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Coordenação Editorial:
Alberto Schprejer
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
(A constituição da psicanãlise ; 2)
Bibliografia.
ISBN 85-85427-02-7
Copidesque:
Composição e Arte:
Fotolitos:
Projeta Estúdio Gráfico Ltda.
Capa:
Victor Burton
A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela
total ou parcial, constitui violação da lei 5.988. *
SUMÁRIO
Virgínia Woolf, Mrs. Dolloway. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 97.
Agradecimentos
Este ensaio corresponde às duas partes finais de minha tese de
doutoramento em filosofia, que foi defendida em julho de 1984 na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e se
intitula “Pensamento freudiano e a constituição do saber psicanalítico”. A
primeira e a segunda partes desta tese foram publicadas sob a forma de livro
em 1989 (J. Birman, Freud e a experiência psicanalítica. A constituição da
psicanálise I. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre, 1989).
Introdução
I
A interpretação psicanalítica é a problemática que pretendemos desenvolver
neste livro. Não queremos apresentar aqui o conceito de interpretação, tal
como apareceu ao longo da história da psicanálise, mas apenas estudar este
conceito no discurso freudiano. Estes limites teórico e histórico se
justificam por uma série de razões.
Antes de mais nada, eles remetem a uma questão da ordem do rigor, pois o
alargamento excessivo do campo histórico e a multiplicação dos discursos
em exame podem transformar a pesquisa num campo conceitualmente
inconsistente e com contornos imprecisos. Além disso, esse limite teórico
ao discurso freudiano se deve ao reconhecimento de que, no período pós-
freu-diano, se constituíram diferentes concepções de interpretação, que nem
sempre se coadunam com o conceito freudiano e até mesmo,
freqüentemente, se opõem a ele.
II
Primeiro, é preciso considerar o momento inaugural de constituição da
psicanálise como saber, para apreender em estado nascente as coordenaâas
teóricas que possibilitaram a produção de um saber da interpretação. Em
Eis aí o percurso teórico deste livro. Nos deslocaremos por essas diferentes
temáticas para indicar a constituição do discurso freudiano como um saber
de interpretação, ao mesmo tempo que analisaremos seus impasses e
impossibilidades, que, em contrapartida, permitem estabelecer com maior
rigor as condições de possibilidade do campo do interpretável em
psicanálise.
Loucura e verdade
A psicanálise rompe com os campos da medicina e da psiquiatria ao
conceder à loucura o estatuto de verdade, considerando-a como portadora
de um sentido. Fica para trás o universo de subumanidade a que ela tinha
sido relegada pela então recente tradição psiquiátrica, que a considerava
basicamente resultante de uma anomalia na estrutura do corpo, sobre a qual
a palavra não possuía qualquer poder revelador.
“... uma análise psicológica escrupulosa destes casos mostra que o estado
emotivo enquanto tal é sempre justificado...” 2 ,
Ou seja, mesmo se o discurso do paciente é aparentemente absurdo, seu
sofrimento mostra de maneira insofismável que sua experiência é
verdadeira. Nesses casos, o afeto, e não o discurso, revela imediatamente a
verdade que o sujeito atribui a si mesmo. Verdade que deve ser remetida a
outra dimensão psíquica da experiência, que ainda não pode ser enunciada
pelo sujeito através da palavra.
“Em algumas de suas outras queixas contra si, ele nos parece igualmente
ter razão, e não faz senão apreender a verdade com mais acuidade que
outras pessoas que não são melancólicas. Quando, na susf autocrítica
exacerbada, ele se descreve como mesquiqho, egoísta, insincero, incapaz de
independência, como um homem em que todos os esforços não tenderíam
senão a ocultar as fraquezas de sua natureza, ele podería bem, segundo
nossa opinião, ter se aproximado bastante do conhecimento de si, e a única
questão que colocaríamos é de saber por que se deve começar por ficar
doente para ler acesso a uma tal verdade. Pois não há dúvida que aquele
que se descobre assim e que exprime diante dos outros uma tal apreciação
sobre si — uma apreciação como aquela que o príncipe Hamlet mantém em
reserva para si mesmo e para todos os outros — é doente, que ele diga
precisamente a verdade ou que ele se mostre mais ou menos injusto
consigo...” ’
Com essa subtração constituinte, o louco passa a ser marcado por uma
minoridade essencial, que o caracteriza negativamente em diversos planos
— complementares e necessariamente articulados entre si — de sua
existência. Ele se apresenta marcado essencialmente por uma minoridade
psicológica, social e ética, que produzirá como contrapartida fundamental a
sua minoridade jurídica.
A figura do louco terá um percurso bem delineado ao longo dos trajetos que
atravessam o espaço social, com áreas de restrição absoluta e com interditos
bem definidos, tanto no plano real quanto no simbólico. Sendo negatividade
essencial, a loucura tem como contrapartida a mutilação de seu personagem
social. Por isso, todos os traços de positividade atribuídos à loucura terão
como efeito e finalidade constituir um corpo para esta negatividade
originária, funcionando como um discurso que a legitime.
Estes postulados não permitem que o louco detenha qualquer sentido de sua
própria experiência. Reduzido a uma negatividade essencial, ele não possui
qualquer saber sobre si mesmo. O psiquiatra é o detentor soberano de toda a
ciência positiva, a única que pode definir a verdade da loucura.
Transformada em doença mental, esta recebe não apenas uma redução
explicativa, mas passa também a ter fora de si o eixo fundamental de
sustentação de sua verdade. O saber explicativo torna-se a via que sustenta
o ato terapêutico sobre a loucura, despossuída de qualquer verdade. Por este
caminho o louco recebe uma verdade que o discurso psiquiátrico se arroga
o direito de possuir.
Com efeito, quando nos deslocamos do plano formal dos enunciados para o
plano das condições de possibilidade desses discursos, podemos ver como o
eixo fundamental da problemática permanece inalterado, pois não se trtÉis-
formam absolutamente nem o locus onde se enuncia a verdade da loucura,
nem tampouco o referencial e o agente enunciador desta verdade. Em
ambas as alternativas, ela continua situada no interior do saber psiquiátrico.
Afirma-se a não-verdade da experiência da loucura através de um
referencial localizado fora do sujeito, e o detentor deste discurso se
transforma no senhor soberano da verdade.
Para que esta reversão possa se estabelecer, basta o analista “esquecer” que
entre sua figura e o discurso teórico da psicanálise existe necessariamente a
sua própria experiência analítica originária, com todo o simbolismo que esta
condensa, apontando para a sua mortalidade e a singularidade de suas
marcas pulsionais. A partir deste “esquecimento” o psicanalista passa a
pautar sua escuta pelo discurso teórico que “aprendeu”, e não pelas fendas
abertas no seu ego pela experiência analítica originária. Com isso, a
singularidade significativa de um destino subjetivo que se apresenta diante
de si é silenciada.
Quando tal posição foi questionada por Anna O., que através de sua
inquietação transferenciai procurava se deslocar desesperadamente do lugar
da não-verdade, Breuer abandonou em debandada o cenário passional.
Com isso, Freud formula enfaticamente que o paciente detém uma verdade
e um saber sobre si mesmo, que se revela através dessa posição de êxtase
amoroso. Esta “falsa associação”2’ revelada pela experiência transferenciai
supõe a existência de uma verdadeira associação. Isto é, existe uma verdade
do sujeito na experiência da loucura e é precisamente ela que deve ser
decifrada no processo analítico, condição sine qua non para a existência de
um saber sobre a loucura.
Por isso, desde os “Estudos sobre a histeria” Freud pôde asseverar de forma
reiterada — não apenas teoricamente mas também clinicamente, através da
análise detalhada de casos — uma formulação que repetirá de diferentes
maneiras ao longo de sua obra: o analisando sempre soube a razão do seu
enlou-quecimento. Não há propriamente novidade para ele no que se diz ao
longo da análise. Freud registra insistentemente que, no final de suas
análises, os pacientes afirmavam que sabiam desde sempre o que fora
formulado, mas que até então não podiam reconhecer, nem falar, o que
sabiam.3*
“Não temendo a minha própria crítica mais que a dos outros, eu não tenho
qualquer razão em silenciar uma semelhança que fará dano, possivelmente,
à nossa teoria da libido na avaliação de muitos leitores. Os ‘raios de Deus*
de Schreber, que se constituem da condensação de raios de Sol, de fibras
nervosas e de espermatozóides, não são senão a representação concreta e
projetada no exterior de investimentos libidinais; e elas emprestam ao seu
delírio uma surpreendente concordância com nossa teoria..." 50
“Fica para o futuro decidir se existe mais delírio na minha teoria que eu
pretendia, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que os outros
estão preparados para acreditar.” 52
A psicanálise e a demonologia
Movimentando-se nesse mesmo sistema de oposições, assinalando
rigorosamente o eixo fundamental que orienta a sua investigação da loucura
e marcando simbolicamente o retorno à tradição ocidental em que a loucura
era representada como proferindo a verdade, Freud lembra nostalgicamente
um período histórico em que o discurso da loucura podia falar a linguagem
dos “espíritos” e não ser silenciado pela redução às positividades
explicativas do discurso psiquiátrico.
“As neuroses da infância nos ensinaram que muitas coisas podem ser nelas
vistas facilmente, a olho nu, que mais tarde são descobertas somente após
uma investigação aprofundada. Nós podemos esperar que o mesmo se
confirmará como verdadeiro a respeito das doenças neuróticas dos séculos
passados, com a condição de estarmos preparados para reconhecer sob
outros nomes, diferentes dos das neuroses atuais. É necessário não ficar
surpreso em encontrar que, enquanto as neuroses do tempo moderno não
psicológico tomam um aspecto hipocondríaco e aparecem disfarçadas
como doença orgânica, as neuroses daqueles tempos passados
desenvolvem-se em ornamentos demonológicos..." 60
A partir deste ponto de sua leitura do pacto que Christoph Haizmann fez
com o demônio, Freud reencontra uma série de formulações que haviam
sido articuladas quando da interpretação das Memórias de Schreber,
estabelecendo, assim, um vínculo fundamental entre os fantasmas e os
conflitos das duas subjetividades em pauta frente à figura paterna e à
angústia de castração. Com isso, os fundamentos do discurso moderno e do
discurso demonológico sobre a loucura se identificam, pois remetem a uma
verdade singular da história dò sujeito na experiência da loucura.
*
Por isso mesmo, Freud dedica uma longa obra à leitura cuidadosa de Gra-
diva, de Jensen. Como Schreber na sua autobiografia, esse autor consegue
não apenas demonstrar certos postulados básicos da teoria psicanalítica,
como também realiza na sua narrativa romanesca uma reprodução perfeita
do que seja um processo psicanalítico.“ Como teria sido isso possível? Qual
a condição de possibilidade dessa inédita façanha? O que teria permitido a
Jensen realizar esta obra sem ter qualquer informação sobre a existência da
psicanálise?
Além disso, desde que nosso herói era uma pessoa capaz de desenvolver um
delírio na base de uma tal estranha preferência, um psiquiatra rigoroso o
caracterizaria logo como um dégénéré e investigaria a hereditariedade que
inexoravelmente o precipitou neste destino. Mas aqui o autor não
acompanha o psiquiatra e por uma boa razão. Ele deseja trazer o herói para
próximo de nós e tornar mais fácil a ‘empatia’. O diagnóstico de dégénéré,
seja ele correto ou errado, antes de mais nada afasta o jovem arqueólogo
para longe de nós, pois nós, leitores, somos pessoas normais e mesmo o
padrão da humanidade. Nem está o autor muito inquieto com as
precondições hereditária e constitucional do estado, mas por outro lado ele
mergulha fundo na disposição psíquica pessoal, a qual pode fazer nascer um
delírio deste tipo.” 66
“Deste modo, o escritor criativo não deve ceder o seu lugar ao psiquiatra,
nem o psiquiatra ao romancista, e o tratamento poético de um tema
psiquiátrico pode ser correto sem qualquer sacrifício de sua beleza. ”72
Com isto, Freud imprime nova inflexão nas suas interrogações iniciais e,
em seus escritos, dá às relações entre psicanálise e literatura o perfil
definitivo. Esta inflexão permite assinalar o eixo em que se desdobra a
arqueologia do sujeito. Gradiva permitira demonstrar como as teorias
analíticas sobre o inconsciente eram verídicas, pois poderíam ser
reencontradas por alguém que não possuía qualquer conhecimento sobre
psicanálise. O poeta chegara até elas pela via imaginativa e numa outra
formação discursiva. Isso conferia a esta demonstração um caráter
particular de enorme relevância, já que revelava que a estrutura do
inconsciente era universal.
Agora, cabia considerar a totalidade das formações simbólicas do sujeito
como diferentes ordenações de uma estrutura universal do inconsciente,
sendo estas formações, portanto, equivalentes nos seus valores de
simbolização do sujeito. Este podería se apresentar simbolicamente de
diferentes formas, que no entanto remeteríam a uma mesma estrutura
constitutiva, fundamento comum das variações possíveis. Assim, as obras
poéticas e as outras formas de produção artística — e também os mitos —
teriam a mesma organização simbólica que o sonho, o lapso e o sintoma,
remetendo à mesma estrutura fundamental que delineia o sujeito.
38. Ver o destaque que Lacan confere a essa questão na estrutura deste
texto de Freud. J. Lacan, “Variantes de la cure-type” (1955). In Écrits.
Paris, Seuil, 1966, p. 358.
51. Sobre isso, ver T. Kuhn, A estrutura das revoluções cientificas. São
Paulo, Perspectiva, 1975.
cit.'
'
S. Freud, Totem and Taboo (1913). Idem. Volume XIII, capítulo III.
6
“O título que escolhí para o meu livro indica qual tradição de idéias sobre
o sonho me inclino a seguir. A finalidade a que me propus é mostrar que os
sonhos podem ser interpretados; e qualquer contribuição que eu possa
realizar para a solução dos problemas tratados no último capítulo será
apenas subproduto no curso da realização da minha tarefa. A suposição de
que os sonhos podem ser interpretados coloca-me imediatamente em
oposição à teoria predominante dos sonhos e, de fato, a todas as teorias do
sonho, salvo a de Scherner; pois * interpretar’ um sonho implica atribuir a
ele um 'sentido', isto é, substituí-lo por alguma coisa que se insere na
cadeia de nossos atos mentais, como um elo dotado de validade e
importância igual ao resto. Como vimos, as teorias dos sonhos não
deixaram lugar para qualquer questão de interpretá-los, pois para elas o
sonho não é absolutamente um ato mental, mas um processo somático que
sinaliza sua ocorrência por indicações registradas no aparelho psíquico. A
atitude do senso comum sempre foi completamente diferente. Exerceu o seu
direito irrevogável de se comportar de modo inconsistente; e, embora
admitindo que os sonhos fossem incompreensíveis e absurdos, não ousou
declarar que não tinharp absolutamente significação. Conduzido por algum
obscuro sentimento, parece admitir que, apesar de qualquer coisa, cada
sonho tem um sentido, mas um sentido oculto, que os sonhos são
designados a ocupar o lugar de algum outro processo de pensamento, e que
devemos apenas desfazer corretamente a substituição para atingir este
sentido oculto.”’
O deciframento freudiano
Qual a especificidade desse método de interpretação na perspectiva
freudiana? Seria ele idêntico aos modelos tradicionalmente utilizados pelo
senso comum?
Não vamos sumariar aqui este percurso, tratado de forma rigorosa por
Foucault em sua arqueologia das ciências humanas. Importa ressaltar, no
entanto, que na segunda metade do século XIX só se admitia a existência do
sentido em um campo muito restrito, situado aliás fora do domínio da
ciência. Freud postula a existência do sentido no plano da realidade
psíquica, e não no contexto da realidade material, ocupado pela
racionalidade das ciências naturais. Postula também que no deciframento
psicanalítico a interpretação pretende- apreender um sentido que existe, e
não criar um sentido novo, pela linguagem do intérprete, a partir dos signos
apresentados na configuração a ser interpretada. Laplanche pontua
rigorosamente esta questão quando assinala que a palavra germânica
Deutung tem um significado bastante “realista”, pois circunscreve uma
operação racional que visa a captar o sentido na sua especificidade,
considerando-o inscrito numa singularidade. Não se trata de um sentido a
ser recriado pelo intérprete, segundo um outro código.19
Antes de mais nada, o interesse de Freud por esse tipo de problema surgiu a
partir de certas questões empíricas colocadas pelo trabalho de interpretação
de sonhos. Apesar das especificidades relativas a cada sujeito, existiam nos
sonhos temáticas recorrentes, que transcendiam diferenças subjetivas. Estes
“sonhos típicos” começaram a ser recenseados por Freud,57 que se
defrontou assim com a problemática do símbolo.58 O universo simbólico se
refere a um contexto que transcende a singularidade subjetiva mas incide
sobre cada sujeito de forma particular, pois os símbolos são utilizados de
maneira singular por cada sujeito.
Freud procura delinear os limites teóricos dentro dos quais se pode usar no
trabalho psicanalítico a interpretação simbólica, de forma a tomar
compatível a articulação desta técnica com a metodologia do deciframento,
cujos fundamentos epistemológicos são diferentes. Para ele, a interpretação
simbólica é um procedimento secundário na interpretação psicanalítica e
seu emprego é legítimo como instrumento auxiliar, sempre subsumido à
principalidade metodológica do deciframento que acompanha
meticulosamente o desdobramento associativo.
17. M. Foucault, Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966, p. 56.
! 351.
52. S. Freud, idem. Volume IV. “Preface to the Third Edition". Op. cit., p.
XXVII.
I p. 155-161.
89. Idem.
A fundamentação de um saber
interpretativo
A inovação estilística do escrito freudiano
Estabelecemos a especificidade epistemológica do deciframento psicana-
lítico, destacamos seus eixos fundamentais de sustentação e procuramos
diferenciá-la tanto das formas tradicionais de interpretação quanto de
tentativas de renovação de uma hermenêutica pré-psicanalítica, levadas a
efeito por alguns discípulos de Freud. Agora, podemos reencontrar a
articulação do pensamento freudiano com a tradição poética, considerando
o procedimento das associações livres, uma das condições básicas da
metodologia psicanalítica.
“Eu não fui sempre psicoterapeuta. Como outros neurologistas, fui treinado
para empregar diagnósticos locais e realizar prognósticos pela ele-
troterapia. Ainda me impressiona como estranho que as históricas clínicas
que escrevo se lêem como contos e que lhes falta, como se diz, a impressão
de seriedade científica. Devo me consolar com a reflexão de que a natureza
do tema é evidentemente responsável por isto, e não qualquer preferência
pessoal. O fato é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam a
lugar nenhum no estudo da histeria, enquanto uma descrição detalhada dos
processos mentais como nós estamos acostumados a encontrar nos
trabalhos dos romancistas permite-me, com o uso de pequeno número de
fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma forma de compreensão do
curso daquela afecção. Histórias de caso desta espécie devem ser julgadas
como as psiquiátricas; elas têm, entretanto, uma vantagem sobre estas
últimas: uma conexão íntima entre a história dos sofrimentos do paciente e
os sintomas de sua doença, uma relação que procuramos em vão nas
biografias de outras psicoses.””
O objeto específico da investigação psicanalítica seria responsável pelo
estilo particular do escrito clínico, conduzindo à produção de uma escritura
similar à de um romance. A “história dos sofrimentos do paciente” toma-se
fundamental para compreender os sintomas da enfermidade. Este eixo
teórico sustenta tanto a transformação do objeto e da metodologia da
investigação quanto a consequente remodelagem do escrito clínico.
“Nas férias de verão de 189..., fiz uma excursão ao Hohe Tauem para que
pudesse esquecer por um tempo a medicina e principalmente as neuroses.
Eu tinha quase conseguido, quando um dia me desviei da estrada principal
para escalar uma montanha um pouco distante, re-nomada por seu
panorama e por sua cabana bem cuidada. Tinha alcançado o topo após uma
fatigante escalada e, sentindo-me revigorado e descansado, estava
mergulhado na contemplação de uma vista magnífica. Estava tão perdido
em pensamentos que não relacionei imediatamente comigo quando estas
palavras alcançaram os meus ouvidos: «Você é médico, senhor?’”'2
Como podería ser diferente? Para se construir, o novo campo do saber teve
que romper com os saberes científicos existentes sobre a loucura e com as
formas tradicionais de interpretação, inventando uma metodologia original
de deciframento. O mesmo movimento levaria também a uma renovação
estilística do escrito clínico. Assim, se a ruptura epistemológica com a
medicina, a psiquiatria e a psicologia conduziu inicialmente à busca de uma
tradição não psiquiátrica para circunscrever a experiência da loucura como
verdade singular da história do sujeito, como se formulava em outros
períodos históricos, a ruptura metodológica com as tradições médico-
psiquiátrica e hermenêutica implicou também uma reinvenção estilística.
Portanto, a constituição (nos planos epistemológico e metodológico) de
uma nova forma de clínica implicou necessariamente um estilo original
para o escrito clínico da psicanálise.
Nos anos 20, numa das primeiras obras de fôlego sobre a epistemologia da
psicanálise, Politzer assinalou que no final do século XIX as tradições
literária e teatral eram as únicas que tinham algo sólido a legar sobre esta
problemática, diante do silêncio, mantido pelas ciências dominantes, sobre
a psique e a verdade da experiência “dramática” da subjetividade.2536 O
mesmo argumento de Politzer foi retomado por Althusser, que, em outros
termos, também assinalou a inexistência, na tradição científica, de
precursores junto aos quais Freud pudesse encontrar fontes para a
constituição de um saber sobre o sujeito.27 Na ausência de qualquer saber
teórico sobre esta problemática, só restou a Freud a possibilidade de se
debruçar sobre o rico manancial legado pelas tradições da literatura e da
dramaturgia.
O fantasmar na intersubjetividade e na
metapsicologia
Esta crítica sobre o caráter não científico do saber psicanalítico atravessa
todo o século e chega até a atualidade. Ela se baseia numa concepção
abstrata do que seja o saber científico, sustentada no modelo de
cientificidade das ciências naturais — sobretudo da física —, sem
considerar a especificidade epistemológica de cada campo científico, na
singularidade da constituição de seu objeto e de sua metodologia da
investigação.
“... Eu espero que você queira também dar ouvidos a algumas questões
metapsicológicas (...) Eu não aspirei, nos meus anos de juventude, senão
aos conhecimentos filosóficos e estou agora no ponto de realizar este voto,
passando da medicina à psicologia. Foi apesar de mim que me tomei
terapeuta...”37
Tendo em vista a posição crítica de Freud frente à filosofia de seu tempo —
exceção feita às filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche — esta
formulação pode parecer estranha, mesmo quando se leva em conta a
correspondência revelada pela primeira vez por Ernest Jones, que traz
formulações idênticas.3’ Para Freud, a filosofia, como a religião, seria uma
forma de Weltanschauung, isto é, uma forma ativa de promoção cultural da
ilusão, se bem que a filosofia realizaria esta promoção ilusória de maneira
bastante diferente da religião. ”
Para uma nova forma de saber sobre a psique, que destaca a problemática
do sujeito e pretende ir além da consciência, se impõe necessariamente um
novo nome: metapsicologia. Como vimos, a constituição do campo
psicanalítico teve que realizar uma ruptura epistemológica que acabou por
impor também rupturas metodológica e estilística com diversas formas de
saberes. Esta série articulada de rupturas foi coroada com uma denominação
original para o novo campo do saber.
Teria sido esta a razão por que Freud nunca quis publicar o Projeto de uma
psicologia científica? Apesar de conter múltiplas indicações e intuições
geniais — que depois vão originar outros desenvolvimentos na teoria
psicanalítica — esta obra se caracteriza por uma sistemática frágil,
exatamente porque pretende transformar a ordem do fantasma na ordem da
realidade neurofi-siológica. A linguagem neurofisiológica deste texto
confere um tom absurdo à construção freudiana, que, como a construção
delirante, não perde entretanto o seu núcleo de verdade, desde que a
interpretemos considerando a linguagem do fantasma que Freud desenvolve
logo em seguida.
26. Apesar da grande riqueza revelada por sua análise e das múltiplas
indicações que sua obra oferece para posteriores investigações,
principalmcntc no que se refere ao contraponto da psicanálise com a
psicologia clássica e com a psicologia do início do século XX, a
perspectiva teórica de Politzer apresenta um obstáculo fundamental
para apreender os desdobramentos básicos do saber psicanalítico. Com
efeito, se Politzer sublinhou rigorosamente a inovação epistemológica
introduzida pela psicanálise na tradição da psicologia clássica, pela
formulação da problemática do sujeito e circunscrevendo como objeto
teórico a “vida dramática do homem”, não restringindo a sua
investigação à análise das funções psíquicas que abstraem a existência
do sujeito no “drama” de sua experiência e o transforma num sujeito
“abstrato", a limitação da sua análise está em restringir o sujeito à
primeira pessoa e não sublinhar outras possibilidades para a sua
existência no plano fantasmático, onde o sujeito podería ocupar
também outras posições, na condição de segunda e terceira pessoas.
Mas os homens estão sempre insatisfeitos, não podem esperar. Eles querem
sempre alguma coisa pronta e acabada..
“Eu tentei expor, neste volume, a interpretação dos sonhos; e, fazendo isso,
não fui além do campo de interesse da neuropatologia. Pois a investigação
psicológica mostra que o sonho é o primeiro termo de uma série de
fenômenos psíquicos anormais. Os termos posteriores, como as fobias
histéricas, as obsessões e os delírios, devem interessar os médicos por
motivos práticos. Como será visto em seguida, os sonhos não podem
pretender ter esta importância prática; mas o seu valor teórico como
paradigma é proporcionalmente maior. Aquele que não consegue explicar a
origem das imagens do sonho pode esperar em vão para compreender as
fobias, as obsessões e os delírios, ou para exercer sobre eles uma influência
terapêutica.”2
Essa articulação fundamental entre a estrutura dos sonhos e as diversas
estruturas psicopatológicas indica a existência de um espaço psíquico
originário, para onde deve convergir a genealogia das diversas estruturas
mentais. Derivações do mesmo campo psíquico de possibilidade, elas
apresentam uma equivalência estrutural.
Além do texto acima, que abre a obra sobre os sonhos, Freud retoma sua
formulação no capítulo metodológico de A interpretação dos sonhos, antes
de efetuar o modelar deciframento do sonho da “Injeção de Irma”. Afirma
que estava apenas transpondo, para a análise sistemática dos sonhos, a
metodologia que vinha usando no campo das psiconeuroses.3 Assim, a
construção metapsicológica originária do saber psicanalítico se sustentou
fundamentalmente no campo da experiência da loucura, que foi inserida no
espaço analítico em constituição, antes de se transformar num paradigma
para o modelo do sonho, i
Para isso Freud teve que incluir a investigação do sintoma histérico num I'
contexto intersubjetivo, enfrentando a evidente debilidade inicial desse eixo
! metodológico. Este caminho o leva a reconhecer a relevância da pesquisa
de Bemheim. Porém, atribuindo importância teórica fundamental ao
desvenda-mento da arquitetura do sintoma histérico, Freud critica Bemheim
por reduzir toda a questão da histeria à sugestionabilidade. A sugestão não
seria uma realidade primeira e demandaria uma interpretação teórica:
“Mas, o que é de fato esta sugestão que está na base de todo o hipnotismo,
da qual todos estes resultados são possíveis? Levantando esta questão nós
tocamos num dos lados fracos da teoria de Nancy. Nos recordamos
involuntariamente da questão de onde São Cristóvão está sustentado quando
encontramos que o trabalho exaustivo de Bernheim, que culmina na
afirmação 'Tout est dans la sugestion’, em nenhum lugar procura se
perguntar sobre a natureza da sugestão, isto é, sobre a definição do
conceito...”1’
O questionamento à formulação de Bernheim é bastante denso, pois Freud
não indaga sobre o fundamento da sugestionabilidade para justificar o
descarte desse conceito. Pretende ir além dele, interrogando-se sobre o que
efetivamente o sustentava. Desta inquirição teórico-clínica se constituirá
posteriormente, no percurso freudiano, o conceito de transferência, através
do qual o discurso psicanalítico vai conseguir articular a exigência
charcotiana de reconhecimento da singularidade do sintoma histérico e a
racionalidade sugestiva de Bemheim. Para isto, será necessário transcender
os contextos teóricos que deram origem a estas exigências e constituir uma
outra metodologia de leitura do sintoma, de modo a inseri-lo
definitivamente no registro do sentido.
Esse eixo teórico estará sempre presente no tratamento dado por Freud à
oposição entre grupos de neurose, que nunca é pensada como um sistema
metafísico de essências. O pensamento freudiano procura estabelecer
relações muito importantes entre as estruturas atuais e as representadas.
Consideradas de forma pura, as neuroses atuais e as psiconeuroses são
construções teóricas, tipos ideais. Mesmo assim, em certas situações
limites, podem existir empi-ricamente. Isso, no entanto, não é comum, já
que na prática clínica as neuroses são principalmente mistas, apresentando
características das neuroses atuais e das psiconeuroses.
Com isso, Freud pôde formular pela primeira vez o conceito de sexualidade
infantil, indicando como esta sempre esteve presente na estruturação do
sujeito. Além disso, pôde caracterizá-la como perversidade polimorfa,
constituída primariamente por uma diversidade de pulsões parciais que se
ordenam em zonas erógenas. A sexualidade se constituiría no tempo
contado a partir das origens da história do sujeito, que cria um eixo voltado
para a busca do prazer e o evitamento do desprazer. Só depois ela teria,
além disso, uma funcionalidade ligada à reprodução, sem perder, contudo, a
sua característica fundamental de pretender o prazer.81
A loucura se transforma numa obra do sentido. Algo que, à sua maneira, diz
uma verdade que não pode ser dita de outra forma. O louco nem sabe que
esta verdade está sendo formulada na materialidade dos seus gestos, dos
sintomas, dos delírios e na descontinuidade da consciência. Após
reconhecer a textura verídica destas materialidades, cabe à clínica
psicanalítica fornecer a possibilidade para que estas expressões sejam
incorporadas ao plano da palavra, recuperando assim o seu sentido
perdido/esquecido. Enfim, cabe oferecer ao louco as mesmas possibilidades
com que conta qualquer humano, inserindo-o no circuito do falar e do
escutar e tornando-o apto a experimentar os mesmos efeitos que a palavra
impõe ao sujeito que pretende falar e escutar o que diz.
13. S. Freud, Report of my studies in Paris and Berlim (1886). Op. cit.,
p. 75.
Nesse percurso teórico, mudam os termos através dos quais Freud considera
a resistência ao processo analítico e, com isso, a natureza dos problemas
que o analista deve enfrentar. Mas permanece a mesma preocupação,
centrada no que resiste, no que se opõe à mudança. Ora, apesar das várias
conjunturas vividas pelo pensamento de Freud, a identidade de sua
problemática teórica revela que sua reflexão lançava o seu aguilhão. O que
se opõe ao trabalho analítico, isto é, à emergência do processo de
simbolização, constitui a grande fonte de desafios para o psicanalista. É ali
que ele é chamado a desdobrar sua criatividade teórica e sua intuição
clínica.
“Para nossa grande surpresa, descobrimos, com efeito, que cada um dos
sintomas histéricos desaparece imediatamente e sem retorno quando se
consegue colocar em plena luz a lembraça do incidente desencadeante, ao
despertar o afeto ligado a este último e quando, em seguida, o enfermo
descreve o que lhe aconteceu de forma muito detalhada e dando à sua
emoção uma expressão verbal. Uma lembrança destituída de afeto é quase
sempre ineficaz. É necessário que o processo psíquico original se repita
com tanta intensidade quanto possível; ele deve ser recolocado in statum
nascendi e, então, verbalmente traduzido.”2
"Quando o enfermo teme descobrir que ele está transferindo para a figura
do médico as idéias penosas que surgem do conteúdo da análise. É um fato
frequente e em verdade regular em algumas análises. A transferência ao
médico se realiza por uma false connection..."23
“A boa vontade com a qual Dora colocou à minha disposição uma parte do
material patógeno durante o tratamento me fez negligenciar a precaução de
prestar atenção aos primeiros sinais da transferência que ela preparava por
meio de uma outra parte deste mesmo material, parte que me permaneceu
desconhecida.”32
Antes de responder, vamos nos fixar um pouco mais no que, nesse mo-]
mento, o pensamento freudiano considerava ser a transferência. Ela era
umai cópia de tendências e de fantasmas que o desenvolvimento da análise
deveria] trazer à consciência. Como estes fantasmas não eram
rememorados, e sinj| realizados, a figura do analista passava a substituir
uma personagem do cen nário interno do analisando. Assim, geralmente, a
transferência era uma ree-1 dição estereotipada de estados psíquicos já
constituídos, o que não impedia que ela pudesse se apresentar com
alterações em relação ao modelo anterior da experiência, como se fosse
uma edição corrigida e não uma reimpressão.4] Enfim, nesse momento do
pensamento freudiano sobre a transferência, aa únicas mudanças diziam
respeito à extensão do processo a toda estrutura neurótica e à designação de
um novo lugar para o fenômeno na psicanálise. Em relação ao momento
teórico anterior, ainda não existia nenhuma inovaçãc quanto ao que era
transferido.
Tendo sido recuperadas por acaso, as notas tomadas por Freud durante as
seções com o “Homem dos ratos” fortalecem a interpretação que estamos
realizando.50 O leitor se sente desnorteado, confuso, diante das anotações
de Freud, que documentam minuciosamente o curso do processo analítico.
Não há um saber racional orientando as interpretações. Freud se situa
fundamentalmente no eixo do processo transferenciai para enunciar, com
insistência, o deciframento do sujeito. Na sua singularidade, a transferência
se toma estranha ao leitor, que, não estando engajado no processo
intersubjetivo, ocupa o lugar de “terceiro excluído”. O leitor só pôde sentir-
se incluído num diálogo com Freud e seu analisando depois que as
anotações foram transformadas num texto que usa mediações teóricas para
tratar desse processo originariamente intersubjetivo.
Sugestão e transferência
Transformar a forma de funcionamento mental das neuroses exige que
analisando e analista façam um esforço de simbolização para encontrar —'
tanto nos silêncios do discurso consciente quanto nas representações que sé
atualizam através da transferência — as representações recalcadas. Através
daí transferência é que o analisando exerce poder sobre o terapeuta. Em
contrapartida, coloca-se também a questão da possível sugestão do analista,
já que seu poder também poderia realizar-se por este canal. Para tal, a
simbolização exige uma teoria psicanalítica da sugestão, isto é, uma
formulação sobre 9 transferência que permita interpretar a sugestão.
Nos dez anos seguintes, essa foi uma preocupação constante de Freud,
levada adiante, no entanto, de forma indireta e assistemática, como um
tópico no campo de outras temáticas. Também nesse período ele
sistematizou a teoria da transferência, o que é um indicador de como a sua
elaboração sobre a temática da sugestão foi o contraponto necessário desta.
Debelar o mito antiliberal da sugestão, do exercício de poder sobre a
vontade do outro, foi a condição de possibilidade para consolidar uma
teoria científica da transferência e do processo psicanalítico.
“A pintura, diz ele, trabalha per via di porre pois ela aplica uma substância
— parcelas de cor — onde nada existia antes, sobre uma tela branca; a
escultura, contudo, procede per via de levare retirando da pedra bruta tudo
o que recobre a superfície da estátua que ela contém. A técnica por sugestão
procede do mesmo modo per via di porre, sem se preocupar com a origem,
com a força e com a significação dos sintomas mórbidos; no lugar disto, ela
aplica alguma coisa, a sugestão, e espera que este procedimento seja
bastante poderoso para entravar as manifestações patógenas. O método
analítico não procura nem acrescentar nem introduzir um elemento novo,
mas, pelo contrário, retirar, extirpar alguma coisa; para fazer isto, ele se
preocupa com a gênese dos sintomas mórbidos e com as ligações das idéias
patógenas que ela quer suprimir. Utilizando esse modo de investigação a
terapia analítica aumentou notavelmente nossos conhecimentos.”36
A sugestão não deve ser criticada apenas por sua pouca eficácia —já que
não obtém a cura definitiva e não evita recaídas frequentes — mas,
sobretudo, porque impede o conhecimento do jogo das forças psíquicas que
estruturam a neurose e do lugar da resistência, em que se revela a defesa do
paciente no > quadro do processo terapêutico.37 Em verdade, o que está em
questão é a própria necessidade de analisar a sugestionabilidade, fenômeno
que toma o paciente apto a receber a interpretação do terapeuta, mas que
também pode bloquear todo o processo terapêutico. Em tomo disso, Freud
busca estabelecer a fronteira entre os campos da psicanálise e da sugestão,
além de dar outro tratamento à transferência na análise. Se ela é inevitável,
é preciso manejá-la analiticamente, ou seja, captar sua significação. Se a
utiliza ingenuamente, o analista fica sob seu poder, que vai no caminho da
resistência.
“Um médico que busca, na medida do possível, não dever seus resultados à
influência da sugestão (isto é, à transferência), fará bem em renunciar
também à parcela da influência sugestiva de que ele podería talvez
dispor.”60
“Para que o médico seja capaz de se servir assim do seu próprio in- .
consciente como de um instrumento, é necessário que se submeta, numa
larga medida, a uma certa condição psicológica. Ele não deve tolerar nele
mesmo nenhuma resistência susceptível de impedir as percepções de seu
inconsciente de chegar à sua consciência, senão ele introduziría na análise
uma nova espécie de seleção e de deformação, bem mais nefasta que aquela
provocada por um esforço de sua atenção consciente. Não basta, para isto,
que o médico seja mais ou menos normal. Ele deve ser submetido a uma
purificação psicanalítica, ter tomado consciência dos seus próprios
complexos que arriscariam perturbar sua compreensão dos propósitos do
paciente. Está fora de dúvida que estes defeitos bastam para desqualificar
um analista; no médico, todo recalcamento não liquidado constitui o que
Stekel qualificou justamente de ‘ponto cego’ nas suas faculdades de
percepção analítica ”70
O tom deste texto é ainda mais incisivo e exigente, pois se postula uma|
prescrição que não admite exceção. Não basta ser mais ou menos normal, w
necessário uma análise propriamente dita para que o psicanalista possa lidas
com suas pulsões e receber na sua subjetividade a transferência dos
pacientes!
Mas não esqueçamos que são justamente estes fenômenos que nos
fornecem o serviço mais precioso, nos permitindo iluminar, tornando
manifestos e imediatos os impulsos eróticos secretos e esquecidos dos
pacientes. Enfim, recordamos que nada pode ser morto in absentia ou in
effigie.'**
”... se, para estabelecer uma diferenciação, nós examinamos este segundo
tipo, podemos dizer que o paciente não tem nenhuma lembrança do que ele
esqueceu e recalcou, mas atua. Não é sob forma de fembrança que o fato
esquecido reaparece, mas sob a forma de ação; ele repete, evidentemente,
este ato, sem saber que se trata de uma repetição.”100
Num escrito sugestivo para esta discussão, em que tematiza a questão do|
amor de transferência,"2 Freud destaca exatamente a necessidade de radi-í
calização deste conflito, deixando assim em aberto o embate entre a força
das pulsões e o sentido, sem o qual se camufla a dramaticidade necessária
da situação analítica. Configurada a situação de amor transferenciai, sua
solução não está nem na suspensão da análise, nem numa lição de moral
revestida de interpretações racionalizadoras, nem tampouco na atuação
amorosa dos parceiros. Com efeito, em todas estas eventualidades o analista
estaria apenas escapulindo da dramaticidade colocada pela situação
psicanalítica, que sé esboça entre o eixo do sentido e a compulsão à
repetição. O trabalho do analista consiste precisamente em se entregar a
essa experiência intersubjetiva, para poder abrir um lugar em que sua
simbolização seja possível.
151.
152.
71. M. Foucault, Les mots et les choses, capítulos III c VII. Op. cit.
96. S. Freud, Totem and Taboo (1913). Idem. Volume XIII, capítulo 2.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud propõe pela primeira
vez a relação entre as pulsões sexuais e as “necessidades”, estabelecendo
que as primeiras derivavam das segundas mediante uma operação que era
pensada através da noção de apoio.' As pulsões sexuais se constituiríam
num momento mítico da história do sujeito, emergindo das “necessidades”
e estruturando o funcionamento fantasmático. Em 1910, no estudo sobre os
distúrbios psicogênicos da visão,2esta noção aparece articulada com mais
rigor, e as “necessidades” são denominadas pulsões de autoconservação.
Nesse artigo, formula-se também o conceito de pulsões do ego, para definir
as forças do ego que, no conflito psíquico, se contrapõem à sexualidade. O
conflito se estabelecería entre as pulsões sexuais e as do ego, ambas dotadas
energias distintas e inseridas de modo diferente no plano tópico. Assim,
tentando sistematizar num modelo metapsicológico a experiência de dez
anos de prática psicanalí-tica, Freud propôs que o conflito mental estava
baseado em pulsões de diferentes tipos e localizadas em diferentes espaços
psíquicos.
Uma leitura acurada dos textos freudianos, sobretudo dos trabalhos clínicos,
revelaria que nem sempre aparece a exigência de reduzir o conflito mental a
diferentes formas de pulsão.2' Nem sempre as pulsões do ego são as for-ças
recalcantes. Porém, com a sistematização metapsicológica da década de
1910 esta exigência canônica foi definida, o que entra em contradição com
a emergência do narcisismo, até mesmo porque o essencial na trama
conflitiva passa a ser jogado na balança energética entre a libido do ego e a
libido do objeto, e não entre pulsões de naturezas diferentes. Em função
disso tudo, a primeira teoria pulsional de Freud vive um impasse, choca-se
com contradições insolúveis, que acabam por levá-lo a remanejá-la.
Entra na fase final a lenta ruptura que faz desmoronar a idéia de que o
analista detém o domínio racional do código interpretativo. Se a psicanálise
pretende continuar a ser um método de acesso à verdade da loucura,
essencialmente diferente das práticas sugestivo-persuasivas e do tratamento
moral, preocupada em apreender a significação que estrutura a experiência
da loucura, é necessário que o psicanalista estabeleça, com a loucura, uma
relação radicalmente diferente daquela que é estabelecida pela psiquiatria.
Por isso mesmo, também neste contexto se avolumam nos escritos
freudianos as imagens da loucura como oráculo da verdade, Schreber se
constitui como um herói freudiano face à surdez psiquiátrica ao discurso
verdadeiro da loucura e se estabelece uma circularidade fundamental entre
o discurso psicanalítico e o discurso delirante de Schreber.
p. 100. ’
10. S. Freud, "Pour introduire le narcisismo” (1914). In La vie
sexuelle, p. 84. Op. cit. O grifo é nosso.
32. J. Strachcy, Appendix B, The great reservoir of libido. The ego and
the id. In The Standard Edition of the completepsychological works of
SigmundFreud. Volume XIX, p. 63-66. Op. cit.
A ausência de inscrição e o
transbordamento pulsional
Retomemos as questões teóricas, metodológicas e clínicas colocadas por
essas novas coordenadas do processo psicanalítico, nas quais se destaca a
impossibilidade do analista se apresentar como portador de um código
racional de interpretações. Em vez disso, ele tem que ser, ao mesmo tempo,
portador de uma singularidade e suporte de um processo essencialmente
intersubje-tivo. Essa concepção tem impacto sobre a metapsicologia
freudiana, impondo mudanças à teoria das pulsões e a correlata passagem
para a segunda tópica. Assim, o cenário da clínica psicanalítica se perfila
também com transformações fundamentais no campo de suas positividades.
A representação renovada
A oposição entre Eros e Tanatos será a formalização final dada por Freud a
essa problemática. Transferência e repetição se defrontam em todos os
pontos do espaço analítico, cuja condição fundamental de possibilidade é o
reconhecimento — com uma tenacidade que não fora formulada antes — do
que impede o processo analítico, do que se opõe a ele. O reconhecimento da
intensidade e da extensão dos fenômenos repetitivos no processo analítico
começa a inquietar Freud, chegando a colocar em questão o seu modelo de
psicanálise.
Desta maneira, outra teoria das perversões pode ser delineada, tendo como
eixo estrutural fundamental a recusa da castração. Esta não se inscreve num
sistema psíquico de representações, deixando nele seus sinais estruturantes
para o funcionamento mental. Isto é, apesar de conhecida, a castração não
pode ser reconhecida pelo sujeito. O campo das psicoses também se toma
mais complexo2*'29 quando Freud discrimina definitivamente a
esquizofrenia (parafrenia) e as neuroses narcísicas.
9. S. Freud, Idem.
15. Sobre isto, ver J. Lacan, Le moi dans la théorie de Freud et dans la
technique de la psychanafyse. Op. cit.
31. Toda essa obra de M. Klein pode ser examinada nessa perspectiva.
Porém, para um registro fragmentário, ver sobretudo M. Klein, “The
relation between obsessional neurosis and the early stages of the super-
ego”. In The psycho-anafysis of children. Londres, Hogarth Press,
1975, p. 149-175.
Bibliografia geral
Abraham, K. Les diffírences psychosexuelles entre 1'hystérie et la
démenceprécoce (1908), In Ríve et mythe. Oeuvres completes. Volume I.
Paris, Payot, 1973.
. Préliminaires á l’ investigation et au traitement psychanalytique de la
folie maniaco-dépressive et des états voisins (1912). In Rêve et Mythe.
Oeuvres completes. Volume 1. Op. cit.
Falret, J.O. Des maladies mentales et des asiles d'aliénês. Paris, J.B.
Baillière, 1864.
. Les mots et les choses. Une archéologie des Sciences humaines. Paris,
Gallimard,
1966.
. “Analyse d’une phobie chez un petit garçon de 5 ans (Le petit Hans)"
(1909). In Cinq psychanalyses. Op. cit.
. The theme of the three caskets (1913). In The Standard Edition of the
complete psychological works of Sigmund Freud. Volume XII. Op. cit.
1968.
1969.
Klein, M. “The relation betwcen obscssional neurosis and the early stages
of the auper-ego”.
Strachey, J. Appendix B, The great reservoir of libido. The ego and the id.
In The Standard Edition ofthe completepsychological works of
SigmundFreud. Volume XIX, p. 6*66. Op. cit.
1970.