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Deleuze e

a filosofia
Silvio Gallo
Silvio Gallo
Tendo sua formação universitária em nível
de graduação realizada na área de Filosofia
na Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (Puccamp-SP) e seu mestrado e
doutorado na Faculdade de Educação da
Unicamp, na área de Filosofia da Educação,
Silvio Gallo dedicou-se, em sua trajetória
acadêmica, a estudar a filosofia francesa
contemporânea, sobretudo intelectuais
como Jean-Paul Sartre, Michel Foucault,
Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre
em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria
visível ou vivida.
Gilles Deleuze, A literatura e a vida, in: Crítica e clínica.

O que é a imanência? Uma vida... Ninguém melhor que


Dickens narrou o que é uma vida, ao considerar o artigo
indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um
mal sujeito, desprezado por todos, está para morrer e eis
que aqueles que cuidam dele expressam uma espécie de
solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida
do moribundo [...] Uma vida não contém nada mais do que
virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos,
singularidades.
Gilles Deleuze, L’Immanence: une vie... in: Philosophie, n. 47,
tradução de Tomaz Tadeu.
Gilles Deleuze: uma vida
A publicação do segundo fragmento que lemos foi
feita por Deleuze, na revista Philosophie, publicada
pela Éditions de Minuts, uma das editoras com a
qual colaborou sobre a imanência em 1º de
setembro de 1995, morrendo em novembro daquele
mesmo ano.

O acontecimento Gilles Deleuze veio ao mundo em


Paris, 70 anos antes, mais precisamente no dia 18 de
janeiro de 1925, filho mais moço de um engenheiro.

Baseado na sua percepção da imanência e da vida,


podemos nos perguntar: que virtualidades, que
singularidades estariam presentes nessa vida?
Gilles Deleuze: uma vida
Deleuze fez seus estudos no Liceu Carnot, em Paris,
e após sua conclusão, matriculou-se na Sorbonne,
para estudar filosofia, ingressando na instituição em
1944.

Na Sorbonne, assistiu aos cursos de professores


renomados, como Jean Hippolyte, Ferdinand Alquié
e Maurice de Grandillac.

Na Sorbonne, obtém em 1947 o diploma de estudos


avançados sobre David Hume, sob orientação de
Jean Hippolyte.

Em 1968, quando já era um professor experiente e


reconhecido, apresenta sua tese na Sorbonne,
sendo a principal, intitulada Diferença e repetição,
sob orientação de Maurice de Grandillac, e a
complementar, Spinoza, orientada por Ferdinand
Alquié.
Gilles Deleuze: uma vida
Nas entrevistas para o documentário O
Abecedário de Gilles Deleuze, produzido por
Pierre-André Boutang entre 1988 e 1989 e exibido
na TV após sua morte, o filósofo narra, bem-
humorado, o episódio de sua defesa de tese na
Sorbonne.
Foi a primeira sessão de defesa de tese após as
manifestações de maio de 1968 e estavam todos
muito assustados, a banca mais preocupada em
observar se não havia manifestantes por perto,
que poderiam violentamente interromper a
sessão, do que interessada na própria
apresentação do candidato.

De toda forma, Deleuze foi, evidentemente,


aprovado e ambas as teses seriam publicadas em
seguida como livros, ainda nesse ano de 1968.
Gilles Deleuze: uma vida
Em 1969, foi nomeado, por indicação de Michel
Foucault, - responsável pelo Departamento de
Filosofia - professor da recém-criada Universidade
de Paris VIII - Vincennes, onde permaneceria até
sua aposentadoria, em 1987.

A experiência de Vincennes foi sui generis: fruto da


reforma universitária empreendida pelo governo
francês após as agitações do “maio de 1968”, na
qual as universidades passam a ser regidas pelos
princípios da autonomia, pluridisciplinaridade e
participação dos usuários, Vincennes é o primeiro
“Centro Experimental” criado, justamente com o
objetivo de promover novas perspectivas de
produção e esimps acadêmicos.
Gilles Deleuze: uma vida
“Em Vincennes, a situação era diferente. Um professor,
digamos, de filosofia, fala de um público que inclui, com
diferentes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos
(de formação clássica ou da pop music), psicólogos,
historiadores, etc. Ora, em vez de ‘colocar entre
parênteses’ essas outras disciplinas para chegar mais
facilmente àquela que pretendemos lhes ensinar, os
ouvintes, ao contrário, esperam da Filosofia, por exemplo,
alguma coia que lhes servirá pessoalmente ou que tenha
alguma intersecção com suas atividades. [...]
As aulas foram uma parte da minha vida, e eu as dei com
paixão. Não são de modo algum como as conferências,
porque implicam uma longa duração, e um público
relativamente constante, às vezes durante vários anos. É
como um laboratório de pesquisas: dá-se um curso sobre
aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. [...] Um
curso é uma espécie de Spreechgesang [canto falado],
mais próximo da música que do teatro. Nada se opõe, em
princípio, a que um curso seja um pouco até como um
concerto de rock.”
Gilles Deleuze: uma vida
Os encontros foram virtualidades importantes na
imanência Deleuze, que geraram agenciamentos e
intercessores. No plano da “vida privada”, podemos
citar seu encontro com Denise Paule Grandjouan
(conhecida depois por Fanny Deleuze), com quem se
casou em 1956 e com quem teve dois filhos, sendo
sua companheira de militância e estando junto dele
quando participou das atividades do Grupo de
Informação sobre as Prisões (GIP), criado por Michel
Foucault.

No plano da divulgação de sua obra, foi importante o


encontro com a jornalista Claire Parnet, com quem
escreveu Diálogos em 1977, considerada uma boa
introdução ao seu pensamento, bem como uma série
de entrevistas quando ele, já bastante debilitado pelo
câncer de pulmão. Tais entrevistas têm como fio
condutor as letras do alfabeto, motivo pelo qual
foram chamadas de “abecedário” de Deleuze.
Gilles Deleuze: uma vida
No plano filosófico, dois encontros foram
determinantes. Em 1962, encontrou-se com Michel
Foucault, cuja amizade nasceu pelo interesse mútuo
por Nietzsche, estendendo-se pelas opções políticas
de esquerda e pela militância no Grupo de Informação
sobre as Prisões (GIP). Enquanto Foucault diria que
“um dia, talvez, o século será deleuziano”, Deleuze
lançaria um belo livro dedicado ao amigo.

O segundo encontro aconteceria em 1969, e pode ser


considerado seu encontro filosófico mais importante:
o com o psicanalista Félix Guattari. Com ele, após ter
realizado sozinho uma série de estudos em História da
Filosofia (sobre Hume, Espinosa, Nietzsche, Kant,
Bergson), lançava-se à aventura num pensamento sem
redes de segurança ou botes salva-vidas com um
psicanalista que havia abandonado o estruturalismo
de Jacques Lacan e o modelo revolucionário leninista.
Gilles Deleuze: uma vida
Ao se afastar do estruturalismo e do pensamento
de esquerda mais ortodoxo, Félix Guattari
começava a interessar-se mais pelos desejos na
vida cotidiana e estava desenvolvendo a
psicoterapia institucional na clínica La Borde, com
Jean Oury.

Ao lado de Guattari, Deleuze produziria os


magistrais volumes de Capitalismo e esquizofrenia:
O anti-Édipo, em 1972, e Mil platôs, em 1980
(publicado em alguns países como o Brasil em
volumes separados), além de obras como Kafka:
por uma literatura menor, em 1975,e sua última
grande obra, O que é a filosofia?, em 1991.

Com Félix Guattari, Deleuze desenvolveu um estilo


de produzir filosofia.
Gilles Deleuze: uma vida
Deleuze foi perdendo seus intercessores. Em 1984,
morreu Foucaut. Em 1992, morreu Guattari, logo
após a publicação de O que é a filosofia?.

Sua doença se agravou: sofria de uma insuficiência


pulmonar que lhe tirava as possibilidades de uma
vida ativa. Aos poucos, viu-se obrigado a
abandonar todas as suas relações sociais e, por
fim, inclusive suas atividades de escrita.

Sentindo suas virtualidades e suas forças esvaídas,


Deleuze pôs fim à própria vida: jogou-se da janela
de seu apartamento em Paris, em 04 de novembro
de 1995.
A filosofia francesa
contemporânea: um mapa
em rascunho
Diferente das muitas tradições filosóficas europeias - a
exemplo da Grã-Bretranha, que se incursionava pela filosofia
analítica influenciada pelos positivistas lógicos de Viena - a
filosofia francesa sempre foi muito marcada pela história da
filosofia, sobretudo nos meios acadêmicos.

Mas um bólido atravessou a filosofia francesa: Friedrich


Nietzsche. O “alemão maldito”, um dos “mestres da suspeita”,
viria a revolucionar o pensamento francês, anunciando novos
ares e novos mundos, marcando uma geração de leitores de
sua obra na geração que começaria a produzir intensamente
nos anos 1960 (por vezes chamada de geração de 1968):
Deleuze, Foucault, Lyotard, Derrida, por exemplo.
Deleuze: filósofo da
multiplicidade
Nesse quadro de multiplicidades que é a filosofia
contemporânea francesa, na qual “novos filósofos”
buscam, inspirados em Nietzsche, novos modelos de
pensamento, não estava fora de cogitação revoltar-se
contra antigos mestres.

Como afirmou Roberto Machado, “não há dúvida de que a


grande ambição de Deleuze é realizar, inspirado
sobretudo em Bergson, uma filosofia da multiplicidade”.

Deleuze é, a princípio, mais um historiador da filosofia.


Mas não um historiador qualquer: ele é, antes de
qualquer coisa, um historiador-filósofo, ou melhor, um
filósofo-historiador, desenhando novos mapas
conceituais a partir do retratos de filósofos que
comporiam uma dada história das mentalidades.
Deleuze: filósofo da
multiplicidade
Para Deleuze, fazer filosofia é muito mais do que repetir
filósofos, mas como a filosofia trata do mundo e há mais
de dois mil anos que filósofos debruçam-se sobre ele,
também é difícil fazer filosofia, ou seja, pensar o novo,
sem retomar o já pensado.

Mas essa “repetição” (que é, também, necessariamente,


“diferença”) que Deleuze faz dos filósofos é antes de
tudo um “roubo”.

Citando e parafraseando Bob Dylan, Deleuze afirma que


“roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou
fazer como”, uma vez que a produção, sempre solitária,
não se dá do vazio, e sim apropriando-se do que se
conhece e construindo a diferença.
Rasgar o caos: a filosofia como criação de
conceitos
Em 1991, ao lado de Guattari, Deleuze publica sua
última obra, O que é a filosofia?, trabalho denso no
qual se dedica a pensar aquilo que, como afirmam, só
pode ser respondido na velhice: o que é isso que
fazemos sob o nome de filosofia?

A resposta se encontra já nas primeiras páginas: “a


filosofia é a arte de formas, de inventar, de fabricar
conceitos”.

O golpe que Deleuze e Guattari desferem contra as


noções correntes de filosofia é certeiro: a filosofia
tem uma ação criadora de conceitos e não uma mera
passividade frente ao mundo.
Rasgar o caos: a filosofia como criação de
conceitos
Podemos inferir que os dois franceses discordam frontalmente da famosa XI Tese
sobre Feuerbach, de Karl Marx: “os filósofos se limitam a interpretar o mundo de
diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo”.

Já para eles, a criação de conceitos é, ela própria, uma intervenção no mundo, ela é a
própria criação de um mundo.

Se é verdade que, na história, tivemos filosofias e filósofos que agiram no sentido de


manter o status quo, também é verdade que tivemos filosofias e filósofos
revolucionários, agentes de transformação.
Rasgar o caos: a filosofia como criação de
conceitos

Todo conceito é uma multiplicidade, pois é formado por componentes e


define-se por eles, como uma espécie de caleidoscópio, um todo
fragmentado, múltiplo e complexo.

Todo conceito é criado a partir de problemas, sejam eles novos, sejam


problemas que o filósofo considera que foram mal colocados
anteriormente, de forma que ele nunca é criado do nada.

Todo conceito tem uma história, pois remete a outros conceitos do


mesmo filósofo e a conceitos de outros filósofos, que são tomados,
assimilados, retrabalhados, recriados.
Rasgar o caos: a filosofia como criação de
conceitos

Todo conceito é uma heterogêse, ou seja, o ponto de coincidência e de


convergência de seus componentes, em que eles se tornam um “todo”.

Todo conceito é um incorporal, pois, embora esteja sempre encarnado


nos corpos, não pode ser confundido com a coisa em si, visto que o
conceito não é “palpável”, embora, ainda assim, exista e seja real.

Todo conceito é, ao mesmo tempo, absoluto e relativo, pois, por um lado,


é formado por pedaços (o que lhe confere relatividade), mas constitui um
todo absoluto, cujo objetivo é tentar explicar o mundo.
Rasgar o caos: a filosofia como criação de
conceitos

“Das frases ou de um equivalente, a filosofia tira


conceitos (que não se confundem com ideias gerais
ou abstratas), enquanto que a ciência tira prospectos
(proposições que não se confundem com juízos) e a
arte tira perceptos e afectos (que também não se
confundem com percepções e sentimentos). [...]”

Se entendermos a história enquanto protoarte, como


propôs Durval Muniz de Albuquerque Júnior, o que ela
produz: prospectos, perceptos, afectos ou
conceitos?

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