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CONSTRUÇÃO NACIONAL E CIDADANIA

ESTUDOS DE NOSSA ORDEM SOCIAL EM MUDANÇA

REINHARD BENDIX

Tradução
Mary .Amazonas Leite de Barros

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Bendix, Reinhard
Construção Nacional e Cidadania / Reinhard Bendix ; tradu-
ção Mary Amazonas Leite de Barros. - São Paulo: Editora da Uni-
versidade de São Paulo, 1996. — (Clássicos ; 5)
ISBN: 85-314-0331-6
1. Cidadania 2. Estado Nacional 3. Mudança Social
4. Sociologia Histórica I. Título. II. Série.
96-0119 CDD-320.1
índices para catálogo sistemático:
1. Estado nacional : Construção : Ciência política 320.1
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES


EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

Tocqueville transporta sua análise para o início da "era da igualdade". Ele


caracteriza o impacto das ideias igualitárias nas relações entre patrões e emprega-
dos e analisa a crise resultante nas relações humanas. Escrevendo nos anos de 1830,
faz especulações sobre o futuro, especialmente na sua brilhante comparação entre
as estáveis condições de igualdade na América e as inseguras condições na França.
Hoje, podemos olhar para essas especulações, bem como para as de Karl Marx, a
partir do ponto de vista vantajoso de uma época posterior. Sem o esforço desses
homens em discernir os esboços do futuro, careceríamos de parâmetros para uma
análise crítica.
Vimos que a vida política medieval depende da ligação entre a posição
hereditária ou espiritual na sociedade, o controle sobre a terra como o principal
recurso económico, e o exercício da autoridade pública. Todos aqueles cuj a posição
ou status os exclui do acesso ao controle sobre a terra são desse modo excluídos
de qualquer participação direta nos negócios públicos. Os direitos e liberdades são
estendidos mais a grupos, corporações e classes do que a sujeitos individuais; a
representação nos corpos judiciários e legislativos é canalizada através de Estados
tradicionalmente privilegiados. Nessa estrutura, nenhum direito imediato é conce-
dido a súditos em posição de dependência económica, tais como arrendatários,
artífices, trabalhadores e criados: na melhor das hipóteses, eles são classificados
sob a casa de seu amo ou representados por ele e por sua propriedade. Esse sistema
é rompido pelas revoluções gémeas do Ocidente - a política e a industrial -, que

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REINHARD BENDIX
levaram ao reconhecimento final dos direitos de cidadania de todos os adultos,
incluindo aqueles em posições de dependência económica.
A análise seguinte começa com a crise no "governo doméstico" analisada por
Tocqueville. Emerge dessa crise um novo padrão de relações de classe, substituindo
a antiga relação tradicional por uma relação de autoridade individualista. Novas
formas de agitação emergem desse novo padrão de relações de classe, envolvendo
a ideia de direitos iguais para todos os cidadãos. Faz-se uma tentativa de reinterpretar
a radicalização das classes mais baixas no decorrer da industrialização inglesa.
Contra esse pano de fundo, o processo de construção da nação é examinado em
termos de uma análise comparativa dos direitos da cidadania. Nos Estados-nações
emergentes da Europa ocidental, o problema político crítico era se, e em que
extensão, o protesto social se ajustaria a toda a cidadania das classes mais baixas.
Relações de Classe numa Era de Contrato
Relações de autoridade individualistas
A reciprocidade das relações sociais está dentro de padrões porque os homens
se orientam pela expectativa dos outros, e toda ação do "outro" limita o âmbito das
respostas possíveis. Autoridade significa que os poucos no comando têm uma
ampla escolha de opções. Inversamente, subordinação significa que os muitos que
cumprem as ordens têm seu âmbito de escolha reduzido. Mas as opções dos poucos
são limitadas, mesmo quando o poder no comando é opressivo. Um desses limites
é que, mesmo a mais drástica subordinação, deixa algumas escolhas àqueles que
obedecem. A não-cooperação tácita pode ser variada, sutil, e mais importante do
que o protesto manifesto. Os subordinados fazem julgamentos, conduzindo a graus
de cooperação ou não-cooperação que são variáveis importantes em cada padrão
de autoridade estabelecido.
A ideologia tradicional que defende os privilégios da aristocracia em nome
de suas responsabilidades deve ser vista por esse prisma. Tocqueville enfatiza os
aspectos positivos das relações sociais que correspondem à sua visão do mundo.
Por mais voluntariosos e evasivos que sejam os senhores individualmente, é
razoável presumir que, por algum tempo, o senso e a prática da responsabilidade
aristocrática por seus inferiores eram relativamente elevados, assim como eram
genuínas a lealdade e obediência dos subordinados. De fato, sem alguma respon-
sabilidade de um lado e alguma lealdade de outro, não teria sentido dizer que as
relações de autoridade tradicionais foram rompidas. É melhor considerar o padrão
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVI11

tradicional como parcialmente um padrão de comportamento e parcialmente um


ideal, em virtude dos violentos conflitos que também caracterizam a sociedade
medieval. Ideais são essenciais nessa conexão, porque eles afetam a orientação
mesmo daqueles que não conseguem viver de acordo com eles. As relações de
autoridade tradicionais permanecem intactas, enquanto as ações e crenças que
fogem desse padrão, bem como aquelas que o sustentam, não solapam a recipro-
cidade de expectativas básica.
Dizer que uma crise de transição se estabelece quando os homens questionam
conscientemente os acordos e convenções previamente aceitos não nos ajuda a
distinguir esse questionamento dos contínuos ajustes de direitos e obrigações que
ocorrem enquanto as relações de autoridade tradicionais permanecem "intactas".
Tais ajustes envolvem modificações de detalhe, que se transformam num questio-
namento de presunções básicas apenas quando elas se acumulam. Usualmente, o
observador contemporâneo é impedido de reconhecer essa distinção. Ele pode ver
uma crise (não existe época sem suas Cassandras), mas ele não consegue dizer se
ela é a crise e aonde ela conduzirá. Em sua análise das relações de autoridade
tradicionais, Tocqueville observa que os senhores fogem cada vez mais de sua
responsabilidade de "proteger e remunerar", mas mantêm seus privilégios de
costume como um direito inalienável. Esse processo se estende séculos a fio,
durante os quais a real rejeição de responsabilidade é completamente obscurecida
pela ideologia tradicional. Quando essa discrepância entre os direitos e responsa-
bilidades dos senhores se torna manifesta?
As ideias referentes à posição do pobre não fornecem a melhor chave a esse
respeito. Ao longo dos séculos, o pobre aprendeu o dever ao trabalho e a virtude
de se satisfazer com o lugar que Deus escolheu para ele. A condenação de sua
indolência e dissipação são um tema constante, mas esses defeitos são considerados
inextirpáveis — um símbolo da classe social inferior. Acredita-se que a qualidade
humana e a responsabilidade social se harmonizam. A baixa posição social e a
condição inferior do pobre também os isentam de responsabilidade; não se pode
exigir muito deles. Por outro lado, a classe alta também significa grande respon-
sabilidade. Mesmo onde as práticas tradicionais são abandonadas, é fácil preservar
o conveniente pretexto de que o rico e poderoso trata o pobre como os pais a seus
filhos. Durante a maior parte do século XIX, o paternalismo sustenta seu apelo;
uma opinião profundamente arraigada não é destruída prontamente. É, contudo,
muito mais impressionante que, na fase inicial da industrialização inglesa, a
responsabilidade de proteger o pobre contra os riscos da vida seja explicitamente
rejeitada. O contraste com o paternalismo torna essa rejeição da responsabilidade
da classe superior um fenómeno evidentemente novo.
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RE1NHARD BEND1X
Durante a segunda metade do século XVIII, alguns padres, escritores e
economistas políticos começam a rejeitar a "responsabilidade do rico" como uma
fraude piedosa. As deslocações da Revolução Industrial com seus efeitos cruéis
sobre as massas conduziram ou exigiram novas interpretações da causa da pobreza.
Três dessas interpretações são aqui citadas. Embora intimamente ligadas uma à
outra, elas representam mais ou menos temas separáveis do pensamento social
inglês, quando, nos anos finais do século XVIII, a caridade tradicional e a antiga
legislação de assistência ao pobre como um meio de ajudar o indigente se tornaram
questões controvertidas1.
Uma abordagem vê a causa da pobreza no próprio esforço para minorar a
miséria. O pobre não se inclina a se empenhar; falta-lhe o orgulho, a honra e a
ambição de seus superiores. Antes, essa observação sustentava a opinião de que
o pobre deve ser guiado; agora, sustenta a opinião de que a caridade apenas
destrói o incentivo e, portanto, intensifica a pobreza. A indolência aumenta
quando se tomam providências para socorrer o pobre; a horrível necessidade é
o motivo mais natural do trabalho, pois exerce incessante pressão sobre o pobre.
"O escravo deve ser compelido a trabalhar; mas o homem livre deve ficar
entregue a seu próprio julgamento e critério"2. Aqui a ênfase recai na suposição
de que o rico não pode ajudar o pobre, mesmo que o queira, e ainda de que as
ordens inferiores devem depender de si mesmas. A rejeição da responsabilidade
da classe superior caminha de mãos dadas com a pretensão de que o pobre deve
ser autodependente.
Na segunda abordagem, os esforços perniciosos de caridade estão ligados à
teoria de mercado de trabalho. Deve-se permitir à fome produzir seu efeito, para
que os trabalhadores sejam compelidos a se empenhar. Caso contrário, eles redu-
zirão seus esforços e destruirão sua única salvaguarda contra a fome. Aqui a
mão-de-obra é encarada como uma comodidade como outra qualquer, seu salário
sendo determinado pela demanda por essa comodidade mais do que pela necessi-
dade do trabalhador ou sua habilidade para sobreviver. A única questão relevante
é qual mão-de-obra é preferida pelo empregador. Pois o patrão está sujeito às
mesmas necessidades de oferta e procura que o trabalhador. Isso significa, a longo
prazo, que ele não pode pagar-lhe mais do que ele oferece sem pôr em risco sua
empresa, e, por conseguinte, que os interesses do capital e do trabalho são idênticos.
A teoria de mercado significa que o empregador não pode agir irresponsavelmente
1. Os detalhes não precisarão nos preocupar aqui. Para uma discussão e citações mais amplas, ver meu
estudo Work and Aulhority in Industry, New York, John Wiley & Sons, 1956, pp. 73 e ss.
2. Declaração do reverendo Townsend, op. cit., p. 74.
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

sem prejudicar seu próprio interesse e que o trabalhador não tem outra salvaguarda
senão o empenho e nenhuma garantia contra a fome.
A terceira abordagem, especificamente identificada com a obra de Malthus,
relaciona essa teoria de mercado do trabalho com a teoria da população. Em vez
de afirmar a harmonia de interesse entre ricos e pobres, Malthus reconhece a
inevitabilidade de desgraças periódicas e agudas. Ele atribui esse fenómeno à
tendência da população a aumentar mais rapidamente do que os meios de subsis-
tência, uma lei da natureza que as classes superiores não têm poder para alterar.
Malthus afirma que a pobreza é inevitável e um estímulo necessário ao trabalho,
que a caridade e a ajuda ao pobre apenas aumentam a indolência e a imprevidência,
que as classes superiores não são e não podem ser responsáveis pelo destino do
pobre. Mas, em termos do presente contexto, ele também contribui com uma
importante ideia. Se é uma lei da natureza que os pobres aumentem seu número
além do suprimento de alimento disponível, é responsabilidade das classes mais
altas entender essa lei e instruir as classes inferiores de acordo com ela. A
imprevidência pode ser uma tendência natural, mas também resulta da ignorância
e da falta de restrição moral, e essas falhas podem ser combatidas pela educação.
A educação, portanto, é a tónica da nova ideologia empresarial, uma vez que
os empregadores já não possuem a abrangente autoridade pessoal do senhor
aristocrático. Tem-se muita confiança em forças impessoais como a necessidade
económica e a pressão da população sobre os recursos — muito mais confiança do
que ocorria quando o senhor exercia um domínio inteiramente pessoal sobre sua
propriedade. Mesmo assim, os empregadores devem lidar com a administração de
homens, e no início do século XIX ouviam-se queixas em relação à crescente
distância pessoal que tornava tal administração difícil, especialmente na velha base
paternalista. Com a divulgação das ideias igualitárias declina a ênfase no nível
social; o abismo entre as classes se alarga, como observa Tocqueville, e a influência
pessoal dos empregadores diminui. Conseqúentemente, a confiança é depositada
não apenas nas forças económicas impessoais, mas também na influência impes-
soal das ideias e da educação. É nesse contexto que os propagandistas autónomos
como Samuel Smiles formulam a nova ideologia empresarial, com sua ênfase na
"imensa quantidade de influência" que os empregadores possuem, se se aproxima-
rem de seus trabalhadores "com simpatia e confiança" e "ajudarem[-nos] ativa-
mente na formação de hábitos prudentes"3. Daí em diante, as ideologias
empresariais consistem em combinações temáticas dos três elementos seguintes:
1. o elemento paternalista, modelado segundo a propriedade tradicional, na qual a

3. Op. cit., p. 112.

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dominação pessoal do senhor sobre sua família e serviçais é a tónica; 2. o elemento
impessoal, modelado segundo a concepção de mercado dos economistas clássicos,
em que a pressão anónima da oferta e da procura, da luta pela sobrevivência, força
os trabalhadores a fazer o que seus empregadores mandam, e J. o elemento
educacional, modelado segundo a sala de aula, o laboratório psicológico, ou a
sessão de terapia, nos quais a instrução, os incentivos e as penalidades, ou as
persuasões motivacionais indiretas, são usados para disciplinar os trabalhadores e
impeli-los a intensificar seus esforços.
No decorrer da industrialização na Europa ocidental, podemos postular uma
sequência que conduz primeiramente a um declínio do paternalismo e ao surgimen-
to do elemento impessoal e, subsequentemente, a uma confiança declinante nas
forças de mercado e a uma crescente confiança no modelo educacional. A sequên-
cia aplica-se mais intimamente ao desenvolvimento inglês e americano, embora
mesmo nesse caso seja uma aproximação grosseira. Como o paternalismo sempre
inclui um elemento educacional, a confiança nas forças do mercado foi muitas
vezes obscurecida numa maneira paternalista, e a dimensão educacional é compa-
tível com uma abordagem impessoal e também pessoal. Os antecedentes culturais
diferentes, bem como a estrutura organizacional inconstante dos empreendimentos
económicos, têm muito que ver com as diversas ênfases entre as ideologias
empresariais, tais como as dos Estados Unidos, Alemanha e Japão4.
A dimensão política dessas ideologias é, contudo, de especial importância.
Num Estado-nação emergente que destruiu a antiga fragmentação da autoridade
pública, as agências do governo nacional permitem aos empregadores de mão-de-
obra proteção legal para seus direitos de propriedade. Esses direitos fazem parte
de uma ampla tendência igualitária, que também se expressa no elogio a hábitos
frugais e trabalho árduo, qualidades que habilitam todos os homens a adquirirem
propriedade e status. Ao nível impessoal de apelos ideológicos, essa abordagem
produz certos paradoxos típicos, de importância política.
As interpretações individualistas da relação de autoridade não permanecem
limitadas à empresa. A ideia de um mercado impessoal, que induzirá os trabalha-
dores a oferecer seus serviços e trabalhar diligentemente, demanda políticas que
facilitem a operação desse mercado. Além disso, o recurso a apelos ideológicos e
a métodos educacionais sugere que os incentivos impessoais são insuficientes. Os
empresários também procuram inculcar os hábitos e motivos desejados. Mas,
4. Op. cit., cap. 5; Heinz Hartmann, Authority and Organization m Gcrman Management, Princeton,
University Press, 1959, passim; e James G. Abegglen, TheJapaneseFactory, Glencoe, The Free Press,
1958.
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encorajando a autodependência dos trabalhadores, eles correm o risco de que tal


individualismo termine em protesto político e social, mais do que em cooperação
e submissão.
Pois o elogio a bons hábitos e ao trabalho árduo conduz por si mesmo a
julgamentos hostis de um teor muito provocativo. O trabalhador bom e honesto é
um modelo a ser seguido como distinto do trabalhador preguiçoso e imprevidente,
cujas deficiências são difundidas pelo rádio, em benefício de todos os que o
ouvirem e como um aviso que provoca desprezo e condenação. A maneira pública
pela qual esses "atributos coletivos" são discutidos transforma-os em questão
política. A divisão moral das classes baixas em pobres diligentes e pobres
imprevidentes não só desafia a complacência do indolente, mas também prejudica
o auto-respeito daqueles que permanecem pobres apesar dos mais ativos esforços.
O auto-respeito é ainda mais prejudicado quando o sucesso económico é interpre-
tado como sinónimo de virtude e o fracasso como um sinal de depravação moral.
Num contexto de agitação crescente, tais julgamentos ajudam a transformar a
posição cívica das classes mais baixas numa questão político-nacional. A inter-
pretação individualista das relações de autoridade na indústria aparece, desse
ponto de vista, como um esforço para negar os direitos de cidadania àqueles que
são malsucedidos economicamente, uma abordagem que pode despertar um novo
sentido do direito por parte das classes inferiores e conduzir a esforços tateantes
para definir a posição dessas classes na comunidade política nacional. Do mesmo
modo que Tocqueville focaliza a atenção numa transição nas relações domésticas,
marcadas por uma mudança nos termos de comandos e obediência, assim também
a discussão que se segue focalizará a atenção numa transição em relações de grupo
no nível nacional, marcada por mudanças de ideias concernentes a direitos e
obrigações das classes baixas.

O mal-estar da classe baixa torna-se político: Inglaterra

Quando as transformações políticas são atribuídas a determinantes económi-


cos, a mudança de posição das classes inferiores e a emergência da cidadania
nacional aparecem como subprodutos da industrialização. Essa linha de interpre-
tação desenvolve-se no fim do século XVIII. Parece plausível no sentido de que as
revoluções nos Estados Unidos e na França "refletem o crescimento da burguesia",
enquanto a Revolução Industrial na Inglaterra leva à mobilização política de uma
força de trabalho industrial emergente. Ainda que muito simplificadas, essas
afirmações referem-se a fenómenos históricos mais do que a princípios gerais.
Todavia, é à luz desses fenómenos históricos que todos os eventos políticos foram
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REINHARD BENDIX
de início construídos como subprodutos mais ou menos diretos de processos sociais
e económicos5. Atualmente, sabemos que, em outras partes, as revoluções políticas
ocorreram na ausência de uma classe média economicamente forte e politicamente
articulada, ou talvez por causa dessa ausência, como na Rússia e no Japão.
Novamente, a mobilização política das classes baixas ocorreu como um prelúdio
da industrialização, mais do que como um resultado dela, como, por exemplo, nos
Estados Unidos. Portanto, não teremos muita ajuda se tacitamente aceitarmos a
Europa ocidental e especialmente a Inglaterra como nosso modelo. É verdade que
ali as ideias democráticas se originaram em circunstâncias nas quais as mudanças
socioeconômicas tinham um impacto maciço na estrutura política, mas essas ideias
espalharam-se por todo o mundo, mesmo na ausência de circunstâncias semelhan-
tes. A cidadania nacional e o industrialismo moderno combinaram-se com uma
variedade de estruturas sociais; portanto, devemos reconhecer a democratização e
a industrialização como dois processos, um distinto do outro, por mais intimamente
que, vez por outra, estivessem ligados.
Os dois processos estiveram estritamente ligados na Inglaterra. Por um longo
tempo, o desenvolvimento inglês serviu como modelo para a compreensão do
crescimento económico em relação à modernização política- talvez simplesmente
porque a Inglaterra era o primeiro país a desenvolver uma indústria moderna.
Apenas por essas razões, talvez seja conveniente mostrar que, mesmo na Inglaterra,
é possível distinguir o elemento político em meio à mudança económica. Vimos
que, antes do século XVIII, as classes baixas podiam tentar arrancar à força
concessões dos poderes governantes por uma postura "legitimista" mesclada com
violência; ou que podiam compensar sua exclusão do exercício de direitos públicos
por fantasias milenaristas e banditismo. Formas diferentes de protesto da classe
inferior tornaram-se possíveis, contudo, depois que o despotismo esclarecido e os
filósofos do Iluminismo formularam o princípio de direitos iguais para todos os
homens. A disseminação dessa ideia era certamente facilitada pela industrializa-
ção, um fato que logo foi reconhecido:
Sobre os homens trabalhadores, pelo menos nos países mais avançados da Europa, pode
ser considerado certo que o sistema de governo patriarcal ou paternalista é algo a que não se
submeterão de novo. Esta questão foi decidida, quando aprenderam a ler e tiveram acesso aos
jornais e aos panfletos políticos; quando se permitiu que pregadores dissidentes a eles se
misturassem, e apelassem para suas faculdades e sentimentos, em oposição aos credos profes-
5. Até certo ponto, as teorias sociais e económicas modernas ainda refletem a situação histórica na qual
elas se desenvolveram inicialmente, mas um século e meio depois deve ser possível salvaguardar-se
contra tais preconceitos.
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sados e apoiados por seus superiores; quando foram reunidos em grande número para trabalhar
socialmente sob o mesmo teto; quando as estradas de ferro possibilitaram-lhes mudar de um
lugar para outro, e mudar seus patrões e empregadores tão facilmente como de casacos; quando
foram encorajados a buscar participação no governo, mediante o direito de voto eleitoral r '.

Nessa declaração, Mill descreve um país relativamente industrializado, e suas


referências a pregadores dissidentes e ao direito eleitoral assinalam condições que
são mais ou menos próprias da Inglaterra daquela época. Mas ele também nota
vários fatos que foram quase sempre associados com o recrutamento de uma força
de trabalho industrial: a alfabetização dos trabalhadores, a divulgação de material
impresso entre eles, a concentração física do trabalho, a maior mobilidade geográ-
fica, e a despersonalização do relacionamento no emprego. A descrição de Mill
pode ser considerada equivalente à afirmação de Mannheim de que a "sociedade
industrial moderna" - por mobilizar física e intelectualmente o povo - "incita à
ação as classes que antigamente só desempenhavam um papel passivo na vida
política"7.
Falando em termos gerais, sob a influência de ideias de igualdade, essa
mobilização do protesto da classe baixa passou a orientar-se para a realização de
uma participação completa na comunidade política existente ou para o estabeleci-
mento de uma comunidade política nacional na qual essa participação fosse
possível. Essa consideração pode ser estendida inicialmente a alguns dos distúrbios
populares no início do século XIX na Inglaterra. Para Marx, esses distúrbios são
similares às rebeliões esporádicas nas quais, por vários séculos, camponeses e
artesãos destruíram máquinas como os instrumentos mais imediatos de sua opres-
são*. Escritores posteriores mostraram que essa violência era dirigida contra
banqueiros ou prestamistas assim como contra máquinas, e que, apesar de sua óbvia
agitação, os trabalhadores do início do século XIX na Inglaterra mostram um
surpreendente respeito pela propriedade não diretamente ligada à sua desgraça.

6. John Stuart Mill. Principies ofPoliiicalEconomy. II. pp. 322-323. A afirmação de Mill é aqui cilada
como uma formulação excepcionalmente dará do que era aparentemente um tópico comum de
conversação. Ver o levantamento esclarecedor da crescente consciência das relações de classe de Asa
Briggs, "The Languageof'Class" inEarty Nineleenth Centniy England". em AsaBriggse JohnSaville
(eds.), Essays in Labour History in memory ofG. D. H. Cole, London. Macmillan, 1960, pp. 43-73.
7. Esta é a definição de Karl Mannheim da "democratização fundamental", que é compatível com
diferentes formas de governo, não só com a "democracia". A definição é útil. todavia, porque realça a
emergência de uma comunidade política nacional, na qual todos os adultos, independentemente de
classe, são cidadãos e, portanto, participantes. Ver Karl Mannheim- Man and Socicty in an Age of
Rcconstruction, New York, Hareourt, Brace, 1941, p. 44.
8. Ver Karl Marx, Capital, New York, Modern Library, 1936, pp. 466-478, a respeito de seu levantamento
e interpretação dessas rebeliões.

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RE1NHARD BENDIX
Distinguindo na prática a destruição saqueadora de propriedade daquela "justifi-
cada", pode-se considerar que os trabalhadores se engajaram numa "negociação
coletiva pelo distúrbio" numa época em que as reuniões eram proibidas por leic).
Essa prova é compatível com a ideia de que os operários que se engajam na
violência desejam ao mesmo tempo demonstrar sua respeitabilidade. Estão face a
face com uma iniquidade legal manifesta; são proibidos de se reunirem para a
negociação coletiva pacífica, enquanto as reuniões dos empregadores são toleradas
ou até encorajadas. Portanto, a "negociação coletiva pelo distúrbio" acompanha
facilmente a exigência de direitos civis que foram negados, apesar da aceitação da
igualdade formal perante a lei1".
Embora muito desarticulado a princípio, o apelo contra as iniqiiidades legais
envolve uma nova dimensão do distúrbio social. Para captar a relativa novidade
dessa experiência, temos de confiar na prova circunstancial do período. No fim do
século XVIII e através do século XVIII, a posição cívica do homem comum
tornou-se um tema de debate nacional na Europa. Durante décadas, os debates
sobre a educação básica e o direito ao voto questionam se uni aumento na
alfabetização ou nos direitos de voto entre o povo funcionaria como um antídoto
à propaganda revolucionária ou como um perigoso incentivo à insubordinação11.
É difícil saber quais sentimentos esses debates suscitam entre as próprias pessoas.
Confrontadas com a iniquidade de sua posição legal e um debate público acima de
sua confiança cívica, há naturalmente muita vacilação. O povo parece alternar entre
a insistência nos direitos antigos e as violentas revoltas contra as causas mais
9. A frase foi cunhada por E. J. Hobsbawm, "The Machine Breakers", Past and Prescnt, l, 1952, pp.
57-70. A prova referente à distinção entre saque e tais agitações, como os famosos distúrbios dos
ludditas, é analisada em Frank O. Darvall, Popular Disturbances and Public Ordcr inRegencyEngland,
London, Oxford University Press, 1934, pp. 314-315 e passim.
10. Observe-se a esse respeito a ênfase de Marx no modo pelo qual as reuniões de trabalhadores e
empregadores estimulam um ao outro e a referência no texto abaixo à consciência dessa iniquidade
entre os magistrados ingleses. Um estudo das disputas industriais e agrárias no Japão sugere que quase
o mesmo mecanismo opera num cenário cultural muito diferente. Ver o comentário de que "um número
crescente de fazendeiros arrendatários convenceram-se da necessidade da ação política, quando
souberam com que frequência os veredictos dos tribunais, que se baseavam nas leis vigentes, foram
contra eles", em George O. Totten, "Labor and Agrarian Disputes in Japan Following World War I",
Economic Development and Cultural Changc, IX, out. 1960, pt. II, p. 194.
11. Questões semelhantes foram levantadas com respeito à conscrição universal, uma vez que armas nas
mãos do povo comum eram consideradas uma ameaça revolucionária. Um estudo de caso da questão
do alistamento e seu significado para o desenvolvimento das relações de classe na Alemanha é o de
Gerhard Ritter, Staatskunst und Kricgshandwerk, Munich, R. Oldenbourg, 1954, pp. 60-158 e passim.
Ver também a referida discussão em Katherine Chorley, Armies and thc Art of Rcvolution, London,
Faber & Faber, 1943, pp. 87-107, 160-183. Os referidos debates sobre a alfabetização são analisados
em detalhe com referência à experiência inglesa, em M. G. Jones, Thc Charity School Movcment,
Cambridge, Cambridge University Press, 1938, passim.
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

evidentes de opressão; protestos de respeitabilidade e brados por revolução san-


grenta; propostas de reformas específicas e esquemas utópicos de variedade des-
concertante. Mas tal diversidade de manifestações pode ter um denominador
comum na experiência transitória que Tocqueville caracteriza:

[...] há quase sempre uma época em que as mentes dos homens flutuam entre a noção
aristocrática de sujeição e a noção democrática de obediência. A obediência perde então sua
importância moral aos olhos daquele que obedece; ele não mais a considera como uma espécie
de obrigação divina, e ainda não a vê sob seus aspectos puramente humanos; ela não tem para
ele nenhum caráter de santidade ou justiça, e ele se submete a ela como a uma condição
degradante mas proveitosa1-.

Na Inglaterra, em nível político, essa ambivalência é resolvida à medida que


a ideia de que os direitos das pessoas como cidadãos foram negados injustamente
ganha aceitação, porque como pessoas trabalhadoras elas têm direitos, em virtude
de sua contribuição à riqueza da nação.
Há muitas razões para aceitar a plausibilidade dessa interpretação, mesmo
que seja impossível prová-la. Uma das razões é que a iniquidade legal e o debate
público acima da insegurança cívica do povo representam uma negação cumulativa
de sua respeitabilidade, que ocorre justamente quando a industrialização e a
disseminação das ideias igualitárias incitam "à ação as classes que antigamente
desempenhavam apenas um papel passivo na vida política" (Mannheim). Ocasio-
nalmente, essa negação de respeitabilidade é equivalente à negação do direito à
existência, como nesta passagem de Thomas Malthus, que se tornou objeto notório
dos ataques socialistas:

Um homem que nasceu num mundo que já tem donos, se não puder obter subsistência de
seus pais, em relação aos quais ele tem uma justa exigência, e se a sociedade não quer o seu
trabalho, não tem direito de reclamar a mínima parcela de alimento, e, de fato, não tem direito
de estar onde está. No vigoroso festim da Natureza, não há abrigo desocupado para ele. Ela lhe
diz para ir embora, e executará rapidamente suas próprias ordens13.

Declarações extremas como esta ou a referência de Burke à "multidão suína"


foram feitas por intelectuais, e talvez não tenham sido muito conhecidas. Contudo,
a arrogância e o medo eram muito difundidos nos círculos de classe média, e é

12. Tocqueville, Dcmocracy in America, II, pp. 194-195.


13. Thomas Malthus, An Essay on the Principie of Population, 2. ed.. London. J. Johnson, 1803, p. 531.
Esta passagem foi modificada em edições posteriores ao Ensaio.

101
REINHARD BEND1X
razoável esperar uma crescente sensibilidade entre o povo, embora inarticulada,
em resposta a esse questionamento público de sua respeitabilidade.
Os observadores contemporâneos frequentemente comentavam a reação po-
pular. Esses observadores estão com frequência distantes da vida da classe traba-
lhadora, e são partidários no debate concernente às "classes inferiores", e divididos
entre eles mesmos. Seus preconceitos são muitos, mas o sectarismo pode não
apenas sensibilizar como também distorcer o entendimento. Na Inglaterra, obser-
vadores tão diferentes como Thomas Carlyle, William Cobbett, Benjamin Disraeli
e Harriett Martineau comentam o sentimento de injustiça entre os trabalhadores,
sua perda de auto-respeito, o abuso pessoal que os dirigentes da sociedade cumulam
sobre eles, o movimento cartista como a expressão de ultraje da gente do povo à
negação de seus direitos civis, e o sentimento dos trabalhadores de serem uma
"classe proscrita" em seu próprio país'4. Tal desafeição cívica do povo era encarada
com grave preocupação por eminentes oradores em muitas sociedades europeias.
Em retrospecto, essa preocupação parece justificada no sentido de que a posição
do "povo" como cidadãos estava efetivamente em questão15.
A negação implícita ou explícita da respeitabilidade cívica do povo é contra-
riada com certa naturalidade por uma insistência nos direitos do povo que não deve
ser anulada. Essa insistência fundamenta-se primeiro em um sentimento de justa
indignação diante da ideia de que o trabalho, que é "a pedra angular sobre a qual
a sociedade civilizada é construída", é "oferecido menos [...] do que suportará a
família de um homem ordeiro e sóbrio em decência e conforto"16. Essa concepção
14. Ver o capítulo "Rights and Mights", em Thomas Carlyle, Chartism, Chicago, Belford, Clarke, 1890,
pp. 30-39; G. D. H. e Margaret Cole (eds.), The Opinions of William Cobbett, London, Cobbett, 1944,
pp. 86-87,123-124,207, epassim; Hansard's Parliamentary Debates, vol. XLIX, 1839, cols. 246-247;
e R. K. Webb, ThcBritish WorkingClassRcader, London, Allen& Unwin, 1955, p. 96, sobre as fontes
dessas declarações. Também é relevante aqui o famoso símile das "duas nações entre as quais não há
nenhuma comunicação nem simpatia; que são tão ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos
uma da outra como se morassem em regiões diferentes, ou como se fossem habitantes de planetas
diferentes, formados por uma raça diferente, alimentados por uma comida diferente, ordenados de
maneiras diferentes, e não fossem governados pelas mesmas leis". Esta passagem ocorre no romance
de Benjamin Disraeli, Sybil, Baltimore, Penguin Books, 1954, p. 73.
15. Para uma visão geral dos esforços propagandísticos para contrabalançar essa "desafeição cívica" na
Inglaterra, ver R. K. Webb, op. cit., passim, e Reinhard Bendix, Work andAuthority in Industry, pp.
60-73.
16. A frase citada é de um folheto de Manchester de 1818, reeditado em J. L. e Barbara Hammond, The
TownLabourer, London, Longmans, Green, 1925, pp. 306-308. No paradigma de Tocqueville, pode-se
dizer que essa ideia fica a meio caminho entre a crença nos "antigos direitos" que foram erroneamente
abolidos e a pretensão de que os próprios servos devem ser os senhores. Notar também a análise de
Von Stein, que afirma que o antagonismo entre os trabalhadores e os empregadores "origina-se na
crença nos direitos e no valor dos trabalhadores individuais, por um lado, e no conhecimento de que,
ais condições presentes da produção mecanizada, os salários do operário não serão proporcionais a
702
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO X\'III

de um "direito de subsistência", com seus tradicionais exageros, a ideia do "direito


do trabalho a toda a produção" e a crença de que cada trabalhador saudável tem
"direito ao trabalho" são os três direitos inerentes ou naturais que se opõem aos
direitos adquiridos contratualmente, os únicos que são reconhecidos pelo sistema
legal prevalecente17. Embora as elaborações teóricas desses conceitos na literatura
socialista não revelem o pensamento do homem comum, é plausível presumir que
o tema comum dessas teorias expressa os esforços do operário num Estado-nação18.
Na Inglaterra, os protestos das classes inferiores parecem objetivar o estabe-
lecimento da cidadania dos trabalhadores. Aqueles que contribuem para a riqueza
e o bem-estar de seu país têm o direito de serem ouvidos em seus conselhos
nacionais, e estão habilitados a uma posição que imponha respeito. Na Inglaterra,
essas demandas nunca alcançam a culminância revolucionária que se desenvolve
mais frequentemente no continente europeu, embora ocasionalmente violentas
explosões também irrompam na sociedade inglesa. Se, apesar de todos os seus
conflitos, a modernização política da Inglaterra ocorreu de uma maneira relativa-
mente contínua e pacífica, isto talvez se deva a que, durante quase todo o século
XIX, a Inglaterra era líder na industrialização e na expansão ultramarina. Os
operários ingleses podiam exigir seu justo lugar na comunidade política da princi-
pal nação do mundo1''. Nesse contexto favorável, o debate nacional concernente ao
status apropriado das classes baixas desenvolve-se na tradicional linguagem da
religião. Certamente, os operários ingleses estão muito desiludidos com a Igreja

aias pretensões como indivíduo". Ver Lorenz von Stein, "Der Begriff der Arbeit und die Prinzipien
áes Aibeitslotines in ihrem Verhàltnisse zum Sozialismus und Communismus", Zeitschrift fur dle
facsmicSzzxs»issaucfiaft. III. 1846. p. 263.
1~. Sobre «ira exposição detalhada dessas concepções de direitos naturais no pensamento socialista e de
sma •ampaubdidadc a» a lei de propriedade, ver Anton Menger, The Right Io lhe Wholc Producc
ofLebonr, Loodon. MacauUa*. 1899. passim.
18. Possjvelmenie. o uso por Man da teoria do valor do trabalho teve seu grande impacto moral na base
dessas concepções de "direitos •atarais*, como é analisado por Menger.
19. Engels considerava os dois fcnôincBos caisalmente ligados, como em seu comentário a Marx
de que o "aburguesamento do proletariado inglês" era em certo sentido "muito natural numa
nação que explorava o inundo todo". Ver s*a cana a Marx. de 7 de outubro de 1858, em Karl
Marx e Friedricn Engels, Ausgewãhlic Briefc, Bcrlin, Dietz Verlag, 1953. pp. 131-132. Todavia,
sua interpretação ignora as heranças históricas q»e incitam «ma "reciprocidade nacional de
direitos e obrigações", apesar da ameaça das ideias revolucionárias e dos esforços para uma
mudança económica rápida. A coincidência entre a posição preferida pela Inglaterra e seus
legados favoráveis à efetivação dessa "incorporação" política do "quito Estado" foi discutida
até agora apenas em trechos e partes de obras. Ver ]. L Hammond. The Industrial Revolution
and Discontent", The Economic History Rcview, II, 1930, pp. 227-228; Henri de Man, The
Psychology of Socialism, New York, Henry Holt, 1927, pp. 39-41, com respeito ao papel do
auto-respeito ofendido no protesto radical inglês; e Selig Perlman, A Theory of lhe Labor
Movcment, New York, Augustus Kelley, 1949, p. 291, que enfatiza o significado especial da
questão do direito de voto.

103
RE1NHARD BEND1X
estabelecida e com os apelos religiosos, que com muita frequência são apologias
mal disfarçadas em favor da ordem estabelecida. Contudo, o ateísmo doutrinário
é raro, e os líderes da classe trabalhadora inglesa muitas vezes fundamentam suas
demandas numa linguagem bíblica ou quase bíblica20. Portanto, a proeminência da
Inglaterra como uma potência mundial e uma prática religiosa comum podem ter
facilitado a incorporação cívica dos trabalhadores, mesmo que o novo equilíbrio
nacional de direitos e deveres não se realizasse facilmente.
Um exemplo extraído do campo das relações industriais ilustra as sutilezas
dessa transição inglesa para uma comunidade política moderna. À primeira vista,
a proibição legal dos sindicatos no início do século XIX parece uma brutal
repressão. Dizia-se que as "reuniões de trabalhadores" reduziam os direitos legais
formais do empregador assim como os do trabalhador. Contudo, em seu exame do
sindicalismo primitivo, os Webbs concluem que a organização ineficiente da
polícia, a ausência de instauração de processo público efetivo e a inércia dos
empregadores eram responsáveis pela ampla ocorrência de reuniões ilegais, apesar
de sua inequívoca proibição21.
Mais recentemente, uma publicação de documentos sobre os antigos sindi-
catos revelou que nem os empregadores nem os funcionários do governo recorriam
a todos os remédios legais que lhes eram franqueados. Aparentemente, os empre-
gadores desejavam que o governo instituísse medidas judiciais contra reuniões
ilegais. Um parecer do promotor-geral, enviado à Secretaria de Negócios Internos,
em 1804, é de especial interesse a esse respeito. O parecer apresenta detalhes do
grande mal das reuniões entre os trabalhadores por todo o país, reuniões conside-
radas claramente ilegais e passíveis de processo. Mas se o governo tivesse de
20. Indícios da relação entre o renascimento religioso e o protesto da classe trabalhadora são discutidos
em Work and Authority in Industry, pp. 60-73, de minha autoria, mas a questão é controvertida. Em
sua obra Social Bandits and Primitive Rebels, pp. 126-149, Hobsbawm questiona que os movimentos
religiosos entre os operários diminuíram seu radicalismo. Em Churches andthe Working Classes in
Victorian England, London, Routledge & Kegan Paul, 1963, K. S. Inglis reúne grande quantidade de
provas que sugerem que os operários ingleses eram marcadamente indiferentes em relação às obser-
vâncias religiosas durante todo o século XIX. Mas mesmo Inglis admite (idem, pp. 329-332) que o
ateísmo era raro entre os operários ingleses (embora pronunciado entre seus colegas do continente
europeu), e que um grande número de crianças da classe operária frequentavam as escolas dominicais.
Tal admissão pode muito bem ser perigosa, contudo, uma vez que a questão não é se os operários
ingleses eram realmente crentes, mas se continuavam a usar ideias religiosas em sua "busca da
respeitabilidade". As ideias religiosas não são necessariamente menos importantes quando se associam
às preocupações seculares. Ver a análise de secularidade e religião no contexto americano de S. M.
Lipset, The First New Nation, New York, Basic Books, 1963, pp. 151-159, e da exacerbação das
relações de classe na ausência de uma linguagem religiosa viável de Guenther Roth, The Social
Dcmocrats in Imperial Germany, New York, The Bedminster Press, 1963,passim.
21. Sidney e Beatrice Webb, The History ofTrade Unionism, New York, Longmans, Green & Co., 1926,
p. 74.
104
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

instaurar processo no caso examinado, poder-se-iam esperar requerimentos de


ações semelhantes por parte do governo a partir de todos os outros sindicatos, uma
vez que "as reuniões existem em quase todos os sindicatos no reino".

Ele conduzirá à opinião de que não cabe aos patrões do sindicato que se sentem
prejudicados instaurar processo, mas sim ao governo. [...] Efetivamente, é preciso admitir que
a ofensa aumentou num grau e numa extensão tais que se tornou muito desencorajador a todos
os indivíduos instaurar um processo, pois as pessoas que ele processaria seriam sustentadas em
seu julgamento e durante sua prisão pelas contribuições de seus confederados, e seu próprio
negócio provavelmente seria abandonado por seus funcionários. Mas então ê claro que é devido
à inércia e à timidez dos patrões que a conspiração chegou a esse ponto, e é de se recear que
essa inércia, com a interferência do governo, em vez de diminuir, aumentará. [...] Uma vez que
julgaram que a punição de tais ofensas cabia ao governo, eles também pensarão caber ao governo
o ónus da prova, e não a eles, de modo que a futura detecção e instauração de processo contra
essas ofensas provavelmente serão mais difíceis. Ademais, [...] a imparcialidade do governo
ficaria numa situação complicada se, depois de instaurar um processo, por instância dos patrões,
contra a conspiração dos artífices, os artífices recorressem a eles para processar os mesmos
patrões por uma conspiração contra seus homens22.

Esta opinião é instrutiva, ainda que seu discernimento não possa ser consi-
derado representativo.
Seja qual for sua parcialidade em relação aos empregadores, os magistrados
são responsáveis pela manutenção da lei e da ordem. Essa tarefa é complicada
frequentemente pela relutância dos empregadores em recorrer à lei de proibição
das reuniões, por suas repetidas tentativas de induzir o governo a fazê-lo por eles,
por sua tendência a serem coniventes com essas reuniões quando lhes é convenien-
te, e finalmente por sua tendência a rejeitar toda responsabilidade pelas consequên-
cias de suas próprias ações, na crença de que no final o governo manterá a lei e a
ordem e protegerá seus interesses. Não é de surpreender que os magistrados sejam
muitas vezes muito críticos em relação aos empregadores, sustentando que estes
agem com pouco critério, que eles podem perfeitamente arcar com o pagamento
de salários mais elevados, e que as queixas dos trabalhadores são justificadas,
mesmo que suas reuniões sejam ilegais. Algumas vezes, os magistrados até agem
como mediadores informais em disputas entre empregadores e seus operários, no
interesse da manutenção da paz23. Portanto, nem a parcialidade dos magistrados,
nem o princípio da política de não-interferência, nem o evidente oportunismo dos

22. A. Aspinall (ed.), The Early English Tradc Unions, Documents from thc Home Office Papcrs in thc
Public Rccord Office, London, Batchworth Press, 1949, pp. 90-92.
23. Para exemplos desses vários aspectos, op. cit., pp. 116, 126,168-169, 192-103,216-219,229, 234-235?
237-238, 242, 259-260, 272, 283, e assim por diante.

705
REINHARD BEND1X
empregadores é equivalente à repressão, embora, na prática, pouco se faça para
atender às queixas dos trabalhadores, exceto em termos calculados para prejudicar
sua posição de membros respeitáveis da comunidade.
Nesse período de transição, Tocqueville vê uma importante ameaça revolu-
cionária. O patrão continua a esperar servilismo, mas rejeita a responsabilidade
sobre seus serviçais, enquanto estes exigem direitos iguais e se tornam intratáveis.
No nível societário, o caso inglês se aproxima desse modelo. Muitos empreende-
dores ingleses antigos certamente rejeitam qualquer responsabilidade sobre seus
empregados, embora esperem que eles obedeçam; recusam qualquer interferência
governamental na administração, embora procurem transferir ao governo a respon-
sabilidade por todas as. consequências públicas adversas de seus próprios atos24.
Funcionários do governo apoiavam os empresários em muitos casos, porque
estavam profundamente preocupados com a agitação e a truculência. Dito isto,
várias reservas devem ser acrescentadas. Há alguns fabricantes que reconhecem as
obrigações tradicionais da classe dirigente. Entre alguns magistrados, o princípio
de não-interferência pelo governo é apoiado por uma atitude desprendida e crítica,
mesmo nas primeiras décadas do século XIX. Finalmente, a demanda de igualdade
da classe trabalhadora emergente funde-se num molde mais ou menos conservador
no sentido de que na balança é acrescentada uma busca de aceitação pública de
cidadania igualitária. Em outras palavras, a sociedade inglesa provou ser capaz de
apaziguar a classe baixa como uma participante igual na comunidade política
nacional, embora mesmo na Inglaterra esse desenvolvimento tenha envolvido uma
luta prolongada, e todas as implicações de igualdade como as entendemos atual-
mente só tenham evoluído gradualmente.
Implicações teóricas
A discussão precedente limita-se aos desenvolvimentos na Inglaterra. A
industrialização pode ser iniciada apenas uma vez; depois disso, suas técnicas são
tomadas de empréstimo; nenhum outro país que desde então embarcou no processo
pode começar de onde a Inglaterra começou no século XVIII. A Inglaterra é a
exceção mais do que o modelo. Por algum tempo, a Inglaterra possuía quase o
monopólio nas mais avançadas técnicas da produção industrial, e outros países
24. Com base nisso, mesmo porta-vozes fiéis à ideologia do laissez-faire, empenhavam-se ativamente na
extensão dos controles governamentais. Sobre detalhes a esse respeito, ver Marion Bowley, Nassau
Sénior and Classical Economics, London, Allen & Unwin, 1937, pp. 237-281; S. E. Finer, The Life
and Times of Edwin Chadwick, London, Methuen, 1952, passim; J. B. Brebner, "Laissez-faire and State
Intervention in 19thCentury Britain", Journal ofEconomicHistory, VIII, Supplement 1948, pp. 59-73.
706
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

emprestavam-nas dela. Na maior parte do século XIX, a Inglaterra permaneceu na


vanguarda, combinando a primazia industrial com a política. Retrospectivamente,
sabemos que, como resultado dessas e das condições a elas relacionadas, ela
possuía uma comunidade política nacional, na qual finalmente foi permitido ao
crescente "quarto Estado" participar, por meio de uma redefinição gradual de
direitos e obrigações, mais do que como consequência de guerra ou revolução. Mas
uma compreensão de um caso tão singular como esse é importante no estudo
comparativo da mudança social e política, pois indiretamente ele pode apontar o
que muitos dos outros "casos" têm em comum.
Quando comparamos os industriais retardatários com a Inglaterra e os demo-
cratas retardatários com a França, perguntamos: O que acontece quando um país
não possui uma comunidade política viável, ou quando a comunidade que a possui
está tão "atrasada" em comparação com países democrática e industrialmente
adiantados que deve ser reconstituída antes que a demanda por "cidadania plena"
se torne de algum modo significativa? Não é uma ideia nova sugerir que o protesto
da classe baixa pode progredir de uma demanda por cidadania plena dentro da
comunidade política prevalecente para uma demanda por uma mudança dessa
comunidade, a fim de tornar possível a plena cidadania. Mas, embora essa ideia
seja compatível com a teoria de Marx relativa a um avanço da parada da máquina
para uma ação política, deve-se notar que eu enfatizo a alienação da comunidade
política mais do que a alienação que resulta de "insatisfações criativas", como faz
Marx. Essa mudança de ênfase nos ajuda a ver ao mesmo tempo dois movimentos
de massa do século XIX — o socialismo e o nacionalismo —, em contraste com Marx,
que explica o primeiro enquanto ignora o segundo. Há uma conexão muito estreita
entre agitação nacionalista e socialista, no sentido de que ambas visam de maneiras
diferentes à integração política das massas anteriormente excluídas da participa-
ção. Essa conexão é obscurecida pela separação marxista desses movimentos e pelo
fato de que a primazia da Inglaterra como potência mundial tornou desnecessária
à classe inferior inglesa a pretensão de pertencer, em matéria de auto-respeito, a
uma comunidade política nacional25. Contudo, o excepcional desenvolvimento da

25. Ver a seguinte declaração, extraída de um discurso do líder cartista Hartwell, proferido em 1837:
"Parece-me uma anomalia que, num país em que as artes e as ciências alcançaram tal nível, especial-
mente pela diligência, habilidade e esforços do artesão... apenas um adulto masculino em sete deva ter
um voto, que em tal país as classes trabalhadoras devam ser excluídas do seio da vida política". Citado
em M. Beer, A History ofBritish Socialism, London, Allen & Unwin, 1948, II, pp. 25-26. É instrutivo
contrastar essa declaração com a do líder nacionalista italiano Mazzini: "Sem País, não se tem nome,
símbolo, voz, nem direitos. [...] Não se iludam com a esperança de emancipação das condições sociais
injustas se não conquistarem primeiro um País para vocês. [...] Não se deixem levar pela ideia de
melhorar suas condições materiais sem primeiro resolver a questão nacional. [...] Hoje [...] vocês não

107
RE1NHARD BENDIX
Inglaterra serviu aos teóricos sociais durante um século como modelo que os outros
países presumivelmente seguiam.
A abordagem aqui proposta não é uma mera inversão da teoria marxista. Mane
considera os movimentos sociais do século XIX como protestos contra privações
psíquicas e materiais que se acumularam como resultado do processo capitalista;
ele vê nas massas um anseio fundamental por satisfações criativas numa boa
sociedade. Interpreto esses movimentos de protesto como políticos, e defino seu
caráter em termos do contraste entre uma comunidade política pré-moderna e uma
comunidade política moderna. Quando se assume esta opinião, o século XVIII
aparece como um importante hiato na história da Europa ocidental. Antes dessa
época, as massas populares eram inteiramente excluídas do exercício dos direitos
públicos; desde então, elas se tornaram cidadãos, e nesse sentido participantes na
comunidade política. A "era da revolução democrática" estende-se dessa época ao
presente. Durante esse período, algumas sociedades universalizaram pacificamente
a cidadania, enquanto outras foram incapazes de fazê-lo e, consequentemente,
sofreram vários tipos de levantes revolucionários. Assim concebido, o problema
das classes inferiores num Estado-nação moderno consiste nos processos políticos
através dos quais, ao nível da comunidade nacional, a reciprocidade de direitos e
deveres é gradualmente estendida e redefinida. É bem verdade que esse processo
foi afetado a todo momento por forças que emanavam da estrutura da sociedade.
Mas mantenho que a distribuição e redistribuição de direitos e deveres não são
meros subprodutos de tais forças, que elas são vitalmente afetadas pela posição
internacional do país, pelas concepções sobre o que a distribuição adequada na
comunidade nacional deveria ser, e pelo "toma-lá-dá-cá" na luta política26.
Minha tese está de acordo com a ênfase dada por Tocqueville à reciprocidade
dê direitos e obrigações como uma marca da comunidade política. Na Europa, a
crescente consciência da classe trabalhadora expressa acima de tudo uma experiên-
cia de alienação política, isto é, um senso de não ter uma posição reconhecida na
são a classe trabalhadora da Itália; são apenas frações dessa classe. [...] Sua emancipação não pode ter
nenhum começo prático até que o Governo Nacional [seja fundado]". Ver Joseph Mazzini, The Dutics
ofMan and Otlicr Essays, New York, E. P. Dutton, 1912, pp. 53-54.
26. Esta abordagem difere do marxismo, que trata a política e o governo como variáveis dependentes da
mudança da organização de produção, sem enfrentar a relativa autonomia das ações governamentais
nem a existência contínua das comunidades políticas nacionais. Ela também difere da abordagem
sociológica da política e das instituições formais, que constrói a primeira como meros subprodutos de
interações entre indivíduos e as segundas como uma "carapaça superficial", dentro da qual essas
interações fornecem a chave para uma compreensão realista da vida social. Ver uma análise crítica
desse reducionismo em Wolin, op. cit., caps. 9 e 10. Uma abordagem alternativa que enfatiza a
autonomia parcial, bem como a interdependência do governo e da sociedade está contida na obra de
Max Weber, como é discutida acima, nas pp. 47-50.
108
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

comunidade cívica, ou de não ter uma comunidade cívica na qual participar. Pelo
fato de a participação política popular ter-se tornado possível pela primeira vez na
história europeia, o protesto da classe baixa contra a ordem social confia (pelo
menos no início) em códigos de comportamento prevalecentes e, portanto, reflete
uma mentalidade conservadora, mesmo onde conduz à violência contra pessoas e
propriedade27. Mais do que comprometer-se com uma busca de uma nova ordem
social, as massas recentemente politizadas protestam contra sua cidadania de
segunda classe, exigindo o direito de participação em termos de igualdade na
comunidade política do Estado-nação21*. Se esta é uma avaliação correta dos
mal-articulados impulsos e anseios característicos de muitas agitações populares
entre as classes baixas na Europa ocidental, temos então uma chave para o declínio
do socialismo. Pois a posição cívica dessas classes não é mais uma questão
preeminente em sociedades nas quais a igualdade de cidadania foi institucionali-
zada com êxito.
A seção seguinte deste capítulo analisa essa institucionalização numa base
comparativa.

A Extensão da Cidadania às Classes Inferiores2'

Elementos de cidadania

No Estado-nação cada cidadão encontra-se numa relação direta com a auto-


ridade soberana do país, em contraste com o Estado medieval, no qual essa relação

27. Ver nessa conexão a expressão de aborrecimento de Engels em relação à arraigada "respeitabilidade"
dos trabalhadores ingleses e seus líderes, em sua carta a Sorge, de 7 de dezembro de 1889, em
Ausgewáhltc Briefe, p. 495.
28. A perspectiva apresentada acima foi desenvolvida por alguns de meus antigos alunos. O estudo de
Guenther Roth do "Isolamento da Classe Trabalhadora e a Integração Nacional" na Alemanha imperial
foi citado anteriormente. Ver também GastonRimlinger, "The Legitímationof Protest: A Comparative
Study in Labor History", Comparative Studics in Socicty andHistory, II, abril 1960, pp. 329-343, do
mesmo autor, "Social Security, Incentives and Controls in the U.S. and the U.S.S.R.", loc. cit., IV, nov.
1961, pp. 104-124, e Samuel Surace, The Status Evolution of Italian Workers, 1860-1914, tese de
doutorado, Department of Sociology, University of Califórnia, Berkeley, 1962.
29. A seção subsequente foi escrita juntamente com o Dr. Stein Rokkan, do Christian Michelsen Institute,
Bergen, Noruega. Adaptei o ensaio original mantendo-o de acordo com os propósitos deste volume.
As formulações subsequentes enfatizarão o sentido classificatório no qual o termo "classes inferiores"
é usado. A questão de quais setores das "classes inferiores" desenvolvem a capacidade para a ação
conjunta e sob que circunstâncias isso ocorre permanece em aberto. Embora, até certo ponto, uma
resposta ao protesto ou o resultado do protesto antecipado, a extensão de cidadania ocorreu com
referência a grupos ampla e abstratamente definidos, como todos os adultos acima de 21 anos, ou
mulheres ou adultos que tivessem posses especificadas, que preenchessem certos requisitos residenciais

709
REI.\'HARD BESDIX
direta é desfrutada apenas pelos grandes homens do reino. Por conseguinte, um
elemento essencial da construção da nação é a codificação dos direitos e deveres
de todos os adultos que são classificados como cidadãos. A questão é o quão
exclusiva ou inclusivamente o cidadão é definido. À parte algumas excecões
notáveis, a cidadania a princípio exclui todas as pessoas social e economicamente
dependentes. Durante o século XIX, essa restrição maciça é gradualmente reduzida
até, finalmente, todos os adultos serem classificados como cidadãos. Na Europa
ocidental, essa extensão da cidadania nacional é mantida isolada do resto do mundo
pelas tradições comuns do Stãndestaat™. A integração gradual da comunidade
nacional desde a Revolução Francesa reflete essas tradições sempre que a extensão
da cidadania é discutida em termos do "quarto Estado", isto é, em termos de
extensão do princípio de representação funcional àqueles previamente excluídos
da cidadania. Por outro lado, a Revolução Francesa também fez avançar o princípio
plebiscitário. De acordo com esse princípio, todos os poderes que intervêm entre
o indivíduo e o Estado devem ser destruídos (como Estados, corporações etc.), de
modo que todos os cidadãos como indivíduos possuem direitos iguais perante o
soberano, autoridade nacional31.
Cabe acrescentar uma palavra a respeito dos dois adjetivos "funcional" e
"plebiscitário". A expressão "representação funcional" deriva da estrutura política
medieval, na qual se considera apropriado, por exemplo, que os anciãos ou o grande
mestre de uma guilda a representem numa assembleia municipal. Aqui a função
refere-se genericamente a todo tipo de atividade considerada apropriada ao Estado.
Usado de maneira mais ampla, o termo "função" designa atividades ou direitos e
deveres específicos de grupos. Como tal, ele abrange ambas as coisas, observações
de comportamento e mandatos éticos daquilo que é considerado apropriado. O
primeiro, contudo, implica teorias muito diferentes de sociedade. Na sociedade
medieval, a posição e as funções apropriadas dos grupos constituintes são fixadas
etc. Tais grupos abrangem muitas pessoas além daquelas que têm poucas posses, renda baixa, pouco
prestígio, e que por causa dessas incapacidades são convencionalmente consideradas "pertencentes"
às classes interiores. A referência aqui é ao grupo classificatório maior de todos aqueles (incluindo as
"classes baixas") que foram excluídos de qualquer participação direta ou indireta nos processos de
tomada de decisão política da comunidade.
30. A tal ponto que o historiador Otto Hintze nega o desenvolvimento nativo do constitucionalismo em
qualquer outro lugar. Ver "Weltgeschichtliche Vorbedingungen der Reprasentativverfassung", em
Staat und Vcrfassung, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, pp. 140-185.
31. Esses dois modelos foram analisados em termos da distinção entre o princípio representativo e o
plebiscitário por Ernst Fraenkel, Dic rcprâscntativc und dic plebiszitãrc Komponcntc im dcmokratis-
chen Vcrfassungsstaat, Cadernos 219-220 de Rccht und Staat; Tubingen, J. C. B. Mohr, 1958. A
ideologia do plebiscitarianismo é documentada em J. L. Talmon, The Origins of Totalitarian Dcmo-
cracy, New York, Frederick A. Praeger, 1960.
110
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

numa ordem hierárquica. Nas sociedades ocidentais modernas, essa visão antiga
foi substituída por conceitos de função de grupo que pressupõem o ideal de
igualdade, exceto nos casos em que conotações medievais subsistem. O termo
"plebiscito" refere-se ao voto direto numa questão pública importante por todos
os eleitores qualificados de uma comunidade. Quanto maior a comunidade, tanto
menores as qualificações estipuladas para os eleitores e, portanto, quanto maior o
número de pessoas que se encontram numa relação direta com a autoridade pública,
tanto maior será o conflito entre o princípio plebiscitário e o funcional. O sentido
específico de ambos os princípios varia naturalmente com as definições de ativi-
dades específicas de grupo e a extensão e qualificações de membro da comunidade.
Várias acomodações entre o princípio funcional e plebiscitário caracteriza-
ram a sequência de decretos-leis e codificações por meio dos quais a cidadania se
tornou nacional em muitos países da Europa ocidental. A fim de examinar esse
desenvolvimento comparativamente, os vários direitos de cidadania devem ser
distinguidos e analisados. Em seu estudo Citizenship and Social Class, T. H.
Marshall formula uma tipologia de direitos tripartite:

• Direitos civis como "liberdade pessoal, liberdade de palavra, pensamento e fé, o direito à
propriedade e a concluir contratos válidos, e o direito à justiça".
• Direitos políticos tais como o direito de voto e o direito ao acesso a cargo público.
• Direitos sociais que vão do "direito ao bem-estar económico e à segurança mínimos ao direito
de participar inteiramente na herança social e a viver a vida de um ser civilizado, de acordo
com os padrões prevalecentes na sociedade"32.

Quatro grupos de instituições públicas correspondem a esses três tipos de


direitos:
r\ •

• Os tribunais, para a salvaguarda dos direitos civis e, especificamente, para a proteção de todos
os direitos extensivos aos membros menos articulados da comunidade nacional.
• Os corpos representativos locais e nacionais como vias de acesso à participação na tomada
de decisão e na legislação.
• Os serviços sociais, para garantir um mínimo de proteção contra a pobreza, a doença, e outros
infortúnios; e as escolas, para possibilitar a todos os membros da comunidade receberem pelo
menos os elementos básicos de uma educação.

32. O ensaio referido foi reeditado em T. H. Marshall, Class, Citizenship and Social Dcvclopmcnt, Garden
City, New York, Doubleday & Co., Inc., 1964, pp. 71-72. A discussão que se segue deve muito à análise
do professor Marshall.

111
REINHARD BENDIX
Inicialmente, tais direitos de cidadania emergem com o estabelecimento de
direitos iguais perante a lei. O indivíduo é livre para concluir contratos válidos,
adquirir e dispor da propriedade. A igualdade legal avança à custa da protecão legal
de privilégios herdados. Cada homem possui agora o direito de agir como uma
unidade independente; contudo, a lei apenas define sua capacidade legal, silencian-
do sobre sua habilidade de usá-la. Ademais, os direitos civis são estendidos aos
filhos ilegítimos, estrangeiros e judeus; o princípio de igualdade legal ajuda a
eliminar a servidão hereditária, iguala a posição de marido e mulher, circunscreve
a extensão do direito dos pais, facilita o divórcio e legaliza o casamento civil33.
Consequentemente, a extensão dos direitos civis beneficia os setores inarticulados
da população, dando um significado libertário positivo ao reconhecimento legal da
individualidade.
Entretanto, esse ganho de igualdade legal subsiste ao lado da desigualdade
social e económica. Tocqueville e outros apontam que na sociedade medieval
muitas pessoas dependentes eram protegidas de alguma maneira contra as dificul-
dades da vida pelo costume e pela benevolência paternal, embora às custas da
subserviência pessoal. A nova liberdade do contrato salarial destruiu rapidamente
toda e qualquer protecão desse tipo que existia anteriormente34. Pelo menos durante
algum tempo, nenhuma nova protecão foi instituída no lugar das antigas; conse-
qiientemente, o preconceito de classe e as desigualdades económicas prontamente
excluem a grande maioria da classe baixa do gozo de seus direitos legais. O direito
do indivíduo de afirmar e defender suas liberdades civis básicas em termos de
igualdade com os outros e pelo devido processo legal é formal, no sentido de que
os poderes legais estão garantidos, na ausência de qualquer tentativa de assistir o
indivíduo em seu uso desses poderes. Como observou Anton Menger, em 1899:
"Nossos códigos de lei privada não contêm uma única cláusula que atribua ao
indivíduo mesmo aqueles benefícios e serviços que são indispensáveis à manuten-
ção de sua existência"35. Nesse sentido, a igualdade da cidadania e as desigualdades
de classe social desenvolvem-se juntas.
33. Ver R. H. Graveson, Status in thc Common Law, London, The Athlone Press, 1953, pp. 14-32. Sobre
detalhes desses desenvolvimentos legais na Alemanha, Áustria, Suíça e França, ver J. W. Hedemann,
Die Fortschrittc dês Zivilrcchts im 19. Jahrhundcrt, Berlin, Cari Heymanns Verlag, 1910 e 1935, 2
vols. Um breve apanhado do pano de fundo e da extensão desses desenvolvimentos na Europa
encontra-se em Hans Thieme, Das Naturrccht und die europàischc Privatrechtsgeschichte, Basel,
Halbing & Lichtenhahn, 1954. Um tratamento mais abrangente encontra-se em Franz Wieacker,
Privatrechtsgeschichte der Nèuzeit, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1952, esp. pp. 197-216 e
passim.
34. Alexis de Tocqueville, Democracy in America, New York, Vintage Books, 1954, II, pp. 187-190.
35- Anlon Menger, Thc Right to thc Whole Producí of Labor, London, Macmillan and Co., 1899, pp. 3-4.
772
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

A justaposição da igualdade legal e das desigualdades sociais e económicas


inspiraram os grandes debates políticos que acompanham a construção da nação
da Europa no século XIX. Esses debates giram em torno dos tipos e graus de
desigualdade ou insegurança que podem ser considerados intoleráveis e os métodos
que devem ser usados para aliviá-los. Os porta-vozes de uma posição de laissez-
faire consistente procuram responder a essa questão dentro da estrutura dos direitos
civis formais. Tendo obtido reconhecimento legal para o exercício de direitos
individuais, eles insistem que, para permanecer legítimo, o governo deve ser fiel à
ordem jurídica. É coerente com essa posição que, na maioria dos países europeus,
as primeiras leis de segurança dos operários procurem proteger mulheres e crian-
ças, que na época não são considerados cidadãos no sentido da igualdade legal36.
Pelo mesmo critério, todos os adultos do sexo masculino são cidadãos porque têm
o poder de engajar-se no esforço económico e cuidar de si mesmos. Conseqúente-
mente, são excluídos de qualquer pretensão legítima à proteção. Desse modo,
direitos formalmente garantidos beneficiam o afortunado e, mais esporadicamente,
aqueles que são definidos legalmente como desiguais, enquanto toda uma carga de
rápida mudança económica cai sobre o "pobre trabalhador", fornecendo, desse
modo, uma base para a agitação, muito em breve.
Essa agitação é política desde o início. Um dos primeiros resultados da
proteção legislativa da liberdade de contrato é a proibição legislativa dos sindica-
tos. Porém, onde os recursos legislativos são usados tanto para proteger a liberdade
do contrato individual como para negar às classes baixas os direitos de recorrer por
sua vez à mesma liberdade (isto é, o direito de associação), os ataques sobre a
desigualdade se ampliam necessariamente. A igualdade não é mais procurada por
meio da liberdade de contrato apenas, mas pelo estabelecimento dos direitos sociais
e políticos igualmente. Os Estados-nacões da Europa ocidental podem recordar
histórias mais longas ou mais curtas das acões legislativas e decisões administra-
tivas que aumentaram a igualdade dos súditos dos diferentes estratos da população

36. O igualitarismo ideológico, bem como um interesse em demolir restrições familiares na liberdade de
ação económica, foram presumivelmente a razão pela qual a proteção foi estendida primeiramente aos
setores mais desarticulados da "classe baixa". A respeito de uma análise crítica do Código Civil alemão
de 1888 —, exclusivamente em termos dos interesses económicos a qae serviriam suas disposições, ver
Anton Menger, Das búrgcrliche Rccht und dic besitzlosen VolksiiasseiL, Tubingen, H. Laupp'sche
Buchhandlung, 1908. O livro foi publicado originalmente ern 1890. Essa perspectiva omite o interesse
auto-sustentado na legalidade formal que é obra de profissionais legais, e conduz ao prolongado conflito
entre o positivismo legal e a doutrina da lei natural. Ver a esse respeito a análise de Max Weber, Law
in Economy and Socicty, Cambridge, Harvard University Press, 1954, pp. 284-321. Ver também a
esclarecedora discussão desse ponto em Fr. Darmstaedter, Dic Grenzen der Wirksamkeit dês Rcchts-
staates, Heidelberg, Cari Winter Universitãtsbuchhandlung, 1930, pp. 52-84.

113
REINHARD BESDIX
em termos de sua capacidade legal e de seu status legal5". Para cada Estado-nação
e para cada conjunto de instituições podemos apontar com exatidão cronologias
das medidas públicas tomadas e traçar as sequências de pressões e contrapressões,
negociações e manobras, por trás de cada extensão de direitos além dos estratos
dos privilegiados tradicionalmente. A extensão de vários direitos às classes baixas
constitui um desenvolvimento característico de cada país. Uma consideração
detalhada de cada um desses desenvolvimentos notaria o considerável grau com
que os decretos-leis são negados ou violados na prática. Ela sublinharia, portanto,
como a questão da posição cívica das classes baixas era enfrentada ou burlada em
cada país, quais alternativas políticas estavam em estudo, e quais os passos
sucessivos que conduziram finalmente à extensão dos direitos de cidadania. Uma
análise completa poderia esclarecer cada passo ao longo do caminho, mas também
obscureceria o processo global da construção da nação.
Pelo fato de serem considerados em conjunto, os desenvolvimentos dos
vários países europeus também constituem a transformação desde as sociedades
patrimoniais do século XVIII até o Estado de bem-estar do século XX. Um estudo
comparativo dessa transformação do ponto de vista da cidadania nacional parecerá
inevitavelmente abstrato se for justaposto à cronologia específica e à análise
detalhada dos sucessivos decretos legislativos em cada país. Contudo, esse estudo
terá a vantagem de enfatizar a verdade que, considerados cumulativamente e a
longo prazo, os decretos legislativos estenderam os direitos de cidadania às classes
baixas e, portanto, representam um processo genuinamente comparável na Europa
dos séculos XIX e XX.
A discussão que se segue limita-se a um aspecto da construção da nação
europeia ocidental: a entrada das classes inferiores na arena da política nacional.
São consideradas apenas as políticas que têm relevância imediata para os movi-
mentos das classes baixas que procuram ingressar na política nacional38. As
decisões sobre o direito de formar associações e sobre o direito de receber um
mínimo de educação formal são básicas, pois esses direitos estabelecem a plata-
37. Quando todos os cidadãos adultos são iguais perante a lei e livres para dar seu voto, o exercício desses
direitos depende da habilidade e disposição de uma pesssoa para usar os poderes legais a que tem direito.
Por outro lado, o status legal dos cidadãos envolve direitos e deveres que não podem ser voluntaria-
mente mudados sem a intervenção do Estado. Uma discussão da distinção conceituai entre a capacidade
como "o poder legal de fazer" e o status como "o estado legal de ser" encontra-se em Graveson, op.
aí., pp. 55-57.
38. Conseqiientemente, apenas uma consideração incidental é dada às fases inicial e final nesse processo
de mudança: o colapso das sociedades patrimoniais através da extensão dos direitos civis e a codificação
e implementação finais dos direitos ao bem-estar em nossas sociedades "de consumo de massa"
modernas.
114
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

forma para a entrada das classes baixas e condicionam as estratégias e atividades


dos movimentos das classes baixas, uma vez que são formalmente autorizadas a
participar na política. Em seguida, os direitos de participação reais são analisados
em termos da extensão do direito de voto e das disposições para o voto secreto. No
conjunto, a extensão desses direitos é indicativa do que se pode chamar de
incorporação cívica das classes baixas.

Um direito civil básico: o direito de associação e de reunião

Os direitos civis são essenciais a uma economia de mercado competitiva,


porque "dão a cada homem, como parte de seu status individual, o poder de se
engajar como uma unidade independente no esforço económico"3''. Mas, tomando
conhecimento apenas de pessoas que possuem os meios de proteger-se a si mesmas,
a lei efetivamente concede direitos civis àquelas que possuem propriedade ou que
asseguraram fontes de renda. Todas as outras permanecem condenadas por seu
fracasso no esforço económico, de acordo com as opiniões prevalecentes do início
do século XIX. O princípio abstraio de igualdade, que fundamenta o reconhecimen-
to legal e ideológico do indivíduo independente, é muitas vezes a causa direta das
acentuadas desigualdades. No presente contexto, a ilustração mais relevante dessa
consequência é a insistência da lei de que o contrato salarial é um contrato entre
iguais, que o empregador e o trabalhador são igualmente capazes de salvaguardar
seus interesses. Com base nessa igualdade legal formal, em muitos países europeus
negou-se aos trabalhadores o direito de reunião, por causa da negociação com seus
empregadores.
Contudo. a negação do direito de reunião deu origem a dificuldades concei-
tuais e políticas desde o início. Os direitos civis referem-se não só aos direitos de
propriedade e contrato, mas também à liberdade de palavra, pensamento, e confis-
são, que incluem a liberdade de juntar-se a outras pessoas na busca de legítimos
objetivos privados. Tais liberdades baseiam-se no direito de associação — um
princípio legal aceito em vários países europeus (França, Inglaterra, Bélgica,
Holanda), que resolveram, no entanto, proibir aos trabalhadores o direito de
reunião. Sustentava-se que as condições de trabalho devem ser fixadas por acordos
alcançados livremente entre um indivíduo e outro4". Essas proibições legais distin-

30. Marshall, op. cit., p. 87. Itálicos acrescentados por mim.


40. Ver a declaração de Lê Chapelier, autor da lei francesa qoe proibia os sindicatos, de julho de 1791,
como é citada no International Labour Office, Frccdom of Associarions, ILO Studies and Reports,
Series A., n. 28, London, P. S. King & Son, 1928, p. 11. Outras referências a essa obra de 5 volumes
serão dadas no formulário ILO Rcport, com o número e páginas citadas.

115
RE/NHARD BEND1X
guiam-se, entretanto, do direito de formar associações religiosas ou políticas na
medida em que as associações não especificamente proibidas por lei eram legais.
Consequentemente, os decretos particularizavam trabalhadores de várias condi-
ções, mediante regulamentos especiais a fim de "preservar" o princípio de igual-
dade formal perante a lei.
A distinção entre associação e reunião não era feita, contudo, em todos os
países. Para entender esse contraste, devemos recordar a abordagem tradicional do
relacionamento amo-servo, que era semelhante em muitos países europeus. Decre-
tos estatutários foram usados para regulamentar as relações entre amos e servos e
para controlar a tendência dos amos e artífices a se reunirem, no interesse dos
preços ou salários crescentes. Tal regulamentação ganhou importância à medida
que as organizações corporativas declinaram, embora as regulamentações gover-
namentais tivessem se tornado muitas vezes ineficazes pelos novos problemas que
se originaram no acelerado desenvolvimento económico. Os esforços para enfren-
tar esses novos problemas podiam tomar várias formas.
O governo podia tentar usar uma extensão dos dispositivos tradicionais. Essa
abordagem funcionou temporariamente na Inglaterra, mas diminuiu a distinção
entre associações, que eram permitidas, e reuniões de trabalhadores, que eram
proibidas. Nos países escandinavos e na Suíça, as políticas tradicionais tiveram
mais êxito. Esses países permaneceram predominantemente agrícolas até tarde no
século XIX. Eles experimentaram uma notável proliferação de associações religio-
sas, culturais, económicas e políticas que acompanharam o declínio da sociedade
de Estado. Excetuando-se alguns casos de conflitos violentos, seus governos pouco
ou nada fizeram para restringir nem para legalizar essas atividades. Havia diferen-
ças ali também nos vários esforços para enfrentar o crescente desgoverno dos
artífices e trabalhadores agrícolas. Mas nenhum desses países foi tão longe quanto
a Inglaterra na decretação de uma legislação proibitiva especial destinada a aniqui-
lar mais do que a moderar as reuniões dos trabalhadores. Nesse cenário tradicional,
com sua ideologia patrimonial, tal proibição teria violado o amplamente aceito
direito de associação.
Tais reservas não prevaleceram na Prússia e na Áustria, onde, no final do
século XVIII, os controles absolutistas tradicionais sobre as associações de artífices
foram estendidas a uma proibição geral de todas as "assembleias secretas", como
no Código Civil prussiano de 1794. Essa proibição era dirigida principalmente
contra os maçons livres e outras formas primitivas de organizações quase políticas,
que estavam florescendo em resposta às ideias e acontecimentos da Revolução
Francesa (tal legislação era usada contra as reuniões de trabalhadores igualmente).
Uma proibição específica da última ocorreu na Prússia apenas nos anos de 1840,
776
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

embora na Áustria já tivesse ocorrido em 1803. Essa abordagem absolutista pode


ser considerada junto com políticas análogas em outros lugares, que tiveram em
grande parte o mesmo efeito geral sobre as reuniões dos trabalhadores. Na Itália e
na Espanha, as restrições da atividade associativa eram tradicionais e locais, e
dificilmente requeriam dispositivos legislativos específicos para assegurar sua
implementação. Na França, por outro lado, a tradição plebiscitaria de relações
diretas entre Estado e cidadão levaram à promulgação da famosaLoi Lê Chapelier
em 1791, e essa tendência a restringir todas as associações foi fortalecida ainda
mais na época de Napoleão. Havia ali ampla evidência de que o governo absolutista
e o governo plebiscitário eram compatíveis entre si.
Finalmente, na Inglaterra, a manutenção a longo prazo da distinção hostil
entre associações e reuniões mostrou-se difícil. O direito de associação permitia a
agitação política, por meio da qual se podia resistir à proibição dos sindicatos.
Embora a Lei de 1824 que repelia as leis anti-reuniões não fosse efetiva, sua antiga
passagem é uma prova de oposição à desagradável continuação das reuniões de
trabalhadores. Vimos que essas medidas repressivas precisam ser comparadas com
aquelas outras nas quais as violações ficaram impunes, porque os empregadores
não apresentavam queixas e os magistrados não agiam na ausência de uma queixa.
Quando o declínio do sistema de guilda e o crescente progresso do desenvol-
vimento económico sugeriram a necessidade de novas regulamentações das rela-
ções patrão-empregado e das associações de artífices, os vários países da Europa
ocidental responderam com três tipos de políticas muito distintas. O tipo escandi-
navo e suíço continuou a tradicional organização dos ofícios no período moderno,
preservando o direito de associação, e ao mesmo tempo estendendo o regulamento
estatutário das relações entre patrão e empregado e das associações de artífices a
fim de enfrentar os novos problemas. Numa forma modificada, essa variante
representa o conceito medieval de liberdade como um privilégio, um conceito que
certamente contribui para um reforço estatutário dos arranjos existentes. O segundo
tipo, o absolutista, é exemplificado pela proibição prussiana primeiro das associações
de trabalhadores, depois de todas as assembleias secretas, e finalmente das recém-for-
madas reuniões de trabalhadores - mantendo a política do absolutismo esclarecido que
procura regular todas as fases da vida social e económica. Esse tipo representa uma
importante ruptura com a tradição de liberdade como um privilégio jurídico, na medida
em que o rei destrói todos os poderes que se interpõem entre ele mesmo e seus súditos,
embora essa destruição pudesse ser igualmente radical sob o patrocínio plebiscitário.
Finalmente, a política liberal exemplificada pela Inglaterra passou da antiga regula-
mentação das guildas e do relacionamento patrão-empregado para uma política que
combinava a proibição específica das reuniões dos trabalhadores com a preservação
777
REI.VHARD BESD1X
do direito de associação em outros aspectos. Assim, o liberalismo, com sua hostil
distinção entre associação e reunião, representa um limite na metade do caminho
entre a preservação do direito de associação (como era compreendido na estrutura
pré-moderna da Europa) e a negação completa do direito de associação, que era uma
excrescência do absolutismo e uma oposição plebiscitaria aos poderes inde-
pendentes dos Estados e corporações.
Países do primeiro tipo caracterizavam-se por histórias de repressão relati-
vamente insignificantes, enquanto os países dos outros dois tipos suprimiram as
reuniões dos trabalhadores por proibição expressa ou por severas regulamentações
estatutárias por períodos que vão de 75 a 120 anos. Podemos comparar os países
em termos desse intervalo entre as primeiras medidas decisivas, tomadas para
reprimir tendências às reuniões dos trabalhadores, e a decisão final de aceitar os
sindicatos. Na Dinamarca, por exemplo, esse intervalo compreendeu 49 anos, na
Inglaterra, 76 anos, e na Prússia/Alemanha, 105 ou 124 anos, conforme conside-
remos 1899 ou 1918 como a data mais apropriada para o reconhecimento legal dos
sindicatos. Mas a datação desses intervalos é problemática. Os primeiros atos de
repressão obscureceram inevitavelmente a distinção entre uma mera extensão de
regulamentos tradicionais e uma nova e mais severa proibição que individualizava
a classe trabalhadora recentemente emergente. É também difícil datar precisamente
a legislação final dos sindicatos, pois, na maioria dos casos, tal legislação ocorreu
gradualmente. Todavia, essas dificuldades de datação não invalidam a aproximada
tipologia tripartite das políticas que guiaram a extensão do direito de associação às
classes inferiores na Europa ocidental.
O direito legal de formar associações combina o princípio plebiscitário com
o funcional. Sempre que todos os cidadãos possuem esse direito, temos um
exemplo de plebiscitarianismo no sentido formal de que todos gozam da mesma
capacidade legal para agir. Contudo, na prática, apenas alguns grupos de cidadãos
usufruem essa vantagem, enquanto uma grande maioria permanece "desorganiza-
da". Portanto, nos Estados-nações em desenvolvimento da Europa ocidental, as
associações privadas exemplificam o princípio funcional de representação com
base nos interesses comuns, em contraste com os Estados medievais, que gozavam
coletivamente do privilégio de exercer certos direitos públicos em troca de uma
responsabilidade legal comum. Logo foi reconhecido que as organizações baseadas
em interesses económicos comuns perpetuariam ou restabeleceriam princípios
corporativos análogos àqueles do período medieval41. Em seu argumento contra as
41. Não aprofundaremos a questão da continuidade ou descontinuidade entre corporações medievais e
modernas, um problema tratado extensamente nos escritos de Figgis, Gierke, Maitland e outros.
118
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

sociedades de benefício mútuo, Lê Chapelier expressa essa opinião em seu discurso


de 1791 perante a Assembleia Constituinte, ao qual se fez referência anteriormente:

As corporações em questão têm o objetivo confesso de obter assistência para os trabalha-


dores na mesma ocupação onde adoecem ou ficam desempregados. Mas que não haja erro nessa
questão. É do interesse da nação e dos funcionários públicos fornecer trabalho aos que dele
necessitam para seu sustento e socorrer os doentes [...] Não se deve permitir que os cidadãos em
certas ocupações se reunam na defesa de seus pretensos interesses comuns. Não deve mais haver
guildas no Estado, mas apenas o interesse individual de cada cidadão e o interesse geral. Não
se permitirá a ninguém despertar em nenhum cidadão nenhuma espécie de interesse intermediá-
rio, nem apartá-lo do bem-estar público por intermédio de interesses corporativos42.

É difícil manter de modo coerente essa posição radicalmente plebiscitaria


que não tolera a organização de nenhum "interesse intermediário". Pois as tendên-
cias individualistas da esfera económica, que são parcialmente responsáveis por
essa posição, são igualmente responsáveis pelos desenvolvimentos legais que a
solapam. Uma crescente economia de câmbio, com sua rápida diversificação de
transações, dá origem à questão de como o significado legal de cada transação pode
ser determinado inequivocamente. Essa questão é parcialmente respondida atri-
buindo-sc "personalidade jurídica" a organizações como firmas comerciais e,
portanto, separando as esferas legais dos acionistas e funcionários da esfera legal
da própria organização43. A incorporação estabelece a responsabilidade legal
separada da organização, limitando assim a responsabilidade de seus membros ou
agentes individuais. Embora a "responsabilidade limitada" tenha sido denunciada
a certa altura como uma infracão da responsabilidade individual, interesses maci-

42. Citado em ILO Rcport. n. 29, p. 89. A declaração de Lê Chapelier reflete o princípio enunciado por
Rousseau: "Se. ao deliberar, as pessoas, suficientemente informadas, não tiverem mantido nenhuma
comunicação entre elas, a panir do grande total de diferenças superficiais, o [total] geral sempre dará
bom resultado, e suas resoluções serão sempre boas. Mas quando conluios e associações parciais são
formados às expensas da grande associação, a vontade de cada uma dessas associações, embora geral
cm relação a seus membros, é privada em relação ao Estado: não se pode mais dizer que há tantos
eleitores quantos forem os homens, mas apenas tantas quantas forem as associações. Desse modo, sendo
as diferenças menos numerosas, elas produzem um resultado menos geral. Finalmente, quando uma
dessas associações se torna tão grande que prevalece sobre todo o resto, não se tem mais a soma de
muitas opiniões que diferem até certo ponto umas das outras, mas um grande dissidente autoritário; a
partir desse momento, não há mais uma vontade geral, e a opinião predominante é apenas individual.
É, portanto, da maior importância, para obter a expressão da vontade geral, que nenhuma sociedade
parcial seja formada no Estado, e que cada cidadão expresse sua opinião inteiramente por si mesmo
[...]". Ver Jean-Jacques Rousseau, The Social Conlract, New York, Hafner Publishing Company, 1957,
pp. 26-27.
43. Webcr, Law in Economy andSociety, pp. 156-157 e ss. Os editores acrescentaram referências à extensa
literatura nesse campo.

119
REINHARD BEND1X
cos eram atendidos por esse novo artifício, e as objeções baseadas no conceito de
obrigação foram rapidamente superadas. A incorporação é a mais importante
brecha na posição estritamente plebiscitaria. Ela representa uma primeira limitação
daquele individualismo radical que apoia a igualdade estritamente formal perante
a lei e se opõe à formação de "interesses intermediários".
Marshall afirma que no campo dos direitos civis "o movimento foi [...] não
da representação de comunidades para a dos indivíduos [como na história do
Parlamento], mas da representação de indivíduos para a de comunidades"44. O
dispositivo da incorporação e o princípio afim da responsabilidade limitada possi-
bilitaram a uma empresa económica assumir riscos e maximizar ativos económicos
em nome e em benefício de acionistas individuais. Por intermédio de seus funcio-
nários, a empresa desempenha uma função representativa, no sentido de que toma
decisões e assume responsabilidades para a coletividade de seus investidores, que
é frequentemente composta por outros grupos incorporados bem como por indi-
víduos. Durante a maior parte do século XIX, essa função representativa da
corporação limitava-se a objetivos económicos. Contudo, conceitos como "cura-
doria incorporada", o desenvolvimento das relações públicas e a participação
política direta de muitas corporações grandes sugerem que, nas últimas décadas,
essa antiga restrição foi abandonada — um desenvolvimento cujo significado para
a cidadania ainda precisa ser explorado.
Essas considerações fornecem um fundamento útil para a compreensão da
posição especial dos sindicatos. Como Marshall observa, os sindicatos:
[...] não procuraram nem obtiveram a incorporação. Podem, portanto, exercer os direitos civis
vitais coletivamente em nome de seus membros, sem responsabilidade coletiva formal, enquanto
a responsabilidade individual dos trabalhadores em relação ao contrato é em larga medida
inexequível [...]45
Se tomarmos como ponto de partida a proibição ou a severa restrição de
reuniões, o desenvolvimento dos sindicatos também exemplifica o movimento dos
direitos civis que vai da representação de indivíduos para a de comunidades. Essa
representação coletiva dos interesses económicos dos membros surge da inabili-
dade dos trabalhadores de salvaguardar seus interesses individualmente. Os sindi-
catos procuram levantar a posição económica de seus membros. Os trabalhadores
organizam-se a fim de atingir o nível de recompensa económica ao qual sentem ter
44. Marshall, op. cit., p. 94.
45. Idcm, p. 93. A discussão seguinte baseia-se na análise de Marshall nas pp. 93-94, mas sua tónica difere
ligeiramente.
120
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

direito — um nível que na prática depende da capacidade de organizar e de negociar


"o que sustentará a negociação". Esses resultados práticos dos sindicatos têm um
efeito de longo alcance na posição dos trabalhadores como cidadãos. Pois, através
dos sindicatos e da negociação coletiva, o direito de reunião é usado para afirmar
"pretensões básicas aos elementos de justiça social"4'1. Desse modo, a extensão da
cidadania às classes baixas adquire o sentido especial de que, como cidadãos, os
membros dessas classes têm "direito" a certo padrão de bem-estar, em retribuição
ao qual são obrigados apenas a cumprir os deveres comuns de cidadania.
A legalização dos sindicatos é um exemplo da legislação habilitadora. Ela
permite aos membros das classes baixas se organizarem e, portanto, obterem uma
igualdade de poder de barganha que uma igualdade legal formal previamente
imposta lhes negara. Mas, para alcançar esse objetivo, torna-se necessário, como
vimos, arbitrar em favor de "reuniões", permitindo-lhes isenções legais sem as
quais os grupos em desvantagem são incapazes de se organizar efetivamente. Em
outras palavras, os direitos civis são aqui usados para habilitar as classes baixas a
participar mais efetivamente do que de outro modo aconteceria na luta económica
e política sobre a distribuição da renda nacional.
Contudo, muitos membros das classes baixas ou não se valem das oportuni-
dades que lhes são concedidas pela lei, ou são impedidos de fazê-lo pelos expe-
dientes exclusivistas ou neocorporativistas dos sindicatos estabelecidos. Por
conseguinte, com efeito, as oportunidades legais transformaram-se em privilégios
disponíveis aos trabalhadores que querem ou têm capacidade para organizar-se a
fim de aumentar seus interesses económicos. Tais privilégios são, por sua vez,
fortalecidos por expedientes legais, extralegais e ilegais para tornar a participação
no sindicato obrigatória ou a não-participação muito custosa. Assim, o direito de
reunião transforma-se num "privilégio daqueles organizados em sindicatos". Num
certo sentido, esta é uma medida da fraqueza das tendências corporativistas nas
sociedades ocidentais modernas, uma vez que o mesmo direito aplicado generica-
mente significaria que cada adulto pertence a uma organização representativa de
sua ocupação. Em vez disso, o direito de reunião deu origem a um "enclave
corporativista". A própria eficácia de práticas exclusivas pelos sindicatos torna a
filiação quase obrigatória, por mais vantajosa e involuntariamente ela esteja muitas
vezes relacionada com o fracasso de esforços para novos membros. Desse modo,
o direito de reunião pode ser usado para reforçar as pretensões a uma participação
na renda e nos benefícios às expensas do não-filiado e dos consumidores. Essa
posição excepcional de alguns sindicatos não alterou o princípio de que os direitos

46. Idcm, p. 94.

121
RE1NHARD BENDIX
civis são facultativos mais do que obrigatórios, embora se possa dizer que ela o
violou. Essa facultatividade dos direitos civis precisa de uma ênfase especial no
presente contexto, por causa do contraste com o segundo elemento da cidadania,
os direitos sociais, aos quais nos voltaremos agora.
Um direito social básico: o direito à educação básica
O direito à educação básica é semelhante ao "direito de reunião". Enquanto
um grande contingente da população é desprovido de educação básica, o acesso às
facilidades educacionais aparece como uma precondição sem a qual outros direitos
legais permanecem inacessíveis ao analfabeto. Fornecer os rudimentos de educa-
ção aos analfabetos aparece como um ato de liberação. Todavia, os direitos sociais
são distintivos pelo fato de, comumente, não permitirem ao indivíduo decidir se
deve ou não tirar proveito de suas vantagens. Como a regulamentação legislativa
das condições de trabalho para mulheres e crianças, o seguro compulsório contra
acidentes na indústria, e medidas de bem-estar semelhantes, o direito a uma
educação básica não se distingue do dever de frequentar a escola. Em todas as
sociedades ocidentais, a educação básica tornou-se um dever de cidadania, talvez
o mais antigo exemplo de um mínimo prescrito, reforçado por todos os poderes do
Estado moderno. Dois atributos da educação básica transformaram-na num ele-
mento da cidadania: o governo tem autoridade sobre ela, e os pais de todas as
crianças de um certo grupo etário (geralmente dos 6 aos 10 ou 12 anos) são
obrigados por lei a providenciar para que os filhos frequentem a escola.
Os direitos sociais como um atributo da cidadania podem ser considerados
benefícios que compensam o indivíduo por seu consentimento em ser governado
pelas leis e pelos agentes de sua comunidade política nacional47. É importante notar
o elemento de acordo ou consenso que está na raiz da relação direta entre os órgãos
centrais do Estado-nação e cada membro da comunidade. Mas voltando agora à
consideração dos direitos sociais, descobrimos que esse princípio de igualdade
plebiscitário antes do Estado-nação soberano envolve deveres, bem como direitos.
Cada indivíduo elegível é obrigado a participar nos serviços fornecidos pelo
Estado. É um tanto inadequado igualmente usar o termo "plebiscitário" para esse
aspecto obrigatório da cidadania. Todavia, há uma semelhança familiar entre o
direito de todos os cidadãos de participar (através do direito do voto) nos processos
decisórios do governo e o dever de todos os pais de providenciarem para que seus
47. Essa formulação deve-se à percepliva análise de Joseph Tussman, Obligalion and thc Body Politic,
New York, Oxford University Press, 1960, cap. II.
722
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

filhos na faixa etária estabelecida frequentem a escola. Num Estado de bem-estar


completamente desenvolvido, os cidadãos como eleitores decidem fornecer os
serviços nos quais os cidadãos como os pais das crianças em idade escolar são então
obrigados a participar. O direito a voto ó facultativo, enquanto os benefícios da
frequência à escola são obrigatórios. Mas ambos são princípios de igualdade que
estabelecem uma relação direta entre os órgãos centrais do Estado-nação e cada
membro da comunidade, e essa relação direta é o sentido específico da cidadania
nacional.
Pode ser útil reiterar as principais distinções nesse ponto. Há primeiramente
a distinção entre uma relação indireta e uma relação direta entre o Estado-nação e
o cidadão. Discutimos a relação indireta no capítulo precedente em conexão com
os direitos de associação e o direito de reunião. Embora esses direitos civis sejam
em princípio acessíveis a todos, na prática eles são exigidos por classes de pessoas
que partilham certos atributos sociais e económicos. Portanto, a representação de
grupo (ou funcional) é de importância contínua, mesmo depois de o antigo princí-
pio medieval de jurisdições privilegiadas ter sido substituído pela igualdade
perante a lei. Voltando agora à relação direta entre o Estado-nação e o cidadão,
consideremos os direitos sociais antes de voltarmos à discussão dos direitos
políticos. A extensão de direitos sociais com sua ênfase na obrigação pode deixar
intacto o privilégio e ampliar os deveres e benefícios do povo, sem encorajar,
necessariamente, sua mobilização social, considerando que a extensão do direito
de voto destrói inequivocamente o privilégio e aumenta a participação ativa do
povo nos negócios públicos.
Há uma clara indicação de que no continente europeu o princípio de uma
educação básica para as classes baixas emergiu como um subproduto do absolutismo
esclarecido. Na Dinamarca, por exemplo, Frederico IV estabeleceu escolas básicas
em seus próprios domínios já no ano de 1721, dotando-as com recursos suficientes
e um corpo docente fixo. Tentativas de dar sequência a essa política falharam, porque
os proprietários de terras furtaram-se a suas obrigações de empregar e remunerar os
professores, impondo encargos como os salários do professor aos camponeses, que
dificilmente podiam arcar com eles. Continuando as principais medidas para aliviar
as obrigações impostas aos camponeses (1787-88), Frederico VI agiu no sentido de
estabelecer uma nova organização de escolas básicas que permaneceu como a base
da educação nacional na Dinamarca desde 1814.
Esse desenvolvimento dinamarquês pode ser comparado com o correspon-
dente desenvolvimento na Prússia, onde o programa de um sistema de educação
nacional também se desenvolveu cedo. O propósito profundamente conservador
desse programa é indubitável. Em 1737, uma lei prussiana de escola básica foi
123
REINHARD BENDIX
editada com o comentário de que o rei ficara preocupado ao ver jovens vivendo e
crescendo nas trevas e, portanto, sofrendo danos tanto temporalmente como em
suas almas eternas. Nessa ocasião, o rei doou uma soma para facilitar o emprego
de professores capacitados, e, por várias décadas após isso, os reis prussianos e
seus funcionários promoveram o esquema com base nessas verbas incidentais. Em
1763, foi publicado um decreto regulamentando os negócios escolares para toda a
monarquia e incluindo disposições para medidas disciplinares contra professores
que negligenciavam seus deveres, encarando, desse modo, pelo menos uma admi-
nistração regular das escolas. Ao mesmo tempo, foram feitos esforços para aliviar
a carência de professores destinando-se fundos especiais para esse propósito. Essas
medidas enfrentaram dificuldades, porque os pais relutavam em enviar os filhos à
escola, e corporações locais não assumiam sua parte na responsabilidade financei-
ra. Em 1794, as escolas (junto com as universidades) foram declaradas instituições
do Estado, e, nos anos subsequentes, todo o sistema de educação nacional tornou-se
parte de um movimento de libertação nacional contra Napoleão. Embora alguns
oficiais expressassem publicamente suas dúvidas quanto à utilidade da alfabetiza-
ção para o homem comum, a derrota militar e o entusiasmo patriótico geralmente
removiam tais dúvidas. Declarações oficiais pediam que fosse dado a todos os
súditos sem exceção conhecimento útil; a educação nacional levantaria o espírito
moral, religioso e patriótico do povo48. Com toda probabilidade, a educação
nacional tornou-se aceitável para os governantes conservadores da Prússia porque
ajudava a instilar a lealdade ao rei e ao país na população. Cabe lembrar, entretanto,
que, no campo do recrutamento militar, o mesmo esforço para mobilizar o povo
nas guerras de libertação criou grandes controvérsias e provocou uma reação muito
forte entre os ultraconservadores, uma vez passado o perigo imediato4'1. Portanto,
o absolutismo esclarecido pode ser considerado o pioneiro relutante ou equívoco
na extensão dos direitos sociais ao povo. O governo absolutista endossava o
princípio de que nada devia intervir entre o rei e seu povo, e, por conseguinte, de
que o rei por sua livre vontade distribuísse benefícios entre ele. Mas o absolutismo
naturalmente insiste que o povo são os súditos do rei; ele rejeita a ideia de direitos
e deveres derivados da autoridade soberana do Estado-nação e devidos a ela5".
48. Os dois parágrafos precedentes baseiam-se na obra de A. Petersilie, Das óffcntliche Unterrichtswesen,
vol. III de H and- und Lchrbuch der Staatswissenschaftcn, Leipzig, C. L. Hirschfeld, 1897, I, pp.
158-166, 203-204, e passim.
49. Sobre detalhes ver o excelente estudo de Gerhard Ritter, Staatskunst und Kriegshandwcrk, Munich, R.
Oldenbourg, 1959,1, caps. 4 e 5.
50. O significado dos regimes absolutistas para a educação básica varia com as crenças religiosas
prevalecentes do país. Na Áustria, a educação básica era organizada pelo governo já em 1805, com o
dero agindo como agente supervisor do Estado. Nos países católicos com menor unidade religiosa que
124
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVlll

As ideias de cidadania nacional e de uma autoridade nacional soberana são


conceitos básicos do liberalismo. Elas têm relevância especial para a educação,
porque na Europa o ensino esteve nas mãos do clero durante séculos. Conseqiien-
temente, as escolas estavam mais sob a autoridade clerical do que política, de modo
que os alunos, para receber educação, são submetidos a essa jurisdição especial.
Esse controle clerical é destruído quando os dirigentes absolutistas ou o Estado-
nação adquire autoridade sobre as escolas. Na Prússia luterana, esse controle
secular sobre a educação podia ser imposto sem dificuldade. Quando os ministros
da Igreja, bem como os professores, são submetidos à autoridade soberana do rei,
é fácil recrutar os ministros para a profissão docente. Mas quando, como na França,
o clero católico está sob uma autoridade separada da do Estado, o estabelecimento
de um sistema nacional de educação e, portanto, de uma relação direta entre cada
cidadão e o governo torna-se incompatível com o sistema vigente. Em seu Essai
d'Éducation Nationale, publicado em 1763, La Chalotais opõe-se ao controle do
clero sobre a educação pleiteando que o ensino de letras e ciências devia ficar nas
mãos de uma profissão secular. Após observar que eminentes homens de letras são
leigos, mais do que clérigos, e que "padres desocupados" infestam as cidades
enquanto o país está desprovido de clero, La Chalotais continua:

Para ensinar letras e ciências, devemos ter pessoas que façam delas uma profissão. O clero
não pode levar a mal não incluirmos os eclesiásticos, de um modo geral, nessa classe. Não sou injusto
por excluí-los dela. Reconheço com prazer que há vários [...] que são muito instruídos e muito capazes
de ensinar [...] Mas protesto contra a exclusão dos leigos. Reclamo o direito de exigir para a Nação
uma educação que dependa apenas do Estado; porque ela pertence essencialmente a ele, porque cada
nação tem um inalienável e imprescritível direito de instruir seus membros, e finalmente porque as
crianças do Estado devem ser educadas por membros do Estado51.

Essa declaração assemelha-se ao princípio plebiscitário enunciado por Lê


Chapelier acima citado52. Enquanto Lê Chapelier argumentava contra as sociedades
de benefício mútuo, baseado em que não se deve permitir que nenhum "interesse

a Áustria, essa abordagem não se mostrou possível; na Franca, por exemplo, a tradicional pretensão
católica de supervisionar a educação foi desafiada no ano de 1760 pela supressão dos jesuítas e pelo
endosso de um sistema de educação leiga organizado nacionalmente (ver pp. 121 e s.). Ademais, em
países com Igrejas estatais protestantes (Prússia, Dinamarca, Noruega e Suécia), pouco ou nenhum
conflito foi verificado na medida em que a unidade de Igreja e Estado na pessoa do monarca concedia
ao último autoridade de governo sobre a educação básica, com ministros da Igreja agindo nesse campo
como agentes do monarca ou (depois) de um ministro da educação e negócios eclesiásticos.
51. Ver La Chalotais, "Essay on National Education", em F. de Ia Fontainerie (ed.), Frcnch Libcralism
and Education in thc Eightccnth Ccntury, New York, McGraw-HilI Book Company, 1932, pp. 52-53.
52. «em, p. 115, n. 42.

125
KEINHARD BENDIX
intermediário" separe nenhum cidadão do "bem-estar público através de interesses
corporativos", La Chalotais repete aqui a mesma ideia em seu argumento contra o
clero. Deve haver uma profissão de professores que esteja inteiramente à disposi-
ção do Estado, a fim de implementar um programa de instrução no qual nada
interfira entre as "crianças do Estado" e os professores, que são membros e
servidores do Estado.
Posteriormente, o princípio de um sistema nacional de educação básica
também se tornou aceitável à emergente força de trabalho industrial. Entre os
trabalhadores, o desejo de se educar era forte, em parte para aumentar as chances
na vida, em parte por ver que com ela os filhos tinham mais futuro que seus pais,
e em parte para dar mais peso às reivindicações políticas feitas em nome da classe
trabalhadora. Se esse desejo levou a esforços voluntários para fornecer oportuni-
dades educacionais aos trabalhadores, como ocorreu especialmente na Inglaterra e
na Alemanha, tal ação foi em grande parte uma resposta ao fato de oportunidades
de outro tipo não lhes serem acessíveis. Uma vez que tais oportunidades se
tornaram acessíveis, esforços voluntários no campo da educação dos trabalhadores
diminuíram (ainda que não tenham cessado inteiramente), outra indicação da
relativa fragilidade das tendências corporativistas.
E provável, portanto, que os sistemas de educação nacional tenham se
desenvolvido tanto pelo fato de a demanda por educação básica ter interceptado o
espectro das crenças políticas. Ele é sustentado por conservadores que temem o
inerente desgoverno do povo, que deve ser refreado pela instrução nos fundamentos
de religião e, assim, instilar a lealdade ao rei e ao país. Os liberais afirmam que o
Estado-nação requer cidadãos educados por órgãos do Estado. E os oradores
populistas protestam que as massas populares que ajudam a criar a riqueza do país
devem partilhar das amenidades da civilização.
Contudo, a educação básica compulsória torna-se uma importante c contro-
vertida questão quando a autoridade governamental nesse campo entra em conflito
com a religião organizada. Tradicionalmente, a Igreja católica encara o ensino
como um de seus poderes inerentes, sendo o trabalho de instrução conduzido por
ordens religiosas. Segundo essa opinião, o princípio corporativo é soberano, na
medida em que a Igreja administra o "estado espiritual" do homem c possui, nesse
domínio, o direito e o dever de representação exclusivos. Esse princípio foi
desafiado durante o século XVIII na França, e o conflito sobre o controle clerical
ou laico da educação durou até presentemente. Conflitos semelhantes também
persistiram nos países protestantes, nos quais a população está acentuadamente
dividida sobre as questões religiosas. Isto é, um sistema de educação básica
nacional se opôs onde quer que a Igreja ou várias congregações religiosas insisti-
726
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

ram em interpor suas próprias oportunidades educacionais entre seus adeptos e o


Estado. Assim, países como a Inglaterra, a Bélgica e a Holanda foram cenário de
prolongados debates sobre a questão de permitir-se ou não, e em que condições,
ao governo nacional dar assistência ou exercer autoridade no campo da educação
básica. Na Inglaterra, por exemplo, as contribuições voluntárias à educação perfa-
ziam, em 1858, o dobro da quantia do apoio fornecido pelo governo. Desde 1870,
desenvolveu-se um novo sistema de escolas estatais, não como um substituto para
as escolas baseadas nas contribuições voluntárias, mas como acréscimo a elas.
Desse modo, até bem tarde no período moderno, os esforços locais e voluntários
preservam elementos da "representação funcional", apesar do crescimento contí-
nuo de um sistema de educação nacional (plebiscitário)53. Talvez o exemplo mais
importante do princípio corporativo ou representativo na educação seja o fornecido
pela Holanda com seus três sistemas de escolas separadas: uma católica, uma
calvinista e uma secular-humanista. O fato significativo aqui é que os três sistemas
são financiados pelo governo, e os três baseiam-se no princípio de frequência
obrigatória, combinando portanto claramente o princípio plebiscitário nas finanças
com o princípio representativo no controle organizacional e substantivo sobre o
processo educacional.

Direitos políticos: o direito de voto e o voto secreto

Essa tensão entre a orientação estatal e a orientação nacional na determinação


da política é até mais evidente nos debates e decretos concernentes aos direitos de
participação política: o direito de servir como um representante, o direito de votar
através de representantes, e o direito de escolha independente entre alternativas.
A condição básica para o desenvolvimento rumo aos direitos universais de
participação era a unificação do sistema de representação nacional. No fim da
Idade Média, o princípio de representação territorial foi gradualmente substituído
no continente europeu por um sistema de representação por Estados: cada Estado
enviava seus representantes em separado para deliberar no centro da autoridade
territorial, e cada um possuía sua assembleia em separado54. Somente na Inglaterra
o sistema original de representação territorial foi mantido: a Câmara dos Comuns

53. Ver o histórico esboço do desenvolvimento educacional inglês em Ernest Barker. The Dcvclopmcnt of
thc Public Scniccs in Western Europc, New York, Oxford University Press, 1944, pp. 85-93, e a
avaliação comparativa de Robert Ulich. Thc Education of .\ations. Cambridge, Harvard University
Press, 196l,passim.
54. A principal autoridade em história dos Estados corporativos e sua representação é ainda Otto von
Gierke, Das dcuischc Gcnosscnschaftsrccht. Berlin. Weidmann, 1868. I, pp. 534-581.

727
RE1NHARD BENDIX
não era uma assembleia dos Estados burgueses, mas um corpo de legisladores que
representavam as localidades constituintes do reino, os condados e os burgos. A
grande abertura da sociedade inglesa possibilitou a manutenção dos canais de
representação territorial, e isso, por sua vez, criou condições para uma transição
mais suave para um regime unificado de democracia igualitária55.
Apesar do princípio de representação nesses anciens regimes, apenas os
chefes de famílias economicamente independentes podiam participar na vida
pública. Essa participação era um direito que lhes advinha não de sua qualidade de
membro de alguma comunidade nacional, mas de sua qualidade de proprietários
de território ou capital ou de seu status no interior de corporações funcionais
legalmente definidas como a nobreza, a Igreja, ou as guildas de comerciantes ou
artesãos. Não havia representação de indivíduos: os membros das assembleias
representavam interesses no sistema, quer na forma de proprietários de terra ou na
forma de privilégios profissionais.
A Revolução Francesa realizou uma mudança fundamental na concepção de
representação: a unidade básica não era mais a família, a propriedade, ou a
corporação, mas o cidadão individual; e a representação não era mais canalizada
através de corpos funcionais separados, mas através de uma assembleia nacional
unificada de legisladores. A lei de 11 de agosto de 1792 chegou a conceder direito
de voto a todos os franceses do sexo masculino com mais de 21 anos que não fossem
servos, indigentes, ou vagabonds, e a Constituição de 1793 sequer excluía os
indigentes, desde que tivessem residido mais de seis meses no canton. A Restau-
ração não trouxe de volta a representação por Estados: em vez do regime censitaire
introduziu um critério monetário abstraio que interceptava decisivamente o antigo
critério do status atribuído.
Uma nova fase nesse desenvolvimento inaugurou-se com a Revolução de
1848 e a rápida difusão de movimentos pela democracia representativa através
da maior parte da Europa. Napoleão III demonstrou as possibilidades do sistema
plebiscitário, e os líderes das elites estabelecidas tornaram-se cada vez mais
divididos entre seus medos das consequências das rápidas extensões do sufrágio
às classes baixas e seu fascínio pelas possibilidades do fortalecimento dos
poderes do Estado-nação pela mobilização da classe trabalhadora a seu servi-
55. Essa questão de representação territorial vcrsus representação funcional é o cerne do debate sobre as
razões da sobrevivência do Parlamento na época de absolutismo. Otto Hintze sublinhou as continuida-
des históricas entre as formas de representação medieval e moderna e argumentou que as formas de
governo bicameral além do alcance do Império carolíngio ofereciam base mais adequada ao desenvol-
vimento do governo pluralista parlamentar. Ver sua "Typologie der stãndischen Verfassungen dês
Abendlandes", em Staatund Verfassung, pp. 120-139.
128
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

ço56. Esses conflitos de estratégia produziram uma grande variedade de compromissos


transitórios nos diferentes países. Os pontos de partida para esses desenvolvimentos
eram as disposições do Stãndestaat e o regime censitaire pós-revolucionário, e os
pontos finais eram as promulgações do sufrágio universal adulto. Mas os passos dados
e os caminhos escolhidos de um ponto ao outro variaram marcantemente de país a país
e refletiram diferenças básicas nos valores e características dominantes de cada
estrutura social57.
Podemos distinguir convenientemente cinco principais séries de critérios
usados para limitar o direito de voto durante esse período de transição: 1. critérios
de Estado tradicionais: restrição do direito de voto aos chefes das famílias dentro
de cada um dos grupos de status estabelecidos como definidos por lei; 2. regime
censitaire: restrições baseadas no valor da terra ou capital ou das quantias de
impostos anuais sobre a propriedade e/ou renda; 3. regime capacitaire: restrições
por capacidade de ler e escrever, educação formal, ou indicação para o serviço
público; 4. critérios de responsabilidade familiar: restrições aos chefes de famílias
que ocupam residências próprias com um tamanho mínimo determinado ou aloja-
dos provisoriamente em propriedades por um aluguel mínimo determinado, e 5.
critérios de residência: restrições a cidadãos registrados como residentes seja na
comunidade local, o distrito eleitoral, seja no território nacional por um mínimo
determinado de meses ou anos.

A Constituição norueguesa de 1814 fornece um bom exemplo de um antigo


compromisso entre critérios de Estado, o regime censitaire e Q príncipe capacitai-
re. O direito de voto era dado para quatro categorias de cidadãos: duas das quais,
os burghers de cidades incorporadas e os aldeões (proprietários de propriedade
livre e alodial e arrendatários), correspondiam aos velhos Estados; uma terceira,
aplicável apenas nas cidades e vilas, era definida por posse de Estado real de um
valor mínimo determinado, e a quarta era simplesmente a reunião de todos os
funcionários do governo nacional. Esse sistema dava uma clara maioria numérica
aos fazendeiros, mas, por precaução política, os interesses dos burgueses e funcio-
nários eram protegidos através de desigualdade na distribuição de mandatos entre

56. Ver H. Goilwitzer, "Der Cãsarismus Napoleons III im Widerhall der óffentlichen Meinung Deutsch-
lands", Historischc Zcitschrift, vol. 152, 1952, 23-79. Em alguns países as pretensões ao sufrágio
masculino universal tornaram-se intimamente ligadas à necessidade da conscrição universal. Na
Suécia, o principal argumento para a dissolução do Riksdag de quatro Estados era a necessidade de um
fortalecimento da defesa nacional. Nos debates do sufrágio sueco, o slogan "um homem, um voto, uma
arma" reflete essa ligação entre o direito de voto e o recrutamento militar.
57. Os detalhes desses desenvolvimentos foram expostos em compêndios como o de Georg Meyer, Das
parlamcntarischc Wahlrccht, Berlin, Hacring. 1901. e o de Karl Braunias, Das parlamentarischc
Wahlrccht, Berlin, de Gruyter, 1932, vol. 2.

129
RE1SHARD BESD1X
distritos eleitorais rurais e urbanos58. A simplicidade da estrutura social deu ao
compromisso norueguês um caráter direto: a velha divisão entre os Estados rurais
e burgueses correspondia a uma divisão administrativa estabelecida em distritos
rurais e vilas privilegiadas com cartas patentes, e a única classe de eleitores
explicitamente colocados acima dessa divisão território-funcional era a dos fun-
cionários do rei, os efetivos governantes da nação por várias décadas futuras.
Compromissos muito mais complexos tinham de ser projetados em políticas
multinacionais como a Áustria. Nos velhos territórios dos Habsburgos, o Landtag
típico consistira em quatro curiae: os nobres, os cavaleiros, os prelados, e os
representantes de cidades e mercados. AFebruarpatent de 1861 manteve a divisão
em quatro curiae, mas transformou o critério de Estado em critério de repre-
sentação de interesse. Os nobres e os cavaleiros foram sucedidos pela cúria dos
maiores proprietários de terras. O Estado eclesiástico era estendido numa cúria de
Virilstimmen que representava as universidades, bem como as dioceses. O Estado
burguês não era mais representado exclusivamente por porta-vozes das cidades e
mercados, mas também através das câmaras de comércio e das profissões: este era
o primeiro reconhecimento de um princípio corporativista que viria a adquirir
importância central nos debates ideológicos na Áustria no século XX. A essas três
acrescentou-se uma divisão aldeã: isso era novo no sistema nacional; a repre-
sentação aldeã direta do tipo tão conhecido nos países nórdicos só existiram no
Tirol e em Voralberg. A característica mais interessante da sequência de compro-
missos austríacos era o controle das classes baixas, excluídas por tanto tempo da
participação na política da nação. Fiel à sua tradição de representação funcional,
os políticos austríacos não admitiam esses novos cidadãos no mesmo nível dos já
emancipados, mas colocavam-nos numa nova cúria, a quinta, die allgemeine
Wãhlerklasse. Isso, contudo, era apenas uma medida transitória: onze anos depois,
mesmo a Abgeordnetenhaus austríaca conformou-se à tendência à democracia
igualitária de massa e foi transformada numa assembleia nacional unificada basea-
da no sufrágio masculino universal59.
A ascensão do capitalismo comercial e industrial favoreceu a difusão do
regime censitaire. A base ideológica era o argumento de Benjamin Constant de
58. Ver Stein Rokkan, "Geography, Region and Social Class: Cross-Cutting Cleavages in Norwegian
Politics", em S. M. Lipset e Stein Rokkan (eds.), Party Systems and VotcrAlignments, New York, The
Free Press of Glencoe, no prelo.
59. Uma útil avaliação desses desenvolvimentos na Áustria encontra-se em Ludwig Boyer, Wahlrccht in
Õsterrcich, Vienna, 1961, pp. 80-85. É interessante comparar a mistura austríaca de orientação
medieval de Estado e o corporativismo moderno com as providências russas para a Duma em 1906;
ver a detalhada análise de Max Weber em "Russlands Úbergang zum Scheinkonstitutionalismus",
Gcsammeltcpolitische Schriftcn, Tiibingen, J. C. B. Mohr, 1958, pp. 66-126.
130
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

que os negócios da comunidade nacional devem ser deixados àqueles com "inte-
resses reais" neles, mediante a posse de terra ou de investimentos em negócios. O
príncipe capacitaire era essencialmente uma extensão desse critério: o direito de
voto era concedido não apenas àqueles que possuíam terras ou tinham investido
em negócios, mas àqueles que haviam adquirido um interesse direto na manutenção
do Estado através de seus investimentos em capacitações profissionais e de seu
compromisso com posições de crédito público. A noção implícita é que apenas
esses cidadãos podem fazer julgamentos racionais das políticas a serem seguidas
pelo governo. Uma autoridade norueguesa em lei constitucional relaciona esses
dois elementos em sua afirmação: "O sufrágio [...] deve ser reservado aos cidadãos
que possuem discernimento suficiente para julgar quais deverão ser os melhores
representantes, e independência suficiente para apoiar sua convicção nessa ques-
tão"60.
Essa questão de critérios de independência intelectual era o cerne das disputas
entre liberais e conservadores sobre a organização do sufrágio. Os liberais defen-
diam o regime censitaire e temiam as possibilidades da manipulação eleitoral
inerente à extensão do sufrágio ao cidadão economicamente dependente. Os
conservadores, uma vez que reconheciam a importância do voto como base do
poder local, tendiam a defender a emancipação das "ordens mais baixas": tinham
bons motivos para esperar que, ao menos nos Estados patriarcais na região rural,
aqueles que estivessem em posições de dependência votariam naturalmente nos
notáveis locais. Esse conflito alcançou o auge nas discussões na Assembleia
Nacional alemã, em Frankfurt em 1848-1849. A Comissão Constitucional reco-
mendara que o direito de voto se restringisse a todos os cidadãos independentes, e
esse termo foi a princípio interpretado como excludente de todos os servos e os
que viviam de salários. Essa interpretação esbarrou em violentos protestos na
Assembleia. Havia um acordo geral de que todos os súditos que recebiam assistên-
cia pública ou estavam falidos não eram independentes e deviam ser excluídos do
direito de voto, mas havia muita dissensão sobre os direitos dos servos e trabalha-
dores. A esquerda exigia direitos totais para as classes baixas e enfrentava oposição
apenas moderada dos conservadores. O resultado foi a promulgação do sufrágio
masculino universal. Apesar disso, a lei não pôde ser cumprida na época: passa-
ram-se outros dezessete anos até que Bismarck conseguisse transformá-la na base
da organização do Reichstag na Federação da Alemanha do Norte. O chanceler
prussiano já tivera a experiência de um sistema de sufrágio universal, mas um
sistema marcantemente desigual - o sistema prussiano de sufrágio de três classes

60. T. H. Aschehoug, Norgcs nuvcrcndc Statsforfatning. Chnstiania. Aschehoug, 1875, vol. I, p. 280.

131
REINHARD BEND1X
introduzido pelo decreto real em 1849. Sob esse sistema, as "ordens mais baixas"
receberam o direito de voto, mas o peso de seus votos era infinitesimal em
comparação com o das classes médias e dos proprietários de terras. Esse sistema
servira evidentemente para amortecer o poder do Gutsbesitzer, especialmente no
Leste do Elba: a lei simplesmente multiplicara por n o número de votos à sua
disposição, pois eles confiavam que seriam capazes de controlar sem muita
dificuldade o comportamento de seus dependentes e de seus trabalhadores nas
eleições61. Bismarck detestou o sistema de três classes, por sua ênfase no critério
monetário abstrato e suas inúmeras injustiças, mas estava convencido de que uma
mudança para o sufrágio igual para todos os homens não afetaria a estrutura de
poder na área rural: ao contrário, ela fortaleceria ainda mais os interesses territoriais
contra os financeiros. Geralmente, na área rural, as extensões do sufrágio tendiam
a fortalecer as forças conservadoras62.
Havia muito mais incerteza sobre as consequências de um sufrágio extensivo
à política nas áreas urbanas. A emergência e crescimento de uma classe de
assalariados fora da família imediata do empregador levantava novos problemas
para a definição da cidadania política. Na terminologia socioeconômica estabele-
cida, seu status era de dependência, mas não ficava claro se eles acompanhariam
inevitavelmente seus empregadores no campo político. As batalhas cruciais no
desenvolvimento para o sufrágio universal referiam-se ao status desses estratos
emergentes dentro da comunidade política. Uma grande variedade de compromis-
sos transitórios eram debatidos, e vários foram realmente postos à prova. A
estratégia básica era sublinhar as diferenciações estruturais no interior do estrato
de assalariados. Algumas variedades do regime censitaire admitiam de fato os
trabalhadores mais bem pagos, especialmente se possuíssem casas próprias63. O
direito de voto do chefe de família e do inquilino na Grã-Bretanha servia igual-
mente para integrar a classe trabalhadora mais bem situada dentro do sistema c
61. Sobre uma recente e detalhada avaliação, ver Th. Nipperdey, Dic Organisalion der dcutschcn Parteien
vor 1918, Diisseldorf, Droste, 1961, cap. V. Sobre um paralelo com as condições nas áreas rurais de
estruturas semelhantes, ver o capítulo de Emilio Willems, em Arnold Rose (ed.), The Institutions of
AdvancedSocietics, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1958, p. 552: "As principais funções
ao sufrágio eram as de preservar a estrutura de poder existente. Dentro do padrão tradicional, o sufrágio
acrescentava oportunidades para demonstrar e reforçar a lealdade feudal. Ao mesmo tempo, reforçava
e legalizava o status político do proprietário de terra".
62. Ver D. C. Moore, "The Other Face of Reform", Victorian Studies, V, set. 1961, pp. 7-34 e G. Kitson
Clark, The Making of Victorian England, London, Methuen, 1962, especialmente o cap. VII.
63. Um recenseamento de tributo especial feito na Noruega em 1876 indica que mais de 1/4 dos
trabalhadores urbanos que estavam nos registros de imposto foram emancipados sob o sistema adotado
em 1814: em contraste, apenas 3% dos trabalhadores nas áreas rurais receberam direito de voto. Ver
Statistisk Centralbureau ser. C. n. 14, 1877, pp. 340-341.
132
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO X\'lll

deixar de fora apenas o "verdadeiro proletariado", migrantes e trabalhadores


marginais sem vínculos locais estabelecidos. A manutenção dos requisitos de
residência serviu a funções semelhantes, mesmo depois do desaparecimento de
todas as qualificações económicas para o sufrágio: essas restrições são apoiadas
mais obstinadamente nas disposições para as eleições locais.
Outra série de estratégias nessa luta para controlar a investida da democracia
de massa compreende as instituições do sufrágio ponderado e dos votos plurais.
Os exemplos mais crus são, sem dúvida, o Kurien austríaco e o sistema de três
classes prussiano: o sufrágio universal é garantido, mas os pesos dos votos dados
às classes mais baixas são infinitesimais em comparação com aqueles da elite
territorial ou financeira estabelecida. O sistema de voto plural mais inócuo é talvez
a disposição inglesa para votos extras para graduados em universidade e para os
donos de propriedades comerciais em distritos eleitorais diferentes. Sociologica-
mente, o mais interessante é o sistema belga de voto plural transmitido em 1893:
o sufrágio masculino universal é introduzido, mas os votos extras são dados não
só por critérios capacitaires, mas também a pères de famille que atingiram a
respeitável idade de 35 anos. O motivo básico é sublinhar claramente as diferen-
ciações estruturais dentro dos estratos mais baixos e excluir do sistema os elemen-
tos menos compromissados com a ordem social estabelecida.
Intimamente relacionada a essas estratégias é a obstinada resistência a mu-
danças na delimitação dos distritos eleitorais. A rápida urbanização produz eviden-
tes desigualdades, mesmo em condições de sufrágio universal formalmente iguais.
As injustiças dos dispositivos distritais prussianos foram, durante décadas, objeto
de amargos debates. A solução extrema adotada na República de Weimar - o
estabelecimento de um sistema unitário de representação proporcional para todo o
Reich - sem dúvida concede a cada eleitor a mesma oportunidade abstrata de
influenciar na distribuição das cadeiras, mas ao mesmo tempo antecipa as dificul-
dades inerentes dessa padronização por meio de localidades de estrutura muito
diferente. A continuada representação geral das áreas rurais nos Estados Unidos é
outro exemplo.
A entrada das classes baixas na arena política também levanta uma série de
problemas para a administração das eleições. Sociologicamente, a questão mais
interessante é a salvaguarda da independência da decisão eleitoral individual. Os
defensores das tradições estatais e do regime censitaire argumentam que os súditos
economicamente dependentes não podem esperar formar julgamentos políticos
independentes e, se emancipados, corromperiam o sistema pela venda de votos e
pela intimidação violenta. Práticas corruptas eram, naturalmente, muito difundidas
em muitos países, muito antes da extensão do sufrágio, mas a emancipação de
133
REINHARD BEND1X
grandes setores das classes baixas geralmente fornece um incentivo a reformas na
administração e ao controle das eleições. O segredo do voto é o problema central
nesse debate64.
A noção tradicional era que o voto era um ato público c só podia ser confiado
a homens que pudessem defender abertamente suas opiniões. O sistema prussiano
de voto oral era defendido nesses termos, mas foi mantido por tanto tempo em
grande parte porque provou ser uma maneira fácil de controlar os votos dos
trabalhadores agrícolas.
O voto secreto apela essencialmente à mentalidade urbana liberal: ele convém
como outro elemento na cultura privatizada anónima da cidade, descrita por Georg
Simmel. O fator decisivo, contudo, é a emergência do voto da classe baixa como
um fator na política nacional e na necessidade de neutralizar as ameaçadoras
organizações operárias: as disposições para o sigilo isolam o trabalhador depen-
dente não só de seus superiores mas também de seus pares. Dado o estado das
estatísticas eleitorais, é difícil determinar com alguma exatidão os efeitos do sigilo
no comportamento real dos trabalhadores nas eleições. Mas parece inerentemente
provável, dada uma quantidade mínima de comunicações interclasses, que o sigilo
ajude a reduzir a probabilidade de uma polarização da vida política na base da
classe social.
A esse respeito, o voto secreto representa o princípio nacional e plebiscitado
de integração cívica, em contraste com as organizações operárias, que exemplifi-
cam o princípio de representação funcional. Isto é, as reivindicações de sindicatos
e partidos que buscam o reconhecimento para o quarto Estado são contrabalança-
das pelas pretensões da comunidade nacional e seus porta-vozes. A disposição para
o voto secreto coloca o indivíduo diante de uma escolha pessoal e o torna pelo
menos temporariamente independente de seu ambiente imediato: na cabina de
votação, ele pode ser um cidadão nacional. As disposições para a votação secreta
possibilitaram à gente comum inarticulada escapar da pressão pela participação
política, e ao mesmo tempo colocar o ónus da visibilidade política sobre os ativistas
dentro do movimento da classe trabalhadora. Em termos sociológicos, podemos
dizer, portanto, que o sistema eleitoral nacional abre canais para a expressão de
lealdades secretas, enquanto a luta política torna necessário ao ativista do partido
declarar suas opiniões e expor-se à censura quando ele se desvia do establishment'*.
64. Uma recente análise do desenvolvimento dos padrões para o controle das eleições em uma nação é a
de Cornelius CTLeary, The Elimination of CorrupíPractices in British Elections, 1868-1911, Oxford,
Clarendon Press, 1962.
65. Alguns partidos socialistas tentaram contrabalançar esses efeitos do voto secreto estabelecendo
vínculos estreitos com os sindicatos. Notar a esse respeito a discussão da controvérsia sobre a
134
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

Considerações Finais

A extensão da cidadania às classes baixas da Europa ocidental pode ser vista


de vários pontos de vista complementares. Em termos da comparação entre a
estrutura política medieval e a moderna, a discussão exemplifica as tendências
simultâneas à igualdade e a uma autoridade governamental de âmbito nacional. A
constituição de um Estado-nação moderno é tipicamente a origem dos direitos de
cidadania, e esses direitos são um símbolo da igualdade de âmbito nacional. A
própria política tornou-se de âmbito nacional, e as "classes baixas" têm agora a
oportunidade de participação ativa.
A discussão precedente sublinhou a similaridade da experiência de toda a
Europa ocidental, que teve origem nos legados comuns do feudalismo europeu. As
assembleias e parlamentos de Estado do século XVIII forneceram o fundo imediato
para o desenvolvimento dos parlamentos modernos e para a concepção de um
direito de representação que foi gradualmente estendido a setores da população
previamente não representados. Essa extensão tem dois elementos, mais ou menos
diversos. De acordo com a ideia plebiscitaria, todos os indivíduos adultos devem
ter direitos iguais sob um governo nacional; de acordo com a ideia funcional, a
associação diferenciada dos indivíduos com outros é tida como certa, e alguma
forma de representação de grupo é aceita. As duas ideias refletem o hiato entre o
Estado e a sociedade numa era de igualdade. Quando a extensão dos direitos legais,
políticos e sociais se transforma num princípio de política estatal, o critério abstrato
deve ser usado para implementar esses direitos. Por conseguinte, há tentativas
recorrentes para definir em que aspectos todas as pessoas devem daí em diante ser
consideradas iguais. Contudo, a sociedade continua a ser marcada por grandes
desigualdades. Portanto, todos os adultos que pretenderem usufruir de seus direitos
legais, políticos e sociais se associarão naturalmente com outros, a fim de apresen-
tar suas reivindicações da forma mais efetiva possível, e tais associações refletem
(ou até intensificam) as desigualdades da estrutura social. A discussão precedente
mostrou que as relações entre as ideias plebiscitarias e funcionais são frequente-
mente paradoxais.
A igualdade formal perante a lei beneficia a princípio apenas aqueles cuja
independência social e económica os habilita a tirar proveito de seus direitos legais.

arrecadação paga por membros dos sindicatos ingleses em Martin Harrison, Tradc Unions and lhe
LabourParty since 1945, London, Allen & Unwín, 1960, cap. 1. Os membros do sindicato que desejam
ser isentos do pagamento assinam um formulário de "renúncia" ao secretário de sua seção, mas embora
o pagamento seja nominal e o procedimento simples, houve muita controvérsia, em parte porque a
"renúncia" é um ato público que indiretamente ameaça o sigilo do voto.

135
RE1NHARD BEND1X
Os esforços para corrigir essa desigualdade assumem várias formas, entre as quais
as regras que capacitam os membros das classes baixas a se valerem do direito de
associação para a representação de seus interesses económicos. Contudo, essas
regras por sua vez não atingem aqueles indivíduos ou grupos que não tiram ou não
podem tirar proveito do direito de associação. Conseqúentemente, a igualdade
perante a lei involuntariamente divide uma população de uma nova maneira. Outras
disposições legais tentam lidar com as desigualdades remanescentes ou enfrentar
as que surgiram recentemente; por exemplo, a instituição do defensor público
quando o advogado de defesa não for capaz de usar seu direito de deliberação, ou
os esforços para proteger os direitos dos acionistas incapacitados de fazê-lo sob a
legislação vigente. Ainda assim, há apenas debates concernentes aos melhores
modos de proteger os membros de sindicatos contra possíveis violações de seus
direitos individuais pela organização que representa seus interesses económicos.
O princípio de igualdade formal legal pode ser chamada de "plebiscitaria" no
sentido de que o Estado estabelece diretamente cada "capacidade legal" do indiví-
duo. Além disso, disposições especiais procuram reduzir de vários modos as
desigualdades das oportunidades concedidas aos indivíduos de usarem seus direi-
tos perante a lei. No último caso, as autoridades judiciais "representam" os
interesses daqueles que não usam ou não podem usar seus poderes legais.
O direito e o dever de receber uma educação básica podem ser considerados
outros modos de igualar a capacidade de todos os cidadãos de se utilizarem dos
direitos a que estão habilitados. Embora a educação básica forneça apenas uma
vantagem mínima nesse aspecto, ela é talvez a implementação universalmente mais
aproximada da cidadania nacional, tendo todos os outros direitos um caráter mais
facultativo ou mais seletivo. Como tal, a educação pública básica exemplifica o
componente plebíscitário do Estado-nação, uma vez que a frequência à escola não
só é obrigatória a todas as crianças de um certo grupo etário, mas também depende
de uma contribuição financeira de todos os contribuintes66. Mas, aqui também, as
igualdades formalmente instituídas dão origem ou dão azo a novos tipos de
desigualdades. Aqueles que se preocupam com o ensino e a organização das escolas
reúnem-se por causa de seus interesses profissionais e económicos comuns. Esses
especialistas em educação desenvolvem muitas vezes organizações com sólidas
opiniões referentes à educação. Assim, os professores como um grupo enfrentam
66. O número de crianças que frequentam a escola elementar é maior do que o dos contribuintes, uma vez
que a frequência não permite isenções do mesmo modo que o sistema tributário. Efelivamente, mesmo
os filhos de estrangeiros residentes estão sujeitos a essa exigência, mas isso pode ser considerado uma
conveniência administrativa, uma medida de bem-estar, uma preparação de cidadãos potenciais, e assim
por diante, mais do que um assunto concernente ao princípio de cidadania nacional.
136
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

pais como indivíduos, do mesmo modo que enfrentam o Estado com a influência
de sua organização em todos os assuntos que afetam seus interesses. Mais
indiretamente, a educação pública básica ajuda a articular, embora inadvertida-
mente, as divisões residenciais existentes dentro da comunidade, uma vez que as
crianças se fixarão em escolas mais próximas a sua área de residência e a
população escolar refletirá as características sociais das áreas residenciais. Esfor-
ços para contrabalançar essas consequências do princípio funcional como as
associações de pais e mestres e a redistribuição das crianças entre as diferentes
escolas distritais, como nos Estados Unidos, são exemplos do plebiscitarianismo
dentro do sistema de educação pública. Além disso, há a prolongada resistência
de grupos congregacionais contra a educação pública como tal, aos quais nos
referimos anteriormente. O princípio plebiscitário encontra resistência desde que
as agências da Igreja ou as congregações, controlando o currículo, procuram
representar os interesses religiosos ou culturais específicos dos pais como mem-
bros de suas respectivas congregações. Grupos religiosos usam, assim, o direito
de associação para implementar suas preocupações especiais no campo da educa-
ção, embora difiram grandemente em relação a confiar ou não financeiramente, e
em que medida, na manutenção através de impostos ou nos lançamentos de
impostos de suas congregações.
Com relação ao direito de voto, os conflitos entre os princípios plebiscitário
e representativo podem ser divididos nas duas fases de um direito de voto diversa-
mente restrito ou universal. As restrições que revimos são geralmente critérios
administrativos aos quais o significado funcional é imputado. Quando o direito de
voto depende de um certo nível de renda, pagamento de imposto, posse de
propriedade, ou educação, presume-se que aqueles que satisfazem os padrões
mínimos nesses aspectos também compartilham opiniões sociais e políticas com-
patíveis com a ordem social estabelecida. Também se presume que os repre-
sentantes eleitos a partir desses estratos da população serão notáveis, capazes de
pensar e agir em termos de toda a comunidade. Esse reconhecimento legal do
princípio representativo é em larga medida abandonado quando o direito de voto
se torna universal. Contudo, o princípio plebiscitário do direito à participação direta
por todos os adultos como eleitores qualificados é bastante compatível com uma
aceitação de diferenças de grupo e várias formas indiretas de representação fun-
cional. O próprio processo eleitoral é grandemente influenciado pela diferenciação
social do público votante, e é suplementado em muitos pontos por outras influên-
cias sobre a formação política, muitas das quais dependentes de grupos de interesse
especiais. A diferenciação social e os grupos de interesse resultam em modificações
do princípio plebiscitário e em novas desigualdades, que podem por sua vez

137
RE1NHARD BESDIX
provocar contramedidas a fim de proteger o princípio de igualdade plebiscitado de
todos os adultos como eleitores qualificados.
Conseqúentemente, a extensão da cidadania às classes baixas envolve em
muitos níveis uma institucionalização do critério de igualdade abstraio que dá
origem tanto a novas desigualdades como a novas medidas para lidar com essas
consequências subordinadas. O sistema de instituições representativas, caracterís-
tico da tradição da Europa ocidental, permanece intacto na medida em que perdura
essa tensão entre a ideia plebiscitaria e a ideia de representação de grupo, na medida
em que a contradição entre critérios abstratos de igualdade e as velhas e as novas
desigualdades da condição social é mitigada por compromissos sempre novos e
sempre parciais. O sistema é destruído quando, como nos sistemas totalitários da
história recente, essas resoluções parciais são abandonadas no interesse de imple-
mentar apenas o princípio plebiscitário sob a égide de um Estado de partido único.
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