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MALUCOS

Que espécie de malucos somos nós, que procriamos para lançar na fornalha do tempo seres
que amamos desde o nascimento? Que tipo de desassisados são os homens ao colocarem no
mundo - para desaparecerem, no máximo dentro de décadas,- crianças que amam desde o
momento em que as veem pela vez primeira?

Seremos, os tantos, malucos? Tudo depende de como se olha a vida. Com fé ou descrença,
esperança ou amargura, com caridade ou indiferença.

Há muito desentendo a pregação marxista de fraternidade diante do seu materialismo. Como


admitir sentimentos no materialismo dialético? Como imaginar o amor entre ateus? Somente
parece possível se os entendermos como incoerentes. Afinal, em sendo humanos, não lhes
posso embretar na pura preservação da espécie.

Seremos malucos por ter esperança? Um autor português deixou um legado de amargura em
pelo menos duas de suas obras: “Palavras cínicas” e “Cantáridas e violetas”. Na primeira delas
nos dedica, como ostra doente, uma “pérola”: “Mas para que amar? Para que bater? Todo o
amor acabará na morte. O amor é dos romances. Lá é que viveram Romeu e Julieta, o
apaixonado Rafael, Paulo e Virgínia. Trasladar o romance para a vida é uma loucura
inconcebível. Enquanto o pobre D. Quixote quebrava lanças e corria mundo pela sua Dulcinéia,
esta aquecia a cama todas as noites a algum cavaleiro menos andante e mais positivo”.

No prefácio da segunda obra citada, Albino Forjaz de Sampaio resume sua descrença, sua
amargura, sua indiferença: “Da fogueira em que o tempo nos consome, do fumo e flama, ficam
apenas cinzas, maguas, saudades. Isto para o leitor é cinza fria, lixosa coisa que remata no
esquecimento ou cinza aquecedora em que ha ainda brazas? Quem o sabe. O leitor dirá. Se o
leitor sente um pouco as cousas que o escriptor lhe conta, vive com elle a vida que elle viveu. E
um dia, quando for velho, recorda-se. A saudade ha-de vir, porque o amanhã é sempre peior que
o hoje”.

Um ama, enquanto o outro amarga. Quem é de fato maluco?

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Há loucuras históricas, como a do Baile da Ilha Fiscal, organizado em homenagem aos oficiais
do encouraçado Almirante Cochrane, da marinha chilena, que aportara na Baía de Guanabara
para um visita de cortesia ao Brasil.

No dia 9 de novembro de 1889, segundo Maria Renzi, “Os homenageados chilenos não
imaginavam que aquele governo que os recebera com tanto brilho estivesse apagando as luzes
e que seriam espectadores do momento histórico em que a única monarquia das Américas ruía
— ancoraram sua embarcação numa monarquia e zarparam da mais nova república sul-
americana”.

Três mil convidados e uns mil e quinhentos penetras participaram do evento que Aurélio de
Figueiredo resumiria no quadro “A ilusão do Terceiro Reinado”. Um baile para conservadores,
liberais e arrivistas de toda espécie. Afinal, como escreveu Machado de Assis, “não é preciso ter
as mesmas idéias para dançar a mesma quadrilha”.

Seis dias depois do baile um golpe mixuruca derrubaria D.Pedro II, concluindo uma trama urdida
por militares medíocres, iluministas e uns tantos inconformados com a Lei Áurea. Combalido por
doenças, o Imperador brasileiro, respeitado mundo afora - que travara relações com Pasteur,
Vitor Hugo, Alexandre Herculano, Ulysses Grant, Rainha Vitória e outros cientistas, escritores,
presidentes e nobres europeus,- não se dispôs a resistir ao golpe e no vapor Alagoas deixaria o
Brasil, para nunca mais voltar.
Dois anos maias tarde, já viúvo, morreria em Paris, enquanto este país mergulhava na pândega
república, que nos trouxe até aqui debaixo de atraso, injustiça e corrupção. Digno, muito além do
que se poderia esperar de um cidadão naquele momento, recusou a pensão que lhe foi oferecida
e concluiu sua existência num hotel de segunda linha.

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Nos tempos difíceis que vivemos, com o horizonte plúmbeo pelos descaminhos da humanidade,
temos à mão o testamento espiritual de Bento XVI: “Há já sessenta anos que acompanho o
caminho da Teologia, especialmente o dos estudos bíblicos, e tenho visto, no suceder das
gerações, teses aparentemente inabaláveis desmoronarem-se, revelando-se meras hipóteses: a
geração liberal (Harnack, Jülicher etc.), a geração existencialista (Bultmann etc.), a geração
marxista. Vi e vejo como, do emaranhado de hipóteses, a razoabilidade da fé ressurgiu e está
ressurgindo de novo. Jesus Cristo é verdadeiramente o Caminho, a Verdade e a Vida; e a
Igreja, com todas as suas insuficiências, é verdadeiramente o seu Corpo”.

Segundo Paulo, a mensagem da Cruz é loucura para os que estão sendo destruídos, mas poder
de Deus para os que buscam a salvação: “Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência
dos homens cultos”. Bento XVI teve a coragem que se espera do Vigário de Cristo para projetar a Igreja
como o verdadeiro farol, sem vieses ou eufemismos.

Loucura por loucura, sabemos que uma dentre as piores é viver sem sentido. Mas a pior delas é
fechar os olhos diante do que nos foi transmitido e recusar o banquete para o qual fomos
convidados.

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