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Leitura Sensível:

Eu amei o material e estou ansiosa para ver suas próximas versões e publicação. Existe um
potencial enorme e o jogo se propõe a fazer muitas provocações, reflexões e experiências
bem únicas se comparada a outros sistemas de RPG e jogos. A seguir foram feitas algumas
observações e comentários pontuais, que acredito e espero que colaborem de alguma
forma para que o material fique ainda mais rico e incrível.

Gostaria se possível ter acesso a seção de referências se possível, pois acredito que além
do texto é igualmente importante consultá-la e revisá-la também.

Por fim, estou interessadíssima em poder testar e jogar logo o sistema.

1. Definir termos como xenófoba, misógina, transfóbica, capacitismo, binarismo (Pág.


8, 15, 16, 17, 35). São termos conhecidos e na maioria das vezes familiarizados por
pessoas fora da normatividade, mas mesmo que nós somos entidades fora do
normativo nem sempre conhecemos a vivência, lutas e definições do próximo. Para
alguém mais dentro do normativo os termos por si só podem ser nebulosos. Acredito
que definindo esses termos por uma nota de rodapé, um glossário pode ser bem
interessante. Uma forma também de comunicarmos e introduzirmos nossas lutas e
vivências para pessoas fora do nosso contexto.
2. Trecho “à sapiência ou ao silêncio os distintos povos do extremo oriente” e “o típico
japonês” (Pág. 34). Em relação ao primeiro trecho acredito que o estereótipo é
comum para pessoas leste-asiáticas, talvez substituir “povos do extremo oriente” por
“povos do leste-asiático”. Afinal, não são todos os povos do oriente que lhe são
atribuídos o estereótipo de obediência e inteligência e de certa forma incluir todas as
etnias asiáticas pode ser redutivo.
Também existe uma relação de fenótipo envolvido no estereótipo também em
relação a cor da pele da pessoa asiática, quanto mais clara mais associada ao
padrão asiático definido pela branquitude é mais esperado que ela seja submissa,
obediente e inteligente.
Dentro da nossa vivência é muito comum apagarmos outras vivências asiáticas a
medida que a imagem da pessoa asiática que mais vemos é o leste-asiático de pele
clara, acredito que pode ser muito rico citar vivências e desafios das pessoas
asiáticas marrons (em inglês o termo bastante conhecido para asiáticos marrons é
blasian, Kipo é uma animação da Dreamworks protagonizada por uma personagem
blasian, acredito que pode ser uma referência rica, talvez a temática esteja alinhada
com a proposta do jogo também, uma vez que Kipo, a protagonista possui alguns
poderes visto como “incomuns”, mas principalmente porque a animação teve uma
recepção muito boa por blasians em quesito representatividade).
Retomando a discussão da submissão e inteligência de pessoas leste-asiáticas
recomendo leituras em relação ao termo Perigo Amarelo e Minoria Modelo. Talvez
os termos possam ajudar a definir e desenvolver o que acredito que se buscou
apresentar ao desenvolver os trechos citados acima. Yukio Goto, asiático brasileiro,
é autor do livro A Reunião da Minoria Modelo que pode ser uma leitura e referência
interessante para aprofundar a representatividade asiática amarela no jogo.
As problemáticas da vivência asiática não são unicamente em relação ao estereótipo
de minoria modelo e “samurais”. Mas no Brasil, que acredito ser o contexto e
principal cenário do jogo, houveram campos de concentração de pessoas asiáticas
imigrantes, no processo de brancos poderosos buscarem mão de obra barata. Uma
vez que os amarelos não eram brancos, mas também não eram negros. Um critério
para se migrar para o Brasil era ter uma família já formada, justamente para que
pessoas asiáticas não se misturassem com pessoas brancas e pudessem continuar
segregadas e “baratas”. Isso resultou num processo de marginalização, do qual os
resultados presenciamos até hoje, famílias homogêneas em fenótipo e segregadas
socialmente. O processo de socialização de uma pessoa asiática não é igual ao de
uma pessoa branca.
3. Em relação a discussão de corpos, sexualidade e gênero. Não sei se é cabível ao
“Perder-se” da Serpente (Pág. 30) ou aos Cultos, mas algo que pode ser
interessante de ser abordado é em relação a fetichização dos corpos
marginalizados. Uma vez que existem diversas provocações e reflexões ao longo do
texto, acredito que isso estaria alinhado às discussões colocadas na mesa.
4. Acredito que a palavra gatilho (Pág. 12) pode ser uma palavra ambígua. Uma vez
que dentro do texto foi usada como um evento desencadeador de uma série de
acontecimentos, mas na linguagem no “meta-jogo” ele pode representar um outro
sentimento e ter uma outra definição, principalmente pensando numa experiência
segura para os jogadores. Talvez uma outra palavra pode ser mais adequada para o
dentro do jogo para não causar confusão nos jogadores.
5. Foi escrito “Uma clérigue” (Pág. 32), não sou uma pessoa trans não-binária, mas
acredito que no caso a escrita adequada seria “Ume clérigue”, mas reforço conferir
com uma pessoa trans não-binária. Acredito que foi o único uso da linguagem neutra
que me deixou em dúvida, devo dizer que fiquei muito feliz com o uso dela no texto.
6. Numa discussão um pouco mais na esfera pessoal. Recentemente estive
conversando com o Sanderson Virgolino por conta do nosso trabalho na Dragori
Games, e um dos assuntos acabou sendo um jogo de tabuleiro que possibilita que
os jogadores jogassem tanto como personagens negros da periferia quanto como
nazistas, o que nunca aconteceria em um jogo de sua autoria, mas em um dos
momentos da conversa levantamos sobre uma mecânica (acredito que por definição
é mais uma dinâmica do que mecânica, que foi proposta pelo autor) do jogo de
tabuleiro em que os jogadores de diferentes facções deveriam se “insultar”. A
problemática se deu no fato que no manual e vídeos do jogo o autor falava sobre
“insultar” sem ofender o outro jogador, e a situação que nos veio a mente é em como
um jogador jogando de nazista insultaria o jogador jogando de negro da periferia
sem ser racista e preconceituoso e também de como pessoas externas a vivências
de uma pessoa negra e de periferia fariam o roleplay do personagem da periferia
sem reproduzir estereótipos, uma vez que nem no manual nem nos vídeos eram
apresentadas reais vivências e contextos de uma pessoa negra da periferia e o que
não fazer para não reproduzir estereótipos. Talvez mais algumas intervenções e
exemplos um pouco mais diretos no manual sejam necessários para que o material
não seja usado de maneira divergente ao que é proposto, mesmo que não seja
intencional por parte do jogador.
Game Design e Usabilidade:

1. Senti falta de um glossário, como foi apontado nas observações da Leitura Sensível.
Acredito que seria necessário um glossário para termos sensíveis e não conhecidos
pelo público “normativo” e outro para elementos de jogo para facilitar a consulta e
navegação no material. Alguns termos como Normatividade, Normalidade e Cultos
podem ser confundidos com definições comuns e não como elementos de jogo.
Acredito que por conta de ser um material que ainda será refinado a versão final terá
algum elemento tipográfico ou de design que facilitará essa diferenciação, mas
acredito que vale a pena ressaltar.
2. Uma espécie “inventarial” com indicativos para as diferentes Cartilhas e seus
elementos pode ser interessante. Tendo em vista que a versão final com certeza
contará com Cartilhas editoradas acredito que talvez não seja necessário, mas
durante a leitura sensível por ter de montar a imagem de uma Cartilha mentalmente
alguns termos e elementos acabaram ficando um pouco abstratos e mais difíceis de
compreender.
3. Ao citar exemplos de Herdeiros, Heranças e Conceito (página 15) acredito que pode
ser interessante também em seguida exemplificar de maneira listada e resumida
quais seriam cada um desses três elementos. Assim o jogador tem o exemplo
contextualizado e detalhado, e também o mesmo exemplo de maneira simplificado
facilitando a consulta do material futuramente.
4. Senti falta de algumas mecânicas de interação direta com os outros jogadores.
Apesar dos Cultos serem um elemento comum que acredito que todes Herdeires
irão interagir com em algum momento do jogo, as habilidades e assimetrias
apresentadas na Seção “Herdeiros” parece não ter muitas formas de interagir
diretamente e cooperativamente com outro jogador. Tendo em vista ser um jogo
sobre vivências e experiências únicas sendo compartilhadas, algumas mecânicas
poderiam reforçar essa estética. (Relendo alguns termos como “Remova”, “Forneça”
parecem favorecer essas dinâmicas cooperativas, mas algo mais direcionado e
intencionado pode ressaltar a cooperação).
5. Reforçando a observação feita acima, gostaria muito de poder conferir o material
relacionado as mecânicas, pois acredito que as nossas intenções na esfera da
estética e dinâmica como designer também devem ser traduzidos por meio das
mecânicas. Fiquei curiosa e intrigada para poder interagir com as mecânicas dos
Herdeiros dos Antigos. O material por si só já foi provocante e estou apaixonada
pelo pouco que foi descrito e como game designer as mecânicas também são um
grande interesse meu.
6. Os personagens apresentados ao final do texto poderiam também ter uma seção
citando qual o seu Herdeiro, Herança e Conceito numa box resumida e simplificada
para uma consulta rápida. (Pág. 53)
7. Algumas sessões como “Coesão entre as Herdeiras” (Pág. 18) poderiam ser
acompanhadas de um subtítulo como “Narrando o jogo” para facilitar a consulta ao
abrir o livro/documento, mas também para a organização do sumário. Uma pequena
frase ou algumas palavras que contextualizam o jogador do que esperar daquela
sessão e/ou caixa de texto. Como leitora não sei se a intenção é que os títulos
também sejam provocativos e não deixem tudo claro à primeira vista, acredito que
essa decisão está muito relacionada a intenção.

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