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ENSAIO

Independência do Brasil na dinâmica


constitucional ibero-americana
A crítica contundente de que a Corte joanina havia assumido uma política muito mais voltada
para a América aumentava os descontentamentos em Portugal, bem como noutras partes do
Brasil que não se sentiam contempladas com o favorecimento do Centro-Sul. Este foi o
ambiente em que eclodiu o movimento do Porto e a instalação das Cortes de Lisboa.

Andréa Slemian
15 de Agosto de 2022, 6:45

A pintura de Veloso Salgado, que decora o interior da Sala das Sessões do Parlamento, mostra Passos Manuel,
durante os trabalhos das Cortes de 1821, que aprovariam a primeira Constituição Portuguesa
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Na madrugada do dia 26 de fevereiro de 1821, uma grande agitação de tropas,


comerciantes e pequenos proprietários no Largo do Rocio, Rio de Janeiro, exigiu que D.
João VI jurasse o texto constitucional que se fazia em Portugal. Como é sabido, o
movimento revolucionário que ocorrera no Porto no ano anterior rapidamente ganharia
adeptos no Reino e culminaria na convocação nas Cortes Constituintes da Nação
Portuguesa, instaladas em Lisboa, em janeiro de 1821 — um duro golpe ao Governo
joanino que se encontrava no Brasil desde 1808
(https://www.publico.pt/2022/08/02/culturaipsilon/noticia/transferencia-corte-brasil-
2014342) e que não retornara à Europa após a derrota de Napoleão Bonaparte. Adesões
ao movimento do Porto também ocorreriam rapidamente na América, a começar pelo
Norte, em janeiro de 1821, seguido da Bahia, constrangendo o monarca a aceitá-lo.

Após seu juramento, feito em público por ele próprio na presença do príncipe Pedro
(https://www.publico.pt/2020/08/23/culturaipsilon/noticia/d-pedro-iv-d-pedro-i-brasil-
meteoro-1928542) e demais autoridades, ficou decidido a escolha dos eleitores que
escolheriam os deputados da província para as Cortes. Essa ocorreria em um clima de
grande tumulto, no dia 21 de abril, onde se exigiu a formação de uma Junta Provisória de
Governo, a partida imediata da família real para Lisboa e a aceitação da Constituição
espanhola de Cádis enquanto o texto português não fosse aprovado. A reunião terminou
à força com a chegada de tropas a altas horas da noite e, dois dias depois, decidiu-se pelo
embarque imediato de D. João VI para Portugal,
(https://www.publico.pt/2020/08/19/culturaipsilon/noticia/ultimos-tempos-brasileiros-d-
joao-vi-1928440) enquanto o príncipe D. Pedro ficava no Brasil.

Um leitor atento poderia perguntar: o que significava a adoção do texto constitucional


aprovado pela nação vizinha? Pergunta que seria reforçada pelo fato de que a mesma
Constituição chegou a ter validade igualmente no Reino de Portugal, e mesmo viesse a
influenciar as soluções que foram pensadas no Império português. Responder a ela nos
permite tratar dos vínculos que uniam o mundo ibérico e mesmo ibero-americano, bem
como entender aspectos importantes do próprio ambiente constitucional quando da
Independência do Brasil (https://www.publico.pt/bicentenario-independencia-brasil).
Para isso, convido meu/minha leitor/a a me acompanhar em dois caminhos que
considero bastante articulados para respondê-la: primeiramente, entender o contexto
comum de articulação política entre as Américas, espanhola e portuguesa, no momento
das Independências; e, em segundo lugar, refletir como ambos espaços partilhavam de
traços de uma cultura constitucional de suas tão diversas partes.

Guerras de independência
Comecemos pelo primeiro. Hoje é impossível defender que o processo de Independência
do Brasil foi uma absoluta exceção na América. O fato de ali vingar uma alternativa de
monarquia constitucional esteve muito mais vinculada à presença de um representante
legítimo da Corte bragantino na América, em função do translado da Família Real ao Rio
de Janeiro, do que devido a um processo suis generis. A conjuntura revolucionária foi
vivida em ambos impérios ibéricos (https://www.publico.pt/2009/03/27/jornal/quando-
as-tropas-espanholas-se-aliaram-a-napoleao-para-tomar-a-invicta-300627), ainda que com
tempos distintos. Na Espanha, a entrada das tropas de Napoleão iniciou não apenas uma
guerra interna, como uma verdadeira acefalia do poder do monarca que foi
impossibilitado de governar desde 1808. Em Portugal, isso precipitou, como é sabido, a
decisão final da partida do monarca à América, com o intuito primordial de preservar a
integridade física das pessoas reais; e, obviamente, o resguardo dos seus domínios
americanos que constituíam parte fundamental para a economia portuguesa.

Nada disso era infundado, e a decisão esteve longe de ser um ato intempestivo da Corte
bragantina. É sabido que logo após a repercussão na América espanhola dos
acontecimentos ocorridos na Península, em várias partes assistiu-se à proliferação de
movimentos políticos em nome do governo dos territórios diante da incapacidade do rei
em fazê-lo. Sabe-se como todos esses se faziam em nome e defesa do monarca, mas
terminariam sendo o estopim de projetos autonomistas e das guerras de independência
que tomaria corpo por mais de uma década, em várias localidades. Nesse sentido, a
solução do translado da Corte portuguesa à América, por mais inusitada aos nossos
olhos hoje em dia e também à época pelo seu ineditismo, fora bastante eficaz em parte
de seus propósitos por mais de uma década.
Se a Corte portuguesa acompanhava de perto os acontecimentos na Europa, logo faria o
mesmo para o que sucederia na América espanhola. Os dois periódicos que mais
circulavam pelos territórios luso-brasileiros, a Gazeta do Rio de Janeiro — criada em 1808
após a instalação da Imprensa Régia na cidade — e o
(https://www.publico.pt/2022/08/12/culturaipsilon/noticia/invencao-brasileiros-
2015586)Correio Braziliense
(https://www.publico.pt/2022/08/12/culturaipsilon/noticia/invencao-brasileiros-2015586)ou
Armazém Literário, davam mostras dessa preocupação. Muitas eram as notícias que
forneciam sobre os vizinhos, as quais tenderam a aumentar muito após a instalação das
Cortes Constituintes de Cádis, e a formação de Juntas de Governo autónomas, como
ocorreu em Quito, Venezuela, Nova Granada, Nova Espanha, Rio da Prata entre 1809 e
1810. Especialmente o Correio, publicado pelo emblemático Hipólito José da Costa desde
Londres, dedicaria páginas e páginas do jornal com artigos de opinião sobre o processo
desencadeado na América espanhola, por se dizer consciente de que a portuguesa
estaria na mesma conjuntura.
Exemplar impresso da Carta, de 1827, com gravuras representando a família real, com D. Pedro IV de Portugal, I do
Brasil

Mas a Corte joanina não apenas observava a situação, como também intervinha
diretamente nesse processo. O que se fez sentir especialmente na região do Rio da Prata,
área de confluência histórica entre os súditos dos monarcas português e espanhol, cujos
vínculos económicos e políticos converteram sua área num especial ponto de tensão
para o Brasil. O temor de que a revolução se expandisse na região fez com que o próprio
D. João decidisse por duas intervenções militares em Montevideo, sob a justificativa de
deter as tropas de José Gervásio Artigas na Banda Oriental (posterior Uruguai). Afinal, a
ação do monarca português na América era no sentido de fortalecer os valores
tradicionais vinculados à ordem monárquica. Também Carlota Joaquina atuaria como
articuladora de um projeto de integração dos territórios do Prata sob sua égide –
conhecido na historiografia como “carlotismo” — sob a justificativa que ela teria
legitimidade de governar a área como irmã do monarca espanhol, Fernando VII. Mesmo
que a alternativa não tenha vingado, a princesa encontraria muitos adeptos para sua
proposta monarquista na região.

No Rio de Janeiro, os direcionamentos do monarca se alinhavam aos regimes mais


conservadores na década de 1810. É o que explica sua aproximação com política da Santa
Aliança, mimetizado pelo casamento em 1817 do jovem príncipe D. Pedro com D.
Leopoldina de Habsburgo, filha do imperador austríaco baluarte antirrevolucionário da
época, Francisco I. Mas essas ações devem ser entendidas como respostas à conjuntura
americana que igualmente se fazia notar na parte portuguesa. No mesmo ano de 1817, a
revolução chegava em Pernambuco, quando um movimento de ruptura com a Corte
joanina ganhou forma, proclamando um regime autónomo na província em nome de
uma constituição. Instalou-se um governo provisório que, bastante marcado por ideais
republicanos, funcionou por três meses, sendo duramente reprimido por tropas
enviadas desde a Bahia. Movimentações semelhantes de repúdio ao direcionamento do
Império se fizeram sentir desde Portugal, como se vê na emblemática ação que envolveu
Gomes Freire, e na rápida resposta igualmente repressiva no mesmo ano.

A crítica contundente de que a Corte joanina havia assumido uma política muito mais
voltada para a América aumentava os descontentamentos em Portugal, bem como em
outras partes do Brasil que não se sentiam contempladas com o favorecimento do
Centro-Sul. Este foi o ambiente em que eclodiu o movimento do Porto e instalação das
Cortes de Lisboa (https://www.publico.pt/2021/09/07/opiniao/opiniao/independencia-
brasil-impulso-separacao-partiu-portugal-1976231), as quais teriam desdobramentos tão
contundentes na América como as Cádis, seguindo os passos da volta dos liberais em
Espanha no mesmo ano de 1820. Inclusive no que toca aos impasses na construção de
uma unidade constitucional entre os territórios da Península e os da América, que
terminaram resultando nas Independências de parte a parte. Não obstante, uma potente
historiografia nacional no Brasil do século XIX, construiria uma narrativa da
Independência afastando-a da conjuntura comum vivida pela América Latina, bem como
das conexões entre seus processos no mundo ibero-americano.

PÚBLICO PAULO PENA AND SIBILA LIND

40 anos da Constituição - O que mudou em 194 anos


Fernando Rosas, historiador, resumiu para o PÚBLICO o que mudou em Portugal desde que foi aprovada a primeira
Constituição do país, em 1822. É uma viagem às principais mudanças na sociedade e no sistema político, da monarquia
liberal até à saída da troika, que mostra como a liberdade se pode ganhar e perder.
Ler o artigo no acervo.publico.pt >

Um modus operandi distinto


O segundo ponto para uma necessária reflexão acerca da recepção da Constituição de
Cádis em terras portuguesas vincula-se à cultura comum vivida nesse amplo espaço
ibero-americano. Mais precisamente, uma tradição jurídica que vem à tona quando dos
movimentos revolucionários e contamina tanto as soluções monárquicas, como
republicanas que se desenvolveram na América. Não há como negar que os movimentos
constitucionais que se deflagram na Península Ibérica foram tributários de princípios
sintetizados a partir da experiência francesa, no que se incluiu sua reformulação por
Napoleão e mesmo com a Restauração em 1814 (para o caso especial das monarquias
constitucionais). A força que teria a concepção de centralidade da lei de aprovação de
Códigos, de separação dos poderes e especificamente de assembleias legislativas e
constituintes como artífices da “vontade” da nação — diante da necessidade de controlar
o poder dos reis, bem como o dos juízes (que deveriam ser meros aplicadores de lei) —,
teria enorme transcendência no mundo ibero-americano. Mas diferentemente do que
ocorreu na França, onde houve uma clara marca de ruptura com o passado normativo,
que passaria a ser chamado desde então Antigo Regime, o mesmo não se daria com tanta
contundência na Península e na América ibéricas. Vejamos.

Tanto em Espanha como em Portugal, ainda que em momentos distintos, houve uma
clara ruptura em relação à situação política em curso, mas não totalmente com o
passado jurídico existente. Obviamente que houve intentos para isso, os quais tiveram
que conviver com o modus operandi social existente, e mesmo com a vontade política
para implementação de reformas, sobretudo após a reação aos momentos
revolucionários. As Constituições aprovadas constituíram-se em significativos
instrumentos políticos, mas não seriam capazes de transformar toda a ordem jurídica
vigente. Por uma questão central: nem a Constituição de Cádis nem muito menos a
Portuguesa aprovada em 1822 tiveram um programa articulado de derrogação das leis
antigas, as quais se constituíam em uma grande massa de regulamentos, alvarás, ordens,
etc., que continuaram a ter intensa validade para os novos regimes que se formariam.
Era assim que o aparato legal herdado teria um papel importante na construção liberal
que se instituiu em todas as suas partes. O mesmo se viveria na Ibero-América no
processo das Independências, onde inclusive os processos políticos mais radicais tiveram
que dar conta de sua herança na construção de novos regimes.
Em Portugal, a força da tradição apareceu igualmente no discurso de “regeneração” da
monarquia de que os próprios revolucionários fariam amplo uso. Ela poderia ser lida
como uma estratégia usada por eles para angariarem adeptos à causa, mas merece ser
igualmente pensada a partir da ressignificação de elementos do passado que teria sido
corrompido na política portuguesa. Efetivamente, o movimento foi uma dura crítica ao
Governo joanino, já que uma das suas principais reivindicações era a imediata volta do
monarca à Europa. Dessa forma, tomar a Constituição de Cádis e obrigar o monarca a
aceitá-la era claramente uma ação política que marcava a vinculação que os portugueses
sentiam em relação às experiências constitucionais na Península. Vale dizer que muitos
dos temas de discussão nas Cortes em Portugal, e também posteriormente na Assembleia
Constituinte do Império no Brasil, se valeriam da experiência e mesmo de soluções
propostas desde Cádis — como para a questão da eleição dos deputados, para a
problemática da cidadania, acerca da divisão política das províncias, entre outras.

No Brasil, a alternativa da independência de 1822 construiu-se em um ambiente de


tensão com as Cortes. Vale dizer que em uma das apenas seis leis aprovadas pela
Assembleia Constituinte instalada no ano de 1823 declarava “em vigor a legislação pela
qual se regia o Brasil até 25 de abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor
D. Pedro, como Regente e Imperador daquela data em diante, e os decretos das Cortes
portuguesas que são especificados”, segundo ela mesma, “enquanto se não organizar um
novo Código, ou não forem especialmente alteradas”. Com isso, integrava-se o passado
jurídico português no novo regime constitucional e desprezava-se apenas parte do que
havia sido promulgado pelas Cortes de Lisboa. Solução significativa de todo o processo
aqui descrito.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Andréa Slemian
Andréa Slemian é graduada em História pela Universidade de São Paulo, possui mestrado
(2000) e doutoramento (2006) na mesma instituição. Desde 2011, é professora da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP), onde lecciona na graduação e na pós-graduação. É especialista
em História do Brasil, entre os séculos XVIII e XIX, com ênfase no processo das reformas
ilustradas, da Independência e da formação do Estado nacional. Actualmente, dedica-se aos
temas vinculados à justiça e petições, com interesse particular numa história integrada com a
América ibérica. Foi editora-chefe da Revista Almanack (http://www.scielo.br/alm)) (2019 a 2021)
e actualmente é editora da Revista Brasileira de História (https://www.scielo.br/j/rbh/) e bolsista
de Produtividade em Pesquisa CNPq (nível 2).

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