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o estudo da situação familiar

através da entrevista

EURÍDICE FREITAS *

INTRODUÇAO

o estudo da família como "unidade de personalidades em


interação", consoante a define Burgess, 1 subministra uma hipótese
de trabalho de grande alcance, pela qual podem-se nortear muitas
investigações, abrindo também novas perspectivas à psicologia con-
temporânea.
O estudo da família pode ser então encarado em têrmos da
personalidade dos membros participantes, interagindo em um con-
texto situacional, o que evidentemente, reforçará o indiscutível valor
dos trabalhos realizados no campo da psicologia clínica e na terapia
familiar para a compreensão da dinâmica psico-social do comporta-
mento humano.
Dado que a família, na vida atual, está em processo de con-
tínuas e súbitas modificações, que, como adverte Burgess, "dificil-
mente podem ser apreciadas e compreendidas a não ser na perspec-
.) PSicóloga do !SOP, Chefe da Divtsão de Orientação. R. Janeiro.
1) Burgess, E. W., - Capo XXXIV, em Estudos de Organização Soctal, de DoIiakt
Pleraon - Ed. Martins, São Paulo, 1949.
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tiva do passado"; dado que na situação familiar estão os fundamentos


da vida psíquica humana, afigura-se-nos de sumo interêsse prático o
estudo mais particularizado das dinâmicas do complexo de fatôres
que definem e conformam a situação familiar, quando se pretenda
dar curso à orientação profissional e educacional dos jovens.
Embora haja consenso entre os estudiosos do problema, contu-
do parece-nos conveniente insistir na necessidade de dar maior con-
sideração à análise e estudo não simplesmente das relações entre :>s
membros da família, mas, também, e com maior empenho, ao estudo
da situação familiar como um todo, se se deseja colhêr dados mais
confiáveis e objetivos para a compreensão do dinamismo da persona-
lidade.
No caso da orientação profissional, parece-nos oportuno
também sugerir se considere com maior interêsse o uso de entre-
vistas bem elaboradas e conduzidas, atendidos princípios científicos.
Constituem elas técnica das mais valiosas para obtenção de dadcs
reveladores da gênese de certas atitudes ou sistemas afetivos, da for-
mação de valôres, crenças e opiniões que, em parte consciente e em
parte inconscientemente, estejam incidindo sôbre o rumo vital do
Orientando em suas vinculações com o meio ambiente no qual tenha
de viver.
Dentro dessa ordem de idéias, é que se faz oportuno um exame
do que se tem entendido por situação familiar e os elementos que a
constituem e definem, os quais, quando bem examinados na entre-
vista, podem representar substancial contribuição à compreensão dos
problemas da conduta humana, como reação a um complexo de fatô-
res e estímulos implicados numa dada situação.

VALOR E IMPORTÂNCIA DA ENTREVISTA

A entrevista é, sem dúvida, um instrumento de investigação


que, bem empregado, pode cumprir êsse deriderato, fornecendo dados
elucidativos da influência da família na formação da personalidade,
e no comportamento atual do homem em face do trabalho, o qual
especificamente interessa ao Orientador profissional.
É bem possível que, numa entrevista convenientemente condu-
zida, se obtenham dados tão elucidativos do problema, ou situação, que
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se torne dispensável o emprêgo de muitos testes. que, de modo geral,


servem apenas para o psicólogo eomprcwar o "parecer" a que o tenha
conduzido o contato com o entrevistado.
Essa afirmativa é tanto mais procedente quando se pensa no
ingente esfôrço que realizam os Institutos e Centros de Orientaçã.o
em nosso país, geralmente com insuficiente número de técnicos
qualificados para atender ao cadá vez mais numeroso contingente de
jovens a braços com o problema da escolha profissional. Não é
também restrito o número de adultos que apresentam problemas de
desajustamento no trabalho, requerendo readaptação, ou o daqueles
cujo motivo verdadeiro da consulta aos Institutos se disfarça sob os
mais diversos pretextos, entre os quais o da orientação profissional
é o mais empregado.
A entrevista apresenta-se, assim, como técnica das mais valio-
sas e imprescindíveis nêsses Centros e Institutos, tanto mais quanto
é importante fundamento para a simplificação do plano de provas a
que devem ser submetidos os indivíduos que buscam ajuda para a
solução mais adequada de sua problemática profissional, sexual ou
social.
Tôda vez que o planejamento das provas não se baseia na en-
trevista conduz à aplicação de alguns testes não necessários ou ina-
dequados ao "caso", ou ao uso indevido de testes cuja aplicação e
interpretação exigem mais tempo de psicólogos especialistas, o que,
evidentemente, sôbre incidir na demora do processo orientador, torna-
se econômicamente inviável para a grande maioria de jovens, além
de acarretar déficit financeiro para a instituição.
Não se infira dessas considerações que estamos insinuando
uma simplificação tout-court; sugerimos antes uma simplificação
tecnicamente adequada a cada caso e indicada pelos dados obtidos,
o que sem dúvida facilitará a compreensão dos fatôres que estão na
gênese da problemática considerada.
Nenhum método é independente, suficiente ou completo em si
mesmo. Louvando-nos em Lundberg,2 consideramos os diferentes
métodos como etapas <Jistintas de um processo comum, o do mesmo
intento de compreender, explicar, predizer e controlar aconteci-

:l' Lundberg, G. A. - Técnica de la Investigación Social, Capo GI -


442). (Trad. de J. Miranda).
(págs 425 a
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mentos sociais ou individuais. Não obstante, a entrevista é a técnica


por execelência para a sondagem das influências e para conhecer a
dinâmica dos sentimentos e atitudes que orientam o comportamento
humano; para compreender fatôres tais como necessidades, motivos,
impulsos e inibições, aversões, preferências e aspirações profissionais,
assim como aptidões para o desenvolvimento da sociabilidade.

Pode-se inferir sua importância e complexidade da extensa


bibliografia existente e das muitas críticas que se têm feito a êsse
valioso instrumento de pesquisa, às vêzes empregado com critérios
simplistas. Com efeito, o ponto de vista geralmente admitido de que
a entrevista é de fácil condução, mera arte de colhêr informações, faz
que muitos a utilizem sem estar suficientemente habilitados, por lhe
desconhecerem as implicações teóricas, a técnica de administrá-la e
as bases em que devem alicerçar a análise e inferência dos dados.

Sob ponto de vista tão superficial, muitos investigadores pre-


tendem chegar a conclusões, louvando-se em dados gerais, limitados,
ingênuos, de pouco conteúdo significativo. Isso, evidentemente dimi-
nui o valor da entrevista, torna discutível a sua importância, e justi-
fica as críticas que se lhe dirigem. Uma perspectiva mais ampla na
consideração da entrevista, assim como pontos de vista mais adequa-
dos em relação à sua aplicabilidade com metodologia científica, ajuda-
rão ao entrevistador a compreender que a entrevista, como técnica
usual nos métodos de diagnóstico, exige treino sistemático, implica
uma direção doutrinária e requer conhecimento do campo a que Se
destina.

LIMITAÇOES DA ENTREVISTA COMO


PROCEDIMENTO CIENTíFICO

Conceituada como técnica de diagnose, não caracteristicamente


objetiva, sofre a entrevista muitas limitações e tem sido alvo de
objeções sérias quanto à sua precisão, objetividade e valor como
procedimento científico.

Um dos motivos de dúvida quanto à sua validade é que escapa


ao contrôle estatístico, p~la impossibilidade de serem os dados apre-
ciados quantitativamente. Não há também como evitar o poder de
sugestibilidade e prenoções do entrevistador, assim como a dissimu-
A.B.P;/4 SITUAÇAO FAMaUIIi-JB ENTttEV'ISTÀ 45
lação e outros mecanimos de defesa do entrevistado. Aponta-se-Ihe,
outrossim, a desvantagem de exigir sua realização muito tempo - em
comparação com os questionários e inventários - sendo assim, téc-
nica dispendiosa, principalmente quando aplicada à seleção profissio-
nal.
Outras críticas levantam-se a êsse instrumento de pesquisa no
que concerne à determinação do grau de fidedignidade dos dados
obtidos, como no que diz respeito à sistematização da experiência
acumulada por diferentes pesquisadores, a fim de colocá-la ao alcan-
ce daqueles que se estão iniciando como investigadores no campo das
ciências sociais.
A diversidade e falta de estrutura dos dados informativos
criam, realmente, dificuldade à avaliação objetiva, requerendo do
entrevi~tador habilidade para distinguir, no material recolhido, os
elementos genuínos daqueles que não serão mais do que modos de
defesa, tergiversações intencionais ou contrafações da realidade.
Tais críticas são procedentes e as limitações e objeções apon-
tadas devem-se menos ao instrumento em si, que a seu emprêgo e à
falta de formação e treino dos entrevistadores. A maioria das difi-
ficuldades e desvantagens que a entrevista apresenta em relação ~
outros procedimentos técnicos "não são 'inerentes à entrevista -
escreve Pauline e Young 3 - mas ao uso que dela se faz, ao modo
como se põe em prática e às pessoas que a empregam".
Sem embargo, e geja qual fôr a finalidade a que se proponha o
exame do conportamento individual (psicopedag6gica, psicotécnica,
psicoterápica, psiquiátrica), a entrevista impõe-se como imprescin-
dível instrumento de trabalho que, usado com orientação científica,
pode dispensar - repetimos - o emprêgo de muitos testes expres-
sivos ou projetivos, de uso comum na exploração da personalidade.

A SITUAÇAO-ENTREVISTA: IMPLICAçõES TEÓRICAS

"A entrevista" - escreve Echavarria - "é algo mais do que a


interpretação corrente da palavra indica, pois não se trata de simples
interogatório, mas de um ato de experiência criadora, na qual entre-

lU Young, Pauline V. - MétOdos Científicos de la Investigaçilo Social (Trad.)


Capo X.
46 SITUAÇAO FAMILIAR E ENTREVISTA A.B.P./4

vistador e entrevistado contribuem igualmente para a obtenção de


um nôvo conhecimento". 4
A entrevista é, em si mesma, uma situação que envolve inter-
relação pessoal, onde há um processo de interestimulação de certos
padrões de comportamento, razão por que exige não só discernimento
e sensibilidade para observar e habilidade para estimular, mas tam-
bém a fixação de conceitos fundamentais entre êsses comportamentos
e o mundo social da pessoa.
A situação-entrevista envolve, portanto, um sistema de reações
pelas inter fluências pessoais e pelo intercâmbio de idéias, sentimen-
tos e atitudes, estando nela, pois, implicado o conceito de interação
social, cuja continuidade será assegurada ou rompida, na depen-
dência dos estímulos que a reforcem ou debilitem. "Continuidade e
rutura do sistema de interação dependem do refôrço social. A inte-
ração continua, se todos os participantes acham-na agradável; se não
as relações são rompidas, a menos que fôrças coercitivas surjam", Õ
o que, evidentemente, prejudicará o processo e, no caso da entrevista,
não alcançará os objetivos visados.
Essa relação entre du13.s pessoas (entrevistador-entrevistado)
complica-se pela "presença" de outras figuras significativas no psi-
quismo individual as quais foram introjetadas no passado, pelo estilo
individual de reações fixadas nos primórdios da vida, mercê das
fôrças impulsoras e repressoras do ambiente no processo de sociali-
zação.
Tomam, assim, as relações pessoais na entrevista, certo caráter
particular; na atmosfera psicológica que então se forma há fatôres
específicos que suscitam, sem dúvida, respostas específicas. Facilita-
ção, inibição, sugestão e identificação, entre tantos ingredientes psi-
cológicos, estarão implícitos no processo de interação, que aí se
verifica, e cujo conhecimento e observação devem servir de base à
posição e atitude do entrevistador.
Considerada como campo de estudo das interrelações pessoais,
a entrevista requer, portanto, o conhecimento teórico das bases psico-
lógicas da percepção e da comunicação, das normas defensivas que

4) EchaVarria, J. W. - Sociologia: Teoria y Técnica (págs. 183 a 184).


5) Beaglehole, Ernest - "Int'3rpretation Theory anã Social sychological" in A
Stuày 01 Interpesonal Relations, by Patrich Mullahy.
A.B.P./4 SITUAÇAQ FAM1LJNlkJI:~REVISTA 47

se opõem à liberdade de comunicação, e a análise das fôrças que


operam na interação social, temas que são inerentes ao estudo da
psicologia social.
No domínio teórico da psicologia social, a entrevista é em-
pregada, portanto, no pressuposto de que os efeitos da vida social e
cultural sejam sensíveis em tôdas as atividades psicológicas do
homem, admitido o fato de que a realidade que importa estudar é a
vida humana em sua totalidade.
N o campo teórico da psicologia dinâmica, a entrevista funda-
menta-se no princípio de que, no estudo do comportamento, deve-se
partir da unidade homem-mundo, em que cada um dêsses aspectos
não tem sentido senão em função do outro, em comportamentos que
devem ser vistos como esfôrço para a auto-realização nos níveis
biológico, social, psicológico e espirituaL 6
Nesse, como noutro marco teórico, a situação-entrevista COll-'
verte-se em campo de estudo das relações interpessoais, dado que
"o homem é em grande parte um reflexo do viver em grupo, que
aliás dirige as normas de sua conduta", dado que existe "relação
estreita entre a estrutura sociaÍ e o equilíbrio individual", como
insiste em dizer Sullivan. 7
Os fundamentos teóricos da entrevista ligam-se a seu moderno
conceito de "situação interpessoal na qual duas pessoas colaboram
para a realização de um objetivo comum". 8 Tais objetivos são colhêr
dados relativos às motivações, sentimentos e atitudes, concernentes
aos fatôres ambientaes passados e atuais, que exerceram e ainda exer-
cem u~ papel, muito decisivo, às vêzes, na conduta individual.
O estudo dos processos que envolvem a situação-entrevista,
........
seus aspectos psicológicos e sociais, o conhecimento de suas bases
científicas ajudarão sem dúvida a tornar mais competentes aquêles
_ que, por imperativo profissional, façam uso constante dessa técnica .
........
\

Dispondo dêsses conhecimentos e cultivando uma consciência


alerta para o reconhecimento dos fatôres que integram as situaçõe~·
pessoais, (explícitos ou não), o entrevistador melhor manejará êsse

ti) Nuttln, JosePh - Psicanálise e Personalidade (Trad.) Ed. Agir, 1955.


'0 I Sull1van, H. S. - La entrevista psiquiátrica (Trad.) Editorial Psique, 1959.
8) Idem
Á.B,P./4

instrumento técnico, captando com maior acuidade os dados significa-


tivos, e discriminando os pertinentes ao objeto da indagação.
No caso da Orientação profissional, pode imprimir maior efi-
ciência à entrevista o conhecimento de certos esquemas teóricos, tais
como: o das relações entre motivação e escolha profissional, entre
motivação e eficiência no trabalho, influência do nível de expectação
e aspiração na produtividade individual, motivação e maturidaàe
emocional na adaptação ao trabalho; fatôres determinantes da escolha
e interêsses profissionais. Enfim, todos os conhecimentos pertinentes
à teoria do ajustamento à profissão.

INTERPRETAÇAO E ESTUDO DA FAMíLIA

O estudo da família propende, nos últimos anos, a ser empre-


endido em têrmos de situação, a qual, segundo Stuart Queen 9 consis-
te nas relações entre pessoas vistas numa secção transversal da expe-
riência humana, e cuj li tônica é constante mudança, tanto nas con-
dições materiais como nas de relacionamento com outras pessoas.

A família tem sido estudada sob diferentes aspectos, atendendo


ao reconhecimento de sua importância como unidade social básica, €
ao relevante papel que desempenha na determinação e organização
da personalidade.
As primeiras formas de estudá-la baseavam-se na consideração
da família como "núcleo-síntese", que concentra de modo intensifi-
cado todos os procesos da sociedade. Estudos posteriores analisavam-
na de forma descritiva, como instituição social e legal, ou do ponto
~"" vista das experiências individuais e efeitos dessas experiência~
sôbl'e a VIda emocional.
Estudos mais recentes, todavia, baseados na concepção socio-
lógica do comportamento humano, incluem a arnáLise da situação em
que se desenvolve a vida no interior do grupo familiar. :S:sses estudos
processam-se admitindo-se que a situação da família, como bem a
definiu Ada Sheffield, é "um campo dinâmico de experiência, no
qual indivíduo e família figuram dentro de um contexto de fatôres

9) Citada por Ruth Lindquist, in The I amilll in tive Present Social Order, Chapal
H1l1, 1930.
A.BP ..'4 SITUAÇAO FAMlflUa B ENTREVISTA 49
r
de personalidade e de circunstâtlcia, interativos e interdependen-
tes." 10
A psicologia cabe a iniciativa do estudo das origens do -com-
portamento normal e patológico do indivíduo por meio da observação
dos processos de interação restrita, (comportamento face-a-face) no
grupo familiar. Sem embargo, não se tem ela preocupado em foca-
lizar o estudo da família como um todo, em que' êsses processoS ocor-
rem, e dos fatôres e circunstâncias implícitos nessa situação. Jl'!
evidente que isso daria maior amplitude à compreensão do dinamis-
mo da personalidade.
Não obstante, no campo da psicologia clínica, há estudos perti-
nentes à análise da interação familiar e relações -interpessoais de
grande valor diagnóstico. O método que, em realidade, se tem cons-
tituído como maior fonte de dados é, precisamente, o da análise clínica
e terapia familiar, o qual não somente tem-se revelado útil para a
eficácia da própria terapia, como contribuído para esclarecer e com-
preender o dinamismo que oriente o ser humano em busca da pró-
pria afirmação e realização.
A entrevista e observação no próprio lar dos sujeitos, tal
como são usadas nos chamados métodos de investigação "sôbre o
terreno", são outros procedimentos de idêntico valor. Alguns psicó-
logos veem usando as técnicas projetivas (Thematic Apperception
Test, Psicodiagnóstico de ROTS'chach, Teste de Completação de Sen-
tenças e outras) para o diagnóstico da interação na vida das
famílias estudadas. Conquanto seja indiscutível o valor dêsse métodos
para compreensão da influência da família sôbreo comportamento
individual, apresentam êles limitações, visto que a interpretjlção de
seus dados tende a basear-se no comportamento de membro a membro
familiar mais que no comportamento do membro ao grupo, ou do
grupo ao membro da família.
Enfim, a importância dada aos sistemas da cultura contemporâ-
nea no processo da socialização da criança e ao papel da faÍnília
nesse processo; os estudos experimentais sôbre a influência das situa-
ções sociais no comportamento de crianças e adultos; a análise' da
interação familiar por meio de testes projetivos; e enfim, 0.3 inétodos
~

11# B06S&rd,· H. 5., James and BOll, E. - FamÜ'Jf Situatkm, University of Pennsyl'- .' I
vania Presos, 1 9 4 3 . ' ,
SlTUAÇAO FAMILIAR E ENTREVISTA A.B.P./4

de pesquisa na terapia familiar representam valiosos e significativos


esforços dispendidos pela antropologia, a sociologia, a psicologia
clínica e social para a compreensão dos fatôres que caracterizam a
família como um todo e os elementos que configuram o "clima fami-
liar", de tão decisiva influência na manifestação da conduta humana.

CONCEITO DE "SITUAÇAO FAMILIAR"

A expressão "situação familiar" traduz-se pela aplicação do


conceito de situação social ao campo específico do grupo da família.
O estudo da situação social dentro da família é empreendido não só
pela importância manifesta das situações familiares na determinação
dos padrões de comportamento, como porque a família, em virtude
de sua relativa simplicidade e menor dimensão, oferece maior opor-
tunidade ao emprêgo de métodos e técnicas requeridos pela análise
objetiva.
A situação familiar deve ser entendida como um "campo de
fôrças", que, embora externas ao indivíduó, agem sôbre êle, prove-
nientes de outras pessoas e, mesmo, de objetos materiais, dado que
no campo situacional, como explica Kurt Lewin" 11 os objetos não
são neutros: pelo contrário, exercem influência psicológica sôbre a
conduta.
Assim, a análise da situação familiar implica no estudo de
uma constelação de estímulos que se configuram em têrmos de
organização estrutural, de processo de interação e de conteúdo cultu-
o ral, cujos conceitos são básicos na condução inteligente da entrevista.
Organização estrutural da família - Cada família tem sua
. organização estrutural, da qual decorre a trama de relações na inti-
midade do grupo, com suas propriedades e traços característicos,. a
qual a define e situa no esquema cultural vigente. As rápidas trans-
formàções que ocorrem nas sociedades industrializadas atingem sua
estabilidade e coesão, e influem em sua estrutura, e sistema de inter-
~eiàç~es. A família pode, dêsse modo, apresentar diferenciações no
•qu~ . concerneà sua estrutura e organização, sob o imperativo das
'Illüdanças operadas pelas fôrças econômicas dà sociedade. o

:U)' LeWin; Kurt '~"'FtlerZa8° deI' ambiente", in Manual de Psicologia del Nino
(trad.), 1953.
A.B,P./4 SITUAÇAO FAUIltl.i .J,ilNTREVISTA 51
. Assim, a forma partic\Í~:~Il'{~rganização da família apre-
sente estará em relação direta-:~"l_rutura geral da sociedade e
da cultura dominante.' Os "m~íj~~!exemplo, determinam o pro-
cesso de escolha do cônjuge, a. a~tW:tepara o casamento, sua forma
de realização, de conservação ou· dissolução, tanto quanto estabelece
a conduta nas relações da famíli,a." 12
Entende-se por "organização" da família o sistema de relações
implícitas nos privilégios e obrigações existentes, ao passo que a
"estrutura" indica a ordem e a posição dos indivíduos no grupo.
A base da vida de família está nas relações recíprocas de pais e
filhos que, por sua vez, são determinadas pelo padrão cultural, que
pre,;creve os deveres e a responsabilidade de cada um. É necessário,
portanto, conhecer "os universais de sua estrutura e funções, a forma
em que 'variam com a cultura, e as dimensões na dinâmica familiar
inerentes à vida histórica de tôda a família." 13
A família moderna é, em si mesma, um subsistema do sistema
social, e, em sua estrutura interna, apresenta outros subsistemas
'menores: o subsistema mãe-filho, porque a criança não participa a
princípio da família total, mas apenas dêsse subsistema, formando
com a mãe um sÓ corpo; os cônjuges constituem outro subsistema,
como os irmãos entre si formam um terceiro.
Caracterizando-se pela redução do tamanho, a família atual
forma um subsistema social muito simples, constituído pela associa-
ção de marido, mulher e filhos, no qual as relações de parentesco e
sexo lhe são inerentes e consubstanciais. O contrôle externo é menos
rígido. tanto assim que a estabilidade da família contemporânea
depende cada vez mais da fôrça e influência internas. Quando essas
fôrças psíquicas falham, a família torna-se instável, desorganiza-se,
desintegra-se.
Seu equilíbrio dinâmico vai depender das relações emotivo-
dialéticas que ligam os indivíduos e o grupo, do sistema das intera-
ções estabelecidas, que criam um "clima social", propício ou não, p81"a
o bem-estar de cada um de seus membros e para a vida da família
como um todo. Tôda vez que os "papéis" de pai, de mãe e de filhos

12)'Ogbun, W. F.'and Nirnkoff, M. F. - SocioZogy (Houghton Mifflin Cc-mpany>.


13) Ackerman, N. W. - Diagnóstico 11 tratamento dalas relaciones familiares,....
(trad., 1966) Ed. Paidós, Capo XX.
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não forem devidamente representados, tôda vez que o "perfil psico-


. lógico" individual não se ajuste à posição e ao papel que compete
a cada um, a organização grupal ressente-se, a instabilidade· surge e .
o equilíbrio fica comprometido.
No estudo da estrutura da família, devem ser considerados os
seguintes elementos e suas peculiaridades porquanto encerram impli-
cações psicológicas da maior relevância no desenvolvimento da per-
sonalidade:
a) Número de membros - A grande família que incluía avós,
tios e demais parentes, além de pais e filhos, tende a desaparecer,
sendo substituída pela família de tamanho reduzido que, ao contrário
da primeira, pode exibir variados padrões dentro da mesma cultura.

A família contemporânea caracteriza-se, precisamenté, por essa


tendência à redução numérica de seus membros, o que exerce consi-
derável influência no processo de socialização, pela maior intensidade
das diferenças de "status" entre os mesmos, originando problemas
típicos, pelas graves tensões que disso resultam.
Dentro dêsse grupo, importa estudar o número de pessoas en-
volvidas na situação, se maior ou menor, bem como os respectivos
deveres e privilégios; e a posição do indivíduo na estrutura do grupo,
a qual exerce influência considerável sôbre os papéis de cada mem-
bro na situação familiar. As atitudes e as relações psíquicas decor-
rentes dêsses papéis e "status", patentes sob múltiplos e variado!:'
aspectos, formam o substrato da organização e da chamada natureza
social do homem.
b) Presença ou ausência de um ou de ambos os cônjuges --
Outro elemento significativo, pelas conseqüências no desenvolvimen-
to afetivo-emocional dos filhos, é a presença ou ausência de um ou
de ambos os pais.

Determinada por imperativo do trabalho, por hospitalização,


por encarceramento, por abandono do lar, por separação, por desquite
ou falecimento, a ausência de um ou ambos os pais repercute profun-
damente no ajustamento emocional e social 'da criança. Mais tarde,
na vida adulta, a influência dêsse fator ausência traduzir-se-á, geral-
mente, por dificuldades, às vêzes insuperáveiS, na comunicação
interpessoal.
A.B.P,I4

.!\To lar, a presença só do$lltq'feminino, ou de filhos de um


e de outro sexo em proporçãO<.~;)itéri:t implicações psicológicas
de grande alcance no desenvol~1~,,nHuú.etivo-sexual da criança, re-
fletindo-se, na vida ulterior, .em maior ou menor dificuldade de ajus-
tamento nas interrelações pessoais.
c) A idade dos pais - Outro fator a computar-se na análise da
estrutura do grupo .familiar é a idade dos pais que, se muito distante
da dos filhos, pode originar conflitos de idéias e opiniões. A idade
cronológica quase sempre resulta em hiáto cultural, uma vez que
muitos pajs idosos, voltados para o passado, são incapazes de com-
preender os filhos adolescentes, dirigidos para o futuro; êstes' vivem
numa época de mudanças muito rápidas, que por isso mesmo exigem
maior flexibilidade e capacidade de adaptação a novos processos,
novas contingências e métodos de vida.
Interaçãq na situação familiar - O processo de interação, que
é a base do grupo, manifesta-se na família sob várias formas espe-
cíficas - comunicação, cooperação, competição e conflito - e envolve
as dinâmicas das relações psico-sociais entre os cônjuges, entre pais
e filhos e dos irmãos entre si.
A comunicação é o processo essencial porque sem ela seriam
impossíveis a formação do grupo familiar, a transmissão da cultura
e a formação-~lógica de seus membros; na cooperação, há articula-
ção de esforços para a obtenção de objetivos comuns, sejam materiais
ou simbólicos. Comunicação e cooperação tendem a unir o grupo, inte-
grando-o em relações harmoniosas, enquanto a competição e o con-
flito agem como fôrças desagregadoras. H
No grupo familiar, pode haver a ocorrência simultânea de
cooperação e competição, de modo a ser difícil a caracterização do
grupo como competitivo ou cooperativo, porque ambos os processos
coexistem na dinâmica da vida em família, devendo-se observar ape-
nas em que grau e sob que formas se manifestam.
O conflito na situação familiar pode provir da insegurança jo
papel e da natureza instável do "status" de um ou vários de seus mem-
bros,' resultando sempre em desajustamento pessoal e em desarmonia
na vida do grupo. Na: análise do processo de interação familiar é

14' .l'ler&on, Donald - Teoria e Pesquisa em Sociologia, Ed. Melhorament08.


54 SITUAÇAO FAMILIAR E ENTREVISTA AB.P./4 .

também da maior i~portâ:gcia o estudo das interrelações psico~ógicas,


consubstanciadas na "constelação familiar".
No lar, a criança vive sob influências complexas, decorrentes
d"os sentimentos e atitudes dos que integram o ambiente familiar ~
que exercem sôbre sua, conduta papel dos mais decisivos. Para as
definir, Adler usou a expressão "constelação familiar'~, indicando
assim o conjunto de relações afetivas e as interinfluências de perso-
nalidades no círculo da família, determinantes da formação carac-
terológica do ser humano ..
Arthur Ramos, que estudou exaustivamente os problemas de
conduta da criança carioca em relação às respectivas constelações
familiares, concluiu baseado em extensa documentação, que "mais
poderosas do que as fôrças da herança, até agora julgadas onipotentes
e soberanas, estão as influências do meio ambiente, cultural e social,
as fôrças psicológicas dos adultos que rodeiam a criança, nas suas
constelações de família, modelando-lhe a personalidade e o caráter". 15
Em múltiplas investigações .realizadas no Instituto de Seleção
e Orientação Profissional (ISOP), em crianças, adolescentes e adul-
tos, por meio de entrevistas, e provas de vários tipos, comprovam-se
exaustivamente a influência da constelação familiar nas manüesta-
ções de conduta, ajustada ou desajustada, que as personalidades apre-
sentem. Donde se conclui que o diagnóstico de dificuldades e altera-
ções de caráter e conduta com exclusão do contexto familiar, além
de simplista, carece de fundamento; a solução dos problemas indivi-
duais deve ser equacionada em "têrmos fornecidos, em primeiro
lugar, pelas pessoas e imagos da sua ambiência familiar." 16
No estudo da constelação familiar, devem ser considerados os
elementos cujos efeitos sôbre o rendimento afetivo, emocional e inte-
lectual têm antes caráter social que heredo-biológico, como o provam
as múltiplas pesquisas realizadas para descobrir as causas atávicas nn
conduta dos primogênitos, dos caçulas e dos filhos intermediár~os.
Entre os elementos que importa estudar na análise da conste-
lação familiar estão: a) o número de filhos; b) a ordem de nascI-
mento; c) a posição dos irmãos entre si e em relação às irmãs; d) a

15) Ramos, Arthur - A criança problema, Editõra Nacional.


16) Idem
A.BPJ4 ~rrUAçAO F~ E ~TA 55
r",

atitude dos pais em relação aos filhos; e) a resposta dos filhos às


atitudes dos pais; f) as tendênetase os sentimentos oriundos da
dinâmica da vida no grupo fammar~·

No que concerne ao número de filhos, fácil é prever o resul-


tado das influências que se centralizam sôbre o filho único, refor-
çando a situação triangular do complexo de Edipo, tão bem estudado
pela escola psicanalítica, influências que, de ordinário, são mais bem
distribuídas nas famíli~çujo número de filhos seja maior. Em geral,
o desenvolvimento da personalidade é favorecido nas famílias cujo
número de filhos não seja reduzido.

Ellis Jones, 17 em substancioso estudo, analisou grande número


de pesquisas realizadas por psicólogos a fim de verificar a influên.!
cia no desenvolvimento da criança, decorrente de sua posição entre
irmãos e irmãs. Nessas investigações, foram cuidadosamente obser-
vadas as diferenças que dependiam da ordem de .nascimento, em
relação ao desenvolvimento da linguagem, ao aproveitamento escohlr
e às características emocionais. "Relativamente às características da
ordem do nascimento", diz Ellis Jon.es, "as pesquisas psicanalíticas,
como os estudos estatísticos, estão ~ivados de opiniões e de resultado~
díspares, não se tendo chegado, portanto, a conclusões fidedignas".

Em um dos mais importantes estudos do problema realizado


por J. Levy, 18 verifica-se que as reações da criança quanto à ordem
de seu nascimento, podem variar de modo extraordinário e torna-se
evidente também o fato de. que a influência da constelação familiar
em grau e em direção, depende da situação cultural e econômica
da família.

Ellis Jones ainda aponta algumas formulações psicanalíticas,


com a ressalva de que são menos conclusões que hipóteses. Segundo
Brill, 111 por exemplo, as peculiaridades do filho único devem-se à
atitude solícita dos pais e a ausência de competidores; Hugo HeU
refere-se à insegurança em sua posição, no lar, do filho intermediário,
nó meio de irmãos, principalmente do mesmo sexo.

17 e 18) Jones, H. E. - "Orden deI na.scimento", in Manual de PsicOlogia del Nino


(Trad.) 1935.
19) Jones,H. E. - "Orden deI nascimiento", in Manual de Psicologia dei Nino-
(Trad.) 1935. .
56 SITUAÇAO FAMILIAR E ENTREVISTA A.B.P./4
...
Adler 20 estudou mais profundamente as características· dos
filhos colocados em primeiro lugar, segundo e terceiro, na constelação
familiar. Assinala êle a agressividade do primogênito que, sentindo-
se destronado com o nascimento do irmão, luta pela recuperação de
seu antigo prestígio; indica o sentimento de rivalidade e a atitude
competitiva que se engendram no segundo filho em relação ao
primeiro; mostra que o terceiro, não tendo sucessor, desenvolve um
sentimento exagerado de sua própria importância. Se os esforços
empreendidos para a conquista das respectivas posições forem com-
pensados, a formação de seus caracteres se processará normalmente;
se, porém, houver fracasso, o primeiro tornar-se-á combativo, o se-
gundo, deprimido, e o terceiro, incapacitado para maior esfôrço
construtivo.
Em recente pesquisa (2.600 dossiers) realizada em França sob
a direção do Prof. Wallon, os investigadores levantam as seguintes
hipóteses .que confirmam até certo ponto a influência da posição,
sexo e idade dos irmãos nas dificuldades de caráter: a) a posição que
a criança ocupa entre os irmãos tem influência muito nítida sôbre o
seu comportamento; b) o sexo da criança que precede imediatamente
não é elemento indiferente na explicação dos distúrbios de caráter;
c) a distância de idade entre um irmão ou irmã que a segue, ou
que a precede imediatamente, é uma terceira hipótese, particular-
mente suscetível de provocar dificuldades entre irmãos e irmãs. 21
Na constelação familiar, a verificação de quem, na família
exerce o contrôle e comO êste é exercido; e, de qual a figura de maior
prestígio aos olhos dos filhos, muito importa também na análise da
situação familiar.
Conteúdo cultural - A fim de bem compreender e interpretar
a organização e estrutura da família, é imprescindível tomar conhe-
cimento dos padrões vigentes na sociedade com que esteja articula~a.
Necessário ainda é não esquecer que a família constitui um subsiste-
ma social altamente diferenciado e, sob muitos aspectos, tipo único
de grupo, que elabora à sua maneira a cultura que lhe cabe trans-
mitir, selecionando, interpretando e valorizando aquilo que transmite.

20) AdJe,r, A. - A Cié1&cia da Nature84 Humana (Trad.) Cia. Editôra Nacional -


SAo Pulo, 1961.
::.11) DeSCombey J. et Roque brune G. - "L' entant caractériel parmi ses treres et
soeurs", in Enlance - set.o-out.o, 1953.
A~.P./4 SITUAÇAQ FAMUJ~<. ENTREVIsTA
; .
57

Há, nesse sentido, uma subeulttma específica, caracterizada pela


filosofia· particular com que o grupo interprete 9 mundo e as coisas,
e pela versão própria dos valôres, padrões e crenças da sociedade; .
Ao transmitir a culutra sôbre ângulo peculiar, a família determina
a seu modo a formação de idéias, de Crenças e do senso de valôres
dos membros que a constituem. No Brasil, por exemplo, a família
participa da cultura ocidental vigente, cujos padrões incorporou, mas
assume ela mesma aspectos que a diferenciam e que lhe imprimem
configuração cultural própria. A análise da família brasileira, nas di-
ferentes regiões do país, comprova a observação dêsse fenômeno.
A família nordestina, por exemplo, oferece feição característica q!le
a distingue da família sulista, em que pesem os pontos afins e
comuns à configuração cultural brasileira. O mesmo aspecto diferen-
ciador observa-se em famílias portuguêsa ou síria, e na de outras
origens, ainda que já assimiladas.

"Cada indivíduo", escreve Ralph Linton, "aceita os padrões de


sua própria subcultura como guias adequados de conduta, e rara vez
trata de imitar os padrões de outras subculturas, embora com êles
esteja familiarizado. De fato, a presença dessas diferenças geral-
mente faz que' o indivíduo prenda-se mais tenazmente aos hábitos
de sua subcultura particular, porque êstes constituem um símbolo
de sua associação a unidade social." 22
o conjunto de características pessoais comuns aos membros
daquelas famílias, coerentes com os padrões e valôres admitidos por
seu grupo, imprime-lhe, efetivamente, feição pr6pria, ou uma "per-
sonalidade básica", que permite pronta identificação. Freqüente é
ouvir-se dizer de indivíduos pertencentes a certos grupos familiares
mais coesos e organizados, que fulano é bem um Silva Cavalcanti,
que beltrano é bem um Lins de Albuquerque, ou que sicrano é bem
um Azeredo Pimentel, o que demonstra o caráter identificador que
a família imprime ao indivíduo.
Louvando-se no estudo do conteúdo é da organização da cultu-
ra, Abraham Kardiner emprega o conceito de "estrutura da personali-
dade básica", precisamente para designar "a constelação das carac-

22) LiD.ton, Ralph - Cultura 11 PersonaUdad (Fondo de Cultura EconÔmica),


)(ézjco.
~ITUAÇAO FAMILIAR E ENTREVISTA AB,P.f4

rísticas pessoais que se tornam coerentes com a série total das insti-
tuições compreendidas dentro de determinada cultura". 23
Baseando-se na observação de indivíduos formados em nossa
própria cultura, concluem os antropólogos que o contato com as instí-
tuições no período formativo do indivíduo produz nêle um tipo de
condicionamento que, através do tempo, fixa certo tipo de persona-
lidade.
Cada família, portanto, deve ser estudada em têrmos de sua
configuração cultural dominante, isto é, das regras, dos principios.
valôres e sentimentos tàcitamente aprovados, os quais motivam o
comportamento social do indivíduo e o integram em padrões distin-
tos. Compreendida a configuração dominante, é possível portanto
interpretar as idéias, as atitudes, os sentimentos, as crenças e os va-
lôres morais básicos que dão à determinada família características
que a definem e identificam.
A análise do conteúdo cultural da situação familiar envolve,
por conseguinte, o estudo do padrão, de valôres da família, em relação
com a cultura da sociedade de que seja parte.
Padrão de vida - O padrão de vida familiar, refletindo atitudes
e valôres nas relações pessoais, dentro e fora do grupo, muito impor-
ta no estudo da família. ~sse padrão, que não deve ser confundido
com o nível de vida, mede a posição da família na sociedade com que
se articula, incluindo todos os ideais, interêsses, hábitos e atitudes
que acham expressão na vida do lar. É êle determinado não só pelo
padrão geral da comunidade, como pelos contatos e associação dos
membros do grupo e, sobretudo, pela educação e nível de instrução
dos pais.
1!:sse padrão pode ser designado de acôrdo com a predominância
dos interêsses e valôres e da filosofia de vida que orientem o' com-
portamento do grupo familiar. Encontram-se, assim, famílias cujo
padrão de vida é predominantemente econômico, não só porque o
nível de aspirações está colocado no confôrto material, como porque
a valoração das coisasda vida faz-se, sobretudo, eIP- tênnos d~l'e<:eit
e despesa; Ot,ltras famílias há cujo padrão de vida poderia. dE!lnomi-
nar-se estético, social, religioso ou político, conforme a dominância

.:la) Kardiner, Abraham ~ El 'individuo y su sociedad (Fondo de CUltura.' E'oOnô"


mica), Méxioo . . . ...
A.B.P./4 srrUAçAO F~ E ENTREV1STA 59

dos interêsses e o modo de interpretar a vida, aquêles e êste em


têrmos relacionados esencialmentecom a arte, a sociedade, a religião
ou a política. Será como que a tt~posição, para o grupo da família.
da classificação de Spranger do indivíduo.
Atitudes e valôres - As atitudes nas inter-relações pessoais
da vida familiar refletem a filosofia que dirige a conduta dos pais
em relação aos filhos, de que resultará uma organização familiar de-
mocrática, autocrática ou anárquica. Os valôres dominantes, a posi-
ção ético-filosófica indicativa do rumo dos interêsses, a harmonia ou
os conflitos culturais são outros tantos aspectos da maior importân-
cia, quando se pretenda analisar determinada situação familiar.
Conclusões - A análise da situação familiar configura-se, pois, como
proveitosa e útil à compreensão dos fatôres externos e experiências
prévias na manifestação da conduta do indivíduo, e, necessária para
ajudá-lo a reorganizar o próprio comportamento e atitudes, ao desco-
brir um nôvo significado nessas fôrças e exeperiências do passado.
Admitimos, com Carl Rogers, "a presença no organismo humano de
uma fôrça espontânea, capaz de integrar e reorientar a conduta, em
virtude da existência no sujeito de uma originalidade básica". 24 Não
há, pois, um determinismo irreversível nas influências sócioculturais
sôbre a formação do caráter. O indivíduo humano não recebe passi-
vamente essas influências; a elas também reage com as suas peculia-
ridades de temperamento e constituição. Ademais, "pela compreen-
são (insight) criadora e ordenadora do próprio organismo",25 o
homem pode conscientemente superar as próprias deficiências, rees-
truturar o caráter e modificar as atitudes.
A entrevista surge como procedimento científico indispensá-
vel à coleta de dados significativos para descobrir as respostas apro-
priadas ao tema objeto de nossa indagação. Realizada com fins de
orientação profissional, ela deve considerar os fatôres que prefigu-
ram a situação familiar, cuja análise permite compreender a influên-
cia dos motivos, interêsses, aversões e aspirações que formam o subs-
trato dos problemas pertinentes à teoria do ajustamento profissional.

:&4 e :&5) Rogers, CarI - On Becoming a Person, Houghton Nifflin Company,


Boston, 1961.

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