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CAPÍTULO

Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Autores: Jonas Alex Morales Saute, José Luiz Pedroso, Marcondes C. França
Junior, Sarah Camargos

A neurogenética clínica pode ser considerada como um campo de atuação da


neurologia, neuropediatria e genética médica que é dedicado ao diagnóstico,
tratamento e acompanhamento de indivíduos e famílias com condições
genéticas (monogênicas ou genômicas) em que a manifestação principal será
relacionada a alterações no desenvolvimento ou será secundária a
degeneração ou disfunção do sistema nervoso central, periférico ou de ambos.
É importante diferenciar a neurogenética clínica do termo neurogenética, o qual
tem significado mais amplo, sendo entendido como a ciência que estuda a
variação genética que traz repercussões nas funções neurológicas. A
neurogenética; portanto, engloba a neurogenética clínica e o estudo de
doenças multifatoriais ou poligênicas (Geschwind, 2018; Fogel, 2018). A Figura
1 diferencia os mecanismos principais das condições monogênicas das
doenças multifatoriais/poligênicas.

Figura 1 – Fisiopatologia de doenças monogênicas versus multifatoriais

Saute et al, 2018


Legenda Figura 1 - As setas verdes indicam variantes em genes que conferem
proteção e as setas vermelhas variantes em genes que conferem risco a uma
dada condição. A espessura das setas indica o tamanho do efeito da variante
sobre o desenvolvimento do fenótipo.

Considerações Iniciais Sobre o Estudo da Neurogenética Clínica

A neurologia é considerada por muitos estudantes de medicina, médicos e


seus professores como umas das especialidades médicas mais difíceis e
complexas. Esta imagem, associada ao estigma reproduzido quase que
diariamente nas enfermarias, inclusive por parte dos neurologistas, da falta de
tratamentos específicos para a maior parte das condições neurológicas,
contribui para afastar o estudante do aprofundamento e especialização neste
campo fascinante de atuação. A genética clínica, de modo similar, também é
rechaçada por muitos estudantes e profissionais por razões similares, mas
talvez o cenário seja ainda mais adverso, devido a organização dos currículos
dos principais cursos de medicina no Brasil e fora que colocam a genética
apenas como disciplina do currículo básico, não havendo quase nenhum
contato posterior ao longo do curso com a especialidade genética médica. Tal
cenário explica facilmente a imagem distorcida de que o médico geneticista
seria um profissional de laboratório que realizaria apenas exames
complementares e que não teria atuação clínica. Este panorama intimidativo no
campo da neurologia e genética médica é muitas vezes ampliado pela postura
dos professores e preceptores que se distanciam do aluno ao exaltarem a
complexidade e dificuldade das áreas e, portanto, ao exaltarem suas
capacidades cognitivas de lidarem com síndromes de tamanha complexidade,
mas que deixam de apresentar os princípios básicos do método clínico de
raciocínio diagnóstico (Rooper, Samuels and Klein, 2014), que poderiam
auxiliar na superação da maioria das dificuldades de compreensão destas
áreas do conhecimento. Podemos imaginar, portanto, o cenário assustador que
o estudante de medicina ou o médico residente encontrará ao deparar-se pela
primeira vez com o termo neurogenética clínica.

O objetivo do presente capítulo será propor uma organização do raciocínio


diagnóstico aplicável à neurogenética clínica, a qual, a partir deste ponto, será

Saute et al, 2018


referida apenas como neurogenética. Esperamos com este capítulo, aproximar
o leitor desta área de atuação. Despretensiosamente, também buscamos
apresentar esta forma de organização do raciocínio diagnóstico de modo que
possa ser utilizada também em futuros modelos que porventura venham a
utilizar ferramentas computacionais avançadas para esta tarefa.

Classificação das Doenças Neurogenéticas

Antes de iniciarmos a elaboração de hipóteses diagnósticas em neurogenética,


necessitamos entender primeiro como estas doenças são agrupadas. Uma das
classificações mais práticas das doenças neurogenéticas seguirá o diagnóstico
topográfico como principal definidor dos grupos de condições. A Figura 2 tenta
simplificar um pouco esta classificação ao mostrar que as doenças genéticas
que afetam como topografia principal os músculos são chamadas
(intuitivamente) de miopatias hereditárias ou de distrofias musculares; já as
condições em que múltiplos nervos periféricos serão o maior alvo do processo
patológico serão chamadas de neuropatias hereditárias, e assim por diante.

Figura 2 – Classificação das Doenças Neurogenéticas

Saute et al, 2018


O maior desafio para que esta classificação seja útil no processo diagnóstico
será a coleta adequada da anamnese e a realização de exame neurológico
detalhado (em geral focado na queixa principal do paciente) e sua
interpretação. Em alguns casos será necessária a solicitação de exames
complementares, como a eletroneuromiografia ou exames de neuroimagem
como ressonância magnética encefálica ou muscular, para um refinamento ou
confirmação do diagnóstico topográfico (sem necessariamente ter implicações
ainda na definição causal da condição). A realização adequada deste processo
será o passo inicial, fundamental para a adequada classificação e elaboração
das hipóteses diagnósticas a seguir. Conhecimentos do exame neurológico
focado de acordo com os principais grupos de condições e topografias serão
dados ao longo de praticamente todos os capítulos deste livro e serão
fundamentais na correta interpretação da topografia envolvida.

Classificação de acordo com a idade de início dos sintomas

Cerca de 90% das condições monogênicas iniciam na infância, e apenas ao


redor de 10% iniciarão após a puberdade, e 1% na vida adulta, após o período
reprodutivo (Nussbaum, 2008). Apesar de haver um menor número de
condições monogênicas de início tardio, estas em geral são mais prevalentes
na população geral, e muitas delas, por terem um padrão de herança
autossômico dominante e afetarem um grande número de indivíduos por
família, representam um impacto social, familiar e pessoal maior do que seria
esperado.

Em geral as doenças neurogenéticas de início congênito ou na infância estarão


relacionadas a 1) defeitos no desenvolvimento do sistema nervoso (Ex: defeitos
de migração neuronal), em geral de curso estático e não progressivo; 2)
doenças metabólicas: que podem iniciar precocemente de modo agudo com
sinais de intoxicação; ou envolver quadros intermitentes associados a
episódios de maior demanda metabólica, como nos distúrbios do metabolismo
energético; ou ainda podem ter curso degenerativo como nas doenças por
defeitos no metabolismo de moléculas complexas (Saudubray et al, 2006), e 3)

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defeitos de neurotransmissores, de apresentação variada com sinais de
encefalopatia, epilepsia e síndromes piramidais e extrapiramidais (Kurian et al,
2011). A maior parte das doenças de início tardio ou de início a partir da
adolescência estará associada a neurodegeneração como mecanismo
principal, em geral apresentando curso lentamente progressivo.

Apesar de ter uma utilidade prática com relação ao profissional que na maioria
das vezes atenderá inicialmente estes pacientes; se de início infantil,
neuropediatras; se de início adulto, neurologistas; a classificação das doenças
neurogenéticas de acordo com a faixa etária, na opinião dos autores, fará mais
sentido se utilizada junto com o curso da condição dentro dos grupos de
diagnósticos topográficos. Esta informação etária será fundamental inclusive na
avaliação do rendimento das técnicas moleculares para obtenção de
diagnóstico definitivo. Por exemplo, hoje sabemos que o rendimento de painéis
de sequenciamento de nova geração (NGS) ou do sequenciamento completo
do exoma (WES) difere de acordo com a faixa etária para uma mesma
síndrome/topografia, apresentando maior rendimento nos casos de ataxia de
início infantil ou de hipoplasia cerebelar (Ohba et al, 2014; Sawyer et al, 2014)
quando comparado as ataxias hereditárias de início tardio (Fogel et al, 2014;
Coutelier et al, 2017). Note que neste caso iniciamos pela classificação em
doenças hereditárias que envolvem as vias cerebelares (ataxias hereditárias) e
apenas depois dividimos pela faixa etária a fim de buscar informações sobre
qual a resolutividade das provas diagnósticas que serão solicitadas para
identificar qual a condição específica do paciente.

Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética Clínica versus Raciocínio


Diagnóstico Neurologia.

O raciocínio diagnóstico em neurologia em geral é dividido na seguinte ordem:


diagnóstico sindrômico, que consiste no reconhecimento dos sinais e sintomas
que compõe as diferentes síndromes neurológicas (síndrome motora piramidal,
extrapiramidal, etc.); seguido do diagnóstico topográfico ou anatômico (em
geral tenta-se encontrar apenas um local de lesão que explique os sinais e
sintomas do paciente); e, por fim, o diagnóstico etiológico, em que o curso da
apresentação clínica e informações demográficas do paciente e

Saute et al, 2018


epidemiológicas darão as pistas principais para identificação da causa
subjacente (causas vasculares, infecciosas, neoplásicas, degenerativas,
iatrogênicas, congênitas, imunes, funcionais, etc.) (Chaves, 2008; Rooper,
Samuels and Klein, 2014). No caso das doenças neurogenéticas, ou no caso
de uma avaliação solicitada para o neurogeneticista, o processo será um pouco
distinto. A primeira distinção é que a ordem do processo já estará invertida, ou
seja, parte-se do pressuposto que já houve a suspeição de uma condição
genética como base etiológica ou de que é necessário descartar uma condição
genética, ou seja, o processo inicia-se enviesado a partir do diagnóstico
etiológico. Mesmo que se faça um grande esforço mental e se consiga manter
a ordem do raciocínio da neurologia clássica, quando de fato estivermos frente
a um paciente com uma condição neurogenética será muito frequente a
simultaneidade de síndromes neurológicas e de topografias distintas em um
único paciente ou família. Lembre-se que muitas das proteínas que estão
afetadas pela mutação causal destas condições terá expressão ubíqua, ou terá
uma maior expressão ou atividade em múltiplos tecidos e populações celulares,
sendo frequente o envolvimento simultâneo de múltiplos sistemas neurológicos
bem como o envolvimento extra neurológico (sistêmico). Cabe ressaltar que,
apesar do viés cognitivo associado à etiologia genética, sempre devemos ter
em mente que causas tratáveis (no sentido de que hajam medidas mais
específicas que modifiquem o curso da doença), sejam elas adquiridas (Ex:
deficiência de vitamina B12, hipotireoidismo, infecções, síndromes de
desregulação imunológica) ou genéticas (Ex: algumas doenças metabólicas,
ataxia por deficiência de vitamina E, polineuropatia amiloidótica familiar,
distrofia muscular de Duchenne, atrofia muscular espinhal, etc.) devem ser as
primeiras a ser descartadas, seguindo o mesmo princípio utilizado na
neurologia geral (Rooper, Samuels and Klein, 2014).

Desta forma, para organizar o raciocínio diagnóstico em neurogenética,


sugerimos uma abordagem diferente da neurologia clássica e iniciamos
respondendo às seguintes perguntas:

1) Qual a síndrome neurológica principal? Ex: motora piramidal, motora de


2º neurônio, motora cerebelar, motora parkinsoniana, etc.

Saute et al, 2018


2) Há síndromes neurológicas coadjuvantes? Se sim, quais? Ex: motora
piramidal, motora de 2º neurônio, motora cerebelar, motora
parkinsoniana, etc.
3) Há acometimento de outros órgãos e tecidos (em especial achados não
usuais)? Se sim, quais? Ex: visceromegalia, ictiose, telangiectasias,
acalasia, xantomas, cardiopatia, catarata, retinopatia, etc.
4) O curso clínico da condição é compatível com uma doença
neurogenética? Lembre-se que a maior parte das condições
neurogenéticas de início após a infância tem curso degenerativo, ou
seja, lentamente progressivo e de início insidioso. Já as condições que
alteram o desenvolvimento do sistema nervoso tendem a apresentar
curso estático. São raras as exceções a esta regra de curso clínico, e
muitas destas condições terão um curso de apresentação estereotipado
que pode auxiliar na suspeita diagnóstica (Ex: distonia-parkinsonismo de
início rápido associada a mutações no gene ATP1A3, Brashear et al,
2018)
Seguindo ou sendo antecedido pela definição do padrão de herança.

5) Qual o padrão de herança provável? Ex: autossômica dominante,


autossômica recessiva, ligada ao X, mitocondrial, esporádica. Ver o
Quadro 1 para mais detalhes e Figura 3 para exemplos dos diferentes
padrões de herança.

Figura 3 – Exemplos de heredogramas dos padrões de herança.

Saute et al, 2018


Legenda da Figura 3 - Autossômica Recessiva; B) Autossômica Dominante,
atente para a transmissão da condição (símbolo preenchido de preto) de um
homem para outro homem (II-4 para III-5) que define este padrão de herança;
C) Ligada ao X (os pontos indicam mulheres portadoras); D) Mitocondrial, com
transmissão exclusivamente materna.

Em geral, a resposta à pergunta 1) definirá a classificação ou grupo de


condições que estará relacionada ao fenótipo do paciente e as demais
perguntas auxiliarão no estabelecimento do diagnóstico específico, como
veremos a seguir.
Organização do raciocínio diagnóstico em neurogenética

Após o processo descrito acima, iremos organizar o raciocínio diagnóstico em


achados “positivos”, ou seja que estão presentes no paciente ou familiares
afetados, e achados “negativos” ou seja que estão ausentes no paciente ou
familiares afetados. Entre os achados “positivos” e “negativos” devem entrar
informações de anamnese e exame físico e de exames paraclínicos de imagem
e laboratoriais que não sejam confirmatórios, mas que auxiliem em uma melhor
caracterização fenotípica. Importante ressaltar que a lista aqui não precisa ser
extensa, mas sim focada na apresentação principal do paciente considerando
dados que são relevantes tanto quando presentes, quanto quando ausentes.
Em geral os achados positivos principais, somados a um achado positivo
específico (caso haja) serão os responsáveis pela formulação das hipóteses
diagnósticas e os achados negativos servirão para descartar diagnósticos
diferenciais ou reduzir marcadamente suas probabilidades. Aqui cabe a
ressalva de que este método continuará a ser útil, ou tornar-se-á ainda mais
útil, com o advento de algoritmos diagnósticos computacionais melhores do
que os disponíveis atualmente, servindo como uma forma de entrada de dados
que possibilitará as listagens de diagnósticos diferenciais e de exames que
possam elucidar o caso. Mesmo que o uso de novas tecnologias
computacionais diagnósticas tornem-se uma realidade na prática clínica, é
pouco provável que na neurogenética elas substituam o papel crítico do clínico
na correta realização da anamnese, história familiar e exame físico e sua
interpretação.

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Quadro 1 - Coleta da História Familiar
Os capítulos 1 (Princípios Básicos em Genética) e 16 (Aconselhamento
genético) – abordam os principais padrões de herança e a importância da história
familiar no processo diagnóstico e de aconselhamento genético. Aqui cabe uma
ressalva sobre a importância de “ganhar tempo” e orientar a investigação com uma
obtenção detalhada da história familiar. As perguntas abaixo são fundamentais na
obtenção desta história:
1) Há recorrência familiar? A recorrência de quadros semelhantes e pouco
usuais na mesma família é uma pista fundamental para o diagnóstico de
condições genéticas (Ex: pai e filho com história de doença de Alzheimer de
início próximo dos 50 anos). Ao encontrar recorrência, tentar coletar
informações sobre o maior número possível de familiares acometidos. Por
vezes, será necessário examinar estes familiares para confirmar a
confiabilidade da informação. Lembrar que o histórico familiar de quadros de
doenças comuns, como cefaleia, hipertensão arterial, diabetes mellitus e
demência de início tardio, deve ser valorizado com bastante parcimônia; não
tendo, na maioria das vezes, relevância para modificar a suspeita
diagnóstica.
2) Há consanguinidade? Ao coletar o histórico, atente para casamentos
consanguíneos na família do probando (que podem sugerir uma herança
autossômica recessiva) e tente definir o grau de parentesco.
3) Isolados geográficos? O local de nascimento do probando, seus pais e
avós também podem ser de relevância para o diagnóstico, tanto pela
possibilidade de haver alguma forma de condição mais frequente naquela
região (Ex: efeitos fundadores da Doenças de Machado Joseph no Sul do
Brasil (Souza et al, 2016), da polineuropatia amiloidótica familiar no Rio de
Janeiro (Cruz, 2012) e de famílias com esclerose lateral amiotrófica
relacionada ao gene VAPB na região sudeste (Nishimura et al 2004; Chadi et
al, 2017), como por revelar potencial consanguinidade distante
desconhecida.
4) Possibilidade de recorrência oculta?
- falecimento precoce do genitor: atentar para a idade de falecimento dos
pais. Lembrar que o falecimento precoce de um dos genitores (antes da
idade prevista de manifestar a doença) pode ocultar o histórico familiar da
condição. Na experiência dos autores, é frequente o distanciamento do lado
da família relacionado ao indivíduo falecido precocemente, motivado em
geral pela contexto traumático da perda precoce.
- paternidade duvidosa: a paternidade duvidosa também pode ocultar o
histórico familiar. Devemos ter em mente a possibilidade de paternidade
duvidosa e, caso haja posterior confirmação de uma condição genética em
que este cenário seja possível, o assunto deverá ser abordado de forma
cuidadosa, no momento e condições propícias. Lembre-se que a paternidade
duvidosa não é de interesse médico por si só, e sua busca pode gerar
conflitos familiares.

Todos os dados acima, irão auxiliar no estabelecimento do provável mecanismo de


herança. Entretanto, salientamos que a ausência destes fatores não excluirá a
possibilidade de condições genéticas por diversos motivos (Ex: mutações de novo,
penetrância incompleta, heterozigose composta para doenças recessivas, etc.).
Deve-se, portanto, evitar em falar que história familiar é negativa e sim informar as
respostas das perguntas acima.

Saute et al, 2018


Uma ferramenta atualmente disponível que ajuda a exercitar este modelo de
diagnóstico e que muitas vezes pode de fato auxiliar no diagnóstico diferencial
de doenças neurogenéticas é o SimulConsult®, uma plataforma online de
acesso livre curada por pesquisadores da Harvard Medical School e disponível
no site https://simulconsult.com/. Veja os Quadros 2 e 3 para ver exemplos de
como o raciocínio diagnóstico pode ser realizado pelo clínico e pelo clínico com
auxílio de plataformas como a citada. É importante frisar que não temos
qualquer conflito de interesse relacionado a este site, que existem outros sites
e programa com funções semelhantes (Ex: Oxford Medical Databases: London
Neurogenetics Database, etc), e que certamente serão desenvolvidas outras
ferramentas no futuro com objetivos semelhantes e ainda mais acuradas e que
poderão ser utilizados de acordo com a preferência do usuário.

Hipóteses diagnósticas e solicitação de exames confirmatórios

Para a formulação das hipóteses diagnósticas iniciaremos com a organização


dos achados “positivos” e “negativos”, como já vimos, e após perguntaremos:

1) Qual a síndrome neurológica principal do paciente? Ou seja, trata-se de


um quadro de deficiência intelectual, ataxia cerebelar, paraparesia
espástica, distonia, etc.? Este passo é fundamental, pois ele orientará o
estudo do caso e dos possíveis diagnósticos diferenciais.
2) Há uma suspeita diagnóstica principal? Ou, em outras palavras, existem
achados ou achado no paciente específicos o suficiente para sugerirem
uma única ou poucas etiologias genéticas prováveis?
- Sim. Caso haja uma suspeita principal, deve-se idealmente partir para
um teste de confirmação diagnóstica. Aqui também podemos pensar que
a probabilidade pré-teste (para novos exames) é muito alta e que
apenas um teste confirmatório ou que seja capaz de excluir a condição
terá alguma utilidade diagnóstica.
- Não. Há apenas a definição do grupo de doenças. Revisar as
apresentações clínicas principais deste grupo e se há algum achado de
exame clínico ou paraclínico que não foram avaliados e que poderiam
auxiliar.

Saute et al, 2018


Quadro 2:

Caso clínico: Homem de 21 anos, refere início de alteração do equilíbrio ao redor do 15 anos de idade com curso progressivo desde então, necessitando
atualmente do auxílio de bengalas para deambular. Negava quadros semelhantes em sua família ou história de consanguinidade dos pais. No exame físico
você encontra ataxia de marcha e de membros, bem como percebe disartria. O acompanhamento do olhar não é suave e ocorre em sacadas. A força é
levemente reduzida nos membros inferiores, os reflexos miotáticos profundos são abolidos distalmente e apresenta sinal de Babinski bilateralmente. A
sensibilidade vibratória é reduzida nos membros inferiores.

Organização do Raciocínio Clínico: Os dados positivos seriam ataxia cerebelar (talvez sensitiva também), redução de força, reflexos abolidos distalmente,
presença do sinais de Babinski e hipopalestesia. O quadro de ataxia sem dúvida lhe pareceu o fenótipo principal e, portanto, você inicia com a hipótese de
uma ataxia cerebelar. Ao seguir o modelo que apresentamos você adicionalmente classifica como síndromes coadjuvantes os sinais de neuropatia periférica
(arreflexia, redução de reflexos) e possivelmente de envolvimento do cordão posterior, e uma síndrome motora piramidal (sinal de Babinski e paresia), que
parece estar em parte oculta pela neuropatia periférica. Com base nestes dados, com a informação de que é uma condição crônica com ao menos 6 anos de
evolução, que o início ocorreu na adolescência e que é um caso isolado você pode realizar a hipótese de uma ataxia cerebelar hereditária, possivelmente
recessiva. Ao revisar o Capitulo 3.3 (Ataxias) você verifica que a Ataxia de Friedreich é a forma mais comum de ataxia hereditária autossômica recessiva e
que o paciente apresenta sua tríade clínica de ataxia, arreflexia e sinal de Babinski, mas que existe uma forma semelhante de ataxia que é a ataxia por
deficiência de vitamina E (AVED), uma condição tratável, e outras formas mais raras que mimetizam o quadro. Ou seja, você define que há uma hipótese
principal, mas ela não é específica e não é uma condição com tratamento específico. Você opta por solicitar um exame confirmatório, a dosagem da
vitamina E (afinal doenças tratáveis devem sempre ser consideradas primeiro), e os exames de caracterização fenotípica ecocardiograma e teste de
tolerância à glicose, que podem ter alterações na Ataxia de Friedreich, e dosagem da alfa-fetoproteina e do perfil lipídico, exames de baixo custo e que dão
importantes pistas para o diagnóstico das ataxias hereditárias. O resultado da dosagem de vitamina E e dos demais exames laboratoriais foram normais,
entretanto o ecocardiograma demonstrou sinas de miocardiopatia hipertrófica. A presença de miocardiopatia hipertrófica associada ao quadro clinico do
paciente é suficientemente específica para Ataxia de Friedreich e deve sugerir solicitação de exame confirmatório. Com estes dados você solicitou a análise
molecular específica para a Ataxia de Friedreich, a qual detectou expansões GAA em homozigose no gene FXN, confirmando o diagnóstico.

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Ferramentas Informáticas. Note que pelo SimulConsult® aos colocarmos os achados iniciais do paciente a suspeita principal é de Ataxia de Freidreich e em
segundo lugar a AVED, e que o programa sugere alguns exames complementares, mas que não sugere o ecocardiograma. Na imagem seguinte, ao
adicionarmos apenas a informação da miocardiopatia hipertrófica, vemos que o único diagnóstico com alta probabilidade é a Ataxia de Freidreich, sendo
sugerido a realização do exame molecular confirmatório.

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Quadro 3:

Caso clínico: Mulher de 39 anos é encaminhada para avaliação por quadro de quedas e fraqueza nas pernas desde os 25 anos de idade. Na consulta ela
refere também alteração na fala (fala anasalada) e dificuldade de deglutição desde a infância, tendo realizado diagnóstico de acalasia, com necessidade de
correção cirúrgica há 10 anos. Sua irmã apresentava quadro similar, também com acalasia corrigida cirurgicamente, negavam outros casos na família ou
consanguinidade parental. No exame físico você encontra marcha espástica com espasticidade moderada e leve fraqueza distal nos membros inferiores.
Apresentava também hiperreflexia generalizada com presença do sinal de Babinski bilateralmente.

Organização do Raciocínio Clínico: Os dados positivos seriam paraparesia espástica, acalasia, alteração da fala e recorrência familiar. O quadro neurológico
principal sem dúvida é a paraparesia espástica, inclusive foi o que motivou o encaminhamento, porém a presença de acalasia precoce em 2 irmãs é uma
informação nada usual, que poderia sugerir algum diagnóstico específico. A recorrência sugere fortemente a etiologia genética. Ao revisar sobre formas
genéticas de acalasia você encontra a síndrome Triplo A, uma síndrome autossômica recessiva caracterizada por acalasia, insuficiência adrenal, e alacrimia e
em que posteriormente foram descritos achados neurológicos como parte do fenótipo da condição. No retorno da paciente você questiona sobre a
possibilidade de alacrimia e surpreende-se com a notícia de que a paciente e sua irmã nunca choraram, nem mesmo na infância, mas que negam olho seco.
Você solicita exames de função adrenal que foram normais. Diante da suspeita da síndrome do Triplo A e sabendo que existem outras 2 formas, mas mais
raras de acalasia familiar (genes GMPP1 e TRAPPC11), você solicita o sequenciamento do gene AAAS que demonstra mutações bi-alélicas, confirmando o
diagnóstico.

Ferramentas Informáticas: Note que pelo SimulConsult® aos colocarmos os achados iniciais da paciente a suspeita principal seria da síndrome de Alacrimia
e Acalasia associada a Deficiência intelectual relacionada ao gene GMPPA (possivelmente pois o programa valoriza mais sintomas neurológicos para esta
síndrome) e que a síndrome do Triplo A viria em segundo lugar. Ao colocarmos os dados de alacrimia e função adrenal normal, a probabilidade da condição
inicialmente sugerida ficou ainda maior. Caso fosse seguido a sugestão do programa iniciaríamos com o sequenciamento do GMPP1 e em sendo negativo
seria procedido a análise do AAAS.

Saute et al, 2018


Saute et al, 2018
a) Se houver algum achado mais específico não avaliado, considerar
marcar reavaliação do paciente e de seus familiares afetados ou solicitar
o exame paraclínico que possa auxiliar na melhor caracterização
fenotípica. Caso esta avaliação resultar em uma suspeita diagnóstica
principal, solicitar o teste de confirmação diagnóstica.
b) Se a caracterização clínica detalhada não for especifica ou houver
múltiplas causas prováveis considerar solicitar exames que avaliem
múltiplos genes ou regiões simultaneamente.
3) Eu tenho conhecimentos básicos de genética suficientes para explicar
de maneira adequada o teste que solicitarei, bem como possíveis
implicações previamente a sua realização e tenho conhecimentos
suficientes para interpretar o laudo do teste na maioria dos cenários?
- Sim para as 3 perguntas. Solicite o exame
- Não para qualquer uma das 3 perguntas. Considere referenciar para
outro especialista que melhor atenda aos requisitos acima. Este campo
é complexo e, por isso, o trabalho multiprofissional e entre múltiplas
especialidades é altamente recomendado, mesmo que você já seja um
especialista. Não se esqueça que o objetivo principal do atendimento é
auxiliar o paciente e sua família e não o de acertar um diagnóstico difícil
sozinho.
4) Qual o custo e qual o tempo médio para obtenção dos resultados do
teste a ser solicitado? Em artigo recente de Sarah Bowdin e
colaboradores foram realizadas recomendações para a integração da
genômica na prática clínica (Bowdin S. et al, 2016) e um dos pontos
considerados de informação básica pelos autores, pelo menos no
contexto dos Estados Unidos, foi a questão do custo dos exames,
exigindo conhecimentos de se o exame é coberto pelo seguro saúde, ou
qual seria o custo do exame caso o mesmo fosse pago diretamente pelo
paciente ou por sua família. Na opinião dos autores, no contexto
brasileiro esta informação torna-se de igual relevância tanto em
consultas privadas quanto em consultas do Sistema Único de Saúde.
Muitas vezes os pacientes irão preferir pagar por um exame que não
estaria disponível no SUS ou convênio ou irão acionar o Estado ou plano
de saúde na tentativa de que o mesmo arque com este gasto. Para que

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o paciente e sua família estejam o mais informados sobre estas
questões, será fundamental discutir abertamente com os mesmos sobre
a necessidade do exame e sobre os eventuais custos envolvidos. Uma
postura de isenção sobre discutir valores, coberturas, disponibilidade
dos exames por parte do profissional em geral contribuirá apenas para
aumentar a desinformação sobre a condição (que na maioria das vezes
já é rara e pouco conhecida), com potenciais repercussões negativas
para o paciente. Sabemos também que há diferenças regionais no Brasil
sobre a solicitação de exames não previstos no SUS em instituições
públicas e que; portanto, esta discussão não poderá ser aplicada em
todos os contexto de modo igual. Consideramos que as implicações
sobre custos e tempo de espera do resultado para testes genômicos e
testes focados (gene único, mutação familiar) são basicamente as
mesmas. O Quadro 4 mostra um exemplo de como podemos avaliar
este ponto de modo racional na solicitação de exames.
5) Qual o impacto do resultado para o paciente e sua família? Nem sempre
um exame genético confirmatório será necessário assistencialmente,
como nos casos em que o diagnóstico clínico bem como as informações
do heredograma podem ser suficientemente acurados. Ou seja, além de
informar questões sobre o custo e potencial resolutividade (e geração de
incertezas do exame) a ser solicitado, será importante conversar sobre o
momento da solicitação e qual será o possível impacto da confirmação
ou exclusão do diagnóstico em questão. Lembre-se que caso a principal
hipótese diagnóstica não tenha tratamento modificador no momento da
solicitação, sempre é possível aguardar para a confirmação diagnóstica
em momento mais oportuno. O custo dos testes genéticos tem reduzido
ao longo dos anos, bem como a sua disponibilidade tem aumentado
tanto no contexto de atenção pública quanto privada. Por outro lado a
confirmação diagnóstica em geral permitirá um aconselhamento
genético mais acurado e os potenciais benefícios relacionados ao
mesmo (Ver capítulo 16 – Aconselhamento Genético), bem como
possibilitará em alguns casos a participação em ensaios clínicos que
avaliem novos tratamentos e estejam em fase de recrutamento. Lembre-
se e lembre o paciente que mesmo que não haja tratamento

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modificador, sempre haverá alguma forma de tratamento e que este em
geral não dependerá da etiologia específica, mas sim da caracterização
clínica dos sintomas e esta você já fez ao longo de toda a sua avaliação.
6) Você já descartou causas tratáveis para esta condição? Nunca esqueça
de condições esporádicas e genéticas tratáveis! Salientamos que com o
advento dos exames genômicos na prática clínica cada vez mais nos
deparamos com apresentações diferentes dos fenótipos classicamente
descritos nas condições genéticas, ou seja uma apresentação atípica
pode ser tão frequente ou mesmo mais frequente, do que a dita
apresentação clássica de dada condição. Ex: a paraparesia espástica
tipo 7 (SPG7) foi descrita inicialmente como uma forma pura de
paraparesia espástica familiar, após o conhecimento do gene e de séries
maiores de famílias com a condição, ficou evidente de que a
apresentação mais comum não era a inicial, mas sim de uma forma de
paraparesia espástica complicada por ataxia. E mais recentemente este
gene foi associado a formas de ataxia cerebelar autossômica recessiva
e dominante (Synofzik & Schüle, 2017) e mesmo a formas de neuropatia
óptica de início precoce (Marcotulli et al, 2014). Ou seja, um cenário
similar pode ocorrer para condições genéticas tratáveis e desta forma,
mesmo que não sejam as hipóteses mais prováveis, estas devem ser as
primeiras a serem pesquisadas, salvo em situações em que outra
suspeita diagnóstica for muito alta.
7) A Figura 4 resume o passo a passo da elaboração de hipóteses e
solicitação de exames confirmatórios. No caso da solicitação de exames
genômicos sem hipótese específica (aCGH - hibridização genômica
comparativa baseada em microarranjos, WES, painéis de genes) o
conhecimento do rendimento diagnóstico por grupo de condições e
custo irá nortear a ordem de solicitação dos exames. Pistas como um
padrão de herança sugestivo de doença monogênica (consanguinidade,
herança dominante, ou ligada ao X) em geral favorecerão exames que
avaliam alterações em nível gênico (WES ou painéis) em detrimento de
exames que avaliam microdeleções/duplicações como aCGH, mesmo
quando classicamente alguns autores sugiram uma investigação
padronizada para todos os pacientes (Ex: deficiência intelectual).

Saute et al, 2018


Figura 4 – Modelo de organização de hipóteses diagnósticas e solicitação
de exames em neurogenética. aCGH, hibridização genômica
comparativa baseada em microarranjos; MLPA, amplificação de sondas
dependente de ligação; NGS, sequenciamento de nova geração; WES,
sequenciamento completo do exoma; WGS, sequenciamento completo do
genoma.

Saute et al, 2018


Quadro 4:
Caso clínico: Mulher de 46 anos é encaminhada para avaliação de quadro de
demência rapidamente progressiva. Início do quadro com sintomas depressivos
que seguiram-se por alterações em memória e linguagem (afasia global)
proeminentes com marcado prejuízo das atividades de vida diária, já não
obedecendo mais a comandos após 6 meses do início do quadro. No exame físico
apresentava, além das alterações cognitivas, hiperreflexia difusa, associada a
espasticidade e sinais de Hoffmann e Babinski bilateralmente. Realizou
ressonância magnética de crânio que demonstrou sinais de leucodistrofia de
predomínio frontal, com algumas zonas de restrição na sequência de difusão (DTI)
na substância branca. Curiosamente o irmão mais novo da paciente apresentou
quadro semelhante há alguns anos, estando atualmente acamado e sem vida de
relação. O diagnóstico prévio do irmão havia sido de Doença de Marchiafava-
Bignami. Ao solicitarmos os exames de neuroimagem do irmão ficou claro que o
padrão de leucodistrofia era similar, porém no exame do irmão os achados eram
mais grave com importante comprometimento do esplênio do corpo caloso,
também com zonas de restrição na DTI. O pai deles havia falecido precocemente
aos 50 anos e a mãe, com 79 anos, não tinha sintomas semelhantes. Negavam
outros casos na família.
Organização do Raciocínio Clínico: Os dados positivos seriam demência
rapidamente progressiva, recorrência familiar (herança recessiva ou dominante,
oculta pelo falecimento precoce do pai ou por penetrância incompleta),
leucodistrofia de predomínio frontal, envolvimento do corpo caloso e restrição à
difusão. Foi iniciado investigação de leucodistrofias metabólicas, com exclusão de
leucodistrofia metacromática e o envolvimento similar de homens e mulheres
argumentava contrariamente ao diagnóstico da variante frontal da
adrenoleucodistrofia. Ao revisar a literatura a hipótese principal que explicaria os
achados da paciente seriam a leucoencefalopatia do adulto com esferoides axonais
e glia pigmentar causada por mutações de ponto no gene CSF1R (Konno et al,
2017), e mais recentemente por mutações no gene AARS (Lynch et al, 2016).
Decisão do exame a ser solicitado: Ao ser avaliado o custo do sequenciamento
do gene CSF1R em diferentes laboratórios ficou claro que este era maior do que o
custo de painel de NGS para genes associados a leucodistrofias que incluía os
genes CSF1R, AARS e GFAP, este último relacionado a Doença de Alexander do
adulto, um diagnóstico diferencial possível que ainda não teria sido descartado. Ao
ser conversado com a família foi optado pela realização do painel de genes, o qual,
após poucas semanas, identificou mutação patogênica em heterozigose no gene
CSF1R confirmando o diagnóstico de leucoencefalopatia do adulto com esferoides
axonais e glia pigmentar, uma condição autossômica dominante. Foi realizado
aconselhamento genético e oferecido teste pré-sintomático para familiares em
risco.

Saute et al, 2018


Quadro 5 - Discussão pré-clínica em Neurogenética
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre temos realizado há muitos anos no
contexto da preceptoria dos residentes em genética médica e mais recentemente
de neurologia o modelo de discussão pré-clínica dos casos atendidos
ambulatorialmente. Ou seja, alguns dias antes do atendimento do paciente e de
sua família, o médico que realizará a consulta revisa a história clínica do paciente e
faz a organização do raciocínio diagnóstico e apresenta estes dados em reunião
com os preceptores. Nos casos sem diagnóstico etiológico específico serão
discutidos quais dados adicionais poderiam auxiliar na redução do número de
hipóteses diagnósticas, bem como serão definidos quais seriam os exames mais
adequados para prosseguir a investigação. Lembre-se que a investigação
diagnóstica em geral é complexa e que muitas vezes os pacientes já realizaram
muitas avaliações e exames complementares tanto externos quanto internos na
instituição de saúde. A revisão detalhada do caso em geral auxilia a otimizar o
processo investigativo e na escolha mais racional dos exames complementares a
serem solicitados a seguir. O objetivo final será o de realizar uma abordagem custo
e tempo efetiva, de acordo com o melhor julgamento clínico, contexto e
preferências das famílias. Este modelo pode ser aplicado também no atendimento
individual público ou privado, com a revisão do caso previamente ao atendimento,
já levando a um direcionamento da investigação diagnóstica.

Conhecimento sobre mecanismos de mutações e exames moleculares

Em capítulos anteriores deste livro foram discutidos os princípios básicos em


genética (Capítulo 1) e os principais exames diagnósticos que podemos
solicitar (Capítulos 2.1 a 2.4). Aqui não iremos repetir o que já foi discutido,
mas tentaremos tornar este conhecimento mais prático. No caso apresentado
no Quadro 2, a suspeita principal era de Ataxia de Friedreich. Ao revisarmos o
Capítulo 3.3 (Ataxias) veremos que esta condição é causada em cerca de
90% dos casos por expansão em homozigose do trinucleotídeo GAA no íntron
1 do gene FXN. Ou seja, caso inadvertidamente optemos pela realização do
WES para o diagnóstico do paciente, o exame solicitado não será capaz de
confirmar o diagnóstico, pois a mutação está em região intrônica e porque as
expansões de trinucleotídeos ainda não são corretamente identificadas pelas
plataformas atuais de NGS. Com o conhecimento da base molecular da doença
pode-se optar por técnicas como PCR longo ou Triplet primed-PCR para a
detecção da expansão envolvida, técnicas disponíveis em diversos laboratórios
e de menor custo. Do mesmo modo, outras doenças neurogenéticas frequentes
como a distrofia muscular de Duchenne (DMD) e Atrofia Muscular Espinhal
(AME) relacionada ao SMN1 por serem causadas na maioria dos casos por

Saute et al, 2018


variações de número de cópias dos genes envolvidos também não seriam
detectadas em exames convencionais de NGS como WES ou mesmo painéis
de genes, exceto nos casos em que se realizar análise específica para esta
finalidade. Apesar de estudos recentes mostrarem que o NGS pode ser um
teste diagnóstico inicial para DMD (Wei et al, 2014), a realização do Multiplex
Ligation-dependent Probe Amplification (MLPA) parece ter melhor perfil de
custo e benefício como teste inicial, conseguindo detectar duplicações do gene,
que em geral são perdidas pelo NGS. No caso da AME-SMN1 a dificuldade do
NGS está tanto no fato de ser uma deleção de éxon inteiro do gene, quanto no
fato de haver um gene parálogo, praticamente idêntico ao SMN1, chamado de
SMN2, gerando erros de alinhamento dos dados do sequenciamento,
inviabilizando a identificação da deleção em análises que não sejam
específicas para esta finalidade (Feng et al, 2017). Neste exemplo, novamente
o MLPA ou qPCR parecem técnicas com melhor perfil de custo benefício para
diagnóstico individual. Contudo, com a evolução das técnicas de NGS (Ver
Capitulo 2.4) e com a redução do custo associada a esta tecnologia, é muito
provável que seja possível a detecção de expansões de nucleotídeos (Liu et al,
2017; Bahlo et al, 2018), bem como sejam resolvidos os problemas de
alinhamento de genes parálogos e pseudogenes, havendo tendência de uma
solicitação cada vez maior de WES e de sequenciamento completo do genoma
(WGS) como exames iniciais, porém com análises focada de acordo com as
hipóteses principais.

Interpretação dos Resultados de Exames genéticos

Após termos realizado a organização do raciocínio diagnóstico em achados


positivos e negativos, e termos elaborado a lista de hipóteses diagnósticas,
estaremos aptos a escolher os exames mais adequados para
confirmação/exclusão dos diagnósticos. Ao escolhermos o exame, após
discussão conjunta com o paciente sobre custos e implicações de resultados e
após termos realizado o aconselhamento pré-teste, finalmente dentro de
algumas semanas a alguns meses (dependendo do teste a ser realizado e do
laboratório executor) receberemos o tão esperado resultado. Focaremos nesta
seção na interpretação de alterações gênicas, ou seja, de variantes causais de

Saute et al, 2018


condições monogênicas. Segundo diretrizes do American College of Medical
Genetics and Genomics (ACMG) de 2015 (Richards et al, 2015) as variantes
devem ser classificadas em patogênicas, provavelmente patogênicas, de
significado incerto (VUS), provavelmente benignas e benignas. A categoria de
maior controvérsia e que irá gerar mais dúvidas de interpretação será a de
VUS. No caso das variantes provavelmente patogênicas e provavelmente
benignas a chance da classificação da alteração ser verdadeira (patogênica ou
benigna) é maior do que no 90%, o que é considerado suficientemente forte
para confirmar ou refutar um diagnóstico. Foge ao escopo do capítulo fazer
uma descrição detalhada da forma de classificação das variantes, sendo
sugerida a leitura integral do artigo de Richards e colaboradores para tal
(Richards et al, 2015). Nos interessa apenas a menção de que existem critérios
considerados muito fortes, fortes, moderados e de suporte para esta
classificação, e que a sua combinação definirá em qual categoria a variante
será enquadrada. Salientamos que é bem possível que estes critérios sejam
atualizados em poucos anos e desta forma, sugere-se ao leitor que sempre
revise se novas diretrizes de classificação de variantes de sociedades como o
ACMG ou outras iniciativas estão disponíveis. A seguir, veremos uma sugestão
de como podemos iniciar uma análise de variantes e de como podemos lidar
com o resultado de uma VUS.

O ponto de partida para a análise das variantes em geral será a busca de sua
frequência na população, para isso podem ser usadas bases de dados
internacionais como Exome Aggregation Consortium (ExAC, disponível em
http://exac.broadinstitute.org/), que disponibiliza dados de WES de cerca de 60
mil indivíduos não relacionados de estudos populacionais ou de doenças
específicas multifatoriais; Genome Aggregation Database (gnomAD, disponível
em http://gnomad.broadinstitute.org/) que disponibiliza dados de WES de cerca
de 123 mil indivíduos não relacionados e de WGS de cerca de 15 mil indivíduos
não relacionados de estudos populacionais ou de doenças específicas
multifatoriais; a base de dados 1000 genomes; e bases nacionais como o
Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMED, disponível em
http://www.bipmed.org/). É importante salientar que a base ExAC foi
disponibilizada em outubro de 2014 e o gnomAD dois anos depois, sendo

Saute et al, 2018


frequente que anteriormente a estas datas os pesquisadores considerassem
como um dos critérios de patogenicidade a ausência de determinada variante
em uma população de cerca de 100 indivíduos controles. Com a
disponibilidade destas grandes bases dados tornou-se frequente a
reclassificação de variantes consideradas anteriormente como patogênicas e
registradas em bases como o Human Gene Mutation Database em variantes
benignas. O Quadro 6 apresenta um exemplo deste cenário.

Quadro 6 – Revisão de variantes


Durante a investigação de um caso isolado de um paciente com suspeita de
distrofia muscular do tipo cinturas foi encontrada a variante c.479C>G
(p.Ala160Gly) no gene CAPN3 (transcrito NM_000070.2, associado à distrofia
muscular de cinturas tipo 2A, LGMD2A) em heterozigose. Esta variante foi
previamente classificada como patogênica e está registrada na base HGDM com o
código CM041734. Quando revisamos a literatura sobre a LGMD2A, uma doença
autossômica recessiva, vemos que não é infrequente que seja encontrada apenas
1 variante patogênica quando realizado o sequenciamento das regiões codificantes
do CAPN3 (a outra variante poderia ser intrônica ou uma deleção/duplicação e não
ter sido detectada pela técnica empregada) tornando este diagnóstico muito
provável. Entretanto, ao buscarmos esta variante na base ExAC vemos que sua
frequência alélica geral é de 0,004, mas que na população africana a frequência da
variante é de 5% (frequência corrigida de 4,6%) e que existem 13 indivíduos
homozigotos para a variante em cerca de 10 mil africanos. No gnomAD as
frequências são similares, com 24 indivíduos homozigotos para a variante. Lembre-
se que nenhum dos bancos usados no ExAC ou gnomAD é de distrofias
musculares e desta forma podemos considerar os critérios fortes de benignidade
(ACMG 2015) BS1 em que a frequência alélica é maior do que a esperada para a
doença (para mais detalhes sobre este critério recomendamos a leitura do artigo
de Whiffin e colaboradores de 2017) e BS2 observada em homozigose em
indivíduos saudáveis (ou sem a clínica da condição). Ao revisarmos a referência
original vemos que o artigo é de 2004 e que não havia análise funcional
relacionada. Ao buscarmos no CLINVAR (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/clinvar)
vemos que entre 2013 e 2018 a variante foi relatada 8 vezes, em 3 delas sendo
classificada como provavelmente benigna e em 5 delas como benigna. A presença
dos critérios BS1 e BS2 já permitiriam a classificação da variante como benigna e
os dados do CLINVAR corroboram com a classificação preenchendo o critério de
probabilidade BP6. Ao avaliarmos a predição de patogenicidade in silico da
variante vemos que o Mutation Taster e o SIFT sugerem que a variante seja
patogênica e o GERP++ indica que a variante é altamente conservada. Já o Poly-
Phen2 considera a variante como tolerada e o M-CAP não avalia a variante, pois
considera apenas variantes com frequência alélica <1%. Neste caso não
pontuaríamos o item PP3, pois há discordância de predição entre algoritmos,
contudo, mesmo que considerássemos a patogenicidade por análise in silico, ainda
assim a variante seria classificada como benigna pelos critérios BS1 e BS2 citados
acima. Desta forma devemos descartar a variante como causal e outras condições
devem ser buscadas para o diagnóstico do paciente.

Saute et al, 2018


Após conhecermos a frequência alélica, avaliaremos o tipo da variante
encontrada. Salientamos que o dado de maior força para classificação de
patogenicidade de variantes será a presença de uma variante nula (mutações
sem sentido, por mudança de matriz de leitura - frameshift - e em sítios
canônicos de splicing) relacionada a uma condição em que a perda de função é
o mecanismo fisiopatológico causal. O sítio canônico de splicing está
localizado 1-2 nucleotídeos antes do início ou após o término de um
determinado éxon. Mutações que possam alterar o sítio de splicing, mas que
não estejam nestas posições, receberão pontuação de predição de alteração
de splicing, no item PP3. Este item, PP3 é um item de suporte para a
classificação de patogenicidade da variante, ou seja, tem um peso fraco para
esta determinação. É neste item que pontuarão os diferentes algoritmos in
silico de predição de patogenicidade. Diversos algoritmos podem ser utilizados
para este fim, entre eles citamos SIFT (disponível em http://sift.jcvi.org),
PolyPhen-2 (disponível em http://genetics.bwh.harvard.edu/pph2), CADD
(http://cadd.gs.washington.edu), Mutation Taster (disponível em
http://www.mutationtaster.org), M-CAP (disponível em
http://bejerano.stanford.edu/mcap/) para variantes de troca de sentido; Human
Splice Finder 3.1 (disponível em http://www.umd.be/HSF3/) e ESE Finder
(disponível em http://rulai.cshl.edu/) para predição de sítio de splicing; e
GERP++ para predição de conservação do nucleotídeo (disponível em
http://mendel.stanford.edu/SidowLab/downloads/gerp/). No artigo de Richards e
colaboradores (Richards et al, 2015) há uma lista mais completa dos algoritmos
que podem ser utilizados. Ressaltamos que se costuma dar um peso excessivo
para o resultado de predição de patogenicidade in silico e isso pode levar a
classificações equivocadas, ver a discussão do Quadro 6.

Se, após realizarmos a classificação segundo os critérios atuais de 2015, a


variante for considerada uma VUS, precisamos lembrar que existem algumas
informações que podem ajudar a mudar esta classificação para o lado de
patogenicidade ou de benignidade. Uma delas, mas que é pouco prática
assistencialmente (exceto no caso de algumas formas de distrofias
musculares), seria a chamada análise funcional. Para esta análise é necessário

Saute et al, 2018


estabelecer em modelo in vitro ou in vivo se a variante encontrada causa ou
não dano ao gene ou ao produto do gene envolvido. Apesar de a análise
funcional gerar a evidência de maior força de patogenicidade ou benignidade
dos critérios que abordaremos, as 2 estratégias mais factíveis na pratica clínica
na opinião dos autores são: 1) a busca em base de dados especificas de
variantes da condição ou do gene em questão, a qual pode ser mais
informativa do que bases genéricas (Ex: Leiden Muscular Dystrophy pages
versus Human Gene Mutation Database para variantes em distrofias
musculares), bem como o contato com especialistas internacionais na
condição, que pode revelar a informação de outros casos com a mesma
variante ainda não relatados na literatura; e 2) a análise de segregação, que
buscará a variante encontrada em outros familiares afetados e em familiares
que não apresentam sintomas. A ausência da alteração em familiar com a
mesma síndrome clínica é uma forte evidência de benignidade da variante, já a
presença em múltiplos familiares afetados poderá tornar-se evidência forte de
patogenicidade (Richards S. et al, 2015). Existem sistemas semelhantes de
classificação para microdeleções e microduplicações, ver Kearney e
colaboradores, 2011.

Revisando as Hipóteses Diagnósticas

Caso após a investigação, as provas diagnósticas resultarem negativas,


considere refazer o processo diagnóstico do início. Muitas vezes será
necessário coletar a história novamente com perguntas abertas e revisar de
forma mais ampla o exame físico a fim de confirmar ou modificar o diagnóstico
sindrômico inicial e toda a organização do raciocínio que vem a seguir (Ex: um
tremor pode ter sido considerado como sinal de ataxia ou a fadiga pode ter sido
interpretada como sinal de fraqueza muscular). Mesmo que todo o processo
tenha sido realizado de modo adequado, um número considerável de pacientes
não terá seu diagnóstico final determinado. Como os exames genéticos são
relativamente recentes e como as técnicas genômicas, que estão
revolucionando o diagnóstico e a descoberta de novas condições, são mais
recentes ainda é possível que a condição do paciente de fato seja monogênica,
mas que sua base genética ainda não tenha sido descrita.

Saute et al, 2018


Contudo, também é possível que alguns atalhos tenham ocorrido no processo
do raciocínio diagnóstico, ocasionados por vieses cognitivos, sendo importante
conhecê-los para tentar evitá-los (Rooper, Samuels and Klein, 2014). Veremos
alguns destes vieses cognitivos abaixo:

1) Ordenamento das informações: a ordem de apresentação das


informações influencia nosso processo de tomada de decisão, desta
forma ao ordenar uma lista de problemas ou de hipóteses diagnósticas
tendemos a valorizar mais as informações e hipóteses listadas
primeiramente. O peso excessivo dado a este ordenamento pode levar a
erros no processo diagnóstico.
2) Ancoramento heurístico: neste caso a hipótese principal é considerada
tão forte que o clínico não consegue elaborar hipóteses alternativas ou
não permite mudanças na hipótese principal com o surgimento de novos
fatos.
3) Impacto de diagnósticos recentes: o diagnóstico recente de alguma
condição aumentará a chance de considerar este diagnóstico como
provável para o caso em avaliação. É comum ouvirmos diversos colegas
falarem que uma doença rara em geral vem aos pares. Cuidado, pois
esta frase é falaciosa e apenas implica que ao detectarmos uma
condição rara em dado paciente estaremos mais atentos a ela no
período que virá logo a seguir. Isto pode ser positivo e levar a uma
diagnóstico correto, ou pode induzir a distorções na elaboração das
diferentes hipóteses diagnósticas e aos pesos dados a elas, levando
também por vezes a solicitação de exames desnecessários. Em geral,
tendemos a lembrar apenas dos nossos acertos, e esquecer dos casos
que foram negativos.
4) Heurística representativa: ocorre quando perdemos a perspectiva da
frequência da condição na população e utilizamos outros fatores para
nortear nossas hipóteses. É bem possível que cometamos este erro
frequentemente em neurogenética, pois em nossa avaliação geralmente
partiremos do pressuposto que é provável se tratar de condição genética
neurológica, e essas condições são muito mais raras na população do
que doenças multifatoriais comuns. De qualquer modo, este tipo de viés,

Saute et al, 2018


deve ser relativizado ou melhor contextualizado, pois na situação citada
o cenário populacional seria o da prevalência do diagnóstico de uma
condição neurogenética entre os encaminhamentos realizados para esta
especialidade. Certamente, a prevalência de condições neurogenéticas
neste contexto será marcadamente maior do que a prevalência na
população geral.
5) Obediência cega: acontece quando damos valor excessivo a autoridade
de terceiros (Ex: não permitimos, ou não nos permitem, mudar a
hipótese diagnóstica principal, se ela foi realizada por um profissional
mais experiente do que nós) ou ao resultado de exames diagnósticos.
Neste último caso podemos citar como exemplos a postura de organizar
as hipóteses diagnósticas com base em resultados de
eletroneuromiografia, mesmo que estes sejam conflitantes com o
diagnóstico topográfico do exame neurológico; e confiar cegamente na
confirmação do diagnóstico por análise molecular, mesmo quando a
evolução do quadro no tempo contradiga o diagnóstico realizado. Os
autores já viram alguns casos de erros em diagnóstico molecular, seja
na coleta do exame, seja por trocas de amostras no laboratório, ou por
erros inerentes a tecnologia utilizada ou à interpretação de seus
resultados. Estes erros só foram descobertos com a observação clínica
ao longo do tempo e porque houve contestação de que o quadro do
paciente não seria melhor explicado pela condição que supostamente
teria confirmação molecular.

O papel do seguimento clínico nos casos sem diagnóstico definitivo

Ao longo do capítulo vimos a importância da organização e sistematização do


raciocínio diagnóstico em neurogenética. Entretanto, sabemos que mesmo
seguindo este modelo um número razoável de pacientes não chegará a um
diagnóstico definitivo e se ao revisitarmos nossas hipóteses (ou se algum
colega o fizer) não encontrarmos hipóteses alternativas ainda não descartadas,
a principal informação virá do seguimento clínico, que poderá levar meses ou
mesmo anos.

Saute et al, 2018


A busca de condições tratáveis como passos iniciais da investigação ajudará
não apenas ao evitarmos atrasos na instituição do tratamento eficaz no caso da
confirmação diagnóstica, mas também ajudará ao retirar a necessidade de
urgência no estabelecimento do diagnóstico final. Desta forma, precisamos
deixar claro ao paciente que muitas vezes o diagnóstico específico não irá
mudar o seu tratamento e que as medidas de tratamento sintomático que já
estão sendo realizadas independem da definição etiológica. Também vale
reforçar para o paciente (e para nós mesmos) que muitas das condições
neurológicas comuns não tem exames diagnósticos de certeza que possam ser
utilizados na prática clínica para confirmar o diagnóstico definitivo (Ex: doença
de Parkinson idiopática, doença de Alzheimer, enxaqueca, etc.) e que o
diagnóstico provável dessas condições é realizado com base nos sinais e
sintomas clínicos e muitas vezes com exames de exclusão de outras causas.
Certamente, ao finalizarmos a investigação de um paciente com suspeita de
condição neurogenética teremos realizado o diagnóstico sindrômico principal e
conseguiremos estabelecer em qual grupo de condições se encaixa a
apresentação do paciente. Ou seja, também teremos um diagnóstico clínico
provável, assim como no caso das doenças multifatoriais, apenas não teremos
a confirmação da alteração genética causal específica. Ter um exame
diagnóstico (confirmatório) disponível clinicamente e que seja o padrão-ouro
para o diagnóstico na verdade é um privilégio de quem trabalha com
neurogenética clínica e em pesquisas em neurogenética.

Em outras palavras, não diremos ao paciente que ele não tem diagnóstico, mas
sim que a causa do diagnóstico dele (seja qual for a apresentação) ainda não
foi encontrada, mas que isso ocorre na hipertensão arterial, diabetes mellitus,
doença de Parkinson, etc., e iremos propor seu seguimento clínico.

Entretanto salientamos que na maioria das vezes tentaremos chegar ao


diagnóstico definitivo. A confirmação do diagnóstico etiológico
(independentemente de haver ou não tratamento específico) em geral oferece
algum conforto para o paciente ou familiar, pois a angústia de estar seguindo
um caminho errado ou perdendo tempo para iniciar um tratamento seria
mitigada pelo diagnóstico definitivo. Além disso, com o diagnóstico definitivo
teremos informações mais acuradas para realizarmos adequadamente o

Saute et al, 2018


aconselhamento genético, e para darmos informações prognósticas,
educacionais e de reabilitação (Tifft CJ & Adams, 2014).

Conclusão

Esperamos que a leitura deste capítulo permita a organização do raciocínio


diagnóstico em neurogenética, resultando em uma elaboração mais racional de
hipóteses e em maior resolutividade e eficiência da investigação diagnóstica.
Acreditamos que o capítulo pode aproximar as diferentes especialidades que
atuam na área, ao tranquilizar o neurologista e o neuropediatra na solicitação
de múltiplos exames paraclínicos que sirvam para uma melhor caracterização
do fenótipo e não necessariamente para a confirmação diagnóstica e ao
auxiliar o médico geneticista a manter raciocínio diagnóstico similar ao de
doenças genéticas extra-neurológicas e informá-lo sobre a necessidade de
conhecer o exame neurológico dos principais grupos de condições ou
topografias antes de iniciar o processo investigativo. Salientamos, que além de
estarmos vivenciando uma revolução nos aspectos diagnósticos das condições
genéticas nos últimos anos com o advento do NGS e do aCGH, também
estamos vivendo uma era de revolução nos tratamentos modificadores destas
condições, em alguns casos inclusive com a descrição de tratamentos
mutação-específicos. Neste cenário, é bem provável que nos próximos anos
haja uma importância ainda maior da confirmação do diagnóstico molecular das
doenças neurogenéticas para o estabelecimento do plano terapêutico. Espera-
se também que as técnicas de reprodução assistida como o diagnóstico pré-
implantacional, que dependem do diagnóstico molecular prévio da condição
familiar, e que podem ser uma das opções dos casais em risco de terem filhos
afetados pela mesma condição, tenham performances ainda melhores, com
menores custos, e com maior acesso em especial na atenção pública à saúde
nos diferentes países.

Saute et al, 2018


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