pelas transposições
simbólicas e pela noção de interpretação. Por essa via, ele encontra no
psiquismo do doente as mesmas operações constitutivas do psiquismo da
pessoa normal. Depois desse empreendimento epistemológico fundamental,
esta distinção se toma secundária, pois o campo da representação sustenta a
unidade entre ambos os universos, aparentemente distintos.

Esta oposição em torno do discurso do tratamento moral — que já tinha


sido relativizada na psiquiatria da primeira metade do século XIX mas fora
mantida como oportuna e fundamental” — foi superada pelo postulado da
representação. Freud recupera como objetos de investigação fenômenos até
então desprezados pelo saber existente e destituídos de qualquer valor díen-
tífico, como o lapso,” o ato falho, o chiste90 etc, tornando possível constituir
uma “psicopatologia da vida cotidiana” que apaga as fronteiras entre o
normal e o patológico e superpõe os diferentes universos.

Posteriormente, o pensamento freudiano vai enfatizar as distinções


estruturais entre a neurose, a psicose e a paranóia, mantendo, contudo, o
quadro epistemológico da unidade no interior das diferenças. O fenômeno
transferenciai será considerado impossível no caso das psicoses, e em tomo
delas se constituirá a noção de neuroses narcísicas, contrapostas às neuroses
de transferência.91’2 Mas Freud manterá a mesma exigência teórica ao
construir um modelo do sistema psíquico de representações da psicose. Isso
corresponde, no entanto, a um outro momento epistemológico do
pensamento freudiano, que começa a assinalar os limites do campo da
representação, não apenas para o domínio das neuroses narcísicas, mas
também para o das neuroses de transferência.

Instituídas no universo da verdade, a psicose e a paranóia passam a ser


passíveis de uma escuta psicanalítica, apesar de indicarem também os
limites do ãnalisável. Por isso, os fundamentos de verdade que estão
presentes no discurso delirante de Schreber são recuperados por Freud
como provas incontestáveis da veracidade da teoria psicanalítica.” No final
da interpretação i crítica da biografia de Schreber, Freud destaca um
paradoxo revelador desta ’ problemática: podia ser que ele não fosse capaz
de perceber o delírio contido •? na teoria psicanalítica; mas também podia
ser que as pessoas não estivessem ! dispostas a acreditar, naquele momento,
na verdade contida no delírio.’4 Enfim, apesar da demarcação dos limites do
analisável, mantinha-se uma circularidade fundamental entre a verdade da
experiência da loucura e a do discurso freudiano.’5

Da estratégia do olhar à estratégia da escuta


Ao romper com a oposição normal/patológico, Freud delineia um novo
discurso sobre a experiência da loucura, destacada do modelo anátomo-
pato-lógico e do discurso da degeneração, retirada do campo médico-
psiquiátrico e inserida no universo da verdade. O campo psicanalítico que
realiza esta rup- J tura produz uma concepção de clínica totalmente estranha
à do saber médico-psiquiátrico. Nesta nova clínica não se pretende corrigir
anomalias e subtrair sintomas como se fossem formações parasitárias mas,
fundamentalmente, conferir para a experiência da loucura um lugar no
universo da palavra e do sentido, restituindo seu estatuto de verdade.

A loucura se transforma numa obra do sentido. Algo que, à sua maneira, diz
uma verdade que não pode ser dita de outra forma. O louco nem sabe que
esta verdade está sendo formulada na materialidade dos seus gestos, dos
sintomas, dos delírios e na descontinuidade da consciência. Após
reconhecer a textura verídica destas materialidades, cabe à clínica
psicanalítica fornecer a possibilidade para que estas expressões sejam
incorporadas ao plano da palavra, recuperando assim o seu sentido
perdido/esquecido. Enfim, cabe oferecer ao louco as mesmas possibilidades
com que conta qualquer humano, inserindo-o no circuito do falar e do
escutar e tornando-o apto a experimentar os mesmos efeitos que a palavra
impõe ao sujeito que pretende falar e escutar o que diz.

A verdade pode então emergir e tomar-se constituinte da subjetividade. Para


isso, o procedimento das associações livres ocupa progressivamente o
espaço antes dominado pela técnica da sugestão. Ele permite a emergência
de todos os pensamentos, mesmo aqueles aparentemente não razoáveis e
que não apresentam qualquer vinculação com a questão em pauta. Assim,
ele abre a possibilidade para que o que ainda não adquiriu o estatuto de
sentido encontre o seu espaço para existir, de forma revelar seus vários
encaixes significativos. Deixar o analisando dizer tudo o que lhe vem à
mente, sem censura e auto-censura, é dar lugar ao que não é razoável, ao
que é desconectado, em suma, ao que é louco, ao que deve ser escutado no
seu próprio desvairio, de maneira a poder encontrar o seu próprio sentido.

Nessa reviravolta teórica, a estratégia epistemológica utilizada pelo


dispositivo metodológico em construção é fundamentalmente diversa
daquela que era utilizada pelo campo da medicina clínica. Com efeito, a
estratégia do ver ocupa o lugar central na metodologia clínica do
dispositivo médico-psiquiátri-co, e a estratégia do escutar não ocupa
qualquer posição.*4 Mesmo quando utilizado, o modelo da escuta ocupa um
lugar secundário na prática clínica, subsumido sempre ao modelo do olhar
que domina inteiramente as estratégias da clínica nas medicinas somática e
mental. Na medicina contemporânea permanece a mesma estratégia
epistemológica, consolidando-se, assim, num campo de investigação mais
complexo, as mesmas operações que fundam as origens da clínica médica.97

Abrindo espaço para a circulação da palavra e reconhecendo a existência da


verdade na experiência da loucura, o pensamento freudiano inverte as
posições dessas estratégias no campo da clínica médica. A estratégia da
escuta se toma soberana, e a estratégia do olhar perde seu lugar, quando não
subsu-mida à lógica da primeira. Mesmo considerando esta última
eventualidade, o modelo do olhar se encontra agora inserido como elemento
de um quadro estético, não se integrando, então, como instrumento de uma
operação dedutiva, como no modelo da clínica médica. Os elementos
visualizados são considerados como suportes de uma cadeia de sentido que
se condensam numa certa materialidade visual, como um gesto, um olhar,
uma postura etc.” Para isso, evidentemente, a estratégia do olhar pressupõe
o modelo da escuta.

A ruptura teórica com a clínica médica se realiza no eixo em que se


sobressaía a figura do grande representante desta tradição — Charcot —
através do qual Freud teve acesso pleno à clínica. Apesar de toda a sutileza
de seus instrumentos de diagnóstico, a metodologia de Charcot estava
sustentada no modelo do olhar. Cabia descrever exaustivamente as
configurações clínicas dos pacientes e discriminar os eixos que ordenavam
esta variedade de quadros visuais. Para cada enfermidade, Charcot construía
um tipo ideal, que se reali-^ zava empiricamente em poucas situações, e
estudava as suas variações clínicas diante de cada situação concreta.”
Existia, então, um sistema de encaixes,' desencaixes, reencaixes e
deslocamentos de formas sintomáticas, que se regulavam
fundamentalmente no plano visual.

Na clínica charcotiana a estratégia do olhar tinha uma dimensão


fundamental. Todo o cenário em que Charcot circulava com seus histéricos
era marcada pelo fascínio do ver/ser visto.100 Esta sedução do olhar ajudou
a constituir todos os mitos que conhecemos sobre os salões de crises da
Salpêtrière, que condensavam de modo dramático os poderes da exibição e
da sedução. O brilhantismo do saber charcotiano foi marcado pelas
armadilhas entreabertas pelos pressupostos do seu método de investigação.

Freud não apenas inverte as operações, constituindo uma clínica da


escuta. como também transforma o cenário. No campo psicanalítico a
exibição visual muda de espaço, e o eixo regulado pela oposição
falar/escutar passa a ocupar a posição anteriormente preenchida pelo eixo
regulado pela oposição ver/ser visto. A figura do analista se coloca com a
figura do analisando num lugar reservado, acabrunhado, num cenário
matizado pela semi-obscuridade, como que procurando constituir um
espaço intersubjetivo que afaste a presença do olhar/ser olhado. Portanto, a
distribuição das duas figuras no espaço psicanalítico busca o mesmo efeito
epistemológico, impossibilitando a realização da estratégia do olhar e, com
isso, investindo inteiramente na estratégia da falar/escutar.

Considerado o portador de uma verdade a ser revelada, o sintoma é


respeitado na sua complexa arquitetura, mas é descentrado, deslocado da
posiçãc de monumento, que ocupava no universo visual da clínica. Importa
partir da í sintoma para chegar às estruturas significativas que o sustentam e
que st ■ revelam através de sua arquitetura simbólica, de maneira a se poder
retornas a posteriorí ao próprio sintoma, percebendo-o na sua obviedade,
na sua evil dência simbólica. Se o sintoma é o centro de irradiação de um
processo dcl scuta, sua exibição deixa de ter qualquer charme. Cabe restituí-
Io como verdade, através de um processo incessantemente deslocado para o
eixo do falar/ escutar.
Nesta ruptura com o modelo médico-psiquiátrico, estabelecendo o campo
da representação e a clínica da escuta, se constitui a clínica psicanalítica,
identificada com a prática da interpretação. Assim, no processo analítico
cabe deslizar insistentemente no eixo definido pela oposição falar/escutar,
para decifrar a verdade que se inscreve na realidade psíquica e que se revela
através do não dito, isto é, do que é falado e simultaneamente silenciado por
outros sinais. Interpretar significa não apenas traduzir o que está inscrito
num sistema de representação, mas também ir em busca daquilo que não é e
não pode ser falado, de maneira a tornar possível a sua estruturação pela
palavra, até mesmo para que se realize a tradução.

A suposição de que exista a inscrição está sempre presente. A concepção de


um simbolismo psíquico pode se constituir quando se instala teoricamente
um campo heterogêneo de representações, marcado pelas defesas, que é o
suporte para a oposição sistemática inconsciente/pré-consciente/consciente.
Portanto, admitir-se um campo heterogêneo de representações, que possui
loci e dinâmicas diversificados, é a condição de possibilidade para instituir
a metodologia da interpretação como instrumento fundamental da clínica
psicanalítica, que pressupõe a existência de equivalências simbólicas entre
as diferentes representações. Só assim os deslizamentos deste processo
tomam-se passíveis de decifração.

É preciso lembrar, no entanto, que os desdobramentos apresentados pela


clínica psicanalítica originária e as diversas configurações que ela assumirá
ao longo do pensamento freudiano serão marcados fundamentalmente pelas
vi-cissitudes do processo transferenciai, que definirá também as diferentes
reordenações da metodologia do deciframento e os seus limites
epistemológicos de possibilidade.

1. L. Binswanger, “Souvenirs sur Sigmund Freud”, in Discours,


parcours et Freud. Paris, Gallimard, 1970, p. 346.

2. S. Freud, The interpretation of dreams (1900). Prefácio à primeira


edição. In The

Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud,


volume IV. Op. cit., p. XXIII. O grifo é nosso.
o
3. S. Freud, idem, capítulo II, p. 100-106.

4. M. Foucault, Naissance de la clinique. Op. cit.

5. S. Freud, Report of my studies in Paris and Berlim (1886). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume I. Op. cit., p. 10.

6. S. Freud, Prefácio à tradução de Lectures on the diseases of the


nervous system, de Charcot (1886). In The Standard Edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud, volume I, p. 21.

7. S. Freud, Charcot (1893). In The Standard Edition ofthe complete


psychological works of Sigmund Freud, volume III, p. 19.

8. S. Freud, Report of my studies in Paris and Berlim (1886). Op. cit.,


p. 11.

9. S. Freud, Hysteria (1888). In The Standard Edition ofthe complete


psychological works of Sigmund Freud, volume I, p. 41.

10. S. Freud, Charcot (1893). Op. cit., p. 19.

11. S. Freud, Hysteria (1888). Op. cit., p. 50.

12. S. Freud, Charcot (1893). Op. cit., p. 21.

13. S. Freud, Report of my studies in Paris and Berlim (1886). Op. cit.,
p. 75.

14. S. Freud, Prefácio à tradução de Suggestion, de Bemheim (1888-


1889). In The

Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud,


volume I, P-75 •

15. S. Freud, Prefácio à segunda edição de Suggestion, de Bemheim


(1896). Idem, p. 96!
16. S. Freud, Review of August Fôreis Hypnotism (1889). In The
Standard Edition ofthe, complete psychological works of Sigmund
Freud, volume I, p. 91-96.

17. S. Freud, Hypnosis (1891). In The Standard Edition of the


complete psychological works of Sigmund Freud, volume I, p. 105

23. S. Freud, Some points for a comparative study of organic and


hysterical motor paralyses (1893). In The Standard Edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud, volume I, p. 168-
172.

24. S. Freud, idem, p. 168-171.

25. S. Freud e J. Breuer, “On the psychical mechanism of hysterical


phenomena: preliminary communication” (1893). In Studies on
hysteria (1895). Op. cit., p. 7.

26. S. Freud e J. Breuer, idem, p. 13-16

27. 5. Freud e J. Breuer, idem, p. 3-11 |

28. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). In The


Standard Edition of thjf complete psychological works of Sigmund
Freud, volume VII, segundo ensaio. i

29. S. Freud, “Les fantasmes hystériques et leur relation à la bi-


sexualité” (1908). In SJ

Freud, Nivrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 149-155. !

30. S. Freud, “Considératíons générales sur 1’attaque hystérique”


(1910), idem, p. 161-163

31. S. Freud, "Frau Emmy von N.”, Studies on hysteria, in The


Standard Edition qf tlu complete psychological works of Sigmund
Freud, volume II. Op. cit., p. 65.
32. S. Freud, “La morale sexuelle ‘civilisée’ et la maladie névrose des
temps modemes" (1908). In S. Freud, La vie sexuelle. Op. cit., p. 28-46

33. S. Freud, “Qu’il est juslifié de séparer de la ncuraslhénie un certain


complexe symptomalique sous le nom de ‘Névrose d’angoisse”’
(1895). In S. Freud, Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 15-
38.

34. S. Freud, "L’hérédité et 1’étiologie des névroses” (1896). Idem, p.


47-59.

35. S. Freud, “The psychoterapy of hysteria, 1”. In Studies on hysteria


(1895). In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud, volume II. Op. cit.

36. S. Freud, Sexuality in the aetiology of the neuroses (1898). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume III, p. 267-268.

37. S. Freud, “Qu’il est justifié de séparer de Ia neurasthénie un certain


complexe symptomalique sous le nom de ‘Névrose d’angoisse’”
(1895). In S. Freud, Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 35-
38.

38. S. Freud, “The psychoterapy of hysteria, 1”. In Studies on hysteria


(1895). In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud, volume II. Op. cit., p. 255-267

39. S. Freud, “Pourintroduire le narcisisme” (1914). In S. Freud, La vie


sexuelle. Op. cit., p. 89-91

40. S. Freud, On aphasia (1891). Op. cit.

41. S. Freud, Manuscril G, III (1895), “Lettres a Wilhelm Fliess, Notes


et Plans (1887-1902)”. In S. Freud. La naissance de la psychanalise.
Op. cit. p. 93-95.
42. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). In The
Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume VII. Op. cit., I9 ensaio.

43. S. Freud, idem, p. 148-149.

44. S. Freud, idem, segundo ensaio.

45. S. Freud, “Pulsions et destins des pulsions” (1915). In


Métapsychologie. Op. cit., p. 18-20.

46. S. Freud, “L’inconscient” (1915). Idem, p. 81-86.

47. S. Freud, “Le refoulement” (1915). Idem, p. 55-56.

48. Sobre isto, ver os comentários pertinentes e esclarecedores de


Green sobre o lugar do conceito de afeto no pensamento freudiano. In
A. Green, Le discours vivant. Paris, Presses Universitaires de France,
1973. Primeira parte, capítulo I.

49. S. Freud, “Le moi et le ça” (1923). In Essays de psychanalyse. Op.


cit., p. 233-236.

50. S. Freud, “Les psychonévroses de défense" (1894). In S. Freud,


Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 2-3.

51. S. Freud, “Esquise d’une psychologic scientifique” (1895).


Primeira parte, 1,2,3. In La naissance de la psychanalyse. Op. cit., p.
340-347.

52. S. Freud, “Les psychonévroses de défense” (1894). In S. Freud,


Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 2.

53. S. Freud, idem, p. 2-3.

54. S. Freud, “The psychoterapy of hysteria”. In Studies on hysteria


(1895). In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud, volume II. Op. cit., p. 285-286.
55. S. Freud, “Nouvclles remarques sur les psychonévroses de défense,
I” (1896). In S. Freud, Névrose, psychose et perversion. Op. cit.

56. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse. Op.


cit., p. 181.

57. J. Breuer, “Frãulein Anna O". In Studies on hysteria (1895). In The


StandardEdition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume II. Op. cit.

58. J. Breuer, “Theoretical, IV”. In Studies on hysteria (1895). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume II. Op. cit.

59. J. Breuer, idem.

60. Sobre isto ver P. Bercherie, Les fondaments de la clinique. Histoire


et structure du savoir psyquiatrique. Paris, Omicar, 1980. Capítulos 7-
16.

61. J. Birman, Enfermidade e loucura. Sobre a medicina das inter-


relações .Rio de Janeiro, Campus, 1980. Primeira parte.

62. J. Birman, "Psiquiatria e sociedade”. Terceira partre. In Jornal


Brasileiro de Psiquiatria, volume 31, número 4. Rio de Janeiro, 1982.

63. S. Freud, Hysteria (1888). In The Standard Edition of the


completepsychological works of Sigmund Freud, volume 1. Op. cit., p.
50.

64. S. Freud, Charcot (1893). Op. cit., p. 21-23.

65. S. Freud, Prefácio e notas à tradução de Tuesday Lectures, de


Charcot (1892-1894). In The Standard Edition of the complete
psychological works of Sigmund Freud, volume I, p. 142-143.

66. S. Freud, “Qu‘il est justifié de séparer de la neurasthénie un certain


complexe symptomatique sous le nom de ‘Névrose d’angoisse’”
(1895). In S. Freud, Névrose, psychose et perversion. Op. cit.
67. S. Freud, "A reply to criticisms of my paper on anxiety neurosis”
(1895). In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud, volume III. Op. cit., p. 120-139.

68. S. Freud, Introductory lectures on psycho-analysis (1916-1917).


Terceira parte. In The Standard Edition of the complete psychological
works of Sigmund Freud, volume XVIII, p. 346-347, p. 362.

69. S. Freud e J. Breuer, "On the psychical mechanism of hysterical


symptoms: preliminary communication” (1893). In Studies on hysteria
(1895). Op. cit., p. 3-7.

70. S. Freud e J. Breuer, Studies on hysteria. Op. cit.

71. S. Freud e J. Breuer, “On the psychical mechanism of hysterical


symptoms: preliminary communication" (1893). In Studies on hysteria
(1895). Op. cit.

72. S. Freud, "Nouvellcs remarques sur les psychonévroses de


défense” (1896). InS. Freud, Névrose, psychose et perversion. Op. cit.,
p. 61-81.

73. S. Freud, “L’étiologie de 1’hystérie". In S. Freud, Névrose,


psychose etperversion. Op. cit., p. 83-112.

74. S. Freud, “Les psychonévroses de défense” (1894). In S. Freud,


Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 2.

75. Sobre isto ver “Les medications psychologiques”, onde Janet


recenseia a história de suas teorias desde "L'automation
psychologique” (1889) e “L’état mental des hystériques" (1893-1894).
P. Janet, Médications psychologiques (1919), volumes I e II. Paris,
Félix Alcan, 1919.

76. S. Freud, "L’hérédité et I’étiologie des névroses" (1896). In S.


Freud, Névrose, psychose et perversion. Op. cit., p. 47-59.
77. S. Freud, “L’étiologie de rhystérie” (1896). In S. Freud, Névrose,
psychose et perversion. Op. cit., p. 83-112.

78. S. Freud, The dynamics of transference (1912). In The Standard


Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud,
volume XII. Op. cit., p. 99.

79. S. Freud, “Three essays on the theory of sexuality (1905). In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume VII. Primeiro ensaio, i

80. S. Freud, idem, p. 148-149.

81. S. Freud, idem. Segundo ensaio.

82. S. Freud, Analysis of a phobia in a five-year-old boy. In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume X.

83. S. Freud, Five lectures on Psycho-analysis (1910). In The Standard


Edition qf the complete psychological works of Sigmund Freud,
volume XI. Primeira e segunda conferências.

84. S. Freud, “Les psychonév roses de défense, III”. In S. Freud,


Nivrose, psychose et perversion. Op. cit.

85. S. Freud, “Nouvelles remarques sur les psychonévroses de défense,


III”. In S. Freud, Nivrose, psychose et perversion. Op. cit.

86. S. Freud, The interpretation of dreams (1900). In The Standard


Edition ofthe complete psychological works of Sigmund Freud, volume
V. Op. cit., capítulo VII.

87. S. Freud, “Esquise d’une psychologic scientifique" (1895).


Primeira parte, 1,2,3. In La naissance de la psychanalyse. Op. cit.

88. J. Birman, A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de


Janeiro, Graal, 1978, capítulo II.
89. S. Freud, The psychopathology of everyday life (1901). In The
Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume VI. Op. cit.

90. S. Freud, Jokes and their relation to the unconscious (1905). In


The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud, volume VIII. Op. cit.

91. S. Freud, “Pour introduire le narcisisme, I e II” (1914). In S. Freud,


La vie sexuelle. Op. cit.

92. S. Freud, Introductory lectures on psycho-analysis (1916-1917).


Conferência XXVI. In The Standard Edition ofthe complete
psychological works of Sigmund Freud, volume XVI. Op. cit.

93. S. Freud, Psycho-analytic notes on an autobiographical account of


a case of paranóia (Dementia paranoides) (1911). In The Standard
Edition ofthe complete psychological works of Sigmund Freud, volume
XII, p. 78. Op. cit.

94. S. Freud, idem, p. 79.

95. Discordamos de algumas recentes colocações de Green, para quem


a constituição do saber psicanalítico implicou o silenciamento da
espessura passional da experiência da loucura. Com esta-afirmativa,
Green apaga o que existe de mais fundamental na descoberta
freudiana. Com efeito, a reabertura da experiência da loucura,
realizada por Freud, implicou exatamente deixar falar o que a
psiquiatria tinha silenciado, isto é, a dimensão de paixão presente na
loucura, a loucura como paixão incoercível, como formulamos em
outro momento. Exatamente por abrir a problemática da paixão na
loucura, Freud reteve como fundamental a fase passional das quatro
fases da histeria propostas por Charcot. Por uma interpretação genial,
ele retirou exatamente daí o sentido estrutural da experiência histérica.
Sobre isso, ver principalmente J. Birman, Freud e a experitncia
psicanalítica, op. cit., e J. Birman, “Sobre a paixão”. Cadernos do
IMS, volume II, n* 3. Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social da
UERJ, 1988. Para circunscrevermos adequadamente o lugar de onde se
enuncia esta estranha formulação de Green, devemos considerar a
conjuntura atual da demanda clínica para a cura psicanalítica e os
conflitos teóricos existentes no interior do movimento psi^ana-lítico
francês. A nova demanda clínica, representada pelos chamados
“estados limites”, coloca questões cruciais para a metodologia
psicanalítica, pelos obstáculos que levanta para o processo
psicanalítico. Green procura atribuir este obstáculo,
retrospectivamente, à estrutura da teoria freudiana. Trata-se, na
verdade, de uma questão que precisa ser interrogada ao longo da
história da psicanálise, com as transformações que foram impressas no
discurso freudiano c com as mudanças que este sofreu, particularmente
depois do discurso lacaniano.

O texto de Green visa muito mais ao discurso de Lacan do que ao de Freud.


A perspectiva de Green é atingir a leitura lacaniana de Freud. Encontramos
cm Roustang uma formulação análoga à de Green, que também pretende
criticar o discurso teórico de Lacan através de uma crítica aos fundamentos
do discurso freudiano. Enfim, parece que esse tipo de formulação define
menos uma crítica ao discurso freudiano e mais um movimento de oposição
de determinados setores da psicanálise francesa ao discurso de Lacan.

Por uma razão diferente discordamos também de algumas formulações de


Swain, que procura silenciar a ruptura teórica introduzida pela psicanálise
freudiana, ao deslocar para a tradição psiquiátrica uma das descobertas
fundamentais de Freud: o conceito de j conflito psíquico e o seu correlato,
isto é, a concepção de um sujeito estruturalmente dividido. Swain desloca a
constituição do conceito de um ego dividido para os primórdios da
psiquiatria francesa, com Esquirol principalmenfc, mas também com Pinei,
na sua relação com a idéia de alienação mental. Mesmo admitindo que
Esquirol tenha formulado esta idéia nestes termos, é necessário considerar
as seguintes questões fundamentais: (a) a formulação teórica se manteve
episódica na economia intema de sua obra, não adquirindo absolutamente
uma posição estrutural, que implicaria a remodelação de seu pensamento
teórico e de sua prática clínica; (b) mesmo que tivesse adquirido esta
posição paradigmática no seu pensamento , o que não ocorreu, esta noção
permaneceu em silêncio durante todo o século XIX, quando Freud a
redescobriu originalmcntc com o saber psicanalítico.
Sobre isso, ver A. Green, “Passion et destins des passions". In Nouvelle
Revue de Psychanalyse, número 21. Paris, Gallimard. 1980, p. 5-41; F,
Roustang, ...Elle ne le lâche plus. Op. cit., capítulo 5; 1 Birman, A
psiquiatria como discurso da moralidade. . Op. cit., capítulo ÍI; G. Swain,
Le sujet de lafolie. Naissance detapsychiatrie. Op. cit.; M. Gauchct, La
pratique de 1'esprit humain. L'instituition asilaire et la révolution !
democratique. Paris, Gallimard, 1980; G. Swain, “De Kant à Hcgel: deux
époques de la folie”. In Libre, número 1. Paris, Payot, 1977; G. Swain,
“D’unc rupture dans l’abord ■ de la folie". In Libre, número 2. Paris, Payot,
1977. 1

lOO.Sobre isto, ver os pertinentes comentários de J. B. Pontalis, "Le séjour


de Freud à

Paris". In Nouvelle Revue de Psychanalyse, número 8. Paris, Gallimard,


1973.

A constituição do campo transferenciai


Interpretação e transferência são os eixos fundamentais que nos orientam
nesta tentativa de destacar os elementos básicos da elaboração de uma
teoria freudiana da prática psicanalítica. Articulando os momentos fecundos
do caminho percorrido por Freud na reconstrução permanente de sua
doutrina, buscamos ressaltar como foi se configurando o perfil do exercício
clínico da psicanálise. Esse processo de reflexão e renovação teve como
suporte os questionamentos oriundos de uma prática clínica que enfrentava
obstáculos, nota-damente os relacionados ao fato transferenciai. Foi ele que
levou Freud a formular — não propriamente sob a forma de proposições
definitivas, mas como indicações valiosas — a relação entre as vicissitudes
da transferência e a atitude do analista interpretante, formulação que
exerceu grande influência no advento da concepção especificamente
psicanalítica da interpretação, instrumento por excelência do ato de
psicanalisar.

No que concerne ao tema da transferência e da teoria do processo psica-


nalítico, o pensamento freudiano percorre um longo trajeto desde os
Estudos sobre a histeria até os trabalhos elaborados em tomo de 1915. Esse
percurso não linear tem alguns balizamentos essenciais, que assinalam
pontos de ruptura com o que fora formulado antes. As correspondentes
reformulações conceituais se articulam com toda a teoria psicanalítica.

Os anos 1912-1915 podem ser considerados os mais fecundos para a


constituição da teoria freudiana do processo analítico, cujo ponto
culminante foi atingido entre 1914 e 1915, quando ganha forma final a
teoria da transferência. As aporias, os limites e o momento em que se
constitui essa elaboração são significativos do percurso freudiano,
preparando as formulações da segunda tópica e os textos marcados pelo
conceito de pulsão de morte,

Nesse percurso teórico, mudam os termos através dos quais Freud considera
a resistência ao processo analítico e, com isso, a natureza dos problemas
que o analista deve enfrentar. Mas permanece a mesma preocupação,
centrada no que resiste, no que se opõe à mudança. Ora, apesar das várias
conjunturas vividas pelo pensamento de Freud, a identidade de sua
problemática teórica revela que sua reflexão lançava o seu aguilhão. O que
se opõe ao trabalho analítico, isto é, à emergência do processo de
simbolização, constitui a grande fonte de desafios para o psicanalista. É ali
que ele é chamado a desdobrar sua criatividade teórica e sua intuição
clínica.

Vamos delinear como, no pensamento freudiano, se constituem o campo


transferenciai e o lugar da interpretação psicanalítica, considerando a
tragici-dade freudiana como um instrumento crítico contra a ingenuidade
terapêutica e as fáceis ilusões teóricas. O psicanalista deve buscar este
espaço dramático, que visa a desnudar as forças em conflito e reduzi-las à
sua expressão mais primária, de modo a trabalhar as possibilidades e os
limites que elas colocam à transformação do sujeito. Interrogando sempre
os limites da psicanálise e, sobretudo, da sua própria análise — que deve
continuar com cada novo analisando — o analista se coloca diante de sua
relativa impotência, condição fundamental para descobrir e reencontrar o
seu verdadeiro poder, que não é sem limites, distanciando-se assim da
ingênua imagem de um analista todo-poderoso.’
A interpretação como método racional
A obra de Freud apresenta, em várias dimensões, uma originalidade cujo
fundamento está na formulação de que a loucura apresenta uma lógica
iníerna que não se reduz a qualquer pensamento causai, seja de ordem
biológica, seja social. Freud foi o primeiro neurologista a acreditar nos
sofrimentos dos seus pacientes neuróticos, nos termos que eram
comunicados por eles. Também foi pioneiro ao postular que os sintomas
não se constituem por acaso, mas são produtos finais de um processo
simbólico que cabe desvelar, para que se possa considerá-los objeto de
interpretação. Nesses aspectos, era absoluta a sua diferença em relação a
seus contemporâneos, pois tanto os adeptos da terapêutica moral quanto os
da sugestão não davam ao sintoma neurótico grande importância,
considerando-o uma produção parasita, secundária, destituída de qualquer
significação, que cabia, pura e simplesmente, eliminar.1

Conferir importância aos sintomas implica considerá-los como uma


articulação portadora de sentido e dotada de arquitetura complexa, que
devem ser desvelados através de um minucioso trabalho interpretativo.
Nesse desvenda-mento descobre-se onde os sintomas estão ancorados, em
que quadro mental eles se inserem e o que revelam em termos de
significação. Com este procedimento, as dificuldades mentais passam a ser
postuladas em termos de representação psíquica, situando-se no interior de
um aparelho psíquico que funciona segundo certos princípios. Reduzir a
quase infinitude sintomática das psiconeuroses e das psicoses às leis
universais de um mesmo aparelho mental, considerando inicialmente essa
lógica do sintoma, implica, portanto, postular que a enfermidade psíquica
apresenta uma significação. Freud ultrapassou a rígida dicotomia
normal/patológico, dominante na tradição psiquiátrica do século XIX, ao
formular que, em vez de ser uma monstruosidade humana, a loucura se rege
por princípios análogos aos do pensamento dito normal. O sentido da
neurose — se existe — é interpretável segundo os mesmos pressupostos
que regem qualquer funcionamento mental.
Em 1893, essa articulação dos sintomas no plano da representação já se
encontra formulada, assim como suas relações com o método catártico:

“Para nossa grande surpresa, descobrimos, com efeito, que cada um dos
sintomas histéricos desaparece imediatamente e sem retorno quando se
consegue colocar em plena luz a lembraça do incidente desencadeante, ao
despertar o afeto ligado a este último e quando, em seguida, o enfermo
descreve o que lhe aconteceu de forma muito detalhada e dando à sua
emoção uma expressão verbal. Uma lembrança destituída de afeto é quase
sempre ineficaz. É necessário que o processo psíquico original se repita
com tanta intensidade quanto possível; ele deve ser recolocado in statum
nascendi e, então, verbalmente traduzido.”2

Um primeiro comentário: “colocar em plena luz a lembrança do incidente


desencadeante” é o que será objeto da interpretação. No curso da análise é
necessário reproduzir a lembrança inteira. Os esforços e os recursos do
analista devem se voltar para desfazer os bloqueios que a soterram, como
camadas esírati ficadas, e revelar o que está esquecido.

Um segundo comentário: o período “dando à sua emoção uma expressão


verbal” introduz, desde já, toda a questão da eficácia intepretativa. Também
será através de um processo verbal — a interpretação — que o analista
tentará produzir transformações na economia libidinal do paciente.
Portanto, nos primórdios da atividade de Freud como psicanalista se
anunciam as relações entre a linguagem e o “vivenciado”. Depois, a
realidade transferenciai as tomará mais complexas, ficando claro que, na
análise, só há “vivenciado” em relação a um Outro — o próprio analista —
que, por sua vez, deverá encontrar uma formulação verbal para o
“vivenciado” do paciente a partir de seu próprio “vivenciado”
contratransferencial.

O pensamento freudiano formula esta questão, rigorosamente, desde o4ní-


cio da década de 1890, quando pontua que o “tratamento psíquico” se
realiza

no plano estrito da linguagem, considerada um constituinte da psique e não


! um instrumento funcional externo em relação a ela. A medicina moderna,
marcada pela tradição naturalista, recusava esta concepção de psique e de
“tratamento psíquico”, considerando a relação entre psique e linguagem
como ■ uma forma de magia, em função das ligações míticas entre
linguagem e ma-1 gia.3 Portanto, desde o início o empreendimento teórico
de Freud propõe a ar-1 ticulação entre as temáticas da linguagem e da
representação, de maneira a de-1 linear uma concepção da psique como
sendo fundamentalmente interpretação.!

A constituição dessa lógica da representação realiza-se pela oposição e;


crítica ao pensamento causai. Nesse contexto, torna-se possível formular
que ■ o histérico sofre sobretudo de reminiscências:

“Nós podemos inverter o axioma: cessante causa, cessat effectus, e concluir


dessas observações que o processo determinante continua, durante anos, a
agir — não indiretamente, com a ajuda de elos causais intermediários, mas
diretamente enquanto causa desencadeante — como um sofrimento moral
que, rememorado, pode ainda tardiamente, no estado de consciência clara,
provocar uma secreção de lágrimas: é de reminiscências, sobretudo, que
sofre o histérico."*

Formular que a neurose se situa no plano do sentido equivale também a


postular, implicitamente, que o aparelho psíquico, para se tornar autônomo
em ' relação ao funcionamento orgânico, é pensado em termos de
linguagem, se-1 gundo a funcionalidade da fala, como um aparelho de
linguagem. Só posteriormente este a priori do pensamento de Freud revela
todo o seu alcance. Isso) ocorre quando uma série de outros fenômenos
mentais, até então pouco considerados ou desprezados como objetos para o
saber teórico, também são articulados no mesmo campo da representação
psíquica, revelando o mesmo dinamismo do inconsciente. Entretanto, como
dissemos, o neurologista Freud' i já realizara antes uma crítica contundente
da concepção localizacionista das' i perturbações neurológicas, criticando
as bases da teoria de Wernicke sobre as afasias, aproximando-se de uma
concepção funcional das mesmas e chegando a cunhar o conceito de
“aparelho” de linguagem.5A7 i

A idéia de que as psiconeuroses têm um sentido traz em si enormes


ej diversificadas implicações, que levam inclusive ao rompimento com o
método catártico. A radicalização do postulado de que a representação é a
base da,1 estrutura neurótica — que permitirá privilegiar cada vez mais o
conceito de defesa como seu contraponto necessário — consolida a ruptura
com Breuer. Além da questão da sexualidade, a extensão do conceito de
defesa — para Freud, sempre presente na gênese e na manutenção dos
processo* psiconeuró-l ticos — estará na base da divergência entre ambos.
A conceituação das psico-neuroses como defesas contra um sofrimento
mental é um ponto de partida que conduz inevitavelmente à ruptura com o
método catártico, inicialmente através do abandono dos procedimentos
hipnóticos usados por ele.

Um dos traços geniais de Freud é o de ter tido a coragem de transformar os


obstáculos com que se defrontava em questões a serem resolvidas. Muitos
pacientes não eram hipnotizáveis e mesmo se opunham à hipnose. Ao invés
de considerar esse fato como um sinal de impotência e de fracasso do
método de investigação, Freud o transforma num problema a ser
solucionado: por que tais pacientes não são hipnotizáveis? O que
impossibilita sua hipnose? A validade desse procedimento técnico é
questionada até o limite de sua utilização, levando à descoberta da
resistência, colocada a partir de então como o grande obstáculo a ser
superado na psicoterapia da histeria.’ Como decorrência desta descoberta,
passa-se a considerar que, nos pacientes hipnotizáveis, a rememoração se
realizava de forma simples, exatamente porque a resistência não estava
sofrendo questionamento:

“A maneira ideal pela qual as lembranças surgem por meio da hipnose


corresponde a um estado em que a resistência foi totalmente suprimida.”’

A problemática da transferência emerge exatamente neste contexto em que


se destaca o papel da resistência na cura. De forma implítica e periférica,
ela já se encontra formulada em A psicoterapia da histeria. Muitas
considerações feitas por Freud ao longo desse texto, quando articuladas aos
conceitos formulados posteriormente, podem ser interpretadas como
elementos básicos de uma teoria da transferência e da contratransferência.

O “tratamento psíquico” exige mais do médico do que qualquer cura na


medicina somática, sobretudo em termos afetivos, pois pressupõe uma em-
patia básica em relação ao paciente como condição fundamental.10 Também
para o paciente se exigem certas condições intelectuais e afetivas, sobretudo
uma confiança básica na figura do médico e no tipo de trabalho a que será
submetido,” pois a inevitável resistência pode se tornar intransponível,
levando ao abandono do tratamento, a partir do momento em que o paciente
perceba para onde o trabalho pretende conduzi-lo.12 Em relação aos
pacientes que permanecem, o médico é por eles colocado temporariamente
numa condição ímpar. A influência afetiva que exerce sobre o paciente é
condição básica para a superação da resistência que impossibilita a cura.13
Freud afasta a possibilidade de que a criação de resistência se deva ao
próprio métodrf de investigação, e não a uma dimensão do seu objeto de
estudos. Ele formula que a resistência sempre se colocará, mesmo com
outros métodos, desde que sei estabeleça com o paciente uma relação que
pretenda produzir uma transforma-T ção psíquica.14 A cada momento em
que se interpõe um obstáculo, o médicdj deve reiterar ao paciente a
necessidade de que o trabalho associativo continue. Essa insistência —
observação notável do próprio Freud — representa um gasto de energia
psíquica equivalente à força interna que, no paciente, se opõe à tomada de
consciência da representação patogênica e que deve estar na gênese da
própria neurose.15 O que significa também afirmar que o médico deve
superar as suas próprias resistências para poder conduzir o paciente a
ultrapassar as dele.

Já aparecem, portanto, de forma incipiente, temáticas básicas que depois


vão integrar uma teoria mais ampla da transferência. Não resta dúvida de
que naquele momento estava esboçada grande parte da metapsicologia do
pro-< cesso psicanalítico, como assinalou Lagache.14 Mas, no início, Freud
atribuía à transferência um lugar limitado e periférico no processo clínico.17
Ela é tratada nas três últimas páginas do texto, como o último tópico
assinalado entre as várias formas de resistência.

Freud introduz a questão da transferência destacando as situações em que,


apesar da repetida insistência do médico para superar certo silêncio
associativo, não se produz qualquer reminiscência no paciente. Isso pode
ocorrer, seja porque não há mais o que emergir daquele lugar que é o alvo
da insis-tência, seja porque o sujeito se choca com um núcleo muito
resistente, que só será superado depois. A fisionomia relaxada ou contraída
do paciente fornece: o sinal discriminatório para a orientação do
psicoterapeuta. Porém, há uma terceira possibilidade:
;

“Mas uma terceira possibilidade pode também se apresentar, um caso I


revelando igualmente algum obstáculo, não interior mas desta vez ex- ;
terior. Isto acontece quando a relação do enfermo com o médico é per- '
turbada e então este é o maior dos obstáculos que temos a vencer. Em | toda
análise importante, pode-se, entretanto, esperar encontrá-lo. ”” f

Assim, o problema é introduzido por uma perturbação qualquer na relaçãa


do paciente com o terapeuta, levando a uma paralisação do trabalho. Este
nãoi é apenas o maior obstáculo, mas é também o mais universal,
encontrado em| qualquer análise, mesmo que a pesquisa da estrutura
psíquica do sujeito já| tenha atingido grande profundidade.

Em seguida, Freud introduz duas idéias fundamentais, que se apresentam


como duas situações paradigmáticas para a teoria da prática analítica, que
será desenvolvida posteriormente. Num dos pólos, o desprazer criadb para o
paciente em virtude de certas revelações exige, para a continuação do
trabalho, uma certa compensação amorosa por parte do médico, que viria
mediante a paciência benevolente.” No outro pólo, impõe-se o obstáculo na
relação e se anula toda a colaboração, exigindo-se necessariamente a
realização de um trabalho sobre o obstáculo:

“Se, agora, esta relação do paciente com o médico é perturbada, sua


cooperação também cessa; quando o médico tenta investigar a idéia patóge-
na que vai surgir, a tomada de consciência, pelo paciente, dos agravos que
ele acumulou contra seu médico se opõe às suas revelações.”20

Esta dificuldade pode se colocar em três situações: (a) o paciente vive um


descontentamento pessoal de qualquer ordem, escutou coisas desfavoráveis
do médico ou sobre o tipo de tratamento; é o obstáculo mais simples, que se
supera por uma explicação, apesar da susceptibilidade especial dos
pacientes;21 (b) o paciente teme se vincular intensamente ao médico,
perdendo sua independência; é uma situação mais grave que a anterior, pois
é “menos individualmente condicionada”: se deve à estrutura mesma do
processo em curso, de uma resistência que se levanta sempre, como um
bloco, quando se quer penetrar mais profundamente no sujeito;22 (c) a mais
notável, chamada transferência, refere-se ao temor de reviver, com o
médico, a representação que deveria ser rememorada:

"Quando o enfermo teme descobrir que ele está transferindo para a figura
do médico as idéias penosas que surgem do conteúdo da análise. É um fato
frequente e em verdade regular em algumas análises. A transferência ao
médico se realiza por uma false connection..."23

Dentre os vários obstáculos que podem surgir na relação médico-paciente,


apenas neste caso Freud fala de transferência. A situação vivenciada com o
terapeuta substitui algo que ocorre no campo representativo do paciente,
permitindo desta forma que ele seja camuflado, não rememorado. Portanto,
os dois termos são equivalentes, mas não idênticos. Daí a denominação
“falsa ligação”. Diante da dificuldade de rememorar a experiência, ela é
revivida, repetida como ação, na relação terapêutica:

“As coisas se desenvolveram da seguinte maneira. O conteúdo do desejo


tinha surgido na consciência da paciente, mas sem ser acompanhado da
lembrança das circunstâncias acessórias capazes de situar este desejo no
passado. O desejo atual se encontra reatado, por uma compulsão-
associativa, à minha pessoa, evidentemente passada ao primeiro plano das
preocupações da enferma; como resultado desta mésalliance — à qual eu
dou o nome de false connection — o afeto que entra em jogo é idêntico
àquele que tinha outrora incitado minha paciente a repelir um desejo
interdito. Desde que descobri isso, eu posso, cada vez que minha pessoa se
encontra assim implicada, presumir a existência de uma transferência e de
uma falsa ligação. Coisa bizarra, os enfermos são sempre enganados em
semelhante coisa.”24

A “falsa ligação” revela de modo preciso a estrutura da transferência-re-)


sistência, por onde se desdobrará de modo particular a teoria freudiana da
transferência. O campo representativo não se desvela totalmente, pois isso
acarretaria sofrimento mental. A rememoração é substituída pela
revivênciaj isto é, uma cena transforma-se em um ato. O paciente monta, no
presente, a. mesma cena fantasmática do passado. Estabelece-se uma
equação simbólicas entre a cena fantasmática e a cena da relação médico-
paciente. O desven-damento da segunda é a condição da possibilidade de se
explicitar a primeira, que pertence à história do sujeito.
'

A conclusão de Freud é bastante significativa: para o efeito do trabalha


analítico, importa pouco se a dificuldade do paciente se apresenta no plano
da representação ou no da revivência,25 pois, em termos simbólicos,
estamos diante de uma equação; pelo segundo termo se atingirá
inevitavelmente <x primeiro. l*Jo curso de uma análise essas situações se
repetem com tal fre-l qüência, que os pacientes também começam a se dar
conta de uma remeA moração atualizada. Mas essa superação tem que ser
realizada sobre cadaí obstáculo transferenciai que se coloca, descobrindo a
cena fantasmática que s® camufla nessa “falsa ligação”. Se não fosse
assim, o sintoma originário serial substituído por outro, transferenciai,
menos grave, porém equivalente: ?

“Os enfermos, aliás, aprendiam pouco a pouco que, em semelhantes


transferências à pessoa do médico, tratava-se de uma compulsão e de uma
ilusão que o fim da análise dissiparia. Todavia, eu penso que se tivesse
omitido de lhes fazer compreender a natureza-do ‘obstáculo’, eu não teria
feito senão substituir um sintoma histérico espontaneamente aparecido por
um outro, mais leve, é verdade.”26

Aparece assim outra equivalência simbólica com a equação anterior, de


forma a se constituir um círculo nas várias relações que se articulam entre sl
de modo complexo. Com efeito, a cena fantasmática — que pode se tornai
equivalente à relação do paciente com o médico —já era postulada comc
equivalente ao sintoma. Agora sugere-se que a relação transferenciai podt
produzir novos sintomas equivalentes ao primeiro, fechando o círculo de
re^ lações.

Assim, apesar de destacarmos em A psicoterapia da histeria um conjunto


de considerações que antecipam desenvolvimentos futuros da teoria da
prática analítica, uma parcela destas formulações se encontra ainda em
“estado prático”, como diria Althusser,27 não tendo recebido plena
elaboração conceituai. O que significa dizer que estamos diante das
primeiras intuições, do destaque de temas e de questões que só depois
encontram um lugar preciso no campo da teoria. O lugar periférico
ocupado pelo conceito de transferência na economia interna desse texto
revela precisamente isso.

Mais do que isso, a transferência — apesar de ser apontada como inevitável


no curso de qualquer análise importante, como “falsa ligação”, como
resistência ao processo psicanalítico — nem por isso é considerada, nesse
momento, como um dos instrumentos fundamentais da análise. Se ela não é
tratada como o motor do processo analítico, a interpretação permanece
sendo uma comunicação consciente, racional, daquilo que é desvendado por
uma simples investigação e reconstrução do passado traumático.

Com efeito, baseando-se em sua auto-análise e na experiência clínica


traduzida nos Estudos sobre a histeria, Freud nos oferece um modelo do
ofício de psicanalisar, caracterizado pela revelação de algo que já se
encontra — intacto — nas profundidades de um passado “esquecido”. A
representação patogênica, assim revelada, se integra pela interpretação a
uma pura “explicação” sobre a formação dos sintomas. A teoria do
funcionamento do aparelho mental, elaborada em A interpretação dos
sonhos,28 fornece a Freud o suporte maior para prosseguir nesse caminho
inicial, orientado para reconstituir o passado traumático do analisando. Em
resumo, nos primeiros tempos da disciplina psicanalítica a interpretação não
era uma produção gerada em termos intersubjetivos no espaço de uma
relação. A “partida de xadrez” não se apresentava ainda, para Freud, como
imagem adequada à descrição da aventura analítica.

Ainda centrado em algumas das coordenadas teóricas desse período, Freud


representa o processo de revelação da verdade do sujeito, realizado pela
psicanálise, como análogo a um processo judicial em que a figura do
neurótico é comparada à figura do criminoso. Evidentemente, a comparação
freudiana não é grosseira nem ingênua, pois através dela Freud pretende
destacar incisivamente, de um lado, a existência de uma verdade psíquica
que se inscreve na estrutura neurótica, e, de outro, diferenciar as formas de
verdade presentes no criminoso e no histérico, considerando a primeira no
registro consciente e a segunda no registro inconsciente.29
Apesar dessas diferenças, é evidente que Freud revela uma posturtl de
investigação jurídica no curso do processo analítico. Este se apresenta co-

mo similar à busca da verdade criminal e se materializa na metáfora do


interrogatório. Com isso, fica bastante clara uma representação do proces-i
so psicanalítico em que a interpretação funciona como método racional,]
cabendo à transferência uma posição periférica na economia interna doi
processo. 1

Enfim, a relação intersubjetiva já se apresenta indicada nas coordenadas]


que o pensamento freudiano está construindo para circunscrever o espaço!
psicanalítico e na forma de escuta que procura realizar dos pacientes. Mas
elaj ainda se encontra em estado latente, não tendo formalizado suas
próprias] potencialidades, o que permite que a metáfora do interrogatório
seja uma] representação possível do processo psicanalítico.
I

Em verdade, a transferência surpreende Freud, aparecendo como uma in-l


terferência no processo analítico. A partir dela, Freud usa sua genialidade]
para realizar uma primeira elaboração conceituai, mas não a retira de uma]
condição periférica na economia interna da teoria do processo analítico. Ag
prova histórica disso nos é fornecida pela elaboração teórica que o próprio’
Freud se viu obrigado a realizar em virtude do fracasso da análise de Dora/
Com efeito, Dora abandonou a análise exatamente por causa da não-inter-
pretação da sua resistência de transferência, que Freud ainda não tratava
como | um dos instrumentos centrais do processo psicanalítico. Apenas a
partir daí a 3 análise minuciosa da transferência-resistência passa a ocupar
um lugar estratégico na prática psicanalítica.

A transferência como objeto de interpretação


O caso Dora foi publicado em 1905, mas o tratamento se realizou em 1899.
Nessa época a técnica analítica já não existia mais na forma apresentada nos
j Estudos sobre a histeria, nos quais Freud empreendia o trabalho
associativo a ’ partir dos sintomas. Agora, o paciente escolhia, em cada
sessão, o tema a ser tratado, entre o que mais o preocupava, tomando o que
lhe aparecia como mais sensível na superfície do seu inconsciente e
realizando então as associações' livres.30

Independentemente de outros aspectos relevantes que esse escrito destaca


para a interpretação freudiana da histeria, a sua importância histórica se
deve à discussão que realiza sobre a transferência e o lugar desta na teoria
do processo psicanalítico. O fracasso relativo da análise, causado pelo
abandono prematuro da analisanda, leva Freud a querer transformar o seu
revés num ganho, construindo a teoria do seu erro e remodelando o camjp
da prática analítica. Vejamos, primeiro, a constatação do problema:

“É necessário falar da transferência, pois só por este fator se pode explicar


as particularidades da análise de Dora. O que constitui o seu grande mérito
e a torna adequada a uma publicação de introdução à psicanálise, sua
clareza particular, está em relação íntima com sua grande falha, que foi a
causa de uma interrupção prematura. Eu não fui bem-sucedido em dominar
a tempo a transferência.”31

Nos seis anos decorridos entre a experiência psicanalítica e sua publicação,


Freud elabora as razões de sua falha, aprende com essa experiência e
constitui a teoria do seu erro, capacitando-se então a transmiti-la
pedagogicamente aos analistas. Ao invés de poder ser restaurada no plano
da representação, a pulsão se realiza como um ato na relação com o
analista. Freud assinalara um indício do processo transferenciai, mas, diante
do cuidado com que a paciente oferecia outros materiais, considerara
secundário analisar logo essa transferência:

“A boa vontade com a qual Dora colocou à minha disposição uma parte do
material patógeno durante o tratamento me fez negligenciar a precaução de
prestar atenção aos primeiros sinais da transferência que ela preparava por
meio de uma outra parte deste mesmo material, parte que me permaneceu
desconhecida.”32

Assim, na interpretação da transferência, existiria um tempo, um ritmo


próprio, que não podería fluir livremente no processo analítico. Mas, além
deste tópico, a importância reveladora dessa passagem reside em destacar
que Freud foi “enganado” exatamente por atribuir maior peso à
representação verbalizada com uma certa coerência, deixando de escutar
devidamente um outro nível representativo, mais fragmentário, que se
esboçava nos sonhos de Dora e que aparecia, também de forma velada, na
relação analítica. Nesse momento, se evidencia uma profunda ruptura com
A psicoterapia da histeria. Vem ao primeiro plano uma certa sutileza na
configuração do representado, uma certa economia do mesmo, como
reveladora do funcionamento inconsciente. A partir de agora a escuta
psicanalítica vai se sustentar nessa representação momentânea, nesse
fragmento que emerge e submerge numa minúscula fração de tempo. O eco
dessa ruptura entre dois momentos e dois tipos de representação, de
qualidades diferentes, vai ser assinalado por Freud:

“A evocação de lembranças, tal como elas se produziam na hipnose, devia


dar a impressão de uma experiência de laboratório...”33

No primeiro sonho, Dora indicava que, como vingança, desejava abandonar


o tratamento, como fizera outrora com a casa de M.K.. Surpreendido pela
transferência, Freud se deixou seduzir pela apresentação cuidadosa do
material, padrão de relato então privilegiado, e não pôde ter acesso ao
sentido que» estava camuflado nessa transferência.

“Mas eu negligenciei essa primeira advertência, pensando que tinha


bastante tempo, já que não se apresentavam outros signos de transferência e
que o material de análise não estava ainda esgotado. Assim, fui
surpreendido pela transferência, e é por causa deste fator desconhecido,
pelo qual eu lhe recordava M.K., que ela se vinga de mim, como queria se
vingar dele; e ela me abandona, como se acreditava enganada e abandonada
por ele. Assim, ela colocou em ação uma parte importante de >, suas
recordações e de seus fantasmas, em lugar de reproduzi-los na • cura.”34

Aqui, novamente, Freud descreve o fenômeno da “falsa ligação", a trans-í


ferência-resistência, que, apesar de destacada, foi mantida como periférica
nq quadro teórico de 1895. A partir de agora, a transferência vai ocupar
um* posição central na teoria do processo analítico, oferecendo outro
campo <k representações para a escuta do analista. Realiza-se, então, a
formulaçãc princeps dessa posição, que afirma o papel ambíguo da
transferência: d< maior obstáculo ao processo analítico, pois é o que se
contrapõe à remem» ração, ela pode se transformar no seu auxiliar mais
poderoso, desde qw pontualmente interpretada pelo analista.33
j

Assim, transforma-se — e fica mais difícil — o campo da escuta do ana


lista. Este vai dar menos atenção à limpidez do discurso coerente, às repro
sentações estruturadas, para atentar ao não dito no plano da fala — ao qu<
aparece como silêncio e vazio na trama discursiva — e, sobretudo, ao não
dite que se substitui por uma ação visando ao analista e ao quadro formal
d< espaço psicanalítico. Com isso, o processo analítico se torna mais lento
e, en alguns momentos, confuso, mas certamente fica mais bem assegurado
contn as resistências.36

O material que o paciente oferece assim ao analista é absolutamente di


verso dos demais. Nestes, ele fornece sempre o texto. Naquele, fornece leve
sinais, como um pré-texto que o analista deve “captar”, “adivinhar”,
“intuir’1 para poder transformá-lo, pela interpretação, até elevá-lo à
condição de tex] to.37 A transferência não pode ser evitada, não só porque é
utilizada pel| analisando para criar obstáculos que impedem a emergência
dò materiar como também porque sua análise e sua subjetivação — com a
conseqüentt separação entre essa energia e a figura do analista — são
fundamentais par que o paciente se convença da veracidade das
interpretações,3* que se tomai revelações. •

Ao constituir outra dimensão dessa problemática, Freud se distancia ainda


mais das formulações contidas nos Estudos sobre a histeria. Assumida
como inevitável e deslocada da periferia para o centro da teoria da prática
psicanalítica, a transferência se coloca no centro da neurose, na estrutura
mesma das psiconeuroses, que produzem a transferência como uma de suas
manifestações. Nestes termos, o analista deve enfrentá-la como qualquer
outra expressão das psiconeuroses.39 É, contudo, uma manifestação muito
especial e particular, pois, ao contrário dos sintomas visíveis, não é o
produto final de um processo simbólico. Ela indica a própria produtividade
do processo neurótico, o campo dramático e dinâmico onde se articula a
formação do sintoma:
“Pode-se dizer com segurança que geralmente a produção de novos
sintomas cessa durante a cura psicanalítica. Mas a produtividade da neurose
não é de modo algum apagada; ela se exerce criando estados psíquicos
especiais, na maior parte inconscientes, aos quais pode-se dar o nome de
transferências.”*0

Sublinhemos o enorme espaço teórico percorrido por Freud. No início, a


transferência era considerada como uma interferência no trabalho de reme-
moração, funcionando como um equivalente, no aqui e agora da relação
analítica, do que não pode ser recordado e ocupando um lugar periférico no
processo analítico. Agora ela mantém alguns desses atributos, mas ao
mesmo tempo os transcende, passando a ocupar um lugar estratégico no
espaço psicanalítico. Além de um substituto da simbolização, como o que
se opõe ao sentido, ela passa a ser apreendida como expressão estrutural do
processo neurótico, encarado evidentemente numa perspectiva dinâmica.
Nesse contexto, Freud pôde superar total mente uma compreensão da
neurose que se baseava no registro visível dos sintomas, trabalho realizado
apenas parcialmente nos Estudos sobre a histeria. Esta superação foi
possibilitada pela formulação metapsicológica empreendida no livro sobre
os sonhos, em que foram postuladas as leis universais que regulam o
funcionamento do aparelho psíquico, estabelecendo definitivamente o
registro tópico do inconsciente.41

Atingido este campo de invisibilidade, que se constituiu inicialmente a


partir da significação do sintoma, é possível ultrapassar o campo de
visibilidade do sintoma e atingir um novo limiar de escuta da estrutura
neurótica. Isso justifica teoricamente a citada mudança na técnica analítica,
em qué as associações livres não se realizam mais a partir do sintoma, mas
a partir de qualquer tema, pois desta forma se atinge de maneira mais
articulada o campo de invisibilidade onde circulam e se constituem as
representações. Assim, Jsta-belecendo-se a aparente oposição entre os
sintomas e a produtividade da neurose, se pode assinalar a identidade
profunda, simbólica, entre ambos, pois ■ desta produtividade emergem os
sintomas e um conjunto de outras manifesta- * ções. Por isso, a produção de
novos sintomas pode cessar durante a análise,i substituída pela
produtividade da neurose, que emerge como transferência noJ campo da
cura.
Se a transferência substitui os sintomas, a que isto se deve? Será por que,1
esta produtividade da neurose, realizando-se agora num plano mais funda-]
mental, pode se expressar por outras vias menos grosseiras que os
sintomas?) Ou — como complemento desta interrogação — a transferência
cura os sin-í tomas?

Antes de responder, vamos nos fixar um pouco mais no que, nesse mo-]
mento, o pensamento freudiano considerava ser a transferência. Ela era
umai cópia de tendências e de fantasmas que o desenvolvimento da análise
deveria] trazer à consciência. Como estes fantasmas não eram
rememorados, e sinj| realizados, a figura do analista passava a substituir
uma personagem do cen nário interno do analisando. Assim, geralmente, a
transferência era uma ree-1 dição estereotipada de estados psíquicos já
constituídos, o que não impedia que ela pudesse se apresentar com
alterações em relação ao modelo anterior da experiência, como se fosse
uma edição corrigida e não uma reimpressão.4] Enfim, nesse momento do
pensamento freudiano sobre a transferência, aa únicas mudanças diziam
respeito à extensão do processo a toda estrutura neurótica e à designação de
um novo lugar para o fenômeno na psicanálise. Em relação ao momento
teórico anterior, ainda não existia nenhuma inovaçãc quanto ao que era
transferido.

Com o redimensionamento do campo do trabalho analítico e o alargamento


do lugar da transferência, seria possível argüir que esta seria prejudicial pan
o analisando, que ficaria exposto a uma experiência desagradável. A
análise, contudo, não impõe nada aos pacientes, já que esses enlaces
transferenciai! são produzidos pelos analisandos e pela produtividade da
neurose, existindt em qualquer cura que não utilize a psicanálise. Aparece
aqui algo novo, já qu< Freud passa a interpretar que certas manifestações
curativas, certas ligaçõe intensas dos pacientes com seus médicos, se devem
exatamente ao impacto di fenômeno da transferência, que se situaria na
base de certas curas inexplicada ou apenas “racionalizadas”:

“Se é verdade que as neuroses podem ser curadas em instituições onde o


tratamento psicanalítico é excluído, se se pode dizer que a histeria é curada
não pelo método, mas pelo médico, se uma espécie de dependência cega e
de ligação perpétua se manifesta de ordinário do^enfermo ao médico que o
libertou de seus sintomas pela sugestão hipnótica, a explicação científica
disso reside nas ‘transferências’ que o paciente efetua regularmente sobre o
médico. A cura psicanalítica não cria as transferências. Ela não faz senão
desmascará-las, como o faz com os outros fenômenos psíquicos ocultos.”43

Esta questão é seguidamente reiterada por Freud, que procura sempre


assinalar, como fez neste fragmento, que a transferência não é um artefato
da psicanálise. Fenômeno universal, e não um atributo criado no espaço
analítico, ela se origina da própria estrutura da neurose e se relaciona com a
estrutura libidinal do sujeito. Retomando posteriormente a questão, Freud
reafirma: “estas particularidades da transferência não são imputáveis à
psicanálise, mas à própria neurose”,44 sendo “falso que a transferência seja,
na análise, mais intensa, mais excessiva, que fora dela”.45 Enunciando o
conceito de transferência negativa, ele assinala a extensão extra-analítica do
fenômeno, como nas resistências à cura, que ocorrem entre os internados
como uma manifestação privilegiada da transferência erótica.46

Podemos nos aproximar agora das interrogações anteriores. Com o


fenômeno da transferência, os sintomas desaparecem, e a ligação com o
analista é o cenário onde se articula esta substituição. A transferência
exerce um efeito curativo sobre os sintomas, na medida em que os substitui.
Mas, paradoxalmente, ela condensa o essencial do processo neurótico, pois
impede a reme-moração e é para onde se canaliza a produtividade da
neurose.

Se a transferência está na base dos efeitos curativos das várias terapias


realizadas com neuróticos e se ocupa um lugar fundamental na teoria do
processo analítico, que diferença há entre a psicanálise e os demais
métodos? A descrição dessa identidade e das diferenças se transforma em
preocupação frequente do pensamento e da obra de Freud, particularmente
nesse período em que ele elabora a teoria da transferência c do processo
analítico. A cura dos enfermos, nos demais tratamentos, se deve à
transferência amorosa que estabelecem com o médico; quando esta não se
realiza, eles abandonam o tratamento, trocando geralmente de médico. Aqui
se articula o efeito curativo da transferência, no plano sintomático, já que,
como vimos, ela canaliza a produtividade da neurose, que substitui o
sintoma.
Ao contrário dos demais métodos, a psicanálise pretende ir além da
transferência. Na verdade, pretende exatamente superá-la, para descobrir o
que se realiza através dela, já que ela é também uma forma de resistência.
Assim, através da análise, os pontos nucleares da estrutura neurótica se
abrem para o analista e para o analisando. Daí a formulação princeps sobre
o lugar ambíguo da transferência: de maior obstáculo à psicanálise, ela se
transforma no seu mais poderoso auxiliar.47

Essa discussão, que visa a diferenciar a psicanálise dos demais procedi-


mentos terapêuticos, é essencial num certo nível, para marcar a
originalidade teórica do empreendimento psicanalítico. Em outro nível,
porém, ela revela outro tipo de preocupação de Freud: a possível confusão
entre psicanálise e;

sugestão, ou entre psicanálise e hipnotismo. Em que medida a psicanálise


rompe realmente com essas práticas? Quais são os pontos de contato e dei
ruptura? Esta parece ser a dúvida mais profunda, que obseda Freud. Não há
1 dúvida alguma de que a discussão sobre a transferência entra neste espaço
de ’ interrogações.

Senão, vejamos. O itinerário freudiano, desde 4 psicoterapia da histeria;


até o “caso Dora”, é significativo. No início, toda a preocupação se
centrava, num método racional que, quase como um procedimento
experimental, visava a explorar o trauma, a cena representada, na qual
estariam ancoradas as co-í ordenadas básicas da neurose. Isso gerava
resistências, pensadas, na relação terapêutica, como sinais do processo de
recalque que produzira a neurose num determinado momento da história do
sujeito. Destacada como algo que subs- i titui o desvelamento do sentido, a
transferência era uma dessas resistências,« pois interferia num processo que
deveria realizar-se no plano da representação j coerente. No “caso Dora”,
Freud se rende à transferência, deslocando-a para| o centro da
produtividade neurótica, ainda como obstáculo, evidentemente,' porém
como aquilo que transforma a escuta do analista e reconstitui as co-<
ordenadas do campo psicanalítico, fornecendo um dos caminhos
privilegiados } de acesso ao material inconsciente. Os elementos de uma
teoria sobre a na-'! tureza do trabalho interpretativo, ainda que sem uma
rigorosa articulação,! evidenciam-se a partir do relato que Freud nos dá da
análise de Dora, assim como, pouco depois, da análise do “Homem dos
ratos”.48

A partir do lugar que a transferência passa a ocupar na cena analítica, a


noção de deslocamento dos investimentos libidinais do analisando já está
introduzida no quadro em que se busca compreender o desaparecimento dos
sintomas. Haverá, pois, para que a cura se processe, necessidade de uma
troca de objeto e do modo de satisfação pulsional. Poderiamos interpretar
que, mantendo a transferência apenas como uma resistência a ser afastada
do cami-, nho do processo analítico, Freud resistia, inconscientemente, às
expressões de sua própria contratransferência.

O percurso que se origina em Dora e que se prolonga até os escritos


técnicos nos mostrará como Freud, tendo abandonado a sua concepção
“racional”; da interpretação, abre novos horizontes que deixam entrever o
"fazer analí-' tico” não mais como uma mera “aplicação” de um saber. A
verbalização não opera mais de forma isolada, e a pessoa do analista fica
permeável aos efeitos da transferência, mesmo se ela ainda é vista por
Freud apenas como resistência. Ocorre uma grande mutação: o modelo da
auto-análise deixa de ser o único a ser “aplicado” ao processo analítico. A
interpretação passa a incluir o trabalho de sentido, que também deve ser
efetuado sobre a organização transferenciai. Manifestação de desejos
proibidos, palavra calada porque dirigida a um objeto da pulsão — o
analista —, a transferência deverá ser objeto de interpretação. Esta é a
condição para que se torne palavra falada, desdobramento necessário ao
progresso da revelação da verdade subjetiva do analisando.

O relato do processo psicanalítico do “Homem dos ratos” revela como


Freud se afasta inteiramente de uma concepção “racional” da interpretação
psicanalítica e enuncia uma inovação metodológica. Ele ironiza en passanl
algumas de suas próprias intervenções, que tinham evidente característica
racional e até mesmo pedagógica, destacando que as formulava como que
para redescobrir que elas de nada valiam, pois, no processo psicanalítico,
não promoviam qualquer efeito de abertura em direção ao sentido.4’ Com
este procedimento, Freud demonstra a sua nova concepção de prática
interpre-tativa, que nega a anterior démarche racional e se coloca de
maneira radical no espaço da intersubjetividade, atribuindo à experiência
transferenciai o lugar de eixo fundamental que deve guiar a escuta do
analista e dirigir as suas formulações interpretativas.

Tendo sido recuperadas por acaso, as notas tomadas por Freud durante as
seções com o “Homem dos ratos” fortalecem a interpretação que estamos
realizando.50 O leitor se sente desnorteado, confuso, diante das anotações
de Freud, que documentam minuciosamente o curso do processo analítico.
Não há um saber racional orientando as interpretações. Freud se situa
fundamentalmente no eixo do processo transferenciai para enunciar, com
insistência, o deciframento do sujeito. Na sua singularidade, a transferência
se toma estranha ao leitor, que, não estando engajado no processo
intersubjetivo, ocupa o lugar de “terceiro excluído”. O leitor só pôde sentir-
se incluído num diálogo com Freud e seu analisando depois que as
anotações foram transformadas num texto que usa mediações teóricas para
tratar desse processo originariamente intersubjetivo.

Finalmente, para a interpretação que estamos empreendendo, é muito


revelador que a representação verbal “rato” — apesar de estar presente, de
forma central, no relato inicial da obsessão do analisando — só tenha
adquirido sentido para Freud mais tarde, no curso do processo psicanalítico.
Vale dizer, é tal a variedade de contextos em que esta representação se
apresenta, de forma insistente e sutil, que demora a se configurar como éma
imagem reveladora da verdade da estrutura psíquica. Isso se dá quando a
transferência se transforma definitivamente no eixo central que norteia o
processo intersubjetivo e passa a ditar as enunciações da prática do
deciframento.

Quanto ao texto clínico de Dora, relembremos que uma das observações d«


Freud, retirada dessa análise, apresenta implicitamente uma formulação re
novadora: a lógica da interpretação estaria subordinada à lógica da trans
ferência.

“A interpretação dos sonhos, a extração de idéias e de lembranças


inconscientes das associações do paciente, assim como os outros
procedimentos de tradução, são fáceis de aprender; é o paciente quem
sempre oferece o texto. Mas a transferência, ao contrário, deve ser
adivinhada sem a sua assistência, a partir de leves sinais e sem pecar por
arbitrariedade.”51

Através de seu efeito curativo, a transferência recoloca a questão da suges-,


tão, pondo em pauta o poder de sedução e de influência da figura do
analista Assim, entre o poder e o sentido se demarca o espaço do
pensamento freu-j diano, que procura o sentido como dominante na marcha
da análise, mas nãoi pode mais se desfazer do poder com a facilidade de
antes. Por isso, postula o] primeiro como o que se opõe à significação,
como o que resiste e insiste emi não ser traduzido para o plano do sentido.
Este é o campo dramático em que-Freud investe o dispositivo analítico,
como uma articulação que visa a es-tabelecer o sentido num emaranhado
aparentemente irracional, procurando, apreender a verdade naquilo que é
comumente colocado como invenção e; como capricho. Mas, para isso, a
partir de Dora, deve-se necessariamente passar pela representação em
estado nascente, e mesmo por aquilo que ainda não é representação. Neste
campo de incertezas, a luta contra a sugestão do. analista também se coloca,
necessariamente.

Sugestão e transferência
Transformar a forma de funcionamento mental das neuroses exige que
analisando e analista façam um esforço de simbolização para encontrar —'
tanto nos silêncios do discurso consciente quanto nas representações que sé
atualizam através da transferência — as representações recalcadas. Através
daí transferência é que o analisando exerce poder sobre o terapeuta. Em
contrapartida, coloca-se também a questão da possível sugestão do analista,
já que seu poder também poderia realizar-se por este canal. Para tal, a
simbolização exige uma teoria psicanalítica da sugestão, isto é, uma
formulação sobre 9 transferência que permita interpretar a sugestão.

Nos dez anos seguintes, essa foi uma preocupação constante de Freud,
levada adiante, no entanto, de forma indireta e assistemática, como um
tópico no campo de outras temáticas. Também nesse período ele
sistematizou a teoria da transferência, o que é um indicador de como a sua
elaboração sobre a temática da sugestão foi o contraponto necessário desta.
Debelar o mito antiliberal da sugestão, do exercício de poder sobre a
vontade do outro, foi a condição de possibilidade para consolidar uma
teoria científica da transferência e do processo psicanalítico.

Num trabalho contemporâneo ao caso Dora, Freud retoma a questão. Trata-


se de uma conferência realizada em Viena, em 1904, para uma platéia de
médicos que viviam num ambiente fascinado pela tecnicização da medicina
e tendiam a enxergar as práticas psicoterápicas como uma moderna
manifestação de misticismo.52 Concepção ingênua, pois mesmo se os
médicos desejassem abrir mão desse tipo de instrumento isso seria
impossível, já que, como mostrara o grande ensinamento da escola de
Nancy, os pacientes não tinham interesse em renunciar a esse tipo de
cuidado.

Para o pensamento freudiano, a sugestão influencia qualquer processo


terapêutico, exercendo uma ação dupla e contraditória: favorece a cura, mas
pode ter um efeito inibidor.53 Este fator, ligado à disposição psíquica do
paciente, existe, continua operando na relação médico-paciente (mesmo à
revelia do primeiro) e tem efeitos sobre os processos terapêuticos. Isso
coloca para os terapeutas a exigência de um domínio sobre a sugestão, para
que se tornem senhores da cura. Esta seria a finalidade de uma psicoterapia
científica.54

Existem várias formas de psicoterapia, mas a psicanálise é a única que


preenche o requisito de cientifícidade, pois é o único método que permite ir
até a origem da estrutura neurótica e explicitar os seus mecanismos
psíquicos.55 Por isso, é preciso não confundi-la com a hipnose pela
sugestão, como se costumava fazer, pois entre os dois métodos existe um
contraste análogo ao que foi formulado por Leonardo da Vinci em relação
às artes:

“A pintura, diz ele, trabalha per via di porre pois ela aplica uma substância
— parcelas de cor — onde nada existia antes, sobre uma tela branca; a
escultura, contudo, procede per via de levare retirando da pedra bruta tudo
o que recobre a superfície da estátua que ela contém. A técnica por sugestão
procede do mesmo modo per via di porre, sem se preocupar com a origem,
com a força e com a significação dos sintomas mórbidos; no lugar disto, ela
aplica alguma coisa, a sugestão, e espera que este procedimento seja
bastante poderoso para entravar as manifestações patógenas. O método
analítico não procura nem acrescentar nem introduzir um elemento novo,
mas, pelo contrário, retirar, extirpar alguma coisa; para fazer isto, ele se
preocupa com a gênese dos sintomas mórbidos e com as ligações das idéias
patógenas que ela quer suprimir. Utilizando esse modo de investigação a
terapia analítica aumentou notavelmente nossos conhecimentos.”36

A sugestão não deve ser criticada apenas por sua pouca eficácia —já que
não obtém a cura definitiva e não evita recaídas frequentes — mas,
sobretudo, porque impede o conhecimento do jogo das forças psíquicas que
estruturam a neurose e do lugar da resistência, em que se revela a defesa do
paciente no > quadro do processo terapêutico.37 Em verdade, o que está em
questão é a própria necessidade de analisar a sugestionabilidade, fenômeno
que toma o paciente apto a receber a interpretação do terapeuta, mas que
também pode bloquear todo o processo terapêutico. Em tomo disso, Freud
busca estabelecer a fronteira entre os campos da psicanálise e da sugestão,
além de dar outro tratamento à transferência na análise. Se ela é inevitável,
é preciso manejá-la analiticamente, ou seja, captar sua significação. Se a
utiliza ingenuamente, o analista fica sob seu poder, que vai no caminho da
resistência.

Por isso, cabe impedir o poder de sugestão presente nos pequenos


procedimentos técnicos que o analista pode imaginar para facilitar a análise,
mas que acabam reduzindo a análise à sugestão. Freud critica os jovens
analistas que trazem para a análise as suas próprias deficiências, a fim de
facilitar que os pacientes coloquem também as suas, superando resistências.
Isso faz a? psicanálise resvalar para a sugestão, pois incita o paciente a
revelar cedo* demais o que teria tempo para fazer. Ademais, não ajuda em
nada na revelação5 do inconsciente, pois reforça a resistência e, em certas
situações, desperta a voracidade do paciente, mais preocupado com a
análise do psicanalista do que < com a própria. A regra do analista-espelho
existe em virtude desses tópicos? e desse contexto, para evitar que o
analista use a sugestão e manipule a trans- í ferência.5’
'
Na mesma direção vão os comentários de Freud sobre a “esperança” e aí
“desconfiança” dos pacientes na análise, como indicadores de seu possível
sucesso ou fracasso. Ora, a sugestão-transferência deve ser considerada
como j qualquer outro sintoma. Ela não tem a transparência do óbvio, mas é
um dadoí no campo das forças psíquicas. Acreditar que a “esperança”, a
“confiança” ou a “desconfiança” resolvam ou impossibilitem a análise é
permanecer preso a uma razão sugestiva e não psicanalítica.39

Nenhum poder de sedução é permitido ao analista e ao analisando. No


campo analítico, ela deve existir como um movimento do analisando, como
‘ um material analítico como qualquer outro, que deve ser problematizado,
sendo mais um elemento a ser levado em conta na livre escuta do analista.
Este não pode compactuar com as demandas do analisando que deseje
melhorar apenas algo que lhe pareça intolerável, sem tocar em outras
dimensões de sua estrutura psíquica. Na base da estrutura neurótica não
existe esta distinção tolerável/intolerável. Aceitar isto seria satisfazer a
demanda do analisando e realizar um tratamento baseado na sugestão:

“Um médico que busca, na medida do possível, não dever seus resultados à
influência da sugestão (isto é, à transferência), fará bem em renunciar
também à parcela da influência sugestiva de que ele podería talvez
dispor.”60

Fundamento da sugestão, a transferência não pode ser usada de forma


isolada. Em seu uso, existe uma economia que marca o trabalho analítico.
Mas o seu poder seduz, pois, enquanto existe — e aí se encontra sua
armadilha — , ela tem o dom de acabar com todos os sintomas.61 É aqui
que se situa o seu uso como sugestão, pois fazer apenas isso, acreditar no
seu fascínio, é não penetrar na base da estrutura neurótica, pois, não se
enfrentando a resistência, realiza-se apenas um tratamento paliativo. Neste
contexto, coloca-se uma definição fundamental do que seja a psicanálise,
discriminando-a da sugestão pelo lugar atribuído à transferência:

“Em semelhante caso o tratamento não pode ser qualificado de psicanálise,


não se tratando senão de sugestão. O nome de psicanálise só se aplica aos
procedimentos nos quais a intensidade da transferência é utilizada para
superar as resistências. É somente então que o estado mórbido se torna
impossível, mesmo quando a transferência é liquidada, como de resto exige
a sua função.”62

No mesmo sentido vai esta outra postulação de Freud, afastando a


psicanálise de qualquer tipo de identificação com o tratamento baseado na
sugestão, no tipo de manejo que o analista deve fazer da transferência:

“Neste ponto nós admitimos de bom grado que os resultados da psicanálise


se fundam na sugestão; todavia, devemos compreender a sugestão como
Ferenczi (1909): é a influência exercida sobre uma pessoa por meio dos
fenômenos de transferência que ela é capaz de produzir. Nós
salvaguardamos a independência final do paciente, só utilizando a sugestão
para fazê-lo realizar o trabalho psíquico que o conduzirá necessariamente a
melhorar de forma durável sua condição psíquica.”62

Nesta passagem, Freud retoma a elaboração realizada por Ferenczi, quÉ se


encaminhava na mesma direção, procurando discriminar o lugar da
transferência na psicanálise e no tratamento de sugestão (se bem que aqui
Ferenczi atinja novas temáticas, nas quais relaciona as questões da
transferência e da; introjeção).64 Em 1912, Ferenczi retoma a mesma
problemática,65 consoli-j dando nossa interpretação de que nesse momento
histórico a teoria da transferência tem como contraponto a temática da
sugestão. Em outras palavras,^ procura-se exorcizar, do espaço analítico, o
fantasma da sugestão.

Estamos situados num campo complexo, no qual a transferência é um


fenômeno de muitos sentidos e que implica diferentes procedimentos no
quadro do processo psicanalítico, devendo ser usada tanto para possibilitar a
análise quanto para superar a resistência. Em torno da transferência está a
principal fonte de manutenção da resistência. Assim, já neste momento da
reflexão freudiana, ela se apresenta como um instrumento complexo, dotado
de múltiplas facetas, integrado a uma engrenagem também complexa tanto
na estrutura libidinal do sujeito quanto na sua inserção no espaço da análise.
Cabe, portanto, delimitá-la na sua complexidade.

Antes de desdobrarmos esta questão, destaquemos como, nesse contexto;


em que se delimitam a finalidade da psicanálise, seus limites e suas
diferenças para com a sugestão, Freud também começa a formular
reiteradamente a ne-; cessidade essencial de que os que pretendem exercer a
psicanálise como ofício sejam, eles mesmos, analisados. Esta problemática
se constitui paralelamente! à crítica da sugestão e à demarcação do campo
da prática psicanalítica.

Interessante articulação de temáticas! E como poderia ser diferente? Se o


analista não será chamado a apreender uma representação preestabelecida
—; mas, cada vez mais, a abrir o caminho para que a representação possa
emergir^ ou mesmo para que possa se constituir enquanto tal no plano da
palavra —, se vai ser objeto de intensa transferência, ele deve saber lidar
com o envolvimento sugestivo do paciente e com a fascinação deste
instrumento transferenciai centrado em si próprio, que fazem desaparecer os
sintomas como num passe de mágica. Coloca-se, assim, uma questão: como
se estrutura a subje-í tividade do psicanalista para manejar este complexo
campo de demandas? A conclusão é de que ele deve viver uma experiência
analítica, para descobrit em sua própria subjetividade o objeto e o campo
psicanalíticos.

A emergência, como temática, da necessidade da análise do psicanalista vai


de par com o surgimento de outra questão, a da contratransferência, o que
noí indica que estamos num mesmo campo conceituai. Isto é, a teoria da
trans-ferência implica a da contratransferência e vice-versa. Não são
processos dfl naturezas distintas, e ambos os instrumentos analíticos se
constroem tendo' como pano de fundo, como negativo, a demarcação com a
sugestão, isto é. com a manipulação da transferência em análise.

Para sublinhar como Freud avançou nessa direção, comparemos três


momentos bastante próximos da constituição do pensamento psicanalítico,
todos contemporâneos dessa formulação crítica sobre transferência e
sugestão. Em 1905, a figura do analista já não se enquadrava mais, para
Freud, no que fora esboçado nos Estudos sobre a histeria. O livre pensador
racional, de “caráter íntegro”, que deveria servir de modelo ético para o
paciente que lutava contra as resistências,66 passa a ser um analista capaz de
lidar com a sexualidade em “seu próprio psiquismo”, para que não resulte
uma mistura de “licenciosidade e pudicícia”, tão comum entre as pessoas.67
Enfim, para enfrentar a resistência dos analisandos — e o fundamental da
análise é a sua superação — é preciso que a resistência do analista face à
sexualidade também seja superada.

É preciso ir além da moralidade, que também é objeto do processo


analítico. Em si mesma, ela é um elemento insuficiente na subjetividade do
psicanalista para poder receber e sustentar as forças que atuam na cena
analítica. Em 1910, o tema da contratransferência é formulado pela primeira
vez, indicando as a-ções que o paciente exerce sobre o inconsciente do
analista. Como estes efeitos fazem parte do campo transferenciai, é
necessário que o analista os domine:

“Outras inovações de ordem técnica interessam à pessoa do médico. Nossa


atenção se dirigiu para a ‘contratransferência’ que se estabelece no médico
em decorrência da influência que exerce o paciente sobre os seus
sentimentos inconscientes; nós estamos quase inclinados a exigir que ele
reconheça e domine em si mesmo esta ‘contratransferência’.”6*

A contrapartida é a demanda de análise para o psicanalista. Para dominar


suas próprias pulsões, condição fundamental para receber a transferência
dos analisandos e manejá-la intemamente, não lhe basta a razão, mas um
domínio de outra ordem sobre o seu funcionamento mental:

“Agora que um maior número de pessoas pratica a psicanálise e discute


entre si suas experiências, nós assinalamos que nenhum analista pode
conduzir bem seus tratamentos, a não ser na medida em que seus próprios
complexos e suas resistências interiores lhes permitam; e,
consequentemente, nós exigimos que ele comece por se submeter a uma
análise e que ele não cesse jamais, mesmo quando aplica tratamentos a
outros, de aprofundá-la. Aquele que não consegue praticar semelhante auto-
análise fará bem em renunciar, sem hesitação, a tratar analitica-mente os
enfermos.”69

Agora, a linguagem freudiana já é de exigência: o psicanalista tem que


fazer análise para conseguir realizar sua função analítica. Além disso, em
relação ao momento anterior, o tema é considerado com mais largueza t
definido com mais precisão em relação ao objeto da psicanálise e aos
obstá< culos colocados para a sua prática.
Em 1912, Freud é ainda mais enfático nessa direção. A escuta analítica «
transforma numa démarche mais especializada ainda para a apreensão do
qu4 ocorre na subjetividade do analisando. Da mesma forma que se exige
dfl paciente submissão à regra psicanalítica fundamental das associações
livres do analista se exige, como contrapartida para a realização deste
trabalho, l regra da atenção flutuante. O analista deve poder circular
livremente em set próprio inconsciente, sem opor resistências ao que o
analisando lhe provoca

“Para que o médico seja capaz de se servir assim do seu próprio in- .
consciente como de um instrumento, é necessário que se submeta, numa
larga medida, a uma certa condição psicológica. Ele não deve tolerar nele
mesmo nenhuma resistência susceptível de impedir as percepções de seu
inconsciente de chegar à sua consciência, senão ele introduziría na análise
uma nova espécie de seleção e de deformação, bem mais nefasta que aquela
provocada por um esforço de sua atenção consciente. Não basta, para isto,
que o médico seja mais ou menos normal. Ele deve ser submetido a uma
purificação psicanalítica, ter tomado consciência dos seus próprios
complexos que arriscariam perturbar sua compreensão dos propósitos do
paciente. Está fora de dúvida que estes defeitos bastam para desqualificar
um analista; no médico, todo recalcamento não liquidado constitui o que
Stekel qualificou justamente de ‘ponto cego’ nas suas faculdades de
percepção analítica ”70

O tom deste texto é ainda mais incisivo e exigente, pois se postula uma|
prescrição que não admite exceção. Não basta ser mais ou menos normal, w
necessário uma análise propriamente dita para que o psicanalista possa lidas
com suas pulsões e receber na sua subjetividade a transferência dos
pacientes!

Sublinhemos as complexas implicações deste fragmento, cujo alcance nãc


se limita ao enunciado de umà simples regra para a prática analítica. Cop
efeito, se os critérios da razão, da moral e da normalidade são simultânea
mente esvaziados, e se o analista fica submetido a uma regra análoga à d<
analisando, então o universo da representação coerente completou o se!
processo de esboroamento. Estamos inteiramente lançados no campo di
invisibilidade, que supera as duas figuras da relação. Ninguém detém uni
poder onipotente sobre o campo do inconsciente, que submete as figuras d<
analista e do analisando aos seus mais delicados efeitos; por isso, para ex
perimentar e dominar a transferência é preciso ser capaz de mãnejar a coa
tratransferência, coisa que, em princípio, não está mais assegurada ao
analista que aos analisandos. Acabou-se, assim, definitivamente, o universo
da segurança e da garantia absolutas que a representação coerente fornecia,
afirmando que aquele que detivesse o seu código também deteria o poder
divino. O pensamento da Idade Clássica71 está aí mesmo, comprovando esta
assertiva. O campo do desejo, do inconsciente, do incontrolável, retirou as
bases deste universo geométrico: agora, ninguém detém um poder absoluto
sobre este campo da invisibilidade.

Não resta dúvida de que grande parte da psicanálise pós-freudiana não se


adequa a estes comentários. Paga-se, por isso, o alto preço de abrir mão da
descoberta freudiana fundamental, que é o campo do desejo — o prazer, a
morte, a dor —, reinstalando até o uso da sugestão, que Freud tentava
dominar. De forma surpreendente, se restabeleceu um novo império da
representação coerente, todo estruturado numa linguagem psicanalítica —
tecnológica, para ser adequada aos novos tempos — em que o analista
detém soberanamente o seu código, como o Deus da Idade Clássica detinha
o poder absoluto e a verdade. Mas isso já é outra história. Se este destino se
realizou com uma parcela dos ditos herdeiros de Freud, isso não retira
absolutamente a veracidade e a importância da sua descoberta, até porque é
possível realizar uma psicanálise coerente com base nos pressupostos desta
descoberta, como o faz outra parcela dos psicanalistas.

Retomando Freud, quando o campo do desejo é postulado com esse grau de


complexidade e o analista está submetido ao mesmo poder que os
analisados, para ser psicanalista não basta que o sujeito empreenda a análise
dos seus próprios sonhos, num acesso solitário e secreto ao seu
inconsciente. A revelação deste passa pela presença do Outro, por uma
relação transferenciai, espaço por onde o inconsciente se desdobra em todas
as suas vicissitudes. Aqui, a questão se fecha em toda a sua radicalidade.72

Dessa forma, a teoria da transferência necessariamente se articula com a da


contratransferência, não havendo entre elas diferença de essência. A
elaboração de ambas se realiza através da questão da sugestão, como o seu
negativo, visando a impedir a manipulação da transferência em análise,
colocando o analista num lugar em que possa ter suficiente disposição
psíquica para receber e ser submetido ao poder da transferência.

Despojado de qualquer segurança soberana no espaço psicanalítico,


submetido aos mesmos poderes que os analisandos, sem contar com
nenhum código racional de interpretações que lhe proteja, a figura do
analista está lançada nas coordenadas básicas da experiência da loucura.
Assim, a ifher-subjetividade radical, possibilitada pela posição atribuída à
transferência no

1 -i espaço analítico, é o correlato da experiência da loucura no processo


psicanalítico. Com este descentramento radical, enunciado pela relação
intersubjetiva, já se anunciam as transformações teóricas que serão
formalizadas com a teoria do narcisismo, de maneira a descentrar o sujeito,
definitivamente, da plano do ego. Já se delineiam aqui os contornos da
problemática central da segunda tópica, de forma que, como veremos, o
contexto que acabamos dq tematizar funciona como a condição de
possibilidade das transformações posteriores.
't

A interpretação aqui e agora


Em 1912, Freud finaliza sua teoria da transferência, definindo o lugar dai
várias formas que esse fenômeno pode assumir no processo analítico. Se, nd
caso Dora, a transferência fora formulada como uma característica da
estrutura neurótica — mas já Freud sempre foi muito cauteloso ao
considerar a questão da transferência^ procurando estudá-la no quadro do
processo analítico, apesar de indicar generalidade de suas características.
Essa atitude difere da de alguns de sem discípulos, que logo teorizaram
sobre a transferência num plano de maioi amplitude. Mais adiante, ele
consolida a transferência como uma virtualidade da estrutura subjetiva e a
retoma com mais pertinência no campo do processa analítico.

Há uma mudança de tom em relação ao momento teórico marcado pelq


“caso Dora”. Agora, a capacidade de transferir é uma disposição da
estrutun libidinal do sujeito, idéia lançada por Freud em 1904 na sua
conferência sobn ’ ■ a psicoterapia, e que Abraham desenvolveu em 1908,
quando procurou estai i belecer um quadro amplo da transferência para uma
grande variedade d< objetos e situações.73 Na mesma direção, Ferenczi
relaciona a transferência utilização de energia livre do aparelho mental,
energia essa que, na histeriai não se ligava pela conversão e que, com isso,
procura introjetar objetos dc amor. O intercâmbio introjetar-projetar aparece
como uma forma de manuseid dos objetos internos, que seriam regulados
pela transferência.74 É nesse planí geral, se bem que numa direção diferente
da de seus discípulos, que Freud vafl inserir sua disposição para a
transferência: "Deve ser compreendido que todo indivíduo, pela ação
concomitante de sua predisposição inata e pela influência exercida sobre si
durante sua ] infância, possui uma maneira de ser pessoal, determinada, de
viver sua vida erótica; isto é, a sua maneira de amar está submetida a certas
condições, ele satisfaz certas pulsões e ele se coloca certos fins. Obtém-se
assim uma espécie de estereótipo (algumas vezes, vários) que, no curso da
existência, se repete várias vezes, se reproduz quando é permitido pelas
circunstâncias exteriores e a natureza dos objetos amados acessíveis e pode,
numa certa medida, ser modificado por impressões ulteriores.”75

Apenas uma parcela dos constituintes dessa disposição libidinal se


desenvolve plenamente, sendo incorporada à personalidade consciente do
sujeito. Outra parte sofre uma interrupção no desenvolvimento libidinal,
permanecendo clivada do registro da consciência, e ressurge apenas sob a
forma de fantasmas.76 Com uma estrutura libidinal assim constituída, a cada
nova relação que se apresenta o sujeito busca satisfazer sua demanda de
amor, baseada nas suas dimensões consciente e inconsciente.77 A
transferência que se desenvolve no contexto analítico é um caso particular
desta exigência amorosa que se realiza para o sujeito em todas as suas
relações:

“E, assim, perfeitamente normal e inteligível que o investimento libidinal.


em estado de expectativa e pronto, como ocorre naqueles que só são
imperfeitamente satisfeitos, deva se dirigir também para a pessoa do
médico. Assim, de acordo com nossas antigas hipóteses, este investimento
se liga a protótipos conforme um dos clichês já presentes no sujeito; ou,
ainda, o paciente integra o médico numa das ‘séries psíquicas’ que o
paciente já estabeleceu.””

Quanto maior a demanda amorosa do sujeito, maior sua facilidade para


transferir. Mas a transferência não é uma característica da relação analítica,
isto é, um artefato produzido pelo processo analítico, como o demonstra a
disposição para transferir, sustentada na estrutura libidinal do sujeito.79

A transferência apresenta dupla face, funcionando como poderoso


instrumento de cura e como forma destacada de resistência. Quanto ao
primeiro aspecto, Freud já a tinha diferenciado da sugestão, aliás fundada,
ela mesma, na transferência. A utilização desta como um poderoso meio
curativo é inegável. Ela e a interpretação — se bem que situados em níveis
diversos — são os dois instrumentos com que conta o processo
psicanalítico, conforme Freud assinala em 1910.80

Nesse mesmo período, Freud procura circunscrever uma economia para


fazer com que a interpretação tenha eficácia analítica, isto é, consiga
superar as resistências e permitir a emergência do recalcado. Ele critica o
analista “selvagem” exatamente por interpretar antes do tempo, antes de
fazer um trabalho sobre as resistências, sem considerar devidamente o
impacto da transferência sobre si.” O uso da interpretação como
instrumento pressupõe uma forte ligação transferenciai com o analista, que
precisa encontrar o es* paço necessário para penetrar na estrutura do
sujeito. No mesmo sentido se realiza o comentário, dirigido aos jovens
analistas, sobre o momento ade* quado para formular a primeira
interpretação: esta deveria supor sempre urrui forte e segura relação
transferenciai do analisando com o analista.12

Para interpretar essa dupla face da transferência — em particular a sul


dimensão como resistência, registrada por Freud há muito tempo — é
precist considerar, teórica e clinicamente, as diferentes espécies de
transferência» Não existiría a transferência, mas uma transferência
“positiva”, constituída d< “sentimentos amorosos”, e outra “negativa",
constituída de “sentimentos hos-tis”. Só com esta discriminação seria
possível entender os vários aspectos dl transferência e suas diferentes
funções no campo analítico.*3
O campo da transferência positiva é mais matizado, constituído de dife*
rentes formas de investimento libidinal que cabe discriminar, pois estas for-;
mas influenciam de diferentes maneiras o processo analítico. Esse campo sa
constitui de “sentimentos de amor”, capazes de se tornar conscientes, e de
outros, com fundamento erótico, que permanecem inconscientes.*4

Com essa discriminação se resolvería a questão dos diferentes efeitos dl


transferência. A transferência “positiva” não muito intensa — isto é, nãc
erótica — permitiría estabelecer, dar continuidade e conduzir o processq
analítico até sua resolução, enquanto a “negativa” e a que se realiza por
meio de intenso erotismo seriam responsáveis pela resistência:

“A solução do enigma é que a transferência para o médico é adequada à


resistência na medida em que é uma transferência negativa, ou então uma
transferência positiva constituída de elementos eróticos recai- ' cados.”’5

Analisar a transferência implica precisamente tentar desligar, da figura dc


analista, esses dois aspectos que constituem a transferência “negativa”, com
( objetivo de superar a resistência, continuar o trabalho analítico e
desvendar < sentido desse investimento no aqui e agora da relação
intersubjetiva. A outri dimensão da transferência positiva é a que permite o
processo analítico.86 Par Freud, se resolvem neste ponto as relações entre a
psicanálise e a sugestão, entre a transferência e a sugestionabilidade. A
sugestão é o efeito produzido sobre o outro, por meio da transferência que
este mesmo sujeito produz. A psicanálise se diferencia dos métodos
sugestivos exatamente porque maneja esta sugestão com a finalidade de
superar as resistências e cdhduzir a uma transformação eficaz e durável da
estrutura psíquica.87 Nesse contexto, toma-se claro que os pacientes que
realizam uma transferência essencialmente negativa, como os paranóicos,
são incapazes de receber ajuda terapêutica.88

Nesse quadro se completa o mecanismo do processo psicanalítico, que


Freud esboçara anteriormente. Agora, ele reúne todas as peças numa mesma
articulação dinâmica. A motivação básica para a análise é o sofrimento do
paciente, que o leva ao desejo de cura, para restabelecer a homeostasia do
prazer. Vários fatores, contudo, conduzem ao seu enfraquecimento. No
curso da análise, aparece como resistência, sobretudo, “o benefício
secundário” da enfermidade. Todavia, esta motivação deve se manter, pois
qualquer enfraquecimento seu leva ao desinvestimento na análise. Porém,
paradoxalmente, este sofrimento não leva por si só à resolução do processo
analítico, por duas razões: o desconhecimento do analisando sobre os
caminhos a seguir e a insuficiência libidinal do sujeito, que é uma força
básica para se opor à resistência. O processo analítico oferece
possibilidades para superar estes dois obstáculos: o primeiro pela
interpretação, e o segundo devolvendo ao analisando as energias que ele
transfere para o analista, o que torna possível superar a força da
resistência.8’

Retomemos o fio da resistência. A articulação entre o amor e a raiva, que se


manifesta na dupla face da transferência — a troca rápida de uma pela outra
—, conduz Freud a um novo caminho, também ligado à estrutura libidinal
do sujeito, e a uma nova compreensão da transferência e da resistência.
Encontramos lado a lado os investimentos amoroso e hostil dirigidos à
mesma . figura, o analista, fenômeno denominado ambivalência afetiva por
Bleuler e, antes dele, bipolaridade por Steke). Esta ambivalência é que
permitiría compreender a possibilidade que tem o analisando de colocar a
transferência a serviço da resistência.’0 Freud descreve a resistência de
transferência de forma idêntica à descrição realizada em A psicoterapia da
histeria, delimitando da mesma forma o ponto preciso em que ela emerge
no processo analítico. Mas é diferente sua interpretação das forças em
pauta, da luta interna e dos limites do campo psíquico em questão. A
transferência é resistência na medida em que é um sucedâneo, um substituto
da associação, exatamente porque satisfaz a resistência.” Se o analista é
ambivalentemente investido, a passagem de uma face da transferência para
outra fica perfeitamente explicada.

O fenômeno em questão é mais extenso agora do que era no tempo de A


psicoterapia da histeria. A transferência se coloca no quadro da resistência,
anterior a qualquer outro elemento subjetivo: ela vai ser a forma básica pm
que se realiza o processo defensivo, antes de qualquer outro. Inovação
essencial, pois aponta para uma dimensão da transferência como um
instrumento inserido num espaço tático. Diante do embate das forças
internas, entre a pulsão e o recalque, o elemento básico que se materializa
na resistência de transferência não tem necessariamente uma especial
importância “patogênica”, mas funciona como elemento de um dispositivo
tático que se opõe à, continuidade da análise:

“Entretanto, não é preciso concluir por uma importância patogênica


> particularmente grande do elemento escolhido em vista da resistência de ]
transferência. Quando, no curso de uma batalha, os combatentes dispu- j
tam encarniçadamente a posse cie qualquer pequeno campanário ou de ,
alguma fazenda, não deduzimos disso que esta igreja seja um santuário j
nacional, nem que esta fazenda abrigue os tesouros do exército. O valor dos
lugares pode ser apenas tático e só existir para este único combate.”92 j

O trabalho psicanalítico visa exatamente superar a resistência de


transferência, na qual se concentra momentaneamente o essencial das forças
defensivas que se opõem à continuidade do processo da análise. Eliminado
este obstáculo, o “complexo” que ele ocultava pode emergir com menos
dificul-í dade. Entretanto, o procedimento do analisando se repete
incansavelmente no! processo analítico, e o notável é exatamente esta
repetição,93 em função da: qual o quadro do processo analítico se
transforma. Atingir a significação que se apaga nesses deslocamentos
transferenciais continua a ser a finalidade da! análise. Agora, no entanto,
todos os conflitos são jogados no campo da trans-ferência:

“Estas circunstâncias tendem para uma situação na qual todos os conflitos


são levados para o terreno da transferência.”94

Estamos inseridos num campo analítico completamente transformado,'


Antes, a transferência era considerada como um acidente; depois, mesmo
reconhecida como algo abrangente, considerava-se que ela visava
diretamente ao recalcado, sem muitos rodeios; agora, todo o espaço da cura
é invadido pela transferência. Essa repetição incansável, feita pelo paciente,
leva o analista a ter que manejar a análise basicamente no plano da
transferência, onde se processa o essencial da mesma. E, a cada novo
aprofundamento do processo analítico, a resistência lança mão de processos
cada vez mais regressivos, que, buscam satisfazer as pulsões no plano da
transferência, evitando a restauração! das mesmas no plano simbólico,
como se fossem coisas que fizessem parte unicamente do presente.
O movimento regressivo indicado pelo sujeito na relação psicanalítica é
bastante revelador nos seus efeitos. Se, através do movimento*-regressivo,
q sujeito busca satisfazer as suas pulsões e, com isso, obstaculiza
parcialmente o processo analítico, esta mesma regressão revela, ao mesmo
tempo, as marcas constitutivas do sujeito, isto é, a verdade inscrita em sua
realidade psíquica. A tessitura fundamental da experiência da loucura vai se
revelando em cada um desses movimentos do sujeito no processo analítico.

Além disso, na ânsia de satisfação do sujeito, esses movimentos regressivos


revelam que as pulsões continuam presentes no aparelho mental, apesar de
suas origens históricas pretéritas. A neurose deixa de ser algo ancorado
apenas num passado longínquo e se mostra também fundada em forças
atuais. Assim, se existe um passado histórico, trata-se de um passado-
presente, cujas marcas se apresentam nas menores vicissitudes do
funcionamento mental do analisando. Se o conflito se passa inteiramente no
campo transferenciai, fantasmas e cenas do passado e do presente podem
ser experimentados com toda a sua força, tornando-se passíveis de um
processo de “liquidação”:

”... nada é mais difícil para o psicanalista que dominar a transferência.

Mas não esqueçamos que são justamente estes fenômenos que nos
fornecem o serviço mais precioso, nos permitindo iluminar, tornando
manifestos e imediatos os impulsos eróticos secretos e esquecidos dos
pacientes. Enfim, recordamos que nada pode ser morto in absentia ou in
effigie.'**

Essa repetição incansável do mesmo procedimento, que se relaciona com a


ambivalência afetiva inserida na estrutura libidinal do sujeito e que leva
todos os conflitos a serem colocados no plano da transferência, nos leva a
penetrar num novo espaço de teorização. Ele acaba por desatar transferência
e repetição, conduzindo-as, como um par de opostos, a uma nova teoria
pulsional.

Para além da interpretação


Essa repetição incansável da resistência de transferência, que revela
ambivalência de sentimentos relativos ao mesmo objeto de investimento
libidinal, permite que Freud penetre num novo limiar de interpretação do
fenômeno transferenciai. Atingiremos aqui o ponto crítico, que o levará ao
final de sua primeira tópica e será um dos aspectos que o conduzirão a um
novo dualismo pulsional, em que os eixos deixam de ser as pulsões
libidinais e as de autoconservação e passam a ser as pulsões de vida e de
morte.

Esta nova oposição pulsional já se prenuncia em 1913, na elaboração flue o


pensamento freudiano realiza da teoria da ambivalência, particularmente no
campo da neurose obsessiva.96 Entretanto, do ponto de vista teórico, essa
transformação se justifica pela formulação da teoria do narcisismo, na qual
também o ego passa a ser objeto de investimento libidinal.97 Em 1914,
Freud se aproximou do monismo pulsional — reduzindo a fonte do conflito
a duas formas de libido, de acordo com o objeto de investimento, como
libido do ego e libido objetai98 — mas se autocriticou posteriormente por
quase resvalar para a concepção de Jung.99 Com a concepção da década de
1920, a estrutura do conflito psíquico se ancora novamente numa dupla
fonte pulsional, entre a, pulsão de vida e a pulsão de morte. '
í

Do ponto de vista clínico, o que estimula a investigação freudiana é a


inevitabilidade da repetição, que alimenta uma resistência feroz e torna
extre- < mamente complicada a resolução do processo analítico. Análises
prolongadas, ’ que não se resolviam, assim como a oposição ao processo
analítico, sustentada num “sentimento inconsciente” de culpa, levam Freud
a formular a existência de uma compulsão á repetição, que vai se tornar o
indício privilegiado, no plano clínico, do trabalho silencioso da pulsão de
morte.

A teorização que se constitui progressivamente a partir de meados da


década de 1910 já é o final do percurso. Nesse momento formula-se a noção
de. compulsão à repetição, que rompe com uma teoria unicamente libidinal
da transferência. Esta vai continuar a existir como uma manifestação da
pulsão-de vida, considerada como aquela que permite o trabalho analítico,
enquanto a compulsão à repetição se torna o receptáculo das transferências
“negativa” e erógena, que constituem os sustentáculos da resistência.
Depois desse tra-balho, de 1914, Freud não realiza nenhum novo texto
sobre a teoria analítica) da cura, como se não tivesse mais o que dizer
diretamente sobre isso. Apenas insiste na nova teoria pulsional, que funda a
nova percepção clínica.

Analisemos inicialmente esta constatação clínica. Existiam analisandos que


funcionavam no processo analítico como na antiga cura catártica. Neles,
predominava o trabalho no plano da representação psíquica, entrecortado
por episódios transferenciais, que se opunham momentaneamente ao
trabalho da análise. O que existia de fundamental na análise podia até ser
dramaticamente experimentado nesses momentos, mas o processo analítico
não era inteiramente englobado pela experiência transferenciai. Em outra
parcela de analisandos a coisa se passava de forma diversa. Com efeito, ao
invés de lembrar, as suas experiências internas, eles as traduziam em atos
— atos predominan-; temente transferenciais. Com isso, a cena analítica era
dominada por uma| repetição permanente:

”... se, para estabelecer uma diferenciação, nós examinamos este segundo
tipo, podemos dizer que o paciente não tem nenhuma lembrança do que ele
esqueceu e recalcou, mas atua. Não é sob forma de fembrança que o fato
esquecido reaparece, mas sob a forma de ação; ele repete, evidentemente,
este ato, sem saber que se trata de uma repetição.”100

Cabe perguntar sobre a relação entre, de um lado, essa ausência relativa, ou


pobreza, que se instala de imediato na ordenação discursiva do analisando,
e, de outro, a transferência e a resistência no processo analítico. A repetição
é o equivalente da lembrança: quanto mais o paciente repete, menos ele
pode recordar. Esta compulsão ocupa o lugar das formas anteriores de
transferência, que serviam à resistência. Porém, considerando-se outro nível
da questão, a transferência que permite continuar o trabalho de análise
também é uma forma de repetição, já que através dela se realiza a
vinculação do analisando com as figuras conscientemente amadas. Mas não
é essa forma de repetição que coloca problemas, já que ela permite que o
processo analítico siga seu curso. Diferença e identidade importantes, pois
vamos destacar como isso tem um efeito fundamental no manejo do
processo pela figura do analista, indicando onde ele pode se apoiar para
contrapor a recordação em palavras à recordação em atos.

Ressaltemos inicialmente não apenas a identidade, como também a


universalidade do fenômeno repetitivo. Considerando esta temática, Freud
se preocupa também em provar a sua existência de fato, isto é, em assegurar
que não se trata de um artefato do espaço analítico, criado pelas condições
especiais do seu funcionamento. Tais repetições também se passam fora da
análise, se bem que apenas neste espaço especial elas se revelem em toda a
sua extensão, por causa das condições especiais de trabalho impostas ao
aparelho psíquico:

“Nós observamos logo que a transferência não é senão um fragmento de


repetição e que a repetição é a transferência do passado esquecido, não
somente para o médico mas também para todos os outros aspectos da
situação presente. É necessário pois esperar que o paciente ceda ao au-
tomatismo de repetição, que substituiu agora a compulsão a recordar, e isto
não somente na sua atitude pessoal com o médico, mas igualmente em
todas as suas outras ocupações e relações atuais — se, por exemplo, lhe
acontece no curso do tratamento de se apaixonar, ou de se encarregar de
uma tarefa qualquer na qual empreende alguma coisa. Ainda aí, o papel da
resistência é facilmente reconhecível. Quanto maior for a resistência, mais a
colocação em atos (a repetição) se substituirá à lembrança.”'01

Após considerarmos a identidade e a universalidade do fenômeno,


sublinhemos agora a diferença, assinalando como, para Freud, o
automatismà de repetição é o correspondente das antigas formas de
transferência que levavam à resistência. Através desta distinção e oposição
é que se tornará possível o seu manejo no processo analítico.
Esclarecimento fundamental, pois a palavra transferência merece ser
interpretada, para ser bem-situada no plano do texto, que sem isso
permanece confuso:

“Se o paciente começa o tratamento sob os auspícios de uma transferên- ’


cia positiva fraca e moderada, a exumação das lembranças é, no começo,
tão fácil quanto na hipnose, e os sintomas mórbidos também se apaziguam
por um tempo. Todavia se, em seguida, a transferência se toma hostil ou
excessiva e exige, por isso mesmo, o recalcamento, a lembrança dá logo
lugar à colocação em atos. A partir desse momento, as resistências
determinam a ordem do material que é repetido. O paciente tira do arsenal
do passado as armas com as quais ele vai se defender contra a continuação
da análise, armas que nós deveremos retirar dele uma a uma.”102

Para Freud, apenas o recalcado é repetido. Assinala-se assim que a oposição


atual é herdeira da anterior, que também apresentava dois efeitos
transferenciais diversos. Por isso, Freud reafirma que não está formulando
nada de novo, mas simplesmente colocando o já conhecido sob uma forma
mais coerente.,w É claro que não há nada de empiricamente novo, nem na
descrição, nem no aparecimento clínico do fenômeno. Mas já se estabelece
uma.discri-minação conceituai, mediante a nova denominação que conduz o
pensamento freudiano a uma nova teoria pulsional, surgida como efeito
desta questão, à revelia da expectativa inicial do próprio Freud.

De qualquer forma, a experiência transferenciai se torna cada vez mais


pregnante no campo analítico, exatamente pelo poder ad" :rido pela
compulsão à repetição. Desenvolve-se agora plenamente o que tinha sido
formulado em A dinâmica da transferência. Com efeito, a estrutura da
neurose não se desfaz com o início da análise. Talvez cessem alguns
sintomas visíveis, pois o fundamento da neurose se explicita exatamente
nessas repetições em atos, que se opõem à rememoração. Consequência
necessária dessa constatação: a neurose não é apenas uma estrutura
ancorada no passado, mas está fortemente inserida no presente e se explicita
nas experiências de repetição com o analista:
i

“Nós constatamos claramente que o estado mórbido do paciente não


poderia cessar com o começo da análise e que devemos tratar sua
enfermidade não como um acontecimento do passado, mas como uma força
atuante atualmente. Fragmento por fragmento, este estado mórbido é trazido
para o campo de ação do tratamento e, enquanto o enfermo se ressente de
alguma coisa real e atual, nossa tarefa terapêutica consiste principalmente
em referir ao passado o que nós vemos.”104

A finalidade do analista é reconduzir insistentemente, ao campo psíquico


do analisando, a compulsão à repetição que se manifesta no espaço
analítico, para desvendar sua genealogia e apreender seu sentido. Mas, para
manejar este automatismo da repetição, o analista conta somente com a
força moderada da transferência positiva. Assim, se a transferência é um
fragmento de repetição e se esta é a transferência do passado esquecido, não
há dúvida de que há uma oposição estrutural entre os dois tipos de
transferência, sendo que a cena do conflito do sujeito vai ser travada entre a
transferência e a compulsão à repetição:

“A tática que o médico deve adotar em semelhante caso é facilmente


justificável. Sua finalidade é evocar a lembrança à velha maneira — a
reprodução no domínio psíquico —, e ele persegue esta finalidade mesmo
quando se dá conta de que a nova técnica não permite atingi-la. A fim de
manter no terreno psíquico as pulsões que o paciente gostaria de
transformar em atos, ele empreende contra este último uma luta perpétua;
quando chega, graças ao trabalho de rememoração, a liquidar estas pulsões,
ele considera este resultado como um triunfo do tratamento. Quando a
transferência conduz a uma ligação de alguma maneira utilizável, o
tratamento está em condição de impedir todos os atos repetitivos mais
importantes do enfermo e de utilizar in status nascendi as intenções deste
como materiais para o trabalho terapêutico.

Evidentemente, existem situações em que o analista não consegue manter


no campo analítico este automatismo de repetição, que então extravaza para
o exterior, onde pode se configurar com mais exuberância, por causa das
condições especiais a que o sujeito está submetido. Apesar disso, se destaca
o princípio teórico que vínhamos sublinhando, pois é no plano da
transferência que a compulsão à repetição pode encontrar o caminho para a
rememoração e a simbolização do sujeito. Portanto, a oposição entre
transferência e compulsão à repetição se coloca em toda a sua radicalidade,
e o segredo para o sucesso do processo analítico está na habilidade do
analista, o que, antes de mais nada, supõe uma capacidade subjetiva para
manejar a transferência:

“No manejo da transferência se encontra o principal meio de sustar a


compulsão à repetição e de transformá-la num motivo para se recordar. Nós
tornamos esta compulsão anódina, até mesmo útil, limitando os seus
direitos, não a deixando subsistir senão num domínio circunscrito.
Nós lhe permitimos o acesso à transferência, como um pátio onde lhe será
permitido manifestar-se numa liberdade quase total e onde nós a
interrogamos para nos revelar tudo o que se dissimula de patógeno no
psiquismo do paciente.”106

Detenhamo-nos um momento nesta afirmação de Freud, discorrendo sobre


o lugar do automatismo de repetição: “Nós lhe permitimos o acesso à trans-
i ferência, esta...” O que esta passagem sugere? Que a interpretação
analítica) não tem nenhum poder transformador sobre a compulsão à
repetição? 1

Entre os limites infranqueáveis pelo processo analítico, Freud formulai


posteriormente o conceito de pulsão de morte.107 Ora, a idéia contida na ob-
1 servação acima referida mantém o lugar da compulsão à repetição no
processo I analítico, efeito de um “trabalho” da morte no interior do
aparelho psíquico.! Em Para além do princípio do prazer, lembra Anzieu,
Freud nos dá exemplos; de sonhos e rituais pós-traumáticos que comportam
uma leitura para além dai simples repetição. Esses sonhos e rituais se
revelariam, também, como tentativas de restituição.™ A leitura de
trabalhos freudianos sobre mitos gregos) e as contribuições de Melaine
Klein sobre a reparação fornecem a Anzieu uma ; complementação para que
elabore uma concepção do poder da interpretação, no quadro da última
dualidade pulsional, no interior de uma perspectiva restituidora.

A compreensão que obtivemos do texto de Anzieu foi a de que essa


restituição seria o equivalente do restabelecimento de um equilíbrio próprio
à situação anterior ao traumatismo psíquico, através de um controle, ou ab-
reação, de um excesso de tensão. Assim, o mecanismo repetitivo seria
utilizado terapeuticamente em benefício do ego. As observações desse autor
nos ajudaram a compreender o lugar da compulsão à repetição na cura
analítica^ sem que, no entanto, isso elimine a possibilidade de uma ação
redutora de seus| “efeitos mortíferos”109 no interior da situação analítica, na
convivência entre? duas formas de transferência, que Freud parece sugerir
no texto de 1914.110 |

Com essa formulação freudiana o processo analítico se resolve no campo^


da transferência. Através da compulsão à repetição, que se opõe ao eixo do,
sentido, cabe ao analista realizar insistentemente a sua articulação no campo
transferenciai. Com isso, todos os sintomas do analisando adquirem uma)
significação transferenciai, e neste espaço privilegiado passa a ser jogado of
destino da neurose.

Esse manejo particular que o analista faz da compulsão à repetição, colo-'


cando-a no eixo da transferência e procurando então sua resolução, é o que
se; denomina neurose de transferência. Assim, se a transferência é um
fenômenoj universal, existente em todos os espaços da subjetividade como
expressão da> estrutura pulsional do sujeito, a neurose de transferência é
uma figura típica do espaço analítico, metodicamente constituída para
permitir a simbolização da compulsão à repetição. A neurose de
transferência se situaria num domínio intermediário entre a estrutura
neurótica e a vida real e, por isso mesmo, possibilitaria a passagem de um
lugar para o outro. Figura artificial certamente, pelo caminho metodológico
em que foi construída; mas artificial de maneira relativa, pois as condições
do espaço analítico apenas permitiram que certas virtualidades existentes na
estrutura do sujeito se explicitassem com toda força:

“Mesmo no caso em que o paciente se limita simplesmente a respeitar as


condições necessárias para a análise, nós conseguimos seguramente conferir
a todos os sintomas mórbidos uma nova significação de transferência e
substituir sua neurose ordinária por uma neurose de transfe--rência, cujo
trabalho terapêutico vai curá-la. A transferência cria um domínio
intermediário entre a enfermidade e a vida real, através do qual se efetua a
passagem de uma à outra. O novo estado instalado toma todos os aspectos
de uma enfermidade, mas representa uma enfermidade artificial em toda a
parte acessível às nossas intervenções. Ao mesmo tempo, ela é uma fatia da
vida real que condições particularmente favoráveis tornam possível e que
tem um caráter provisório.”’"

Enfim, entre a transferência e a compulsão à repetição se centra agora o


espaço dramático do processo psicanalítico, no qual a primeira procura
articular a segunda na neurose de transferência, forma de sua abertura
possível ao campo da simbolização. Pela consideração destas duas forças,
que agora delimitam o campo dramático da psicanálise, o pensamento
freudiano inscreve o novo dualismo pulsional. O conflito psíquico se
estabelece circunscrito entre as pulsões de vida e as pulsões de morte.

A experiência da loucura na intersubjetividade


Estão estabelecidas as coordenadas fundamentais do processo psicanalítico,
que se realizará fundamentalmente no campo da transferência. A compulsão
à repetição, que é uma forma de transferência, vai ser reduzida por meio de
outra forma de transferência. Se a análise pretende abrir espaço para a
emergência possível da simbolização, ela se realiza cada vez mais através
da análise da resistência, colocando o automatismo de repetição no campo
da transferência, onde a significação encontra a condição de possibilidade
para Se articular.

Assim, o campo analítico está circunscrito entre o sentido e a força


pulsional, seja esta a compulsão à repetição, seja a transferência em sentido;
restrito. O processo analítico se realiza nesse campo dramático, no qual ne-l
nhum dos termos do embate pode ser impunemente anulado ou ter seu
valorl diminuído na cena do conflito. A finalidade da análise é fazer
emergir uma simbolização que, para se articular, necessita seguir o caminho
do automatismo de repetição. Esta condição de possibilidade do processo de
análise será< contrabalançada pela transferência, para que a significação
possa constituir-] se. A figura do psicanalista não tem alternativa. Deve se
submeter à transfe-l rência e à compulsão à repetição, para que o trabalho
analítico possa pretenderJ reconstituir a significação dos sintomas e de toda
a estrutura neurótica.

Assinalamos o longo trajeto percorrido pelo pensamento freudiano, desde]


A psicoterapia da histeria, para que se constituísse esta necessidade de sej
submeter à transferência e à repetição, e acompanhamos as dificuldades en-
1 contradas para cunhar este conceito e este instrumento metodológico,
que,' como todos os outros em psicanálise, passam necessariamente pela
subjeti-| vidade do analista. Na concepção frpudiana, a finalidade do
processo analíticot’ é a articulação do sentido da história do sujeito. Mas
não devemos perder de vista, em momento algum, que a experiência
intersubjetiva de se submeter transferência e à compulsão de repetição é o
outro lado desta mesma pro-l blemática e é o que a torna possível. É o
espaço psicanalítico, assim configu-l rado, que denominamos dramático.
Nele, a figura do analista não pode se fixar! num dos pólos do conflito,
procurando abrandar ou camuflar o embate, semi arriscar com isso toda a
estrutura do espaço analítico.

Num escrito sugestivo para esta discussão, em que tematiza a questão do|
amor de transferência,"2 Freud destaca exatamente a necessidade de radi-í
calização deste conflito, deixando assim em aberto o embate entre a força
das pulsões e o sentido, sem o qual se camufla a dramaticidade necessária
da situação analítica. Configurada a situação de amor transferenciai, sua
solução não está nem na suspensão da análise, nem numa lição de moral
revestida de interpretações racionalizadoras, nem tampouco na atuação
amorosa dos parceiros. Com efeito, em todas estas eventualidades o analista
estaria apenas escapulindo da dramaticidade colocada pela situação
psicanalítica, que sé esboça entre o eixo do sentido e a compulsão à
repetição. O trabalho do analista consiste precisamente em se entregar a
essa experiência intersubjetiva, para poder abrir um lugar em que sua
simbolização seja possível.

Trata-se de experiência embaraçosa para o analista, seja pela dificuldade de


dizer não ao fascínio amoroso e à sedução, seja pela hostilidade gerada no
analisando, insatisfeito em sua demanda de amor. Por isso mesmo, a» fugas
e as soluções defensivas se apresentam com tanta facilidade, como que
miraculosas. Para o narcisismo do analista, a dificuldade está justamente em
deixar em aberto o espaço do conflito, entregar-se à experiência da
compulsão à repetição do analisando e abrir o caminho para a possibilidade
de sua simbolização.

O amor de transferência é uma forma de resistência criada pela situação


analítica, uma figura cuja significação específica para a história do sujeito
deve ser desvendada. Mas a tragicidade da situação psicanalítica também
não permite que, como uma forma de defesa para impedir sua própria
entrega à experiência intersubjetiva, o analista diminua o valor desse amor
ou negue sua autenticidade. O amor transferenciai tem todas as
características da paixão. Se existe anormalidade, ela se apresenta como
uma característica da paixão amorosa:
“Portanto, vamos resumir. Nós não temos o direito de contestar ao estado
amoroso, que aparece no curso do tratamento analítico, o caráter de um
amor ‘verdadeiro’. Sua aparência pouco normal se explica suficientemente
se nós pensamos que todo estado amoroso, mesmo fora da situação
analítica, lembra antes os fenômenos psíquicos anormais que os estados
normais...”"3

Qualquer experiência amorosa é constituída pelos mesmos protótipos


infantis presentes no amor de transferência, cujo valor de verdade não pode
ser menosprezado pelo analista, como uma forma de diminuir a força do
adversário. Esse amor tem que existir livremente no espaço intersubjetivo,
para encontrar em algum momento a possibilidade de sua significação.
Também aqui, o analista não tem alternativa: para manter as coordenadas do
espaço analítico, precisa se entregar à experiência transferenciai.
Ensinamento importante, precisamente porque sublinha o lugar conflitivo
onde se insere a figura do analista, que precisa submeter-se intensamente à
experiência intersubjetiva, para que a simbolização possa articular-se no
espaço psíquico.

Satisfazer a pulsão, moralizar com interpretações racionalizadoras o


sentimento amoroso do analisando, interpretar rapidamente esse poderoso
sentimento ou suspender a análise são formas de escapulir do espaço trágico
e diabólico em que a psicanálise coloca as duas figuras da relação. Freud
nos aponta o caminho para não fugirmos desse paradoxo, ao criticar os
primeiros experimentos da técnica ativa de Ferenczi,"4"5"4 e a figura do
analista-pedagogo, de Putnam e da escola suíça.117

É neste contexto que se formula a regra de abstinência,"’ que nada mais é


do que uma forma de impossibilitar, por parte do analista e do analisando,
fcs satisfações pulsionais, para que eles se submetam radicalmente à
experiência intersubjetiva, de modo que a compulsão à repetição encontre a
abertura necessária para a sua simbolização pelo sujeito. Esta concepção
metodológica, lançada em 1915 nas Observações sobre o amor de
transferência, se desenvolve em 1919 em termos canônicos. Nesse
contexto, se Ferenczi é o pólo, mítico que representa o fantasma da
satisfação pulsional, Putnam representa o mito do moralismo pedagógico,
isto é, a tentativa metodológica de o analistaj impor rapidamente um código
simbólico ao analisando para evitar a dolorosa\ experiência da repetição
transferenciai, que seria a única capaz de conduzir à i verdadeira
simbolização.

A concepção freudiana de psicanálise, ao contrário, se mantém nesse


espaço trágico. No final de sua obra, Freud permanece pensando
insistentemente no eixo que sustenta a compulsão à repetição e impede a
análise. Não há mais lugar para se pensar nos fatores curativos da
psicanálise, mas no que obsta-culiza o processo analítico: o trabalho
silencioso da pulsão de morte.

Essa concepção trágica do processo analítico é, de um lado, a contrapartida


necessária, no plano discursivo, da constituição desse espaço aberto, para
que a loucura do analisando possa existir como experiência intersubjetiva;
de outro, representa a posição dramática em que o analista está situado, para
que seja possível realizar esse processo. Com isso, a subjetividade da figura
do analista rica submetida ao impacto do Outro, fica descentrada em relação
ao seu ego para escutar os apelos do Outro, sem contar, portanto, com um
código racional de interpretações e sem dispor de uma técnica codificada
que oriente os seus procedimentos.

Precisamente nesse contexto discursivo, que corresponde ao ápice do


desenvolvimento teórico da concepção freudiana do processo analítico,
Freud representa esse processo como análogo ao jogo de xadrez.1,9 Não é
um acaso. Nesta comparação, a partida de xadrez indica um jogo de difícil
aprendizado, que remete às impossibilidades encontradas por Freud para
realizar um ensino apenas teórico da psicanálise, sem que o analista
iniciante passe necessariamente pela experiência analítica originária.

No xadrez, apenas os lances de abertura e de final são passíveis de


descrição mais ou menos completa. As jogadas intermediárias — que
constituem a partida propriamente dita — não podem ser ensinadas.
Também no processo analítico não há regra absoluta, mas apenas grandes
linhas de desenvolvimento, que admitem uma infinidade de possibilidades.
Essa representação freudiana indica simbolicamente que o processo
analítico não é um lugar controlado por normas minuciosas e rígidas, mas
um espaço aberto a estratégias, que admite uma infinidade de lances num
campo sustentado por algumas coordenadas básicas.
Freud postula que todas as regras se reduzem a apenas uma,120 o que revela
com muita ênfase como a representação do espaço analítico é a de um
campo aberto a estratégias. E, complemento necessário deste postulado, a
técnica pode variar de acordo com a personalidade do analista, que descreve
princípios orientadores compatíveis com a sua maneira de ser e com a sua
experiência na prática analítica.121 Assim, desaparece qualquer ilusão
quanto à existência de um modelo de regras técnicas canônicas.

Na formulação de um discurso técnico flexível e adaptado à maneira de ser


de cada analista, a singularidade deste no processo analítico é enfaticamente
sublinhada, o que nos permite registrar que ninguém pode pretender deter
um código interpretativo absoluto. Estamos, nesse contexto do pensamento
freudiano, muito distantes do modelo inicial de A psicoterapia da histeria,
no qual o analista se oferecia ao paciente como padrão identificatório, se
representava como portador de um código interpretativo inquestionável,
evidentemente sustentado num ego deslibidinizado.

Essa passagem do pensamento freudiano é fundamental, pois nela Freud


sublinha rigorosamente a dimensão singular do analista, para que este possa
existir no processo analítico como intersubjetividade radical. Por isso
mesmo, apesar da demanda de seus discípulos,122 Freud sempre se recusou
a escrever um livro sobre técnica psicanalítica, pois isto implicaria o
congelamento dessa intersubjetividade fundamental, que marca a
originalidade do processo psicanalítico.

Os ditos “escritos técnicos” de Freud se apresentam como comentários


metodológicos sobre o processo analítico, mas neles — posteriormente
interpretados e mesmo sacralizados como um receituário psicanalítico —
não se circunscreve uma codificação técnica da psicanálise. Essa
interpretação sacra-lizadora esclerosou o processo da experiência
intersubjetiva da loucura num ritualismo técnico destituído de qualquer
sentido.

Freud disse a Ferenczi que esses escritos representavam mais um conjunto


de proposições negativas para os jovens analistas — como comentários
metodológicos sobre o processo analítico, destacando as interpretações mais
grosseiras sobre ele — do que proposições positivas para o
encaminhamento deste processo.123 124 Com efeito, tais proposições
negativas apenas desenham as coordenadas metodológicas básicas para a
existência do processo analítico, isto é, para o seu desenvolvimento,
resolução e impossibilidades.

Porém, quando a psicanálise deixou de ser movimento e se transformou em


instituição, esses escritos freudianos se transformaram num discurso técnico
voltado para normalizaras estratégias analíticas no processo intersubjetivo.
A afirmação desse discurso técnico é o correlato da retirada da figura do
analista de uma posição descentrada em relação ao próprio ego, condição de
possibilidade para ser o suporte de um processo essencialmente
intersubjetivo. Com’ isso, se estabelece de maneira dominante a relação
interpessoal no processo^ psicanalítico, silenciando-se o que nele seria
fundamental: a relação singul de sujeito a sujeito.

Nesse mesmo contexto do pensamento freudiano, torna-se ainda maior


exigência de que o analista iniciante realize uma experiência originária dej
análise, pois, pretendendo vir a ser o suporte de um processo intersubjetivo/
ele deve passar por esta experiência através de sua própria análise. Assim,
tendo desmistificado o lugar de um código interpretativo racional no
processO; analítico, Freud constata que, para que alguém possa ser analista,
não bastai conhecer a teoria psicanalítica. Ele observa, desiludido, alguns de
seus discípulos retomarem a posições pré-psicanalíticas quando se
defrontam comí resistências insuperáveis nas próprias análises.125
;

Esses diversos eixos da psicanálise — relação intersubjetiva que deve res-i


peitar as singularidades do analista e do analisando, que não se acompanha
dei> um discurso técnico e de um código racional de interpretações e que
demanda que o próprio analista realize a experiência analítica originária —
são dimen-í sões de uma mesma concepção que não pode ser pensada de
forma desarticu-j lada, até porque foram construídas como materializações
de uma mesma re-/ presentação de psicanálise.

A passagem para a segunda tópica no pensamento freudiano tem múltiplo


significados. Queremos, neste momento, sublinhar um deles, relacionado St.
problemática que estamos considerando. Trata-se do destaque à figura
afetivamente exuberante do id, em que um “excesso” de energia pulsional
tem; que ser simbolizado. A condição de possibilidade para que isso ocorra
é ai experiência transferenciai, marcada fundamentalmente pela compulsão
à re-í petição.

Nesse momento crucial em que o pensamento freudiano muda de tópica


transforma o dualismo pulsional originário, já se delineia com contorno
precisos a problemática do “excesso” de energia pulsional, resistente à ins-
crição no registro do simbolizável, que será tematizado por Freud nos textos
da década de 1920. Evidentemente, isto indica que o trabalho analítico
sustentado no eixo do sentido encontra o seu limite. A supremacia da
metáfora econômica na concepção freudiana sobre as pulsões, reafirmada
incisiva-mente em 1933 nas Novas conferências sobre a psicanálise ,126 e a
tematizaçãcí não mais de um inconsciente sistemático, mas de um id que
não se refere» apenas a um registro de inscrição representativo, definem um
novo lugar para] a figura do analista no processo psicanalítico. Enfim,
quando formbla que eixo fundamental do aparelho psíquico transcende o
registro das inscrições sistemáticas do inconsciente e inclui também, em si,
um “excesso” de energia que não circula num sistema de significados, o
pensamento freudiano se encontra com os limites do deciframento
psicanalítico e se abre para um mais além da interpretação.

Ao longo do percurso em que procuramos delinear os contornos da


constituição do campo transferenciai e definir as diversas concepções que
se formalizaram sobre a interpretação psicanalítica, nós acompanhamos as
transformações do pensamento freudiano, orientadas numa direção bastante
precisa, ou seja, num abandono cada vez mais rigoroso de uma concepção
racional de interpretação e no concomitante lançamento de ambas as figuras
do espaço analítico numa intersubjetividade radical. Com isto, Freud retirou
o analista de um lugar em que este ainda pudesse funcionar como tradutor
simultâneo do inconsciente do analisando, não se podendo mais, portanto,
circunscrever as relações entre o analista e o analisando em termos de saber.

O não intelectualizável, que emerge na relação transferenciai, movimenta as


duas figuras entre os limites do analisável. A tentação de tradução seria o
recurso mais fácil para o analista, porque o protege da intersubjetividade
radical. Nesta, ele tem uma função interpretante que o coloca numa posição
de ir mais além de um mero conhecimento do inconsciente do analisando,
ou mesmo do analista, de maneira a submeter os dois a uma radical
experiência do inconsciente, experiência que se tece, em seus efeitos de
surpresa, num espaço situado entre os dois sujeitos da relação.

O abandono de uma concepção racional de interpretação coloca a temática


da contratransferência no primeiro plano da cena analítica. Entre a
transferência e a contratransferência se estabelece uma circularidade
fundamental. Com isso, se coloca como essencial a posição subjetiva do
analista, condição de possibilidade para a intersubjetividade radical. Na
prática interpretativa, o narcisismo do analista se encontra submetido a uma
interrogação permanente, pois o analista descentrado do seu ego é a
condição de possibilidade para o descentramento do ego do analisando, para
que este, como sujeito, se perfile nas suas várias marcas e possa se
estabelecer a intersubjetividade.

No processo psicanalítico, no qual não existem mais certezas e garantias


para as duas figuras da relação intersubjetiva, a experiência da loucura se
coloca na sua máxima radicalidade. Por isso, nesse contexto de
reestruturação do espaço analítico começa a se constituir de maneira
sistemática o conceito de narcisismo, em que se constrói uma concepção do
ego como sendo formado basicamente na relação com o outro.

1. D. WidlOchcr, Freud et le problime du changement. Paris, Presses


Universitaires de France, 1970, p. 21-23.

2. S. Freud e J. Breuer, “On the psychical mechanism of hysterical


phenomena: preliminary communication” (1893). In Studies on
hysteria. In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. Volume II, p. 6. Op. cit.

3. S. Freud, Psychical (or mental) treatment (1891). In The Standard


Edition of the complete psychological works cf Sigmund Freud.
Volume VII. Op. cit.

4. J. Breuer e S. Freud, “The mechanism of hysterical phenomena:


preliminary communication" (1893). In Studies on hysteria. Idem.
Volume II, p. 6. Op. cit.
5. S. Freud, On aphasia (1891). Nova Yoric. International
Universities Press, 1953.

6. L. Binswanger, Discours, parcours et Freud, p. 189-190. Op. cit.

7. J. Nassif, Freud. L'inconscient. Terceira parte. Op. cit.

8. S. Freud, “The psychotherapy of hysteria”. In Studies on hysteria


(1895). In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. Volume II, p. 267-270. Op. cit.

9. S. Freud, Remembering, repeating and working-through (1914).


Idem. Volume XII, p.

151.

10. S. Freud, “The psychotherapy of hysteria”. In Studies on hysteria


(1895). Idem. Volume II, p. 265.

11. S. Freud, Idem, p. 265-266.

12. S. Freud, Idem, p. 266.

13. S. Freud, Idem, p. 266, 282-283.

14. S. Freud, Idem, p. 266.

15. S. Freud, Idem, p. 266-269.

16. D. Lagache, “Le problime du transferi”, Revuc Française de


Psychanalyse, volume XVI, n’ 1-2. Paris, 1952.

17. Viderman considera que, contrariamente ao que formulamos aqui,


a experiência

transferenciai em psicanálise já se encontrava inteiramente presente nos


Estudos sobre a histeria. Freud teria não apenas sofrido o impacto dessa
experiência, como também utilizado operacionalmente a transferência, mas
teria se “esquecido” disso. Vale dizer, Freud teria recalcado a transferência,
para reencontrá-la com toda a força na experiência com Dora. A
interpretação de Viderman é estritamente psicanalítica. mas nossa leitura se
distingue da sua, na medida em que. além dessa vertente interpretativa,
consideramos fundamental que se considere também a genealogia dos
conceitos psi-canalíticos. Por isso, sublinhamos como fundamental a
diferença entre 1895 e 1905, tenha havido uma descoberta ou uma
rcdcscobcrta, na medida que ela terá efeitos destacados na concepção
freudiana do processo psicanalítico. Sobre isto, ver S.1 Viderman, Le celeste
et le sublunaire. Paris, Presses Universitaires de France, 1977, p.i 317-323.
í

18. S. Freud, “The psychoterapy of hysteria”. In Studies on hysteria


(1895). In The Standard Edition of the complete psychological works
of Sigmund Freud. Volume II, p. 301. Op. cit. O grifo é nosso.

19. S. Freud, Idem, p. 301.

20. S. Freud, Idem.

21. S. Freud, Idem, p. 301-302

22. S. Freud, Idem, p. 302

23. S. Freud, Idem.

24. S. Freud, Idem, p. 303.

25. S. Freud, Idem, p. 304.

26. S. Freud, Idem.

27. L. Althusser, Pour Marx. Paris, Maspéro, 1965.

28. S. Freud, The interpretation of dreams (1900), capítulo VII. In The


Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume V. Op. cit.
29. S. Freud, Psycho-analysis and the estahlishment of the facts in
legal proceedings (1906). Idem. Volume IX.

30. S. Freud, Fragmentofananalysis of a case of hysteria (1905).


Idem. Volume VII, p. 12.

31. S. Freud, Idem, p. 118.

32. S. Freud, Idem.

33. S. Freud, Remembering, repeating and working-through (1914).


Idem. Volume XII, p.

152.

34. S. Freud, Fragment of an analysis of hysteria (1905). Idem.


Volume VII, p. 119.

35. S. Freud, Idem, p. 117.

36. S. Freud, Idem, p. 119.

37. S. Freud, Idem, p. 116.

38. S. Freud. Idem. p. 116-117.

39. S. Freud. Idem, p. 117.

40. S. Freud, Idem, p. 116.

41. S. Freud, The interpretation of dreams, capítulo VII. Idem. Volume


V.

42. S. Freud, Fragment ofan analysis of a case of hysteria (1905).


Idem. Volume VII, p. 116.

43. S. Freud, Idem, p. 117.


44. S. Freud, The dynamics of transference (1912). Idem. Volume XII,
p. 101.

45. S. Freud, Idem.

46. S. Freud, Idem, p. 116.

47. S. Freud, Fragment of an analysis of a case of hysteria (1905).


Idem. Volume VII, p. 117.

48. S. Freud, Notes upon a case of ob.ses.sional neurosis (1909).


Idem. Volume X.

49. Sobre isto, ver S. Freud, Notes upon a case of obsessional


neurosis (1909). primeira parte, A-D. Idem. Volume X.

50. S. Freud, Original record of the case. Idem.

51. S. Freud, Fragment of an analysis of a case of hysteria (1905).


Idem. Volume VII, p. 116.

52. S. Freud. On psychotherapy (1905). Idem. Volume VII, p. 257-


258.

53. S. Freud. Idem, p. 258-259.

54. S. Freud, Idem, p. 259.

55. S. Freud, Idem, p. 259-260.

56. S. Freud, Idem, p. 260-261.

57. S. Freud. Idem, p. 261.

58. S. Freud, Recommendations to physicians practising psycho-


analysis (1912). Idem. Volume XII, p. 118.

59. S. Freud, On beginning the treatment (1913). Idem. Volume XII, p.


126.
60. S. Freud, Idem, p. 131.

61. S. Freud, Idem, p. 143.

62. S. Freud, Idem. O grifo 6 nosso. .

63. S. Freud, The dynamics of transference (1912). Idem. Volume XII,


p. 106. O grifo é nosso.

64. S. Ferenczi, Transferi et introjection (1909). In Psychanalyse 1.


Oeuvres Completes. Volume 1. Paris, Payot, 1975, p. 92-125.

65. S. Ferenczi, Suggestion et psychanalyse (1912). In Psyhanalysc 1.


Idem, p. 233-242.

66. S. Freud, ,vThe psychotherapy of hysteria”. In Studies on hysteria


(1895). In The

71. M. Foucault, Les mots et les choses, capítulos III c VII. Op. cit.

72. S. Freud, Recommendations to physicians practising psycho-


analysis (1912). In The í Standard Edition ofthe complete
psychological works of Sigmund Freud. Volume XII, p. 116-117. Op.
cit.

73. K. Abraham, Les différences psychosexuelles entre 1’hystérie et la


démence precoce j

(1908). In Rêve et mythe. Oeuvres Completes. Volume I. Op. cit.


<

74. S. Ferenczi, Transfert et introjection (1909). In Psychanalyse 1.


Oeuvres Completes. I

Volume I. Op. cit. ■

75. S. Freud, The dynamics of transference (1912). In The Standard


Edition of the com- 1 plete psychological works of Sigmund Freud. Op.
cit. Volume XII, p. 99-100.
76. S. Freud, Idem, p. 100.

77. S. Freud, Idem.

78. S. Freud, Idem.

79. S. Freud, Idem, p. 101.

80. S. Freud, The future prospects of psycho-analytic therapy (1910).


Idem. Volume XI, p. 142.

81. S. Freud, 'Wild' psycho-analysis (1910). Idem, p. 225-226.

82. S. Freud, On beginning the treatment (1913). Idem. Volume XII,


p. 140.

83. S. Freud, The dynamics of transference (1912). Idem, p. 105-106.

84. S. Freud, Idem, p. 106.

85. S. Freud, Idem, p. 105.

86. S. Freud, Idem, p. 105-106.

87. S. Freud, Idem.

88. S. Freud, Idem, p. 106-107.

89. S. Freud, On beginning the treatment (1913). Idem. Volume XII,


p. 443.

90. S. Freud, The dynamics of transference (1912). Idem, p. 106-107.

91. S. Freud, Idem, p. 104.

92. S. Freud, Idem.

93. S. Freud, Idem, p. 103-104.


94. S. Freud, Idem, p. 104.

95. S. Freud, Idem, p. 108.

96. S. Freud, Totem and Taboo (1913). Idem. Volume XIII, capítulo 2.

97. S. Freud, “Pour introduire le narcissismc, I” (1914). In La vie


sexuelle. Op. cit.

98. S. Freud, Idem. ,

99. S. Freud, The libido theory (B). Two Encyclopaedia Articles


(1923). In The Standard Edition ofthe complete psychological works of
Sigmund Freud. Volume XVIII, p. 255-259. Op. cit.

100. S. Freud, Remembering. repeating and working-through (1914).


Idem. Volume XII, p. 150.

101. S. Freud, Idem, p. 151. O grifo í nosso.

102. S. Freud, Idem, p. 151.

103. S. Freud, Idem.

104. S. Freud, Idem, p. 151-152.

105. S. Freud, Idem, p. 153.

106. S. Freud, Idem, p. 154.

107. S. Freud, Analysis terminable and interminable (1937). Idem.


Volume XXIII.

108. F. Anzicu, “Elúmcnts d’unc thúoric de rinterprétation", Revue


Française de Psychanalyse, volume 34, números 5-6. Paris, Presses
Universitaires de France, 1970.

109. Sobre isso, ver o texto esclarecedor de V. Smimoff, “Et guérir de


plaisir”, onde ele enfatiza que “não se trata da erradicação da pulsão de
morte, mas sim de eliminar — tanto quanto possível — os seus efeitos
propriamente mortíferos”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, número
17. Paris, Gallimard, 1978, p. 162.

110. Essa concepção de Anzieu se baseia numa formulação anterior de


Lagache, na qual este aproxima o efeito de restituição da compulsão à
repetição ao efeito Zeigarrúk. Sobre isto, ver D. Lagache, “Le
problème du transfert”, Revue Française de Psychanalyse. Op. cit.

111. S. Freud, Remembering, repeating and working-through (1914).


In The Standard Edition of the complete psychological works of
Sigmund Freud. Volume XII, p. 154.

112. S. Freud, Observations on transference-love. Idem. Volume XII,


p. 159-171.

113. S. Freud, Idem, p. 168.

114. S.Ferenczi,Latechniquepsychanalytique (1919). In Psychanalyse


3, p. 327-337. Op. cit.

115. S. Ferenczi, Difficultis techniques d’une analyse d’hystérie


(1919). In Psychanalyse 3, p. 17-23. Op. cit.

116. S. Ferenczi, Phénomenes de materialization hystérique (1919).


Idem, p. 53-65.

117. S. Freud, Lines ofadvance inpsycho-analytic therapy (1919). In


The Standard Edition of thecompletepsychologicalworks of
SigmundFreud. Volume XVII,p. 161-165. Op. cit.

118. S. Freud, Idem.

119. S. Freud, On beginning the treatment (1913). Idem. Volume XII,


p. 123.

120. S. Freud, Recommendations to physicians practising psycho-


analysis (1912). Idem, p. 111.
121. S. Freud, Idem.

122. Sobre isto, ver S. Freud, Correpondance de Sigmund Freud avec


le pasteur Pfister, p. 84-85, Op. cit. E. Jones, La vie et 1'oeuvre de
SigmundFreud. Volume 2, capítulo IX. Op. cit.

123. S. Ferenczi, Elasticité de la technique psychanalytique (1927-


1928). In Psychanalyse 4, p. 63-64. Op. cit.

124. S. Ferenczi, Príncipe de relaxation et néocatharsis (1929). Idem,


p. 88.

125. S. Freud, On the history of the psycho-analytic movement (1914).


In The Standard

Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. Volume


XIV, p. 48-49. Op. cit. t

126. S. Freud, Introductory lectures on psycho-analysis (1933). Idem.


Volume XXII, 33* conferência.
O narcisismo e os impasses no processo
psicanalítico
A constituição do conceito de narcisismo subverteu a primeira teoria
freudiana das pulsões ao situar o ego como objeto de investimento libidinal.
Até então, as pulsões sexuais, que buscavam seus objetos para atingir sua
finalidade — o prazer —, entravam em conflito com o ego, considerado
uma instância deslibidinizada, que realizava o recalque das pulsões sexuais.
O conflito psíquico opunha estas pulsões e o ego, o inconsciente e o ego
consciente — enfim, as pulsões sexuais e as de autoconservação.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud propõe pela primeira
vez a relação entre as pulsões sexuais e as “necessidades”, estabelecendo
que as primeiras derivavam das segundas mediante uma operação que era
pensada através da noção de apoio.' As pulsões sexuais se constituiríam
num momento mítico da história do sujeito, emergindo das “necessidades”
e estruturando o funcionamento fantasmático. Em 1910, no estudo sobre os
distúrbios psicogênicos da visão,2esta noção aparece articulada com mais
rigor, e as “necessidades” são denominadas pulsões de autoconservação.
Nesse artigo, formula-se também o conceito de pulsões do ego, para definir
as forças do ego que, no conflito psíquico, se contrapõem à sexualidade. O
conflito se estabelecería entre as pulsões sexuais e as do ego, ambas dotadas
energias distintas e inseridas de modo diferente no plano tópico. Assim,
tentando sistematizar num modelo metapsicológico a experiência de dez
anos de prática psicanalí-tica, Freud propôs que o conflito mental estava
baseado em pulsões de diferentes tipos e localizadas em diferentes espaços
psíquicos.

Simultaneamente, começa a se constituir o conceito de narcisismo. Em


1910, numa curta nota à segunda edição dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, Freud estabelece esta noção, relacionando-a com a
homossexualidade masculina.3 Ainda nesse ano a questão foi tematizada no
seu trabaMio sobre Leonardo da Vinci. Baseando-se sobretudo na
experiência clínica de Sadger, Ferenczi e Stekel, Freud trata o
homossexualismo como um tipo de escolha narcísica de objeto, ligado à
impossibilidade de o menino aceitar a perda do vínculo libidinal com a
figura da mãe; diante dessa ameaça, ele se identificaria com a figura
materna e passaria a escolher jovens parceiros, que representariam duplos
de si mesmo.4

No estudo sobre Schreber a formulação sobre o narcisismo se toma mais.


importante, passando a ocupar um lugar de grande destaque na teoria
pulsional. No trabalho sobre Leonardo da Vinci, Freud não distinguia
narcisismo ; e auto-erotismo. No caso Schreber, o narcisismo é parte
fundamental da his- ’ tória libidinal do sujeito, inserindo-se entre o auto-
erotismo e o amor objetai.5 ’ Assim, toma-se mais complexa a história
pulsional, em relação à que fora es- j tabelecida na primeira edição dos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade.6 ;

Em Totem e tabu verifica-se novo avanço na formalização do conceito, 1


quando Freud estabelece que o narcisismo não seria simplesmente uma fase
evolutiva — passageira, portanto — na história libidinal do sujeito, mas
uma estrutura permanente, que continuaria a existir apesar das
reestruturações libi- -dinais posteriores.’ O narcisismo se articularia na
estruturação do ego, que seria o unificador das pulsões do momento auto-
erótico anterior. Na primeira elaboração dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, a libido era fragmentada num conjunto disperso de zonas
erógenas, que seria unificado, mediante o objeto, na fase genital da
organização libidinal; a partir de agora esta unificação { se realizaria através
da estruturação do ego. Investido como objeto de satisfa-; ção, este último
seria a instância unificadora das pulsões fragmentadas.1

Mediante o ego, pela estruturação do narcisismo, se realizaria a unificação


da fragmentação pulsional, que se voltaria para a imagem do sujeito como
objeto privilegiado de investimento libidinal. A referência ao mito de
Narciso já aparecera no estudo sobre Leonardo da Vinci,’ para destacar a
relação do sujeito consigo mesmo por meio de sua auto-imagem. Em Totem
e tabu e em Para introduzir o narcisismo esta elaboração passa a se realizar
de modo sistemático, na medida mesmo em que a noção de constituição do
ego também se toma rigorosa: o ego não existe desde o início, mas se
constitui num certo momento da história infantil, pela articulação das
pulsões auto-eróticas que são investidas na constituição da auto-imagem:

”... Mas as pulsões auto-eróticas existem desde o começo; alguma coisa,


uma nova ação psíquica, deve pois acrescentar-se ao auto-erotismo para
formar o narcisismo.”10

A constituição do ego por meio da imagem do corpo permitiría unificar o


corpo fragmentado do momento auto-erótico. Existiría, assim, uní momento
mítico anterior ao investimento do objeto como diferente do sujeito,
posterior ao auto-erotismo, que seria o narcisismo.

O ponto culminante dessa elaboração se encontra no trabalho de 1914, no


qual as proposições anteriores são articuladas com mais rigor,
estabelecendo-se novas implicações teóricas e clínicas. A teoria do
narcisismo se consolida. Nesse estudo magistral, o narcisismo não é
apresentado simplesmente como algo inédito, cujo estudo impõe
transformações na teoria pulsional. Ao contrário, ele é introduzido em toda
a estrutura teórica da psicanálise, que, desta forma, é basicamente
remanejada," como aliás o próprio título do artigo indica. A teoria do ego se
constitui de forma articulada com o narcisismo, realiza-se a primeira
formulação sobre as instâncias ideais12 e a questão da psicose é
minuciosamente considerada.13

Nesse remanejamento, interessa inicialmente destacar a formulação que


admite a existência de uma libido do ego, simultânea à libido do objeto.
Isso colocava problemas centrais para a teoria psicanalítica então
existente;14 antes de mais nada, significa que o ego também é objeto de
investimento libidinal, e não uma instância libidinalmente neutra num
conflito psíquico que se realizaria entre as pulsões do ego movidas pelo
“interesse” e as pulsões sexuais movidas pela libido. Nos termos da
linguagem biológica de Freud: o conflito não se estabelece apenas entre os
“interesses” egoístas do indivíduo e os movimentos de “reprodução da
espécie”.15 O ego é sexualmente investido e, por isso mesmo, não pode ser
neutro no conflito psíquico. No plano do ego existiría, então, a libido do
ego, além das pulsões do ego.
Freud estabelece uma balança energética entre o ego e os demais objetos,
considerando que os seus investimentos se equilibram mutuamente. É da
libido do ego que parte o investimento do objeto, e é também para o ego
que esta libido retorna a partir do campo de investimento objetai.16 Seria
preciso que o ego se considerasse suficientemente abastecido de libido para
poder investir nos objetos, recapturando este investimento conforme suas
demandas de auto-investimento. Diante dessa balança energética
permanente e de um ego constituído por uma nova ação psíquica que
estrutura o campo fragmentário do auto-erotismo, o narcisismo é formulado
como um conceito estrutural e não apenas genético-evolutivo. As
regressões realizadas nas psicoses'7 e no curso das enfermidades orgânicas,
assim como o funcionamento da economia libidinal no sono,” seriam
algumas das confirmações clínicas dessa interpretação estrutural.

Esta auto-imagem totalizante, que organiza o ego originário, se constitui


mediante uma imagem vinda através do Outro.19 A criança se estrutura
através da relação com o Outro, mediante as figuras parentais que
participam da instauração da onipotência primária, isto é, o narcisismo
primário. Esta nova ação psíquica, anteriormehte sublinhada, que
transforma o auto-erotismo originário, refere-se a uma operação que se
constitui na relação com as figuras parentais.20

A formulação de Freud sintetiza rigorosamente todo o investimento narcí-


sico realizado pelas figuras parentais no corpo do infante, que unifica a
fragmentação auto-erótica e o dota de todos os poderes soberanos. Nesse
texto, a relação com o Outro, que é constitutiva do ego, recebe um
tratamento mais rigoroso, mas isso já se esboçara no estudo sobre Leonardo
da Vinci, não apenas na referência explícita ao mito de Narciso, como
também em toda a questão do duplo que se atualizaria na escolha
homossexual de objeto, tópico também formulado no comentário
introdutório aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

Esse investimento libidinal da imagem que se constitui através do Outro,


que é estruturante do ego e no qual este funciona como o grande
reservatório da libido originária das zonas erógenas, produz uma subversão
na teoria pulsional. Com efeito, se a energia do investimento egóico não é
apenas o “interesse”, mas também a libido que investe o campo do objeto
— sendo o ego também objeto para o investimento libidinal —, o conflito
psíquico não ocorre apenas entre duas pulsões de naturezas diferentes,
como Freud pretendia estabelecer com a sistematização anterior.

Uma leitura acurada dos textos freudianos, sobretudo dos trabalhos clínicos,
revelaria que nem sempre aparece a exigência de reduzir o conflito mental a
diferentes formas de pulsão.2' Nem sempre as pulsões do ego são as for-ças
recalcantes. Porém, com a sistematização metapsicológica da década de
1910 esta exigência canônica foi definida, o que entra em contradição com
a emergência do narcisismo, até mesmo porque o essencial na trama
conflitiva passa a ser jogado na balança energética entre a libido do ego e a
libido do objeto, e não entre pulsões de naturezas diferentes. Em função
disso tudo, a primeira teoria pulsional de Freud vive um impasse, choca-se
com contradições insolúveis, que acabam por levá-lo a remanejá-la.

Posteriormente, em função mesmo desses impasses, Freud considera que,


nesse momento — na medida em que pretendia dessexualizar as pulsões,
reduzindo a libido a uma energia psíquica genérica22 —, quase resvalara
para o monismo pulsional de Jung,23 grande alvo de sua crítica no estudo de
1914. Em verdade, Freud seguiu uma direção exatamente oposta à de Jung
nessa virada teórica, em que situou o conflito fundamentalmente no plano
libidinal, distinguindo apenas o objeto do investimento libidinal.

Este impasse só será superado com a segunda teoria pulsional, quando o


conflito psíquico aparecerá sob a forma de um novo dualismo pulsional,
entre as pulsões de vida e as pulsões de morte, no interior do qual as
pulsões sexuais e as de autoconservação serão consideradas manifestações
das pulsões de vida.24 Entretanto, no novo contexto teórico, que conduz à
segunda tópica de 1923, o conflito pulsional não se superpõe mais a um
conflito tópico, na medida em que ambos os grupos pulsionais se situam em
cada uma das instâncias psíquicas.

Não nos interessa, neste momento, acompanhar como a teoria freudiana


resolveu os impasses colocados pelas novas formulações vis-à-vis a
concepção então existente. Interessa-nos assinalar duas grandes ordens de
questões que a problemática do narcisismo, por seus fundamentos e por
seus efeitos, colocou para a teoria e a prática psicanalíticas:
1. Inicialmente, o quadro metapsicológico foi subvertido pela questão
da psicose. Com efeito, a homossexualidade masculina esteve na
origem do problema, mas, logo em seguida, ele se deslocou para o
campo da psicose, pela via da questão do homossexualismo, então
situado no centro do conflito da paranóia. No estudo sobre Schreber
este deslocamento já fora realizado. Em toda a primeira parte do
estudo de 1914, a questão do narcisismo é introduzida pela via do
problema da psicose. Esta estaria situada no plano do narcisismo
secundário, que, por sua vez, funcionaria como revelador de uma
estrutura básica, o narcisismo primário, que estruturaria o ego.

A partir daí aparece com toda força a distinção entre psiconeuroses e


neuroses narcísicas. O narcisismo funciona como uma estrutura
discriminatória entre os dois grandes grupos de neuroses. No caso Schreber,
Freud estabelecera diferentes pontos de fixação no auto-erotismo e no
narcisismo, para as diversas formas de esquizofrenia e para a paranóia,
discriminando seus movimentos regressivos daquele que se observa nas
psiconeuroses,25 aprofundando uma formulação anterior de Abraham que
opunha apenas o auto-erotismo e o amor objetai, situando a esquizofrenia
no primeiro pólo e a histeria no segundo.26 Posteriormente, Freud separa as
esquizofrenias e o grupo das neuroses narcísicas, situando as primeiras no
nível do auto-erotismo e as segundas no do narcisismo.27 No quadro destas
últimas distinções, as neuroses narcísicas serão sistematizadas por Abraham
num estudo de grande riqueza clínica.2*

2. Numa segunda ordem de questões fundamentais, sublinharemos


todo o alcance da formulação de que o ego é uma estrutura imaginária,
na qual o sujeito estabelece uma relação especular consigo mesmo,
sustentada na relação com o Outro. Como já esboçamos, com a noção
de narcisismo primário postula-se uma relação básica do sujeito
consigo mesmo, através de tAna imagem. Sendo libidinalmente
investida, esta auto-imagem introduz todas as deformações que o
desejo é capaz de produzir. Nessa paixão por si mesmo, mediada pelo
Outro, os desígnios básicos^do desejo estão em questão, como ocorre
em qualquer paixão.
Nessa interpretação encontra-se toda a ressonância do mito de Narciso,
referido por Freud desde o início desse trajeto teórico, na medida em que
revela tanto o poder fascinante que esta auto-imagem tem para o sujeito,
quanto o seu potencial mortífero.

Essa mesma linha de interpretação foi aprofundada posteriormente,


retirando Freud todas as implicações teóricas e clínicas colocadas por sua
teoria do narcisismo. Na introdução da segunda tópica, a questão foi
consolidada nesta perspectiva. Freud assinala, então, que o ego é
originalmente corporal e, além disso, que ele é não apenas uma superfície
como também a projeção de uma superfície:

“O ego é, antes de tudo, um ego corporal, não somente um ser de superfície,


mas é também a projeção de uma superfície...”29

Conceitua-se, assim, não apenas o caráter especular do ego, mas também


sua constituição através do Outro, como já se delineara no estudo de 1914.
Além de ser uma superfície, o ego é a projeção de uma superfície, com
todas as inversões imaginárias que isto implica. A metáfora do esquema
corporal, introduzida por Freud, assinala exatamente esta questão:

“Para nos servir de uma analogia anatômica, o melhor é identificá-lo ao


‘homúnculo cerebral’ dos anatomistas, que se encontra no córtex cerebral, a
cabeça para baixo e os pés para cima, os olhos voltados para trás e
sustentando a zona da linguagem à esquerda.”30

Pode-se argüir, neste momento de nossa argumentação, que estas


formulações se chocam com outras do próprio Freud. Nesta mesma obra,
afinal, Freud não assinalara que o narcisismo primário não é constitutivo do
ego, correspondendo a uma noção meramente econômica, na medida em
que o ser estaria num estado anobjetal, que se restauraria apenas durante o
sono?31 Nestes termos, o narcisismo do ego seria originariamente
secundário, e o narcisismo primário se vincularia ao id. Se isso é verdade,
não se transforma a natureza do problema em pauta?

Quanto a isso, há três ordens de problemas:


1. Se o grande reservatório de libido é o id ou o ego. Quanto a isso, as
formulações de Freud são oscilantes, ora mantendo a postulação de
1923, ora retomando as colocações de 1914, quando construiu a
imagem da ameba e dos seus pseudópodos para ilustrar a dialética
libido do ego/libido do objeto.’ Essa oscilação se mantém até o fim de
sua obra, e muitas vezes Freud retoma sua primeira formulação, mas
sem criticar a de 1923.32 Isso revela sua incerteza quanto à articulação
do narcisismo primário e secundário, se no id ou no ego. Se o
narcisismo primário se situa no id, deixa de ter relevância a anterior
distinção entre narcisismo primário e auto-erotismo” e, com isso,
evidentemente, todas as questões fundamentais levantadas para o
narcisismo primário se deslocam para o narcisismo secundário.

2. Porém, a questão mais importante que está em jogo nesta


interpretação do pensamento de Freud é a de considerar como uma
disjunção o narcisismo e o objeto — como se a presença do objeto
excluísse a economia narcísica e vice-versa. A tradição psicanalítica
inglesa considera esta disjunção em termos absolutos, apoiando-sc nos
comentários feitos por Freud em 1923. Isto é bastante explícito nas
obras de M. Klein e de Balint, apesar das diferenças teóricas existentes
entre ambas.34 Com esta interpretação, contudo, ou se passa por cima
da espinhosa questão da constituição do ego, ou este é biologicamente
formulado — postulado como inato, em última instância.

Levando-se em conta, porém, a genealogia dos textos sobre o narcisismo,


registramos como Freud considerava que o narcisismo implicava uma
relação do sujeito com sua imagem, na qual é fundamental a relação com o
Outro. Com isso, evidentemente, a questão do objeto está colocada no
interior da economia narcísica, não existindo disjunção absoluta entre
presença do objeto e narcisismo. Este se refere necessariamente a uma
relação intersubjetiva que se interioriza. Nestes termos, um dos pontos
problemáticos da interpretação disjuntiva é sobrepor a questão da relação de
objeto com a da escolha de objeto. Freud raramente usa o primeiro termo e
trabalha sempre com o segundo. Isso possibilita, enfim, pensar a existência
do narcisismo mesmo com a presença do objeto.
3. Nesta perspectiva, a ordem conceituai das questões em pauta não se
modifica, mesmo considerando como definitiva a terminologia de
1923. O narcisismo secundário seria especular, herdeiro de todas as
características anteriormente atribuídas ao narcisismo primário. Com
isso, também a questão da constituição do ego fica colocada em toda a
sua complexidade.3536

Essa oposição de concepções sobre a natureza do ego — entre um ego


especular, estruturante do sujeito porém impostor e falseador de sua
identidade, e um ego adaptativo — é o eixo pelo qual se perfila um conflito
básico no campo psicanalítico, ligando-se à interpretação a ser dada ao
pensamento freudiano, nessa virada teórica que se inicia com o narcisismo.
Evidentemente, tal oposição teórica se desdobra na perspectiva que se
formula sobre trabalho psicanalítico.

Se o ego é investido libidinalmente, se é constituído de forma especular,


referindo-se à relação do sujeito consigo mesmo mediante uma imagem e
organizado através do Outro, isso coloca também em questão a relação do
psicanalista com sua auto-imagem, com sua teoria e com sua prática inter-
pretativa. Com este questionamento o analista perde a segurança absoluta
que imaginava possuir quando representava sua prática com todas as ilusões
da racionalidade soberana, ou seja, quando a prática interpretativa era
sustentada por um ego deslibidinizado, não marcado pelas injunções
narcísicas.

Considerando essa vertente que o problema aponta, poderiamos argüir que,


além das inúmeras razões, teóricas e clínicas, que conduziram a essa
subversão provocada pela teoria do narcisismo, seria necessário considerar
outra dimensão dessa problemática, que assinale a mudança do lugar do
analista no dispositivo psicanalítico. Esta subversão conceituai seria um
indício privilegiado de que algo de ordem estrutural se transformava no
dispositivo do processo analítico. Assim se consolidariam as condições de
possibilidade do conceito de narcisismo se articular e se constituir com
todas as conseqüências que conhecemos.

A razão, a moral e a normalidade do analista foram explicitamente


questionadas no percurso frediano. Isto significa que, ao contrário do que
ele podería pretender antes, o seu ego não se encontra sob o seu domínio
total, já que sua relação com o código interpretativo é libidinal. Por isso
mesmo, ele não tem acesso transparente à verdade. A racionalidade do
método é marcada pelo tipo de investimento que realiza o analista, o que
significa dizer que o código deve ser situado no contexto libidinal. Ele
funciona no espaço psíquico do analista, que pode perfeitamente deformar
as verdades do método segundo as demandas de seus próprios desejos.
Nestes termos, o analista não é mais soberano no acesso à verdade do
Outro, já que ele também sofre os efeitos do impacto de suas pulsões,
intensamente mobilizadas pelo processo transferenciai. Enfim, radicalmente
descentrado no processo intersubjetivo, o ego do analista não tem mais a
transparência do óbvio, pois também ele é especular, marcado pelas
dissonâncias impostas por seu narcisismo.

A questão da psicose foi o eixo em torno do qual se ordenou esse processo


de subversão teórica que conduziu ao conceito de narcisismo. Mas, sem
subestimar toda a importância teórica e clínica que isso teve nesse momento
histórico, esta questão precisa ser devidamente situada no contexto
epistemológico de sua produção. Não há dúvida de que essa problemática
transcende em muito o simples estatuto de uma estrutura psicopatológica, a
ser explicada segundo a razão psicanalítica, com as inquietações que seu
manejo efetivamente introduz no espaço analítico. Parece que, mais do que
isso, a problemática da psicose funcionou, no plano da elaboração clínica,
como uma espécie de caixa de ressonância de um problema mais
fundamental, que se processava na reordenação do campo da escuta
psicanalítica, com o definitivo descentramento do analista, destituído de sua
soberania racional. Enfim, a problemática da psicose, que se impõe nesse
momento como um objeto fundamental para a investigação psicanalítica, é
a expressão simbólica do fantasma da loucura que passa a impregnar
densamente o espaço analítico e o lugar do psicanalista, quando o ego deste
também é radicalmente considerado como libidinal e especular.

Entra na fase final a lenta ruptura que faz desmoronar a idéia de que o
analista detém o domínio racional do código interpretativo. Se a psicanálise
pretende continuar a ser um método de acesso à verdade da loucura,
essencialmente diferente das práticas sugestivo-persuasivas e do tratamento
moral, preocupada em apreender a significação que estrutura a experiência
da loucura, é necessário que o psicanalista estabeleça, com a loucura, uma
relação radicalmente diferente daquela que é estabelecida pela psiquiatria.
Por isso mesmo, também neste contexto se avolumam nos escritos
freudianos as imagens da loucura como oráculo da verdade, Schreber se
constitui como um herói freudiano face à surdez psiquiátrica ao discurso
verdadeiro da loucura e se estabelece uma circularidade fundamental entre
o discurso psicanalítico e o discurso delirante de Schreber.

1. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). In The


Standard Edition of the complete psychological works ofSigmund
Freud. Volume VII, p. 181-183. Op. cit.

2. S. Freud, “Le trouble psychogcne de la Vision dans la conception


psychanalytique” (1910). In Névrose, psychose et perversion, p. 167-
173. Op. cit.

3. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). In The


Standard Edition ofthe complete psychological works ofSigmund
Freud. Volume VII, p. 144-145. Op. cit.

4. S. Freud, Leonardo da Vinci and a memory of his childhood (1910).


Idem. Volume XI, p. 99-100.

5. S. Freud, Psycho-analytic notes on an autobiographical account of


a case of paranóia (Dementia paranoides) (1911). Idem. Volume XII,
p. 60-62.

6. S. Freud, Three essays on the theory of sexuality (1905). Idem.


Volume XII, segundo ensaio.

7. S. Freud, Totem and taboo (1913). Idem. Volume XIII, p. 89.

8. S. Freud. Idem, p. 88-89.

9. S. Freud, Leonardo da Vinci and a memory of his childhood (1910).


Idem. Volume XI,

p. 100. ’
10. S. Freud, "Pour introduire le narcisismo” (1914). In La vie
sexuelle, p. 84. Op. cit. O grifo é nosso.

11. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanalyse, p.


261. Op. cit.

12. S. Freud, "Pour introduire le narcisisme”. In La vie sexuelle, seção


III. Op. cit.

13. S. Freud, Idem, seções I e II.

14. S. Freud, Idem, p. 83-87.

15. S. Freud, Idem, p. 85-86.

16. S. Freud, Idem, p. 83.

17. S. Freud, Idem, seção II.

18. S. Freud, Idem, p. 89.

19. A investigação sobre o caráter especular do ego c o destaque de


sua importância na teoria freudiana foram realizados por J. Lacan, no
qual nos baseamos nesse tópico particular da leitura de Freud. Sobre
isso, ver: a) “Le stade du miroir comme formateur de Ia fonction du
Je” (1949). In Écrits. p. 93-100. Op. cit.-, b) “L’agressivité en
psychanalyse" (1948). Idem, p. 121-124.

20. J. Lacan, Idem, p. 96.

21. J. Laplanche c J. B. Pontalis, Vocabulaire de la Psychanalyse, p.


382. Op. cit.

22. S. Freud, “Pour introduire le narcisisme”. In La vie sexuelle, p. 87-


88. Op. cit.

23. S. Freud, “The libido theory (B). Two cncyclopacdia articlcs"


(1923). In The Standard Edition ofthe complete psychological works of
Sigmund Freud. Volume XVIII, p. 255-259. Op. cit.
24. S. Freud, “Au-dclà du principc de plaisir” (1920), capítulo 5. In
Essais depsychanalyse. Op. cit.

25. S. Freud, Psycho-analytic notes on an autobiographical account of


a case of paranóia. (Dementia paranoides). In The Standard Edition of
the complete psychological works of Sigmund Freud. Volume XII, p.
59-63. Op. cit.

26. K. Abraham, Les différences psychosexuels entre Thystérie et la


démence précoce (1908). In Rêve et Mythe. Oeuvres Completes. Op.
cit.

27. S. Freud, “Névrose et psychose" (1924). In Névrose. psychose et


perversion, p. 285-286. Op. cit.

28. K. Abraham, “Esquisse d'unc histoirc de dévcloppcmcnt de la


libido basée sur la psychanalyse des troublcs mentaux” (1924). In
Développement de la libido. Oeuvres Completes. Volume II. Paris,
Payot, 1973, p. 231-350.

29. S. Freud, “Le moi et le ça” (1923). In Essais de psychanalyse, p.


238. Op. cit.

30. S. Freud, Idem.

31. S. Freud, Idem, p. 260-261.

32. J. Strachcy, Appendix B, The great reservoir of libido. The ego and
the id. In The Standard Edition of the completepsychological works of
SigmundFreud. Volume XIX, p. 63-66. Op. cit.

33. J. Laplanche e J. B. Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse, p.


263. Op. cit.

34. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Idem, p. 265.

35. J. Laplanche e J. B. Pontalis, Idem, p. 262.


36. As proposições teóricas de Lacan acompanham essas formulações
de Freud, investigando a dimensão especular e imaginária do ego.
Contrapõem-se às interpretações realizadas pela psicologia do ego, que
pretende apoiar-se no modelo estrutural de 1923 para formular uma
concepção adaptativa do ego, retirando sua dimensão especular e
formulando mesmo a existência, no ego, de uma zona neutra e livre de
conflitos. *

A ausência de inscrição e o
transbordamento pulsional
Retomemos as questões teóricas, metodológicas e clínicas colocadas por
essas novas coordenadas do processo psicanalítico, nas quais se destaca a
impossibilidade do analista se apresentar como portador de um código
racional de interpretações. Em vez disso, ele tem que ser, ao mesmo tempo,
portador de uma singularidade e suporte de um processo essencialmente
intersubje-tivo. Essa concepção tem impacto sobre a metapsicologia
freudiana, impondo mudanças à teoria das pulsões e a correlata passagem
para a segunda tópica. Assim, o cenário da clínica psicanalítica se perfila
também com transformações fundamentais no campo de suas positividades.

Antes de tematizarmos esses desdobramentos do pensamento freudiano,


assinalaremos como tais questões já se colocam de maneira sistemática na
Metapsicologia de 1915, na qual Freud delineia as diversas concepções que
construiu sobre o processo psicanalítico ao longo dos anos e as vias teóricas
da superação de cada uma.

Finalmente, depois de considerarmos todos esses comentários, retomaremos


a nova representação freudiana do processo psicanalítico, assinalando
como, através dessa ruptura que procuramos delinear, as estratégias
constitutivas do espaço analítico se diversificaram, tornando-se mais
complexos o encaminhamento e os impasses colocados pelo processo
psicanalítico.
O inconsciente e as representações do ato
psicanalítico
A discussão realizada no texto metapsicológico de 1915, em que Freud
tematiza de maneira rigorosa a concepção psicanalítica de inconsciente,*
circunscreve num plano conceituai a transformação havida nas
representações de interpretação e de processo analítico. A tentativa de
definir rigorosamente

o caráter metapsicológico da representação inconsciente — questão que


preocupa Freud ao longo desse ensaio — é o correlato de sua pesquisa
voltada para circunscrever, nesse momento, as concepções de interpretação
e de processo analíticos, assim como as transformações que se produziram
nessas representações ao longo do seu pensamento.

As hipóteses da dupla inscrição — a funcional e a que se define pela


oposição representação de palavra/representação de coisa — correspondem
às diferentes formalizações sobre o processo e à interpretação analítica que
Freud foi elaborando durante seu percurso. Ao sistematizar essa discussão,
uma das preocupações centrais de Freud é tentar circunscrever como a
representação inconsciente se transforma em representação consciente.
Freud está voltado fundamentalmente para o fenômeno da passagem do
registro do sistema inconsciente para o registro do sistema pré-
consciente/consciente. Sua preocupação teórica é pensar quais as condições
de possibilidade para que o ato psicanalítico possa promover a passagem de
um registro para o outro, ou, dito de outra forma, como deve ser a textura
da representação inconsciente e da representação consciente para que o ato
psicanalítico funcione de acordo com as coordenadas metodológicas que se
foram construindo.

A hipótese da dupla inscrição do inconsciente corresponde ao primeiro


momento da démarche freudiana. Evidentemente, esse momento primordial
é representado de maneira esquemática pela concepção da dupla inscrição,
mas entre ambas as inscrições existe clara correspondência. A inscrição a
ser interpretada ria análise correspondería à cena traumática que marca o
inconsciente do sujeito, que deveria ser conscientizada por este através do
procedimento analítico (isto é, caberia inscrever no registro das palavras o
que estava aquém do falar, no registro do cenário visual).

Essa seria a hipótese mais ingênua sobre a representação inconsciente e


sobre o trabalho psicanalítico. Freud Ipgo descobre que falar não garante,
por si só, a superação do processo de recalque. Com efeito, não adianta
apenas realizar uma nova inscrição auditiva na psique, onde anteriormente
só existia a inscrição visual, pois com isso o analisando ficaria com uma
dupla inscrição de um mesmo referente, sem que isso promovesse a
inserção do inconsciente no registro da consciência.2

Descartada essa hipótese sobre a textura da representação inconsciente,


Freud afasta também que a interpretação analítica seja representada como
mera prática de tradução simultânea do inconsciente do analisando, pois
“ter escutado e ter vivido são duas coisas de natureza psicológica totalmente
diferentes, mesmo se elas têm um conteúdo idêntico”.3

Este último argumento freudiano introduz o caminho através do qual se


desenvolve a hipótese funcional. Nela, Freud considera que não basta uma
escuta racional; esta deve implicar necessariamente uma revivência, com
todos os constituintes emotivos da experiência originária. Esta exigência já
fora referida por Freud no período da cura catártica, quando ele destacava a
importância da ab-reação afetiva para a resolução da experiência
traumática. Porém, só com a extensão conferida, na análise, ao processo
transferenciai esta exigência pode desenvolver-se de forma mais rigorosa.

Assim, a hipótese funcional do inconsciente é mais nuançada que a da dupla


inscrição, pois ela considera que a passagem do sistema inconsciente para o
sistema pré-consciente/consciente se realiza por uma transformação no
estado da inscrição e não pela realização de uma inscrição nova. O lugar da
inscrição não se modificaria. A transformação se realizaria no regime de
inserção da mesma representação, isto é, no contexto de relações pelas
quais ela seria incluída e nas formas de investimento que circulariam
através dela. Com a consideração da relevância da dimensão econômica no
processo de transformação das inscrições, Freud começa a retirar o código
interpretativo do analista de um lugar soberano no processo analítico e
anuncia que outro processo também deve se realizar para que ocorra a
transformação de um sistema tópico em outro.4,5

Essa hipótese teórica corresponde, no registro da representação do processo


analítico, ao período iniciado com o “caso Dora”, vale dizer, ao impacto da
descoberta da transferência. Para que se revele uma inscrição inconsciente
não basta dizer algo ao analisando; também é preciso reviver, no espaço
analítico, as situações inscritas, para que estas possam adquirir a dimensão
da palavra e possam falar não como palavra racional, mas como palavra
encarnada. Portanto, a intersubjetividade já está colocada como uma
dimensão fundamental do processo de deciframento. Se, para transformar-
se em representação consciente, a representação inconsciente demanda essa
espessura da experiência transferenciai (que transcende a tradução
racional), a inscrição originária já começa a se delinear com um espectro
denso de “excesso” energético.

Finalmente, a hipótese freudiana mais consistente define a representação


inconsciente como representação de coisa (Sachvorstellung, Dingvorstel-
lung), a que se contrapõe a representação de palavra (Wortvorstellung)
como característica do sistema pré-consciente/consciente.6 A formulação
desta hipótese teórica sobre a textura da representação inconsciente é
contemporânea à constituição do conceito de perelaboração
(Durcharbeitung), em 1914,7 como sendo um instrumento fundamental do
processo psicanalítico.

A perelaboração indica um processo de elaboração que se realiza “atravéf


de”, ou seja, um trabalho insistente de análise das resistências que se
repetem constantemente na cena analítica. Essa elaboração insistente
através das resistências indica a maneira pela qual a compulsão à repetição
vai sendo reconhecida e paulatinamente recuperada para o registro da
simbolização. Por implicar redução da resistência, a insistente ruptura do
automatismo de repetição evidencia a maneira pela qual a representação de
coisa vai sendo transformada em representação da palavra. Essa
transformação se dá através de uma enorme multiplicidade de cadeias
associativas que se constituem através do insistente trabalho sobre as
resistências.
Essas cadeias associativas diversificadas constituem uma verdadeira
tessitura de sentido, que envolve a representação de coisa em múltiplas
direções, de maneira a promover a transposição do registro inconsciente
para o registro pré-consciente/consciente. Com isso, se coloca a concepção
de um contexto particular de relações de sentido, no qual a representação de
coisa vai se inscrevendo em representação de palavra, que se articula
intimamente ao conceito de transposição e à idéia de trabalho para a
realização desta transposição.

A dimensão econômica, fundamental para realizar essa transformação na


espessura do sentido, está indicada pela exigência de “liquidação” insistente
das resistências, que aponta para a possibilidade de circunscrição
progressiva da compulsão à repetição. Com isso, a imagem do “excesso”
energético é incisivamente colocada, delineando-se com contornos mais
nítidos se considerarmos as dificuldades indicadas para a realização dessa
transposição, que implica a constituição da teia complexa de cadeias
associativas que perpassam a representação de coisa. Enfim, a dimensão
básica da hipótese funcional é radicalizada nessa nova hipótese freudiana,
de maneira a conduzi-la ao seu limite.

Considerada como instrumento fundamental do processo psicanalítico, a


perelaboração fornece, através da imagem de um trabalho constante sobre
as resistências, a metáfora espacial de um processo que se realiza no eixo
temporal da análise, isto é, de um processo de insistente enunciação
interpretati-va que acompanha pari passu o registro insistente da compulsão
à repetição. Além disso, o processo de enunciação interpretativa, através da
perelaboração, também envolve analisando e analista através da
transferência, forma privilegiada de dominar a compulsão à repetição.

Se uma problemática do “excesso” energético que anuncia o id está


evidentemente indicada nesse percurso do pensamento freudiano,
considerando as coordenadas do processo analítico, também se anuncia de
maneira clara o novo dualismo pulsional. Transferência e repetição lutam
como gigantes na relação do sujeito com o Outro. A transferência
representa Eros,* a força mítica de ligação, de reunião do que é
fragmentado, enquanto a compulsão à repetição representa Tanatos,’ a força
mítica que impede a ligação, obstaculi-zando a possibilidade da relação
com o Outro.

Vejamos os desdobramentos dessa problemática na década de 1920, consi-


derando esquematicamente a constituição da segunda tópica e do novo
dualismo pulsional.

A representação renovada
A oposição entre Eros e Tanatos será a formalização final dada por Freud a
essa problemática. Transferência e repetição se defrontam em todos os
pontos do espaço analítico, cuja condição fundamental de possibilidade é o
reconhecimento — com uma tenacidade que não fora formulada antes — do
que impede o processo analítico, do que se opõe a ele. O reconhecimento da
intensidade e da extensão dos fenômenos repetitivos no processo analítico
começa a inquietar Freud, chegando a colocar em questão o seu modelo de
psicanálise.

Evidentemente, já existia a concepção da resistência e das forças psíquicas


que se opunham ao processo analítico. Mas Freud começa a tratar essas
questões de forma diferente, na medida em que elas adquirem uma extensão
e uma pregnância antes inexistentes. Ele começa a se defrontar com o que
denominará de “reação terapêutica negativa”, uma situação que
impossibilita a continuidade efetiva da análise, apesar de sua permanência
formal, que ele atribui ao “sentimento inconsciente de culpa”.10

Para o pensamento freudiano existiría, no contexto analítico e fora dele, a


repetição de situações passadas da história do sujeito, que não seriam redu-
tíveis à busca do prazer e ao evitamento do desprazer, únicas formas de
regulação econômica do funcionamento mental até então estabelecidas.
Porém, apesar de contrariarem os cânones do princípio do prazer e serem
geradoras de tensão mental, essas situações eram, assim mesmo, procuradas
e repetidas incansavelmente. Enfim, haveria a repetição de situações
traumáticas que marcaram o percurso do sujeito e que estariam “além do
princípio do prazer”.11
O delineamento teórico-clínico dessa temática provoca a ruptura com a
primeira tópica. A passagem de uma estrutura psíquica fundada na oposição
inconsciente/pré-consciente12 para outra, sustentada na oposição id/ego/su-
perego,13 marca precisamente a tentativa conceituai de delimitar um espaço
psíquico no qual esses fenômenos repetitivos podem ser articulados.

Se, por um lado, o id mantém dimensões do anterior registro do inconsci-j


ente — o mesmo ocorrendo com o ego e o superego, que são parcialmente
inconscientes —, ele é dotado de uma estrutura que em muito o
transcende.14 A temática do “excesso” pulsional, que era irredutível ao
registro da sim-bolização, já anunciava essa possível reordenação
conceituai, indicando, pela imagem do transbordamento energético, uma
forma de ordenação psíquica que ultrapassa o registro da representação e
impõe limites à primeira concepção tópica do pensamento freudiano.

A superação do registro tópico do id face ao registro do inconsciente se


realiza num ponto fundamental: enquanto na tópica do inconsciente estamos
diante de experiências que receberam uma inscrição e que passaram por um
código de linguagem — e, por isso mesmo, poderíam ser interpretadas —
na tópica do id teríamos algo mais além disso. Com efeito, no registro do id
teríamos um conjunto de experiências que não receberam uma inscrição e
não se inseriram num código de linguagem, que estariam “fbra” da psique,
se esta é definida pelo sistema de oposição inconsciente/pré-consciente-
consciente. Isto é, teríamos um conjunto de marcas psíquicas que não
estariam se movimentando num espaço de circulação de significados.

A compulsão à repetição indica a existência de fenômenos que nunca foram


inscritos no plano do sentido — bem ou mal, pouco importa, já que nos
demais, que circulam na oposição sistemática inconsciente/pré-consciente-
consciente, esta inscrição se realizou (o recalque seria uma forma de má
tradução desta inscrição). A não-inscrição é que confere o seu caráter
repetitivo.” Portanto, a compulsão à repetição seria uma forma de
“liquidação” de uma experiência traumática, energeticamente transbordante.
Nunca tendo sido circunscrita numa inscrição interpretativa, ela se repete
insistentemente até encontrar a sua significação, a sua ordenação no
universo da representação.
Com essa passagem de registro tópico o espaço psicanalítico se transforma,
e as coordenadas do processo analítico são remodeladas nos seus
fundamentos. Este processo deve lidar agora não apenas com os fenômenos
mentais que são da ordem da inscrição, mas também com aqueles que,
apesar de terem causado marcas numa psique concebida de maneira mais
abrangente, não receberam uma operação de sentido, isto é, não se
encontram inseridos no espaço mental de circulação de significados. Os
primeiros são da ordem da interpretação; inscritos e descobertos nas suas
diversas cadeias associativas, cabe decifrá-los minuciosamente nos seus
deslizamentos contínuos através de suas equivalências simbólicas. Mas os
segundos não apresentam uma textura que admita a estratégia do
deciframento, sendo necessário transformar sua textura para que a
interpretação propriamente dita possa realizar-se.

Nessa estrutura psíquica remanejada nos seus constituintes fundamentais,


em que existem também marcas de experiências que não foram aindá
inscritas e que não passaram por um código de linguagem, a metáfora
econômica passa a ter um lugar destacado na interpretação teórica do
funcionamento mental. O espaço çcupado pela dimensão econômica na
metapsicologia freudiana se dilata, quando comparado com o seu lugar na
tópica anterior.

Assim, o id apresenta uma exuberância afetiva, energética, que ultrapassa


em muito o registro ordenado e sistemático do inconsciente. A hipostasia do
econômico é a contrapartida necessária, no sistema metapsicológico, de um
psiquismo agora postulado também nos seus vazios de inscrição,
caracterizados pelo que se encontra marcado como trauma mas que ainda
não foi inserido num código de liguagem. O processo de sua inscrição neste
código teria que se realizar, no espaço psicanalítico, através da espessura
dramática da experiência transferenciai.

Diante desse novo contexto psíquico, reordenam-se as estratégias


metodológicas do processo psicanalítico. A análise não visa mais, apenas, a
interpretar a inscrição, pretendendo decifrá-la minuciosamente através das
cadeias associativas, como se passava antes, quando se centrava na tópica
do incons-ciente/pré-consciente-consciente. Agora, além disso, cabe
também realizar uma inscrição, ou seja, inscrever uma experiência que
deixou marcas. Em 1920, no texto em que Freud introduz o conceito de
pulsão de morte, estas mudanças metodológicas começam a ser delineadas,
marcando rigorosamente o tempo do antes e do depois da teoria da prática
psicanalítica.16

Com a formulação do conceito de pulsão de morte — situado “mais além


do princípio do prazer”, ou seja, fora do espaço regulado por este princípio
—, o pensamento freudiano destaca uma forma de trabalho da pulsão que é
anterior ao funcionamento mental regulado pelo eixo definido pela oposição
prazer/desprazer. Assim, existiría uma operação básica de ligação desta
pulsionalidade num sistema de representações, que seria a inscrição
primordial, necessária para que o princípio do prazer pudesse funcionar de
forma dominante nesse campo de fenômenos psíquicos.17

Esse trabalho básico de ligação correspondería a um processo de


simbolização primária da pulsionalidade, ou, como já nos referimos, de
domínio e de fixação pulsional, que precisaria se realizar com as marcas
dessa pulsionalidade, pois até então nunca se efetuara. Seria preciso que o
processo psicanalítico o empreendesse, sem ter garantia a priori de que ele
seja possível. Apenas com a realização dessa ligação originária seria
possível a simbolização secundária,'1 isto é, um processo que supõe a
substituição de representações, consideradas como equivalentes simbólicas.
Só aí um processo <M circulação de significados se tornaria possível, como
tinha sido delineado no quadro teórico da primeira tópica, e só aí a
estratégia do deciframento analítico encontraria o espaço legítimo de
utilização metódica.

Mas, além de manter sua estratégia anterior, o processo psicanalítico se


defronta com uma nova função, antes inexistente. Ele teria que procurar
estabelecer uma ligação fundamental, que não se realizara até então na
história do sujeito, promovendo uma inscrição primordial. Neste contexto, a
anterior polaridade pulsão sexual/pulsão do ego (pulsão de
autoconservação) se torna secundária, subsumida numa outra oposição,
considerada agora mais fundamental, entre a pulsão de vida e pulsão de
morte.
O ensaio freudiano sobre o narcisismo já colocara em questão de maneira
irreversível essa primeira oposição pulsional, quando formulara que o ego
também era objeto de investimento libidinal, formalizando assim uma
concepção especular do ego que Freud vinha delineando desde 1910,
quando tematizou pela primeira vez a problemática do duplo no seu escrito
sobre Leonardo da Vinci. Com isso, evidentemente, o que está em questão é
o lugar de um ego soberano, com a pretensão de ser um intérprete
hegemônico do Outro, sem estar assujeitado às manhas da libido. Eis aí
uma das certezas que se quebram nessa passagem fundamental do
pensamento freudiano. Como conseqüência, não existe mais lugar, no
processo psicanalítico, para a soberania quase absoluta do intérprete, na
medida em que o ego é também visceralmente marcado pelas vicissitudes
da libido, sendo capaz, portanto, de todas as imposturas e deixando de ser
definitivamente o possuidor da transparência racional da verdade.

Nesse novo contexto pulsional o conflito se ordena entre a intrincação


(Triebmischung) e a desintrincação (Tríebenmischung), ou entre a união e a
desunião pulsionais, como alguns autores preferem denominar estes
conceitos.” Eros é o promotor da ligação, o que procura reunir miticamente
o que está separado, possibilitando assim a inscrição, enquanto Tanatos
representa o que obstaculiza isso, a força mítica da discórdia, a des-ligação,
a impossibilidade de articulação.

A pulsão de morte opera fundamentalmente em “silêncio” e não se restringe


aos poderes da agressão destrutiva,20 ao contrário do que passou a ser
considerado por parcelas significativas do pensamento psicanalítico pós-
freu-diano. Seu poder mortífero está representado por sua desintrincação de
Eros e sua existência em estado livre. Definida pelo “silêncio”, ela nos
permite aceder ao núcleo da intuição conceituai do pensamento freudiano.
Articulando numa bela metáfora o conceito de pulsão de morte à
problemática da não-inscrição, essa passagem crucial do pensamentb de
Freud sublinha enfaticamente que ela é o que não quer ser escrito e falado,
o obstáculo à emergência da palavra.

Mediado por Eros, que está representado pela articulação transferenciai, o


processo psicanalítico permitiría reduzir o poder mortífero da puls&o de
morte, ao recolocá-la num espaço favorável à sua intrincação. O que não
significa, evidentemente, que este processo seja sempre possível e, muito
menos, que seja a priori solucionado, como assinala o próprio surgimento
do problema pela via da “reação terapêutica negativa”.

A singularidade da figura do analista desempenha um papel fundamental


nessa possibilidade de resolução, pois, no primeiro plano do cenário
analítico, está sempre colocada em xeque a sua possibilidade psíquica de
ser o suporte dessas experiências repetitivas para poder articulá-las pelo
enlace transferenciai. Nenhum discurso técnico sistemático, nenhum código
racional de interpretações, funcionam como garantia para as suas
démarches. O desamparo do analista atinge densidade dramática, submetido
que está a uma experiência intersubjetiva radical em qualquer processo
analítico. Este é o des-centramento fundamental que o lugar do analista
sofreu quando foi retirado da posição anterior, de intérprete soberano. Nessa
passagem do pensamento freudiano, a era das garantias supremas do
intérprete foi superada e transformada numa relíquia do passado.

Se nossa interpretação dos textos freudianos está correta, articulando Eros


com a trama intersubjetiva no processo analítico e vinculando Tanatos à
força que a isto se opõe, decorre daí um desdobramento crucial da teoria
pulsional da década de 1920. Consideremos, esquematicamente, a inversão
conceituai promovida entre sadismo e masoquismo. Freud passa a
considerar o masoquismo como sendo originário e o sadismo como sendo a
resultante deste (secundário, portanto).21 Com isso, ele — que formulara na
Metapsicologia de 1915 que o sadismo era primário e o masoquismo
sempre secundário aos desdobramentos do sadismo22—inverte as
prioridades pulsionais deste par de opostos.

Entregue ao domínio originário da pulsão de morte que circula em estado


livre, o infante precisa passar pelo Outro para organizar sua própria pulsio-
nalidade e não permanecer desamparado diante do poder mortífero de
Tanatos. Então,'o ato originário de expulsão da pulsão de morte, que se
materializa como agressividade, se realiza através de um Outro situado
numa posição intersubjetiva. É, portanto, um trabalho promovido por Eros,
que realiza insistentemente a ligação da pulsão de morte que circulava em
estado livre. A inscrição primordial das pulsões se faz na encruzilhada
desse processo insistente. Assim, o masoquismo primário seria o que fica
aquém desta intersubjetividade fundante do sujeito, na qual a inscrição
primordial da pulsionalidade não pode se realizar. Isso também se passaria
no procesep psicanalítico, no qual a transferência domina a compulsão à
repetição, que também circunscreve uma tentativa de expulsão da pulsão de
morte para ser ligada por Eros. Então, a intersubjetividade na relação
analítica representa a articulação promovida por Eros.

Após situarmos a nova concepção freudiana sobre a oposição pulsional


sadismo/masoquismo no contexto reestruturado do processo psicanalítico,
poderemos registrar outras decorrências dessa reestruturação do espaço
analítico, no que se refere a outras positividades da clínica psicanalítica.

Assim, vejamos. No registro teórico da segunda tópica, o pensamento


freudiano empreende uma relativização progressiva do lugar do recalque.
Isso se coloca na medida mesmo em que o discurso psicanalítico se desloca
da problemática exclusiva do inconsciente para a do id. Evidentemente, o
recalque continua sendo o mecanismo psíquico fundamental para a
constituição do registro do inconsciente, pois existe uma relação essencial
entre estes dois conceitos. Porém, se com a problemática da não-inscrição é
formulado o conceito de id, o recalque vai sendo descentrado, deixando de
ocupar o lugar hegemônico que tinha na primeira tópica.

Nesta perspectiva, o discurso freudiano começa a se referir de maneira


sistemática a um conjunto de defesas do ego, dentre as quais estaria o
recalque.23 Este ocupa o lugar fundamental apenas quando é do registro do
inconsciente que se fala. Com isso, a problemática da divagem começa a se
impor de maneira pregnante nos textos de Freud. Ela surge em 1925, em
Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos
continua em O fetichismo25 e aparece formalizada conceitualmente em
1938 no seu último artigo,26 aliás incompleto. A elaboração teórica se
preocupa com o que impede o reconhecimeto psíquico de uma experiência,
impedindo assim que ela seja inscrita no universo da representação.

A tentativa do pensamento freudiano em formular uma distinção conceituai


entre a denegação (Verneinungf e a recusa (Verleugnung), visa precisamente
a dar conta dessa discriminação estrutural entre o que se insere no registro
do inconsciente e o que se encontra clivado, necessitando ser reconhecido
previamente nas suas marcas para que possa receber uma inscrição
primordial num sistema psíquico de representações.

Desta maneira, outra teoria das perversões pode ser delineada, tendo como
eixo estrutural fundamental a recusa da castração. Esta não se inscreve num
sistema psíquico de representações, deixando nele seus sinais estruturantes
para o funcionamento mental. Isto é, apesar de conhecida, a castração não
pode ser reconhecida pelo sujeito. O campo das psicoses também se toma
mais complexo2*'29 quando Freud discrimina definitivamente a
esquizofrenia (parafrenia) e as neuroses narcísicas.

Assim, quando a psicanálise se defronta também com a problemática da


não-inscrição, com a existência de marcas que se encontram noa limitei do
sentido e do representável, a estratégia do deciframento é considerada
Insu-ficiente para o trabalho analítico. Com isso, a estratégia da
construção M coloca como uma operação psicanalítica fundamental,
complementar à anterior, mas de estrutura diversa.

Operando sobre um texto que se supõe existente, a interpretação analítica


realiza um deciframento minucioso. A veracidade do processo
interpretativo é reconhecida pela rememoração progressiva do analisando,
que, também com isso, desdobra outras páginas desse texto a ser decifrado.
Porém, com a construção psicanalítica se empreende, no setting analítico,
um ato de criaçáo que não conta com a possibilidade de rememoração por
parte do analisando.

Com a estratégia da construção, o analista constitui algo até então


inexistente no campo da representação psíquica. A própria intervenção
analítica promove uma inscrição primordial. Para não ser arbitrário, o
analista se baseia na história do sujeito, possibilitada pelo trabalho
interpretativo, e nos elementos configurados pelo contexto transferenciai.
Com isso, o analista pretende realizar o preenchimento das lacunas sobre a
neurose infantil do analisando, 0 que não foi possível pela rememoração.30

Utilizando a estratégia da construção, o processo analítico pretende


estabelecer uma inscrição primordial onde existia um vazio na
representação psíquica, de maneira que as cadeias associativas possam se
constituir a partir da realização dessa inscrição. Evidentemente, este
instrumento metodológico se sustenta num procedimento analítico mais
fundamental, que se realiza na espessura intersubjetiva da análise, na qual
a transferência reduz os efeitos mortíferos da compulsão à repetição. Como
resultante desse complexo manejo psicanalítico se constituem as condições
de possibilidade para a ordenação de um campo de representação psíquica
dessa pulsionalidade — vale dizer, um campo psíquico interpretável que
não existia, exatamente pelo vazio da inscrição primordial.

Freud era muito cauteloso na utilização da estratégia da construção,


exatamente porque se preocupava em não ser arbitrário, para não realizar
uma imposição, sancionada pelo poder conferido pela transferência. Ele só
usava essa estratégia em momentos muito avançados da análise, após ter
realizado um meticuloso trabalho de deciframento validado pela
rememoração. Quando, ainda assim, permaneciam lacunas sobre a
neurose infantil do analisando, a construção era formulada e se procurava
uma validação indireta de sua veracidade, tanto pela experiência
transferenciai, quanto pelos processos assocü^ tivos que emergiam como
efeitos da construção.

A psicanálise contemporânea, representada principalmente por M. Klein e


seus discípulos, alterou profundamente o sentido que esses conceitos
tinham para Freud. A construção tende a se tomar a estratégia dominante
desde o início do trabalho psicanalítico, sendo chamada de interpretação.
Neste modelo de psicanálise o analista supõe-se portador de um código
básico de interpretação —constituído por representações que circunscrevem
certos fantasmas primordiais, descrevendo suas posições e sua dinâmica,
caracterizadas pelo arcaísmo e a precocidade na história do sujeito e
situadas, portanto, além da possibilidade de validação interpretativa — com
o qual ele realiza um trabalho sistemático de tradução das experiências do
analisando.

Com isso, o espaço permitido para o arbítrio analítico se torna enorme.


Pode-se interrogar sempre a veracidade da interpretação, quando o poder da
transferência é o único canal de sua legitimação. Este modelo de psicanálise
lança uma grande inquietação sobre a especificidade epistemológica da
prática analítica, que se situa nas fronteiras das práticas da sugestão e da
persuasão.
O equívoco teórico do pensamento kleiniano se articula com a problemática
que procuramos delinear neste percurso do discurso freudiano. Por um lado,
M. Klein foi suficientemente arguta para assinalar o alcance da mudança de
tópica e da teoria das pulsões presentes no pensamento freudiano, indicando
desde as páginas inaugurais de A psicanálise de crianças que estava
tratando de experiências da ordem da divagem, que ocupava um lugar
dominante na estrutura psíquica no nível arcaico, e que este lugar seria
ocupado pelas experiências da ordem do recalque num outro nível de
organização mental;31 trouxe, assim, para sua teorização, os novos
instrumentos entreabertos pela segunda tópica e pelo novo dualismo
pulsional. Por outro lado, o manejo destes conceitos se realizou com um
equívoco básico.

Com efeito, quando Freud começa a falar insistentemente da não-inscrição,


M. Klein passa a considerar e a manejar clinicamente o não-inscrito como
se estivesse inscrito, produzindo então um código básico de representações
arcaicas para traduzir o que supõe inscrito. Como consequência, passa a
construir ativamente, com a suposição de que estaria interpretando. A figura
do analista se desloca de sua posição anterior no contexto psicanalítico,
mais reservado, e assume uma postura de grande atividade, transformando-
se num ativista sistemático da tradução. Enfim, M. Klein trabalha com
quase todos os conceitos que emergiram na segunda tópica, mas opera com
eles de forma deslocada, na medida em que pretende trabalhar na segunda
tópica como se ainda estivesse na primeira, sem discriminar inscrição e
não-inscrição.

O percurso realizado pelo pensamento freudiano é fundamental para os


analistas, diante das questões colocadas pela prática da clínica psicanalítica.
Ele estabelece diferentes registros psíquicos e diversas estratégias
metodológicas para considerar estes registros, tomando mais complexo O
Olptço analítico. Assim, o psicanalista tem que lidar com o que está e com
0 que Mo está inscrito, realizando interpretações e construções, sem se
transformar no sugestionador do século XX. Além disso, o analista está
exposto a um manejo mais complexo do eixo transferenciai do processo
analítico, com a demanda para realizar a intrincação da pulsão de morte,
que não se resolve absolutamente com a utilização de uma interpretação
(construção) sistemática. Enfim, o espaço analítico é também um lugar de
estruturação, intrincação pulsional, para que o processo de inscrição de
certas experiências possa se realizar.

Com cada analisando, o psicanalista está exposto a um desafio constante,


que recoloca permanentemente os limites do analisável para a sua própria
subjetividade. Não existe qualquer garantia a priori de que o processo de
inscrição vai ser levado a bom termo com cada analisando. Assim, a
experiência psicanalítica, ao invés de ser resolvida com base num código
interpretativo, questiona permanentemente o próprio analista, porque o
coloca diante dos limites da psicanálise e, sobretudo, da sua própria
análise. O desamparo da figura do analista é enorme nessa posição
solitária em que se encontra, tendo que continuar a sua análise, retomando
novamente, como sujeito, os fios associativos de sua própria história e
empreendendo mais uma vez a genealogia mítica de suas origens.

Assim considerada, a clínica psicanalítica se transforma de uma


experiência tranquila, narcisicamente reconfortante, numa aventura
inquietante, recolocando em movimento as angústias fundamentais do
analista. Mas esta é a única forma de empreender as verdadeiras criações.
Foi assim antigamente com o infante que, no percurso para se transformar
em sujeito e interpretar os enigmas de sua constituição como
singularidade, teve que constituir os mitos de suas origens.

1. S. Freud, “L’inconscient'’ (1915). In Métapsychologie. Op. cit.

2. S. Freud, Idem, p. 77-80.

3. S. Freud, Idem, p. 81.

4. S. Freud, Idem, p. 77-79.

5. S. Freud, Idem, capítulos 3-6.

6. S. Freud, Idem, capítulo 7.

7. S. Freud, Remembering, repeating and working-through (1914), In


The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund
Freud. Volume XII, p.hS5-156. Op. cit.
8. S. Freud, “Au-delà du príncipe de plaisir” (1920). capítulos 4 e 5. In
Essais de psychanafyse. Op. cit.

9. S. Freud, Idem.

10. S. Freud, “Le moi et le ça” (1923), capítulo 5. Idem, p. 262-266.

11. S. Freud, “Au-delà du príncipe de plaisir” (1925), capítulos 1-3.


Idem.

12. S. Freud, "L’inconscient” (1915). In Métapsychoiogie. Op. cit.

13. S. Freud, “Le moi et le ça” (1923). In Essais de psychanafyse. Op.


cit.

14. S. Freud, Idem, capítulos 1 e 2.

15. Sobre isto, ver J. Lacan, Le moi dans la théorie de Freud et dans la
technique de la psychanafyse. Op. cit.

16. S. Freud, “Au-delà du príncipe de plaisir" (1920), capítulo 3, p. 57-


58. In Essais de psychanafyse. Op. cit.

17. S. Freud, Idem, capítulo 4, p. 73-76.

18. Sobre os conceitos de simbolização primária e secundária, ver J.


Laplanche, L' inconscient et le ça. Op. cit.

19. J. Laplanche e L B. Pontalis, Vocabulaire de la psychanafyse, p.


507-509. Op. cit.

20. S. Freud, "Le moi et le ça" (1923), capítulo 4. In Essais de


psychanafyse. Op. cit.

21. S. Freud, “Le probleme économique du masochisme” (1924). In


Névrose, psychose et perversion, p. 287-297. Op. cit.

22. S. Freud, “Les pulsions et leurs destins". In Métapsychoiogie, p.


26-29. Op. cit.
23. S. Freud, Inhibition, symptôme et angoisse (1926). Addenda A. C.,
p. 92-94. Op. cit.

24. S. Freud, "Quelques consequénces psychiques de la différence


anatomique entre les sexes" (1925). In La vie sexuelle. p. 122-132. Op.
cit.

25. S. Freud, “Le fétichisme” (1927). Idem, p. 133-138.

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278. Op. cit.

27. S. Freud, Negation (1925). Idem. Volume XIX, p. 235-239.

28. S. Freud, “Névrose et psychose” (1924). In Névrose, psychose et


perversion., p. 283-286. Op. cit.

29. S. Freud, "La perte de la realité dans la névrose et dans la


psychose” (1924). Idem, p. 299-303.

30. S. Freud, Constructions in anafysis (1937). In The Standard


Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud.
Volume XXIII, p. 257-269. Op. cit.

31. Toda essa obra de M. Klein pode ser examinada nessa perspectiva.
Porém, para um registro fragmentário, ver sobretudo M. Klein, “The
relation between obsessional neurosis and the early stages of the super-
ego”. In The psycho-anafysis of children. Londres, Hogarth Press,
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Table of Contents
1. Agradecimentos
2. Nota introdutória sobre as edições da obra de S. Freud
3. Introdução
1. I
2. II
4. Primeira parte Interpretação, deciframento e sentido
1. Loucura e verdade
1. Psicanálise, verdade e loucura
2. O saber psiquiátrico e a abolição do sujeito na experiência da
loucura
3. O saber psicanalítico e o restabelecimento do sujeito
4. A constituição do espaço intersubjetivo
5. A verdade na realidade psíquica
6. A psicanálise e a demonologia
7. O retorno freudiano à tradição mito-poética
2. A constituição de um saber interpretativo
1. A psicanálise como interpretação
2. O deciframento freudiano
3. As fronteiras do deciframento psicanalítico
3. A fundamentação de um saber interpretativo
1. A inovação estilística do escrito freudiano
2. O fantasmar na intersubjetividade e na metapsicologia
3. O outro, a interpretação e o desejo de saber
5. Segunda parte Estratégias e limites da constituição do campo
psicanalítico
1. A constituição da clínica psicanalítica
1. Da lógica da anatomia à lógica da representação
2. A lógica da representação e a cartografia do universo da
loucura
3. Do corpo biológico ao corpo erógeno
4. A constituição da tópica pelos conceitos de conflito psíquico
e de defesa
5. Da degeneração à defesa e à sexualidade infantil
6. Para além da oposição entre normal e patológico
7. Da estratégia do olhar à estratégia da escuta
2. A constituição do campo transferenciai
1. A interpretação como método racional
2. A transferência como objeto de interpretação
3. Sugestão e transferência
4. A interpretação aqui e agora
5. Para além da interpretação
6. A experiência da loucura na intersubjetividade
3. O narcisismo e os impasses no processo psicanalítico
4. A ausência de inscrição e o transbordamento pulsional
1. O inconsciente e as representações do ato psicanalítico
2. A representação renovada
6. Bibliografia geral

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