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Mitcea Eliade
COLEÇÃO TÓPICOS
Bachelard, G. — A POÉTICA
Bachelard, G. — A POÉTICA
DO
DO
DEVANEIO
ESPAÇO
O Sagrado e o Proíano
Bachelard, G. — A ÁGUA E OS SONHOS
A essência das religiões
Bachelard, G. — O AR E OS SONHOS
Ferenczi, S. — THALASSA
Bergson, H. — MATÉRIA E MEMÓRIA
Bachelard, G. — A TERRA E OS DEVANEIOS DO REPOUSO
“Bachelard, G. — A TERRA E OS DEVANEIOS DA VONTADE
Merleau-Ponty, M. — SIGNOS
Eliade, M. — MEFISTÓFELES E O ANDRÓGINO
, Eliade, M. — IMAGENS E SÍMBOLOS
Panofsky, E. — ARQUITETURA GÓTICA E ESCOLÁSTICA
“ Eliade, M. — O SAGRADO E O PROFANO
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS:
Dumézil, G. — DO MITO AO ROMANCE

ig
Martins Fontes
nm
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Eliade, Mircea, 1907-1986,
O sagrado e o profano / Mircea Eliade ; [tradução Rogério) .
Fernandes], — São Paulo : Martins Fontes, 1992. < (Tópicos)
ISBN 85.336.0053-4 n Me
1. Religião 2. Sagrado 1. Título.
92.0565 CDD-200
Índices para catálogo sistemático:
1. Religião 200
2. Sagrado : Religião 200
SUMÁRIO
PREFÁCIO ........ E racer E PS
Título original: LE SACRÉ ET LE PROFANE INTRODUÇÃO ....... ab e RD
O Copyright by Rowohlt Taschenbuchverlag GmbH, 1957 Quando o sagrado se manifesta ............
& Copyright by Livraria Martins Fontes Editora Ltda..
Dois modos de ser no mundo
para a presente edição
O sagrado e a história ......... E
1º edição brasileira: março de 1992
Capítulo 1 — O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALI-
Tradução: Rogério Fernandes
Adaptação para a edição brasileira: Silvana Vieira ZAÇÃO DO MUNDO ......ti cre
Revisão tipográfica: Homogeneidade espacial e hierofania ..............
Edvaldo Ângelo Batista Peofanias (€ SIMAS assaz silas
Jonas Pereira dos Santos
Caos € CONDOS espe
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cia enem acanbenana RR
Produção gráfica: Geraldo Alves
Consagração de um lugar: repetição da cosmogonia .
Composição: Marcos de Oliveira Martins O “Centro do Mundo” ........ ore drop tg
“Nosso Mundo” situa-se sempre no centro ......... a
Capa — Projeto: PUF
Cidade — cosmos ........ es cisrene natas sr ass dr raennas
Todos os direitos para o Brasil reservados à Assumir a criação do mundo .........io.
LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Cosmogonia e Bauopfer ...
“Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 Templo, basílica, catedral ............ a go ag
01325 — São Paulo — SP — Brasil
por acordo com LIVROS DO BRASIL S/A, Lisboa.
Algumas conclusões ......iiiiiiitiiesceeeeimeicees
Fenomenologia da iniciação
inas ... 154
iapítulo H — O TEMPO SAGRADO E OS MITOS 59 Sociedades masculinas e sociedades femin
157
Duração profana e tempo sagrado o 99 Morte é iniciação ......cccenteneeo pautada em one a
tual ..... 159
Templum-tempus cs eemerses renan rasas amme nano
enmenere
ensure 62 O “segundo nascimento” e a criação espiri
no ..... Ciça NRO
Repetição anual da cosmogonia ..........iicseees 66 O sagrado e o profano no mundo moder
Regeneração pelo regresso ao tempo original ......... 68
emsesmero cone mae RR RR o)
O tempo festivo e a estrutura das festas ............ Pa Bibliografia .......... EE
Tornar-se periodicamente o contemporâneo dos deuses 77
Mito = modelo. exemplar ......eccescanseianemrssresato 80
Reatualizar Os Mitos .....ccisesesenenerersenenenentamemento 84
História sagrada, história, historicismo ...........
Capítulo III — A SACRALIDADE DA NATUREZA
E A RELIGIÃO CÓSMICA is
O sagrado celeste e os deuses uranianos .......... Is
O Deus longínquo ........ E a Ena 99
A experiência religiosa da vida .......... cenario 102
Perenidade dos símbolos celestes ............... suriiseeao 104
Estrutura do simbolismo aquático ......csicesios 105
História exemplar do batismo ..........iiissess 107
Universalidade dos símbolos ............... MR 111
Terra: MBB cr eneraseresarosseraesress PEER EA EE 113
Humi positio: deposição da criança no solo ............. 115
A mulher, a terra e a fecundidade ............ use 117
Simbolismo da árvore cósmica e cultos da vegetação 120
Dessacralização da natureza
Outras hierofanias cósmicas
Capítulo IV — EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA
SANTIFICADA ........... asesaranrrenesescs meses o 131
Existência ““aberta”” ao mundo ......sssaso marreensas 131
Santlicação da vida
A passagem pela porta estreita
Ritos de passagem ..c.. nm
PREFÁCIO
À ciência das dal enguan
a
primeira idascraligião, é uma FA século XIX),
À
2 sua fundação quase coincidiu com a da ciência. da linguagem. Max
Miller impôs a expressão “ciência das retigiões”” ou Ceiência compara-
da das religiões” ao utilizá-la no prefácio do primeiro volume de sua
obra Chips from a German Worshop (Londres, 1867).E certo
que o termo fora empregado esporadicamente antes (em 1852, pelo padre
Prosper Leblane, em 1858, por F. Stiefelhagen etc.), mas não no senti-
do rigoroso que Max Miiller lhe deu e que, desde então, passou a ser
amplamente adotado.
A primeira cátedra universitária de história das religiões foi criada
em Genebra no ano de 1878; em 1876, fundaram-se quatro na Holanda.
Em 18790 College de France, em Panis, criou também uma cátedra para
a disciplina, seguido em 1885 pela École des Hautes Eotudes da Sorbonne,
que organizou uma seção especial destinada ds ciências relegiosas. Na Umi-
versidade Livre de Bruxelas, a cadeira foi instituída em 1884. Em 1910
seguiu-se a Alemanha, com a primeira cátedra em Berlim, depois em Leipzig
cem Bonn. Os outros países europeus acompanharam o movimento.
O SAGRADO E O PROFANO )
PREFÁCIO Í 3
Em 1980, Vernes fundava em Paris a Révuc
de "Histoire
des Religions; em 1896, o dr. Achelis public ras (Egito, Pérsia, Trácia, Cítia etc.), e chegou até mesmo mo
ava o Archiv fir Re-
| ligionswissenschaft, em Friburg-Brisgau; hipóteses acerca de suas origens e relações com os cultos e as mitologias
em 1905, Wilhelm
Schmidt iniciava em St. Gabriel-Moôdling, perto da Grécia. Os pensadores pré-socráticos, ni pi sobre a natu-
de Viena, a revista
Anthropos, consagrada sobretudo às religiõ reza dos deuses e o valor dos muitos, jundaram a anne 2
es primitivas; em 1925
surge Studi e Materiali di Storia delle Relig da religião. Assim, por exemplo, para Parmênides (nascido por vo E
ioni, de R. Pettaz-
zont. de 320) e Empédocles (c. 495-435), os deuses eram a personificação
O primeiro Congresso Internacional de Ciência das forças da Natureza. Demócrito (c. 4603 70), por sua vez, pi
das Religiões acon-
teceu em Estocolmo, em 1897. Em 1900
teve tugar, em Paris,
ter-se interessado singularmente pelas religiões estrangeiras que, aliás,
o Con-
gresso de História das Religiões, assim denominado conhecia de fonte direta devido às suas numerosas viagens: o
por excluir dos seus
trabalhos a filosofia da religião e a teologia.
O oitavo congresso inter-
a ele, inclusive, um livro Sobre as inscrições sagradas da Babilô-
nacional foi realizado em Roma, em 1955. nia, as Narrativas caldéias e Narrativas frígias. Platão (FERA
Pouco a pouco multiplicaram-se as bibliografia utilizava fregiientemente comparações com as religiões dos bárbaros.
s, os dicionários,
as enciclopédias, as publicações das fontes, Quanto a Aristóteles (384-322), for O primeiro a formular, de manei-
Assinalemos sobretudo à
Encyclopaedia of Religion and Ethics (13 ra sistemática, a teoria da degenerescência religiosa da da (Me-
volumes, Edimburgo,
1908-1923), publicada sob a direção de J. Hastin tafísica, XII, capítulo 7), idéia que foi retomada ia vezes poste-
gs; Die Religion
in Geschichte und Gegenwart. Handwôrterbu riormente. Teofrasto (372-287), que sucedeu a Aristóteles na direção
ch fiir Theolo-
| gie und Religionswissenschaft (9 volumes, do Liceu, pode ser considerado o primeiro historiador grego das reli-
Tibingen, 1909-
1913); Religionsgeschichtliche Lesebuch, organi giões: segundo Diógenes Laércio (V. 48), Teofrasto compôs uma his-
zado por4. Ber-
tholet (Túbingen, 1908 e seg; 2º ed., 1926 rio religiões em seis livros.
e seg.); Textbuch zur
Religionsgeschichte, organizado for Ed. Lehma o o a partir das conquistas de Alexandre, o Grande (9356-323),
nn (Leipeio, 1912 E)
e, depois, por Ed. Lehmann e H. Haas; Fonte que os escritores gregos tiveram ocasião de conhecer diretamente e Eid
s Historiae Reli-
gionum ex auctoribus graecis et latinis,
organizadas
ver as tradições religiosas dos povos orientais. Sob Alexandre, Bérose,
por C. Cle-
men (Bonn, 1920 e seg); Bilderatlas zur sacerdote de Bel, publica suas Babyloniká. Megasténe, várias vezes
Religionsgeschichte,
bor H. Haas e colaboradores (Leiperg, 1924). enviado por Seleukos Nikator, entre os anos de 0 e 297, em embaixa-
Mas se a ciência das religiões, enquanto discip da ao rei indiano Chandragupta, publica Indiká. Hecateu de Adira
lina autónoma, só
teve início no século XIX, o interesse pela históri ou de Téos (365-270/275) escreve sobre os dupertiirans prá teu
a das religiões remon-
ta a um passado muito mais distante. Podemos logia dos egípcios os seus Aigyptiaká. O Sacerdote egipeio Manéton ( sé-
localizar sua primeira
manifestação na Grécia clássica, sobretudo à culo III) aborda o mesmo assunto em obra publicada sob o mesmo a
partir do século V. Esse
É interesse manifestava-se, por um lado, nas
descrições dos cultos estran-
lo. Foi assim que o mundo alexandrino passou a conhecer um grande
o ' A geiros e nas comparações com os fatos religiosos número de mitos, ritos e costumes religiosos exóticos.
nacionais — intercala-
e so das nos relatos de viagens — e, por outro No início do século III, em Atenas, Epicuro (341-270) empreen-
lado, na crítica filosófica
da religião tradicional. Heródoto (c. L84-c 4254. deu uma crítica radical da religião: segundo ele, o “consenso univer-
O) já apresentava
descrições admiravelmente exatas de algumas sal” prova que os deuses existem, mas Epicuro constdera-os seres supe-
religiões exóticas e bárha-
riores e longínguos, sem nenhuma relação com os homens. Suas teses
) O SAGRADO E O PROFANO PREFÁCIO
ganharam popularidade no mundo latino no século Ta. C., graças, so- primeiros séculos da era cristã, o evemerista Hlerennius Philon publicou
bretudo, a Lucrécio (c. 98-c. 53). sua História fenícia, Pausâmias a Descrição da Grécia — inesgo-
Mas foram os estóicos que, no final do período antigo, exerceram tdvel mina para o historiador das religides — e (o pseudo-) Apolodoro
uma influência profunda, ao elaborarem a exegese alegórica, método que sua Biblioteca consagrada à mitologia. O neopitagorismo e o neoplato-
lhes permitiu resgatar e, ao mesmo tempo, revalorizar a herança mito- nusmo efetuaram, a partir dessas obras, a revalorização da exegese espi-
lógica. Segundo os estóicos, os mitos revelavam visões filosóficas sobre ritualista dos mitos e dos ritos. Um representante típico dessa exegese
a natureza profunda das coisas, ou encerravam preceitos morais. Os é Plutarco (45-50-c. 125), particularmente no seu tratado De Iside
múltiplos nomes dos deuses designavam uma só divindade, e todas as et Osiride. Segundo Phutarco, a diversidade das formas religiosas é ape-
religiões exprimiam a mesma verdade fundamental; só variava a termi- nas aparente; os simbotismos revelam a umidade fundamental das reli-
nologia. O alegorismo estóico permitiu a tradução, numa linguagem sides. À tese estóica é expressa com um novo brilho por Sêneca (2-66):
universal e facilmente compreenstvel, de qualquer tradição antiga ou as múltiplas divindades são os aspectos de um Deus único. Por outro
exótica. O método alegórico alcançou sucesso considerável; desde então lado, as descrições das rehgiões estrangeiras e dos cultos esotéricos
passou a ser fregiientemente utilizado. multiplicam-se. César (101-44 a.C.) e Tácito (c. 55-120) forneceram
A idéia de que certos deuses eram reis ou heróts divinizados pelos informações preciosas sobre as religiões dos gauleses e dos germanos; Apu-
serviços que haviam prestado à humanidade abria caminho desde He- leio (século IT d.C.) descreveu a interação dos maistérios de Ísis; Luciano
ródoto. Mas foi Evêmero (c. 330-c. 260) que popularizou essa inter- apresentou o culto sírio no seu De Dea Syria (c. 120 dC.)
pretação pseudo-histórica da mitologia em seu livro A Inscrição Sa- Para os apologistas e os herestarcas cristãos, a questão se coloca-
grada. À grande difusão do evemerismo deveu-se, sobretudo, ao poeta va num outro plano, pois aos múltiplos deuses do paganismo eles opu-
Ennius (2939-169), que verteu para o latim A Inscrição Sagrada, nham o deus único da religião revelada. Era-lhes necessário, portanto,
aos polemistas cristãos, que mais tarde se apoderaram dos argumentos demonstrar, por um lado, a origem sobrenatural do cristianismo —
de Evêmero. Com um método muito mais rigoroso, o erudito Políbio e, por consegiuência, sua superioridade — e, por outro lado, tinham
(o. 210-209-0. 125).e o geógrafo Estrabão (c. 60-c. 25 dC.) de explicar a origem dos deuses pagãos, sobretudo a idolatria do mundo
esforçaram-se por esclarecer o fundo histórico que certos mitos gregos pré-cristão. Também precisavam explicar as semelhanças entre as reli-
podiam encerrar. giões dos mistérios e o cristianismo. Foram sustentadas várias teses:
Entre os ecléticos romanos, Cícero (106-43) e Varrão (116-27) 1) os demônios, nascidos do comércio dos anjos caídos com as “filhas
merecem menção especial pelo valor histórico-religiosó de suas obras. dos homens”, tinham arrastado os povos para a idolatria; 2) 0 plágio
Os quarenta livros das Antiguidades Romanas,/de Varrão, acu- (os anjos maus, conhecendo as profecias, estabeleceram semelhanças entre
mulavam uma erudição imensa. No De Natura Deórum, Cicero dava as religiões pagas e o judaísmo e o eristtantsmo, a fim de perturbarem
uma descrição bastante fiel da situação dos nitos e crenças no último os crentes; os filósofos do paganismo haviam inspirado suas doutrinas
século da era pagã. io em Moisés e nos profetas); 3) a razão humana pode elevar-se por si
À difusão dos cultos orientais e das religiões dos mistérios no Im- mesma ao conhecimento da verdade, portanto o mundo pagão podia ter
pério Romano, e o sincretismo religioso que daí resultou, sobretudo na um conhecimento natural de Deus.
Alexandria, favoreceu o conhecimento das religiões exóticas e as investi- A reação pagã tomou múltiplas mas. Manifestou-se pelo ataque
gações sobre as antiguidades religiosas dos diversos países. Nos dois wtolento, por volta de 178, do neopitagórico Celso contra a originalr-
O SAGRADO E O PROFANO PREFÁCIO
dade e o valor espiritual do cristianismo; pela Vida de Apolônio de samento no Ocidente. Na sua interpretação da religião, Averroes utili-
Tiana, escrita pelo sofista Filostrato (c. 175-149), onde são compa- zou o método simbólico e o alegorismo. Concluiu que todas as religiões
radas as concepções religiosas dos indianos, dos gregos e dos egípcios monoteístas eram verdadeiras, mas partilhava com Aristóteles a opi-
e que propõe um ideal de religiosidade pagã e de tolerância; pelo neo- não de que, num mundo eterno, as religiões apareciam e desapareciam
platônico Porfírio (c. 233-c. 305), discípulo e editor de Plotino, que numerosas vezes.
ataca habilmente o cristianismo utilizando o método alegórico; por Jâm- Entre os judeus da Idade Média, merecem destaque dois autores:
blico (c. 280-c. 230), que milita por um ideal de sincretismo e tole- Saadia (892-942), com seu livro Das crenças e das opiniões (pu-
rância. blicado por volta de 933), no qual faz uma exposição das religiões dos
No contra-ataque cristão distinguem-se, no grupo africano, Mi- brâmanes, cristãos e muçulmanos integrada a uma filosofia religiosa,
nucius Félix, Tertuliano, Lactâncio, Firminus Maternus e, no grupo e Maimônides (1135-1204), que empreendeu um estudo comparativo
alexandrino, os grandes eruditos Clemente de Alexandria e Origenss. das religiões, evitando cuidadosamente a posição do sincretismo. Nesse
Eusébio de Cesaréia na sua Crônica, Santo Agostinho na Cidade estudo, o autor tentou explicar as imperfeições da primeira religião re-
de Deus e Paulo Orósio nas suas Histórias trouxeram as últimas velada, o judaísmo, pela doutrina da condescendência divina e do pro-
refutações do paganismo, Concordavam com os autores pagãos ao sus- gresso da humanidade, teses que haviam sido utilizadas também pelos
tentarem a tese da degenerescência crescente das religiões. Nos seus es- padres da Tereja.
critos, como aliás nos escritos de seus adversários e dos outros autores A aparição dos mongóis na Ásia Menor e sua hostilidade em re-
cristãos, conservou-se um múimero considerável de informações histórico- tação aos árabes decidiram os papas a enviarem missionários a fim de
religosas sobre os mitos, ritos e costumes de quase todos os povos do se informarem das religiões e dos costumes desse povo. Em 1244 Ino-
Império Romano, bem como sobre Os gnósticos e as seitas heréticas cêncio IV enviou dois dominicanos e dois franciscanos, um dos quais,
cristãs, À sa Jean du Plan de Carpin, ao regressar de Karakorum, na Ásia Central,
No Ocidente, o interesse pelas religiões estrangeiras foi susci- escreveu o Historia Mongalorum. Em 1253, 8. Luís enviou Guil-
tado durante a Idade Média pelo confronto com o Islã. Em 411) laume Ruysbroeck a Karakorum, onde este, segundo conta, sustentou
Pedro, o Venerável, mandou que Roberto de Rétines iraduzisse 0 uma disputa contra os maniques e os sarracenos. Por fim, em 1274,
Corão, e em 1250 fundaram-se escolas de ensino do árabe. Nessa o veneziano Marco Polo publicou seu livro onde falava, dentre outras
data, o Islã já produzira obras importantes acerca das religiões pa- maravilhas do Oriente, da vida de Buda. Todos esses livros tiveram
gãs. Al-Biruni (973-1048) fizera uma deserção notável das reli- um sucesso imenso. Utilizando essa documentação nova, Vincent de
giões e das filosofias indianas; Chaharastani (m. 1153) escrevera Beauvats, Roger Bacon, Raymundo Lúlio, expuseram em seus escritos
um tratado sobre as escolas islâmicas; Ibn Hazn (994-1064) com- as crenças dos “idólatras”, dos tártaros, dos sarracenos e dos judeus.
pilara um volumoso e erudito Livro das soluções decisivas relati- As teses dos primeiros apologistas cristãos foram retomadas: de um la-
vas às religiões, seitas c escolas, onde falava do dualismo mas- do, a doutrina do conhecimento espontâneo de Deus; de outro, as teses
deísta e maniqueu dos brâmanes, judeus, cristãos, ateistas e das nume- da degenerescência e da influência dos demônios na difusão do politeísmo.
rosas seitas islâmicas. Mas era sobretudo Averroes (Ibn Roshd, A Renascença reencontra e revaloriza o paganismo, sobretudo graças
1126-1198) que, depois de uma profunda influência sobre o pensa- à moda alegorista do neoplatonismo. Mersiko Ficino (1433-1499) edi-
mento islâmico, estava destinado a provocar toda uma corrente de pen- tou Porfírio, o pseudo-Jâmblico, Hermes Trismegisto e compôs uma
O SAGRADO E O PROFANO
PREFÁCIO 9
Teologia platônica. Ficino considerava os últimos discípulos de Plo- tação das religiões exólicas, pagãs ou primitivas. Certos autores exerce-
tino os mais autorizados intérpretes de Platão. Os humanistas supu- ram uma grande influência, tanto pelas hipóteses que levantaram, co-
nham a existência de uma iradição comum a lodas as religiões, susten- mo pelas reações que suas obras provocaram ao longo do tempo: Fonte-
tando que o conhecimento desta bastava para a salvação e que, em su- nele, no seu Discours sur lorigine des fables (publicado em 1724,
ma, todas as religiões eram equivalentes. Em 1520 aparece a primeira mas composto entre 1680 e 1699), dá provas de um espírito histórico
hnstória geral das religiões: Omnium gentium mores, leges et ri- penetrante e antecipa as teorias animistas do século XIX; François Du-
tus, de Jean Boem, da ordem teutônica, onde se encontravam descritas puis publica em 1794 | Origine de tous les cultes, onde se esforça
as crenças da África, da Ásia e da Europa. por demonstrar que a história dos deuses, mesmo a vida de Cristo, não
Às descobertas geográficas dos séculos XV e XVI abriram novos passa de alegorias do curso dos astros, tese que será retomada pelos pan-
horizontes ao conhecimento do homem. religioso. As narrativas dos pri- babilonistas do fim do século XIX; Freidench Creuzer, na sua Symbo-
meiros exploradores foram reunidas em “coletâneas de viagens” e obti- lik und Mythologie der alten Volkern, besonders der Grie-
veram enorme sucesso entre os eruditos europ
À essas
eus.coletâneas chen (1810-1812), tenta reconstruir as fases primordiais das religiões
adicionaram-se em seguida as Cartas e os Relatos publicados pelos “pelágicas”” e orientais e mostrar o papel dos símbolos (suas teses fo-
nussionários da América e da China. Uma primeira tentativa de com- ram demolidas peto racionalista Christian August Lobeck numa obra
paração entre as religudes do Novo Mundo e as da Antigilidade foi feita enorme, publicada em 1829, Aglaophamus).
belo missionárioJ. Fr. Lafitau, em Moeurs des sauvages améri- Graças às descobertas feitas em todos os setores do ortentalismo na
cains comparées aux moeurs des premiers temps (Paris, 1724). primeira metade do século XIX, e graças também à constituição da filo-
O juiz Ch. de Brosses apresenta à Académie des Inscriptions, em 1757, logia indo-curopéia e da linguística comparada, a história das religiões
a memória Du culte des dicux fétiches ou Parallêle de Vancienne
atingiu seu verdadeiro impulso com Max Miiller (1823-1900). Em Es-
religion de "Egypte avec la religion actuelle de la Nigritie,
say on Comparative Mythology, que data de 1856, Miller abre
que a academia considerou audaciosa demais para ser publicada e que
uma longa série de estudos seus e dos partidários da sua teoria. Miller
apareceu anônima em 1760. Respondendo a Lafitau e inspirando-se
explica a enação dos muitos pelos fenômenos naturais — sobretudo as epi-
em Hume, Ch. de Brosses considera errada a suposição de que os povos
famias do Sol — e o nascimento dos deuses por uma “doença da lingua-
inicialmente tiveram de Deus uma concepção pura, que se foi degene-
sem”: o que, onginariamente, não passava de um nome, nomen, tormou-
rando através dos tempos; pelo contrário, visto que “o espírito humano
se uma divindade, numen. Suas teses trveram um sucesso considerável
se eleva por graus do mferior para o superior”, a primeira forma reli-
e só perderam a popularidade pelos fins do século XIX, depois dos
giosa só pode ter sido grosseira: o fetichismo — termo que Ch. de
Brosses utiliza no sentido vago de culto dos animais, vegetais e objetos trabalhos de W. Mannhardt (1831-1880) e Edward Burnett Tylor
inanimados. (1832-191 7). W. Mannhardt, em seu livro Wald-und Feldkulte
Os deistas ingleses, sobretudo D. Hume, os filósofos e enciclope- (1875-77), mostrou a importância da “baixa mitologia”, sobrevi-
distas franceses — J.-J. Rousseau, Voltaire, Diderot, d'Alembert — vente ainda nos rtos e nas crenças dos camponeses. Segundo ele,
e os iluminstas alemães (principalmente F. A. Wolfe Lessing) reto- essas crenças representam um estágio da religião mais antigo do que
mam com vigor a discussão do problema da religião natural. Mas fo- as mitologias naturistas estudadas por Max Miller. As teses de Man-
ram os eruditos que fizeram uma contribuição positiva para a interpre- nhardt foram retomadas e popularizadas por Sir, James George Frazer,
NO) O SAGRADO E O PROFANO PREFÁCIO 1
na obra The Golden Bough (1890; 3º edição 1907-1913, em 12 Wilhelm Wundt (1832-1920), William James (1842-1910) e Sig-
volumes). Em 1871 apareceu o livro de E. B. Tylor, Primitive Cul- mund Freud (1856-1939) propuseram explicações psicológicas da re-
ture, que fez época ao lançar uma nova moda, a do animismo: para lisião. A fenomenologia da religião teve o seu primeiro representante
o homem primitivo, tudo é dotado de uma alma, e essa crença funda- autorizado em Gerardus van der Leeuw (1890-1950).
mental e universal não só explicaria o culto dos mortos e dos aniepassa- Er
Atualmente,
os historiadores das religiõe. dos-entre-duas. es!
NT
DT da
dos, mas também o nascimento dos deuses. Uma nova teoria, a do pré- orientações melodológicas-divergentes, mas-complementares: uns-cons
A]
st MM
animismo, foi elaborada a partir de 1900 por R. R. Marveil, K. Th. centram sua atenção principalmente nas estruturas específicas. dos fe-,
Preuss e outros sábios: segundo essa teoria, na origem da religião nômenos religiosos, enquanto outros inleressam-se-de preferência pelo
encontra-se a experiência de uma força impessoal (mana). Uma críti- contexto histórico desses. fenômenos; os primeiros esforcam-se por com-
ca do animismo, mas partindo de outro ponto de vista, foi feita por preender a essência da religião, os outros trabalham por decifrar.e apre-
Andrew Lang (1844-1912), que constatou, nos níveis arcaicos de cul- sentar sua história.
tura, a crença em Seres supremos (All-Fathers), que não podia ser
explicada pela crença em espíritos. O. P. Wilhelm Schmidt (1868-
1954) retomou essa idéia e, elaborando-a nas perspectivas do método
hastórico-cultural, esforçou-se por demonstrar a existência de um momno-
teismo fundamental (ef. Der Ursprung der Gottesidee, 12 volu-
mes, 1912-1955),
Durante a primeira metade do século XIX surgem outros movi-
mentos. Emile Durkheim (1858-1917) julgava ter encontrado no tote-
masmo a explicação sociológica da religião. (O termo totem designa,
entre os Odjibwa da América, o animal cujo nome o clã usa e que é
considerado o antepassado da raça.)Já em 1869, J. F. Mac Lennan
afirmava que o totemismo constitut a primeira forma religiosa. Mas
investigações posteriores, sobreludo as de Frazer, mostraram que o tote-
mismo não se difundiu por todo o mundo e que, portanto, não podia
ser considerado a forma religiosa mais antiga. Lucien Lévy-Bruhl ten-

Ee
tou provar que o comportamento religioso se explicaria pela mentalida-
de pré-lógica dos primitivos — hipótese a que renunciou no fim da sua
vida. Mas essas hipóteses sociológicas não exerceram uma influência
duradoura sobre as investigações histórico-religiosas. Alguns etnólogos,
esforçando-se por fazer de sua disciplina uma ciência histórica, contri-
buiram indiretamente para a história das religiões. Entre esses etnólo-
sos, podemos citar Fr. Graebner, Leo Frobenius, W. W. Rivers, Wi-
thetm Schmidt na Europa, e a escola americana de Franz Boas
INTRODUÇÃO
Ainda nos lembramos da repercussão mundial que ob-
teve o livro de Rudolf Otto, Das Heilige (1917). Seu sucesso
era devido, sem dúvida, à novidade e à originalidade da pers-
pectiva adotada pelo autor. Em vez de estudar as idéras de
Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise das mo-
dalidades da experiência religiosa. Dotado de grande refinamento
psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de teólo-
go e de historiador das religiões, Rudolf Otto conseguiu es-
clarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência.
Negligenciando o lado racional e especulativo da religião, Otto
voltou-se sobretudo para o lado irracional, pois tinha lido Lu-
tero e compreendera o que quer dizer, para um crente, O
“Deus vivo”, Não era o Deus dos filósofos, o Deus de Eras-
mo, por exemplo; não era uma idéia, uma noção abstrata,
uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder ter-
rível, manifestado na “cólera” divina.
por clarifi-
Na obra Das Heilige, Rudolf Otto esforça-se
car ocaráter específico dessa experiência terríficae irracio-
Medo do
nal. Descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante
SNrrado
desse mysierium tremendum, dessa majestas que exala uma supe-
tievala mas Abas q fo sTAÇÃO o
SAGO 15
14 O SAGRADO É O PROFANO INTRODUÇÃO
|
rioridade esmagadorade poder; encontra o temor religioso dian- Quando o sagrado se manifesta
o :
te do mysterium fascinans, onde se expande a perf nitude
do ser. R. Otro designa todas essas experiênciascomo numino- O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
sas (do latim numen, ““deus”?) porque elas são provocadas pela
singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere*, radical e to- propusemoso termo Airofania. Este termo é cômodo, pois não
talmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cós- implica qualquer precisão suplementar: exprime apenas o que
mico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo
de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do. de sagrado se nos revela!, Poder-se-ia dizer que a história das re-
que uma criatura” — ou seja — segundo os termos com que ligiões — desde as mais primitivas às mais elaboradas — é cons-
Abraão se dirigiu ao Senhor —, de não ser “senão cinza e pó
229 tituída por um número considerável de hierofanias, pelas ma-
(Gênesis, 18: 27). nifestações das realidades sagradas. A partir da mais elemen-
O Ebodito
sagrado manifesta-se sempre tar hicrofania — por exemplo, a manifestação do sagrado num
EA como
atm uma
dE realidade-in-
objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até a hierofa-
infinita eng
das realidades “naturais”. É certo que a
teiramente diferente
linguagem exprime ingenuamente o iremendum, ou a majestas, nia suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus
ou o mpsterium fascinans medi » termos tomados de emprésti- em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade.
mo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem... Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifes-
tação de algo “de ordem diferente sc de uma realidade que.
Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justa-
mente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a lin- não pertence ao nosso mundo — em objetos que fazem parte
guagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiên-
cia naturaldo homem mediante termos eme tirados dessa mesma oa O homem ocidental moderno experimenta um certo mal-
if
experiência natural, estar diante de inúmeras formas de manifestação do sagrado:
Passados quarenta anos, as análises de R. Otto guardam ain- é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sa-
da seu valor; o leitor tirará proveito da leitura e da meditação de- grado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exem-
plo. Mas, como não tardaremos a ver, não se trata de uma
las. Mas nas páginas que seguem situamo-nos numa outra pers-
pectiva. Propomo-nos apresentar o fenômeno do sagrado em to- veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como drvo-
re. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como
y- da a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de trra-
cional. Não é a relação entre os elementos não-racional e racional pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias,
da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade. porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore,
Ora, a primeira definição que se pode dar ao.sagrado é que ele se mas O sagrado, o ganz andere.
Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toe
opõe ao profano. As páginas que o leitor vai abordar têm por obje- tremer een
Fo) Parado xy
tivo ilustrar e precisar essa oposição entre o sagrado e o profano. da hierofania, até
tda a mais eleme ms tar. Manifestando o sagrado,
1. VerM, Eliade, Die Religionen und das Heitigo, Salzburgo 1954. pp. a
* Em alemão no texto. (N, T.)
|
16 O SAGRADO E O PROFANO VINTRODUÇÃO 17
um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua | rito humano. Não é nossa tarefa mostrar mediante quais pro-
a ser ele mesmo, porque continua a participar
do meio cósmi- 'cessos históricos, e em consequência de que modificações do
comportamento espiritual, o homem moderno dessacralizou
pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto seu mundo e assumiu uma existência profana. Para o nosso
de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. propósito basta constatar que adessacralização caracteriza a dessácim
Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua experiência total do-homem não-religioso das sociedades mo-
realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatu- dernas, o qual, por essa razão, sente-uma dificuldade cada
ral, Em outras palavras,
para aqueles que têm uma experiên- vez maior em reencontrar as dimensõ jais do ho-
cia religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como mem religioso das sociedades arcaicas.
sacralidade cósmica. O Cosmos,
na sua totalidade, pode
tornar-se uma hierofania.
O homem corn das sociedades arcaicas
etem a tendência para Dois modos de ser no mundo
viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos
consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os Pode-se medir o precipício que separa as duas modali-
“primitivos” *, como para o homem de todas as sociedades pré- dades de experiência — sagrada e profana — lendo-se as des-
modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, crições concernentes ao espaço sagrado e à construção ritual
à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Po- da morada humana, ou às diversas experiências religiosas do
tência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, pere- Tempo, ou às relações do homem religioso com a Natureza
nidade e eficácia. rad
A oposição sagrado/profano
ami So Ai Se mu
traduz-se mui- e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria vida
tas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo-real, humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas fun-
(Não se deve esperar encontrar nas línguas arcaicas essa ter- ções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.). Bastará
minologia dos filósofos — real-irreal etc. —, mas encontra-se lembrar no que se tornaram, para o homem moderno e a-
a coise.) É, portanto, fácil de compreender que o homem reli- religioso, a cidade ou a casa, a Natureza, os utensílios ou o
gioso deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar- trabalho, para perceber claramente tudo o que o distingue
se de poder. de um homem pertencente às sociedades arcaicas ou mesmo
É deste assunto, sobretudo, que nos ocuparemos nas pá- de um camponês da Europa cristã. consciência
Para a mo-
ginas a seguir: de que maneira o homem religioso se esforça derna, um ato fisiológico — a alimentação, sexualidade
a etc.
por manter-se o máximo de tempo possível num universo sa- — não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qual-
grado e, consequentemente, como se apresenta sua experiên- quer que seja o número de tabus que ainda o envolva (que
cia total da vida em relação à experiência do homem privado impõe, por exemplo, certas regras para “comer convenien-
de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja vi- temente”” ou que interdiz um comportamento sexual que a
ver, num mundo dessacralizado. É preciso dizer, desde Já, moral social reprova). Mas para o “primitivo”, um mad
tal AtatoTES,
eindE
que o mundo profano na sua totalidade, o Cosmos totalmente nunca é simplesmente fisiológico; é, ou pode tornar-se, um
dessacralizado, é uma descoberta recente na história do espí- “sacramento”, quer dizer, uma comunhão com o sagrado.
18 O SAGRADO E O PROFANO INTRODUÇÃO 19
|
O leitor não tardará a dar-se conta deque o sagradoe dos fenômenos naturais. Ora, os progressos da etnologia cul-
o profano constituem duas medalidades de ser no Mundo, duas tural e da história das religiões mostraram que nem sempre
situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua isso ocorre, que as “reações do homem diante da Natureza”
história. Esses modos de ser no Mundo não interessam uni- são condicionadas muitas vezes pela cultura — portanto, em
camenteà história das religiões ou à sociologia, não consti- última instância, pela história.
tuem apenas o objeto de estudos históricos, sociológicos, et- Mas, para o nosso propósito, é mais importante salien-
nológicos. Em última instância, os modos de ser sagrado e pro- tar as notas específicas da experiência religiosa do que mos-
fano dependem das diferentes posições que o homem conquis- trar suas múltiplas variações e as diferenças ocasionadas pela
tou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao história. É um pouco como se, a fim de captarmos melhor
filósofo mas também a todo investigador desejoso de conhe- o fenômeno poético, apelássemos para uma massa de exem-
cer as dimensões possíveis da existência humana, plos heterogêneos, citando, ao lado de Homero, Virgílio ou
Por essa razão, o autor deste pequeno livro, embora um Dante, poemas hindus, chineses ou mexicanos — ou seja, to-
historiador das religiões, propõe-se não escrever unicamente mando em conta não só poéticas historicamente solidárias
da perspectiva da ciência que cultiva, O homem das socieda- (Homero, Virgílio, Dante) mas também algumas criações ba-
des tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus, mas seadas em outras estéticas. Do ponto de vista da história da
seu comportamento enquadra-se no comportamento geral do literatura, tais Justaposições são duvidosas — mas são váli-
homem e, por conseguinte, interessa à antropologia filosófi- das se temos em vista a descrição do fenômeno poético como
ca, à fenomenologia, à psicologia, tal, se nos propomos mostrar a diferença essencial entre a lin-
A fim de sublinhar melhor as notas específicas da exis- guagem poética e a linguagem utilitária, cotidiana.
tência num mundo suscetível de tornar-se sagrado, não hesi-
taremos em citar exemplos escolhidos entre um grande nú-
mero de religiões, pertencentes a idades e culturas diferen- O sagrado e a história
tes. Nada pode substituir o exemplo, o fato concreto. Seria
vão discorrer acerca da estrutura do espaço sagrado sem mos- O que nos interessa, acima de tudo, é apresentar as di-
trar, com exemplos precisos, como se constrói um tal espaço men: sões específicas da expexiência religiosa, salientar suas di-
e por que é que tal espaço se torna qualitativamente diferen- ferenças com a experiência profana do Mundo. Não insisti-
te do espaço profano que o cerca, Tomaremos esses exem- remos sobre os inumeráveis condicionamentos que a expe-
plos entre mesopotâmicos, indianos, chineses, kwalkiutls e ou- riência religiosa no Mundo sofreu no curso do tempo. É evi-
tras populações primitivas. Da perspectiva histórico-cultural, dente, por exemplo, que os simbolismos e os cultos da Terra-
uma tal justaposição de fatos religiosos, pertencentes a povos Mãe, da fecundidade humana e agrária, da sacralidade da
tão distantes no tempo e no espaço, não deixa de ser um tan- mulher etc. não puderam desenvolver-se e constituir um sis-
to perigosa, pois há sempre o risco de se recair nos erros do tema religioso amplamente articulado senão pela descoberta
século XIX e, principalmente, de se acreditar, como Tylor da agricultura. É igualmente evidente que uma sociedade pré-
ou Frazer, numa reação uniforme do espírito humano diante agrícola, especializada na caça, não podia sentir da mesma
O SAGRADO E O PROFANO
maneira, nem com a mesma intensidade, a sacralidade da
Terra-Mãe. Há, portanto, uma diferença de experiência re-
ligiosa que se explica pelas diferenças de economia, cultura
e organização social — numa palavra, pela história. Contu-
do, entre os caçadores nômades e os agricultores sedentários,
há uma similitude de comportamento que nos parece infini-
tamente
SR ig mais importante
ig do que suas diferenças: tanto uns co-
So CAPÍTULO 1
Cds outros vivem num Cosmos sacralizado; uns como outros parti-
“cipam de uma sacralidade cósmica, que se manifesta tanto O ESPAÇO SAGRADO
suas situações existenciais às de um homem das sociedades
E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO
modernas, vivendo num Cosmos dessacralizado, para imediatamen-
te nos darmos conta de tudo o que separa este último dos ou-
tros. Do mesmo modo, damo-nos conta da validade das com-
parações entre fatos religiosos pertencentes a diferentes cul-
Homogeneidade espacial e hicrofanta
turas: todos esses fatos partem de um mesmo comportamen-
to, que é o do homo religiosus.
Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço
Este livro pode, pois, servir como uma introdução geral
à história das religiões, visto que descreve as modalidades do apresenta roturas, quebras; há porções ERR a
sagrado e a situação do homem num mundo carregado de
valores religiosos. Mas não constitui uma obra da história das o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lu-
religiões no sentido estrito do termo, pois o autor não se deu gar onde te encontras é uma terra santa.” (Exodo, 3: 5). Há,
à tarefa de indicar, a propósito dos exemplos que cita, os res- ui espaço sagrado, e por consequência “forte”, sig-
portante, um
pectivos contextos histórico-culturais. Para fazê-lo, seriam ne- gif icativo,
Aida e há outros espaços não-sagrados, e por «consequência
cessários vários volumes. O leitor encontrará todas as infor- sem estrutura nem consistência em suma, amortos. Mais
mações adicionais na bibliografia.
traduz-se pela Esperiência de uma oposiçã
entre o espaço
o sa-
Saint-Cloud, abril de 1956 grado — o único que é real, que existe realmente — e todo 0.
Mircea Eliade resto, a extensão informe, que o cerca,
É preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da
não-homogeneidade do espaço constitui uma experiência pri-
mordial, que corresponde a uma “fundação do mundo”. Não
se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência
22 O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 23
religiosa primária, que precede toda a reflexão sobre o mun- riência do espaço “profano” que se opõe à experiência do es-
2
do. E a rotura operada no espaço que permite a constituição paço sagrado, e que é a única que interessa ao nosso objeti-
do mundo, porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo vo, O concerto do espaço homogêneo e a história desse concei-
central de toda a orientação futura. Quando o sagrado se ma- to (pois foi adotado pelo pensamento filosófico e científico des-
nifesta
por uma hicrofania qualquer, não só há rotura
na ho- de a Antigúidade) constituem um problema completamente
mogeneidade do espaço, como também revelação de uma reali diferente, que não abordaremos aqui, O que interessa à nos-
dade absoluta, que se opõe à do-realidade da imensa extensão sa investigação é a experiência do espaço tal como é vivida pelo
envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente homem não-religioso, quer dizer, por um homem que recusa
o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é pos- a sacralidade do mundo, que assume unicamente uma exis-
sível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhu- tência “profana”, purificada de toda pressuposição religiosa.
ma ortentação pode efetuar-se, a hierofania revela um “ponto É preciso acrescentar que uma tal existência profana ja-
fixo” absoluto, um “Centro”. mais
se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de des-
Vemos, portanto, em que medida a descoberta — ou se- sacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que
ja, a revelação — do espaço sagrado tem um valor existen- optou por uma vida profana não consegue abolir completa-
cial para o homem religioso; porque nada pode começar, na- mente o comportamento religioso. Isto ficará mais claro no
da se pode fazer sem uma orientação prévia — e toda orienta- decurso de nossa exposição: veremos que até a existência mais
ção implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização re-
que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer-se ligiosa do mundo.
no “Centro do Mundo”. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo Mas, por ora, deixemos de lado este aspecto do proble-
— e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogenei- ma € limitemo-nos a comparar as duas experiências em ques-
dade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou tão: a do espaço sagrado e a do espaço profano. Lembremo-
a projeção de um ponto fixo — o “Centro” — equivale à nos das implicações da primeira: arevelação de um espaço
Criação do Mundo, e não tardaremos a citar exemplos que sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo””, possibili-
mostrarão, de maneira absolutamente clara, o valor cosmo- tando,
secar A portanto,
de a orientação
PE a na homogeneidade caótica, a
sônico da orientação ritual e da construção do espaço sagrado. “fundação
2 Es do mundo”. o viver-real, mma
À experiência
Tt profana,
ao contrário, mantém a homogeneidade e portanto a relati-
é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitati- vidade do espaço. á não é ível nenhuma verdadeira orien-
Com sé Dis
vamente-as diversas partes de sua massa. O espaço geomé- E um
eu ”
trico pode ser cortado e delimitado seja em que direção for,
mas sem qualquer diferenciação qualitativa — e portanto sem lári izer,já-não há “Mundo”, há-apenas
qualquer orientação — de sua própria estrutura. Basta que fragmentos de um universo fragmentado, massa amorfa de
nos lembremos da definição do espaço dada por um clássico uma infinidade de “lugares mais ou menos neutros onde
da geometria. Evidentemente, é preciso não confundir o con- o homem se move, forçado pelas obrigações de toda existên-
cito do espaço geométrico homogêneo e neutro com a expe- cia integrada numa sociedade industrial.
O SAGRADO E O PROFANO () ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 2
E, contudo, nessa experiência do espaço profano ainda Uma função ritual análogaé transferida para o limiar
intervêm valores que, de algum modo, lembram a não- das habitações humanas, e é por essa razão que este último
homogencidade específica da experiência religiosa do espa- goza de tanta importância. Numerosos ritos acompanham a
ço. Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativa- passagem do limiar doméstico: reverências ou prosternações,
mente diferentes dos outros: a paisagem natal ou os sítios dos toques devotados com a mão etc, O limiar tem os seus “guar-
primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade es- diões””: deuses e espíritos que proíbem a entrada tanto aos
trangeira visitada na juventude. Todos esses locais guardam, adversários humanos como às potências demoníacas e pesti-
. mesmo para o homem mais francamente não-religioso, uma
lenciais. É no limiar que se oferecem sacrifícios às divinda-
qualidade excepcional, “única”: são os “lugares sagrados” des guardiãs. É também no limiar que certas culturas paleo-
do seu universo privado, como se neles um ser não-religioso orientais (Babilônia, Egito, Israel) situavam o julgamento, O
tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente da-
limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta
quela de que participa em sua existência cotidiana.
a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande im-
Conservemos esse exemplo de comportamento “cripto-
portância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mes-
religioso” do homem profano. No decurso de nosso traba-
mo tempo, de um veículo de passagem.
lho, teremos ocasião de encontrar outros exemplos desse tipo
Depois de tudo o que acabamos de dizer, é fácil com-
de degradação e dessacralização dos valores e comportamen-
tos religiosos. Mais tarde nos daremos conta da sua signifi- preender por que a igreja participa de um espaço totalmente
cação profunda. diferente daquele das aglomerações humanas que a rodeiam.
é transcen-
No interior do recinto sagrado, o mundo profano
dido. Nos níveis mais arcaicos de c!cultura, essa possibilidade
de transcendênci e-s pelas
exprime-se diferentes imagens de uma
Teofanias e sinais
abertura: Já, no recinto sagrado, torna-se possível a comuni-
A fim de pôr em evidência a não-homogeneidade do es- cação com os deuses; consequentemente, deve existir uma
paço, tal qual ela é vivida pelo homem religioso, pode-se fa- “porta” para o alto, por onde os deuses podem descer à Terra
zer apelo a qualquer religião. Escolhamos um exemplo ao al- e o homem pode subir simbolicamente ao Céu. Assim acon-
cance de todos: uma igreja, numa cidade moderna. Para um tece em numerosas religiões: o templo constitui, por assim
crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua dizer, uma “abertura” para o alto e assegura a comunicação
onde ela se encontra. À porta que se abre para o interior da com o mundo dos deuses.
igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O li- uma hierofania, umair-
Todo espaço sagrado implica
miar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a rupção do sagrado que tem como resultado destacar umOter-
distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O ritório do meio cósmico que o envolve e t ná-lo qualitativa-
limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que mente diferente. Quando, em Haran, Jacó viu em sonhos a
distinguem e opõem dois mundos — e o lugar paradoxa! on- escada que tocava os céus e pela qual os anjos subiam c des-
de esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar ciam, e ouviu o Senhor, que dizia, no cimo: “Eu sou o Eter-
a passagem do mundo profano para o mundo sagrado. no, o Deus de Abraão!”, , acordou tomado de temor e égritou:
O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZA ÇÃO DO MUNDO 2]
26 O SAGRADO E O PROFANO
2 suma, para encontrarum ponto de apoio absoluto. Um exem-
“Quão terrível é este lugar! Em verdade é aqui a casa de
Deus: é aqui a Porta dos Céus!” Agarrou a pedra de que fi- plo: persegue-se um animal feroz e, no lugar onde o matam,
zera cabeceira, erigiu-a em monumento e verteu azeite sobre eleva-se o santuário; ou então põe-se em liberdade um ani-
ela. A este lugar chamou Betel, que quer dizer “Casa de mal doméstico — um touro, por exemplo —, procuram-no
Deus” (Gênesis, 28: 12-19). O simbolismo implícito na ex- alguns dias depois e sacrificam-no ali mesmo onde o encon-
pressão “Porta dos Céus” é rico e complexo:a teofania con- traram. Em seguida levanta-se o altar e ao redor dele constrói-
sagra um lugar pelo próprio fato de torná-lo “aberto” para se a aldeia. Em todos esses casos, são os animais que revelam
——— são
a sacralidade do lugar, o que significa que os homens-não
ou
o alto, com o Cé u, ponto paradoxal
seja; comunicante de”
pai
livres de esco lher
o terreno-sag os homens não fazem
rado, queeso pe
contrar exemplos ainda mais precisos: santuários que são mais do que procurá-loe descobri-lo com a ajudade sinais mis-
“Portas dos Deuses” e, portanto, lugares de passagem entre teriosos.
o Céuea Terra. Esses poucos exemplos mostram-nos ós diferentes meios
Inúmeras vezes nem sequer há necessidade de uma teo- pelos quais o homem religioso recebe a revelação de um lu-
ditas: um sinal qual-
fania ou de uma hierofania propriamente gar sagrado. Em cada um desses casos, as hierofanias anula-
quer basta para indicar -a-sacralidade do lugar. “Segundo a ram a homogeneidade do espaço e revelaram um “ponto fi-
lenda, o morabito que fundou El-Hemel no fimdo século XVI xo”. Mas, vistoque-o-homenreligioso só consegue viver-nu-
parou, a fim de passar a noite, perto da fonte e espetou uma ma atmosfera impregnada do: sagrado, é preciso
Rs a a que tenha;
mos em conta uma quantidade de técnicas destina: a
vara na terra. No dia seguinte, querendo retomá-la a fim de
continuar seu caminho, verificou que a vara lançara raízes consagrarem-lhe o espaço. Como vimos, o sagrado é o real
por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de
e que tinham nascido rebentos. Ele viu nisso o indício da von-
tade de Deus e fixou sua morada nesse lugar.” É que o sinal vida e fecundidade. O desejo do homem religioso de viver
portador de significação religiosa introduz um elemento ab- no sagrado equivale, de fato, ao seu desejo de se situar na rea-
soluto e põe fim à relatividade e à confusão. Qualquer coisa que lidade objetiva, de não se deixar paralisar pela relatividade
não pertence a este mundo manifestou-se de maneira apodí- sem fim das experiências puramente subjetivas, de viver num
tica, traçando desse modo uma orientação ou decidindo uma mundo real e eficiente — e não numa ilusão. Esse comporta-
conduta. mento verifica-se em todos os planos da sua existência, mas
Quando não se manifesta sinal algum nasimediações, é sobretudo evidente no desejodo homem religioso, mover-
se unicamente num mundo santificado, quer dizer, num es-
o homem provoca-o, pratica, por exemplo, uma espécie de evo-
a s ajuda de animais:
catio )com dia são eles que mostram que lugar paço sagrado. É por essa razão que se elaboraram técnicas
éZ suscetívelde acolher
2.
em —
o santuário oua-aldeia. Trata-se, de orientação, que são, propriamente falando, técnicas de cons-
resumo, de uma evocação das formas ou figuras sagradas, ten- trução do espaço sagrado. Mas não devemos acreditar que se.
do como objetivo imediato a orientação na homogeneidade do trata de um trabalho humano, que é graças ao seu esforço que
h
o homem consagrar um espaço.
onsegue consag
consegue paç ri-
Na : realidade,o,.0o ri-
espaço. Pede-se um sinal para pôr fim à tensão provocada pela rói sagra
um espaço
homem coconst eficiente
é eficiente
do o
sagrad
relatividade e à ansiedade alimentada pela desorientação, em ao a qual o homem
tual peloA
28 O SAGRADO É O PROFANO
O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 29
na medida em que ele-reproduz a obra dos deuses. A fim de com-
preendermos melhor a necessidade de construir ritualmente “Tudo isso sobressai com muita clareza do ritual védico
o espaço sagrado, É preciso insistir um pouco na concepção concernente à tomada de posse de um território: a posse torna-
tradicional do “'mundo"': então logo nos daremos conta de se legalmente válida pela ereção de um altar do fogo consa-
que o “mundo” todo é, para o homem religioso, um “mun- «rado a Agni. “Diz-se que se está instalado quando se cons-
do sagrado”. truiu um altar do fogo (gárhapatya), c todos aqueles que cons-
troem um altar do fogo estão legalmente estabelecidos” (Sha-
tapatha Brâhmana, VII, I, 1, 1-4). Pela ereção de um altar do
Caos e cosmos fogo, Agni tornou-se presente e a comunicação com o mun-
do dos deuses está assegurada: o espaço do altar torna-se um
O que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposi- espaço sagrado. Mas o significado do ritual é muito mais com-
ção que elas subentendem entre o seu território h plexo, e quando nos damos conta de todas as suas articula-
spots Tra -
CLOMDAD o espaço desconhecido e indeterminado que ções compreendemos por que a consagração de um território
metro
é o “mundo”, mais precisamente equivale à sua cosmização, Com efeito, a ereção de um altar
o Cosmos; o restante já não é um Cosmos, Arias
mas uma espécie a Agni não é outra coisa senão a reprodução — em escala
de “outro mundo”, um espaço estrangeiro, caótico, povoa- microcósmica — da Criação. A água onde se amassa a argila
rege reed a fitas
dode espectros, demônios, “estranhos” (equiparados, aliás, é equiparada à Água primordial; a argila que serve de base
aos demônios e às almas dos mortos). À primeira vista, essa ao altar simboliza a Terra; as paredes laterais representam
rotura no espaço parece devida à oposição entre um territó- a Atmosfera etc. E a construção é acompanhada de estrofes
rio habitado e organizado, portanto “cosmizado”, e o espa- explícitas que proclamam qual região cósmica acaba de ser
ço desconhecido que se estende para além de suas fronteiras: criada (Shatapatha Br. 1, 9, 2, 29 ete.). Consequentemente,
tem-se de um lado um “Cosmos” e de outro um “Caos”, a elevação de um altar do fogo — a única maneira de validar
Mas é preciso observar que, se todo território habitado é um a posse de um território — equivale a uma cosmogonia.
“Cosmos”, é justamente porque foi consagrado previamen- Um territóriodesconestrangeiro,
hecido desocupado
; (no
te, porque, de um modo ou outro, esse território é obra dos sentido, muitas vezes, de desocupado pelos “nossos””) ainda
deuses ou está em comunicação com o mundo deles. O “Mun- faz parte da modalidade fluidae larvar
do “Caos'”. Ocupan-
do” (quer dizer, “o nosso mundo”) é um universo no inte- do-o e, Mine
forca
sobretudo,
sena
instalando-se, o homem
ai transforma-o
O e cima im ernperm sim-
trio
rior do qual o sagrado já se manifestou e onde, por conse- bolicamente
em Cosmos mediante uma repetição ritual
da cos-
quência, a rotura dos níveis tornou-se possível e se pode re- mogonia, O que deve tornar-se “o nosso mundo”, deve ser
petir. É fácil compreen porder
que o eligioso im- “criado” previamente, e toda criação tem um modelo exem-
plica o FF“momento cosmogônico”"»:-o-sagrado revela a reali- plar: a Criação do Universo pelos deuses. Quando os colo-
dade absoluta e, ao mesmo tempo, torna-possível.a orienta- nos escandinavos tomaram posse da Islândia (land-náma) e a
ção — portanto, funda o mundo, no-sentido de que fixa os li- arrotearam, não consideraram esse empreendimento nem co-
mitese, assim, estabelece a ordem cósmica. mo uma obra original, nem como um trabalho humano e pro-
fano. Para eles, seu trabalho rião era mais do que a repetição
O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 31
30 O SAGRADO E O PROFANO
de um ato primordial: a transformação do Caos em Cosmos, tralianos cuja economia se encontra ainda no estágio da co-
pelo ato divino da Criação, Trabalhando a terra desértica, lheita é da caça miúda. Segundo as tradições dos achilpa, uma
repetiam de fato o ato dos deuses que haviam organizado o tribo Arunta, o Ser divino Numbakula “cosmizou””, nos tem-
Caos, dando-lhe uma estrutura, formas e normasl, pos míticos, o futuro território da tribo, criou seu Antepassa-
uma terra incultaou de. con-
arrotear nina
Quando se trata de meme do e fundou suas instituições. Do tronco de uma árvore da
goma, Numbakula moldou o poste sagrado (hauva-auwa) e,
res humanos, a tomada de posse ritual deve, de qualquer mo- depois de o ter ungido com sangue, trepou por ele e desapa-
do, repetir a cosmogonia, Porque,da perspectiva das soci receu no Céu. Esse poste representa um eixo cósmico, pois
dades arcaicas, tudo o que não é “o nosso mundo” não é ain- foi à volta dele que o território se tornou habitável, transfor-
da um “mundo”. Não se faz ““nosso”” um território senão. mou-se num “mundo”. Daí a importância do papel ritual
“criando-o”" de novo, quer dizer, consagrando-o. Esse com- do poste sagrado: durante suas peregrinações, os achilpa
portamento religioso em relação a terras desconhecidas transportam-no sempre consigo e escolhem a direção que de-
prolongou-se, mesmo no Ocidente, até a aurora dos tempos vem seguir conforme a inclinação do poste. Isto permite que
modernos. Os “conquistadores” espanhóis e portugueses to- os achilpa, embora se desloquem continuamente, estejam sem-
mavam posse, em nome de Jesus Cristo, dos territórios que pre no “seu mundo” e, ao mesmo tempo, em comunicação
haviam descoberto e conquistado. A ereção da Cruz equiva- com o Céu, onde Numbakula desapareceu. Se o poste se que-
lia à consagração da região e, portanto, de certo modo, a um bra, é a catástrofe; é de certa maneira o “fim do Mundo”,
“novo nascimento”. Porque, pelo Cristo, “passaram as coi- a regressão ao Caos. Contam Spencer e Gillen que, tendo-se
sas velhas; eis que tudo se fez novo” (II Coríntios, 5:17). A quebrado uma vez o poste sagrado, toda a tribo foi tomada
terra recentemente descoberta era “renovada”, “recriada” de angústia; seus membros vaguearam durante algum tem-
pela Cruz. po e finalmente sentaram-se no chão e deixaram-se morrer?
Esse exemplo ilustra admiravelmente, e a um só tempo,
a função cosmológica do poste ritual e seu papel soteriológi-
Consagração de um lugar: repetição da cosmogonia co: de um lado, o kauwa-auwa reproduz o poste utilizado por
Numbakula para cosmizar o mundo; de outro, é graças ao
poste que os achilpa acreditam poder comunicar-se com o do-
É importante compreender que a cosmização dos terri-
tórios desconheci s É sempre uma consagração: organizan-
mínio celeste. Ora, a existência humana só é possível graças
a essa comunicação permanente com o Céu. O “mundo” dos
do um espaço, reitera-se a obra exemplar dos deuses. A rela-
ici achilpa só se torna realmente o mundo deles na medida em
ção íntima entre cosmização e consagração atesta-se já aos níveis
que reproduz o Cosmos organizado e santificado por Num-
elementares de cultura, por exemplo entre os nômades aus-
sakula. Não se pode viver sem uma “abertura” para o trans-
1, Cf, Mircea Eliade, Der Mythos der ewigen Wiederkehr, Dusseldorf, 1953. I, p. 388.
2, B. Spencer e F. J. Gillen, The Arunta, Londres, 1926,
pp- 23 ss.
2 O SAGRADO E O PROPANU O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 33
cendente; em outras palavras, não se pode viver no “Caos” níveis cósmicos (o mundo de baixo, a Terra, o Céu): no pon-
Uma vez perdido o sonisio com o transcendente, a existên- to onde o poste entra no Céu encontra-se a “Porta do Mun-
cia no mundo já não é possível — e os achilpa deixam-se do do alto”. À imagem visível desse pilar cósmico é, no Céu,
morrer. a Via Láctea, Mas essa obra dos deuses que é o Universo é
Instalar-se num território equivale, em última instância, retomada e imitada pelos homens à escala deles. O Axis mun-
aconsagrá-lo. Quando a instalaçãojá não é provisória, co- di que se vê no Céu, sob a forma da Via Láctea, tornou-se
mo nos nômades, mas permanente, como é o caso dos seden-. presente na casa cultual sob a forma de um poste sagrado.
tários, implica uma decisão vital que compromete a existên-
casei
É um tronco de cedro de dez a doze metros de comprimento,
cia de toda a comunidade. “Situar-se”” num lugar, organizá- do qual mais da metade sai pelo telhado da casa cultual. Esse
lo, habitá-lo — são ações que pressupõem uma escolha.exis- pilar desempenha um papel capital nas cerimônias: é ele que
tencial: -a.escolha do Universo que se tá pronto a assumir. confere uma estrutura cósmica à casa. Nas canções rituais,
ao “criá-lo” Ora, esse “Universo” ê sempre a réplica do a casa é chamada de “nosso mundo”, e os candidatos à ini-
Universo exemplar criado e e habipelos tado deuses: partici- ciação, que habitam nela, proclamam: “Estou no Centro do
pa, portanto, da santidade da obra dos deuses. Mundo... Estou perto do pilar do Mundo” etc.? — a mes-
O poste sagrado “dos achilpa “sustenta” o mundo deles ma assimilação do pilar cósmico ao poste sagrado, e da casa
e assegura a comunicação com o Céu. Temos aqui o protóti- cultual ao Universo, entre os Nad'a de Flores. O poste de
po de uma imagem cosmológica que teve uma grande difu- sacrifício chama-se “Poste do Céu”, e acredita-se que o Céu
são: a dos pilares cósmicos que sustentam o Céu e ao mesmo seja sustentado por ele*.
tempo abrem a via para o mundo dos deuses. Até sua cristia-
nização, os celtas e os germanos conservavam ainda o culto
desses pilares sagrados. O Chronicum laurissense breve, escrito O “Centro do Mundo”
por volta de 800, conta que Carlos Magno, por ocasião de
uma de suas guerras contra os saxões (772), mandou demo- O grito do neófito kwakiutl: “Estou no Centro do Mun-
lir, na cidade de Eresburg, o templo e o madeiro sagrado do do!””, revela-nos, de imediato, uma das mais profundas sig-
“famoso Irmensúl”” daquele povo. Rodolfo de Fulda (c. 860) nificações do espaço sagrado. Lá onde, por meio de uma hie-
enfatiza que essa famosa coluna é a “coluna do Universo, rofania, se efetuou a rotura dos níveis, operou-se ao mesmo
sustentando quase todas as coisas” (universalis columna quasi tempo uma e “abertura” em cima (o mundo divino) ou em-
sustinens ommnia). Encontra-se a mesma imagem cosmológica baixo (as regiões inferiores, o mundo dos mortos). Os três
entre os romanos (Horácio, Odes, Il, 3), na Índia antiga — níveis cósmicos — Terra, Céu, regiões inferiores — tornaram-
onde se fala do skambha, o pilar cósmico (Rig Veda, 1, 105;
X, 89, 4etc.) — e também entre os habitantes das ilhas Ca-
nárias e em culturas tão afastadas como as dos kwakiut] (Co- 3, Werner Múller, Weltbild und Kult der Kwakiuti-Indianer, Wiesbaden,
1955, pp: 17-20.
lúmbia britânica) e a dos Nad'a de Flores (Indonésia). Os &, P, Arndt, “Die Megalithenkultur des Nad'a” in Anthropos, 27, 1939,
kwakiut] acreditam que um poste de cobre atravessa os três pp. 61-62.
34 O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO
se comunicantes. Como acabamos de ver, a comunicação às Comecemos por um exemplo que tem o mérito de nos
vezes é expressa por meio da imagem de uma coluna univer- revelar, de imediato, a coerência e a complexidade de um tal
sal, Axis mundi, que liga e ao mesmo tempo sustenta O Céu simbolismo: a Montanha Cósmica, Acabamos de ver que a
e a Terra, e cuja base se encontra cravada no mundo de bai- montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação
xo (que se chama “Infernos””). Essa coluna cósmica só pode entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a monta-
situar-se no próprio centro do Universo, pois a totalidade do nha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numero-
mundo habitável espalha-se à volta dela. Temos, pois, de con- sas culturas falam-nos dessas montanhas — míticas ou reais
siderar uma seguência de concepções religiosas e imagens cos- — situadas no Centro do Mundo: é o caso do Meru, na Ífn-
dia, de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “Monte
mológicas que são solidárias e se articulam num “'sistema”,
qual
ao das socie-
se pode chamar de “sistema do Mundo” dos Países”, na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que
sede dades um
tradicionais: (a) uma rotu-
lugar. sagrado-constitui se chamava aliás “Umbigo da Terra”. Visto que a monta-
FEo(O ad nha sagrada é um Axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela
b ia e do espaç
ra na homogeneidad rotura é simboliza»
(b) essao;
toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mun-
Pê. da por uma “abertura”, por meio da qual se tornou possível
SS Tear do; daí resulta, pois, que o território que a cerca, e que cons-
a passagem de-uma região-cósmica-a outra (do Céu à Terra
Hyde
inferior); (c) a comuni- titui o “nosso mundo”, é considerado como a região mais
e vice-versa; da Terra para o mundo
e
um certo
ement alta. É o que proclama a tradição israelita: a Palestina, sen-
cação com o Céu é expressa indiferentpor
do a região mais elevada, não foi submersa pelo Dilúvio?. Se-
número de imagens referentes todas elas ao Axis mundi: pilar.
gundo a tradição islâmica, o lugar mais elevado da Terra é
(cf. a umiversalis columna), escada (cf. a escada de Jacó), mon-
a ká'aba, pois “a estrela polar testemunha que ela se encon-
tanha, árvore, cipós etc.; (d).em torno desse eixo. cósmico |
tra defronte do centro do Céu””. Para os cristãos, é o Gól-
estende-se o “Mu(“nosso
ndo mundo”? o eixo.
” — logo,
é o Centro. gota que se encontra no cume da Montanha cósmica. Todas
encontra-se “ao meio”, no “umbigo da Terra””,
essas crenças exprimem um mesmo sentimento, que é pro-
do Mundo. fundamente religioso: “nosso mundo” é uma terra santa por-
Um grande número de mitos, ritos e crenças diversas
que é o lugar mais próximo do Céu, porque daqui, dentre nós,
deriva desse “sistema do Mundo” tradicional. Não é o caso pode-se atingir o Céu; nosso mundo é, pois, um “lugar al-
de citá-los aqui. Parece-nos mais útil limitar-nos a alguns to”. Em termos cosmológicos, essa concepção religiosa traduz-
exemplos, escolhidos entre civilizações diferentes, e que po- se pela projeção do território privilegiado que é o nosso no
dem nos fazer compreender o papel do espaço sagrado na vi- cume da montanha cósmica. As especulações posteriores tira-
da das sociedades tradicionais — qualquer que seja, aliás, o
aspecto particular sob o qual se apresente esse espaço: lugar
santo, casa cultual, cidade, “Mundo”. Encontramos por to- 5. Ver as referências bibliográficas em Der Mpthos der ewigen Wiederkehr,
pp. 21 e segs.
da a parte o simbolismo do Centro do Mundo, e é ele que,
6. A. E. Wensinck e E. Burrows, citados em Der Mythos der exigen Wie-
na maior parte dos casos, nos permite entender o comporta- derkehr, p. 26.
mento religioso em relação ao “espaço em que se vive”. 7. Wensinck, citado em Der Mythos der ewigen Wiederkehr, p. 28.
O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 37
36 O SAGRADO E O PROFANO
original do poder real e, ao mesmo tempo, a cidade onde Za-
ram toda sorte de conclusões, por exemplo a que acabamos ratustra nasccra!l.
de ver a propósito da Palestina: que a Terra Santa não foi Quanto à assimilação dos templos às Montanhas cósmi-
submersa pelo Dilúvio. cas e à sua função de “ligação” entre a Terra e o Céu,
O mesmo simbolismo do Centro explica outras séries de testemunham-no os próprios nomes das torres e dos santuá-
ese iosas
imagens cosmológicas c crenças religentre as quais,va- rios babilônios: chamam-se “Monte da Casa”, “Casa do
y (4) as cidades
mos reter as mais importantes: santas c.os.san- Monte de todas as Terras”, “Monte das Tempestades”, “Li-
SAM tels ay
tuários situam-se no Centro do Mundo; (b) os templos são gação entre o Céu e a Terra” etc. 4 ziggurat era, propriamente
do cesto consequentemente,.consti-.
paca Montanha cósmica e,anita
réplicas da falando, uma Montanha cósmica: os sete andares represen-
Jo mundo
“ligação” por excelência entre.a Terra.e.o.Céu; (c).
es mea E a o 2 a"
tuem a tavam os sete céus planetários; subindo-os, o sacerdote as-
cendia ao cume do Universo. Um simbolismo análogo expli-
giões inferiores. Alguns exemplos serão suficientes. Em se- ca a enorme construção do templo de Barabudur, em Java,
guida trataremos de integrar todos esses diversos aspectos de erigido como uma montanha artificial. Sua escalada equiva-
um mesmo simbolismo; veremos então mais claramente co- le a uma viagem extática ao Centro do Mundo; atingindo o
mo são coerentes essas concepções tradicionais do Mundo. terraço superior, o peregrino realiza uma rotura de nível; pe-
A capital do soberano chinês perfeito encontra-se no Cen- netra numa “região pura”, que transcende o mundo profano.
tro do Mundo: aí, no dia do solstício do verão, ao meio-dia, Dur-an-ki, “ligação entreo Céu e a Terra”, era um no-
o gnomo não deve ter sombra”, É surpreendente encontrar me que se aplicava a vários santuários babilônios (em Nip-
o mesmo simbolismo aplicado ao Templo de Jerusalém: o ro- pur, Larsa, Sippar etc.). Babilônia tinha inúmeros nomes,
chedo sobre o qual se erguia o templo era o “umbigo da Ter- entre os quais “Casa da base do Céu e da Terra”, “Ligação
ra”. O peregrino islandês Nicolau de T'hvera, que visitara entre o Céu ca Terra”. Mas é ainda em Babilônia que se
Jerusalém no século XIII, escreveu acerca do Santo Sepul- fazia a ligação entre a Terra e as regiões inferiores, porque
cro: “É ali o meio do Mundo; ali, no dia do solstício do ve- a cidade havia sido construída sobre báb-apsú, “a Porta de
rão, a luz do Sol cai perpendicular do Céu””º, A mesma con- Apsú””, designando apsú as Águas do Caos anterior à Cria-
cepção no Irã: a região iraniana (Airyanam Vacjah) é o centro ção. Encontra-se a mesma tradição entre os hebreus: o ro-
e o coração do Mundo. Tal como o coração se encontra no chedo do templo de Jerusalém penetrava profundamente o
meio do corpo, “o país do Irã é mais precioso que todos os tchôm, o equivalente hebraico de apsit. E tal como na Babilô-
demais países porque está situado no meio do Mundo"1º. É nia havia a “Porta de Apsã”, o rochedo do templo de Jeru-
por isso que Shiz, a “Jerusalém” dos iranianos (por se en- salém tapava a “boca de tehôm”12.
contrar no Centro do Mundo), era reputada como o lugar
11, Ver as referências agrupadas e comentadas por Ringbom, pp. 294
8. M, Granet, em M. Eliade, Dre Religionen und das Heilige, Salzburgo, ss. et passim.
1954, p. 420. 12. Cf, referências em Der Mythos der ewigen Wiederkehr, pp. 28 ss., pp.
9. L. I. Ringbom, Graltempel und Paradies, Estocolmo, 1951, p. 255. 236 ss.
10. Sad-dar, 84, 4-5, citado por Ringbom, p. 327.
38 O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 39
O apsú, o tehóm simbolizam ao mesmo tempo o “Caos” salém representam cada um e ao mesmo tempo a imagem do
aquático — a modalidade pré-formal da matéria cósmica — e o mun- Universo e o Centro do Mundo. Essa multiplicidade de “Cen-
do da Morte, de tudo o que precede a vida e a sucede. A “Por- tros” e essa reiteração da imagem do mundo a escalas cada
ta de Apsú”” e o rochedo que oculta a “boca de lehóm”” desig- vez mais modestas constituem uma-das-notas-específicas das
nam não somente o ponto de intersecção — e portanto de co- sociedades tradicionais.
municação — entre o mundo inferior e a Terra, mas tam- Parece-nos que se impõe uma conclusão: o homem. religio-.
bém a diferença de regime ontológico entre esses dois planos cósmicos. so desejava viver o mais perto possíveldo Centro do Mundo. Sabia
Há rotura de nível entre tchôm e o rochedo do Templo que que seu país se encontrava efetivamente no meio da Terra;
lhe fecha a “boca”, passagem do virtual ao formal, da morte à vi- sabia também que sua cidade constituía o umbigo do Uni-
da. O Caos aquático que precedeu a Criação simboliza ao mes- verso e, sobretudo, que o Templo ou o Palácio eram verda-
mo tempo a regressão ao amorfo efetuada pela morte, o re- deiros Centros do Mundo; mas queria também que sua pró-
.
certo ponto.de
gresso à modalidade larvar da existDeência pria casa se situasse no Centro e que ela fosse uma imago mundi.
vista, as regiões inferiores são comparáveis às regiões desér- E, como vamos ver, acreditava-se que as habitações situavam-
ticas c desconhecidas que cercam o território habitado; o mun- se de fato no Centro do Mundo e reproduziam, em escala
do de baixo, por cima do qual se estabelece firmemente.o nos- microcósmica, o Universo. Em outras palavr as,
o homem das
so “Cosmos”, corresponde ao “Caos” que se estende junto sociedades tradicionais só podia viver. num espaço-““aberto”
às suas fronteiras. para o alto, onde a rotura de nível estava simbolicamente as-
segurada e a comunicação com o outro mundo, o mundo trans-.
cendental, era ritualmente possível. O santuário — o “Cen-
““Nosso Mundo” silua-se sempre no centro tro” por excelência — estava ali, perto dele, na sua cidade
o
e a comunicação com mundo dos deuses era-lhe afiançada.
De o que acabamos de dizer resulta que o “verda- pela simples entrada no templo, Mas o homo religiosus sentia
deiro mundo” se encontra sempre no “meio”, no “Centro”, a necessidade d viver sempre no Centro — tal como os achil-
e há
:
rotura.
pois é aí que “de
:
nível,
ne entre Rar
comunicação as três pa, que, como vimos, traziam sempre consigo o poste sagra-
zonas ur do, o Axis mundi, a fim de se não afastarem do Centro e per-
uma região (por exemplo, a
for sua extensão. + Todaareia
ja qual manecerem em comunicação com o mundo supraterrestre.
Palestina), uma cidade (Jerusalém), um santuário (o templo Numa palavra, sejam quais forem as dimensões do espaço
de Jerusalém) representam indiferentemente uma imago mundi. que lhe é familiar e no qual ele se sente situado — seu país,
Flávio José escreveu, a propósito do simbolismo do templo, sua cidade, sua aldeia, sua casa —, o homem religioso expe-
que o pátio figurava o Mar (quer dizer, as regiões inferio- rimenta a necessidade de existir sempre num mundo-total.e
res), o santuário representava a Terra, e o Santo dos Santos, organizado, num Cosmos, .
o Céu (Ant. Jud., HI, VI, 7). Verifica-se pois que a imago ina-se a partir do seu Centro, estende-
mundi, assim como o “Centro”, se repete no interior do mun- se a partir de um ponto central que é como o seu “umbigo”.
do habitado. A Palestina, Jerusalém e o Templo de Jeru- “E assim que, segundo o Rig Veda (X., 149), nasce e se desen-
são Posk
fevam
é Pelcur La E OTA ado JA nda =P
A DIM VEM
+) O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 41
volve o Universo: a partir de um núcleo, de um ponto cen- tende na direção dos quatro pontos cardeais, assim também
tral. A tradição judaica é ainda mais explícita: “O Santíssi- a aldeia se constitui a partir de um cruzamento. Em Bali,
tal como em certas regiões da Ásia, quando se empreende a
fa
mo criou o mundo como um embrião, Tal como o embrião
cresce a partir do umbigo, do mesmo modo Deus começou construção de uma nova aldeia, procura-se um eruzamen-2424 ulgolioro
a criar o mundo pelo umbigo e a partir daí difundiu-se em to natural, onde se cortam perpendicularmente dois cami- Cosmic
todas as direções,” E visto que o ““umbigo da Terra”, o Cen- nhos. O quadrado construído a partir de um ponto central ota nligers
tro do Mundo é a Terra Santa, Yoma afirma: “O mundo foi é uma imago mundi. A divisão da aldeia em quatro seto-
criado a começar por Sion!3, Rabbi bin Gorion disse do ro- res — que implica aliás uma partilha similar da comunida-
chedo de Jerusalém que “ele se chama a Pedra angular da de — corresponde à divisão do Universo em quatro horizon-
Terra, quer dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir dali tes. No meio da aldeia deixa-se muitas vezes um espaço
que toda a Terra se desenvolveu”!*, Por outro lado, uma vez vazio: ali se erguerá mais tarde a casa cultual, cujo telha-
que a criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí do representa simbolicamente o Céu (em alguns casos, o Céu
resulta que o primeiro homem foi fabricado no “umbigo da é indicado pelo cume de uma árvore ou pela imagem de uma
Terra” (tradição mesopotâmica), no Centro do Mundo (tra- montanha). Sobre o mesmo eixo perpendicular encontra-se,
dição iraniana), no Paraíso situado no ““umbigo da Terra” na outra extremidade, o mundo dos mortos, simbolizado
ou em Jerusalém (tradições judaico-cristãs). E nem podia ser por certos animais (serpente, crocodilo etc.) ou pelos ideo-
de outra forma, aliás, pois o Centroé justamente o lugar on- gramas das trevas”,
de se efetua uma rotura de nível, onde o espaço se torna sa- O simbolismo cósmico da aldeia é retomado na estrutu-
grado, real por excelência. Uma criação implica superabun- ra do santuário ou da casa cultual. Em Waropen, na Nova
dância de realidade, ou, em outras palavras,
uma irrupção. Guiné, a “casa dos homens” encontra-se no meio da aldeia:
no mundo...
do sagrado o telhado representa a abóbada celeste, as quatro paredes cor-
Segue-se daí que toda construção ou fabricação lem como me-
respondem às quatro direções do espaço. Em Ceram, a pe-
delo exemplar a cosmogonia. A Criação.do Mundo torna-se o ar-
dra sagrada da aldeia simboliza o Céu, e as quatro colunas
quétipo de todo gesto criador humano, seja qual. for seu pla-
de pedra que a sustentam encarnam os quatro pilares que sus-
no de referência. Já vimos que a instalação num território
tentam o Céu!º, Encontram-se concepções análogas entre as
reitera a cosmogonia. Agora, depois de termos captado o va-
tribos algonquinas e sioux. A cabana sagrada, onde se reali-
lor cosmogônico do Centro, compreendemos melhor por que,
zam as iniciações, representa o Universo. O teto da cabana
todo estabelecimento humano repete a Criação do.Mundo a
simboliza a cúpula celeste, o soalho representa a Terra, as
partirde um ponto.central.(o “umbigo””). Da mesma forma
quatro paredes as quatro direções do espaço cósmico. A cons-
que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se es-
15. Cf. C. T. Bertling, Vierzahl, Kreuz und Mandala in Asien, Ams-
13, Ver referências em Der Mythos der ewigen Wiederkehr, p. 29.
terdam, 1954, pp. 8 ss.
14, Citado por W. W, Roscher, Neue Omphalosstudien, in Abh, d, Kô-
nig. Sachs. Gesell. Wiss.-Phil. Klasse, 31, I, 1915, p. 16 16. Ver as referências em Bertling, op. cit., pp. 45.
42 O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E À SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 43
trução ritual do espaço é sublinhada por um triplo simbolis- “nosso mundo” foi fundado pela imitação da obra exemplar
mo: as quatro portas, as quatro janelas e as quatro cores sig- dos deuses, a cosmogonia, os adversários que o atacam são
nificam os quatro pontos cardeais. A construção da cabana equiparados aos inimigos dos deuses, aos demônios, e sobre-
sagrada repete pois a cosmogonia, pois esta casinha repre- tudo ao arquidemônio, o Dragão primordial vencido pelos
senta o Mundo!”, deuses nos primórdios dos tempos. O ataque de “nosso mun-
Não é surpreendente encontrar uma concepção similar do” equivale a uma desforra do Dragão mítico, que se rebe-
na Itália antiga e entre os antigos germanos. Trata-se, em la contra a obra dos deuses, o Cosmos, e se esforça por reduzi-
suma, de uma idéia arcaica e muito difundida: a partir de la ao nada. Os inimigos enfileiram-se entre as potências do
um Centro projetam-se os quatro horizontes nas quatro di- Caos. Toda destruição de uma cidade equivale a uma regres-
reções cardeais. O mundus romano era uma fossa circular, di- são ao Caos. Toda vitória contra o atacante reitera a vitória
vidida em quatro; era ao mesmo tempo a imagem do Cos- exemplar do Deus contra o Dragão (quer dizer, contra o
mos c o modelo exemplar do hábitat humano. Sugeriu-se com “Gaos"),
razão que a Roma quadrata deve ser entendida não como ten- É por essa razão que o faraó era assimilado ao deus Rá,
do a forma de um quadrado, mas como sendo dividida em vencedor do dragão Apophis, ao passo que seus inimigos eram
quatro!. O mundus era evidentemente equiparado ao ompha- identificados a esse Dragão mítico. Dario considerava-se um
tos, ao umbigo da Terra: a Cidade (Urbs) situava-se no meio novo Thraetaona, herói mítico iraniano de quem se dizia ter
do orbis terrarum. Demonstra-se, assim, que idéias similares matado um Dragão de três cabeças. Na tradição judaica, os
explicam a estrutura das aldeias e das cidades germânicas", reis pagãos eram apresentados sob os traços do Dragão: tal
Em contextos culturais extremamente variados, reencontra- é o Nabucodonosor descrito por Jeremias (51:34) e o Pom-
mos sempre o mesmo. esquema cosmológico ca mesma ence- peu apresentado nos Salmos de Salomão (IX., 29).
nação ritual: a instalação num território equivale à fundação de um Conforme ainda teremos ocasião de ver, o Dragão é a
mundo figura exemplar do Monstro marinho, da Serpente primor-
dial, símbolo das Águas cósmicas, das trevas, da Noite e da
Morte — numa palavra, do amorfo e do virtual, de tudo o
Cidade — cosmos que ainda não tem uma “forma”. O Dragão teve de ser ven-
cido e esquartejado pelo Deus para que o Cosmos pudesse
“nosso mundo” é um Cosmos, qualquer ata- vir à luz. Foi do corpo do monstro marinho Tiamat que Mar-
que exterior
ameaça transformá-lo em “Caos”. E dado que duk deu forma ao mundo. Jeová criou o Universo depois da
vitória contra o monstro primordial Rahab. Mas, como ve-
remos, essa vitória do deus sobre o Dragão deve ser repetida
17. Ver os materiais agrupados e interpretados por Werner Múller, simbolicamente todos os anos, pois todos os anos o mundo
Die Blaue Hiitte, Wiesbaden, 1954, pp. 60 e ss.
18. F. Altheim, in Werner Miller, Kreis und Kreuz, Berlim, 1938, PP. deve ser criado de novo. Da mesma maneira, a vitória do deus
60 ess, contra as forças das Trevas, da Morte e do Caos repete-se
19. W. Muller, op. cit., pp. 65 ss. a cada vitória da cidade contra os invasores.
O SAGRADO E O PROFANO O BSPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 45
É muito provável que as defesas dos lugares habitados elativamente à morada humana. Seria inútil insistir sobre
e das cidades tenham sido, no começo, defesas mágicas; es-. o valor e a função da habitação nas sociedades industriais;
sas defesas — fossas, labirintos, muralhas etc. — eram dis-
são suficientemente bem conhecidos. Segundo a fórmula de
postas a fim de impedir a invasão dos demônios e das almas
um célebre arquiteto contemporâneo, Le Corbusier, a casa
dos mortos mais do que o ataque dos humanos. No norte da
é uma “máquina para habitar”. Alinha-se, portanto, entre
India, na época de uma epidemia, descreve-se em volta da as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades in-
aldeia um círculo destinado a interdizer aos demônios da
cdustriais, A casa idealdo mundo moderno deve ser, antes de
doença a entrada no recinto??, No Ocidente, na Idade Mé-
tudo, funcional, quer dizer, deve permitir aos homens traba-
dia, os muros das cidades eram consagrados ritualmente co-
mo uma defesa contra o Demônio, a Doença e a Morte. Ahás,
se mudar a “máquina de habitar” tão frequentemente quanto
2pensa mento
simbólico não encontra qualquer dificuldade. se troca uma bicicleta, uma geladeira ou um carro, Pode-se,
em assimilar o inimigo humano ao Demônio e à Morte. Afi-
igualmente, mudar da cidade ou província natais, sem ne-
nal, o resultado dos ataques, sejam demoníacos ou militares,
é sempre o mesmo: a ruína, a desintegração, a morte.
nhum outro inconveniente além daquele que decorre da mu-
dança de clima. Eu
Notemos que nos nossos dias ainda são utilizadas as mes-
mas imagens quando se trata de formular os perigos que Não cabe no nosso tema descrever a história da lenta des-
ameaçam um certo tipo de civilização: fala-se do “caos”, de sacralização da morada humana. Esse processo faz parte in-
“desordem”, das “trevas” onde “nosso mundo” se afun- tegrante da gigantesca transformação do mundo assumida pe-
dará. Todas essas expressões significam a abolição de uma las sociedades industriais — transformação que se tornou pos-
ordem, de um Cosmos, de uma estrutura orgânica,
sível pela dessacralização do Cosmos, a partir do pensamen-
€ a rei-
mersão num estado fluido, amorfo, enfim, caótico. Isto pro- to científico e, sobretudo, das descobertas sensacionais da fí-
va, ao que parece, que as imagens exemplares sobrevivem sica e da química. Mais tarde, teremos ocasião de indagar
ainda na linguagem e nos estribilhos do homem não-religioso, se essa secularização da Natureza é realmente definitiva, se
Algo da concepção religiosa do Mundo prolonga-se ainda no não há nenhuma possibilidade, para o homem não-religioso,
comportamento do homem profano, embora ele nem sempre de reencontrar a dimensão sagrada da existência no Mundo.
tenha consciência dessa herança imemorial. Como acabamos de ver, e como veremos ainda melhor nas
páginas seguintes, algumas imagens tradicionais, alguns tra-
ços da conduta do homem arcaico persistem ainda no estado
Assumir a criação do mundo de ““sobrevivências””, mesmo nas sociedades mais industria-
lizadas. Mas o que nos interessa no momento é mostrar, no
Sublinhemos a diferença radical que se assinala entre os estado puro, o comportamento religioso em relação à habita-
dois comportamentos — tradicional (religioso) e profano — ção e esclarecer a concepção do mundo que ele implica.
Instalar-se num território, construir uma morada pede,
conforme vimos, uma decisão vital, tanto para a comunida-
20. M. Eliade, Die Rebigionen und das Heilige, p. 420.

Pelas
de como para o indivíduo. Trata-se de assumir a criação do
O ESPAÇO SAGRADO E 4 SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 47
46 O SAGRADO E O PROFANO
“mundo” que se escolheu habitar. É preciso, pois, imitar a obra tos histórico-culturais. Basta dizer que o primeiro meio —
ou seja, a “cosmização” de um espaço pela projeção dos ho-
dos deuses, a cosmogonia. Mas isso nem sempre é fácil de
rizontes ou pela instalação do Axis mundi — é atestadojá nos
fazer, pois existem também cosmogonias trágicas, sangren-
estágios mais arcaicos de cultura (por exemplo, o poste kauwa-
tas: como imitador dos gestos divinos, o homem deve reiterá-
auwa dos australianos achilpa), ao passo que o segundo meio
las. Se os deuses tiveram de espancar e esquartejar um Mons-
parece ter sido inaugurado na cultura das Urpflanzer*. O que
tro marinho ou um Ser primordial para poderem criar a par-
interessa à nossa investigação é o fato de que, em todas.as
tir dele o mundo, o homem, por sua vez, deve imitar essa
ação quando constrói seu mundo próprio, a cidade ou a ca-
grado pelo próprio fato de refletir o Mundo.
sa. Daí a necessidade de sacrifícios sangrentos ou simbólicos
Com efeito, a morada das populações primitivas árticas,
por ocasião das construções, as inúmeras formas de Bauopfer*,
norte-americanas e norte-asiáticas apresenta um poste cen-
acerca do qual teremos ocasião de dizer mais tarde algumas
tral que é assimilado ao Axis mundi, quer dizer, ao Pilar cós-
palavras.
mico ou à Árvore do Mundo, que, como vimos, ligam a Ter-
Seja qual for a estrutura de uma sociedade tradicional ra ao Céu. Em outras palavras, na própria estrutura da habitação
| Eae seja uma sociedade de caçadores, pastores, agricultores,
revela-se o simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi. O Céu.
A Ja ou uma sociedade que já se encontre no estágio da civiliza- a
é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pi-
:: ção urbana —, a habitação é sempre santificada, pois consti- ,
lar central: a estaca da tenda ou o poste central da casa são
“tui uma imago mundi, e o mundo é uma criação divina. Mas
assimilados aos Pilares do Mundo e designados por este no-
existem várias maneiras de equiparar a morada ao Cosmos, tem um papel ritual importante: é na
me. Esse poste central
justamente porque existem vários tipos de cosmogonia. Para
sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do Ser supre-
nosso propósito, basta-nos distinguir dois meios de transfor-
mo celestial. O mesmo simbolismo conservou-se entre os pas-
mar ritualmente a morada (tanto o território como a casa)
tores criadores de gado da Ásia central, mas, como a habita-
em Cosmos, quer dizer, de lhe conferir o valor de imago mun-
ção de teto cônico com pilar central foi substituída aqui pela
di: («) assimilando-a ao Cosmos pela projeção dos quatro ho-
sAgrtAite yourte, a função mítico-ritual do pilar é atribuída à abertura
rizontes a partir d central, quando se tratede uma
superior de evacuação da fumaça, Tal como o poste ( = Axis
Copel) aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis mundi quando se
mundi), a árvore desprovida de ramos cujo cimo sai pela aber-
trate da habitação familiar; (5) repetindo, mediante um ri-|
tura superior da pourte (e que simboliza a Árvore cósmica) é
tual de construção , O ato exemplar dos deuses. , graças ao qual
concebida como uma escada que conduz ao Céu: os xamãs
o Mundo tomou nascimento do corpo de um Dragão mari- trepam por ela na sua viagem celeste. E é pela abertura su-
Não nos incumbe discutir
nho ou de um Gigante primordial.
perior que saem os xamãs?!, Encontra-se ainda o Pilar sa-
aqui a diferença radical de “Concepção do Mundo” entre
esses dois meios de santificar a morada, nem seus pressupos-
* Plantas originárias. Em alemão no texto. (N. T.)
21. M. Eliade, Le Chamanisme et les techniques archaiques de "extase, Paris,
1951, pp. 238 ss.
* Em alemão no texto. (N. T.)
48 O SAGRADO E O PROFANO
O ESPAÇO SAGRADO E 4 SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 49
grado, erguido no meio da habitação, na África, entre os po-
mordial, Tiamat, que o deus Marduk deu forma ao Univer-
vos hamitas e hamitóides??,
so. Essa vitória era simbolicamente reiterada todos os anos,
Concluindo, toda morada situa-se perto do Axis mundi, visto que todos os anos se renovava o Cosmos. Mas o ato
pois o homem religioso só pode viver implantado na realida- exemplar da vitória divina era igualmente repetido por oca-
de absoluta. sião de qualquer construção; pois toda nova construção re-
produzia a Criação do Mundo.
Esse segundo tipo de cosmogonia é muito mais comple-
Cosmogonia e Bauopfer xo e não faremos aqui mais do que esboçá-lo. Mas é impor-
tante mencioná-lo porque, em última instância, é a uma tal
Uma concepção similar encontra-se também numa cul- cosmogonia que se relacionam as inúmeras formas do Bauop-
tura altamente evoluída como a da Índia, mas neste caso fer. Este não é, em suma, mais do que uma imitação, muitas
apresenta-se igualmente a outra maneira de equiparar a casa vezes simbólica, do sacrifício
ao Cosmos, acerca da qual já dissemos algumas palavras. u certo tipo de cultura,
ao Mundo. Com efeito, a partir | de um
Com efeito, antes de os pedreiros colocarem a primeira o mito cosmogônico explica a Criação pela morte de um Gi-
pedra, o astrólogo indica-lhes o ponto dos alicerces que se si- gante (Ymir na mitologia germânica, Purusha na mitologia
tua acima da Serpente que sustenta o mundo. Um mestre- indiana, P'an-ku na China): seus órgãos dão nascimento às
de-obras talha uma estaca e a enterra no solo, exatamente diferentes regiões cósmicas. Segundo outros grupos de mi-
no ponto designado, a fim de fixar bem a cabeça da serpen- tos, não é somente o Cosmos qué nasce na sequência da imo-
te. Uma pedra de base é colocada em seguida por cima da lação de um Ser primordial e da-sua-própria substância, mas.
estaca. À pedra angular encontra-se assim exatamente no “Centro do também as plantas alimentares, as. raças humanas ou as dife-

Fog ce
Mundo "23, Mas, por outro lado, o ato de fundação repete rentes classes sociais. É desse tipo de mitos cosmogônicos
que
o ato cosmogônico: enterrar a estaca na cabeça da serpente dependem os Bauopfer. Sabe-se que, para durar, uma “*cons-
e “fixá-la”” é imitar o gesto primordial de Soma ou de Indra, trução” (casa, templo, obra técnica etc.) deve ser animada,

septo
quando este último, conforme diz o Rig Veda, “Teriu a ser- quer dizer, receber ao mesmo tempo uma vida e uma alma.
pente no seu antro” (IV, 17,9) e “cortou-lhe a cabeça”” com O “traslado” da alma só é possível mediante um sacrifício
seus raios (1, 52, 10), Como já dissemos, a Serpente simboliza sangrento. À história das religiões, a etnologia, o folclore apre-
o Caos, o amorfo, o não-manifestado. Decapitá-la equivale a um ato sentam inúmeras formas de Bauopfer, quer dizer, sacrifícios
de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal. Lembre- sangrentos ou simbólicos em proveito de uma construção?*.
mo-nos de que foi do corpo de um monstro marinho pri- No sudeste da Europa, esses ritos e crenças deram origem
a admiráveis baladas populares, que poêm em cena o saerifí-
22. Wilhelm Schmidt, “Der heilige Mittelpfahl des Hauses”, in Anthro-
pos, 35-36, 1940-1941, p. 967. fiir Ethnologie,
24. Cf, Paul Sartori, “Úber das Bauopfer", in Zeitschrif
23, S. Stevenson, The rites of the Tavice-born, Oxford, 1920, p. 354. 30, 1938, pp. 1-54,
50 O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 51
cio da mulher do mestre-de-obras, para que se possa acabar diferentes formas de habitação. Em outras culturas, esses sig-
uma construção (por exemplo, as baladas da ponte de Arta, nificados cosmológicos e funções rituais são atribuídos à cha-
na Grécia, do mosteiro Argesh, na Romênia, da cidade de miné ( = orifício da fumaça) e à parte do teto que se encontra
Scutari, na Iugoslávia etc.). acima do “ângulo sagrado” e que se retira ou até se quebra,
Já dissemos bastante acerca do significado religioso da em caso de agonia prolongada. Quando nos ocuparmos da
morada humana para que certas conclusões se imponham por correspondência Cosmos-casa-corpo humano, teremos oca-
si mesmas. Tal como a cidade ou o santuário, a casa é santi- sião de mostrar o profundo significado desta “rotura do te-
ficada, em parte ou na totalidade, , por umsimbolismo ou um. lhado”. Por ora, lembremos que os santuários mais antigos
ritual cosmmológicos, É por essa razão que se instalar em qual- eram a céu aberto ou apresentavam uma abertura no teto:
era o “olho da cúpula”, simbolizando a rotura dos níveis,
representa uma decisão grave, pois isso compromete.a
pró- a comunicação com o transcendente.
pria existência do homem: trata-se, em suma, de criar seu A arquitetura e de-
sacra não faz mais portanto do que retomar
próprio “mundo” e assumir a responsabilidade de mantê-lo. senvolver o simbolismo cosmológico já presente na estrutura das habita-
e renová-lo. Não se muda de ânimo leve de morada, porque ções primitivas. A habitação humana, por sua vez, fora prece-
não é fácil abandonar seu '“'mundo”. “A habitação não é um dida cronologicamente pelo “lugar santo” provisório, pelo
objeto, uma máquina para habitar”: éo Universo que o homem espaço provisoriamente consagrado e cosmizado (lembremos
construiu para st imitando a Criação exemplar dos deuses, a cosmogo- os australianos achilpa). Isto é o mesmo que dizer que todos
nia. Toda construção e toda inauguração de uma nova mora- os símbolos e rituais concernentes aos templos, às cidades e
da equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova wi- às casas derivam, em tltima-instância;-da experiência primária do. a
da. E todo começo repete o começo primordial, quando o Uni- espaço sagrado.
verso viu pela primeira vez a luz do dia. Mesmo nas socieda-
des modernas, tão fortemente dessacralizadas, as festas e os
regozijos que acompanham a instalação numa nova morada Templo, basílica, catedral
guardam ainda a reminiscência da exuberância festiva que
marcava, outrora, O incipt vit nova. rientais — da Mesopotâmia e do
Dado que a morada constitui uma imago mundi, ela se Egito à China e à Índia — o templo recebeu uma nova.e impor-.
situa simbolicamente no “Centro do Mundo”. A multiplici- tante valorização: não é somente uma imago mundi, mas também
dade, até mesmo a infinidade dos Centros do Mundo não traz a reprodução terrestre de um modelo transcendente. O judaís-
quaisquer dificuldades para o pensamento religioso. Porque mo herdou essa concepção paleoriental do Templo como a
não se trata do espaço geométrico, mas de um espaço exis- cópia de um arquétipo celeste. É provável que tenhamos nessa
tencial e sagrado, que apresenta uma estrutura totalmente di- idéia uma das últimas interpretações que o homem religioso
ferente e que é suscetível de uma infinidade de roturas e, por- deu à experiência primária do espaço sagrado em oposição ao
tanto, de comunicações com o transcendente. Vimos o signi- espaço profano. Por isso nos é necessário insistir um pouco
ficado cosmológico e o papei ritual da abertura superior nas nas perspectivas abertas por essa nova concepção religiosa.
O SAGRADO E O PROFANO () ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO
Lembremos o essencial do problema: se o Templo cons- vá desde a eternidade, e foi Jeová que os revelou aos seus elei-
titui uma imago mundi é porque o Mundo, enquanto obra dos tos, para que fossem reproduzidos sobre a Terra. Dirige-se
deuses, é sagrado. Mas a estrutura cosmológica do Templo a Moisés nestes termos: “*Construireis o tabernáculo com to-
permite uma nova valorização religiosa: lugar santo por ex- dos os utensílios, exatamente segundo o modelo que te vou
celência , o Templo ressantifica continuamen-.
casa dos deuses, mostrar” (Êxodo, 25: 8-9). “Vê e fabrica todos esses objetos
tido na medida
te o Mundo, em-que-o-representa
€ o contém ao- conforme o modelo que te hei mostrado na montanha” (1b.,
mesmo tempo. Definitivamente, é graças ao Templo que o Mun-. 25:40). Quando Davi dá a seu filho Salomão o projeto dos
do é ressantificado na sua totalidade. Seja qual for seu grau de im- edifícios do Templo, do tabernáculo e de todos os utensílios,
pureza, o Mundo é continuamente purificado pela santidad afiança-lhe que “tudo aquilo... se encontra exposto num es-
“crito da mão do Eterno, que me facultou o entendimento dis-
dos santuários. e
Uma outra idéia surge a partir dessa diferença ontológi- so” (I, Crônicas, XXVII, 19). Ele viu, pois, o modelo ce-
ca que se impõe cada vez mais entre o Cosmos e sua imagem leste criado por Jeová desde o começo dos tempos. Êo que
santificada, que é o Templo. É a idéia de que a santidade do Salomão proclama: “Ordenaste-me que construísse o Tem-
de toda a corrupção terrestre, e.isto
Templo está ao abrigo plo em teu santíssimo Nome e um altar na cidade onde habi-
é a obra,
pelo fato de que o projeto arquitetônico do Templo tas, segundo o modelo da tenda santa que tu habitas, segun-
dos deuses e, por consequência, encontra-se muito perto dos do o modelo da tenda santa que tu havias preparado desde
deuses, no Céu, Os modelos transcendentes dos Templos go- o princípio” (Sabedoria, 9:8).
zam de uma existência espiritual, incorruptível, celeste. Pela A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tem-
graça dos deuses, o homem acede à visão fulgurante desses po que o Paraíso, portanto in aeternum. A cidade de Jerusa-
modelos e esforça-se em seguida por reproduzi-los na Terra. lém não era senão a reprodução aproximativa do modelo
transcendente: podia ser maculada pelo homem, mas seu mo-
O rei babilônio Gudéia viu em sonhos a deusa Nidaba, que
delo era incorruptível, porque não estava implicado no Tem-
lhe mostrava um painel sobre o qual se encontravam men-
cionadas as estrelas benéficas, e um deus revelou-lhe o proje- po. “A construção que atualmente se encontra no meio de
vós não é aquela que foi revelada por Mim, a que estava pron-
to do templo. Senaqueribe construiu Nínive segundo “*o pro-
ta desde o tempo em que me decidi a criar o Paraíso, e que
jeto estabelecido desde tempos muito remotos na configura-
Isto não só quer dizer que a “geometria ce- mostrei a Adão antes do seu pecado.” (Apocalipse de Baruc,
ção do Céu”,
leste” tornou possíveis as primeiras construções, mas, sobre-
1d, $57/0a
A basílica cristã, e mais tarde a catedral, retoma e pro-
tudo, que os modelos arquitetônicos, encontrando-se no Céu,
longa todos esses simbolismos. Por um lado, a igreja é con-
participavam da sacralidade uraniana.
Para o povo de Israel, os modelos do tabernáculo, de to-
cebida como imitação da Jerusalém celeste, e isto desde a an-
tigúidade cristã; por outro lado, reproduz igualmente o Pa-
dos os utensílios sagrados e do Templo foram criados por Jeo-
raíso ou o mundo celeste. Mas a estrutura cosmológica do
edifício sagrado persiste ainda na consciência da cristanda-
25. Cf. M. Eliade, Der Mythos der ewigen Wiederkehr, p. 18. de: é evidente, por exemplo, na igreja bizantina. “As quatro
lis Pe e
O SAGRADO E O PROFANO 0 ESPAÇO SAGRADO E À SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 5

[Ei

partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do lares dos Kwakiutl, dos altaicos ou dos mesopotâmios, para
mundo. O interior da igreja é o Universo. O altar é o paraí- nos darmos conta das diferenças. Inútil insistir neste truís-
so, que foi transferido para o oriente. A porta imperial do mo: a vida religiosa da humanidade, realizando-se na histó-
altar denomina-se também porta do paraíso. Na semana da expressões são fatalmente condicionadas pelos-nál-
Páscoa permanece aberta durante todo o serviço divino; o sen- tiplos momentos históricose estilos culturais. Para o assunto
tido desse costume expressa-se claramente no cânon pascal: de que nos ocupamos, entretanto, não é a variedad
“Cristo ressurgiu do túmulo e abriu-nos as portas do paraí- q
das experiências religiosas do espa ço que interessa, mas, ao.
so.” O ocidente, ao contrário, é a região da escuridão, da tris-
teza, da morte, a região das moradas eternas dos mortos, que o comportamento de um homem não-religioso, em relação
aguardam a ressurreição do juízo final. O meio do edifício ao espaço em que vive, com o comportamento do homem re-
da igreja representa a Terra. Segundo a representação de Kos- ligioso para com o espaço sagrado para percebermos imedia-
mas indikopleustes, a Terra é quadrada € limitada por qua- tamente a diferença de estrutura que os separa.
tro paredes, rematadas por uma cúpula. As quatro partes do Se precisássemos resumir o resultado das descrições que
interior da igreja simbolizam as quatro direções do mun- acabamos de ler, diríamos que a experiência do sagrado tor-.
do””.2º Como Imagem do Mundo, a igreja bizantina encar- na possível a “fundação do Mundo”: lá onde o sagr
na e santifica ao mesmo tempo o Mundo. manifesta
a
no espaço, O real se revela, o Mundo vem à existên-
an
cia. Mas a irrupção do sagrado não somente projeta um ponto
fixo Bose da fluidez amorfa do espaço profano, um “Cen-
Algumas conclusões tro”, no “Caos”; produz também uma rotura de nível, quer
dizer, abre a comunicação entre os níveis cósmicos (entre a
Dentre os milhares de exemplos que estão à disposição Terra e o Céu) e possibilita a passagem, de ordem ontológi-
Ê
do historiador das religiões, citamos um número bastante re- ca, de um modo de ser a outro, E uma tal rotura na hetero-
duzido, mas suficiente para mostrar as variedades da expe- geneidade dosi ia profano que cria o ““Centro”” por onde
riência religiosa do espaço. Escolhemos esses exemplos em cul- se pode comunicar com o transcendent ue, por conseguin-
turas e épocas diferentes, a fim de apresentarmos ao menos te, funda o “Mundo”, ois O a possível a ortenta-.
as expressões mitológicas mais importantes e as encenações tio. A manifestação do sagrado no. espaço tem, como conse-
rituais relacionadas com a experiência do espaço sagrado. Por-
que, no curso da história, o homem religioso valorizou dife- ou toda consagração de um espaço equivalem a uma cosmo-
rentemente essa experiência fundamental. Bastava-nos com- gonia. Uma primeira conclusão seria a seguinte: o Mundo deixa-
parar a concepção do espaço sagrado — e portanto do Cos- se perceber como Mundo, como cosmos, na medida em que se revela
mos — entre os australianos achilpa com as concepções simi- como do sagrado.
“Todo o mundo é obra dos deuses, porque foi criado di-
retamente pelos deuses e consagrado — portanto “cosmiza-
»
26. Hans Sedlmayr, Die Entstehung der Kathedrale, Zurique, 1950, p. 119. do” — pelos homens, ao reatualizarem ritualmente o ato
56 O SAGRADO E O PROFANO O ESPAÇO SAGRADO E A SACRALIZAÇÃO DO MUNDO 57
exemplar da Criação. Isto é o mesmo que dizer que o homem são religiosa. Assumindo a responsabilidade de “criar” o
religioso só pode viver num mundo sagrado porque somente mundo que decidiu habitar, não somente cosmiza o Caos, mas
um tal mundo participa do Essa necessi-
ser, existe realmente. também santifica seu pequeno Cosmos, tornando-o semelhan-
dade religiosa exprime uma inextinguível sede.ontológica. O . te ao mundo dos deuses. A profunda nostalgia do homem re-
homem religioso é sedento do ser, O terror diante do “Caos” ligioso é habitar um “mundo divino”, ter uma casa seme-
que envolve seu mundo habitado corresponde ao seu terror lhante à “casa dos deuses”, tal qual foi representada mais
diante do nada. O espaço desconhecido que se estende para tarde nos templos e santuários. Em suma, essa nostalgia reli-
além do seu '“'mundo”", espaço não-cosmizado porque não- giosa exprime o desejo de viver num Cosmos puro e santo, tal como
consagrado, simples extensão amorfa onde nenhuma ortenta- era no começo, quando saiu das mãos do Criador.
tio foi ainda projetada e, portanto, nenhuma estrutura se es- É a experiência do Tempo sagrado que permitirá ao ho-
clareceu ainda — este espaço profano representa para o ho- mem religioso encontrar periodicamente o Cosmos tal como
mem religioso o não-ser absoluto. Se, por desventura, o ho- era in principio, no instante mítico da Criação.
mem se perde no interior dele, sente-se esvaziado de sua subs-
tância ““ôntica””, como se se dissolvesse no Caos, e acaba por
extinguir-se,
Essa sede ontológica manifesta-se de múltiplas manei-
ras. À mais evidente, no caso específico do espaço sagrado,
é a vontade do homem religioso de situar-se no próprio cora-
ção do real, no Centro do Mundo: quer dizer, lá onde o Cos-
mos veio à existência e começou a estender-se para os quatro
horizontes, lá onde também existe a possibilidade de comu-
nicação com os deuses; numa palavra, lá onde sc está mais
próximo dos deuses. Vimos que o simbolismo do Centro do Mun-
do informa não somente os países, as cidades, os templos e
os palácios, mas também a mais modesta habitação huma-
na, seja a tenda do caçador nômade, o yourte dos pastores,
a casa dos agricultores sedentários. Em resumo, cada homem
religioso situa-se ao mesmo tempo no Centro do Mundo e
na origem mesma da realidade absoluta, muito perto da
“abertura” que lhe assegura a comunicação com os deuses.
Mas visto que se instalar em qualquer parte, habitar um
espaço, equivale a reiterar a cosmogonia, e portanto a imitar
a obra dos deuses, para o homem religioso toda decisão exis-
tencial de se “situar” no espaço constitui, de fato, uma deci-
CAPÍTULO IH
O TEMPO SAGRADO E OS MITOS
Duração profana e tempo sagrado
Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o ho-
mem religioso, nem homogêneo nem contínuo. Há, por um
lado,os intervalos
de Tempo sagrado, o tempo das festas (na
sua grande maioria, festas periódicas); por outro lado,há o
“Tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se ins-
crevem os atos privados de significado religioso. Entre essas
duas espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução de con-
tinuidade, mas i i religi o pode
“passar”, sem perigo, da duração temporal ordinária para
oTempo-sagrado.
Surpreende-nos em primeiro lugar uma difer essen-
cial entre essas duas qualidades de Tempo: o tempo sagrado é
por sua própria natureza reversível,no sentidoem que é, propria-
mente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Toda
festa religiosa, todo Tempo litúrgico, representa a reatuali-
zação de um evento sagrado que teve lugar num passado mí-
tico, “nos primórdios”. Participar religiosamentere de
italia Eater e
uma fes-.
taimplica a saí ação temporal “ordinária” e a rein-
Pa
o0 O SAGRADO E O PROFANO 61
O TEMPO SAGRADO E OS MITOS
tegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por.
liza para suas investigações. Nosso objetivo não é comparar
o Tempo-sagrado
consegiiência, é indefinidamente recupe- E:
sistemas ou filosofias, mas sim comportamentos existenciais. gre,
rável, indefinidamente. repetível. De certo ponto de vista, ivamente homem não-
aO ummi
Ora, o que se poi tim religioso
religioso é que também ele conhece uma certa descontinul-
dade e heterogenedo. Tempo. Também para ele existe
idade
por
coexcelência, “parmenidiano”: mantém-se sempre igual o tempo predominantemente monótono do trabalho e o tem-
a simesmo,
não muda nem se esgota. A cada festa periódica “
“tempo festi-
po do lazer e dos iciespetáculos, numa palavra
a aeo mar ã
reencontra-se o mesmo Tempo sagrado — o mesmo que se ER
vO
-
“Também
Z
ele
-
vive em
é
ritmos-t mporais variados e co
manifestara na festa do ano precedente ou na festa de há um
nhece tempos diferentemente intensos: quando escuta sua mú-
século: é o Tempo criado e santificado pelos deuses quando
sica preferida ou, apaixonado, espera ou encontra a pessoa
das suas gesta, que são justamente reatualizadas pela festa.
amada, ele experimenta, evidentemente, um ritmo temporal.
Em outras palavras, reencontra-se na festa a primeira aparição diferente de quando trabalha ou se entedia.
Mas, em relação ao homem religioso ife-
re. Pois esse Tempo sagradon al se desenrola a festa não
existia antes das gesta divinas comemoradas pela festa. Ao cria
rem as diferentes realidades que constituem hoje o Mundo, “ciferen-
os Deuses fundaram igualmente o Tempo sagrado, visto que o Tem- te e uma outra “origem”, pois se trata de tempo primordial,
po contemporâneo de uma criação era necessariamente san-
*santificado pelos deuses e suscetível de tornar-se presente pe-
tificado pela presença e atividades divinas.
la festa. Para um homem não-religioso essa qualidade trans-.
O homem religioso vive assim em duas espécies de Tem-
humana do tempo litúrgico é inacessível. Para o homem não-.
po, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apre- Fen
religioso o Tempo não
-
pode nem rotura,
apresentar nem.
senta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, rever- constitui a mais profunda dimensão existencial
“mistério”:
Eater
sível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o do homem, está ligado à sua própria.existência, portanto.tem
homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos.
um começo e um fim, que é a morte, o aniquilamento da exis-
Esse comportamento
em relação ao Tempo basta para dis- tência. Seja qual for a multiplicidade dos ritmos temporais
tinguir o homem religioso do homem não-religioso. O pri- que experimenta e suas diferentes intensidades, o homem não-
meiro recusa-se a viver unicamente no.que, em termos mo-
religioso sabe que se trata sempre de uma experiência huma-
dernos, chamamos de “presente histórico”; esforça-se por vol- na, onde nenhuma presença divina se pode inserir.
tar a unir-se a um. “Vempo-sagrado
que, de certo ponto de
Para o homem religioso, ao contrário, a duração tem-
vista,
a, poce ser equiparado
pode Ser cquipal à “Eternidade”,
. poral profana pode ser “parada” periodicamente pela inser-
E difícil precisar, em poucas palavras, o que representa sagrado, não-histórico
ção, por meio dos ritos, de um Tempo
o Tempo para o homem não-religioso das sociedades moder- (no sentido de que não pertence ao presente histórico). Tal
nas, Não é nosso propósito falar das filosofias modernas do como uma igreja constitui uma rotura de nível no espaço pro-
“Tempo, nem dos conceitos que a ciência contemporânea uti- fano de uma cidade moderna, o serviço religioso que se rea-
O TEMPO SAGRADO E OS MITOS 63
62 O SAGRADO E O PROFANO
liza no seu interior marca uma rotura na duração temporal é designado pelos vocábulos ““Terra”” ou “Mundo”. Gomo
profana: já não é o Tempo histórico atual que é presente — os yokut, eles dizem “a terra passou”, no sentido de que se
o tempo que é vivido, por exemplo, nas ruas vizinhas —, mas passou um ano. O vocabulário revela a correspondência reli-
o Tempo em que se desenrolou a existência histórica de Je- giosa entre o Mundo e o Tempo cósmico. O Cosmos é con-
sus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por sua pai- cebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e
xão, por sua morte e ressurreição. E preciso, contudo, escla- se extingue no último dia do Ano, para renascer no dia do
recer que este exemplo não explicita toda a diferença exis- Ano-Novo. Veremos que esse renascimento é um nascimen-
tente entre o Tempo profano e o Tempo sagrado, pois, em to, que o Cosmos renasce todos os anos porque, a cada Ano
relação às outras religiões, o cristianismo inovou a experiên- Novo, o Tempo começa ab initio.
MSAÃOS
cia e o conceito do Tempo tes ao afirmar a historicida- A correspondência cósmico-temporal é de natureza reli- cosmo
IedesTil
de da pessoa do Cristo. giosa: o Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o “Ano"”,
tempo histórico santificado A encarnação do Filho de Deus, O Tem- to um como o outro são realidades sagradas, criações
divinas, Entre certas populações norte-americanas, essa cor-
po sagrado, periodicamente reatualizado nas religiões pré-
respondência cósmico- temporal é revelada pela própria estru-
cristãs (sobretudo nas religiões arcaicas), é um Tempo is
tura dos edifícios sagrados. Visto que o Templo representa a
quer dizer, um Tempo primordial, não identificável no pas
imagem do Mundo, comporta igualmente um simbolismo tem-
sado histórico, um Tempo original, no sentido-de.que. ERR
poral. É o que encontramos, por exemplo, entre os algonkins
“de repente”, de que não foi precedido por um outro Tem-
e os sioux: sua cabana sagrada representa o Universo e sim-
po, pois nenhum Tempo podia existir antes da aparição da rea-
boliza ao mesmo tempo o ano. Porque o ano é concebido co-
lidade narrada pelo mito.
mo um trajeto através das quatro direções cardeais, significa-
É sobretudo essa concepção arcaica do Tempo mítico que das pelas quatro janelas e pelas quatro portas da cabana sa-
nos interessa. Em seguida veremos as diferenças relativamente grada. Os dakota dizem: “O Ano é um círculo em volta do
ao judaísmo e ao cristianismo. Mundo”, quer dizer, em volta da sua cabana sagrada, que
é uma imago mundi.
Encontra-se na Índia um exemplo ainda mais claro. Vi-
Templum-tempus mos que a elevação de um altar equivale à repetição da cos-
mogonia. Ora, os textos acrescentam que o “altar do fogo
Comecemos nossa investigação pela apresentação de al- é o Ano” e explicam deste modo seu simbolismo temporal:
guns fatos que têm a vantagem de nos revelar, logo de início, os trezentos e sessenta tijolos de acabamento correspondem
o comportamento do homem religioso em relação ao Tem- às trezentas e sessenta noites do ano, é os trezentos e sessenta
po. Cabe aqui uma observação preliminar importante: em tijolos pajusmáti aos trezentos e sessenta dias (Shatapatha Brâh-
várias línguas das populações aborígines da América do Norte, mana, X, 5, 4, 10 etc.). Em outras palavras, a cada constru-
o termo “Mundo” (= Cosmos) é igualmente utilizado no sen-
tido de “Ano”. Os yokut dizem “o mundo passou”, para
Múller, Die blaue Hliitte, Wiesbaden, 1954, p. 133.
exprimir que “*um ano se passou”. Para os yuki, o “Ano” 1. Werner
64 O SAGRADO E O PROFANO O FEMPO SAGRADO E OS MITOS B5
trução de um altar do fogo, não somente se refaz o Mundo, simbolismo está claramente indicado na estrutura arguitetô- Ba
mas também se “constrói o Ano”: regenera-se o Tempo criando- nica dos santuários, Visto que o Templo é, ao mesmo tem- N
o de novo. Por outro lado, o ano é equiparado a Prajâpati, o po, o lugar santo por excelência e a imagem do Mundo, ele
deus cósmico; portanto, a cada novo altar reanima-se Prajã- santifica o Cosmos como um todo e também a vida cósmica.
pati, quer dizer reforça-se a santidade do Mundo. Não se trata Ora, a vida cósmica era imaginada sob a forma de uma tra-
do Tempo profano, da simples duração temporal, mas da san- Jetória circular e identificava-se com o Ano. O Ano era um
tificação do Tempo cósmico. Com a elevação de um altar do círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía tam-
fogo, o Mundo é santificado, ou seja, inserido num tempo bém a particularidade de poder “renascer” sob a forma de
sagrado. um Ano-Novo. A cada Ano Novo, um Tempo “novo”, “pu-
Reencontramos um simbolismo temporal análogo inte-
ro” e “santo”— porque ainda não usado— vinha à exis-
grado no simbolismo cosmológico do templo de Jerusalém.
tência.
Segundo Flávio José (Ant. Jud. III, 7, 7), os doze pães que
Mas o Tempo renascia, recomeça
porque, va,
a cada No-
se encontravam sobre a mesa significavam os doze meses do
vo Ano, o Mundo era
criado-novamente, Verificamos, no
Ano e o candelabro de setenta braços representava os deca-
capítulo precedente, a importância do mito cosmogônico
nos (quer dizer, a divisão zodiacal dos sete planetas em deze-
como modelo exemplar para toda espécie de criação e cons-
nas). O Templo era uma imago mundi: situando-se no “Cen-
trução. Acrescentemos agora que a cosmogonia comporta
tro do Mundo”, em Jerusalém, santificava não somente o
igualmente a criação do Tempo. Mais ainda; :assim como
Cosmos como um todo, mas também a “vida” cósmica, ou Pr 5 ea e ams
a cosmogonia é o arquétipo de toda “criação”, o Tempo,
seja, o Tempo.
rósmico que a cosmogonia faz brotar é o modelo exemplar
Cabe a Hermann Usener o mérito de ter sido o primei-
Ge todos os outros tempos, quer dizer, dos Tempos especi-
ro a explicar o parentesco etimológico entre templum e tempus,
ficosEAàs diversas categorias
der de existentes. Expliquemo-nos:
ao interpretar os dois termos pela noção de intersecção o aÃ
para oo ue
para homem religio das culturas
so arcaicas, toda criação,
(“Schneidung, Kreuzung”)?. Investigações ulteriores afir- En Rep donoa Asas ada À
toda existência começa no Tempo: antes que uma coisa exista,
maram ainda mais esta descoberta: “Templum expri - A ac O cara ari ” me pie
pacial, tempus o temporal. O conjunto desses-dois.elementos seu tempo próprio não pode existir. Antes que o Cosmos viesseà
constitui uma imagem circular espaço-temporal”3, existência, não havia tempo cósmico. Antes de uma deter-
A significação profunda de todos esses fatos parece ser minada espécie vegetal ter sido criada, o tempo que a faz
a seguinte: para o homem religioso das culturas arcaicas, o crescer agora, dar fruto e perecer, não existia. E por esta,
pn peter
Mundo renova-se anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a san- razão que toda criação é imaginada como tendo ocorrido no
tidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador, Este. começo do Tempo, in principio. O Tempo brota com a primeira
aparição de uma nova categoria de existentes. Eis por que
o mito desempenha um papel tão importante: conforme vere-
2. H. Usener, Góiternamen, 2º ed., Bonn, 1920, pp. 191 ss, mos mais tarde, é o mito que revela como uma realidade veio
«a
3. Werner Miller, Kreis und Kreuz, Berlim, 1938, p. 39. a existência. mr
ia
56 O SAGRADO E O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS 67
Repetição anual da cosmogonia mem moderno), mas também da abolição do ano passado e
do tempo decorrido. Este é, aliás, o sentido das purificações
É o mito cosmogônico que relata o surgimento do Cos- rituais: uma combustão, uma aranulação dos pecados e das fal-
mos. Na Babilônia, no decurso da cerimônia akítu, que se de- tas do indivíduo e da comunidade como um todo, e não uma
senrolava nos últimos dias do ano e nos primeiros dias do Ano
es
simples “purificação” E : E
Novo, recitava-se solenemente o “Poema da Criação”, o Enu- O Naurôz — o Ano Novo persa — comemora o dia em
ma elish. Pela recitação ritual, reatualizava-se o combate en- que teve lugar a Criação do Mundo e do homem. Era no dia
tre Marduk e o monstro marinho Tiamat, que tivera lugar do Naurôz que se efetuava a “renovação da Criação”, con-
ab origine e que pusera fim ao Caos pela vitória final do deus. forme se exprimia o historiador árabe Albiruni. O rei pro-
Marduk criara o Cosmos com o corpo retalhado de Tiamat clamava: “Eis um novo dia de um novo mês de um novo ano:
e criara o homem com o sangue do demônio Kingu, princi- é preciso renovar o que o tempo gastou.” O tempo gastara
pal aliado de Tiamat. A prova de que essa comemoração da o ser humano, a sociedade, o Cosmos, e esse tempo destrui-
criação era efetivamente uma reatualização do ato cosmogôni- dor era o Tempo profano, a duração propriamente dita: era
co encontra-se tanto nos rituais como nas fórmulas pronun- preciso aboli-la para restabelecer o momento mítico em que
ciadas no decurso da cerimônia. o mundo viera à existência, banhado num tempo “puro”
Com efeito, o combate entre Tiamat e Marduk era imi- “forte” e sagrado. A abolição do Tempo profano decorrido
tado por uma luta entre os dois grupos de figurantes, ceri- realizava-se por meio de rituais que significavam uma espé-
monial que se repete entre os hititas, enquadrado sempre no cie de “fim do mundo”. A extinção dos fogos, o regresso das
cenário dramático do Ano Novo, entre os egípcios e em Ras almas dos mortos, a confusão social do tipo das Saturnais,
Shamra. A luta entre os dois grupos de figurantes repetia « a licença erótica, as orgias etc. simbolizavam a regressão do
passagem do Caos ao Cosmos, atualizava a cosmogonia. O acon- Cosmos ao Caos. No último dia do ano, o Universo dissolvia-
tecimento mítico tornava a ser presente. “Que ele possa conti- se nas Águas primordiais. O monstro marinho Tiamat, sím-
nuar a vencer Tiamat e abreviar seus dias!””, exclamava o bolo das trevas, do amorfo, do não-manifestado, ressuscita-
oficiante. O combate, a vitória e a Criação tinham lugar na- va e voltava a ser ameaçador. O Mundo que tinha existido
quele mesmo instante, hic et nunc. durante um ano inteiro desaparecia realmente. Visto que Tia-
Visto que o Ano Novo é uma reatualização da cosmo- mat estava lá de novo, o Cosmos estava anulado, e Marduk
gonia, implica uma1a retomada do Tempo em Seus primórdios, Ena era forçado a criá-lo mais uma vez, vencendo de novo
O DO Tiamat.
aquele que existia nomomento E URSS
da É por essa
O significado dessa regressão periódica do mundo a uma
razão que, por ocasião do Ano Novo, se procede a “purifica- modalidade caótica era o seguinte: todos os “pecados” do ano,
ções” e à expulsão dos pecados, dos demônios ou simples-
mente de um bode expiatório. Pois não se trata apenas da
e do: início
cessação efetiva de um certo intervalo temporal ii 4, Sobre os rituais do Ano Novo, cf, Mircea Eliade, Der Mythos der ewigen
a aa quo pe
de um outro intervalo (como imagina, por exemplo, um ho- Wiederkehr, pp. 83 ss.
À
O TEMPO SAGRADO E OS MITOS b9
68 O SAGRADO E O PROFANO
de sua a o homem tornava-se carr do
tudo o que o Tempo havia manchado e consumido era ani-
quilado, no sentido físico do termo. Participando simbolica- tência ESTE a reserva | JE forças vitaiss intacta, tal aRsago
mente do aniquilamento e da recriação do Mundo, o próprio mento de seu nascimento.
homem era criado de novo; renascia, porque começava uma Esses fatos são importantes, pois desvendam-nos o se-
nova existência. A cada Ano Novo, o homem sentia-se mais gredo do comportamento do homem religioso em relação ao
livre e mais puro, pois se libertara do fardo de suas faltas e Tempo. Visto que o Tempo sagrado e forte é o Tempo da ori-
seus pecados. Restabelecera o Tempo fabuloso da Criação, gem, o instante prodigioso em que uma realidade foi criada,
portanto um Tempo sagrado e “forte”: sagrado porque trans- em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente, o
figurado pela presença dos deuses; “forte” porque era o Tem- homem esforçar-se-á por voltar a unir-se periodicamente a
po próprio e exclusivo da criação mais gigantesca que já se
esse Tempo original. Essa reatualização ritual do illud tempus
realizara: a do Universo. Simbolicamente, o homem voltava da primeira epifania de uma realidade está na base de todos
a ser contemporâneo da cosmogonia, assistia à criação do
os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um
Mundo. No Oriente Próximo antigo o homem até participa- acontecimento mítico (e portanto religioso), mas sim sua 7ea-
va ativamente dessa criação (lembremos os dois grupos anta-
tualização,
gonistas que figuravam o Deus e o Monstro marinho). O Tempo de origem por excelência é o Tempo da cos-
É fácil compreender por que a recordação desse Tempo
mogonia, o instante em que apareceu a mais vasta realidade,
prodigioso obcecava o homem, por que, de tempos em tem- o Mundo, É por essa razão que a cosmogonia serve de mo-
pos, ele se esforçava por voltar a unir-se a ele: in úllo tempore,
delo exemplar a toda “criação”, a toda espécie de “fazer”.
os deuses tinham manifestado seus poderes máximos. Etico A cos-da
É pela mesma razão que o Tempo cosmogônico serve de modelo
mogonia é a suprema manifestação divina, O gesto exemplar de for- os Tempos sagrados: porque, se o Tempo sagradoé
a
todos
“ça, superabundância e criatividade. O homem religioso é se-
aquele em que os deuses se manifestaram e criaram, éÉ €evi-
dento de real, Esforça-se, por todos os meios, para instalar- dente que a mais completa manifestação divina e a mais gi-
se na fonte mesma da realidade-primordial,. quando o mun- E
gantesca criação é a Criação do Mundo,
Conseguentemente, o homem religioso reatualiza a cos-
do estava in statit nascendi,
mogonia não apenas quando “cria” qualquer coisa (seu
“mundo pessoal” — o território habitado — ou uma cida-
Regeneração pelo regresso ao tempo original
de, uma casa etc.) —, mas também quando quer assegurar
um reinado feliz a um novo soberano, ou quando necessita
Tudo isto merece múltiplos desenvolvimentos, mas por salvar as colheitas comprometidas, ou quando se trata de uma
ora dois elementos devem reter nossa atenção: (1) pela repe- guerra, de uma expedição marítima etc. Acima de tudo, po-
tição anual da cosmogonia, o Tempo ou se-
eraregenerado,
rém, a recitação ritual do mito cosmogônico desempenha um
ja, recomeçava como Tempo sagrado, pois coincidia com o papel importante nas curas, quando se busca a regeneração do
illud tempus em que o Mundo viera pela primeira vez à exis
ser humano. Em Fidji, o cerimonial da posse de um novo so-
tência; (2) participando ritualmente do “fim do Mundo” e
S!!LBLWJBD... om mo o
O SAGRADO E O PROFANO O TEMPO SAGRADO E 08 MITOS 74
Pao)
berano chamava-se “Criação do Mundo”, e o mesmo ceri- dos mitos da origem das doenças (provocadas pela cólera das
monial se repete com a finalidade de salvar colheitas em pe- Serpentes) e da aparição do primeiro xamã-curandeiro que
rigo, Mas é na Polinésia talvez que se encontra a mais ampla trouxe aos homens os medicamentos necessários. Quase to-
aplicação ritual do mito cosmogônico. As palavras que lo pro- dos os rituais evocam o começo, o illud tempus míticos, quando
nunciou ix illo tempore para criar o Mundo tornaram-se fór- o mundo ainda não existia: “No princípio, no tempo em que
mulas rituais. Os homens repetem-nas em múltiplas ocasiões: o céu, o sol, a lua, as estrelas, os planetas e a terra ainda não
para fecundar uma matriz estéril, para curar (tanto as doen- estavam lá, quando ainda não tinham surgido” etc. Segue-
ças do corpo como as do espírito), a fim de se prepararem se a cosmogonia e a aparição das serpentes: “No tempo em
para a guerra, e também na ocasião da morte ou para incitar que o céu apareceu, em que o sol, a lua etc. apareceram, em
a inspiração poética”. que a terra se expandiu, em que os montes, os vales, as árvo-
O mito cosmogônico serve aos polinésios de modelo ar- res as rochas apareceram... então surgiram os Nâga e dra-
quetípico para todas as “criações”, seja qual for o plano em gões etc.” Conta-se em seguida o nascimento do primeiro
que clas se desenrolem: biológico, psicológico, espiritual. Mas, curandeiro e a aparição dos medicamentos. E acrescenta-se:
visto que a recitação ritual do mito cosmogônico implica a “Deve-se narrar a origem dos medicamentos, pois do con-
reatualização do acontecimento primordial, segue-se daí que trário não se pode falar sobre eles.”º
aquele para quem se recita o mito é projetado magicamente É importante enfatizar que, nesses má- - s/4
encantamentos
in alo tempore, ao “começo do Mundo”, tornando-se contem- gicos de cura, os mitos acerca da origem dos medicamentos estão
porâneo da cosmogonia. Trata-se, em suma, de um regresso sempre inter-relacionados com o muito cosmogônico. Sabe-se que
ao Tempo de origem, cujo fim terapêutico é começar outra vez nas ráticas povos primitivos, como aqueles que
a existência, nascer (simbolicamente) de novo. À concepção se
subjacente a esses rituais de cura parece ser a seguinte: a Fi- quando sse Seo E te
da não pode ser reparada, mas somente recriada pela repetição simbóly- le, Um grande número de preceitos mágicos EE Oriente Pró-
ca da cosmogonia, pois, comojá dissemos, a cosmogonia
PARA, amo é ao ximo e da Europa incluiu a história da doença ou do demô-
modelo exemplar de toda criação. nio que a causou e esconjura o momento mítico, no qual se
Compreende-se melhor a função regeneradora do regres- exige a uma divindade ou santo que vença o mal, Parece as-
so ao Tempo da origem quando se examina mais de perto uma sim que o mito da origem é uma cópia do mito cosmogônico,
terapia arcaica, como por exemplo a dos Na-khi, população pois este serve de exemplo para todas as origens. Por isso,
tibetano-birmanesa que vive no sudeste da China (província surge também, muitas vezes, nos exorcismos terapêuticos,
de Yiún-nau). O ritual de cura consiste, propriamente falan- o mito cosmogônico do mito da origem, e até se confunde
do, na recitação solene do mito da Criação do Mundo, seguida com ele. Recorda, por exemplo, um exorcismo assírio con-
6. J. F. Rock, The Na-khi Nága Cult and related Ceremonies, Roma, 1952,
5. Cf, as referências bibliográficas em Eliade, Mythos der ewigen Wieder-
kehr, pp. 117 ss.; idem, Die Religionen und das Heilige, pp. 463 ss. vol. I. pp. 279 ss.
o“
e”
TA O SAGRADO É O PROLANO O PEMPO SAGRADO E OS MITOS
tra a dor de dente: “Depois de o deus Anu ter feito os céus, de antes ou depois. Em muitos casos, realizam-se durante a festa
os céus fizeram a terra, a terra os rios, Os rios Os canais, os Os mesmos atos dos intervalos não-festivos, mas o homem re-
canais as lagoas, e as lagoas o verme.” O verme dirige-se em gloso crê que vive então num outro tempo, que conseguiu
“lágrimas” às divindades Shamash e Ea, pedindo-lhes algu- reencontrar o illud tempus mítico.
ma coisa de comer para “destruir”. Os deuses oferecem-lhes Durante a cerimônia totêmica anual (intichiuma), os aus-
frutos, mas o verme exige deles dentes humanos. “Porque nos arunta retomam o itinerário seguido pelo Antepas-
falaste assim, ó verme, que Ea te parta com sua mão podero- sado divino do clã nos Tempos míticos (altcheringa, literalmente
sa!” Temos, pois, de lidar aqui com a criação do mundo, “Tempo do sonho”). Param em todos os inúmeros lugares
o nascimento do verme e da doença e a cura primordial exem- onde parou o Antepassado e repetem os mesmos gestos que
plar (o aniquilamento do verme por Ea). A eficácia do exor- ele fez in illo tempore. Jejuam durante toda a cerimônia, não
cismo reside em que ele, executado ritualmente, atualiza o portam armas e abstêm-se de todo contato com suas mulhe-
Tempo mítico da “origem”, tanto da origem do mundo co- res ou com os membros dos outros clãs. Estão completamen-
mo da origem da dor de dente e sua cura. te mergulhados no “Tempo do sonho”'*.
As festas celebradas anualmente na ilha polinésia de "Ti-
kopia reproduzem as “obras dos deuses”, quer dizer, os atos
O tempo festivo e a estrutura das festas pelos quais, nos Tempos míticos, os deuses fizeram o Mun-
do tal qual é hoje”. O Tempo festivo no qual se vive duran-
O Tempo de origem de uma realidade, quer dizer, o Tem- te as cerimônias é caracterizado por certas proibições (tabu):
po fundado pela primeira aparição desta realidade, tem um nada de ruído, de jogos, de danças. A passagem do Tempo
valor e uma função exemplares; é por essa razão que o ho- profano ao Tempo sagrado é indicada pelo corte ritual de um
mem se esforça por reatualizá-lo periodicamente mediante ri- pedaço de madeira em dois. As múltiplas cerimônias que cons-
mo
tuais apropriados, Mas a “primeira manifestação” de uma tituem as festas periódicas e que, repetimos, não são mais do
realidade equivale à sua “criação” pelos Seres divinos ou se- que a reiteração dos gestos exemplares dos deuses, não se dis-
midivinos: Tereencontrar o TempoAsiade origem implica,
dad portanto, tinguem, aparentemente, das atividades normais: trata-se, em
a repetição ritual do ato criad
dos or
deuses, A reatualização suma, de reparos rituais das barcas, de ritos relativos ao cul-
periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinosin tivo de plantas alimentares (yam, taro etc.), da restauração
illo tempore constitui o calendário sagrado, o conjunto das fes- de santuários. Na realidade, porém, todas essas atividades
tas. Uma festa desenrola- sempre no se
Tempo original, É Jus- cerimoniais se diferenciam dos trabalhos similares executa-
tamente a reintegração desse Tempo original e sagrado que dos no tempo comum pelo fato de só incidirem sobre alguns
diferencia o comportamento humano durante a festa daquele
8. F.J. Gillen, The Native Tribes of Central Australia, 2º ed., Londres,
7. Campbell Thompson, Assyrian Medicat Texts, Londres, 1923, p. 59. 1938, pp. 170 ss.
Cf. também M. Eliade, Kosmogonische Mythen und magische Heilungen, Paideu- 9. Cf, Raymond Firth, The Work of the Gods in Tikopia, 1, Londres,
ma. 1956. (),
74 O SAGRADO E O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS

=
q
objetos — que constituem, de certo modo, os arquétipos de não é a morfologia da festa que nos interessa, e sim a estru-
suas respectivas classes — e também porque as cerimônias tura do Tempo sagrado atualizado nas festas, Ora, a respei-
são realizadas numa atmosfera impregnada de sagrado. Com to do tempo sagrado pode-se dizer que é sempre o mesmo,
efeito, os indígenas têm consciência de que reproduzem, nos que é uma “sucessão de eternidades”” (Hubert e Mauss). Se-
mais ínfimos pormenores, os atos exemplares dos deuses, tais ja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sem-
como foram executados in alo tempore. pre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e
Assim, periodicamente, o homem religioso torna-se que é, ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa
temporâneo dos deuses, na medida em que reatualiza o Tem- tornam-se os contemporâneos do acontecimento mítico. Em

po primordial no qualse realizaram as s divin z outras palavras, “saem” de seu tempo histórico — quer di-
vel das civilizações primitivas,
tudo o queo homem faz tem zer, do Tempo constituído pela soma dos eventós profanos,
um modelo
HOC trans-humano;
LAIS DUE portanto,
sita imamesmo
DIDO fora
LIA do tempo pessoais € intrapessoais — e reúnem-se ao Tempo primor-
festivo, seus gestos imitam os modelos.exemp
fixados
lares pe- clial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade, O
tos deuses pelos Antepassados míticos. Mas essa imitação. homem religioso desemboca periodicamente no Tempo míti-
corre o risco de tornar-se cada vez menos correta. O modelo co e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que “não
corre o risco de ser desfigurado ou até esquecido. São as rea- decorre”” — pois não participa da duração temporal profana
tualizações periódicas dos gestos divinos, numa palavra,-as- e é constituído por um eterno presente indefinidamente recu-
festas religiosas que voltam a ensinar aos home
a sacrali-.
ns perável,
O homem religioso sente necessidade de mergulhar pe-.
ritual do yam já se não assemelham às operações similares riodicamente nesse Tempo sagrado c indestrutível. Para ele,
efetuadas fora dos intervalos sagrados. Por um lado são mais é o Tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário,a.
exatas, mais próximas dos modelos divinos, e por outro lado duração profana em que se desenrola todaa existência hu-
enc cimermerm Peão
são riuais, quer dizer, sua intencionalidade é religiosa. mana. E o eterno presente do acontecimento mítico que torna
Conserta-se cerimonialmente uma barca não porque ela ne- possível a duração profana dos eventos históricos. Para dar
cessite de conserto, mas porque, in illo tempore, os deuses mos- um só exemplo: é a hierogamia divina, que teve lugar in úlo
travam aos homens como se deve reparar as barcas. Já não tempore, que tornou possível a união sexual humana. À união
se trata de uma operação empírica, mas de um ato religioso, entre o deus e a deusa passa-se num instante atemporal, num
de uma imitatio dei. O objeto da reparação já não é um dos eterno presente: as uniões sexuais entre os humanos — quan-
múltiplos objetos que constituem a classe das “barcas”, mas do não rituais — desenrolam-se na duração, no tempo profa-
sim um arquétipo mítico: a própria barca que os deuses manipula- no. O Tempo sagrado, mítico, funda igualmente o Tempo
ram in úllo tempore. Por consequência, o Tempo em que se efe- existencial, histórico, pois é o seu modelo exemplar. Em su-
tua a reparação ritual das barcas reúne-se ao Tempo primor- ma, graças aos seres divinos ou semidivinos é que tudo veio
dial: é o próprio Tempo em que os deuses operavam. à existência. A “origem” das realidades e da própria Vida
Evidente não podemos ment
reduzir todos ose,tipos de é religiosa. Pode-se cultivar e consumir ordinariamente o yam
festas periódicasao exemplo que acabam de examinar.
os Mas porque, periodicamente, se cultiva e consome o yam de uma
76 O SAGRADO E O PROFANO
O FEMPO SAGRADO E OS MITOS 77
maneira ritual. E esses rituais podem efetuar-se porque os deu-
que nos importa em primeiro lugar é compreender o signifi-
ses os revelaram in illo tempore, criando o homem e o yam e
“ado religioso da repetição dos gestos divinos. Ora, parece
mostrando aos homens como se deve cultivar e consumir es-
evidente que, se o homem religioso sente necessidade de re-
sa planta alimentar.
produzir indefinidamente os mesmos gestos exemplares, é por-
Na festa reencontra-se plenamente a dimensão sagrada
que deseja e se esforça por viver muito perto de seus deuses.
da Vida, experimenta-se a santidade da existência humana
como criação divina. No resto do tempo, há sempre o risco
de esquecer o que é fundamental: que a existência não é “da-
Tornar-se periodicamente o contemporâneo dos deuses
da” por aquilo que os modernos chamam de “Natureza”,
mas que é uma criação dos Outros, os deuses ou os Seres se-
Estudando, no capítulo precedente, o simbolismo cos-
midivinos. Nas festas, ao contrário, reencontra-se a dimen-
mológico das cidades, dos templos e das casas, mostramos que
são sagrada da existência, ao se aprender novamente como
ele corresponde à idéia de um “Centro do Mundo”. A expe-
os deuses ou os Antepassados míticos criaram o homem e lhe
riência religiosa envolvida no simbolismo do Centro parece )
ensinaram os diversos comportamentos sociais c os trabalhos
ser a seguinte: o homem deseja situar-se num espaço ““aber-
práticos.
to para o alto”, em comunicação com o mundo divino. Vi-
De certo ponto de vista, essa “saída” periódica do Tem-
E io Sn ver perto de um “Centro do Mundo” equivale, em suma,
po histórico — e sobretudo as consequências que cla acarreta
a viver o mais próximo possível dos deuses.
para a existência global do homem religioso — pode parecer
Descobre-se o mesmo desejo de aproximação dos deuses
uma recusa da história, portanto uma recusa da liberdade cria-
quando se analisa
; o significado das festas religiosas. penta
Resta-
dora. Trata-se, em suma, do eterno retorno in illo tempore, num.
belecer o Tempo sagrado da origem equivale a tornarmo-nos
passado que é “mítico”, que nada tem de histórico. Pode-se
contemporâneos dos deuses, portanto a viver
na presença deles
concluir então que a eterna repetição dos gestos exemplares
revelados pelos deuses ab origine opõe-se a todo o progresso
humano e paralisa toda a espontaneidade criadora. Certamen-
nem sempre é visível. A intencionalidade decifradana expe-
riência do Espaço e do Tempo sagrados revela o desejo de
te esta conclusão é, em parte, justificada. Em parte somente,
reintegrar uma situação primordial: aquela em que os deu-
porque o homem religioso, mesmo o mais “primitivo”, não
ses
e os Antepassados míticos estavam presentes, quer dizer,
rejeita, em princípio, o “progresso”: aceita-o, mas confere-
estavam em vias de criar o Mundo, ou de organizá-lo ou de
lhe uma origem e uma dimensão divinas. Tudo o que, na pers-
revelar aos homens os fundamentos da civilização. Essa “si-
pectiva moderna, nos parece ter marcado “progressos” (se-
tuação primordial”” não é de ordem histórica, não é cronolo-
Ja qual for sua natureza: social, cultural, técnica etc.) em re-
gicamente calculável; trata-se de uma anterioridade mítica,
lação a uma situação anterior — tudo isto foi assumido pelas
do Tempo da “origem”, do que se passou “no começo”, in
diversas sociedades primitivas, no decurso de sua longa his-
principium.
tória, como outras tantas novas revelações divinas. Mas, no Ora, “no começo”? passava-se isto: os Seres divinos ou
momento, deixaremos de lado esse aspecto do problema. O semidivinos estavam ativos sobre a Terra. A nostalgia das
78 O SAGRADO É O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS 19
“origens” equivale, pois, a uma nostalgia religiosa. O ho- primitivas e arcaicas recusa-se a assumir a responsabilidade
mem deseja reencontrar a presença ativa dos deuses, deseja de uma existência autêntica. Pelo contrário, ele assume co-
igualmente viver no Mundo recente, puro e “forte”, tal qual rajosamente enormes responsabilidades: por exemplo, a de
saíra das mãos do Criador. É a nostalgia da perfeição dos pri- colaborar na criação do Cosmos, criar seu próprio mundo,
múrdios que explica em grande parte o retorno periódico in ou assegurar a vida das plantas e dos animais etc. Mas trata-
elo tempore. Em termos cristãos, poder-se-ia dizer que se trata se de um tipo de responsabilidade diferente daquelas que, a
de uma ““nostalgia do Paraíso””, embora, ao nível das cultu- nossos olhos, parecem ser as únicas autênticas e válidas.
ras primitivas, o contexto religioso e ideológico seja totalmente Trata-se de uma responsabilidade no plano cósmico, diferente das
diferente do contexto do judaísmo-cristianismo. Mas o Tem- responsabilidades de ordem moral, social ou histórica, as úni-
po mítico que o homem se esforça por reatualizar periodica- cas conhecidas pelas civilizações modernas. Na perspectiva
mente é um Tempo santificado pela presença divina, e pode- da existência profana, o homem só reconhece responsabili-
se dizer que o desejo de viver na presença divina e num mundo dade para consigo mesmo e para com a sociedade. Para ele,
perfeito (porque recém-nascido) corresponde à nostalgia de uma o Universo não constitui, propriamente falando, um Cosmos,
situação paradisíaca. ou seja, uma unidade viva e articulada; é pura e simplesmente
Como já observamos anteriormente, este desejo do ho- a soma das reservas materiais e de energias físicas do plane-
mem religioso de retornar periodicamente para trás, seu es- ta. E a grande preocupação do homem moderno é a de não
forço para restabelecer uma situação mítica — a que era in esgotar inabilmente os recursos econômicos do globo. Mas,
principium — pode parecer insuportável e humilhante aos olhos existencialmente, o primitivo situa-se sempre num contexto
do homem moderno. Uma tal nostalgia conduz fatalmente cósmico. À sua experiência pessoal não falta nem autentici-
à contínua repetição de um número limitado de gestos e com- dade nem profundidade, mas, pelo fato de se exprimir numa
portamentos. De certo ponto de vista, pode-se dizer até que linguagem que não nos é familiar, ela parece inautêntica ou
o homem religioso — sobretudo o das sociedades primitivas infantil aos olhos dos modernos.
desde pelo
cansam paralisado
— é por excelência um homem remito do eter-
SA
Voltemos a nosso tema imediato; não estamos autoriza-
no retorno. Um psicólogo moderno seria tentado a decifrar dos a interpretar o retorno periódicoao. Tempo sagrado da
num tal comportamento a angústia diante do risco da novi- origem como uma recusa do mundo real e uma evasão no
dade, a recusa a assumir a responsabilidade de uma existên- sonho e noimaginário. Ao contrário, parece-nos que, ainda
cia autêntica e histórica, a nostalgia de uma situação “*para- aqui, é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser con-
disfaca”” justamente porque embrionária, insuficientemente siderada uma característica essencial do homem das socieda-
libertada da Natureza. des primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabe-
O problema é complexo demais para ser abordado aqui. lecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a fre-.
Aliás, esse problema ultrapassa nosso tema, pois, em última sença dos deuses mas também recuperar o Mundo forte, recente e.
instância, implica o problema da oposição entre o homem mo- puro, tal como era tn illo tempore..E ao mesmo tempo sede do
derno e o homem pré-moderno. Digamos, contudo, que se- e nostalgia
sagradoferem ad Ser. No plano existencial, esta experiên-
do Eai
ria um erro acreditar que o homem religioso das sociedades cia traduz-se pela certeza de poder recomeçar periodicamente
20 O SAGRADO É O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS 61
a vida com o máximo de “sorte”. É, com efeito, não somen- fundado ontologicamentep ito, não tem modelo exem-.
te uma visão otimista da existência, mas também uma ade- plar. Conforme não tardaremos a ver, o trabalho agrícola é
são total ao Ser. Por todos os seus comportamentos, o ho- um ritual revelado pelos deuses ou pelos Heróis civilizado-
mem religioso proclama que só acredita no Ser e que sua par- res. É por isso que constitui um ato ao mesmo tempo real e
ticipação no Ser lhe é afiançada pela revelação primordial da significativo. Por sua vez, o trabalho agrícola numa sociedade
qual ele é o guardião. A soma das revelações primordiais é dessacralizada tornou-se um ato profano, justificado unica-
constituída por seus mitos. mente pelo proveito econômico que proporciona. Trabalha-
se a terra com o objetivo de explorá-la: procura-se o ganho
e a alimentação. Destituído de simbolismo religioso, o traba-
Mito = modelo exemplar lho agrícola torna-se, ao mesmo tempo, “opaco” e extenuan-
te: não revela significado algum, não permite nenhuma ““aber-
O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acon- tura”” para o universal, para o mundo do espírito. Nenhum
tecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, deus,
teus nenhum herói civilizador jamais revelou um ato profa-
rôI civilizador ia
ab imitio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar no. Tudo quantoos deuses ou os antepassados fizeram — por-
um mistério, pois as personagens
do mito não são seres hu- tanto tudo o que os mitos contama respeito Tucade er e sua
TANIA named atividade
demoCi
manos: são deuses.ou Heróis civilizadores.
Por esta razão suas | criadora — pertence à esfera do sagrado e, por consequên-
gesta constituem mistérios: o há não poderia conhecê-los cia, participa do Ser. Em contrapartida, o que os homens fa-
se não lhe fossem revelados. O mito é pois a história do que zem por própria iniciativa, o que fazem sem modelo mítico,
se passou tn ilo tempore, a narração daquilo que os deuses ou pertence à esfera do profano: é poispremio e ilusó-
uma atividadee vãrimas comi
os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um ria, enfim, irreal. Quanto mais o homem é religioso tanto mais
mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez ““di- dispõe de modelos exemplares para seus comportamentos e
ações. Em outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais
funda a ve rdade absoluta. “E assim porque foi dito que é as- se insere no rea! e menos se arrisca a perder-se em ações não-
sim”, declaram os esquimós netsilik a fim de justificar a va- exemplares, “subjetivas” e, em resumo, aberrantes.
lidade de sua história sagrada e suas tradições religiosas. O Este é um aspecto do mito que convém sublinhar: o mi-
mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica to revelaa sacralidade absoluta porque relata a atividade cria-
ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a dora dos deuses, desvenda asacralidade da obra dele
narração de uma “criação”: conta-se como qualquer coisa outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dra-
foi efetuada, começou a ser. É por isso que o mito é solidário máticas irrupções do sagrado no mundo. Por esta razão, en-
da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmen- tre muitos primitivos, os mitos não podem ser reeitados indli-
te, do que se manifestou plenamente, ferentemente em qualquer lugar e época, mas apenas duran-
te as estações ritualmente mais ricas (outono, inverno) ou no
intervalo das cerimônias religiosas — numa palavra , num
tapso de tempo sagrado. E a irrupção do sagrado no mundo. ir-
82 O SAGRADO E O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS 85
rupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Ca- chuva, ou do que for... A narração fornece precedentes para
da mito mostra como uma realidade veio à existência, seja os diferentes momentos da construção de um barco, para os
ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: tabus sexuais que ela implica etc.”” Um capitão, quando sai
uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana, Nar- para o mar, personifica o herói mítico Aori. “Veste os trajes
rando como vieram à existência as coisas, o homem explica-as que Aori usava, segundo o mito; tem como ele o rosto ene-
e responde indiretamente a uma outra questão: por que elas grecido e, nos cabelos, um love semelhante àquele que Aori
vieram à existência? O “*por que” insere-se sempre no “'co- retirou da cabeça de Iviri. Dança sobre a plataforma e abre
mo”. E isto pela simples razão de que, ao se contar como uma os braços como Aori abria suas asas... Disse-me um pesca-
coisa nasceu, revela-se a irrupção do sagrado no mundo, causa dor que quando ia apanhar peixes (com seu arco) se tomava
última de toda existência real. por Kivavia em pessoa. Não implorava o favor e a ajuda des-
Por outro lado, sendo toda criação uma obra divina, é se herói mítico: identificava-se com ele."10
portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma ir- O simbolismo dos precedentes míticos encontra-se igual-
rupção de energia criadora no Mundo. Toda criação brota mente em outras culturas primitivas. A respeito dos karuk
de uma plenitude. Os deuses criam por um excesso de po- da Califórnia, J. P. Harrington escreve: '“Tudo o que o Ka-
der, por um transbordar de energia. A criação faz-se por um ruk fazia, só o realizava porque os ikxareyavs, acreditava-se,
acréscimo de substância ontológica. É por isso que o mito que tinham dado o exemplo disso nos tempos míticos. Esses ik-
conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de uma xareyavs eram as pessoas quehabitavam a América antes da
plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as ati- chegada dos índios. Os karuk modernos, não sabendo como
vidades humanas: só ele revela o real, o superabundante, o traduzir esta palavra, propõem traduções como “os príncipes”,
eficaz. “Devemos fazer o que os deuses fizeram no começo”, “os chefes”, “os anjos”... Só ficaram entre os karuk o tempo
afirma um texto indiano (Shatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 4). necessário para ensinar e pôr em andamento todos os costu-
“Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens”, acres- mes, dizendo a cada vez: “Eis como fariam os humanos.” Seus
centa Taittiriya Br. (1, 5, 9, 4). A função-mais importante do atos e palavras ainda hoje são contados e citados nas fórmu-
mito é, pois, “fixar”. os modelos exemplares de todos os rit las mágicas dos karuk.”!!
e de todas as atividades humanas significativas: alimentação, “A repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado
du- ESQUI AAA,
sexualidade,
trabalho, educação etc, Comportando-se como plo: (1) por um lado, ao imitaros deuses, o homem mantém-se
ser humano plenamente responsável, o homem imita os ges- no sagrado e, consequentemente, na realidade; (2) por outro ve Ud
tos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer se tra- lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos ns Melos
te de uma simples função fisiológica, como a alimentação, exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religio” A UNOS
quer de uma atividade social, econômica, cultural, militar etc. so dos homensia
Rio contribuipará
para manter
is a santidade ias
do mundo.
OA HIO
Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas via-
gens pelo mar, fornecendo assim “modelos aos navegadores
atuais”, bem como modelos para todas as outras atividades, 10, F. E. Williams, citado por Lucien Levy-Bruhl, La Mythologie primiti-
ve, Paris, 1935, pp. 162-164.
“quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de 11]. P. Harrington, citado por Lucien Levy-Bruhl, cbid., p. 165.
U TEMPO SAGRADO E OS MITOS

[E
ua O SAGRADO E O PROFANO
Reatualizar os mitos cultivadores, o homem tornou-se o que ele é hoje — mortal,
sexualizado e condenado ao trabalho — após uma morte pri-
É | Interessante notar. que o0 homem religioso assume uma mordial: in ilo tempore, um Ser divino, muito frequentemen-
humanidade que e ni
tem um modelo trans-humano, transcen-. te uma mulher ou uma jovem, às vezes uma criança ou um
im cm
dente. Ele só se. reconhece verdadeiramente homem na medida homem, deixou-se imolar para que pudessem brotar de seu
em que imita os deuses, os Heróis civilizadores ou os Ante- corpo tubérculos ou árvores frutíferas. Esse primeiro assassí-
passados míticos. Em resumo, o homem eligioso se quer di- nio mudou radicalmente o modo de ser da existência huma-
ferente do que.ele acha que é no plano de sua existênciaa profa- na. À imolação do Ser divino inaugurou tanto a necessidade
na. religioso
O homem não é dado: faz-se a si próprie-ao de alimentação como a fatalidade da morte e, por consequên-
aproximar-se dos modelos divinos. Estes modelos, como dis- cia, a sexualidade é o único meio de assegurar a continuida-
semos, são conservados pelos mitos, pela história das gesta di- de da vida. O corpo da divindade imolada transformou-se em
vinas, Por conseguinte, o homem religioso também se consi- alimentos; sua alma desceu para baixo da Terra, onde fun-
dera feito) pela História, tal qualo homem profano, Mas a úni- dou o País dos Mortos. Ad. E. Jensen, que dedicou um im-
ca História que interessa a ele é a História sagrada revelada portante estudo a essas divindades — que ele chama de dema
pelos mitos, quer dizer, a história dos deuses, ao passo que —, mostrou muto bem que, alimentando-se ou morrendo,
o homem profano se pretende constituído unicamente pela o homem participa da existência dos dema!?
História humana — portanto, justamente pela soma de atos Para todos os povos paleocultivadores, o essencial con-
que, para 0 ee religioso, não apresentam nenhuza inte- siste em evocar periodicamente o acontecimento primordial
resse, visto lhes faltarem
os modelos div inos. É preciso subli- que fundou a condição humana atual, Toda a sua vida reli-
nhar que, desde o início, o homem religioso estabelece seu giosa é uma comemoração, uma rememoração. A recorda-
próprio modelo a atingir no plano trans-humano: aquele re- ção reatualizada por ritos (portanto, pela reiteração do as-
velado pelos mitos. O homem só se torna verdadeiro homem sassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem,
conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses. esquecer o que se passou in. illo
deve evitarcuidadosamente
Adicionemos que uma tal imitatio dei às vezes implica, tempore. O verdadeiro pecado é o esquecimento:
a jovem que,
para os primitivos, uma responsabilidade muito grave: vimos em sua primeira menstruação, permanece três dias numa ca-
que certos sacrifícios sangrentos encontram sua justificação bana escura, sem falar com ninguém, comporta-se assim por-
num ato divino primordial: in illo tempore, o deus havia es- que a jovem mítica assassinada, tendo-se transformado em
pancado o monstro marinho e esquartejado seu corpo a fim Lua, fica três dias nas trevas. Se a jovem catamenial infringe
de criar o Cosmos. O homem repete o sacrifício sangrento o tabu de silêncio e fala, torna-se culpada do esquecimento
— às vezes inclusive com vítimas humanas — quando deve de um acontecimento primordial. A memória pessoal não en-
construir uma aldeia, um templo ou simplesmente uma ca-
sa. Às possíveis consequências da imitatio dei são reveladas cla-
ramente pelas mitologias e rituais de numerosos povos pri- 12. Ad. E. Jensen, Das religise Weltbild einer frahen Kultur, Stuttgart,
mitivos, Para citar um exemplo: segundo os mitos dos paleo- 1948, O termo dema foi tomado por Jensen aos Marind-anim da Nova Guiné
O SAGRADO E O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS B7
86
tra em jogo: o que conta é rememorar o acontecimento míti-
Antes de emitir um juízo sobre o canibalismo, é preciso
co, o único digno de interesse, porque é o único criador. É ter em mente que ele foi fundado por seres divinos. Mas eles
ao mito primordial que cabe conservar a verdadeira história, a o fundaram com o objetivo de permitir aos homens que assu-
dição humana: é nele que é preciso procurar missem uma responsabilidade no Cosmos, para colocá-los em
e reencontrar os princípios e os paradigmas de toda conduta, estado de velar pela continuidade da vida vegetal, Trata-se,
É neste estado de cultura que se encontra o canibalismo pois, de uma responsabilidade de ordem religiosa. Os cani-
bais uitoto afirmam-no: “Nossas tradições estão sempre vi-
EEE e À grande preocupação do canibal parece ser de nature-
ritual,
za metafísica: ele não deve esquecer o que se passou in illo tem- vas entre nós, mesmo quando não dançamos; mas trabalha-
or” pore. Volhardt e Jensen mostraram-no muito claramente: aba- “mos unicamente para podermos dançar.”” As danças consis-
NV |
tendo e devorando porcas por ocasião das festividades, comen- tem na reiteração de todos os acontecimentos míticos, e por-
d y í
tanto também do primeiro assassínio-seguido de antropofagia. X
do as primícias da colheita dos tubérculos, come-se o corpo divino
|
tal como durante as refeições canibais. Sacrifícios de porcas, caça de Lembramos este exemplo com o objetivo de mostrar que,
cabeças, canibalismo correspondem simbolicamente às colhei- entre os primitivos, como nas civilizações paleorientais, a imi-
tas de tubérculos ou nozes de coco. Cabe a Volhardt o mérito tatio dei não é concebida de maneira idílica, que ela implica,
13 de ter esclarecido, além do sentido religioso da antropofagia, ao contrário, uma terrível responsabilidade humana, Ao jul-
a responsabilidade humana assumida pelo canibal, A planta ali- gar uma sociedade “'selvagem'”, é preciso não perder de vis-
mentar não é dada na Natureza: é o produto de um assassínio, ta que mesmo os atos mais bárbaros e os comportamentos
pois foi assim que foi criada na aurora dos tempos. À caça às mais aberrantes têm modelos trans-humanos, divinos. É um
cabeças, os sacrifícios humanos, o canibalismo — tudo isto foi problema totalmente diferente saber por que, e na sequência
aceito pelo homem a fim de assegurar a vida das plantas. Vo- de que degradações e incompreensões, certos comportamen-
lhardt insistiu justamente neste aspecto: o canibal assume sua tos religiosos se deterioram e tornam-se aberrantes. Para nosso
canibalismo não é um compor-
responsabilidade no mundo; opoi tema, porém, importa apenas sublinhar que o homem reli- 202 si
tamento “natural” do homem primitivo (não se situa aliás nos gioso queria e acreditava imitar scus deuses mesmo quando eu
níveis mais arcaicos de cultura), mas um comportamento cul- se deixa õ va. i | TVA e
tural, fundado sobre uma visão religiosa da vida. Para que o davileza é do crime. Pve cone
mundo vegetal possa continuar, o homem deve matar e ser mor- o Sh.
Tu
to; além disso, deve assumir a sexualidadeaté seus limitesex-
tremos: a orgia. Uma canção abissínia proclama: “Aquela que História sagrada, história, historicismo
ainda não engendrou, engendre; aquele que ainda não matou,
que mate!” É uma maneira de dizer que os dois sexos estão Recapitulemos: o homem religioso conhece duas espé-
condenados a assumir seu destino. cies de Tempo: profano e sagrado. Uma duração evanescen-
te e uma “sequência de eternidades” periodicamente recu-
peráveis durante as festas que constituem o calendário sagra-
13. Volhardt, Kannibalismus, Stuttgart, 1939. Cf. M. Eliade, “Le mythe
do. O Tempo litúrgico do calendá -se em círculo
du Bon Sauvage ou les prestiges de "'Origine, in La Nouvelle NRF, agosto, 1959.
88 O SAGRADO E O PROFANO 4 TEMPO SAGRADO E OS MITOS 89
o
fechado: éTempo cósmico do Ano, santificado pelas “obras Visto
ABL Aque,
para-o-homem 1
dos deuses”. E, visto que a obra divina mais grandiosa foi mitivas, os mitos constituem sua “história sagrada”, ele não
a Criação do Mundo, a comemoração da cosmogonia desem- deve esquecê-los: reatualizando os mitos, o homem religioso
penha um papel importante em muitas religiões. O Ano No- aproxima-se de seus-deuses e participa da santidade. Mas há
vo coincide com o primeiro dia da Criação. O Ano é a ia também “histórias divinas trágicas”, e o homem assume uma
do Cosiios,
mensão temporal Diz-se undo passou” grande responsabilidade perante si mesmo e a Natureza ao
quando se escoou um ano. reatualizá-las periodicamente.
AaiZiA O. canibalismo
pa ritual, por
nada
A cada Ano Novo reitera-se a cosmogonia, recria-se o exemplo, é a consegiência de uma concepção religiosa trágica.
Mundo e, ao fazê-lo, Ceria-
DA
“tambéme o Tempo, quer di- Em resumo, pela reatualização dos mitos, o homem re-
FAIA regenera- se o Tempo: iniciando- o” denovo. É por esta ligioso esforça-se por se aproximar dos deuses e participar do
razão que o mito cosmogônico serve de modeloe:exemplar a Ser; a imitação dos modelos exemplares divinos exprime, ao
toda “criação” ou “construção”, sendo utilizado inclusive mesmo tempo, seu desejo de santidade e sua nostalgia onto-
como meio ritual de cura. Voltando-se a ser simbolicamente lógica,
contemporâneo da Criação, reintegra-se a plenitude primor- Nas-eligiões primiti as e arcaicas. a eterna. repetição dos
dial. O doente se cura porque recomeça sua vida com uma gestos divinos justifica-se como imitatio dei. O calendário sa-,
soma intacta de energia. grado repete anualmente as mesmas festas, quer dizer,
a co-
À festa religiosa é a reatualização de um acontecimento memoração dos mesmos acontecimentos míticos. Propriamen-
-primordial, de uma “história sagrada” cujos atores são os te falando, o calendário sagrado apresenta-se como o “eter-
deuses ou oos Seres semidivinos. Ora, a “história ssagrada” no retorno” de número limitado de gestos divinos,e isto
está contada nos mitos. Por consequência, os participantes é verdadeiro não somente para as religiões primitivas,
mas
da festa tornam-se contemporâneos dos deuses e dos Seres
semidivinos. Vivem no Tempo primordial santificado pela lendário festivo constitui um retorno periódico das mesmas
presença e atividade dos deuses, O calendário sagrado rege- situações primordiais e, consequentemente, a reatualização
nera periodicamente o Tempo, porque o faz coincidir com do mesmo Tempo sagrado. Para o homem religioso, a rea-
o Tempo da origem, o Tempo “forte” e “puro”. A experiên- tualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua
cia religiosa da festa, quer dizer, a participação no sagrado, maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra
permite aos homens viver periodicamente na presença dos a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a se-
deuses. Daí a importância capital dos mitos em todas as reli- melhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso
giões pré-mosaicas, pois os mitos contam as gesta dos deuses, das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos
e estas gesta constituem os modelos exemplares de todas as exemplares e o eterno encontro com o mesmo Tempo mítico
atividades humanas. Ao imitar seus deuses, o homem reli- da origem, santificado pelos deuses, não implicam de modo
gioso passa a viver no dad da origem, o Tempo mítico. Em nenhum uma visão pessimista da vida; as contrário, é graças
outras palavras, “sal” a este “*eterno retorno” às fontes do sagrado e do real que
um Tempo imóvel”, à “eternidade”. a existência humana lhe parece salvar-se do nada e da morte.
90 O SAGRADO E O PROFANO O TEMPO SAGRADO E OS MITOS vil
A perspectiva muda
sa
totalmente
sta quando o sentido da re- são eternos e as criações e destruições cósmicas prosseguem
ligiosidade cósmica se obscurece. E o que se passa quando, em ad infinitum!+.
certas sociedades mais evoluídas, as elites intelectuais se É o verdadeiro “eterno retorno”, a cterna repetição do
desligam progressivamente dos padrões da religião tradi- ritmo fundamental do Cosmos: sua destruição e recriação pe-
eme
cional. À santificação periódica do Tempo cósmico revela-se riódicas. Trata-se, em suma, da concepção primitiva do “Ano-
então inútil e insignificante. Os deuses já não são acessí- Cosmos”, mas esvaztada de seu conteúdo religioso. Evidentemente,
veis através dos ritmos cósmicos. O significado religioso a doutrina dos yuga foi elaborada pelas elites intelectuais, e,
da repetição dos gestos exemplares é esquecido. Ora, a repe- se ela se tornou uma doutrina pan-indiana não pensemos que
tição esvaztada de seu conteúdo conduz necessariamente a uma vi- revelava seu aspecto terrífico a todas as populações da Índia.
são pessimista da existência. Quando deixa de ser um veículo Eram sobretudo as elites religiosas e filosóficas que sentiam
pelo qual se pode restabelecer uma situação primordial e desespero perante o Tempo cíclico, que se repetia até o infi-
reencontrar a presença misteriosa dos deuses, quer dizer, nito, o eterno retorno à existência graças ao karma, a lei da
quando é dessacralizado, o Tempo cíclico torna-se terrífico: causalidade universal, Por outro lado, o Tempo era equipa-
revela-se como um círculo girando indefinidamente sobre rado à ilusão cósmica (mãyá), e o eterno retorno à existência
si mesmo, repetindo-se até o infinito. significava o prolongamento indefinido do sofrimento e da es-
Foi o que aconteceu na Índia, onde a doutrina dos ci- cravidão. A única esperança para as elites religiosas e filosó-
clos cósmicos (puga) foi amplamente elaborada. Um ciclo ficas era o não-retorno à existência, a abolição do karma; em
completo, um maháyuga, compreende doze mil anos. Ter- outras palavras, a libertação definitiva (moksha), que impli-
mina-se por uma “dissolução”, uma pralaya, que se repete cava a transcendência do Cosmos!,
de maneira mais radical (mahápralaya, a “Grande Dissolu- A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, Y
GreciA
ção”) no fim do milésimo ciclo. Pois o esquema exemplar, e os filósofos da época tardia levaram a concepção do Tempo
“criação-destruição-criação etc.””, reproduz-se até o infinito. circular aos seus limites extremos. Para citar o belo resumo
Os doze mil anos de um maháyuga são considerados como de H. Ch. Puech: “Segundo a célebre definição platônica,
“anos divinos”, durando cada um deles trezentos e sessen- o tempo que a revolução das esferas celestes determina e me-
ta anos, o que dá um total de quatro milhões, trezentos e de é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao
vinte mil anos para um único ciclo cósmico. Mil maháyuga se desenrolar em círculo. Consequentemente, todo devir cós-
constituem um kalpa (“forma”); catorze kalpa fazem um mico, assim como a duração deste mundo de geração e cor-
manvantára (assim chamado porque se supõe que cada manvan- rupção que é o nosso, desenvolver-se-á em círculo ou segundo
târa seja regido por um Manu, o Antepassado real mítico). Um
kalpa equivale a um dia de vida de Brahma; um outro kalpa
a uma noite. Cem desses “anos”” de Brahma, ou seja, tre- 14, M. Eliade, Der Mythos der weigen Widerkehr, pp. 165 ss. Ver tam-
bém Jmages et simbotes, Paris, 1952, pp. 80 ss.
zentos e onze bilhões de anos humanos, constituem a vi-
15. Esta transcendência obtém-se, aliás, aproveitando-se o ““momen-
da do Deus. Mas mesmo essa enorme duração da vida de to favorável” (kshana), o que supõe uma espécie de Tempo sagrado que per-
Brahma não consegue esgotar o Tempo, pois os deuses não mite a “saída do Tempo : ver Images et Symboles, pp. 10 ss.
e E ENE DT E a e SS E SS o rar
iz O SAGRADO E O PROFANO
QU TEMPO SAGRADO É OS MITOS Ep
sucessão indefinida de ciclos, no decurso dos quais a mesma
O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do
b
realidade se faz, se desfaz, se refaz, de acordo com uma lei XTU ALGO
Tempo histórico, Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu
c alternativas imutáveis. Não somente se conserva aí a mes-
uma existência humana historicamente condicionada, a História
ma soma de ser, sem que nada se perca nem se crie, mas tam-
torna-se suscetível de ser santificada. O ilud tempus evocado
bém, segundo alguns pensadores do fim da Antigúidade —
pelos evangelhos é um Tempo histórico claramente delimita-
pitagóricos, estóicos, platônicos —, admite-se que, no inte-
do — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Ju-
rior de cada um desses ciclos de duração, desses aiones, des-
déia —, mas santificado pela presença do Cristo. Quando um cris-
ses qeva, se reproduzem as mesmas situações que se produzi-
tão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-
ram já nos ciclos anteriores e que se reproduzirão nos ciclos
se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscita-
subsequentes — até o infinito. Nenhum acontecimento é úni-
ra — masjá não se trata de um Tempo mítico, mas do Tem-
co, nenhum ocorre uma única vez (por exemplo, a condena-
po em que Pôncio Pilatos governava a Judéia. Para o cris-
ção e a morte de Sócrates), mas realizou-se e realizar-se-á per-
tão, também o calendário sagrado repete indefinidamente os
petuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e
mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas esses
reaparecerão em cada retorno do círculo sobre si mesmo. A
acontecimentos desenrolaram-se na História: já não são fa-
duração cósmica é repetição e anakuklosis, eterno retorno. ”'16
tos que se passaram na origem do Tempo, “no começo”. (Acres-
Quanto às religiões arcaicas e paleorientais, bem como
centemos porém que para o cristão o Tempo começa de no-
em relação às concepções miítico-filosóficas do Eterno Retorno,
«4—

vo com o nascimento do Cristo, porque a encarnação funda


tais como foram elaboradas na Índia e na Grécia, o judaísmo
uma nova situação do homem no Cosmos.) Em resumo, a
apresenta uma inovação importante. Para o judaismo, o Tempo tem
História se revela como uma nova dimensão da presença de
um começo e terá um fim. À idéia do Tempo cíclico é ultrapassada.
Deus no mundo. A História volta a ser a História sagrada —
Jeovájá não se manifesta no Tempo cósmico (como os deuses das
tal como foi concebida, dentro de uma perspectiva mítica, nas
outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível, Ca-
religiões primitivas e arcaicas!*.
da nova manifestação de Jeová na históriajá não é redutível a
Ocristianismo conduz a uma teologia e não a uma fi-
uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a có-
lera de Jeová contra seu povo, masjá não é a mesma que Jeová
de Deus na-histó-
tosofia da História, poisas intervenções
ria,
sobretudo
e a Encarnação na pessoa histórica de Jesus
exprimira quando da queda de Samaria. Seus gestos são inter-
Cristo, têm uma finalidade trans-histórica
na sm — a salvação do
venções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo camera
e mea
homem.
para seu povo, o povo escolhido por Jeová. Assim, o acontecimento
Hegel retoma a ideologia judaico-cristã e aplica-a à His-
histórico ganha uma nova dimensão: torna-se uma teofanial”,
tória universal em sua totalidade: o Espírito universal
manifesta-se contínua, e unicamente, nos acontecimentos histó-
16. Henri Charles Puech, “La Gnose etle Temps”, Eranos- fahrbuch, XX,
ricos. À História, em sua totalidade, torna-se, pois, uma teo-
1951, pp. 60-61.
17. Cf. Der Mythos der weigen Widerkehr, pp. 149 ss., sobre a valorização
da História pelo judaísmo, sobretudo pelos profetas.
18. Cf. M. Eliade. Images et Symboles, pp. 222 ss.
4 O SAGRADO E O PROFANO
fania: tudo o que se passou na História devia passar-se assim,
pois assim o quis o Espírito universal. É a via aberta para
as diferentes formas de filosofia historicista do século XX.
Aqui pára nossa investigação, porque todas essas novas va-
lorizações do Tempo e da História pertencem à história da
filosofia. É importante acrescentar, contudo, que o histori-
cismo é o produto da decomposição do cristianismo: ele con-
cede uma importância decisiva ao acontecimento histórico (o CAPÍTULO II
que é uma idéia de origem cristã), mas ao acontecimento históri-
co como tal, quer dizer, negando-lhe toda possibilidade de re- A SACRALIDADE DA NATUREZA
velar uma intenção soteriológica, trans-histórica!?. E A RELIGIAO COSMICA
Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusiva-
mente “natural”: e pe Recarga
gioso. Isto é facilm pois
Cosmos
o é uma |
criação divina: saindo das mãos do deuses, o Mundo fica
impregnado de sacralidade. Não se trata somente de uma sa-
cralidade comunicada pelos deuses, como é o caso, por exem-
plo, de um lugar ou um objeto consagrado por uma presença
divina. Osdeuses.fizeram mais: manifestaram as diferentes mo-
dalidades dosagrado na própria estrutura do Mundo e dos fenômenos
cósmicos,
O Mundo apresenta-se de tal maneira que, ao contem-
plá-lo, o homem religioso descobre os múltiplos modos do sa-
grado e, por conseguinte, do Ser. Antes de tud Mundo
existe, está alt, e tem uma estrutura: não o é um Caos, mas um
Cosmos, e revela-se bra dos
deuses. Esta obra divina guarda sempre uma transparência,
quer dizer, desvenda espontaneamente os múltiplos aspectos
do sagrado. O Céu revela diretamente, “naturalmente”, a
19. Sobre as dificuldades do historicismo, ver Der Mythos der ewigen Wie-
derkehr, pp. 210 ss. distância infinita, a transcendência do deus. A Terra também
96 O SAGRADO E O PROFANO | SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 97
é “transparente”: mostra-se como mãe e nutridora univer- dos, mediante ritos de ascensão; para lá se elevam, segundo
sal, Os ritmos cósmicos manifestam a ordem, a pc as concepções de certas religiões, as almas dos mortos.O
a permanência, a fecundidade. No conjunto, o Cosmos é “muito alto”” é uma dimensão inacessível ao homem como
mesmo tempo um organismo real, vivo e sagrado: revela, ao mes- tal; pertence dedireitoàs forças e aos Seres sobre-humanos.
mo tempo, as modalidades do Ser e da sacralidade. Ontofa- Aquele que se eleva subindo a escadaria de um santuário, ou
«
niahierofa unem.
senia a escada ritual que conduz ao Céu, deixa então de ser ho-
Neste capítulo trataremos de compreender como o Mun- mem: de uma maneira ou de outra, passa a fazer parte da
do se mostra aos olhos do homem religioso; mais exatamen- condição divina.
te, como a pi se revela através das próprias estrutu- Não se trata de uma o i jonal. A cate-
ras do Mundo. É preciso não esquecer que, para o homem goria transcendental da “'a do supraterrestre, do infi-
religioso, o “sobrenatural” está indissoluvelmente ligado ao nito, revela-se ao homem como um-tade tanto à sua inteli-
“natural”; que a Natureza sempre exprime algo que a trans- gência como à sua alma. É uma tomada de consciência total:
cende. Comojá dissemos, uma pedra sagrada é venerada por- em face do Céu, o homem descobre ao mesmo tempo a inco-
cm
que é sagrada e não porque é pedra; é a sacralidade manrfestada mensurabilidade divina e sua própria situação no Cnpriaa:
arena do modo de ser da pedra
pri que ma
revela
imsua verdadeira
me CORO
A essên- O Céu revela, por seu próprio modo de ser la, a
cia. E por esta razão que não se pode falar de “naturismo” força, a eternidade. Ele existe de uma maneira absoluta pois é.
ou de “religião natural”, no-sentido atribuído a estas pala- elevado, infinito, eterno, poderoso.
vras no século XIX; pois é a “sobrenatura”” » que se deixa ma- E nesse sentido que se deve compreender o que dizía-
nifestar ao homem religioso através dos aspectos “naturais” mos mais atrás, que os deuses manifestaram as diferentes mo-
do Mundo. dalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo: o Cos-
mos — a obra exemplar dos deuses — é “*construído” de tal
maneira, que o sentimento religioso da transcendência divi-
O sagrado celeste e os deuses uranianos na é incitado pela própria existência do Céu. E, visto que o
Céu existe de maneira absoluta, um grande número de deu-
À simples contemplação da abóbada celeste é suficiente ses supremos das populações
ações pprimitivas são chamados por no-
para desencadear uma experiência religiosa, O Céu revela- mes que designam a altura ; a abóbada celeste, os fenômenos
se infinito, transcendente. É por excelência o ganz andere diante meteorológicos; ou são chamados muito simplesmente de
do qual o homem e seu meio ambiente pouco representam, “Proprietários do Céu”, ou “Habitantes do Céu”,
A transcendência revela-se pela simples tomada de consciên- A divindade suprema dos maori chama-se lho; iho tem
ciada altura infinita. O “muito alto”” torna-se espontanca- o sentido de “elevado, acima”, Uwoluwu, o Deus supremo
mente um atributo da divindade. As regiões superiores ina- dos negros akposo, significa “o que está no alto, as regiões
cessíve
cessíveis ao h omem, as zonas siderais, adquirem o prestígio superiores”. Entre os selk'nam da Terra do Fogo, Deus se
do transcendente, da realidade absoluta, da eternidade. Lá, chama '“Habitante do Céu” ou “Aquele que está no Céu”.
éa morada dos deuses; é lá que chegam alguns privilegia- Puluga, o Ser supremo dos andamanais, habita o Céu; sua
98 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA (els)
voz é o trovão, o vento seu hálito; o furacão é o sinal de sua tado o Cosmos, criou também o Céu. É por esta razão que
cólera, pois ele pune com o raio aqueles que infringem suas é chamado “Criador”, “Todo-Poderoso”, “Senhor”, “Che-
ordens. O Deus do Céu dos iorubas da costa dos Escravos fe”, “Pai” etc, O Deus celeste é uma pessoa e não uma epi-
chama-se Olorum, literalmente “Proprietário do Céu”. Os fania uraniana. Mas ele habita o Céu e manifesta-se através
samoiedos adoram Num, Deus que habita o mais alto do Céu dos fenômenos meteorológicos: trovão, raio, tempestade, me-
e cujo nome significa “Céu”. Entre os koryaks, a divindade teoros etc. Em outras palavras, algumas estruturas privile-
suprema chama-se o “Um do alto”, “o Senhor do Alto”, giadas do Cosmos — o Céu, a atmosfera — constituem as
“Aquele que existe”. Os ainos conhecem-no como ““o Chefe epifanias favoritas do Ser supremo: ele revela sua presença
divino do Céu”, “o Deus celeste”, ““o Criador divino dos por meio daquilo que lhe é específico: a majestas da imensida-
mundos”, mas também como Kamut, que quer dizer “Céu”, de celeste, o tremendum da tempestade.
E pode alongar-se facilmente a lista!,
O mesmo ocorre entre as religiões de povos mais civili-
zados, quer dizer, dos povos que desempenharam um papel O Deus longínquo
importante na História. O nome mongol do Deus supremo
é Tengri, que significa “Céu”. O T'ien chinês denota ao mes- A história dos Seres supremos de estrutura celeste é de
mo tempo o “Céu” e “Deus do Céu”. O termo sumério pa- grande importância para a compreensão da história religiosa
ra divindade, dingir, tinha como significado primitivo uma
epifania celeste: “claro, brilhante”. O Anu babilônio expri- aqui, nestas poucas páginas?, mas não podemos deixar de
me igualmente a noção de “Céu”. O Deus supremo indo- mencionar um fato que nos parece capital: os Seres supre-
europeu, Diêus, denota ao mesmo tempo a epifania celeste mos de estrutura 1celeste
eo mi tê ência a desaparece ul-
ROSA
e o sagrado (cf. “brilhar”, “dia”; dyaus, “céu”, “dia” —
Dyaus, deus indiano do Céu). Zeus, Júpiter guardam ainda tornam-se dei otiosi. Numa palavra, pode-se dizer que esses
nos nomes a recordação da sacralidade celeste. O celta Tara- deuses, depois de terem criado o Cosmos, a vida e o homem
nis (de taran, “trovejar”), o báltico Perkunas (“relâmpago”) sentem uma espécie de “fadiga”, como se o enorme empreen-
e o proto-eslavo Perun (cf. o piorum polonês: “relâmpago”) dimento da Criação lhes tivesse esgotadoos recursos. Retiram-
mostram sobretudo as transformações ulteriores dos deuses se, pois, para o Céu, deixando na Terra um filho ou um de-.
do Céu em deuses da Tempestade”. miurgo, para acabar ou aperfeiçoar a Criação. Aos poucos,
Não se trata de “'naturismo””. O Deus celeste não é iden- o lugar deles é tomado por outras figuras divinas: os Antepas-
uficado com o Céu, pois foi o próprio Deus que, criador-de sados míticos, as Deusas-Mães, os Deuses fecun.' «cores etc.
1, Ver os exemplos e a bibliografia em M. Eliade, Die Religionen und 3, O leitor encontrará os elementos no livro anteriormente citado, pp.
das Heilige, pp. 61-97. 61-146. Ver sobretudo R, Pettazzoni, Dio, Roma, 1921; id., L'Onniscienza di
2. Acerca de tudo isto, ver Die Religionem und das Heilige, pp. 88 ss.. Dio. Turim, 1955; Wilhelm Schmidt, Ursprung der Gottestdee, TNT 9 Secr
“09 ss; etc. 1926-1955.
A SACRALIDADE DA NATUREZA E RELIGIÃO CÓSMICA 101
100 O SAGRADO E O PROFANO
O deus da Tempestade conserva ainda uma estrutura celeste, O mesmo acontece entre a maioria das populações afri-
masjá não é um Ser supremo criador: é apenas um Fecunda- canas: o grande Deus celeste, o Ser supremo, criador e oni-
dor da Terra, e às vezes não passa de um auxiliar de sua paren- potente, desempenha um papel insignificante na vida religiosa
ta, a Terra-Mãe. O Ser supremo de estrutura-celeste.só-conser- | da tribo. Encontra-se muito longe, ou é bom demais para ter
va seu lugar preponderante entre os povos pastores, e ganha uma necessidade de um culto propriamente dito, e invocam-no ape-
situação única nas religiões de tendência monoteísta (Ahura-
nas em casos extremos. Assim, por exemplo, o Olorum (“Pro-
prietário do Céu”? dos iorubas, depois de ter iniciado a cria-
Mazda) ou monoteístas (Jeová, Alá).
ção do mundo, confiou a um deus inferior, Obatala, o cuida-
O fenômeno do “afastamento”” do De upremo revela-
do de concluí-lo e governá-lo. Quanto a Olorum, retirou-se
se desdee os ama
níveis arcaicos
rem de cultura. Entre os australianos ku-
lin, o Ser supremo Bundjil criou o Universo, os animais, as ár-
definitivamente dos negócios terrestres e humanos, e não há
templos, nem estátuas, nem sacerdotes deste Deus supremo.
vores e o próprio homem; mas, depois de ter investido seu filho
Todavia, é invocado, como último recurso, em tempos de calamidade.
com o poder sobre a Terra, e sua filha com o poder sobre o Céu,
Retirado no Céu, Ndyambi, o Deus supremo dos héré-
Bundyjil retirou-se do mundo. Habita sobre as nuvens, como um
ros, abandonou a humanidade a divindades inferiores. “Por
“senhor”, tendo um grande sabre na mão. Puluga, o Ser su-
que lhe ofereceríamos sacrifícios?”” — explica um indígena.
premo dos andamanais, retirou-se depois de ter criado o mun-
“Não precisamos temê-lo, pois, ao contrário dos nossos [es-
do e o primeiro homem. Ao mistério do “afastamento” corres-
píritos dos] mortos, cle não nos faz mal algum.” O Ser su-
ponde a ausência quase completa de culto: nenhum sacrifício,
premo dos tumbukas é grande demais “para se interessar pe-
nenhuma solicitação, nenhuma ação de graças. Apenas alguns
las coisas vulgares dos homens”'º. O mesmo acontece entre
costumes religiosos em que ainda sobrevive a recordação de Pu-
os negros de língua tshi da África ocidental, com Njankupon:
luga: por exemplo, o “silêncio sagrado” dos caçadores que re-
não tem culto e só lhe prestam homenagem em casos de gran-
gressam à aldeia depois de uma caçada feliz. des privações ou epidemias, ou depois de uma violenta bor-
O “Habitante do Céu” ou “Aquele que está no Céu” dos
rasca; os homens perguntam-lhe então em que é que o ofen-
selk'nam é eterno, onisciente, onipotente, criador, mas a Cria-
deram. Dzingbé (“o Pai universal”), o Ser supremo dos ewe,
ção foi concluída pelos antepassados míticos, criados pelo Deus só é invocado durante a seca: “Ó Céu, a quem devemos nos-
supremo antes de se retirar para cima das estrelas. Atualmente, sos agradecimentos, grande é a seca; faz que chova, que a
esse Deus isolou-se dos homens, indiferente às coisas do mun-
Terra se refresque e que os campos prosperem.”? O afasta-
do. Não tem imagens, nem sacerdotes. Somente em caso de mento e a passividade do Ser supremo são admiravelmente
doença lhe dirigem preces: ““Tu, do alto, não leves meu filho; expressos num adágio dos gyriamas da África oriental que
é ainda muito pequeno!” ! Só lhe fazem oferendas durante as descreve também o seu Deus: “Mulugu (Deus) está no alto, os
intempéries.
5 . Cf. Frazer, The Worship of Nature, T, Londres, 1926, pp. 150 ss.
4, Martin Gusinde, “Das hóchste Wesen bei den Selk'nam auf Feurland”, 6, Ibid., p. 185,
7 Schmidt. Viena. 1928. pp. 269-274. 7. J. Spieth, Die Religion der Exweer, Góttingen-Leipzig, 1911, pp. 46 ss.
02
O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 103
“gg o embaixo", Os bantos dizem: “Deus, depois de tas”? (mais carnais, até mesmo orgiásticas), o homem primi-
a ri º homem, já se não preocupa mais com ele.” E tivo afasta-se do Deus celeste c transcendente. A descoberta
Re eg hos repetem: “Deus afastou-se de nós!”'? As popu- da agricultura transforma radicalmente não somente a eco-
pa ai da pradaria da África equatorial resumem sua nomia do homem primitivo mas, sobretudo, sua economia do
filosofia "eligiosa no seguinte cântico: sagrado. Outras forças religiosas entram em jogo: a sexuali-
dade, a fecundidade, a mitologia da mulher e da Terra etc.
Deus E ; .
D (Name) está no alto, o homem está embaixo. A experiência religiosa torna-se mais concreta, quer dizer,
eus
Cad * Deus, o homem é ; o homem. mais intimamente mistúrada à Vida. As grandes Deusas-Mães-.
ada
Um no seu pais, cada um em sua casalO. c os Deuses fortes ou os gênios da fecundidade são claramen-
te mais “dinâmicos” e mais acessíveis.aos homens.
É inúti To
exoligiã tu multiplicar os exemplos. Por toda parte, entre es- o era o DeusSie criador.
sas religiô so
lid 4 o primitivas, o Ser supremo celeste parece ter per- Mas, como acabamos de ver, emaflição
casos de extre-
dido a atual; as 5 :
d ade religiosa; está ausente do culto e, no mito, afasta- ma, quando tudo foi tentado em vão, e sobretudo em casos
se cada ve i E
Dá * mais dos homens, até se tornar um deus otiosus. de desastres provenientes do Céu — seca, tempestade, epi-
s homen . cu:
ques é porém, lembram-se dele e imploram-lhe em últi- demia —, os homens voltam-se para o Ser supremo e
ma instân .
A Ca quando fracassam todos os esforços junto aos outros deu- populações .
ses e deusas, ad s imploram-lhe. Esta atitude não é exclusiva das
* Sos antepassados e demônios. Conforme se exprimem primitivas. Todas as vezes que os antigos hebreus viviam uma
os oraons: “« : :
; Tentamos tudo, mas ainda temos a ti para nos época de paz e prosperidade econômica relativas, afastavam-
socorrer!” | : : Gois
Deus! T sacrificam-lhe um galo branco, gritando: “O se de Jeová e tornavam a aproximar-se dos Baals e das As-
eus! Tu é á : >
És nosso criador! Tem piedade de nós!"!!, tartes dos seus vizinhos. Só as catástrofes históricas forçavam-
nos a voltarem-se para Jeová. “Então clamaram ao Eterno
e disseram: pecamos porque abandonamos o Eterno e servi-
A experiênci,
exp “a .
“2 religiosa da vida mos Baal e Astartes; agora, pois, livramo-nos da mão de nos-
sos inimigos, e servir-te-emos”” (7, Samuel, 12:10).
O “af; si : ;
“2stamento divino” traduz na realidade o interesse Os hebreus voltavam-se para Jeová em consequência das
“a da ve z : RR
; Eca rdo homem por suas próprias descobertas re- catástrofes históricas e na iminência de um aniquilamento re-
cu : ae . :
1805ã8, Culturais e econômicas. Interessado pelas hierofanias gido pela História; os primitivos lembram-se de seus Seres
supremos em casos de catástrofes cósmicas. Mas o sentido do
retorno ao Deus celeste é o mesmo para uns e para outros:
numa situação extremamente crítica, em que a própria exis-
= ao a
8 M tência da coletividad. 2] j bandonam-se as divin-
9 HE Le Roy, La retigion des primitifs, 72 ed., Paris, 1925, p. 184.
dades que asseguram e exaltam a Vida em tempos normais
10 Hid Pes, Les Pygmées de la fóret équatoriate, Paris, 1932, p. 74,
iL:Ã)
' pi opera
;
para reencontrar o Deus supremo. Trata-se, aparentemente,
“er op. cit, p. 631. de um grande para
104 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 105
vos,28, substituíram
SUbst os deuses
leuses de
« estrutura celeste, eram
ira celeste, eram —— tal conservam um lugar preponderante na economia do sagrado. A,
como os Baals e as Astartes entre os hebreus — divindades que está “no alto”, o “elevado”, continua a revelar o trans-
da fecundidade, da opulência, da plenitude vital;
em resu- cendente em qualquer conjunto religioso. Afastado do culto,
Es emma eo oo ES O
mo, divindades
pa e
que exaltavam c amplificavam a Vida, tanto e relegado às mitologias, o céu mantém-se presente na vida
mais
a vida cósmica — vegetação, agricultura, gado — como a vi- religiosa por intermédio do simbolismo. E esse simbolismo
da humana. Aparentemente, essas divindades eram fortes, celeste infunde e sustenta, por sua vez, numerosos ritos (de
ascensão, de escalada, de iniciação, de realeza etc.), mitos
sua força, suas reservas vitais ilimitadas, suafecundidade. (a Árvore cósmica, a Montanha cósmica, a cadeia das fle-
E, contudo, seus adoradores — primitivos ou hebreus chas que liga a Terra ao Céu etc.) e lendas (o vôo mágico
— tinham o sentimento de que todas as grandes deusas e to- etc.). O simbolismo do “Centro do Mundo” também ilustra
a importância do simbolismo religioso: é num “Centro” que
se efetua a comunicação com o Céu, e esta constitui a ima-
cos. Esses deuses e deusas só podiam reproduzir a vida e aumentá- gem exemplar da transcendência.
fa, e mesmo assim só em épocas “'normais””; em resu m Poder-se-ia dizer que a própria estrutura do Cosmos con-
divindades que regiam admiravelmente os ritmos cósmicos, serva viva a recordação do Ser supremo celeste. Como se os
mas que se revelavam incapazesde salvar o Cosmos ou a so- deuses tivessem criado o Mundo de tal mancira que ele não pu-
ciedade humana num momento de crise (crise “histórica” en- desse refletir-lhes a existência; pois nenhum mundo é possível sem
tre os hebreus). a verticalidade, e esta dimensão, por si só, basta para evocar
As diversas divindades que substituíram os Seres supre- a transcendência.
mos acumularam os poderes mais concretos e mais esplendo- Retirado da vida religiosa propriamente dita, o sagrado celeste
rosos, os poderes da Vida. Mas, exatamente por isso, “espe- permanece ativo através do simbolismo. Um símbolo religioso
cializaram-se”” na procriação e perderam os poderes mais su- transmite sua mensagem mesmo quando deixa de ser compreen-
tis, mais e “nobres”, mais ce “espirituais” dos Deuses criadores. dido, conscientemente, em sua totalidade, pois um símbolo dirige-se
Descobrindo a sacralidade da Vida, o homem deixou-se ar- ao ser humano integral, e não apenas à sua inteligência.
rastar progressivamente por sua própria descoberta:
abandonou-se às hierofanias vitais e afastou-se da sacralida-
de que transcendia suas necessidades imediatas e cotidianas.
Estrutura do simbolismo aquático
Antes de falarmos da Terra, precisamos apresentar as
Perenidade dos símbolos celestes Er a , m-
valorizações religiosas das Águas!2, e isso por duas razões:
Notemos, contudo que, mesmo quando a vida religiosa
já não é dominada pelos deuses celestes, as regiões siderais, 12. Para tudo o que segue, ver Die Religionen und das Heilige, pp. 217
o simbolismo uraniano, os mitos e os ritos de ascensão etc ss. Images et Symboles, pp. 199 ss.
106 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 107
Ra)
nO A er Z o .
a (1) as Aguas existiam antes da Terra (conforme se exprime lúvio” é comparável ao “batismo”, e a libação funerária às
5) RES 7 - 7 :
Vu edi 9 Gênesis, “as trevas cobriam a superfície do abismo, e o Es- lustrações dos recém-nascidos.ou gos banhos rituais prima-
di
dos * pírito de Deus planava
O sobre
ea as =águas”); (2) analisando os veris que trazem saúdee fertilidade.
valores reli
religiosos das Águas , percebe-se melhor a estrutura Em qualquer conjunto religioso em que as encontremos,
ca função do símbolo. Ora, o simbolismo desempenha um
papel considerável na vida religiosa da humanidade; graças abolem as formas, “lavam os pecados”, purificam e, ao mes-
rt me
mo tem = Seu destino é preceder a Criação e
Lo x Pb de “revelar” a transcendência. reabsorvê-la, incapazes que são de ultrapassar seu próprio mo-
As águasissimbolizam a soma universal das virtualida- do de ser, ou seja, de se manifestarem em formas. As Águas
Lo des; são fons et origo, o reservatório de todas as possibili não podem transcender
a condição do virtualÀ de germes +E
COL UTRES recedem toda forma e sustentam toda cria- latências. Tudo o que é forma-se manifesta por.
ção. Uma das imagens exemplares da Criação é a Ilha que destacando-se delas.
subitamente se “manifesta”? no meio das vagas. Em contra- Há aqui um aspecto essencial: a sacralidade das Á
partida, a imersão na água simboliza a regressão ao pré- c a estrutura das cosmogonias e dos apocalipses aquáticos não
formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistên- poderiam ser reveladas imtegr através do sunbolismo aquá-
cia. À emersão repete oo gesto
gesto cosmogônico
cosn da manifestação E fico, que é o único-“sistema
»
capaz de integrar todas as reve-
formal; a imersão
i Cremesequivale a uma
z dissolução das formas, E lações particulares das inúmeras hierofanias!?, Esta lei é, de
por isso que o simbolismo das Águas implica tanto a morte resto, a de todo simbolismo: é o conjunto simbólico que valo-
como o renascimento. O contato com a água comporta sem- riza os diversos significados das hierofanias. As “Águas da
pre uma regeneração: por um lado, porque a dissolução é se- Morte”, por exemplo, só revelam seu sentido profundo na
guida de um “* novo nascimento”; por outro lado, porque a medida em que se conhece a estrutura do simbolismo
imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. À cosmo- aquático.
gonia aquática correspondem, ao nível antropológico, as hi-
logenias: a crença segundo a qual o gênero humano nasceu
das Águas. Ao dilúvio ou à submersão periódica dos conti- História exemplar do batismo
nentes (mitos do tipo “Atlântida””) corresponde, ao nível hu-
mano, a “segunda morte”? do homem (a “umidade” e lei-
Os-padres da Igreja | não deixaram de explorar certos va- AU -156
mon dos Infernos etc.), ou a morte iniciática pelo batismo.
lores pré-cristãos e universais do simbolismo aquático, com
Mas, tanto no plano cosmológico como no plano antropoló-
o risco de os enriquecerem de significados novos, relativamen-
gico, imersão-na
a Águas equivale
s não a uma extinção defi-
tc à existência histórica do Cristo. Para Tertuliano (De Baptis-
mitiva, ma: a reintegração passageira no indistinto, se-
guida deuma-nova criação, de uma nova vida ou de um “ho
mem novo”, conforme se trate de um momento cósmico, bio- 13. Sobre o simbolismo, cf. Die Retigionen und das Heilige, pp. 494 ss.;
lógico ou soteriológico, Do ponto de vista da estrutura, o “di- especialmente pp, 508 ss,
108 O SAGRADO E O PROFANU
4 SACRALIDADE DA NATUREZA E À RELIGIÃO CÓSMICA 109
mo WI-V), a água foi a primeira “ sede do Espírito divino,
leza para que adquiríssemos o poder de caminhar sobre os
que a preferia então a todos os outros elementos... Foi a água
escorpiões e as serpentes”!!,
a primeira que produziu o que tem vida, a fim de que nosso
Vem, em seguida, a valorização do batismo como re-
espanto cessasse quando ela gerasse um dia a vida no batis- e
mo... Poda água natural adquire, pois, pela antiga prerro-
petição do dilúvio.
nd Segundo Justino, pio Cristo, novo Noé,
saiu vitorioso das Águas. e tornou-se o chefe de uma outra
gativa com que foi honrada em sua origem, a virtude da san-
tificação no sacramento, se Deus for invocado sobre ela. Lo- raça, O dilúvio simboliza tanto a descida às profundezas
go que se pronunciam as palavras, o Espírito Santo, descido marinhas como o batismo. “O dilúvio era, pois, uma ima-
dos Céus, pára sobre as águas, que ele santifica com sua fe- gem que o batismo acabava de consumar... Assim como
cundidade; as águas assim santificadas impregnam-se, por sua Noé havia afrontado o mar da Morte, onde a humanida-
vez, da virtude santificadora... O que outrora curava o cor- de pecadora tinha sido aniquilada e do qual emergira, tam-
po, cura hoje a alma; o que trazia a saúde no Tempo, traz bém aquele que se batiza desce na piscina batismal para
a salvação na eternidade... afrontar o dragão do mar num combate supremo e sair dele
“O “homem velho” morre por imersão na água e dá nas- vencedor. »15
cimento a um novo ser regenerado. Este simbolismo é admi- Mas, ainda acerca do rito batismal, estabeleceu-se.tam-.
ravelmente expresso por João Crisóstomo (Homil. in Joh., bém um paralelo entre o Cristo e Adão. O paralelo Adão-
XXV, 23, que, falando da multivalência simbólica do batis- Cristo assume um lugarconsiderável já na teologia de S.
mo, escreve: “Ele representa a morte e a sepultura, a vida Paulo. “Pelo batismo”, afirma Tertuliano, ““o homem recu-
e a ressurreição... Quando mergulhamos a cabeça na água pera a semelhança com Deus” (De Bapt., V). Para Cirilo,
como num sepulcro, o homem velho fica imerso, enterrado “o batismo não é somente purificação dos pecados e graça
inteiramente; quando saímos da água, aparece imediatamente da adoção, mas também aniitypos da Paixão de Cristo”
o homem novo.” Também a nudez batismal encerra, ao mesmo tempo, um
Como se vê, as interpretações de Tertuliano e João Cri- significado ritual e metafísico: o abandono da “antiga veste
sóstomo harmonizam-se perfeitamente com a . estrutura do de corrupção e pecado da qual o batizado se despoja por
simbolismo aquático, Intervêm Cristo, aepiela: com Eno ida depois do peca-
águas certos elementos novos ligados a uma “história”, neste caso a do” 8, m
História sagrada. Há, antes de tudo, a valorização do batismo
como descida ao abismo das Águas paraa um duelo como. creve Cirilo. “Vós estáveis nus aos olhos de todos e não
monstro marinho. Esta descida tem um modelo:.o do Oristo. vos êmverdonias disso. E que em verdade trazeis em vós
no Jordão, que era ao mesmo tempo uma descida nas Águas
da Morte. Conforme escreve Cirilo de Jerusalém, “o dragão
Behemoth, segundo Jó, estava nas Águas e recebia o Jordão 14, Ver o comentário deste texto em J. Danielou, Bible et Liturgie, Pa-
em sua garganta.
S Ora, como era preciso esmagar as cabeças ris, 1951, pp. 38 ss.
. z 15. J. Danielou, Sacramentum futuri, Paris, 1950, p. 65.
do dragão, Jesus, tendo descido nas Águas, atacou a forta- 16. J. Danielou, Bible et Liturgie, pp. 61 ss.
o O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA É À RELIGIÃO CÓSMICA Il
a imagem do primeiro Adão, que no Paraíso se encontrava tra o monstro-guardião equivale à conquista da imortalidade!?,
nu e não se envergonhava.17 Para o cristão, o batismo é um sacramento, pois foi imstituído
oe estu
Através desses poucos textos, podemos perceber o senti- pelo Cristo. Mas nem por isso deixa de equivaler ao ritual ini-O
o NoNgõo
do das inovações cristãs: por um lado, os padres procuravam ciático da prova (luta contra o monstro), da morte e daE ressur- Cal co
qespados .
correspondência entre os dois testamentos; por outro lado, reição simbólicas (o nascimento do homem novo). Não quere- po and
mostravam que Jesus Cristo tinha cumprido realmente as pro- mos dizer com isso que o judaísmo e o cristianismo “tomaram NA Tudo
messas feitas por Deus ao povo de Israel. Mas éimportante de empréstimo” tais mitos e símbolos às religiões dos povos vi- dose 55
se reg
observar que ess zuçÕE ) X sal nã zinhos; não era necessário; pois o judaísmo era herdeiro de uma
pGueta
pré-história e de uma longa história religiosas onde todos esses a aos e
contradiziamo simbolismo aquático universalmente difundido. Tudo
se reencontra ali: Noé e o Dilúvio tiveram como recíproco, elementosjá existiam. Nem sequer foi preciso que o judaísmo
em inúmeras tradições, o cataclismo que pôs fim a uma “hu- mantivesse “desperto” esse ou aquele símbolo, na sua integri-
manidade”” (“sociedade”), à exceção de um único homem, dade. Bastou que um grupo de imagens sobrevivesse, ainda que
que se tornou o Antepassado mítico de uma nova humanida- obscuramente, desde os tempos pré-mosaicos. Tais imagens e
de. As “Águas da Morte” são um leitmotiv das mitologias pa- símbolos eram capazes de recobrar, a qualquer momento, uma
leorientais, asiáticas e oceânicas. A Água “mata” por exce- poderosa atualidade religiosa.
Iência: dissolve, abole toda forma. É justamente por isso que
é rica em “germes”, criadora, O simbolismo da nudez ba-
tismal já não é o privilégio da tradição judaiço-cristã. Universalidade dos símbolos
A nudez ritual equivale à integridade e à plenitude;
raíso” implica a ausência das “vestes”, quer dizer, a ausên- Alguns padres da 1
cia do “uso” (imagem arquetípica do Tempo). Toda nudez se da correspondência entre os símbolos propostos pelo cris-
ritual implica um modelo atemporal, uma imagem para- tianismo e os símbolos que são patrimônio comum da huma-
disíaca. nidade, Perante aqueles que negavam a ressurreição dos mor-
Os monstros do abismo são encontrados também em nu- tos, Teófilo de Antioquia apelava para os indícios (tekhméria)
merosas tradições: os heróis, os.iniciados,
descem ao fundo que Deus colocara ao alcance deles nos grandes ritmos cósmi-
do abismo a fim de afrontarem os monstros marinhos; é uma cos: as estações, os dias e as noites. Escrevia: “Não há uma
prova tipicamente iniciática, Evidentemente, a história das, ressurreição para as sementes e para os frutos?” Para Clemente
religiões está cheia de variantes: às vezes os dragões montam de Roma, ““o dia e a noite mostram-nos a ressurreição; a noi-
guarda em volta de um “tesouro”, imagem sensível do sa- te deita-se, o dia levanta-se; o dia se vai, a noite chega”1º.
grado, da realidade absoluta; a vitória ritual (iniciática) con-
18. Sobre esses temas mítico-rituais, ver Die Reltgionen und das Heitige,
pp. 239 ss., 325 ss.
17. Ver também outros textos reproduzidos em J. Danielou, ibid., pp. 19. Cf, Beinaert, “La dimension mythique dans le sacramentalisme chré-
17, Eranos-fahrbuch, KVIL, 1949, p. 275,
112 O SAGRADO É O PROFANO 4 SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 113
4
Para os apologetas cristãos, os símbolos estavam carre- Terra mater Tema
gados de mensagens: mostravam
o sagrad Tr meio dos rit-
mos
cósmicos.
À revelação trazida
a fé não destruiu os sig- O profeta indiano Smohalla, da tribo Umatilla, recusava-
nificados pré-cristãos dos símbolos: apenas adicionou-lhes um se a trabalhar a terra. “É um pecado”, dizia, “ferir ou cor-
valor novo. É certo que, para o crente, o novo significado tar, rasgar ou arranhar nossa mãe comum com trabalhos agrí-
eclipsou os outros: só ele valorizava o símbolo, transfigurava-o colas”. E acrescentava: “Vós pedis-me que trabalhe o solo?
em revelação. Era a ressurreição do Cristo que importava, Iria eu pegar uma faca e cravá-la no seio de minha mãe? Mas
não
“indícios”
os que se podiam ler na vida cósmica. Con- então, quando eu já estiver morto, ela não me acolherá mais
tudo, subsistia o fato de que a nova orientação era, de certo modo, em seu seio. Pedis-me que cave c desenterre pedras? Iria eu
condicionada pela própria estrutura do simbolismo; mutilar-lhe as carnes a fim de chegar a seus ossos? Mas en-
zer inclusive que o símbolo aquático esperava a realização de tãojá não poderei entrar em seu corpo para nascer de novo.
seu sentido profundo pelos novos valores trazidos Pelo eris- Pedis-me que corte a erva e o feno, e que o venda, é que en-
tanismo,
cet riqueça como os brancos? Mas como ousaria eu cortar a ca-
A fé cristã está suspensa de uma revelação histórica: é a beleira de minha mãe?'20,
encarnação de Deus no tempo histórico que assegura, aos Essas palavras foram pronunciadas há apenas meio sé-
olhos do cristão, a validade dos símbolos. Mas o simbolismo culo, mas chegam até nós de muito longe. A emoção que se
aquático universal não foi abolido nem desarticulado pelas sente ao ouvi-las decorre sobretudo de que elas nos revelam,
interpretações históricas (judaico-cristãs) do simbolismo ba- com um frescor e uma espontaneidade incomparáveis, a ima-
tismal. Em outras palavras, a História não conseguiu modi- gem primordial da Terra-Mãe. Encontra-se esta imagem em
ficar radicalmente a estrutura de um simbolismo arcaico. A todas as partes do mundo, sob inúmeras formas c variantes.
História acrescenta continuamente significados novos, mas É a Terra Mater ou a Tellus Mater, bem conhecida das-religiões
estes não destroe
estrutura m-a
do símbolo. mediterrânicas, que dá nascimento a todos os ser É a Pre
É fácil compreender isto quando se leva em conta o fato ra que cantarei””, lê-se no hino homérico À Terra, “mãe uni-
de que, para o homem religioso, o Mundo apresenta sempre versal de sólidas bases, avó venerável que nutre em seu solo
uma valência supranatural, quer dizer, FERA uma modali- tudo o que existe... Éati que pertence o dar a vida aos mor-
dade do sagrado. Todo fragmento cósmico é “transparente” tais, bem como o tomá-la de volta...” E nas Coéforas, Ésquilo
seu próprio modo de existência mostra uma estrutura mai glorifica a Terra, que “dá à luz todos os seres, nutre-os e de-
cular do Ser e, por consegiência, do sagrado. Não se deve pois recebe deles de novo o germe fecundo”.
esquecer que, para o homem religioso, a sacralidade é uma O profeta Smohalla não nos diz de que maneira nasce-
manifestação completa do Ser. As revelações da sacralidade ram os homens da Mãe telúrica, mas os mitos americanos
cósmica são, de certo modo, revelações primordiais, pois ti-
veram lugar no mais longínquo passado religioso da huma-
20. James Mooney, “The Ghost-Dance Religion and the Sioux Out-
nidade e conseguiram resistir às inovações introduzidas pos-
break, of 1890”, Annual report of the Bureau of American Eihnology, XIV, 2,
teriormente pela História. Washington. 1896, pp. 641-1136, p. 721.
Z—
N+ O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E À RELIGIÃO CÓSMICA Lil o)
revelam-nos como se passaram as coisas na origem, in tllo tem- estrutura cósmica ultrapassa em muito a solidariedade famis
pore: os primeiros homens viveram um certo tempo no seio liar e ancestral. 1936
de sua mãe, isto é, no fundo da Terra, em suas entranhas. Ao morrer, deseja-se reencontrar a Terra-Mãe. ser.en- Sel
Lá, nas profundezas telúricas, levavam uma vida meio- terrado no solo natal. “Rasteja para a Terra, tua mãe!”, diz
humana: eram de certo modo embriões ainda imperfeitamente o Rig Veda (X, 18, 10). “Tu, que és terra, deito-te na Ter-
formados. É, pelo menos, o que afirmam os índios lenni le- ra”, está escrito no Atharva Veda (XVII, 4, 48). “Que a car
nape ou delaware, que habitavam outrora a Pensilvânia; se- ne e os ossos voltem à Terra!””, pronuncia-se durante as cer»
gundo seus mitos, o Criador, emborajá tivesse preparado para mônias funerárias chinesas. As Inscrições sepulcrais romanas
eles, na superfície da Terra, todas as coisas de que gozam traem o medo de ter as cinzas enterradas em outros lugares,
atualmente, tinha decidido que os homens ficariam ainda al- c, sobretudo, a alegria de reintegrá-las à pátria: hic natus htc
gum tempo escondidos no ventre de sua Mãe telúrica, para situs est (CIL, V, 5595: “aqui nasceu, aqui foi colocado");
que se desenvolvessem melhor, para que âmadurecéssem. Ou- hic situs est patriae (VIII, 2885); fic quo natus fuerat optans eral
tros mitos ameríndios falam de um tempo antigo em que a alto reverte (V, 1703: “lá onde nasceu, para lá desejou res
Terra-Mãe produzia os homens da mesma maneira como pro- gressar”).
duz, em nossos dias, os arbustos e os caniços?,
de que os homens
A crença foram paridos pela Terra
Humi positio: deposição da criança no solo
designado como aquele que “nasceu da Terra”. Crê-se que
as crianças “vêm” do fundo da Terra, das cavernas, das gru- Esta experiência fundamental — de que a m
tas, das fendas, mas também dos mares, das fontes, dos rios.
é apenas a representante da Grande
Sob a forma de lenda, superstição ou simplesmente metáfo-
ra, crenças similares sobrevivem ainda na Europa. Cada re-
no chão (a kumi positio), ritual que se encontra, pelo menos
gião, e quase cada cidade e aldeia, conhece um rochedo ou
em parte, em todos os lados do mundo, da Austrália à Chi-
na, da África à América do Sul. Entre os gregos e os romã
uma fonte que “trazem” as crianças: são os Kinderbrunnen,
nos, o costume desaparecera na idade histórica, mas é possí»
Kinderteiche, Bubenquellen etc. Até entre os europeus de nossos
vel que tenha existido num passado mais longínquo: certas
sentimento
ementao catar
dias DDsobrevive equi panoobscuro de uma solidariedade mís-
apps Ve em
estátuas das deusas do nascimento (Eileithya, Damia, Auxceia)
tica com a Terra natal. É à experiência religiosa da autocto-
representam-nas de joelhos, exatamente na posição da mus
nia: as pessoas sentem-se gente do lugar. E este sentimento de
lher que dá à luz no solo, Em textos demóticos egípcios, a
expressão “sentar-se no chão” significava “parir” ou
21. Cf. M, Eliade, “La Terre-Mere et les hiérogamies cosmiques”,
“parto”?
Eranos-Jahrbuch, XII, 1954, pp. 57-95.
22. Ver A. Deterich, Muiter Erde, 3º ed., Leipzig-Berlim, 1925; B.
Nvberg, Kind und Erde, Helsinque, 1931; M. Eliade, Die Religionen und das 23. Cf. as referências no artigo La Terre-Mêre et les hidrogamtes cosmiques,
Heilise. pp. 271 ss. po 69 nº 15.
16 O SAGRADO E O PROFANO
A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA dt
É fácil compreender o sentido religioso desse costume: lhe assegure uma proteção divina, também os moribundos
E
a geração e o parto são versãs ósmicas de um
— crianças e adultos — são depostos na terra. Este rito equiva-
zado ga Terra; a mãe humana não faz mais do que imitar le a um novo nascimento. O enterro simbólico, parcial ou total,
rimordial da apari tem o mesmo valor mágico-religioso quea imersão na água,
Terra. Por isso, a mãe humana deve o batismo. O doente regenera-se
com esse ato: nasce de no-
colocar-se em contato
direto com a Grande Mãe, a fim de se deixar guiar por ela xo.À operação tem a mesma eficácia quando se trata de apa-
na realização do grande mistério que é o nascimento de muma gar uma falta grave ou curar uma doença do espírito (sendo
me
vida, a fim de receber dela as energia: éficas e encontrar
que esta última apresenta, para a coletividade, o mesmo pe-
aí a proteção maternal. rigo que o crime ou a doença somática). O pecador é coloca-
O costume de depor o recém-nascido no solo é ainda mais do num tonel ou numa fossa aberta na terra, e quando ele
difundido. Em certos países da Europa ainda se costuma, hoje sai diz-se que “nasceu uma segunda vez, do seio de sua mãe”
em dia, colocar a criança no chão, logo que esteja lavada e É por isso que, entre os escandinavos, se acredita que uma Le TINA
enfaixada. Em seguida, a criança é erguida pelo pai (de terra feiticeira pode ser salva da danação eterna enterrada
se for escA do!
tollere) em sinal de reconhecimento. Na China antiga, “o mo- viva e, sobre ela, semearem-se cereais, ceifando-se a colheita 4/4
ribundo, como o recém-nascido, é deposto no solo... Para nas- LA assim obtida”,
cer ou morrer, para entrar na família viva ou na família an- À iniciação comporta uma morte e uma ressurreição ri-
cestral (e para sair de uma ou outra) há um limiar comum, tuais. Ássim, entre vários povos primitivos, o neófito é sim-
a Terra natal... Quando se coloca sobre a Terra o recém- bolicamente '“morto””, enterrado numa fossa e coberto com
nascido ou o moribundo, é a ela que cabe dizer se o nasci- folhagem. Quando se levanta do túmulo, é considerado um
mento ou a morte são válidos, se é necessário tomá-los como homem novo, pois foi parido pela segunda vez, e diretamente
pela
fatos consumados e regulares... O rito da deposição na Ter- Mãe cósmica.
ra implica a idéia de uma identidade substancial entre a Ra-
çae o Solo, Essa idéia traduz-se, com efeito, pelo sentimento
de autoctonia — o mais vivo que se pode captar nos primór- 4 mulher, a terra e a fecunt “ude
dios da história chinesa. A idéia de uma aliança estreita en-
tre uma região e seus habitantes é uma crença tão profunda A mulher relaciona-se, pois, misticamente com a Ter-
que permaneceu no coração das instituições religiosas e do ra; o dar à luz é uma variante. éem escala humana da fertili-
direito público.?* dade telúrica. Todas
as ex adas
Da mesma forma que a criança é colocada no chão logo com a fecundidade e o nascimento têm uma estrutura cósmica.
após o parto, a fim de que sua verdadeira Mãe a legitime e A sacralidade da mulhlher depende-da santidade da Terra. À
24. Marcel Granet, ““Le dépot de ['enfant surle so”, 25. A, Dieterich, Mutter Erde, pp. 28 ss.; B. Nyberg, Kind und Erde,
Revue Archéologi-
- 1929; Études sociologiques sur la Chine, Paris, p. 150.
1953, pp. 159-202.
118 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 11%
fecundidade feminina tem um modelo cósmico: o da Terra Ma- dos homens: E nto h
ter, da Mãe universal. rado uma imitação da hicrogamia cósmica. “Eu sou o Céu”,
Em algumas religiões acredita-se que a Terra-Mãe é ca- proclama o marido na Brhadâranyaka Upanishad (VI, 4,:20M
paz de conceber sozinha, o de um
sem auxílio companheiro. “tu és a Terra!”, Já no Atharva Veda (XIV, 2, 71) o marido
Encontram-se ainda os traços dessas idéias arcaicas nos mi- e a mulher são assimilados ao Céu e à Terra. Dido celebra
tos de partenogênese das deusas mediterrânicas. Segundo He- seu casamento com Enéias no meio de uma violenta tempes-
síodo, Gea (a Terra) pariu Uranos, “um ser igual a ela, ca- tade (Eneida, IV, 165 ss.); a união deles comcide com a dos
paz de cobri-la inteiramente” (Teogonia, 126 ss.). Outras deu- elementos; o Céu abraça sua esposa distribuindo a chuva fer-
sas gregas também geraram sem a ajuda dos deuses. E uma tilizante. Na Grécia, os ritos matrimoniais imitavam o exem-
expressão mítica da auto-suficiência e da fecundidade da plo de Zeus unindo-se secretamente com Hera (Pausânias,
IH, 36, 2). Como era de esperar, o mito divino é o modelo
ças relativas
à fecundidade espontânea da mulher e a seus po- exemplar da união humana. Mas há um outro-aspecto im-
deres mágico-relig
ocultos, que exercem
iosos.
uma influência portante:-a-estrutura cósmica-do-ritual-conjugal.e
do comporia-
decisiva na vida-das plantas, O fenômeno social e cultural mento
ae sexual et
dos seres
rena humanos..Para o homem não-religioso
conhecido como matriarcado está ligado à
a
descoberta da
eim SA
ágri- das sociedades modernas, essa. dimensão
é difícil apreender
cultura pela mulher. Foi a mulhera rimeira a cultivar as e ao mesmo
cósmica tempo sagrada da união conjugal. Mas,
plantas alimentares.Foi ela que, naturalmente, se tornou pro- comojá dissemos várias vezes, não se pode esquecer que, para
prietária do solo c.das colheitas”? prestígio
O mágico- o homem religioso das sociedades arcaicas, o Mundo se apre-
religiosoe, consequentemente, o predomínio social da u- senta carregado de mensagens. Por vezes, essas mensagens
lher têm um modelo cósmico: a figura da Terra-Mãe. são cifradas, mas os mitos estão lá para ajudar o homem a
Jim outras religiões, a criação cósmica, ou pelo menos decifrá-las. Conforme teremos ocasião de ver, a experiência
sua realização,é o resultado de uma hierogamia entre o Deus- humana, na sua totalidade, é suscetível de ser igualada à-Ni-.
Céu e a Terra-Mãe. Este mito cosmogônico, bastante difun- da cósmica e, consequentemente, de. ser.santificada, pois.o.
dido, é encontrado sobretudo na Oceania — da Indonésia à Cosmos é a suprema criação dos deuses.
Micronésia —, mas também na Ásia, na África e nas duas A orgia ritual em favor das colheitas também tem um
Américas?” Ora, como vimos, o mito cosmogônico é. o mito modelo divino: a hierogamia do deus fecundador com a Terra-
por excelência:
exemplar serve de modelo aos comportamentos Mãe?b, A fertilidade agrária é estimulada por um frenesi ge-
nésico ilimitado, De certo pontode vista, a orgia correspon-
de à indiferenciação de antes da Criação. É por isso que cer-
remmsreni aci tm ir macro verem ta mam DE PE er
26. Sobre o matriarcado, ef. J. J. Bachofen, Das Mutterrecht, Basel, E) orgiásticos:
= macas =
1861; 32 ed., 1948; Wilhel Schmidt, Das Mutterrecht, Viena, 1955.
a “confusão
[EPA print ia " social, a libertinageme as-saturnais-simbali-
27. Cf, Die Religionen und das Heilige, pp. 273 ss. E preciso esclarecer,
porém, que, embora muito espalhado, o mito da hierogamia cósmica não
é universal e não se comprova sua existência nas culturas mais arcaicas (aus-
ç nos. fueguinos, populações árticas etc.) 28. Cf. Die Religionen und das Heilige. pp. 411 ss.
O SAGRADO E O PROFANO 4 SACRALIDADE DA NATUREZA E 4 RELIGIÃO CÓSMICA | 121
zam a regressão ao estado amorfo anterior
à Criação do Mun- modos de ser para se compreender c mistério da Vida. Ora,
do, Quando se trata de uma “criação”” ao nível da vida ve- uma coisa parece evidente: o Cosmos é um organismo vivo,
getal, a encenação cosmológico-ritual se repete, pois a nova que se renova periodicamente, O mistério da inesgotável apa-
colheita equivale a uma nova “Criação”. A idéia de renova- rição da Vida corresponde à renovação rítmica do Cosmos,
Z Sa
ção — presente nos rituais do Ano Novo, em que se tratava E por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a forma
ao mesmo tempo de renovação do Tempo e da regeneração de uma árvore gigante: o modo de ser do Cosmos, e sobretu-
do Mundo — é encontrada novamente nas encenações or-
do sua capacidade infinita
de se regenerar,é expresso simbo-
giásticas agrárias. Aqui também a orgia é uma regressão à licamente pela vida da árvore.
Noite cósmica, ao pré-formal, às “Águas”, a fim de assegu-
E preciso notar, porém, que não sc trata de uma sim-
rar a regeneração total da Vida e, por consequência, a ferti- ples transposição de imagens da escala microcósmica para a
lidade da Terra e a opulência das colheitas.
escala macrocósmica. Enquanto “objeto natural””, a árvore
não podia sugerir a totalidade da Vida cósmica: ao nível da ex-
periência profana, seu modo de ser não abrange o modo de
Simbolismo da árvore cósmica e cultos da vegetação
ser do Cosmos em toda a sua complexidade. Ao nível da ex-
periência profana, a vida vegetal revela apenas uma sequên-
Como acabamos de ver, os mitos e os ritos PETI (ee
cia de “nascimentos” e “mortes”. É a visão religiosa da Vi-
exprimem sobretudo as idéias de fecundidade e riqueza.
da que permite “decifrar'”” outros significados no ritmo da
Trata-se de idéias religiosas, pois os múltiplos aspectos da fer-
vegetação, principalmente as idéias de regeneração, de eter-
lidade universal revelam, em suma, o mistério da geração,
da criação da Vida, Ora, a aparição da Vida é, para o ho-
realidade absoluta é simbolicamente expressa, entre tantas ou-
mem religioso, o mistério central do Mundo. À Vida “vem”
tras imagens, pela figura de um “fruto miraculoso”” que con-
de qualquer ão é este mundo e, fi e, retira-
fere, ao mesmo tempo, imortalidade, onisciência c onipotên-
se daqui de baixo e é “vai-se” para o além,
prolongando-se ,
cia e que é capaz de transformar os homens em deuses.
de maneira misteriosa num lugar desconhecido, inacessível
A imagem da árvorg não foi-escolhida unicamente para
à maior parte dos vivos. A vida humana não é sentida como
simboli ar.o Cosmos, mas também para exprimir a Vida, a
uma breve aparição no Tempo, entre dois Nadas; é precedi-
da de uma e prolonga-se numa
preexistência pós-existência.
juventude, a imortalidade, a sapiência. Além das Árvores cós-
Muito pouco se conhece acerca desses dois estágios extrater- imicas, como Yggdrasil, da mitologia germânica, a história das
restres da Vida humana, mas sabe-se pelo menos que eles exis- religiões conhece Árvores da Vida (Mesopotâmia), da Imor-
tem. Para o homem religioso, portanto, a morte não põe um talidade (Ásia, Antigo Testamento), da Sabedoria (Antigo Tes-
termo definitivo à vida: a morte não é mais do que uma ou- tamento), da Juventude (Mesopotâmia, Índia, Irã) etc.
tra modalidade da existência humana,
Tudo isto, aliás, está “cifrado”” nos ritmos cósmicos: bas-
29. Cf. Die Religionen und das Heilige, pp. 310 ss; G, Widengren, The
ta que se decifre o que o Cosmos “diz” por seus múltiplos King and the Tree of Life in Ancient Near Eastern Retigion, Uppsala, 1951.
Ra dióiia á
122 O SAGRADO E O PROFANO “A SACRALIDADE DA NATUREZA E À RELIGIÃO CÓSMICA 123
Em outras palavras, a árvor I imi fo) Aquilo que s&chama de cultos de vegetação não depen-
o homem religioso considera real e sagrado por excelência, tudoo que de de uma experiência profana, “naturista””, em relação, por
a sabe ic os deuses pussbaa a sua própria natureza é que exemplo, com a primavera e a renovação da vegetação. É
só raramente é acessível a rivilegiados, os heróis pelo contrário, a experiência religiosa da renovação (recome-
c semideuses. É por isso que os mitos da busca da imortalidade so, recriação) do Mundo que precede e justifica a valoriza-
ou da juventude ostentam uma árvore de frutos de ouro ou de ção da primavera como ressurreição da Natureza. É o Mis-
folhagem miraculosa, que se encontra “num país longínquo” tério da regeneração periódica do Cosmos que fundou.a.im-
(na realidade, no outro mundo) é que é guardada por monstros portância religiosa da primavera. Aliás, nos cultos da vege-
(grifos, dragões, serpentes). Aquele que deseja colher os frutos tação, nem sempre é o fenômeno natural da primavera e da
deve lutar com o monstro guardião e matá-lo, ou seja, submeter- aparição da vegetação que importa, mas o sinal prenuncia-
se a uma prova iniciática de tipo heróico: o vencedor obtém “pela dor do mistério cósmico. Grupos de jovens visitam cerimo- .
violência”” a condição sobre-humana, quase divina, da eterna nialmente as casas da aldeia e mostram um ramo verde, um
Juventude, da invencibilidade e da onipotência. ramalhete de flores, uma ave!, É o sinal da ressurreição imi-
É nesses símbolos de uma Árvore cósmica, ou da Imortali- nente da vida vegetal, o testemunho de que o mistério se reali-
dade ou da Ciência, que se exprimem com o máximode fórçae,e zou, que a primavera não tardará a vir. À maior parte desses
clareza as valências religiosas da vegetação. Em out rituais tem lugar antes do “fenômeno natural” da primavera.
a árvore sagrada ouas
que não é evidente nas diversas espécies vegetais concretas. Con-
forme já salientamos, é a sacralidade que desvenda as estruturas Dessacralização da natureza
mais Erafimaa do Mundo. O Cosmos só se apresenta como uma
Já dissemos que, para o homem religioso, a Natureza
nunca é exclusivamente “natural”. A experiência de uma Na-
tureza
tureza rradicalmente dessacrali
dessacralizada
d é uma
u descoberta rece n-à
te, acessível apenas a uma minoria das sociedades modernas,
dade. Poder-se-i ia dizer que todas as árvores e plantas considera-
das sagradas (por exemplo, o arbusto ashvaiha, na Índia) devem sobretudo aos homens de ciência. Para o resto das pessoas,
sua condição privilegiada ao fato de encarnarem o arquétipo, a a Natureza apresenta ainda um ““encanto”, um “mistério”,
imagem exemplar da vegetação. Por outro lado, é o valor religioso uma “majestade””, onde se pode decifrar os traços dos anti-
que faz com que uma planta seja cuidada e cultivada. Segundo gos valores religiosos. Não há homem moderno, pa
o grau de sua irreligiosidade que não. seja sensível aos *
alguns autores, todas as plantas cultivadas atualmente foram
cantos” da Natureza. Não se trata unicamente dos RR
consideradas na origem plantas sagradas” e um “
estéticos, desportivos ou higiênicos concedidosà Natureza,
30, A. G. Handricourt e L, Hédin, 1ºHommeet les plontes cultivées, Paris, 1946. Bule E
p. 90. s 31, Cf. Die Religionen und das Heilige, pp. 364 ss.
124 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E À RELIGIÃO CÓSMICA 125
mas também de um sentimento confuso e difícil de definir, Aventurados, espécie de Paraíso onde viviam os imortais taoís-
no qual ainda se reconhece a recordação de uma experiência
tas. Trata-se, pois, de um mundo à parte, um mundo em: mi-
religiosa degradada.
niatura, que as pessoas instalavam em suas casas, em seus
Será interessante mostrar, com a ajuda de um exemplo
lares, a fim de participar das forças místicas ali concentra-
preciso, as modificações e a deterioração dos valores religio-
das, de restabelecer, pela meditação, a harmonia com o Mundo. A
sos da Natureza. Procuramos este exemplo na China, e isso
Montanha era ornada de grutas, e o folclore das grutas de-
por duas razões: 1) na China, como no Ocidente, a dessacra-
sempenhou um papel importante na construção dos jardins
lização da Natureza é obra de uma minoria, principalmente
em miniatura. As grutas são retiros secretos, morada dos
de letrados; (2) contudo, na China, como em todo o Extre-
Imortais taoístas e local das iniciações. Representam um mun-
mo Oriente, esse processo de dessacralização nunca foi total-
do paradisíaco, e por esta razão sua entrada é difícil (simbo-
mente levado a cabo, A “contemplação estética” da Nature-
lismo da “porta estreita””, do qual voltaremos a falar no ca-
za conserva ainda, mesmo para os letrados mais sofisticados,
pítulo seguinte).
um prestígio religioso.
Mas todo este complexo — água, árvores, montanha,
Sabe-se que, a partir do século XVII, a decoração dos gruta —, que desempenhara um papel tão grande no taoís-
jardins com lagos tornou-se moda entre os letrados chine-
mo, não era mais do que o desenvolvimento de uma idéia
sesº2, Eram lagos no meio dos quais se erguiam alguns ro-
religiosa ainda mais antiga: a do local perfeito, quer dizer, com-
chedos com árvores anãs, flores e, muitas vezes, modelos em
miniatura de casas, pagodes, pontes e figuras humanas;
bleto — compreendendo um monte e um lago — e retirado.
chamavam-lhes “Montanhas em miniatura”, em anamita, Local perfeito, pois ao mesmo tempo mundo em miniatura
ou “Montanha artificial”? em sino-anamita. Notemos que até c Paraíso, fonte de beatitude e lugar de Imortalidade. Ora,
os nomes traem um significado cosmológico: a Montanha, a paisagem perfeita — monte e lago — era o “lugar santo”
conforme vimos, é um símbolo do Universo. imemorial, onde na China, todas as primaveras, rapazes e
Mas esses jardins em miniatura, que se tornaram objeto moças se encontravam para entoarem cantos rituais alterna-
de predileção para os estetas, tinham uma longa história, até dos e para jogos amorosos. Adivinham-se facilmente as valo-
mesmo uma pré-história, onde se revela um profundo senti- rizações sucessivas desse “lugar santo” primordial. Nos tem-
mento religioso do mundo. Os antecedentes eram os lagos cuja pos mais antigos, era um espaço privilegiado, mundo fecha-
água perfumada representava o Mar e cuja cobertura sobre- do, santificado, onde rapazes e moças se reuniam periodica-
levada figurava a Montanha. 4 estrutura cósmica desses objetos mente a fim de participar dos mistérios da Vida e da fecun-
é evidente. O elemento místico também estava presente, pois didade cósmica, Os taoístas retomaram o esquema cosmoló-
a Montanha no meio do Mar simbolizava as Ilhas dos Bem- gico arcaico — monte e lago — ce elaboraram um complexo
mais rico (montanha, lago, gruta, árvores), reduzido a uma
escala menor: um universo paradisíaco em miniatura, carre-
32. Para tudo o que segue, cf. Rolf Stein, “Jardins en miniature d' Extrême gado de forças místicas, pois retirado do mundo profano, e
Orvemi”?, Bulletin de DP Ecole Française dº Extrême Orient, 42, 1943, pp. 2688. e passim
junto do qual os taoístas se recolhiam e meditavam.
126 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E À RELIGIÃO CÓSMICA 127
A santidade do mundo fechado revela-se ainda nos la- revelar aos homens: o poder, a firmeza, a permanência. À hie-
gos com água perfumada e cobertura que simbolizam o Mar rofania da pedra é uma ontofania por excelência: antes de
e as Nhas dos Bem-Aventurados, Este complexo servia tam- tudo, a pedra é, mantém-se sempre a mesma, não muda —
bém para a meditação, tal qual, no começo, os jardins em e impressiona O homem pelo que tem de irredutível e absoluto,
miniatura, antes que a moda dos letrados se apoderasse de- desvendando-lhe, por analogia, a irredutibilidade e o abso-
les, no século XVII, para transformá-los em ““objetos de luto do Ser. Captado graças a uma experiência religiosa, o
ante”. modo específico de existência da pedra revela ao homem o
É preciso enfatizar, porém, que jamais assistimos a uma que é uma existência absoluta, para além do Tempo, invulne-
total dessacralização
do mundo, pois, no Extremo Oriente, rável ao devir?,
oque se chama “emoção estética” conserva ainda, mesmo Do mesmo modo, uma análise rápida das múltiplas e va-
riadas valorizações religiosas da Lua apresenta-nos tudo o que
dos jardins em miniatura mostra-nos em que sentido e por os homens decifraram nos ritmos lunares. Graças às fases da

que meios se opera a dessacralização do mundo. Basta que Lua— quer dizer, ao seu nascimento”, “morte”? e is “res-
imaginemos o que uma emoção estética dessa ordem pode
tornar-se numa sociedade moderna, para compreendermos prio modo de ser no Cosmos e de suas possibilidades de so-
como a experiência da santidade cósmica pode rarefazer-se brevivência ou renascimento. Graças ao simbolismo lunar,
e transformar-se até se tornar uma emoção unicamente hu- retos conseguiu
homem religioso
o2pomem conseci aproximar
east amplos
Pode jmalteosde
conjuntos
mana: por exemplo, a da arte pela arte. fatos, sem relação aparente entre si, e finalmente integrá-los
E ee x s Tl . ms
num único “sistema””, E mesmo provável que a valorização
dos ritmos lunares
religiosa tenha possibilitado a realização
Outras hierofanias cósmicas das primeiras grandes sínteses.antropocósmicas-dos-primiti-
vos. Graças ao simbolismo lun, ê
Visto que era preciso que nos limitássemos, falamos aqui tabelecer
abel correspondências entre fatosheterogêneos.
tão a co-
de apenas alguns aspectos da sacralidade da Natureza, e ti- mo o nascimento,
nao a morte, a ressurreição;
devir,
oEA as Águas
vemos de omitir um número considerável de hierofanias cós- as plantas, a mulher, a fecundidade, a imortalidade, as tre-
micas. Assim, por exemplo, não pudemos falar dos símbolos — vas cósmicas, a vida pré-natal e a existência além-túmulo, se-
e cultos solares ou lunares, nem do significado religioso das guida
idadede um renascimento de tipo lunar (“luz saindo das tre-
pedras e do papel religioso dos animais etc. Cada um desses
grupos de hicrofanias cósmicas revela uma estrutura parti-
cular da sacralidade da Natureza; ou, mais exatamente, uma idéias de ciclo, dualismo, polaridade, oposição, conflito, mas
modalidade do sagrado expressa por meio de um modo espe-
cífico de existência no Cosmos. Basta, por exemplo, analisar
os diversos valores religiosos atribuídos às pedras, para que 33. Sobre a sacralidade das pedras, cf. Die Religionen und das Heilige,
pp. 247-270.
se compreenda o que as pedras, enquanto hierofanias, podem
|
|

128 O SAGRADO E O PROFANO A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA 129


bém de reconciliaçdos ão contrários, d à Vida cósmica; da perspectiva da religião solar, as trevas
sitorum, foram descobertas.e precisadas graças ao simbolismo opõem-se à Vida, às formas e à inteligência . As epifanias lu-
lunar. Pode-se falar de uma metafísica da Lua, no sentido minosas dos deuses solares tornam-se, em certasDA culturas, O
de um sistema coerente de “verdades” relativas ao modo de sinal da inteligênc A assimilação
ia.Sa! é inteligência chegou
ser específico dos vivos, a tudo o que, no Cosmos, participa a tal ponto que as teologias solares e sincretistas do fim da.
da Vida, quer dizer, do devir, do crescimento e do decresci- Antiguidade se transformaram em filosofias nacionalistas: o
mento, da “morte” e da “ressurreição”. Pois não se pode Sol é proclamado a inteligência do Mundo, e Macróbio iden-
esquecer que a Lua revelaao homem religioso.não-somente tifica no Sol todos os deuses do mundo greco-oriental, de Apo-
a ligação indissolúvel entre a Morte.e a Vida, mas também, lo e Júpiter até Osíris, Hórus e Adônis (Saturnais, 1, caps.
e sobretudo, que.a Morte não é defini que é sempre
tiva, seguida de, 17-23). No tratado Sabre o Sol Rei, do imperador Juliano, as-
um novo nascimento?*,, sim como no Fino ao Sol, de Proclo,as hierofanias solares dão
A Lua valoriza religiosamente o devir cósmico e recon- lugar a idéias, e a religiosidade desaparece quase completa-
cilia o homem com a Morte.O Sol, ao contrário, revela um j ngo processo de racionalização”.
não participa
arucipa do devir; embora
do devir; embora em Essa dessacralização das hierofanias solares inscreve-se
em
constante movimento, o Sol permanece imutável, sua forma entre tantos outros processos similares, graças aos quais o Cos-
é sempre a mesma. Ás hierofanias solares traduzem os valo- mos inteiro acaba por ser esvaziado de seus conteúdos reli-
E RL E EIS
res religiosos da autonomia e da força, da erp çm m
soberania, da inte- giosos. Mas, conformejá dissemos, a secularização d
RN a à BE | en et
ligência. Eis por isso que, em algumas culturas,
a assistimos
im a va da Natureza é coisa adquirida apena. á
um processo de solarização dos Seres supremos. Como vimos, limitado de modernos: aqueles desprovidos de qualquer sen-
os deuses celestes tendem a desaparecer da atualidade reli- timento religioso. Apesar das ofundas e radicais
giosa, mas em certos casos sua estrutura e seu prestígio so- que o cristianismo trouxe na valorização religiosa do Cosmos
brevivem ainda nos deuses solares — sobretudo nas civiliza- e da Vida, ele não as rejeitou. O escritor cristão Léon Bloy
ções altamente elaboradas, que desempenharam um papel his- comprova que a vida cósmica, em sua totalidade, ainda pode
tórico importante (Egito, Oriente helenístico, México). ser sentida como cifra da divindade, ao escrever: “Quer a
Um grande número de mitologias heróicas é de estrutu- vida esteja nos homens, nos animais ou nas plantas, é sem-
ra solar. O herói é assimilado ao Sol; como este, o herói luta pre a Vida, e quando vem o minuto, o ponto imperceptível
contra as trevas, desce ao reino da Morte e sai vitorioso. Aqui, gue chamamos morte, é sempre Jesus que se retira, quer se
as trevas já não são, como nas mitologias lunares, um dos trate de uma árvore ou de um ser humano, ''36
modos de ser da divindade, simbolizando, ao contrário, tu-
do o que Deus não é, portanto o Adversário por ed
As trevas já não são valorizadas como uma fase necessária
35. Sobre tudo isto, ver Die Religionen und das Heilige, pp. 147-179,
dd, Ver Die Religionen und das Heilige, pp. 180-216. 36. Le Mendiant ingrat, II, p. 196.
caça -— mm ma - comme —
CAPÍTULO IV
EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA
SANTIFICADA
ce
Existência “aberta”” ao mundo
O objetivo
preender, e tornar compreensível aos outros, o comportamen-
to do homo religtosus e seu universo mental, A empresa nem
sempre é fácil. Para o mundo moderno, a religião como for-
ma de vida e concepção do mundo confunde-se com o cris-
tianismo. No melh um intelectu
certo esforço, tem algumas probabilidades-de.se familiarizar
Atereligiosa da antiguidade clássica e mesmo com
Esta a Rbvisão
com
algumas das grandes religiões orientais, como, por exemplo,
o hinduísmosn ouaa o confucionismo.
E Ja Mas esse esforço de alar-
gar seucs, horizonte religioso, por mais louvável que seja, não
7
mei cer com a Grécia,
o leva muito longe; mecenas a Índia, a China, o.inte-
leciual ocidental não ultrapassa a esfera das religiões comple-
-
xas e elaboradas, do que dispõem de uma vasta literatura sacra.
ita asa suite eai
Conhecér uma parte dessa literatura sacra, familiarizar-se com
EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 153
158 O SAGRADO E O PROFANO
algumas mitologias e teologias orientais ou do mundo clássi- Entretanto, para o historiador das-religiões desejoso de
co, não é ainda suficiente para conseguir compreender o uni- compreender e fazer compreender a totalidade das situações.
verso mental do homo religiosus. Essas mitologias e teologias existenciais do homo rebigiosus, o problema é mais complexo.
encontram-se já excessivamente marcadas pelo longo traba- Para
lá das frontei
das culturas-agrícolas
ras estende-se todo
«
lho dos letrados; embora, propriamente falando, não consti-
tuam “religiões do Livro” (como é o caso do judaísmo, do zo-
roastrismo, do cristianismo, do islamismo), possuem livros sa-
grados (a Índia, a China) ou, pelo menos, sofreram a influên- verso mental do homo religiosus É preciso ter em conta, sobre-
cia de autores de prestígio (por exemplo, na Grécia, Homero). tudo, os homens dessas sociedades primitivas. Ora, o com-
portamento religioso deles parece-nos, hoje, excêntrico, se não
Para se obter uma perspectiva religiosa mais ampla, é mais
útil familiarizar-se com o folclore dos povos francamente aberrante, e, em todo caso, muito difícil de com-
ovos europeus;
cu em suas
amina masa
crenças, costumes e comportamento perante a vida e a morte, preender. Mas o único meio de compreender um-universo.
sda sn a GR ETDOem mental alheio é situar-se dentro dele, no seu próprio centro, para
ainda P podemos reconhecer numerosa
ai s Ad“situaçõeslóreligiosas” nene gemea ac e mm.
;»» arcaicas. Estudando-se as sociedades rurais européias, pode- co-
alcançar, a partir daí, todos os valores que-esse universo
se compreender o mundo relig ioso dos agricultores neolíticos.
O primeiro
fato com que nos deparamos ao adotar à pers-
Em muitos casos, os costumes e as crenças dos camponeses eu- ad
ropeus representam um estado de cultura rem
mais arcaico do que pectiva do homem religioso das sociedades arcaicas é que o.
= e
aquele testemunhado pela mitologiada Grécia clássica!, E ver- Mundo existe porque foi criado pelos deuses, e que a própria exis-
tência
tencia do
do Mundo
Mundo “quer
“ dizer” alguma coisa, que o Mundo
dade que a maior parte das populações rurais-da Europa foi
não é mudo nem opaco, que não é uma coisa inerte, sem ob-.
cristianizada há mais de um milênio. Mas elas conseguiram
jetivo e sem significado. Para o homem religioso, o Cosmos.
integrar ao seu cristianismo uma grande parte de sua herança
“vive” >» e “fala”. A própria vida do Cosmos é uma prova de
religiosa pré-cristã, de uma antigúidade imemorial. Seria ine-
sua santidade, pois ele foi criado pelos deuses e os deuses
xato supor que, por esta razão, os camponeses da Europa não
mostram-se aos homens através da vida cósmica,
são cristãos. É preciso, porém, reconhecer que a religiosidade
deles não se reduz às formas históricas do cristianismo, que con- E por essa razão que, a partir de um certo estágio de
mm
serva ainda uma estrutura cósmica quase inteiramente perdi- cultura, o homem rindose
ne aaset oe concebe
reinahm A como
indo
ume microcosmos. Ele faz
rsenararenerermen
dana experiência dos cristãos das cidades. Pode-se falar de um parte da Criação dos deuses, ou seja, em outras palavras, ele
reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cos-
cristianismo primordial, a-histórico; ao se cristianizarem, os
mos. Segue-se
Str:daí que sua vida é assimilada
agricultores europeus integrarama sua nova fé a religião cós- E araessa tia à ds
mica que conservava como obra divina, esta se torna a imagem exemplar da exis-
desde
m a pré-história,
tência humana. Vimos, por exemplo, que o casamento é va-
lorizado como uma hierogamia entre o Céu e a Terra. Entre
1. O que resulta, por exemplo, das investigações de Leopold Schmidt, os agricultores, porém, a correspondência Terra-Mulher é
Gestaltheiligkeit im bãuerlichen Arbeitsmythos, Viena, 1952, ainda mais complexa. A mulher é assimilada à gleba, as se-
sd
134 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 135
mentes ao semen virite e o trabalho agrícola à união conjugal. rada na Natureza. A «a “abertura””p para o Mundo permite
: ao
“Esta mulher veio como um terreno vivo: semeai nela, ho- homem religioso conhecer-se conhecendo o Mundo — e esse,
mens, a semente!””, está escrito no Atharva Veda (XIV, 2, 14). conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento
“Vossas mulheres são como campos para vós” (Corão, II, religioso, refere-se ao Ser.
225). Uma rainha estéril lamenta-se: “Sou como um campo
onde nada cresce!” Num hino do século XII, a Virgem Ma-
ria é glorificada como terra non arabilis quas fructum parturit. Santificação da vida
Tentemos compreender a situação existencial daquele pa-
ra quem todas essas correspondências são experiências vivi: O exemplo que acabamos de citar ajuda-nos a compreen-
das e não simplesmente idéias. E evidente que sua vida possui der a perspectiva do homem das sociedades arcaicas: para ele,
uma dimensão a mais: não é simplesmente humana, é ao mes- a vida como um todo é suscetível de ser santificada. São múl-
mo tempo ““cósmica””, visto que tem uma estrutura trans- tiplos os meios por que se obtém a santificação, mas o resul-
humana. Poder-se-ia chamá-la uma “existência aberta”, por-
tado é quase sempre o mesmo: a vida é vivida num plano
que não é limitada estritamente ao modo de ser do homem. duplo; desenrola-se como existência humana e, ao mesmo
(Sabemos, aliás, que o primitivo situa seu próprio modelo a tempo, participa de uma vida trans-humana, a do Cosmos
atingir no plano trans-humano revelado pelos mitos.) À exis- ou dos deuses.
Z
É provável que, num
E SciEe
passado muito longín-
. .. DO
tência do homo religiosus, sobretudo do primitivo, é “aberta”
. ..
quo, todos os órgãos e experiências fisiológicas do homem,
para o mundo ; viven do,
o homem religioso sozi-
ia está 000.
nunca
bem como todos os seus gestos, tivessem um significado reli-.
gioso. Isto porque todos os comportamentos humanos foram.
dizer, como Hegel, que o homem primitivo está “enterrado fundados pelos deuses ou pelos heróis civilizadores in illo tem-
na Natureza”, que ele não se reencontrou ainda como dis- pore: estes fundaram não somente os diversos trabalhose as
tinto da Natureza, como ele mesmo. O hindu que, abraçan- diversas
ivi formas depiciihodismbisleiadisalsha
sese alimentar,
ali a REfazer
FACE amor,
A LO exprimir-se
lt- etc.,
do sua esposa, proclama que ela é a Terra c ele é o Céu, está
ao mesmo tempo plenamente consciente da humanidade de- dos australianos karadjeri, os dois Heróis civilizadores ado-
le e de sua esposa. O agricultor austro-asiático que designa
taram uma posição especial para urinar, e os karadjeri ainda
com o mesmo vocábulo, lak, o falo e a enxada e que, como
hoje imitam esse gesto exemplar?, É inútil lembrar que não
tantos outros cultivadores, assimila os grãos ao semen vírile,
há nenhuma correspondência semelhante ao nível da expe-
sabe muito bem que a enxada é um instrumento que ele fa-
riência profana da Vida, Para o homem a-religioso, todas as
bricou para si e que, ao trabalhar o campo, efetua um traba-
experiências vitais — tanto a sexualidade como a alimenta-
lho agrícola que exige um certo número de conhecimentos
ção, o trabalho como o jogo — foram dessacralizadas. Isto
técnicos. Em outras palavras, o simbolismo cósmico junta um
ou uma ação, sem com
novo valor a um objeto isso prejudi-
2. Cf. Ralph Piddington, “Karadjeri imitation””, Oceania, HI, 1932-
ta” para o Mundo não é uma existência inconsciente, enter- 1933, pp. 46-87.
| TA dis ii
138 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 139
ritual e como, passada a época ritualista, o mesmo ato pode os níveis arcaicos de cultura. Acrescentemos que a valoriza-
ser valorizado como uma “técnica mística » . À exclamação ção da sexualidade como meio de participardc o sagrado (ou,
do esposo na Brhadiranyaka Upanishad, “Eu sou o Céu, tu és no caso da Índia, de obter o estado supra-humano da liber-
a Terra!””, segue-se à transfiguração prévia de sua esposa no dade absoluta) não é isenta de perigos. Na própria Índia, o
Eneias an
altar do sacrifício védico (VI, 4, 3), No tantrismo, porém, tantrismo deu ocasião a cerimônias aberrantes € infames.
a mulher acaba por encarnar Prakriti (a Natureza) e a Deusa Aliás, no mundo primitivo, a sexualidade ritual foi acompa-

cp
cósmica, Shakti — ao passo que o macho se identifica com nhada de inúmeras formas orgiásticas. Contudo, o exemplo
Shiva, o Espírito puro, imóvel e sereno. A união sexual (mai- conserva seu valor sugestivo, pois nos revela uma experiên-
thuna) É antes de tudo uma integração desses dois princípios, cia que não é mais acessível numa sociedade dessacralizada:
a Natureza-Energia cósmica e o Espírito. Conforme exprime a Experiência de uma vida sexual santificada.
um texto tântrico: “A verdadeira união sexual é à união da
Shakti suprema com o Espírito (áiman); as outras só repre-
sentam relações carnais com as mulheres” (Kúlârmava Tantra, Curpo-Casa-Cosmos
VI, 1141-112). Já se não trata de um ato fisiológico, mas de
um rito místico; o homem e a mulherjá não são seres huma- Vimos que o homem religioso vive num Cosmos “aber-
nos, mas seres “desligados” e livres como os deuses, Os tex- to” e que está “aber ao Mundo.
to” Isto quer. dizer: (a) que
tos tântricos sublinham infatigavelmente que se trata de uma está em comunicação com os deuses; (b) que participa da san-
transfiguração da experiência carnal. “Pelos mesmos atos que
fazem arder no Inferno certos homens durante milhões de num mundo “aberto”, tivemos ocasião de constatar ao ana-
anos, o iogue obtém sua salvação eterna?” A Brhadáranyaka lisar a estrutura do espaço sagrado: o homem deseja situar-
Upanishad (V, 14, 8) já afirmava: “Aquele que sabe isso, seja se num « “*centro””, lá onde existe a possibilidade de comuni-
qual for o pecado que pareça cometer, é puro, limpo, sem cação com os deuses. Sua habitação é um microcosmos, e tam-
mdedero
velhice, imortal.” Em outras palavras, “aquele que sabe” bém seu corpo. À correspondência casa-corpo-cosmos impõe-
dispõe de uma experiência totalmente diferente da experiên- se desde muito cedo. Insistamos um pouco neste exemplo,
cia do profano. Quer dizer que toda experiência humana é pois ele nos mostra em que sentido os valores da religiosida-
suscetível de ser transfigurada, vivida num outro plano, o de arcaica são suscetíveis de ser reinterpretados.pelas-religiões,
trans-humano. até mesmo pelas filosofias ulteriores.
O exemplo indiano mostra-nos a que refinamento “'mís- O pensamento religioso indiano utilizou abundantemente
tico”” pode chegar a sacramentalização dos órgãos e da vida a correspondência tradicional casa-cosmos-corpo humano, é
fisiológica, sacramentalização amplamente atestada em todos compreende- se por quê: como o Cosmo, o corpo
é, em ú
ma instância, uma “situação”, um sistema de condiciona-
mentos que se assume. À coluna vertebral é assimilada ao
5. Ver M. Eliade, Le Yoga. Immortalité et biberté, Paris, 1954, pp. 264,
595.
Pilar cósmico (stambha) ou à montanha Meru, os sopros são
identificados aos ventos, o umbigo ou o coração ao “Centro
Ho O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 141
do Mundo” etc. Mas a correspondência se faz também entre Esse costume indiano tem sua réplica nas crenças disse-
o corpo humano e o ritual em seu conjunto: o lugar do sacri- minadas pela Europa e Ásia, de que a alma do morto sai pela
fício, os utensílios e os gestos sacrificiais são assimilados aos chaminé (orifício de fumaça) ou pelo telhado, principalmen-
diversos órgãos e funções fisiológicas. O corpo humano, assi- te pela parte do teto que se encontra acima do “ângulo sa-
milado ritualmente ao Cosmos ou ao altar védico (que é uma grado"?. Em caso de agonia prolongada, retira-se uma ou
imago mundi), é também assimilado a uma casa,
Um texto de várias pranchas do teto, ou chega-se mesmo a despedaçá-lo.
hathayoga fala do corpo como de ““uma casa com uma coluna O significado deste costume é evidente: a alma se desliga mais
e nove portas” (Goraksha Shataka, 14). facilmente do corpo se a outra imagem do corpo-Cosmos, que é a casa,
Em resumo, ao se instalar conscientemente na situação for fraturada em sua parte supertor. É claro que todas essas expe-
exemplar a que está de certo modo predestinado, o homem riências são inacessíveis ao homem a-religioso, não somente
se “cosmiza””; em outras palavras, ele reproduz,
em escala porque, para este, a morte foi dessacralizada, mas também
humana, o sistema dos condicionamentos recíprocos e dos rit- porque já não vive num Cosmos propriamente dito e já não
mos que caracteriza e constitui um “mundo”, que define, se dá conta de que ter um “'corpo” e instalar-se numa casa
em suma, todo universo. À correspondência também atua no equivale a assumir uma situação existencial.
sentido contrário: o templo ou a casa, por sua vez, são consi- É notável que o vocabulário místico indiano tenha con-
derados como um corpo humano, O “olho” da cúpula é um servado a correspondência homem-casa, sobretudo a assimi-
termo frequente em várias tradições arquitetônicas”. E im- lação do crânio ao teto ou à cúpula. A experiência mística
portante, contudo, enfatizar que cada uma dessas imagens fundamental, quer dizer, a superação da condição humana,
equivalentes — Cosmos, casa, corpo humano — apresenta é expressa por uma imagem dupla: a rotura do telhado e o
ou pode apresentar uma “abertura” superior que possibilita vôo nos ares. Os textos budistas falam dos Arhats que “voam
a passagem para um outro mundo, O orifício superior de uma pelos ares quebrando o teto do palácio, que, “voando por sua
torre indiana tem, entre outros nomes, o de brahmarandhra. própria vontade, quebram e atravessam o teto da casa e vão
Ora, este termo designa a “abertura” que se encontra no al- pelos ares” etc.” Essas fórmulas podem ser interpretadas de
to do crânio e que desempenha um papel capital na ioga tân- duas maneiras: no plano da experiência mística, trata-se de
trica; é por aí também que se desprende a alma no momento um “êxtase” e, portanto, do vôo da alma pelo brahmarandhara;
no plano metafísico, trata-se da abolição do mundo condi-
da morte. Lembremos, a este propósito, o costume de que-
cionado. Mas os dois significados do “'vão”” dos Arhats ex-
brar o crânio dos iogues mortos para facilitar a saída da
primem a rotura de nível ontológico e a passagem de um modo
alma”,
8. Porção de espaço santificado que, em certos tipos de habitação euro-
6. Cf. Ananda K. Coomaraswamy, “Symbolism of the Dome”, In- asiática, corresponde ao pilar central e desempenha, por consequência, o papel
dian Historical Quarterly, XIV, 1938, pp. 1-56. de “Centro do Mundo”. Ver G. Rank, Die Heitige Hinterecke in Hlanskult der
7.M. Eliade, Le Yoga, p. 400; ver também A. K. Coomaraswamy. Halker Nordesteuropas und Nordastens, Helsinque, 1949,
“Symbolism of the Dome”, p. 53, nº 60. 9. Cf. M. Eliade, Le Vol Mostique, Numen, II, 1956, pp. 1-13.
142 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 143
( ser a outro, ou, mais exatamente, a passagem da existên- (“olho” do Templo, chaminé, torre de fumaça, Srahmarandhara
cia condicionada a um modo de ser não-condicionado, quer etc.). De uma maneira ou outra, o Cosmos que o homem
dizer, de perfeita liberdade. habita— corpo, casa, território tribal, este mundo em sua.
Na maior parte das religiões arcaicas, o “vôo” spt totalidade — paia -se “pelo E outro nível que,
Jdo v.acesso a um modo de ser sobre-humano (Deus, mágico, “es- lhe éÉ transcendente.
Es o e dm
pírito”), em última iinstância a liberdade de: se mover
di à von- Acontece que numa religião acósmica, como a da Índia
tade — portanto uma apropriação da condição do “espíri- depois do budismo, a abertura para o plano superiorjá não
ar o pensamento indiano, o Arhat que “rompe o teto exprime a passagem da condição humana para a condição
a casa” e voa pelos ares ilustra, de maneira figurada, que sobre-humana, mas a transcendência, a abolição do Cosmos,
ele transcendeu o Cosmos e alcançou um modo de ser para- a liberdade absoluta. É enorme a diferença entre o igiea
doxal, impensável até, o da liberdade absoluta (seja qual for do filosófico do “ovo quebrado” por Buda, ou do ““teto” fra-
o nome que lhe diem: nirvâna, asamsária, samádhi, sahaja etc.). turado pelos Arhats, c o simbolismo arcaico da passagem da
No plano mitológico, o gesto exemplar da transcendência do Terra ao Géu ao longo do Axis mundi ou pelo orifício de fu-
Mundo é ilustrado por Buda, ao proclamar que “quebrou” maça. Permanece, porém, o fato de que a filosofia e o misti-
o Ovo cósmico, a cx “concha da ignorância” e que atingiu cismo indianos escolheram de preferência, entre os símbolos
bem-aventurada, a universal dignidade de Buda”1º, que podiam significar a rotura ontológica e a transcendên-
O exemplo mostra-nos a importância da perenidade “dos cia, a imagem primordial do estilhaçamento do teto. A supe-
simbolismos arcaicos relativos à habitação humana. Esses sim- ração da condição humana traduz-se, de uma maneira figu-
bolismos exprimem situações religiosas primordiais, mas são rada, pelo aniquilamento da “casa”, ou seja, do Cosmos pes-
suscetíveis de modificar seus valores, enriquecendo-se de sig- soal que se escolheu habitar. Toda “morada estável” onde
nificados novos e integrando-se em sistemas de pensamento o homem se “instalou” equivale, no plano filosófico, a uma
cada vez mais articulados. “Habita-se”” o corpo da mesma situação existencial que se assumiu. À imagem do estilhaça-
maneira que se habita uma casa ou o Cosmos que se criou mento do teto significa que se aboliu toda a situação que se es-
para si mesmo (cf. cap. 1). Toda situação legal e permanente colheu, que se optou não pela instalação no mundo, mas pela
implica a inserção num Cosmos, num Unive so perfeitamente liberdade absoluta, que, para o pensamento indiano, impli-
organizado, imitado, portanto, segundo o model exemplar, ca o aniquilamento de todo mundo condicionado.
a Criação. Território habitado, Templo, casa, corpo, como Não é necessário analisar longamente os valores atribuí-
vimos, são Cosmos. Mas todos esses Cosmos, e cada um de dos por um de nossos contemporâneos não-religiosos a seu cor-
acordo com seu modo de ser, apresentam uma “abertura”, po, sua casa e seu universo, para perceber a enorme distância
seja qual for o sentido que lhe atribuam as diversas culturas que o separa dos homens das culturas primitivas e orientais
que acabamos de mencionar. Assim como a habitação de um
homem modernoe perdeu
e mi os teria
valores cosmológicos, também seu

10. Suitavibhanga, Pârâjika, I, 1, 4, comentado por Paul Mus, La No- corpo foi igualmente demprivado de todo significado religioso ou
nem du temps réversible dans ta mythologie bouddhigue. Melun, 1939, p. ess dn
13. espiritual. Poder-se-ia dizer, em resumo, que, para os mo-
O SAGRADO E O PROFANO ÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 145
dernos desprovidos de religiosidade, o Cosmos se tornou opa- exemplo, China proto-histórica, Etrúria etc.), as urnas fune-
co, inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não rárias têm a forma de casa: apresentam uma abertura supe-
carrega nenhuma “cifra”. O sentimento da santidade
da Na- rior que permite à alma do morto entrar e sair!!, A urna-
tureza sobrevivehoje na Europa sobretudo-entre.as
popula- casa torna-se de certo modo o novo t “corpo” do defunto. É
ções. rurais, pois é aí que ainda se.encontra um cristianismo também de uma casinha em forma de capuz que sai o Ante-
vivido como Jiturgia cósmica. passado mítico, e é sempre numa tal casa-urna-capuz que se
Quanto ao cristianismo das Eleiga ic Fit esconde o Sol durante a noite para tornar a sair de manhã!?
Há, pois, uma correspondência estrutural entre as diversas
res cósmicos que possuía RSA na Idade Média, Iston modalidades de passagem: das trevas à luz (Sol), da preexis-
plica necessariamente que o cristianismo urbano seja cedegra- tência de uma raça humana à manifestação (Antepassado mí-
dado” ou “inferior”, : mas apenas-que-a-sensibilidade
pc reli- tico), da Vida à Morte e à nova existência post-mortem (a alma).
giosa das populações urbanas encontra-se gravemente empo- Sublinhamos várias vezes que toda forma de O REmES,
brecida, A liturgia cósmica, o mistério da participação da Na- — o Universo, o Templo, a casa, o corpo humano — é pro-
tureza no drama cristológico tornaram-se inacessíveis aos cris- vida de uma “abertura” superior. Agora se compreende me-
tãos que vivem numa cidade moderna. Sua experiência reli “Jhor o significado desse simbolismo: a abertura torna caamersoenemem
possí-
giosa já não é “aberta” para O Cosmos; é uma experiência vel a passagem de um modo de ser a outro, de uma situação
estritamente privada. A salvação éé um problema que diz res- existencial a pad Toda existência cósmica está predestina-
peito ao homem e seu Deus; no melhor dos casos, o homem — da àEm “passagem” : o homem passa da pré-vida à vida e final-
reconhece-se responsável não somente diante “de Deus, mas — mente à morte, tal como +[o) Antepassado mítico passou da pree-
também diante da História. Mas nestas relações | homem- xistência à existência co Sol das trevas à iz. Notemos que
Deus-História o Cosmos não tem nenhum lugar. O que per- este tipo de “passagem” se enquadra num sistema mais com-
mite
nite supor que, mesmo-para um cristão autêntico, o Mundo plexo, cujas principais articulações examinamos ao falar da

Pi não ai
ie é sentido
como obra de Deus, Lua como arquétipo do devir cósmico, da vegetação como
símbolo da renovação universal, e sobretudo das múltiplas
maneiras de repetir ritualmente a cosmogonia, quer dizer,
A passagem pela porta estreita a passagem exemplar do virtual ao formal. Convém precisar
que todos os rituais e simbolismos da “passagem” exprimem
“Tudo o que acabamos de dizer sobre o simbolismo corpo- uma concepção específica da existência humana;pri idos
uma vez nas:aa
casa, e suas correspondências antropocósmicas, está longe de
ter esgotado a extraordinária riqueza do assunto: tivemos de
nos limitar a apenas alguns de seus múltiplos aspectos. A “c 11, C, Hentze, Bronzegerãt, Kultbauten, Religion im dltesten China der Chang-
sa” — visto que é ao mesmo tempo uma imago mundi e uma Zeit, Antuérpia, 1951, pp. 49 ss.; id., in Sinologica, III, 1953, pp. 229-239
e figs. 2-3,
réplica do corpo humano — desempenha um papel conside- 12. C, Hentze, Tod, Auferstehung, Welttordnung. Das mpthische Bild im àt-
rável nos rituais e nas mitologias. Em certas culturas (por testen China, Zurique, 1955, pp. 47 ss. e figs. 24-25,
146 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 147
cido, o homem ainda não está, acabado; deve nascer uma se- cos em sua viagem extática para o Céu: por aí, por exemplo,
gunda vez, espiritualmente; torna-se homem completo pas- subiu, em espírito, Ardã Viraf!,
e
sando de um estado imperfeito, embrionário, a um estado per- A Visão de S. Paulo mostra-nos uma ponte “estreita co-
feito, de adulto. Numa palavra, pode-se dizer que a existên- mo um fio de cabelo”, que liga nosso mundo ao Paraíso. A
cia humana chega à plenitude é longo de uma série deritos mesma imagem se encontra entre os escritores e os místicos
de passagem, em suma, de iniciações sucessivas. árabes: a ponte é “*mais estreita do que um fio de cabelo”
Falaremos em breve do sentido e da função da inicia-
e liga a Terra às esferas astrais e ao Paraíso. Tal como nas
tradições cristãs, os pecadores, incapazes de atravessá-la, são
sãa, Por ora, vamos nos deter um pouco no simbolismo da
“passagem” " tal qual o homem religioso o “decifra no meio.
precipitados no Inferno. As lendas medievais falam de uma
“ponte escondida sob a água” e de uma ponte-sabre, sobre
familiar e na vida cotidiana: na sua casa, por exemplo, nos
a qual o herói(Lancelot) deve passar com os pés e as mãos
caminhos que utiliza para ir ao trabalho, nas pontes
caensernamno que atra”
sacos,
nus: a ponté é “mais cortante do que uma foice” e a passa-
vessa etc. Esse simbolismo está presente na Pr ópria «estrutura
gem faz-se “com sofrimento e agonia”. Na tradição finlan-
da habitação. À abertura superior significa, conforme vimos,
desa, uma pónte coberta de agulhas, pregos, lâminas de na-
a direçãopaid
ascensional para
tada o ACéu, oo desejo
A de transcendên-
valha, atravessa o Inferno: os mortos, assim como os xamãs
cia. O limiar concretiza tanto a delimitação entreo “fora”
em êxtase, utilizam-na em sua viagem para o outro mundo.
eo dentro”, como a possibilidade de passagem de uma zo-
Descrições similares são encontradas em todo o mundo!,
na.a outra (do profano ao sagrado; cf. cap. 1). Mas são so- mas 0 que importa, acima de tudo, é o fato de se ter conser-
bretudo as imagens da ponte e da porta estreita que sugerem a vado essas mesmas imagens para significar a dificuldade do
idéia de passagem perigosa e que, por esta razão, abundam conhecimento metafísico e, no cristianismo, da fé. “É difícil
nos rituais e nas mitologias iniciáticas e funerárias. À inicia- passar por sobre o fio aguçado da navalha”, dizem os poetas
ção, como a morte, o êxtase místico, o conhecimento absolu- para exprimir a dificuldade do caminho que conduz ao co-
to, a fé (no judaísmo-cristianismo), equivale a uma passagem nhecimento supremo (Katha Upanishad, III, 14). “Estreita é
de um modo de ser a outro e opera uma verdadeira o md a porta e apertado o caminho que conduz à Vida, e poucos
ontológica. Para sugerir es a passagem paradoxal há que o encontram” (Mateus, 7: 14).
plica sempre uma rotura e uma transcendência),as diversas Esses poucos exemplos relativos ao simbolismo iniciáti-
tradições religiosas utilizaram abundantemente o simbolismo co, funerário e metafísico da ponte e da porta mostraram-nos
da
CR ponte
sa perigosaa OU ou da porta estreita.
Ga POLL Ro Na mitologia irania-
i em que o sentido a existênci
na a ponte Cinvaté utilizada pelos defuntos em sua viagem que
dl ela envolve — a casa com seus utensílios,
iai de a ea rotina diária
ernenmamemamem
post-mortem: tem uma largura de nove comprimentos de lan-
ça para os justos, mas para os ímpios torna-se estreita como
13. CÊ M. Eliade, Le Chamanisme et les techniques archaiques de Dextase,
“a lâmina de uma navalha” (Dênkart, IX, 20, 3). Debaixo
Paris, 1951, pp. 337 ss.
da ponte Cinvat abre-se o buraco profundo do Inferno (Vi- 14, Cf. Le Chamanisme, pp. 419 ss.; Maarti Haavio, Vainâmóinen, Eter-
dévdat , 3, 7). É sempre por essa ponte que passam os místi- Sage, Helsinque, 1952, pp. 112 ss.
148 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 149
e seus gestos etc, — são suscetíveis de ser valorizados no pla- cio da puberdade,
a passagem de uma faixa de idade a outra
no Teligioso e metafísico. É a vida imediata, de todos os dias, (da
cê infância
mica. ou adolescência à juventude). Mas há tambémai
que é transfigurada na experiência de ama Tigrnem religioso: ritos de pissagem no nascimento, no casamento e na morte,
o homem descobre por todo lado uma “cifra”, Até o gesto e pode- se dizer que, em cada um desses casos, se trata sem-
mais habitual pode significar um ato espiritual. O caminho pre de uma iniciação, pois envolve sempre uma mudança ra-
e a marcha são suscetíveis de ser transfigurados em valores dical de regime ontológico e estatuto social, Quando acaba
religiosos, pois todo caminho pode simbolizar “o caminho da de nascer, a criança só dispõe de uma existência física; não
vida” » e toda marcha uma ce “peregrinação”, uma peregrina- é ainda reconhecida pela família nem recebida pela comuni-
ção para o Centro do Mundof, Se a-. posseRR de uma “casa” dade. São os ritos realizados imediatamente após o parto que
im,
implica que se assumiu uma Stiuação estável no aaa conferem ao recém-nascido o estatuto de “vivo” propriamente
dito; é somente graças a esses ritos que ele se integra à comu-
clamam por sua '“'marcha”, Bor seu contínuo nes Ro) nidade dos vivos.
desejo de sair do mundo, a recusa de todas as situações mun- Por ocasião do casamento, tem lugar também uma pas-
danas. À casa é um “ninho”, e, como diz o Pancavimsha sagem de um grupo sócio-religioso a outro. O recém-casado
Bráhmana (XI, 15, 1), o “ninho” implica rebanhos, filhos e abandona o grupo dos celibatários para participar, então, do
um “lar”'; numa palavra, simboliza o mundo familiar, so- grupo dos chefes de família. Todo casamento implica uma
cial, econômico. Aqueles que escolheram a busca, o caminho tensão e um perigo, desencadeando portanto uma crise; por
para o Centro, devem abandonar toda situação familiar e so- isso O casamento se efetua por um rito de passagem. Os gre-
cial, todo “ninho”, e consagrar-se unicamente à “marcha” gos chamavam o casamento de télos, consagração, e o ritual
em direção à verdade suprema, que nas religiões altamente nupcial assemelhava-se ao dos mistérios.
evoluídas se confunde com o Deus oculto, o Deus abs- No que diz respeito à morte, os ritos são mais comple-
conditus!6 xos, visto que se trata não apenas de um “fenômeno natu-
ral” (a vida, ou a alma, abandonando o corpo), mas tam-
bém de uma mudança de regime ao mesmo tempo ontológi-
Ratos de passagem co e social; o defunto deve enfrentar certas provas que dizem
respeito ao seu próprio destino post-mortem, mas deve também
Comojá observamos, os ritos de passagem desempenham ser reconhecido pela comunidade dos mortos e aceito entre
um papel importante na vida dó HERE religioso”, É seio eles. Para certos povos, só o sepultamento ritual confirma a
morte: aquele que não é enterrado segundo o costume não
está morto. Além disso, a morte de uma pessoa só é reconhe-
cida como válida depois da realização das cerimônias fune-
15. Cf. Die Religionen und das Heilige, pp. 430 e segs rárias, ou quando a alma do defunto foi ritualmente condu-
16. Cf. Ananda K. Coomaraswamy, “The Pilgrim's Way”, Journal
zida a sua nova morada, no outro mundo, e lá foi aceita pela
of the Bihar and Orissa Oriental Research Society, KXIII, 1937, parte IV, pp. 1-20,
17. Ver Arnold Van Gennef) Les rites de passage, Paris, 1909. comunidade dos mortos. Para o homem a-religioso, o nasci-
EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIEICADA 151
16510] O SAGRADO E O PROFANO
mento, o casamento, a morte não passam de acontecimentos
religioso: mostra-nos que o homem das sociedades primitivas
nãose considera “acabado” talcomose encontra aonívelnatu-
que dizem respeito ao indivíduo e sua família; raramente —
raldaexistência: para setornarum homem propriamente dito,
no caso de chefes de Estado ou políticos — esses aconteci-
deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para
mentos têm repercussões políticas. Numa perspectivaa-
uma vida superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural.
religiosa da existência, todas as “ passagens” perderam seu,
Em outras palavras, o primitivo coloca seu ideal de huma-pesk ot tto-
O SOON “* caráter ritual, quer dizer, nada mais significam além do que
nidade num plano sobre-humano. Isto quer dizer que: (1)só se. ma nur SS
mostra O ato concreto de um nascimento, de um óbito ou de
tornaum homem completo depoisdeterultrapassado, cemcer- Agra era,
uma união sexual oficialmente reconhecida. Acrescentemos,
to sentido abolido, a humanidade “natural”, pois a iniciação Er iMiNVO
porém, que raramente se encontra uma experiência comple-
se reduz, em suma, a uma experiência paradoxal, sobrenatu-
tamente a-religiosa da vida total em estado puro, mesmo nas
ral, de morte e ressurreição, ou de segundo nascimento; (2)os
sociedades mais secularizadas. E possível que uma tal expe-
riência completamente a-religiosa se torne mais corrente num
ritosiniciáticoscomportandoas provas, amorteearessurreição
simbólicas foram fundados pelos RA deuses,
rir os ha HeróisRet)civilizado-
nai TALO
futuro mais ou menos longínquo; mas por ora é ainda rara. res ou os Antepassados míticos: esses ritos têm, portanto, uma.
O que se encontra no mundo profano é uma secularização origem sobre-humana, e, ao realizá-los, o neófitoimitaum com-
radical da morte, do casamento e do nascimento, mas, como portamento sobre-humano, divino. É importante reter este fa-
não tardaremos a ver, subsistem apesar de tudo vagas recor- to, pois nos mostra mais uma vez que o homem religioso se quer
dações e nostalgias de comportamentos religiosos abolidos. diferente do que se encontra ao nível “natural”, esforçando-se
Quanto aos rituais iniciáticos propriamente ditos, con- por fazer-se segundo a imagem ideal que lhe foi revelada pelos
vém fazer uma distinção entre as iniciações da puberdade (fai- mitos. Ohomem primitivo esforça-se poratingirumdealreligio-
xa de idade) c as cerimônias de admissão numa sociedade se- so de humanidade, e nesse esforço encontram-sejá os germes de
creta: a diferença mais importante reside no fato de que todos todas as éticas elaboradas mais tarde nas sociedades evoluídas.
os adolescentes são obrigados a enfrentar a iniciação da ida- Evidentemente, nas sociedadesa-religiosasmodernas, ainicia-
de, ao passo que as sociedades secretas são reservadas a um çãojánãoexistecomoatoreligioso. Veremosmaisadiante, con-
certo número de adultos. Parece certo que a instituição da tudo, que, embora fortemente dessacralizados, os padrões de
iniciação da puberdade é mais antiga do que a da sociedade iniciação ainda sobrevivem no mundo moderno.
secreta; encontra-se mais espalhada e é atestada desde os ní-
veis mais arcaicos de cultura, como, por exemplo, entre os
Fenomenologia da iniciação
australianos e os fueguinos. Não nos cabe expor aqui as ceri-
mônias iniciáticas em toda sua complexidade. Nosso objeti- A iniciação comporta geralmente uma tripla revelação: a.
vo é mostrar que, já nos estágios arcaicos de cultura, a ini- do sagrado, a da morte e a da sexualidade!?, A criança ignora
ciação desempenha um papel capital na formação religiosa
do homem, e, sobretudo, que ela consiste essencialmente nu-
ma mudança do regime ontológico do neófito. Ora, este fato 18, Paratudoo que segue, ver M. Eliade, “Mystere et régéneration spiri-
tuelle danslesreligionsextra-curopéennes”, Eranos- Jahrbuch, XXI, 1955, pp. 57-98
parece-nos muito importante para a compreensão do homem
16% O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 153
todas essas experiências; o iniciado as conhece, assume e inte- tado embrionário, mas isto não deve ser compreendido uni-
gra em sua nova personalidade. Acrescentemos que sc o neófi- camente em termos de fisiologia humana, mas também em
to morre para sua vida infantil, profana, não-regenerada, re-. termos cosmológicos: o estado fetal equivale a uma regressão
nascendo para uma nova existência, santificada, ele renasce provisória ao modo virtual, pré-cósmico.
também para um modo de ser que torna possível o conheci- Outros rituais trazem à luz o simbolismo da morte ini-
mento, a ciência. O iniciado não é apenas um “recém-nascido” ciática. Entre alguns povos, os candidatos são enterrados ou
ou um “ressuscitado”: é um homem que sabe, que conhece os. deitados em túmulos recém-cavados, ou então são cobertos
mistérios, que teve revelações de ordem metafísica. Durante de folhagens e permanecem imóveis, como mortos, Ou
seu treinamento na selva, aprende os segredos sagrados: os mi- esfregam-nos com um pó branco a fim de que se assemelhem
tos relativos aos deuses e à origem do mundo, os verdadeiros aos espectros. Os neófitos imitam, aliás, o comportamento
nomes dos deuses, o papel e a origem dos instrumentos rituais dos espectros: não se servem dos dedos para comer, pegando
utilizados durante as cerimônias de iniciação (os bull-roarers, as o alimento diretamente com os dentes, como se acreditava
lâminas de sílex para a circuncisão etc.). A iniciação equivale que faziam as almas dos mortos. Por fim, as torturas a que
ao | amadurecimento.o espiritual, ein toda a história aa são submetidos têm inúmeros significados, entre os quais o
seguinte: o neófito torturado e mutilado é considerado tortu-
aquele que conheceu os mistérios, é Fe que sabe, rado, esquartejado, cozido ou queimado pelos demônios se-
A cerimônia começa sempre com a separação do neófito nhores da iniciação, quer dizer, pelos Antepassados míticos.
de sua família e um retiro na selva. Já há ali um símbolo da Os sofrimentos físicos correspondem à situação daquele que
morte: a floresta, a selva, as trevas simbolizam o além, os “In- é “comido” pelo demônio-fera, cortado em pedaços nas goelas
fernos”. Em alguns lugares acredita-se que um tigre vem e do monstro iniciático, digerido em seu ventre. Asmutilações.
transporta no dorso os candidatos: a fera encarna o Ântepas- (arrancar dentes, amputar dedos etc.) são carregadas, tam-
sado mítico, o Senhor da iniciação, que conduz os adolescen-
bém, de um simbolismo da morte. À maior parte das mutila-
çõeses relacionam- se com as divindades lunares. Ora, a Lua
tes aos Infernos. Além disso, considera-se que o neófito é en-
desaparece periodicamente, morre, para, renascer três noites
golido por um monstro, em cujo ventre reina a Noite cósmica;
mais tarde. O simbolismo lunar enfatiza que a morte é a con-
é o mundo embrionário da existência, tanto no plano cósmico o
“dição primeira de toda regeneração mística.
como no plano da vida humana. Em inúmeras regiões, existe
Além das operações específicas — como a circuncisão e
na selva uma cabana iniciática. É aí que os jovens candidatos
a subincisão —, fora as mutilações iniciáticas, outros sinais
sofrem uma parte de suas provas e são instruídos nas tradições
exteriores marcam a morte e a ressurreição: tatuagem, esca-
secretas da tribo. Ora, a cabana iniciática simboliza o ventre
rificações. Quanto ao simbolismo do renascimento místico,
materno!?, A morte do neófito significa uma regressão ao es-
apresenta-se sob múltiplas formas. Os candidatos recebem ou-
tros nomes, que serão daí para frente seus verdadeiros no-
19. R. Thurnwald, “Primitive Initiations — und Wiedergeburtsriten”, mes. Entre algumas tribos, considera-se que os jovens inicia-
Eranos-fahrbuch, VII, 1950, pp. 321-398. dos esqueceram tudo de sua vida anterior; imediatamente após
154 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 11555]
a iniciação são alimentados como crianças, conduzidos pela mão Mas, conforme dissemos, pertencer a sociedades masculinas

a
c ensinados de novo a como se comportar. Geralmente apren- implica já uma seleção: nem todos aqueles que sofreram a
dem na selva uma língua nova, ou pelo menos um vocabulário iniciação da puberdade farão parte da sociedade secreta, em-
secreto, acessível somente aos iniciados. Como se vê, com a inl- bora todos o desejem?!,
ciação, tudo recomeça. Por vezes, o simbolismo do segundo nas- Para dar um exemplo, entre as tribos africanas Mandja
cimento exprime-se por gestos concretos. Entre certos povos ban-

e
e Banda, existe uma sociedade secreta conhecida pelo nome
tos, antes de ser circuncidado, o jovem é objeto de uma cerimô-
de Ngakola. Segundo o mito que se conta aos ncófitos du-
nia conhecida como ** nascer de novo”. O pai sacrifica um
rante a iniciação, Ngakola era um monstro que tinha o po-
carneiro e, três dias depois, envolve a criança na membrana do
estômago e na pele do animal. Antes de ser envolvida, a crian-
der de matar os homens, engolindo-os, e vomitá-los em se-
guida, renovados. O neófito é introduzido numa choupana
ça deve subir para a cama e chorar como um recém-nascido.
Ela fica na pele de carneiro durante três dias. Entre o mesmo que simboliza o corpo do monstro. Aí ele ouve a voz lúgubre
povo, os mortos são enterrados na pele dos carneiros e em posi- de Ngakola e é chicoteado e submetido a torturas, pois, se-
ção embrionária. O simbolismo do renascimento mítico pelo gundo lhe dizem, ele “entrou agora no ventre de Ngakola””
revestimento ritual de uma pele de animal é encontrado, aliás, e está prestes a ser digerido. Depois de passar por outras pro-
em culturas altamente evoluídas (Índia, Egito antigo). vações, o mestre da iniciação anuncia finalmente que Nga-
Nos quadros iniciáticos, o simbolismo do nascimento acom- kola, que comera o neófito, acaba de vomitá-lo?2,
panha quase sempre o da Morte. Nos contextos iniciáticos, a Reencontra-se aqui o simbolismo da morte pela absor-
morte significa a superação da condição profana, não-santifi- ção no ventre de um monstro, simbolismo que desempenha
cada, a condição do “homem natural”, ignorante do sagrado, um enorme papel nas iniciações de puberdade. Notemos ainda
cego para o espírito. O mistério da iniciação revela pouco a pouco uma vez que os ritos de entrada numa sociedade secreta cor-
ao neófito as verdadeiras dimensões da existência: ao introduzi-lo respondem, ponto por ponto, às iniciações de puberdade: re-
no sagrado, a iniciação o obriga a assumir a responsabilidade clusão, torturas e provas Iniciáticas, morte e ressurreição, im-
de homem. É importante ter este fato em mente: o acesso à es- posição de um novo nome, ensino de uma língua secreta etc,
piritualidade traduz-se, em todas as sociedades arcaicas, por um Existem, igualmente, iniciações femininas. Não se deve
simbolismo da Morte e de um novo nascimento.
esperar encontrar nos ritos iniciáticos e nos mistérios reser-
vados às mulheres o mesmo simbolismo ou, mais exatamen-
Sociedades masculinas e sociedades femininas te, expressões simbólicas idênticas às das Iniciações e confra-
Os ritos de admissão nas sociedades masculinas utilizam
as mesmas provas e reproduzem os mesmos quadros iniciáticos. 21. Cf. H. Schurtz, Altersklassen und Minnerbinde, Berlim, 1902: O, Ho-
fer, Geheimbinde ser Germanen, I, Frankfurt-am-Main, 1934; r. Wolfram,
Schiwerttanz und Mannerbind, I-II, Kassel, 1936; w. E. Penckert, Geheimkulte,
Heidelberg, 1951.
20. M. Canney, ““The Skin of Rebirth”,
Man, julho de 1939, nº 91, pp. 22. E. Andersson, Contribution à L'éthnographie des Kuta, 1, Uppsala, 1953,
104-105. pp. 204 ss.
156 O SAGRADO E O PROFANO
EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 157
rias masculinas. Mas facilmente se descobre um elemento co-
ros mistérios. Até na Europa se conservaram os traços desses
mum: é sempre uma experiência. religiosa profunda que.está
mistérios?,
na base de todos os ritos e mistérios, É o acesso à sacratidade,
Como entre os homens, encontramos múltiplas formas
tal como ela se revela ao assumir a condição de mulher, que
de associações femininas, onde o segredo e o mistério aumen-
constitui o objetivo tanto dos ritos iniciáticos de puberdade
! tam progressivamente. Há, para começar, a iniciação geral,
como das sociedades secretas femininas (Weiberbiinde).
pela qual passa toda jovem e toda recém-casada, e que con-
À iniciação começa com a primeira menstrução. Este sin- N
duz à instituição das sociedades femininas. Há, em seguida,
toma fisiológico comanda uma rotura, o afastamento da jo-
as associações femininas de mistérios, como na África ou, na
vem de seu mundo familiar: ela é imediatamente isolada, se-
Antigúidade, nos grupos fechados das Mênades. Sabe-se que
parada da comunidade. A segregação tem lugar numa caba-
essas confrari ls femininas de mistério demoraram muito tem-
na especial, na selva ou num canto escuro da habitação. A
——po a desaparecer; lembremos « s feiticeiras da Idade Média
jovem catamenial deve manter-se numa posição específica, “
> |
'européia e suas reuniões ritual $
muito incômoda, e evitar ser vista pelo Sol ou tocada por qual- ON ram
quer pessoa. Traz um vestido especial, ou um sinal, uma cor
que lhe está de certo modo reservada, e deve nutrir-se de ali-
Morte e iniciação
mentos crus.
A segregação e a reclusão na sombra, numa cabana es-
cura na selva, lembram-nos o simbolismo da morte iniciática O simbolismo e o ritual iniciáticos que comportam ser
engolido por um monstro desempenharam um papel consi-
dos rapazes isolados na floresta, encerrados em choupanas.
derável tanto nas iniciações como nos mitos heróicos e nas
Existe, no entanto, uma diferença: entre as meninas a segre-
gação tem lugar imediatamente após a primeira menstrua- mitologias da Morte. O simbolismo do egresso curtir tem
ção, sendo portanto individual, ao passo que entre os rapa-
zes é coletiva. À diferença se explica pelo aspecto fisiológico, simbolicamente, regressa com o netos à Noite côsmicá pás
manifesto entre as meninas do fim da infância. Mas as meni- ra poder ser criado de novo, regenerado. Conforme vimos,
nas acabam por constituir um grupo, e então a iniciação de- recita-se o mito cosmológico com fins terapêuticos. Para cu-
las é realizada coletivamente, por velhas monitoras. | rar o doente, é preciso fazê-lo nascer mais uma vez, e o modelo
Quanto às sociedades femininas, estão sempre relacio- arquetípico do nascimento é a cosmogonia. É preciso abolir
nadas com o mistério do nascimento e da fertilidade. O mis- a obra do Tempo, restabelecer o instante auroral de antes da
tério do parto, quer dizer, a descoberta feita pela mulher de Criação: no plano humano, isto equivale a dizer que é preci-
que ela é criadora no plano da vida, constitui uma experiência so retornar à “página branca” da existência, ao começo ab-
religiosa intraduzível em termos da experiência masculina.
Compreende-se então por que o parto deu lugar a rituais se-
23, Cf, R. Wolfram, “Weiberbúnde”, Zeitschrift fiir Wolkskunde, 42,
cretos femininos que se organizam às vezes como verdadei-
5. pp. 143 ss.
E
158 O SAGRADO E O PROFANO IXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 135
soluto, quando nada se encontrava ainda maculado, quando cimento) foram compreendidas como os três momentos de um
nada estava ainda estragado. mesmo mistério, e todo o esforço espiritual do homem arcaico
Penetrar no ventre do monstro — ou ser simbolicamen- foi empregado em mostrar que não devem existir cortes entre
te “enterrado” ou fechado na cabana iniciática — equivale esses três momentos. Não se pode parar em um dos três mo-
a uma regressão ao indistinto primordial, à Noite cósmica, mentos. O movimento, a regeneração continuam sempre.
Sair do ventre, ou da cabana tenebrosa, ou da “tumba” ini- Refaz-se infatigavelmente a cosmogonia para se estar seguro
ciática, equivale a uma cosmogonia. A morte iniciática reite- de que se faz de fato alguma coisa: uma criança, por exemplo,
ra o retorno exemplar ao Caos para tornar possível a repeti- ou uma casa, ou uma vocação espiritual. É por isso que se en-
ção da cosmogonia, ou seja, para preparar 0 novo nascimen- contra sempre a valência cosmogônica dos ritos de iniciação.
to. À regressão ao Caos verifica-se às vezes literalmente; é
o caso, por exemplo, das doenças iniciáticas dos futuros xa-
mãs, consideradas inúmeras vezes como verdadeiras loucu- O “segundo nascimento” e a criação espiritual
ras. Assiste-se, com efeito, a uma crise total, que conduz mui-
s
tas vezes à desintegração da personalidade?*. O “caos psí- O quadro inieiático — quer dizer, morte para a condição
quico” é o sinal de que o homem profano se encontra prestes profana, seguida do renascimento para o mundo sag ado, pa.
a “dissolver-se”' e que uma nova personalidade está prestes ra o mundo dos deuses — também desempenha um papeli im-
a nascer.
Compreende-se por que o mesmo esquema iniciático — um exemplo célebre. Seu objetivo éé alcançar, após a morte,
sofrimentos, morte c ressurreição (renascimento) — Se reen-
o Céu, a morada dos deuses ou a qualidade de deus (deváima).
contra em todos os mistérios, tanto nos ritos de puberdade.
Em outras palavras, pelo sacrifício forja-se uma condição sobre-
como naqueles que dão acesso a uma sociedade secreta; e por humana, resultado que pode ser comparado ao das iniciações
que o mesmo cenário se deixa revelar nas-intrigantes expe- arcaicas. Ora, o sacrificante deve ser previamente consagrado
riências íntimas que precedem a vocação mística (entre os pri- pelos sacerdotes, e a consagração (dikshá) comporta um simbo-
mitivos, as “doenças iniciáticas” dos futuros xamãs). O ho-
lismo iniciático de estrutura obstétrica; propriamente falando,
mem das sociedades primitivas esforçou-se por vencer a morte a dikshã transforma ritualmente o sacrificante em embrião,
transformando-a em rito de passagem. Em outras palavras, par, fazendo-o nascer uma segunda vez.
ra os primitivos, morre-se sempre para qualquer coisa que não Os textos enfatizam longamente o sistema de correspon-
seja essencial; morre-se sobretudo para a vida profana. Em re-
dência graças ao qual o sacrificante sofre um regressus ad uterum
sumo,
a morte chega a serconsiderada como a suprema ini-
seguido de um novo nascimento??, Vejamos, por exemplo, o
ciação, “quer dizer, -CORAO o-começo de u:
uma nova existência
espiritual, Mais ainda: geração, morte e regeneração (renas-
25. Cf. Sylvan Leyi, La docirine du sacrifrice dans les Brâhmanas, Paris, 1898,
D. 104ss.; H. Lommei, Wiedergeburt aus embryonalem Zustandin der Symbolik des
24, Cf. Mircea Eliade, Le Chamanisme. pp. 36 ss. dtindischen Rituals (in C. Hentze, Tod, Auferstehung, Weltordnung, pp. 107-130).


160 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 161
que diz a esse respeito o Aitareya-Bráhmana (1, 3). “Os sacer- O nascimento iniciárico implicava a morte para a exis.
dotes transformam em embrião aquele a quem concedem a tência profana, O esquema conservou-se tanto no hinduísmo
consagração (dikshá). Aspergem-no com água: a água é a se- como no budismo, O iogue ''morre para esta vida” a fim de
mente viril... Fazem-no entrar no abrigo especial: o abrigo renascer para um outro modo de ser: aquele é representado
especial é a matriz de quem faz a dikshá; fazem-no entrar as- pela libertação. O Buda ensinava o caminho e os meios de
sim na matriz que lhe convém. Recobrem-no com uma ves- morrer para a condição humana profana — quer dizer, para
te, a veste É o âmnio... Pôem-lhe por cima uma pele de antí- a escravidão e a ignorância — e renascer para a liberdade,
lope negro; o córion está, de fato, por cima do âmnio... Ele para a beatitude e para o incondicionado do nirvana. A ter-
tem os punhos cerrados; com efeito, o embrião tem os pu- minologia indiana do renascimento iniciático lembra, às ve-
nhos cerrados enquanto está no ventre, a criança tem os pu- zes, o simbolismo arcaico do “novo corpo” que o neófito ob-
nhos fechados quando nasce...ºº Ele tira a pele de antílope tém graças à iniciação. O próprio Buda o proclama: “Mos-
para entrar no banho; é por isso que os embriões vêm ao mun- trei aos meus discípulos os meios pelos quais eles podem criar,
do despojados do córion. Ele mantém a veste para entrar no a partir deste corpo (constituído pelos quatro elementos, cor-
mundo e é por isso que a criança nasce com o âmnio por ci- ruptíveis), um outro corpo de substância intelectual (rúpim ma-
ma de si.” nomayan), completo com todos os membros e dotado de facul-
O conhecimento sagrado e, por extensão, a sabedoria são dades transcendentais (abhinindriyam).”'*”
concebidos como o fruto de uma iniciação, e é significativo O simbolismo do segundo nascimento ou da geração co-
que tanto na Índia antiga como na Grécia se encontre o sim- mo acesso à espiritualidade foi retomado e valorizado pelo
bolismo obstétrico ligado ao despertar da consciência supre-
dantemente o tema da geração para falar do nascimento a
ma. Não era sem razão que Sócrates se comparava a uma
uma vida superior, a vida do espírito (cf. por ex., Abraham,
parteira: clc de fato ajudava o homem a nascer para a cons-
20, 99). Por sua vez, S. Paulo fala de “filhos espirituais”,
ciência de si, dava à luz o “homem novo”. Encontra-se o
dos filhos que ele procriou pela fé, “Tito, meu verdadeiro
mesmo simbolismo na tradição budista: o monge abandona-
filho na fé que nos é comum” (Epístola a Tito, 1:4). “Rogo-te
va seu nome de família e tornava-se um “filho do Buda”
por meu filho Onésimo, que gerei na prisão...” (Epístola a
(sakpa-putto), pois [4 “nascera entre os santos” (aria). Confor-
Filémon, 10).
me dizia Kassapa ao falar de si mesmo: “Filho natural do
Inútil insistir nas diferenças entre os “filhos” que S. Pau-
Bem-aventurado, nascido de sua boca, nascido do dhamma (a
lo “gerou na fé”' e os “filhos do Buda”, ou aqueles que Só-
Doutrina), formado pelo dhamma” etc. (Samputta Nikáya, II, crates ce “partejava””,Né ou ainda os “ “recém-nascidos” das ini-
221). Siro ale ER . Aa - a própria
2a
ciações primitivas. As diferenças são evidentes. Era
26. Sobre o simbolismo cosmológico dos punhos fechados, cf. C. Hent- 27. Majjhima-Nikáya, H, 17; cf. também M. Eliade, Le Yoga. Immorta-
re, Tod, Auferstehung, Weltordnung, pp. 96 ss. e passim, et liberté. pp. 172 ss.
162 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 163
força do rito que “matava” c ““ressuscitava”” o neófito nas Tema imenso porque, comojá dissemos, não interessa
sociedades arcaicas, do mesmo modo que a força do rito trans- unicamente ao historiador das religiões, ao ctnólogo, ao so-
formava em “embrião” o sacrificante hindu. O Buda, pelo ciólogo, mas também ao historiador, ao psicólogo, ao filósofo.
E:
contrário, “engendrava” por “sua boca”', quer dizer, pela Conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, com-
comunicação de sua doutrina (dhamma); era graças ao conhe- preender seu universo espiritual é, em suma, fazer avançar
E
cimento supremo revelado pela dhamma que o discípulo nas- o conhecimento geral do homem. rdade que a maior parte
cia para uma vida nova, capaz de o conduzir até o limiar do das situações assumida s pelo homem religioso das sociedades
nirvana. Sócrates, por sua vez, não pretendia mais do que primitivas e das civilizações arcaicas há muito tempo foram
exercer o ofício de uma parteira: ajudava a “parir” o homem ultrapassadas pela História,
Mas não desapareceram sem dei-
verdadeiro que cada um trazia no mais profundo de si pró- xar vestígios: contribuíram para que nos tornássemos aquilo
prio. Para S. Paulo, a situação é diferente: ele engendrava
“filhos espirituais” pela fé, quer dizer, graças a um mistério tória.
fundado pelo próprio Cristo. Como repetimos em várias ocasiões, o homem religioso
assume um modo de existência específica no mundo, e, ape-
outra, O tema imemorial do segundo nascimento enriquece- sar do grande número de formas histórico-religiosas, este mo-
se com novos valores, que mudam às vezes radicalmente o do específico é sempre reconhecível. Seja qu contexto,
conteúdo da experiência. Permanece, porém, um elemento histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sem-
comum, um invariante, que se poderia definir da seguinte pre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que trans-
maneira: o acesso à vida espiritual implica sempre a morte para a cende este mundo, mas que aqui se manifesta, santificando-
condição profana, seguida de um novo nascimento. o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida tem. uma.
origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as,
suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja,
O sagrado e o profano no mundo moderno participa da realidade. Os deuses criaram o homem e o Mun-.
do, os Heróis civilizadores acabaram a Criação, e a história.
Embora tenhamos insistido na iniciação e nos ritos de de todas as obras divinas e semidivinas está conservada-nos
passagem, não pretendemos ter esgotado o assunto; conse- mitos. Reatualizando a história sagrada, imitando o compor-
guimos apenas esclarecer alguns aspectos essenciais. E con- tamento divino, o homem instala-se e mantém-se junto dos
tudo, ao falar um pouco mais longamente da iniciação, tive- deuses, quer dizer, no real e no significativo.
mos de omitir uma série de situações sócio-religiosas muito É fácil ver tudo o que separa este modo de ser no mun-
importantes para a compreensão do homo religiosus: não fala- do da existência de um homem a-religioso. Há antes de tudo
mos, por exemplo, do soberano, do xamã, do sacerdote, do o fato de que o homem a-religioso nega a transcendência, acei-
guerreiro etc. Quer dizer que este trabalho é forçosamente ta a relatividade da ““realidade””, e chega até a duvidar do.
sumário e incompleto: constitui apenas uma introdução muito sentido da existência, As outras grandes culturas do passado .
rápida a um tema imenso. também conheceram homens a-religiosos, e não é impossível,
TOR
[NISTENCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 165
16+ O SAGRADO E O PROFANO
que esses homens tenham existido inclusive em níveis arcai- cteiro. Não pode abolir definitivamente seu passado, porque
cos de cultura, embora os documentos não os registrem aí
ain-
ele próprio é produto desse passado. E constituído por uma
da. Mas foi só nas sociedades curopéias modernas que o ho- série de negações e recusas, mas continua ainda a ser asse-
mem a-religioso se desenvolveu plenamente. O homem. mo- diado pelas realidades que recusou e negou. Para obter um
derno a-religioso assume uma nova situação existencial: mundo próprio, dessacralizou o mundo em que viviam seus
reconhece-se como o único sujeito e agente da História e re-
antepassados; mas, para chegar aí, foi obrigado a adotar um
Jeita todo apelo à transcendência. Em outras alavras, não
comportamento oposto àquele que o precedia — e ele sente
aceita nenhum modelo de humanidade fora fora da condição hu- que este comportamento está sempre prestes a reatualizar-
mana, tal como ela se revela nas diversas situações históri- se, de uma forma ou outra, no mais profundo de seu ser.
cas. O homem faz- sea si próprio, e só consegue fazer-se com- Comojá dissemos, o homem a-religioso no estado puro é
um fenômeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das
pletamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza “a
sociedades modernas. A maioria dos sem-religião”" ainda,
o mundo. O sagradoé o obstáculo por excelência à sua liber-
dade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver ra-.
se comporta-religiosamente,-embora não esteja «consciente do
dicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente fato. Não se trata somente da massa das-“'superstições”” ou
livre.
dos “tabus” do homem moderno, que têm todos uma estru-.
quando tiver matado o último Deus.
Jão nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição fi- tura e uma origem mágico-religiosas. O homem moderno que
losófica. Constatemos somente que, em última instância, o se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda uma mi-.
homem moderno a-religioso assume uma existência trágica tologia camuflada e numerosos ritualismos degradados. Con-
e que sua escolha existencial não é desprovida de grandeza. forme mencionamos, os festejos que acompanham o Ano No-
Mas o homem a-religioso vo ou a instalação numa casa nova apresentam, ainda que
descende do homo religiosus e, quei-
laicizada, a estrutura de um ritual de renovação. Constata-
ra ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das.
situações assumidas por seus. antepassados, Er
Em suma, ele é se o mesmo fenômeno por ocasião das festas e dos júbilos que
o resultado de um processo de dessacralização. Assim como
acompanham um casamento ou o nascimento de uma crian-
a “Natureza “eo produto de uma secularização progressiva
ça, a obtenção de um novo emprego-ou-uma-ascensão social
do Cosmos obra de Deus, também o homem profano £ore-. etc,
sultado de uma dessacralização da existência humana. Isto | Poder-se-ia escrever uma obra inteira sobre os mitos do
significa que o homem a-religioso se constituiu por oposição homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espe-
a seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar” de toda, táculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta ““fá-
brica de sonhos”, retoma e utiliza inúmeros motivos míti-
religiosidade e de todo significado trans-humano, Ele reco-
nhece a si próprio na medida em que se “liberta” e se ““puri- cos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as pro-
fica” das “superstições” de seus antepassados. Em outras pa- vas iniciáticas, as figuras e imagens exemplares (a “Donze-
lavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda os la”, o “Herói”, a paisagem paradisíaca, o “Inferno” etc.).
vestígios do comportamento do homem religioso, mas esva- Até a leitura comporta uma função mitológica — não somente
ziados dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um her- porque substitui a narração dos mitos nas sociedades arcai-
ça mm
166 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 167
cas c a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da ria. Marx enriqueceu este mito venerável de toda uma ideo-
Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem logia messiânica judaico-cristã: por um lado, o papel proféti-
moderno consegue obter uma “saída do Tempo” compará- co e a função soteriológica que ele atribui ao proletariado;
vel à efetuada pelos mitos. Quer se “mate” o tempo com um por outro, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode
romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio, aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo
representado por qualquer romance, a leitura projeta o ho- eo Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro, É até
mem moderno para fora de seu tempo pessoal c o integra a significativo que Marx resgate, por sua conta, a esperança
outros ritmos, fazendo-o viver numa outra “história”. escatológica judaico-cristã de um fim absoluto da História;
A grande maioria dos “'sem-religião” não está, propria-. distingue-se nisso dos outros filósofos historicistas (por exem-
mente Jalando,.
Auta livre dos comportamentos
ut religiosos, is
das teo-mma plo Croce e Ortega y Gasset), para quem as tensões da histó-
ria são consubstanciais à condição humana e, portanto, ja-
amontoado gia a Re degradado É e carigata- mais poderão ser pi abolidas.
rae, póresta razão, dificilmente reconhecível. O processo de E
Mas não é apenas nas “pequenas
dessacralização da existência humana atingiu : muitas vezes ticismos políticos que se recencontram comportamentos reli
formas híbridas de baixa magia. e de religiosidade dEmiEsca, giosos camuflados ou degenerados: pode-se reconhecê- gs tam-
Não nos referimos às inúmeras “pequenas religiões” que pu-
lulam em todas as cidades modernas, às igrejas, seitas e es- até mesmo anti- -religiosos. “Citamos, por exemplo, «[oias
colas pseudo-ocultas, neo-espiritualistas ou intituladas her- “mo ou os movimentos a favor da liberdade sexual absoluta,
méticas — pois todos esses fenômenos ainda pertencem à es- ideologias onde é possível decifrar os vestígios da * “nostalgia
fera da religiosidade, ainda que se trate quase sempre de as- E desejo de restabelecer o estado edênico ante-
pectos aberrantes de pseudomorfose. Também não fazemos rior à queda, quando o pecado não existia e não havia rotura
alusão aos diversos movimentos políticos e profetismos sociais, entre as beatitudes da carne € a consciência.
cuja estrutura mitológica e fanatismo religioso são facilmen- Além disso, é interessante constatar quantas encenações
te discerníveis. Bastará, para dar um só exemplo, lembrar- iniciáticas persistem ainda em numerosas ações e gestos do
mos a estrutura mitológica do comunismo e seu sentido esca- homem a-religioso de nossos dias. Deixamos de lado, eviden-
tológico. Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos es- temente, as situações onde sobrevive, degradado, um certo
catológicos do mundo asiático-mediterrânico, a saber, o pa- tipo de iniciação; por exemplo, a guerra e principalmente os
pel mesas do JN (o “eleito”, o “ungido”, o ““inocen- combates individuais (sobretudo entre aviadores), feitos que
te”, o ''mensageiro””; nos nossos dias, o proletariado), cujos implicam “provas” equiparáveis às das iniciações militares
sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do tradicionais, embora, em nossos dias, os combatentes já não
mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a con- percebam o significado profundo de suas “provas” e, por-
sequente desaparição das tensões históricas encontram seu tanto, tirem pouco proveito de seu alcance iniciático. Mas
“precedente mais exato no mito da Idade de Ouro, que, segun- mesmo técnicas especificamente modernas, como a psicaná-
do múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da Histó- lise, mantêm ainda o padrão iniciático. O paciente é convida-
a
-—

168 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 169


do a descer muito profundamente em si mesmo, a fazer revi- passados religiosos, que o constituíram tal como ele é hoje.
ver seu passado, enfrentar de novo seus traumatismos — e, Além do mais, grande parte de sua existência é alimentada
do ponto de vista formal, essa operação perigosa assemelha- por pulsões que lhe chegam do mais profundo « de seu ser, da
se às descidas iniciáticas aos “Infernos”, entre os espectros, zona que se chamou de inconsciente. Um Hina exclusiva-
=—
e aos combates com os “monstros”, Assim como o iniciado mente racional é uma abstração; jamais 6) encontramos na
devia sair vitoriosamente das provas, em suma, '“morrer” realidade. “Todo ser humano é “constituído, , 20 mesmo tem-.
e “ressuscitar” para alcançar uma existência plenamente res- pa por umaa atividade consciente e por experiências irracio-
ponsável e aberta aos valores espirituais, o analisado de nos- - Ora, os conteúdos c as estruturas do inconsciente. apre-
sos dias deve afrontar seu próprio “inconsciente”, assediado sentam semelhanças surpreendentes com as imagens e figu-
de espectros e monstros, para encontrar nisso a saúde e a in- ras mitológicas. Não queremos dizer que as mitologias sejam
tegridade psíquicas, o mundo dos valores culturais. “produto” do inconsciente, pois o modo de ser do mito é jus-
Mas ainiciação está tão estreitamente ligada ao modo tamente que ele se revela como mito, ou seja, proclama que algo
de ser da existência humana, que um número considerável se manifestou de maneira exemplar. Um mito é “produzido” pelo
de gestos e ações do homem moderno ainda repete quadros inconsciente da.mesma maneira que se pode dizer que Mada-
iniciáticos. Inúmeras vezes, a “luta pela vida”, as “provas” me Bovary é “produto” de um adultério. .
e as “dificuldades” que dificultam uma vocação ou carreira Todavia, os conteúdos e estruturas do inconsciente são
repetem de algum modo as práticas iniciáticas: é em conse- o resultado de des. existenciais imemoriais, sobretudo
quência dos “golpes” que recebe, do “sofrimento” e das ““tor- das situações críticas, e É, “por essa razão, que o inconsciente
iate E remessa
turas”” morais, ou mesmo físicas, que sofre, que um jovem apresenta uma aura religiosa. Toda crise existencial põe de
“experimenta” a si próprio, conhece suas possibilidades, to- novo em questão, ao mesmo tempo, a realidade do Mundo
ma consciência de suas forças e acaba por tornar-se, ele pró- e a presença do homem no Mundo: em suma, a crise exis-
nr
sa
prio, espiritualmente adulto e criador (trata-se, é claro, da tencial é Creligiosa””, visto.
que, aos níveis arcaicos de pila
espiritualidade tal como é concebida no mundo moderno). ra,
o ser confunde-se
iefigafecom
aham o sagrado. Conforme JAvimos,
TnO sãoé aasas
ex-
Pois toda a existência humana se constitui por uma série de periência do sagrado que funda o mundo, e mesmo a religião
provas, pela experiência reiterada da '“morte”” e da “'ressur- mais elementaré, antes de tudo, uma ontologia. Em outras
reição”. É por isso que, num horizonte religioso, a existên- palavras, na medida em que o inconsciente é o resultado de
E veres Reno Rosen
cia é fundada pela iniciação; quase se poderia dizer que, na inúmeras experiências existenciais, não pode «“deixar de
medida em que se realiza, a própria existência humana é uma assemelhar- se aos diversos universos religiosos; Emis a reli-
iniciação.
Em suma, a maioria dos homens '“sem-religião”” parti- nas porque é indefinidamente repetível, mas também porque
lha ainda das pseudo-religiões e mitologias degradadas. Isso, é considerada de origem transcendental e, portanto, valori-
porém, não nos surpreende, pois, como vimos, o homem pro- zada enquanto revelação recebida de um outro mundo, trans-
fano descende do homo religiosus e não pode anular sua pró- humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas,
pria história, quer dizer, os comportamentos de seus ante- ao mesmo tempo, torna a existência “aberta” a valores que
170 O SAGRADO E O PROFANO EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA 171
já não são contingentes nem particulares, permitindo assim Mundo c a ideologia
que o exprime que lhe permitem fazer
ie ed
ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim das con- frutificar essa experiência
motas cds Ciperemeie individual,
ceucd com ““abri-la”” para o uni- >
tas, alcançar o mundo do espírito. versal, À imagem da Arvore é ainda muito frequente nos uni-
Não nos cabe desenvolver aqui todas as consequências versos imaginários do homem moderno a-religioso: constitui
da relação entre o conteúdo e as estruturas do inconsciente, um marco de sua vida profunda, do drama que se desenrola
por um lado, e os valores da religião, por outro. O objetivo no inconsciente e que diz respeito à integridade de sua vida
dessa alusão foi mostrar em que sentido mesmo o homem mais. psíguico-mental e, portanto, à sua própria existência. Mas,
francamente a-religioso partilha ainda, no mais profundo de enquanto o símbolo da Árvore não desperta a consciência to-
eorientado, Mas tal do homem, tornando-a “aberta” ao universal, não se po-
de dizer que o símbelo desempenhou completamente sua fun-
devaneios, fantasmas etc. — não conseguem alçar-se ao re- ção. Ele só em parte “salvou” o homem de sua situação in-
gime
inietsinhiiiia
dos mitos, justamente
ontológico Add porque
JOTC não são vivi- dividual — ao permitir-lhe, por exemplo, integrar uma crise
das pelo homem total e não transformam uma situação parti- de profundidade e ao devolver-lhe o equilíbrio psíquico pro-
cular em situação exemplar. Do mesmo modo que as angús- visoriamente ameaçado —, mas não o elevou ainda à espiri-
níricas ou ima- tualidade, ou seja, não conseguiu revelar-lhe uma das estru-
turas do real.
Este exemplo basta, parece-nos, para mostrar em que
ção do mundo e não fundam um comportamento, Um exem- sentido o homem a-religioso das sociedades modernas é ain-
neem meme
plo nos permitirá perceber melhor as diferenças entre as duas da alimentado e ajudado pela atividade de seu inconsciente,
categorias de experiência. A atividade inconsciente do homem sem que por isso alcance uma experiência e uma visão do
moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos, e mundo propriamente religiosa. O inconsciente oferece-lhe so= / | ug)
cada um tem uma certa mensagem a transmitir, uma certa luções para as dificuldades de sua própria existência e, neste+
missão a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilíbrio sentido, desempenha o papel da religião, pois, antes de tor*
da psique ou restabelecê-lo. Conforme vimos, o símbolo não nar uma existência criadora de valores, a religião assegura-
somente torna o Mundo “aberto”, mas também ajuda o ho- lhe a integridade. De certo ponto de vista, quase se poderia
mem religioso a alcançar o universal. Pois é graças aos sím-
bolos que o homem sai de sua situação particular e se “abre” 5+
nas trevas de seu in-
para o geral e o universal. Os símbolos despertam a expe- consciente— o que significa também que as possibilidades
riência individual e transmudam-na em ato espiritual, em de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nes-
compreensão metafísica do Mundo, Diante de uma árvore ses seres, muito profundamente neles próprios. De uma pers-
- - nã ú a BR8 SO ' a
qualquer, símbolo da Arvore do Mundo e imagem da Vida pectiva cristã, poder-se-ia dizer igualmente que a não-religião
cósmica, um homem das sociedades pré-modernas é capaz equivale a uma nova “queda” do homem: o homem a-
de alcançar a mais alta espiritualidade: ao compreender o religioso teria perdido a capacidade de viver conscientemen-
. . . A om o
símbolo, ele consegue viver o universal. E a visão religiosa do te a religião e, portanto, de compreendê-la e assumi-la; mas,
172 O SAGRADO E O PROFANO
no mais profundode seu ser, ele guarda ainda a recordação
dela, da mesma maneira que, , depois da primeira * “queda”,
meme
e embora espiritualmente. “cego, seu antepassado, o oem
primordial, conservou inteligência suficiente p;
tir reencontrar.os traços de Deus visíveis no Mundo, Depois
da primeira “queda”, a religiosidade caiu ao nível da cons-
ciência dilacerada; depois da segunda, caiu ainda mais pro-
fundamente, no mais fundo do inconsciente: foi “esquecida”?
Param aqui as considerações do historiador das religiões.
É aqui também que principia a problemática própria ao filó- BIBLIOGRAFIA
sofo, ao psicólogo e até mesmo ao teólogo,
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