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Introdução

O período da primeira república brasileira foi um período conturbado, de muitas mudanças e


continuidades. Dentre essas continuidades podemos citar que mesmo após o fim do império e
a instauração da república, a política institucional ainda era dominada pela elite aristocrática,
ou seja, pelas famílias mais abastadas. Esse controle quase que total dos meios políticos fez
com que fosse privilegiado os seus interesses políticos em detrimento do restante da população.
Há, dessa forma, uma contradição entre o discurso republicano, que pregava uma cidadania
ampliada e uma participação popular, com o que era observado nas esferas de poder. Além da
exclusão desses espaços, observamos legislações como o código penal de 1890 que tipifica e
criminaliza pessoas historicamente subjugadas e as práticas sociais e culturais associadas a
esses grupos. No presente trabalho analisamos então a forma pela qual se deu esse processo
no que tange às pessoas negras. Ou seja, queremos discutir como era feita a criminalização e
os seus impactos, destacando também suas formas de resistência.

A república e o código penal de 1890

Com o a abolição da escravidão e a instauração da república, houve a construção de um


discurso de que a população teria mais participação nos rumos do governo. Porém essa
cidadania, essa população não incluía a todos. O poder institucional ficava dessa forma, de
forma geral, concentrada nas famílias aristocráticas ( FERREIRA, PINTO, 2017 ).
As pessoas negras recém libertas não obtiverem qualquer reparação ou auxílio por parte do
governo. Essa situação de descaso fez com que essas pessoas ficasse reféns de trabalho que
remetiam muito a escravidão(SERAFIM, 2009,pág 4).
Esses trabalhadores se viram obrigados a irem para os grandes centros urbanos da época em
busca de algum emprego que garantisse minimamente sua sobrevivência. Essa ocupação negra
dos centros urbanos, em especial o caso do Rio de Janeiro, vai preocupar as autoridades, visto
que essas queriam passar uma imagem de um lugar civilizado e branco para o resto do mundo.
Haverá, dessa forma uma tentativa de reforma, de “modernização” da capital da república (DE
ARAÚJO TEIXEIRA, 2018 , pág 299).
Outra estratégia que compunha essa medida diz respeito ao incentivo a imigração , em especial
a europeia. A partir dessa política é que houve a tentativa de branqueamento do país e
principalmente um branqueamento da imagem internacional que o Brasil tinha. Com uma
maior disponibilidade de mão-de-obra os empregadores preferiam esses imigrantes do que a os
negros recém liberto (SERAFIM, 2009, pág 6). Essa falta de emprego aumentou ainda mais o
cenário de marginalização dessa população, que tinha de encontrar outros meios para
sobreviver, surgindo daí a figura do malandro (DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018, pág 299).
Ainda que essa figura também seja marginalizada e sofra com o sistema racista da época, ele
consegue ter voz e mostrar a sua cultura (DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018, pág 299), que
rapidamente se transforma em uma forma de resistência a esse sistema. Logo as autoridades
republicanas começam a reprimir e criminalizar essas práticas culturais.
Como exemplos dessa repressão nós temos as colônias correcionais, e o código penal de 1890
que legaliza esse processo. No que tange ao código penal, observamos um processo de
etiquetamento criminal, ou seja, a atenção da autoridade passa dos fatos para os sujeitos. Esse
etiquetamento em muitos casos faz com que o indivíduo reforce o estereótipo “ Assim,
especialmente entre jovens, uma vez percebida a atribuição de uma identidade violenta, a
pessoa passa a se comportar de forma a reforçar aquela identidade” (DE ARAÚJO TEIXEIRA,
2018, pág 303).
Assim, a criminalização não nasce nos indivíduos, mas sim nas relações sociais(DE ARAÚJO
TEIXEIRA, 2018, pág 306), ou seja na forma pela qual um determinado grupo social é visto
pelas camadas dominantes da sociedade.
Essas práticas de criminalização e etiquetamento estão muito presente no código penal de 1890,
quando analisamos, por exemplo, artigos como o artigo 157 que criminaliza o candomblé e
outra práticas religiosas de origem africana (DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018, pág 307) ou ainda
no artigo 402 que criminaliza a prática da capoeira, a chamada capoeiragem (SERAFIM, 2009
, pág 10).
O que era esperado a partir desse código e de outras medidas tais como a reforma Passos era
uma disciplinarização da população, seguindo o modelo europeu(SERAFIM, 2009, pág 6).
Havia, portanto, uma tentativa de eliminação da herança negra do Brasil(SERAFIM, 2009,
pág 7).
A capoeira, como dito anteriormente, foi uma das práticas perseguidas e proibidas. A capoeira
surge no contexto dos negros escravidão que a praticavam em espaços de vegetação baixa, as
capoeiras, daí o nome da prática( SERAFIM, 2009, pág 9). Essa prática pode ser vista hoje
como uma complexa manifestação cultural que inclui, mas não se restringe, a defesa pessoal e
a dança, por exemplo(SERAFIM, 2009, pág 8).
No entanto para as autoridades da época essa era uma das atividades que levava a vadiagem(
SERAFIM, 2009, pág 9) e, por isso, deveria ser reprimida. Havia ainda na lei certos agravantes
tais como o fato de fazer parte de algum grupo de capoeira, o que tornava a pena maior(
SERAFIM, 2009,pág 10).
No entanto, ainda que as autoridades reprimiram a prática, ela ainda fazia uso desta por meio
de capangas que eles contratavam, por exemplo. O serviço desses capangas era, por vezes,
usado até para capturar outros capoeiristas ( SERAFIM, 2009, pág 10).
A situação começa a mudar no fim da primeira república que vai ter um contexto de maior
adesão, em especial de jovens brancos da elite, na prática da capoeira. Daí a capoeira passa a
ser tratada como esporte, enquanto algum tempo atrás era tratado como uma doença moral(
SERAFIM, 2009, pág 11). Esse processo de descriminalização não é o foco do presente
trabalho, por isso nos contentaremos em mencionar alguns pontos, como o descrito acima.
Outra prática cultural que foi reprimida foi o samba por, assim como a capoeira, também
apresentar uma clara herança negra, africana e por também levar a vadiagem, segundo as
autoridades(DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018 , pág 308)
Havia, dessa forma, além da proibição das rodas de samba, uma perseguição e tomada de
instrumentos por parte das forças policiais, além disso havia alguns agravantes semelhantes
aos da capoeira, como fazer parte de um grupo ou reincidência(DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018
, pág 308).
Para além do código penal que criminaliza essas práticas havia um espaço especial para o
pagamento da pena desses delitos, as chamadas colônias correcionais. Existiram muitas dessas
colônias em diferentes estados, porém neste trabalho abordamos uma em específico a colônia
correcional de Bom Destino, em Minas Gerais.

A colônia correcional de Bom Destino


A colônia em questão era localizada na região central do estado de Minas Gerais, próximo a
atual capital, Belo Horizonte, Bom Destino era de início uma fazendo, tendo sida convertida
depois para receber os detentos.
As autoridades mineiras do período investiram não somente na construção desse e de outros
espaços, mas fez também uso de uma retórica que reforçava determinados estereótipos dos
mineiros. Estereótipos estes que reforçam a posição dele enquanto aptos a lutarem contra a
vadiagem. O principal mito se dá então na figura do mineiro trabalhador, do qual as autoridades
vão se vangloriar, contribuído para consolidação do mito e para o apoio público com relação à
política de construção desses espaços( SILVA, 2006, pág 49).
Outro ponto interessante dessa colônia diz respeito a sua localização, apesar de se encontrar
próximo da zona urbana, a área se caracteriza enquanto uma zona rural. Essa paradoxal
proximidade e ao mesmo tempo distância para com a cidade era proposital.
A cidade era vista como o mundo do trabalho e as pessoas negras eram vistas como o oposto
desse mundo já que eles eram considerados vadios. No entanto, esse local era o que mais
continha essa população. Dessa forma é muito interessante que uma colônia ficasse próxima às
cidades, dado que isso facilitaria o transporte dessas pessoas das cidades para as colônias(
SILVA, 2006, pág 50).
A colônia de Bom Destino foi inaugurada em 1896 com o objetivo de “disciplinar os indivíduos
vadios para o trabalho”, essa, e outras colônias, tinham uma relação muito estreita com as
unidades policiais da época. Essa instituição era inclusive muito bem vista pelos chefes de
polícia já que elas mantinham a ordem social(SILVA, 2006, pág 50).
Entre janeiro de 1898 e maio de 1899, a referida colônia recebeu 161 reclusos, o que é cinco
vezes mais do que no primeiro ano de funcionamento(SILVA, 2006, pág 57). Esses dados
mostram que houve uma repressão intensiva no estado de Minas Gerais, ou pelo menos na área
central do estado, dado que essa colônia teria ajudado a amenizar o problema da vadiagem em
Belo Horizonte( SILVA, 2006, pág 58).
Porém quando se analisa outras evidências podemos observar que essa colônia apresentava
diversos problemas como a falta de financiamento por parte do estado, o que fazia com que
funcionários não recebessem seus salários, por exemplo(SILVA, 2006, pág 59).
Para além disso essa instituição não era rentável para o estado, não produzia lucro. O objetivo
era que através do trabalho agrícola dos detentos fosse feita um boa produção que
posteriormente seria vendida gerando lucro ao estado, porém isso não se deu na prática. Nesse
momento começam as discussões sobre a continuidade ou não dessas instituições( SILVA,
2006, pág 59).
A colônia de Bom Destino procurou alternativas para a falta de lucratividade, mudando um
pouco as características de suas atividades. Passaram a investir no corte de madeira, o que
também não foi produtivo. Isso foi muito negativo para os comandantes da colônia tendo em
vista o aumento do número de fugas desses espaços( SILVA, 2006, pág 61).
O fato de haver muitas fugas e dos detentos serem vigiados por homens armados durante suas
atividades ( SILVA, 2006, pág 62)já são um pequeno indício da vivência dessas pessoas nesse
espaço, não sendo ,talvez, exagero, em colocá-los enquanto campos de concentração.
Diante disso aumentam as discussões sobre a relevância dessas colônias. Por um lado, os que
defendem o fechamento desses espaços argumentam que não são locais rentáveis, pelo
contrário estaria exigindo demasiado financiamento do estado. Por outro lado, os que
defendiam a continuidade argumentam com base no medo de que a vadiagem se espalha pelas
cidades, causando a temida desordem( SILVA, 2006, pág 63).
Em 1901 tem-se então o fechamento dessa colônia, com a transferência dos 15 detentos
restantes para uma prisão comum em Sabará(SILVA, 2006, pág 63). Temos então diante desse
exemplo que houve um grande esforço dos governos da república na repressão à vadiagem, e
que essa política de repressão não ficou restrita ao Rio de Janeiro, como no exemplo em que
acabamos de explorar.
Porém, se de um lado ouve essa repressão, do outro ouve resistência. Essa resistência se deu
de inúmeras formas diferentes, em especia através de l manifestações culturais, tais como o
candomblé, a capoeira e o samba.

“Sem samba não dá”: o samba enquanto resistência

" o samba é o pai do prazer, o samba é filho da dor" - Desde que o samba é samba ( Caetano Veloso e
Gilberto Gil)
"O morro foi feito de samba, samba pra gente sambar" Não deixa o samba morrer ( Alcione)

O samba surge no contexto periférico do Rio de Janeiro e logo recebe uma grande adesão
popular, em especial das pessoas negras. Logo, como dito anteriormente o samba começa a ser
visado pelas autoridades da época. Dá-se início então um processo de resistência e luta que ao
defender esse estilo musical, defendia de forma mais ampla a cultura e a vida das pessoas
negras( DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018).
Nesse sentido podemos observar que várias músicas do período já tratam de temáticas como
resistência e a identidade desse grupo, músicos como Noel Rosa em sua música “Não tem
tradução” enaltece a cultura do samba colocando até acima das culturas ditas civilizadas, as
culturas europeias(DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018 , pág 312).
Outros músicos reforçam e celebram a figura do malandro como uma forma de afirmação
social. Nesse processo eles celebram também os locais de origem dos músicos e do samba, os
morros do Rio (DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018 , pág 312).
Como exemplo dessa exaltação da figura do malandro temos a música “Lenço no pescoço” de
Wilson Batista (DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018, pág 313). Há dessa forma um processo de
apropriação e de ressignificação por parte da periferia daquela política de etiquetamento. É
feito uma positivação desses termos, fazendo com que se tornem motivo de orgulho e
identificação.
Um outro elemento interessante do samba da época, e até do atual,diz respeito ao uso de gírias
e expressões. Essa prática além de ir ao encontro da linguagem e vivência dessa população,
também é uma forma de excluir do samba as grandes elites que sempre os excluíram da
sociedade, dado que essas elites não tinham familiaridade com as expressões do cotidiano das
periferias(DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018 , pág 316).
Esse uso das expressões também era muito interessante para se passar mensagens que somente
as pessoas daquele contexto conseguiriam entender, ou seja, era possível se comunicar, criticar
de forma que as elites não compreendessem totalmente( DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018, pág
316).
Para retomar a letra do início dessa seção “ o samba é o pai do prazer, o samba é filho da dor”,
ela resume bem o que vem sendo discutido nesse artigo dado a dualidade dessa história, uma
história de luta de resistência, mas também uma história do prazer, da diversão que esse povo
necessitava.
“A música é uma denúncia das condições em que vivem as pessoas dos morros e as situações
que elas enfrentam diariamente”(DE ARAÚJO TEIXEIRA, 2018 , pág 316), ou seja, o samba
é resistência.

Referências

DE ARAÚJO TEIXEIRA, Ricardo Augusto. RÓTULOS NO SAMBA: CRIME E


ETIQUETAMENTO NA CULTURA POP CARIOCA DO SÉCULO XX. Revista Em Tempo,
v. 17, n. 01, p. 296-319, 2018.

FERREIRA, Marieta de Moraes; PINTO, Surama Conde Sá. Estado e oligarquias na Primeira
República: um balanço das principais tendências historiográficas. Tempo [online]. 2017, v. 23,
n. 3, pp. 422-442.
SERAFIM, Jhonata Goulart; DE AZEREDO, Jeferson Luiz. A (des) criminalização da cultura
negra nos Códigos de 1890 e 1940. Revista Amicus Curiae, v. 6, p. 1-17, 2009.

SILVA, Karla Leal Luz de Souza. A atuação da justiça e dos políticos contra a prática da
vadiagem: as colônias correcionais agrícolas em Minas Gerais (1890-1940). 2006.

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