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Finalmente — uma declaração coerente do atual pensamento dispensacionalista, que deixa os erros

zelosos de Scofield e as guerras Allis-Ladd-Walvoord para trás. A obra apresenta uma hermenêutica
fundamentada na intenção autoral em vez de um literalismo ingênuo, tanto a unidade quanto a
diversidade nas alianças bíblicas, tanto a aliança davídica como a nova aliança inaugurada por Jesus,
além de uma estrutura baseada no reino para entender o dispensacionalismo progressivo. É uma
profunda apresentação de um sistema verdadeiramente bíblico-teológico, uma referência para futuras
discussões.
Gerry Breshears, Professor de Teologia, Western Seminary

Este excelente trabalho escrito por Blaising e Bock apresenta um forte caso para refinamentos
significativos que existem no dispensacionalismo progressivo. Também provê uma esplêndida
sequência para Dispensationalism, Israel and the Church, editado pelos mesmos autores. Recomendo
fortemente.
Kenneth J. Barker, Diretor Executivo, NIV Translation Center

Com seu último trabalho, Blaising e Bock produziram um tour de force, uma declaração clara e sem
ambiguidade do pensamento de um crescente segmento no dispensacionalismo contemporâneo.
Independentemente de cristãos de outras tradições (até mesmo companheiros dispensacionalistas)
aceitarem ou não as premissas e conclusões teológicas desta obra em cada um de seus aspectos, já não
há mais qualquer dúvida quanto ao que significa “dispensacionalismo progressivo” e como os dois de
seus principais proponentes argumentam seu caso.
Eugene H. Merrill, Professor de Estudos no Antigo Testamento, Dallas
Theological Studies

Qualquer um que aprendeu o dispensacionalismo nos anos 50 e 60 e pensa que ele não mudou
deveria ler um livro como esse. Blaising e Bock dão um excelente panorama do que é o chamado
dispensacionalismo progressivo.
Paul D. Feinberg, Professor de Teologia Sistemática e Bíblica, Trinity Evangelical
Divinity School

Esse é o trabalho mais erudito e perspicaz já impresso sobre teologia dispensacionalista. Tenho
esperança que aqueles que abraçarem esse sistema estarão aptos para mudar, crescer e progredir em
seu pensamento acerca do dispensacionalismo.
James C. McHann, Presidente do William Tyndale College

Blaising e Bock deram à comunidade cristã um trabalho profundo e bíblico há muito esperado. Sua
apresentação do governo de Cristo sobre o reino de Deus nesta era e na era porvir, além da habilidosa
revelação da conexão entre as Alianças, torna este livro obrigatório na leitura profética.
James O. Rose, Pastor Sênior, Calvary Baptist Church (Nova York)
Copyright © 1993 por Craig A. Blaising e Darrell L. Bock
Traduzido do original em inglês: Progressive Dispensationalism
Publicado por Baker Academic,
a division of Baker Publishing Group,
Grand Rapids, Michigan, 49516, U.S.A.

As citações bíblicas foram retiradas da Almeida Revista e Atualizada (ARA),


da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação contrária.
Citações bíblicas com a indicação (NAA) foram retiradas da Nova Almeida Atualizada.
Citações bíblicas com a indicação (BKJ) foram retiradas da Bíblia King James Fiel 1611.
Citações bíblicas com a indicação (NVI) foram retiradas da Nova Versão Internacional.
Todas as ênfases nas citações bíblicas foram adicionadas pelos autores.

É proibida a reprodução deste livro sem prévia autorização da editora, salvo em breve citação.

1a edição eletrônica: fevereiro de 2021


Atualização: junho de 2022

TRADUÇÃO
Matheus Fernandes / SIBIMA
Carlos Augusto Pires Dias (Apêndice)
REVISÃO
Yago Martins / SIBIMA
Carlos Augusto Pires Dias
Thalles de Araujo
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Vinicius Lima
Beatriz Reder
CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Argemiro Neto
Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477
B635d Blaising, Craig A.
Dispensacionalismo progressivo / Craig A. Blaising,
Darrell L. Bock ; [tradução: Matheus Fernandes, Carlos
Augusto Pires Dias]. – 2. ed. – Niterói, RJ: Concílio, 2022.

Tradução de: Progressive dispensationalism.


Inclui referências bibliográficas.
ISBN 9786587263120 (brochura)
9786587263038 (epub)
1. Dispensacionalismo. I. Bock, Darrell L.. II. Título.
CDD: 230.046

Publicado no Brasil por EDITORA CONCÍLIO


Copyright © 2022 Editora Concílio
www.editoraconcilio.com.br
contato@editoraconcilio.com.br
SUMÁRIO

Prefácio à edição brasileira


Prefácio à segunda edição americana
Parte um: História
por Craig A. Blaising

1. A extensão e as variedades do dispensacionalismo


Parte dois: Hermenêutica
por Darrell L. Bock

2. Interpretando a Bíblia: como lemos os textos


3. Interpretando a Bíblia: como os textos falam conosco
Parte três: Exposição
por Craig A. Blaising

4. Dispensação na teologia bíblica


5. A estrutura das alianças bíblicas: as alianças antes de Cristo
6. O cumprimento das alianças bíblicas através de Jesus Cristo
7. O reino de Deus no Antigo Testamento
8. O reino de Deus no Novo Testamento
Parte quatro: Teologia e Ministério
por Craig A. Blaising

9. Questões teológicas e ministeriais no dispensacionalismo progressivo


Apêndice
por Darrell L. Bock

O Filho de Davi e o serviço dos santos: a hermenêutica do cumprimento inicial


Por que eu sou um dispensacionalista com “d” minúsculo
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Um dos elementos mais importantes na formulação de um sistema teológico é a chave


hermenêutica adotada pelo intérprete da Bíblia. A chave hermenêutica pode ser identificada pela
maneira como o intérprete relaciona os testamentos da Bíblia (o Antigo e o Novo) e qual
testamento deve estabelecer o contexto para a interpretação. A tendência geral daqueles que dão
prioridade ao Novo Testamento é de ver mais continuidade entre os testamentos. Normalmente
eles adotarão a prioridade do Novo Testamento sobre o Antigo Testamento, mesmo quando
buscando o significado de um texto no Antigo Testamento. Quando o pressuposto hermenêutico
prioriza o Antigo sobre o Novo Testamento, a chave interpretativa tenderá a adotar mais
descontinuidade entre os testamentos. Por exemplo, o dispensacionalismo tradicional, o qual não
há continuidade alguma entre Israel e Igreja. Por conseguinte, a Nova Aliança não tem relação
com a Igreja, mas somente com Israel, o reino foi adiado para o futuro, porque as características
do reino encontradas no Antigo Testamento não estão todas presentes no Novo Testamento,
Cristo não está assentado no trono de Davi em nenhum aspecto. Esse sistema de
descontinuidade pode ser escrito com “d” maiúsculo.
O sistema de continuidade lê o Antigo Testamento à luz do Novo e tenderá a priorizar este
último para estabelecer o contexto para a interpretação. Por exemplo, a teologia reformada vê
Israel substituído pela igreja, o batismo no lugar da circuncisão, vê continuidade da Lei Mosaica
para os crentes do Novo Testamento. Esse sistema de continuidade pode ser escrito com “c”
maiúsculo. Certamente temos sistemas de continuidade com “c” minúsculo como o sistema do
epangelismo de Walter Kaiser Jr. ou a teologia da nova aliança de George Ladd. Da mesma
forma, dentro do dispensacionalismo tradicional há algumas revisões com algumas continuidade,
ou melhor dizendo, descontinuidade com “d” maiúsculo. Pode-se com certa ressalva dizer que
Kaiser e Ladd são reformados na direção dispensacionalista. O dispensacionalismo progressivo
em termos de hermenêutica é dispensacionalista na direção reformada.
A chave hermenêutica dispensacionalista progressivo é marcada por uma tentativa de evitar
priorizar um testamento sobre outro. A maneira de fazê-lo é colocar cada testamento em seu
próprio lugar e priorizar cada um na sua relação consigo e com o progresso da revelação. Noutras
palavras, neste livro, Blaising e Bock propõem uma abordagem intermediária entre aqueles que
enfatizam continuidade (teologias reformadas) entre os testamentos dando prioridade ao Novo
Testamento e aqueles que enfatizam descontinuidade (teologias dispensacionalistas
tradicional/essencialista). Por vezes, os dispensacionalistas progressivos são taxados pelos
dispensacionalistas tradicionais de reformados, e encontramos teólogos reformados nos taxando
de dispensacionalistas tradicionais. O dispensacionalismo progressivo é uma posição
intermediária que em vez de priorizar um testamento sobre o outro, prioriza o contexto de cada
passagem e depois estabelece sua relação dentro do progresso da revelação.
O nome dispensacionalismo progressivo derivou-se a partir da predisposição de seus aderentes
em ver o movimento na linhagem da teologia dispensacionalista e do entendimento das
dispensações não como sendo arranjos diferentes entre Deus e a raça humana, mas como arranjos
sucessivos na revelação progressiva e no cumprimento da redenção, que se move da
Descontinuidade para a continuidade. Por exemplo, você leitor, crê que a igreja é parte da Nova
Aliança? Crê que a aliança davídica já está presente? Crê que o reino de Deus já está presente em
forma incipiente? Você crê que o futuro “ainda não” invadiu a era presente “já” na primeira
vinda de Cristo? Você crê que Israel será salva ou será restaurada no milênio? Essa e outras
perguntas são respondidas em três partes deste maravilhoso livro. A última parte traz implicações
práticas para o ministério pastoral. Depois de quase 30 anos, posso dizer com satisfação: temos o
primeiro livro sobre a chave hermenêutica chamada dispensacionalismo progressivo.

Roque N. Albuquerque, Ph.D.


Reitor da Universidade Federal (UNILAB)
Pastor da Igreja Batista do Calvário de Fortaleza
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO AMERICANA

Sete anos se passaram desde a publicação inicial de Progressive Dispensationalism, e um novo


milênio está começando!1 A convergência desses dois eventos é puramente coincidência, mas a
coincidência fornece a ocasião de perguntar qual contribuição este livro fez ao avanço do
entendimento da igreja quanto ao plano de Deus e qual propósito haveria para a republicação do
livro. Ao longo dos últimos sete anos, o interesse do leitor permaneceu estável. Se é simplesmente
por essa única razão, os autores são gratos que a editora Baker tenha escolhido manter este livro
disponível em edição impressa.
Descobrimos que muitos usam esta obra como um livro texto, focando especialmente na
parte 3. Das quatro partes do livro (três partes na edição anterior), a parte 3, a mais longa,
oferece uma exposição das alianças bíblicas e do Reino de Deus em relação à estrutura paulina da
oikonomia (dispensação). Entretanto, o interesse nos outros ensaios também permanece elevado.
Os leitores comentaram que cada parte do livro é valiosa tanto em sua contribuição exclusiva a
um assunto particular quanto no desenvolvimento panorâmico do livro. Leitores interessados no
método hermenêutico continuam a considerar a parte 2 como um ensaio legível que relaciona as
questões-chave da hermenêutica canônica. Outros estão interessados na parte 1 por sua definição
útil do dispensacionalismo e seu panorama do desenvolvimento e da história do movimento.
Nesta edição, o capítulo 9 tem sido designado como parte 4, Teologia e ministério, para chamar
atenção a seu conteúdo, que vai além do propósito dos capítulos na parte 3. Quando reunidas, as
diferentes partes do livro ainda fornecem uma pesquisa completa das questões e dos interesses
que caracterizam o que se tornou conhecido como Dispensacionalismo Progressivo.
Livros e artigos têm sido escritos em resposta ao Dispensacionalismo Progressivo.
Lamentavelmente, muitos desses não ajudaram a promover um verdadeiro entendimento das
continuidades e diferenças entre o dispensacionalismo tradicional e o progressivo. Uma exceção
notável, entretanto, é o “Three Central Issues in Contemporary Dispensationalism: A Comparison of
Traditional and Progressive Views”, editado por Hebert W. Bateman IV. O leitor que deseja
buscar uma discussão dispensacional dos assuntos levantados por Dispensacionalismo Progressivo
faria bem em consultar essa obra. Além disso, deve-se notar os seguintes artigos escritos por
Darrell Bock que aprofundam a discussão para além do que foi escrito neste livro: “The Son of
David and the Saints’ Task: The Hermeneutics of Initial Fulfillment”,2 Bibliotheca Sacra 150
(1993): pp. 440-57; “Current Messianic Activity and Old Testament Promise: Dispensationalism,
Hermeneutics, and New Testament Fulfillment”, Trinity Journal 15 n.s. (1994): pp. 55-87; e “Why
I Am a Dispensationalist with a Small ‘d’”,3 Journal of the Evangelical Theological Society 41
(1998): pp. 383-96.
Darrell Bock e eu desejamos expressar nossa apreciação aos editores por tornarem este livro
disponível e a você, leitor, por escolhê-lo. Oramos para que este livro traga honra ao Senhor Jesus
Cristo e sirva de alguma forma para promover o conhecimento da sua Palavra.
Craig A. Blaising

1. A primeira edição da obra original foi lançada em 1993. (N. do E.)


2. Disponível no Apêndice A desta edição. (N. do E.)
3. Disponível no Apêndice B desta edição. (N. do E.)
PARTE UM
HISTÓRIA
por Craig A. Blaising
CAPÍTULO 1

A EXTENSÃO E AS VARIEDADES DO DISPENSACIONALISMO

Dispensacionalismo pode não ser um termo familiar, mas ele designa uma das tradições mais
amplamente difundidas e influentes na teologia evangélica de hoje. Se você é um cristão
evangélico, é muito provável que conheça alguns dos que se chamam dispensacionalistas. E é
igualmente provável que você tenha crenças e interpretações das Escrituras que foram moldadas
de alguma forma pelo dispensacionalismo.
Este livro explica uma mudança significativa que atualmente ocorre nas interpretações
dispensacionalistas das Escrituras. Essa mudança afeta a maneira como os dispensacionalistas
entendem termos bíblicos essenciais, tais como o reino de Deus, a igreja no plano redentivo de
Deus, a relação entre as alianças bíblicas, o cumprimento histórico e profético dessas alianças e o
ofício de Cristo nesse cumprimento.
Como veremos, mudanças desse tipo não são inteiramente novas ao dispensacionalismo.
Ainda assim, certas crenças e ênfases permaneceram praticamente as mesmas ou variaram apenas
levemente ao longo da história dessas mudanças. Tais crenças constituem a identidade duradoura
do dispensacionalismo, ao mesmo tempo que o processo de repensar e reinterpretar revela sua
vitalidade.
De onde veio o dispensacionalismo? O quão difundido ele é? Quais são suas características
comuns e quais mudanças ocorreram? Este capítulo procura responder a essas questões. A
significância da presente forma do dispensacionalismo pode ser melhor entendida sob esta ótica,
pois somente à medida que conhecemos de onde viemos e como chegamos até aqui é que
teremos então uma melhor apreciação de onde estamos.

A ASCENSÃO E A PROPAGAÇÃO DO DISPENSACIONALISMO


O dispensacionalismo tomou forma inicialmente no Movimento dos Irmãos no início do século
XIX na Grã Bretanha. O Movimento dos Irmãos enfatizava a unidade de todos os crentes em
Cristo e a liberdade dos cristãos de se reunirem em seu nome sem levar em consideração as
divisões sectárias ou denominacionais. Eles rejeitaram o papel especial de um clero ordenado, que
perpetuou tais divisões eclesiásticas, e enfatizaram, em vez disso, os dons espirituais de crentes
comuns e sua liberdade, sob a orientação do Espírito, para ensinarem e admoestarem uns aos
outros a partir das Escrituras.
Ao reforçar a integridade e a responsabilidade dos leigos, o movimento testemunhou uma
onda de interesse no estudo bíblico e nas devoções pessoais. O movimento gerou um grande
volume de literatura devocional e expositiva, levando alguns autores a se tornaram bem
conhecidos, incluindo John Nelson Darby, Benjamim Wills Newton, George Müller, Samuel P.
Tregelles, William Kelly, William Trotter e Charles Henry Mackintosh.
Os escritos dos Irmãos tiveram um enorme impacto no protestantismo evangélico. Isso é
especialmente verdade nos Estados Unidos, onde influenciaram ministros proeminentes como:
D. L. Moody, James Inglis, James Hall Brookes, A. J. Gordon, J. R. Graves, e C. I. Scofield.
Ainda que não seguissem os Irmãos no que se refere a uma rejeição radical do clero e do
ministério denominacional, eles fundaram um novo fórum ao lado de ministérios estabelecidos
que promoveram a experiência dos Irmãos de se reunir livremente em Cristo para cultuar e
estudar as Escrituras: a Conferência Bíblica. Começando em 1870 com a popular Conferência
Bíblica de Niágara, essas conferências bíblicas começaram a surgir em várias partes do país,
tornando-se o que foi chamado de Movimento de Conferência Bíblica no início do século XX.
C. I. Scofield, um participante desse movimento, formou um conselho de professores das
Conferências Bíblicas e produziu, através da Oxford Press em 1909, uma Bíblia de referência
(segunda edição em 1917) que ficou famosa por todo os Estados Unidos e ao redor do mundo. A
Bíblia de Estudo Scofield estava repleta de anotações expositivas e teológicas que colocaram uma
“Conferência Bíblica” nas mãos de milhares de cristãos evangélicos. As interpretações
apresentadas nas notas formaram um sistema reconhecível de interpretação bíblica. Esse sistema
logo foi chamado de “dispensacionalismo”, um rótulo que veio a marcar a tradição que tanto se
originou quanto se desenvolveu a partir da Bíblia de Estudo Scofield.
O termo dispensacionalismo vem da palavra dispensação, que refere-se à forma distintiva na
qual Deus gere ou organiza a relação dos seres humanos consigo. Tem sido bem comum na
história da interpretação bíblica reconhecer diferentes dispensações nas Escrituras, tais como a de
Israel com suas regulações e cerimônias distintas e próprias, bem como a dispensação da igreja
hoje em dia. Distinguir entre essas diferentes dispensações pode ser útil no entendimento da
complexidade e da diversidade da Bíblia. Entretanto, os dispensacionalistas tiveram algumas
posições distintivas acerca dessas dispensações que diferiram da maioria dos outros intérpretes das
Escrituras. Por causa disso, eles eram especialmente marcados com o rótulo do
dispensacionalismo, ao passo que outros que se referiam a diferentes dispensações nas Escrituras
não foram. Trataremos sobre essas distinções nas seções seguintes deste capítulo.
Através das conferências bíblicas e da Bíblia de Estudo Scofield, o dispensacionalismo veio a
caracterizar os pontos de vistas e as crenças de um grande círculo do evangelicalismo americano,
espalhado por todo protestantismo popular. Entretanto, foi especialmente concentrado nos
círculos presbiterianos, batistas e congregacionais. Quando veio à tona a luta entre
fundamentalistas e modernistas, os dispensacionalistas ficaram do lado fundamentalista, e sua
ênfase ecumênica contribuiu para que houvesse coesão no movimento fundamentalista.
Conforme os fundamentalistas passaram a estabelecer novas igrejas e novas denominações
em reação ao controle modernista sobre as igrejas tradicionais, o dispensacionalismo tornou-se
uma característica predominante em alguns desses grupos. Esses incluíam, por exemplo: a
General Association of Regular Baptist Churches [Associação Geral das Igrejas Batistas Regulares], a
Conservative Baptist Association [Associação Batista Conservadora], a Fellowship of Grace Brethren
Churches [Irmandade das Igrejas dos Irmãos] e as Independent Fundamentalist Churches of
America [Igrejas Fundamentalistas Independentes da América].
Algumas das escolas associadas com essas igrejas se tornaram bem conhecidas por ensinar o
dispensacionalismo. Entre elas estão o Grace College e o Grace Theological Seminary, o
Northwestern College, o Grand Rapids Baptist Seminary e o Western Conservative Baptist Seminary
(agora Western Seminary). O dispensacionalismo também foi ensinado (ainda que não
exclusivamente) no Denver Seminary (antigamente Denver Conservative Baptist Seminary). Ao
longo dos anos, algumas dessas escolas se tornaram mais conscientemente “evangélicas” do que
fundamentalistas, e o dispensacionalismo que ensinavam também sofreu mudanças.
O dispensacionalismo também foi bem representado em outras denominações, tais como a
Evangelical Free Church of America [Igreja Evangélica Livre da América]. Teólogos
dispensacionalistas ensinaram em Trinity College e Trinity Evangelical Divinity School. A
Christian and Missionary Alliance [Aliança Cristã e Missionária], do movimento de santidade,
defendeu as posições dispensacionalistas. Da mesma forma, o dispensacionalismo também
impactou igrejas pentecostais e carismáticas.
Várias escolas bíblicas, institutos, faculdades e seminários ensinaram o dispensacionalismo. O
Moody Bible Institute, fundado através do ministério reavivalista de D. L. Moody é um exemplo
bem conhecido. O Bible Institute of Los Angeles, fundado nos moldes de Moody, é agora Biola
University e inclui a Talbot School of Theology. O Philadelphia College of Bible e o Dallas
Theological Seminary foram produtos diretos do movimento de conferências bíblicas. Os alunos
formados no Dallas Seminary têm composto muitas das escolas dispensacionalistas citadas acima
e também fundaram outras, incluindo, por exemplo, o Multnomah Bible College/Biblical
Seminary e o William Tyndale (antigo Detroit Bible College).
Não somente os formados por essas escolas ministraram nas associações e denominações já
mencionadas (incluindo algumas igrejas principais), mas também fundaram e pastorearam um
grande número de igrejas bíblicas independentes, de forma que o Movimento Bible Church
reflete principalmente uma exposição dispensacional das Escrituras na maioria das vezes.
Nesse século, os veículos de comunicação ajudaram a destacar os ministérios de pastores
proeminentes, alguns dos quais ensinavam as visões dispensacionalistas. Entre eles, para nomear
somente alguns, o falecido Donald Grey Barhouse (presbiteriano), W. A. Criswell, Adrian
Rogers, Charles Stanley (Batista do Sul) e Chuck Swindoll (Igreja Evangélica Livre). Os
ministérios populares no rádio com uma visão dispensacionalista das Escrituras incluíram o
falecido Charles Fuller e a “Old Fashioned Gospel Hour” [“A hora do evangelho à moda antiga”]
(que levou à fundação do Fuller Theological Seminary — apesar de hoje em dia ser amplamente
evangelical, o corpo docente inicial do Fuller incluía os bem conhecidos dispensacionalistas
Wilber Smith e Everett Harrison), o falecido M. R. DeHaan e Richard DeHaan no “Radio Bible
Class” [“Classe bíblica do rádio”], o falecido Theodore Epp e Warren Wiersbe no “Back to the
Bible” [“De volta à Bíblia”], o falecido J. Vernon McGee com “Through the Bible” [“Através da
Bíblia”], o “Old Time Gospel Hour” [“A hora do evangelho dos tempos antigos”] de Jerry Falwell
e o “Insight for Living” [“Insights para viver”] de Chuck Swindoll.
Os dispensacionalistas participaram e encorajaram a fundação de organizações missionárias
(como a Central American Mission, fundada por C. I. Scofield) e ministérios paraeclesiásticos
(como o Young Life [Alvo da Mocidade], fundado por Jim Rayburn). Os dispensacionalistas
ministraram com a Campus Crusade for Christ [Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo], os
Navigators, a Youth for Christ [Mocidade para Cristo] e a InterVarsity Christian Fellowship. Temas
dispensacionalistas surgiram em alguns dos materiais de ensino desses ministérios. Além disso,
alguns dos mais famosos evangelistas, incluindo Billy Graham, afirmaram e ensinaram pontos de
vistas dispensacionalistas.1
Em resumo, é possível encontrar tanto ministros quanto leigos que compartilham de visões
dispensacionalistas das Escrituras na maioria das denominações protestantes, agências
missionárias e ministérios paraeclesiásticos em graus variados. Desde sua apresentação nas
conferências bíblicas até os dias de hoje, o dispensacionalismo se expandiu para se tornar uma das
expressões mais comuns do cristianismo evangélico.
O dispensacionalismo não é um movimento monolítico; hoje em dia há uma diversidade em
suas várias questões de interpretação. Entretanto, existem algumas características amplas que
unem esses diversos elementos em uma tradição comum. Juntas, essas características fornecem
uma definição descritiva do dispensacionalismo.

CARACTERÍSTICAS COMUNS DA TRADIÇÃO DISPENSACIONALISTA


Autoridade das Escrituras. Desde o início do Movimento dos Irmãos, passando pelas
Conferências Bíblicas Americanas, a Bíblia de Estudo Scofield, os institutos bíblicos, as faculdades
e seminários, até os ministérios populares de exposição nas igrejas e movimentos paraeclesiásticos,
o dispensacionalismo tem sido conhecido como um movimento de exposição bíblica. Ele tem
produzido vários expositores populares das Escrituras que não somente ajudaram a difundir o
dispensacionalismo, mas têm impactado grandes porções do evangelicalismo.
Os dispensacionalistas têm sustentado a crença de que a Bíblia é a única revelação verbal e
inerrante de Deus disponível para a igreja hoje, e que provê uma fundação firme para a vida e a
fé cristã. Eles acreditam que as ideias e interpretações dispensacionalistas ajudam as pessoas a
entender a Bíblia e a torná-la mais inteligível, permitindo que se apropriem das Escrituras em seu
dia a dia com um melhor conhecimento. Além do mais, o sistema dispensacionalista com a sua
forma de relacionar as diversas partes da Bíblia ofereceu às pessoas um senso de respostas aos
ataques feitos à integridade das Escrituras pelo liberalismo teológico.
O movimento de conferências bíblicas foi um esforço para tornar a Bíblia uma base segura
para o ecumenismo evangélico — um ecumenismo que não era visto como estrutural,
administrativo ou denominacional, mas um ecumenismo de fé, esperança e amor. Escolas e
ministérios interdenominacionais têm tentado manter essa visão em variados graus, visão que
ajudou a contribuir com uma noção de identidade evangélica em alguns setores do
evangelicalismo.
Os dispensacionalistas, é claro, não eram os únicos evangélicos a enfatizar a autoridade da
Bíblia. Porém, sua visão transdenominacional e sua orientação prática de ministério expositivo
fez da ênfase nas Escrituras um selo do movimento, que continua até os dias de hoje.

Dispensações. A palavra dispensação refere-se ao arranjo particular pelo qual Deus regula a forma
como os seres humanos se relacionam com ele.2 O dispensacionalismo acredita que Deus
planejou uma sucessão de diferentes dispensações ao longo da história — passada, presente e
futura. Além do mais, os dispensacionalistas acreditam que essas dispensações são reveladas nas
Escrituras, tanto na história quanto nas profecias. Entender essas dispensações, essas diferentes
relações que Deus teve e terá com a humanidade, é crucial para a compreensão do ensino e da
mensagem da Bíblia.
Naturalmente, uma preocupação principal para nós hoje é o nosso próprio relacionamento
com Deus. Como resultado, uma exposição dispensacional das Escrituras enfatizará
especialmente a presente dispensação e a forma que as Escrituras lidam explicitamente com ela.
Então, procuramos interpretar outras porções das Escrituras à luz das dispensações as quais elas
pertencem ou das quais elas falam. Compreendemos melhor como esses textos das Escrituras se
relacionam conosco quando sabemos como tais dispensações se relacionam ou diferem da nossa
própria. Consequentemente, entender as dispensações é crucial para entender como o todo das
Escrituras se relaciona com a prática e a fé cristãs.3
Por exemplo, suponha que falemos da antiga dispensação que cobriu o relacionamento de
Israel com Deus sob a aliança mosaica. Então, falemos da presente dispensação que se refere à
igreja, o corpo de Cristo, primeiramente constituída como tal pelo próprio Cristo no dia de
Pentecostes logo após sua ascensão aos céus. Falemos, só então, da dispensação futura como o
arranjo da relação de Deus com a humanidade depois do retorno de Cristo à terra. Praticamente
todo o Antigo Testamento foi escrito sob a antiga dispensação — e a maior parte dele se refere a
ela — como já definimos. Boa parte do Novo Testamento refere-se à presente dispensação.
Porém, encontramos profecias tanto no Antigo quanto no Novo Testamento que falam da futura
dispensação.

Além disso, quando um cristão de hoje lê o Antigo Testamento, o ajuda muito saber que ele está
lendo uma literatura que fala diretamente sobre Israel e seu relacionamento com Deus sob a
antiga dispensação. Deus ordenou certas formas de culto. Ele instruiu especificamente Israel
sobre a política nacional relacionada aos eventos no primeiro e no segundo milênio a.C.
Deus, é claro, é o Deus eterno. Estamos lidando com o mesmo Deus atualmente. Portanto,
há muitas lições a serem aprendidas a partir do modo como Deus se relacionou com seu povo na
antiga dispensação. O Novo Testamento nos guia aqui. Ele também revela o fato de que o
relacionamento de Deus com a igreja difere em alguns aspectos significativos da dispensação com
Israel. Na presente dispensação, Deus está abençoando igualmente judeus e gentios com certas
bênçãos do Espírito Santo em uma medida que ele só prometera na antiga dispensação. Isso
inclui, por exemplo, a habitação permanente do Espírito Santo. Existem também novas formas
de adoração (como Jesus revelou à mulher samaritana em Jo 4.21, 23). Consequentemente,
embora existam semelhanças, também existem diferenças importantes entre a igreja e o Israel do
Antigo Testamento. Compreender as diferentes dispensações ajuda o leitor das Escrituras a saber
como lidar com a leitura do Antigo Testamento.
As dispensações são estruturadas por várias alianças que Deus fez ou prometeu. Uma vez que
a Bíblia tem muito a dizer acerca dessas alianças, um entendimento dispensacional das Escrituras
terá ênfase especial sobre elas. Neste livro, examinaremos tanto as dispensações quanto as alianças
nos capítulos 4-6.

Singularidade da Igreja. Tradicionalmente, o dispensacionalismo sempre viu a igreja como


uma dispensação distintamente nova na história bíblica. A igreja encontra as suas origens
históricas no “evento Cristo” — que é a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus Cristo — e
particularmente no “batismo do Espírito”, o qual Cristo concedeu igualmente aos crentes judeus
e gentios desde a festa do Dia de Pentecostes, logo após sua ascensão.
O que torna a igreja uma nova dispensação são essas bênçãos do Espírito Santo que são
qualitativamente diferentes das bênçãos do Espírito Santo no Antigo Testamento. Também
contribui para a singularidade da igreja o fato de que essas bênçãos são dadas igualmente aos
judeus e aos gentios. Além do mais, nesta dispensação, Deus não está concedendo certas bênçãos
políticas e materiais na mesma medida que prometeu na aliança com Israel (com implicações
para as nações). A profecia bíblica prediz essas bênçãos para uma futura dispensação a ser
estabelecida quando Cristo retornar à terra.
Entender a singularidade da igreja ajuda os cristãos a interpretar de forma inteligível tanto o
Antigo quanto o Novo Testamento. Saber, por exemplo, que crentes em Cristo são selados com
o Espírito Santo, assegura-lhes de sua habitação permanente e ajuda-os a não se assustar com a
oração de Davi (Sl 51.11), onde ele suplica para que o Espírito Santo não seja retirado dele. Eles
podem entender a oração de Davi no contexto histórico da dispensação na qual Davi se
relacionou com Deus.
Ao mesmo tempo, as Escrituras falam das bênçãos do Espírito Santo nesta dispensação como
um penhor, uma entrada, em direção a nossa redenção completa no futuro (Ef 1.13-14). Essa
progressão qualitativa da experiência de Davi com o Espírito Santo para a nossa própria
dispensação, e então para a futura dispensação, mostra como as dispensações simplesmente não
seguem ou substituem umas às outras, mas, na verdade, progridem para um objetivo escatológico
futuro.

Significado Prático da Igreja Universal. Os dispensacionalistas sempre sustentaram a crença de


que a realidade da igreja deve ser encontrada em Cristo, e que essa realidade transcende as
divisões denominacionais que separam os cristãos uns dos outros.
O Movimento dos Irmãos começou como reuniões abertas de cristãos que tinham
comunhão uns com outros somente no nome de Cristo, sem referência às autoridades
denominacionais ou membresias. Entretanto, uma parte do movimento, conhecido como
Exclusive Brethren [Irmãos Exclusivos], passou a considerar suas reuniões locais como o
verdadeiro cristianismo em contraste às outras igrejas e denominações. Essa exclusividade se
estendeu até mesmo ao ponto de excomungar outras assembleias de Irmãos por conta de assuntos
triviais. Como resultado, o ecumenismo inicial do movimento foi grandemente diminuído, ou
perdido quase que inteiramente.
O que foi perdido no Movimento dos Irmãos foi buscado no Movimento das Conferências
Bíblicas Americanas. Porém, era necessário uma visão diferente da igreja. Enquanto os Irmãos
focavam sua atenção na igreja local, os líderes das conferências bíblicas buscavam delinear um
significado prático da igreja universal — o corpo de Cristo que transcende igrejas locais e
denominações. As conferências bíblicas tinham uma comunhão cristã visível e tangível baseada
somente na realidade da igreja universal. Não poderiam e nem tentaram substituir a comunhão e
o ministério da igreja local.
O dispensacionalismo americano tem sido uma força vigorosa na busca e no encorajamento
de ministérios que destacam um significado prático à igreja universal e, portanto, dão uma
expressão tangível à verdadeira unidade cristã, a qual transcende ministérios denominacionais e
igrejas locais. Esse movimento inclui muitas organizações missionárias e ministérios
evangelísticos e de discipulado paraeclesiásticos. Também estão incluídos institutos bíblicos
interdenominacionais, faculdades e seminários que continuam com os ideais das Conferências
Bíblicas no treinamento ministerial e de leigos.
O verdadeiro espírito do dispensacionalismo americano não veria esses ministérios como
concorrentes e nem como parte do ministério da igreja local, mas sim como um complemento à
igreja local. Evidentemente, a prática às vezes difere do ideal, mas o ideal continua sendo um
objetivo, cuja visão precisa ser renovada.
O fundamentalismo inicial também afirmou uma identidade evangélica ecumênica, embora
afirmasse essa identidade em oposição consciente ao modernismo. Entretanto, eventualmente, o
fundamentalismo se voltou contra si mesmo, praticando graus de separação, fraturando e
dividindo a unidade inicial. O dispensacionalismo sofreu dos mesmos efeitos; alguns
dispensacionalistas perderam de vista os valores práticos de um diálogo bíblico intra-evangélico.
Como alguns outros evangélicos, eles recorreram ao isolamento e à separação, traindo uma
convicção inicial no Espírito de Cristo que guia o corpo de Cristo no conhecimento das
Escrituras.
Nos últimos anos, no entanto, tem havido sinais positivos dentro do evangelicalismo de
apreciação e afirmação mútuas, contribuindo para curar algumas das feridas e divisões
decorrentes das eras fundamentalista e pós-fundamentalista. Há sinais de que os
dispensacionalistas de hoje também estão começando a reafirmar o valor positivo do diálogo
bíblico evangélico.

Significado da Profecia Bíblica. O dispensacionalismo entende que o significado histórico das


profecias bíblicas são relevantes para entender o propósito de Deus na terra e para seus habitantes
humanos. Há outras tradições teológicas que interpretam as profecias bíblicas quase que
exclusivamente em relação ao atual ministério de Cristo na igreja ou à experiência pessoal de
salvação do crente. O dispensacionalismo, entretanto, interpretando essas profecias de uma
forma mais “literal”, sempre esperou que as bênçãos futuras de Deus incluíssem aspectos
políticos, nacionais e terrenos da vida. Muitas dessas bênçãos pertencem a uma futura
dispensação que será marcada pelo retorno de Cristo à terra.
Como resultado, a tradição dispensacionalista ofereceu um conceito mais amplo de redenção
do que os encontrados em outras teologias. A redenção se estende tanto a níveis políticos e
nacionais, quanto à renovação espiritual. Entretanto, ao mesmo tempo, o dispensacionalismo
inicial também adotou um dualismo forte que dissociou essas características proféticas amplas de
redenção das bênçãos da igreja. Consequentemente, os aspectos mais amplos de redenção eram
efetivamente irrelevantes à igreja. Como resultado, para alguns dispensacionalistas, muitas das
profecias da Bíblia tendem a ser mais um objeto de curiosidade do que um aspecto vital da
esperança cristã. Esse tipo de dispensacionalismo pouco restringiu (e até mesmo contribuiu para)
as tendências sensacionalistas do apocalipticismo popular.
Houve uma gradual revisão do dualismo do dispensacionalismo inicial, como veremos na
próxima seção. Também houve uma reação ao excesso de sensacionalismo apocalíptico. Isso não
significa que a profecia possua uma importância menor. Pelo contrário, tornou-se muito mais
relevante para a atual fé e a esperança da igreja.

Pré-milenismo Futurista. O dispensacionalismo é uma forma de pré-milenismo, isto é, ele


defende a crença de que Cristo retornará para esta terra e reinará por mil anos. Como a maioria
dos pré-milenistas, os dispensacionalistas interpretam a profecia bíblica dizendo que Cristo
retornará durante um período problemático, tradicionalmente chamado de “a tribulação”.
Entretanto, diferentemente da maioria dos pré-milenistas, a maioria dos dispensacionalistas tem
defendido a doutrina do arrebatamento pré-tribulacionista — a doutrina de que Cristo virá para
a igreja antes da tribulação, ressuscitando os mortos em Cristo, transladando os crentes vivos para
a vida imortal e então levando a igreja com ele ao céu antes de seu retorno milenar, onde reinará
de modo visível as nações da terra.
Devido ao fato de crerem que a igreja não estará na terra durante a tribulação, os
dispensacionalistas têm tradicionalmente rejeitado as tentativas de identificar os eventos presentes
como os cumprimentos das profecias da tribulação. Dessa forma, o dispensacionalismo deve ser
classificado como uma forma de pré-milenismo “futurista”. Eles acreditam que os eventos da
tribulação se cumprirão em algum tempo no futuro (isto é, depois do arrebatamento), se opondo
à visão “historicista” que acredita que tais eventos estão sendo cumpridos no dias de hoje.
Ao mesmo tempo, no entanto, alguns dispensacionalistas foram atraídos e levaram adiante as
interpretações historicistas do apocalipticismo popular religioso. Os eventos no mundo pós-
guerra pareciam seguir algumas interpretações dispensacionalistas acerca dos movimentos
políticos e militares vislumbrados em Daniel e Apocalipse. Como resultado, na segunda metade
do século XX, as linhas entre o futurismo e o historicismo enfraqueceram. Os escritos de Hal
Lindsay (Late Great Planet Earth [1970], There’s a New World Coming [1973] e The 1980’s:
Countdown do Armagedom [1980]) são típicos da forma dispensacionalista de historicismo.
Porém, teólogos ainda mais respeitados se aventuraram nessa direção, tais como John Walvoord
(Armageddon, Oil and the Middle East Crisis; [1974, rev. ed. 1990]) e Charles Ryrie (The Living
End, [1976]).
Um dos resultados do pré-milenismo futurista é a abstenção do estabelecimento de datas para
a segunda vinda de Cristo. Um fator importante na difusão do dispensacionalismo nos Estados
Unidos na segunda metade do século XIX foi o fato de que ele ofereceu um pré-milenismo que
evitou a hermenêutica de data estabelecida do movimento adventista milerita. William Miller se
distinguiu ao alegar ter discernido a data do retorno de Cristo. Quando Cristo falhou em
aparecer pelos cálculos de Miller, os pré-milenistas, de modo geral, sofreram desgraça. O
dispensacionalismo se salvou ao rejeitar a hermenêutica milerita. Entretanto, as linhas ofuscadas
entre o historicismo e o futurismo em alguns setores do dispensacionalismo do final do século
XX levaram a uma aproximação perigosa do mesmo erro.4

O retorno iminente de Cristo. Nas conferências bíblicas e proféticas do final do século XIX, o
retorno iminente de Cristo significava a crença no pré-milenismo. O pós-milenismo ensinava
que o retorno de Cristo estava a pelo menos mil anos além, depois da igreja ter terminado a
tarefa de cristianizar o mundo. Já os pré-milenistas criam que Cristo retornaria antes do milênio,
que ele retornaria em um tempo de angústia e que o tempo presente evidenciava problemas
suficientes para ele voltar a qualquer momento.
Historicistas e dispensacionalistas pré-milenistas também tiveram grande interesse nas
descrições apocalípticas da tribulação antes da volta de Cristo à terra. Os dispensacionalistas
interpretavam as cronologias apocalípticas em Daniel e Apocalipse como significando que Cristo
retornará à terra para governar as nações após uma tribulação de sete anos.5
Uma vez que os dispensacionalistas eram futuristas, acreditando que a tribulação se daria
completamente no futuro, eles acreditavam, consequentemente, que a volta do Senhor à terra
estava pelo menos a sete anos de diferença. Porém, os dispensacionalistas também acreditavam
que Cristo viria para a igreja antes da tribulação e que essa vinda ocorreria literalmente a
qualquer momento. Consequentemente, quando os dispensacionalistas falavam de iminência,
falavam primariamente do arrebatamento pré-tribulacionista. Pela insistência de Arno Gaebelein,
C. I. Scofield e outros contemporâneos à virada do século, a iminência veio a ser definida
exclusivamente pela doutrina do arrebatamento pré-tribulacionista.
A maioria dos dispensacionalistas atuais se apegaram a esse arrebatamento. Em seu livro de
1976, Blessed Hope and the Tribulation, John Walvoord reconheceu a existência do
dispensacionalismo pós-tribulacionista. Apesar de não ser uma doutrina de iminência para os
padrões posteriores, ainda assim manteve a proximidade da vinda de Cristo e foi reconhecida
como uma variante dentro da tradição dispensacional.

Um Futuro Nacional Para Israel. Uma das características mais bem conhecidas da tradição
dispensacionalista é a crença em um futuro para o Israel nacional. Esse futuro inclui pelo menos
o reino milenar de Cristo e, para alguns dispensacionalistas, se estende também até o estado
eterno. Por causa dessa forte crença, alguns dos primeiros dispensacionalistas, como W. E.
Blackstone, tiveram um importante papel em obter apoio para o movimento sionista. Isso
acabou desembocando, nos dias de hoje, nas atividades políticas pró-Israel de Jerry Falwell e Pat
Roberson.
Embora nem todos os dispensacionalistas tenham apoiado fortemente o movimento sionista
moderno, eles tradicionalmente sustentam que as profecias a respeito da restauração política,
nacional e das bênçãos de Israel serão cumpridas na próxima dispensação. E embora outras
teologias também tenham chegado ao ponto de considerar seriamente o futuro de Israel, isso se
deve geralmente à insistência dos dispensacionalistas que sempre fizeram do Israel nacional uma
característica proeminente da sua interpretação bíblica.

FORMAS DO DISPENSACIONALISMO
As oito características anteriores constituem as preocupações existentes e ênfases que caracterizam
a tradição dispensacionalista. Entretanto, o dispensacionalismo não tem sido uma tradição
estática. Não houve nenhum credo padrão congelando seu desenvolvimento teológico em algum
ponto arbitrário na história.6 À medida que o dispensacionalismo se desenvolveu, as
características mencionadas anteriormente têm sido confirmadas através das dinâmicas de
renovação da interpretação bíblica. As evidências dessa continuidade testificam em favor da força
da tradição dispensacionalista.
Entretanto, essa mesma continuidade nas dinâmicas de estudo bíblico modificaram as formas
nas quais algumas das características acima têm sido entendidas. Embora não seja fácil classificar
todas as diferenças entre os vários teólogos dispensacionalistas, três formas amplas do
pensamento dispensacionalista podem ser identificadas. Elas precisam ser entendidas para que
apreendamos a história da tradição.7
Usaremos a designação dispensacionalismo clássico para nos referirmos às ideias dos
dispensacionalistas britânicos e americanos a partir dos escritos de John Nelson Darby, o
primeiro teólogo do Movimento dos Irmãos inicial, e também aos oito volumes da Teologia
Sistemática de Lewis Sperry Chafer, o fundador e primeiro presidente do Dallas Theological
Seminary. Os comentários da Bíblia de Estudo Scofield podem ser consideradas uma chave
representativa do dispensacionalismo clássico, apesar de existirem vários pontos que diferentes
dispensacionalistas desse período iriam diferir. A designação dispensacionalismo foi primeiramente
aplicada às interpretações oferecidas na Bíblia de Estudo Scofield, funcionado como um ponto de
referência para o desenvolvimento futuro da tradição.
O dispensacionalismo revisado designa as ideias dos escritos dos teólogos dispensacionalistas
entre o final dos anos 50 e o final dos anos 70, embora também se aplique a algumas publicações
dos anos 90. A designação revisado é extraída da revisão da Bíblia Scofield, concluída em 1967,
oferecendo visões muito mais compatíveis com os escritores desse segundo período. Alguns dos
mais bem conhecidos dispensacionalistas revisados incluem Alva J. McClain, John Walvoord,
Charles Ryrie, J. Dwight Pentecost e Stanley Toussaint.
O dispensacionalismo progressivo, tema deste livro, é uma forma mais contemporânea do
pensamento dispensacionalista que se desenvolveu por meio do estudo bíblico contínuo de
interesses e ênfases da tradição dispensacional. O dispensacionalismo progressivo oferece várias
modificações ao clássico e ao revisado, deixando o dispensacionalismo mais próximo da
interpretação bíblica evangélica contemporânea. Apesar do nome ser relativamente recente, as
interpretações particulares que perfazem essa forma de dispensacionalismo têm sido
desenvolvidas nos últimos quinze anos. Revisões suficientes haviam ocorrido em 1991 para
apresentar o nome dispensacionalismo progressivo na reunião nacional da Evangelical Theological
Society daquele ano. Este presente livro, ao lado das publicações: Dispensationalism, Israel and the
Church: The Search for Definition e The Case for Progressive Dispensationalism são os principais
representantes desse ponto de vista.8
Ao avaliarmos as diferentes formas de dispensacionalismo, veremos que algumas das questões
que os distinguem são de natureza técnica. Essas questões só podem ser abordadas
resumidamente aqui. Mas o leitor encontrará uma discussão mais extensa sobre a interpretação
bíblica, as diferentes dispensações, as alianças bíblicas e o reino de Deus nos capítulos seguintes.
As páginas seguintes devem ser lidas em conjunto com esses capítulos.

DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO
O Dualismo Central. Talvez a característica mais importante do dispensacionalismo clássico é
sua ideia dualística da redenção. Para entender a Bíblia, é preciso reconhecer que Deus está
buscando dois propósitos diferentes, um relacionado ao céu e um relacionado à terra. Esses dois
propósitos afetam a forma como Deus lida com a humanidade. De fato, eles resultam em um
dualismo antropológico: uma humanidade celestial e uma humanidade terrena.
Em outras palavras, um dos propósitos de Deus na redenção era libertar a terra da maldição
da corrupção e da queda, e restaurar sobre ela uma humanidade livre da morte e do pecado. Esse
era o propósito terreno de Deus. Deus restaurará permanentemente o paraíso perdido na Queda,
conferindo imortalidade à humanidade terrena. Alguns escritores previram essas bênçãos em
termos físicos, incluindo a reprodução para aumentar a plenitude da raça humana.
É importante entender que no dispensacionalismo clássico essa humanidade terrena é eterna.
Ela primeiramente aparece no milênio (o reinado futuro de Cristo por mil anos), mas não terá
alcançado sua glória eterna até o fim desse tempo. E então, continuará na nova terra, habitando-a
para sempre.
Mas Deus tem um segundo propósito, um propósito celestial que prevê uma humanidade
celestial. Essa humanidade celestial deveria ser composta de todos os remidos de todas as
dispensações que seriam ressuscitados dos mortos. Enquanto a humanidade terrena diz respeito
às pessoas que não haviam morrido, mas foram preservadas da morte por Deus, a humanidade
celestial era composta de todos os salvos que haviam morrido, os quais Deus ressuscitaria dos
mortos.
Pela natureza do caso, a humanidade celestial seria uma comunidade “transdispensacional”.
Todos os salvos das dispensações anteriores estão mortos, e todos os da presente dispensação
anterior a esta geração também estão mortos. Eles estão, é claro, com o Senhor agora. Porém, sua
esperança futura reside na ressurreição, pela qual receberão plenamente sua salvação celestial em
uma herança celestial.
A humanidade terrena começará com essa geração dos salvos que estão presentes na terra no
retorno do Senhor. Eles serão preservados da morte, como todos os descendentes que são da fé.
Eles não serão ressuscitados dos mortos, pois nunca estiveram mortos, nem serão transformados
em um modo de vida de ressurreição. Eles são pessoas terrenas e experimentam a salvação terrena
que Deus projetou de acordo com seus propósitos para a terra.
Em resumo, o dualismo central do dispensacionalismo clássico afirma que Deus está
buscando dois propósitos na redenção, um relacionado ao céu com uma humanidade celestial, e
outro relacionado à terra, concernente a uma humanidade terrena. Ambos os propósitos serão
cumpridos e confirmados para sempre.

As Dispensações. O dispensacionalismo clássico entendia as dispensações como arranjos


diferentes sob os quais seres humanos são testados. Deus planejou o relacionamento da
humanidade consigo mesmo para testar sua obediência a ele. Nas dispensações passadas, Deus
deu promessas com respeito à vida terrena, mas, a humanidade pecou repetidamente e falhou em
obter as promessas em qualquer sentido duradouro. A presente dispensação da igreja é a primeira
dispensação que claramente apresenta o propósito celestial de Deus. Quando Cristo for revelado
no final desta dispensação, ele confirmará os dois propósitos, primeiro no milênio, que testa a
humanidade uma última vez antes do julgamento, e então na eternidade.
Uma das diferenças entre a igreja nesta dispensação e o povo de Deus nas dispensações
passadas é que a igreja deve saber que é um povo celestial destinado a uma herança eterna no céu.
Pessoas das dispensações passadas buscaram obter as promessas terrenas. Elas morreram, no
entanto, sem obtê-las. Elas sequer sabiam de um destino celestial ou estavam vagamente cientes
disso. Apesar de terem falhado em alcançar as promessas terrenas, Deus em sua graça incluirá
aqueles que confiaram nele (isto é, os eleitos) na salvação celestial.
Porém, a igreja deve saber que ela tem um futuro celestial e é chamada para uma forma
celestial de vida. A falha desta dispensação vem quando a igreja pensa que tem um propósito
terreno, quando ela começa a pensar em si mesma como um povo terreno e torna-se preocupada
com coisas terrenas. Tais preocupações trouxeram o que é chamado de “cristandade” — um
fenômeno político-cultural das nações cristãs ocidentais. O dispensacionalismo clássico via a
cristandade como uma perversão da humanidade pecadora que tenta substituir a si mesma pela
real igreja de Deus. A cristandade, o fracasso humana desta dispensação, será julgada no retorno
de Cristo.9
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO
1. As pessoas terrenas das dispensações passadas falharam em compreender os propósitos terrenos de Deus. Em vez disso, os
salvos serão incluídos nos propósitos celestiais de Deus quando esse propósito for cumprido.
2. Muitos dispensacionalistas clássicos (tais como Scofield) não consideravam o estado eterno como uma dispensação.

Com esse dualismo central em mente, podemos visualizar as dispensações do dispensacionalismo


clássico da maneira ilustrada acima.10

A Natureza da Igreja. A natureza celestial da salvação da igreja foi interpretada pelos


dispensacionalistas clássicos de uma maneira individualista. As questões sociais e políticas eram
problemas terrenos que não diziam respeito à igreja. A igreja era uma unidade espiritual
encontrada em Cristo, e essa unidade manifestou-se não somente na união de Cristo, mas na
união da salvação pessoal — a natureza individual da salvação. Os problemas na igreja eram
individuais, privados e espirituais, não políticos, sociais e terrenos.11
Podemos ilustrar isso da seguinte maneira.
A IGREJA COMO UM PARÊNTESES NO DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO

A natureza celestial, individualista e espiritual da igreja não poderia mais ser distinta da natureza
terrena, social e política de Israel e das nações gentílicas. A diferença ajudou a ressaltar a
conhecida crença dispensacional clássica de que a igreja é um parênteses na história da redenção,
ou seja, a história da redenção terrena. A igreja não está relacionada a esse propósito terreno e,
assim, é como um parênteses inserido na história. Lewis Sperry Chafer sentiu que o termo
“parênteses” não era o suficiente, então chamou a igreja de intercalação.

De fato, o novo, até agora não revelado propósito de Deus no chamamento externo de um
povo celestial a partir dos judeus e gentios é tão divergente com respeito ao propósito divino
em direção a Israel, cujo propósito o precedeu e ainda o virá depois, que o termo “parênteses”,
comumente aplicado para descrever uma era-propósito, é impreciso. Uma porção parentética
sustenta alguma direta ou indireta relação a algo que a precede ou que a segue; mas a presente
era-propósito é mais propriamente denominada como uma intercalação. A adequação dessa
palavra será vista pelo fato de que, assim como uma interpolação é formada ao inserir uma
palavra ou frase em um contexto, assim uma intercalação é formada ao introduzir um dia ou
um período de tempo no calendário. A presente era da igreja é uma intercalação dentro do
calendário revelado ou programa de Deus como esse programa foi previsto pelos profetas de
antes. Tal, de fato, é o caráter preciso da presente era.12

Interpretação Bíblica. Os dispensacionalistas clássicos interpretaram a Bíblia de acordo com seu


dualismo central. Eles acreditavam que se o Antigo Testamento fosse interpretado literalmente,
então ele revelaria o propósito terreno de Deus para a humanidade terrena. Entretanto, se fosse
interpretado espiritualmente (eles geralmente usavam o termo “tipologicamente”), então revelaria
o propósito espiritual de Deus para um povo espiritual. O propósito espiritual e o povo espiritual
eram encontrados literalmente revelados no Novo Testamento.
No que diz respeito à interpretação “literal”, os dispensacionalistas clássicos às vezes falavam
de interpretação gramatical e histórica. Alguns deles eram especialmente habilidosos na gramática
e ofereceram comentários úteis sobre o sentido gramatical das Escrituras. Por interpretação
histórica, eles referiam-se às referências históricas em um texto (isto é, reis, áreas geográficas,
cronologia etc.) ou o arranjo dispensacional do texto.
Nas Conferências Bíblicas Americanas, os dispensacionalistas clássicos promoveram o que
chamaram de “Leituras da Bíblia”, que era uma prática de juntar textos que lidavam com uma
palavra, frase ou tema em comum. Esses textos eram então lidos um após o outro, e algumas
vezes sem muita consideração pelo contexto. Implicações eram então extraídas a partir desse
exercício.

As Alianças Bíblicas. Os dispensacionalistas clássicos viam a aliança de Deus com Abraão (em
Gn 12 e capítulos seguintes) como a aliança fundamental nas Escrituras. Uma das promessas que
Deus fez a Abraão foi: “Farei dos teus descendentes como a areia da terra” (Gn 13.16). Os
dispensacionalistas clássicos acreditavam que essa promessa revelava o propósito terreno de Deus
para a humanidade terrena. Antes de tudo, ela prometeu descendentes físicos a Abraão que se
tornariam uma grande nação em um território que Deus especificou. Eles seriam abençoados
acima de todas as nações e mediariam as bênçãos e maldições de Deus aos povos gentios na terra.
Essa aliança também poderia ser interpretada espiritualmente, entretanto, para revelar o
propósito celestial e o povo celestial de Deus. Deus prometeu a Abraão: “multiplicarei a tua
descendência como as estrelas dos céus” (Gn 22.17). A interpretação espiritual dessa promessa
conduziria aos descendentes espirituais de Abraão — a humanidade celestial. Acreditava-se que o
Novo Testamento segue essa interpretação espiritual quando entende a igreja como os
descendentes de Abraão.
As alianças mosaica, palestina e davídica13 foram todas interpretadas como alianças terrenas.
Elas lidavam com o propósito terreno de Deus, não com o propósito espiritual/celestial.
A nova aliança (uma aliança profetizada em Isaías, Jeremias e Ezequiel) foi interpretada
primariamente ou somente como uma aliança terrena, embora tenha prometido que Deus
colocaria o seu Espírito no seu povo. Darby acreditava que, quando apareceu na Bíblia, a nova
aliança sempre se referia a Israel e, consequentemente, não tinha nada a ver com a humanidade
celestial de Deus. Chafer chegou o mais próximo possível de Darby, mas teve que reconhecer que
o Novo Testamento falava de uma “nova aliança” que estava em vigor para a igreja nesta
dispensação. Ele argumentou que essa era uma “nova aliança” completamente diferente daquela
que será feita com Israel. (Da mesma maneira, argumentou que as bênçãos espirituais que seriam
dadas a Israel sob a nova aliança de Jeremias e Ezequiel seriam distintamente diferentes daquelas
dadas à igreja hoje). Scofield, por outro lado, interpretou a nova aliança da mesma maneira que
ele fez com a aliança abraâmica: literalmente tinha a ver com o plano terreno de Deus para Israel;
espiritualmente ela revelou o plano espiritual de Deus para a igreja (a bênção do Espírito para
Israel em Ezequiel 36 tipificava a bênção do Espírito da igreja). Assim, mesmo que houvesse uma
concordância geral acerca das alianças no dispensacionalismo clássico, sempre havia diferenças
em como os detalhes funcionavam juntos para apoiar a posição geral.
Os dispensacionalistas clássicos acreditavam que as alianças bíblicas se cumpririam para a
humanidade terrena no milênio e no estado eterno. Uma vez que as alianças não diziam respeito
à humanidade celestial (exceto em um sentido espiritual ou tipológico), não era apropriado dizer
que elas estavam sendo cumpridas na presente dispensação (exceto de um modo espiritual ou
tipológica).
O DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO E AS ALIANÇAS BÍBLICAS NO CUMPRIMENTO LITERAL E ESPIRITUAL

O Reino de Deus e o Reino dos Céus. O reino de Deus é um dos temas mais importantes da
Bíblia e ocupa um lugar importante para a interpretação dispensacional. A visão
dispensacionalista clássica mais conhecida sobre o reino é a de C. I. Scofield. Sua visão depende
de uma distinção substancial entre os termos reino de Deus e reino dos céus. Ele acreditava que o
termo reino de Deus, encontrado nos quatro Evangelhos, se referia ao governo moral de Deus no
coração daqueles que se sujeitavam a ele. Este reino é eterno em sua extensão. O reino dos céus,
encontrado no Novo Testamento apenas em Mateus, era tido como o cumprimento da aliança
feita com Davi, na qual Deus prometeu estabelecer o reino de seu Filho. O reino dos céus
começa a aparecer com Jesus Cristo, um descendente de Davi, culmina no milênio, e se une ao
reino de Deus no estado eterno. (Antes do reino dos céus, encontramos o reino davídico que fora
interrompido pelo tempo dos gentios — o reino dos céus é o cumprimento escatológico [isto é,
“os últimos dias”] do reino davídico.)
Scofield ensinou que o reino dos céus tinha três formas. A primeira se encontra na pregação
de Jesus. O reino dos céus estava presente — ou “próximo” — na pregação de Jesus. Ele ofereceu
o reino a Israel. Porém, Israel o rejeitou, então foi adiado para um tempo futuro.
O reino dos céus está agora presente na forma misteriosa. Essa forma misteriosa é a
cristandade, a realidade terrena, política e litúrgica, que nomeia Cristo como seu rei. Duas coisas
devem ser observadas aqui: para Scofield, a forma misteriosa do reino não é a igreja, mas sim a
cristandade. Além do mais, quando Scofield fala da forma misteriosa do reino, ele quer dizer uma
forma misteriosa do reino, isto é, do reino dos céus, o reino da aliança davídica.14 Assim, a aliança
davídica encontra uma forma de cumprimento hoje. Porém, não é a igreja. Por outro lado, a
presença da igreja dá à cristandade qualquer legitimidade que ela tenha. Consequentemente, a
igreja tem alguma ligação com a atual realidade do reino dos céus.
O reino dos céus será cumprido no milênio. Lembre-se que para Scofield, como também
para os outros dispensacionalistas clássicos, a aliança davídica é meramente uma aliança política.
Ela será cumprida de acordo com seu propósito terreno, para a humanidade terrena do milênio,
isto é, Israel. É claro que, assim como as promessas são eternas, o cumprimento continua para
sempre, mas a graça glorificadora e preservadora de Deus eliminará a possibilidade de pecado e
rebelião na eternidade. Já que Deus governará moralmente em cada coração no reino eterno (os
não-salvos tendo sido destinados ao inferno), diz-se que o reino dos céus se unirá ao reino de
Deus.
O REINO NO DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO (SCOFIELD)
DISPENSACIONALISMO REVISADO
Revisão do Dualismo Central. A revisão mais importante introduzida pelos dispensacionalistas
dos anos 50 e 60 foi o abandono do eterno dualismo da humanidade celestial e da terrena. Eles
não acreditavam que haveria uma distinção eterna entre uma humanidade no céu e outra na
nova terra. Consequentemente, abandonaram os termos humanidade celestial e terrena. Em vez
disso, reformularam o dualismo em um sentido mais organizacional (mais próximo do
significado do termo dispensação). Havia simplesmente dois grupos de pessoas. Não mais
celestial versus terreno, mas aqueles representados por Israel e pela igreja. Esses dois grupos
incluem diferentes pessoas (uma pessoa poderia estar somente em um grupo, não em ambos ao
mesmo tempo). Eles são estruturados de formas distintas, com diferentes prerrogativas e
responsabilidades dispensacionais. Mas a salvação que eles receberam — a vida eterna — é a
mesma para ambos, com uma única exceção de que alguns pertencem a um grupo e outros
pertencem a outro. Haverá uma distinção eterna entre Israel e a igreja, não em tipos
metafisicamente distintos de salvação, mas em um tipo nominal — a igreja sempre é a igreja,
Israel sempre é Israel.15

O Estado Eterno. No estado eterno, todos serão ressuscitados dos mortos ou transformados em
um modo de vida ressurreto. Não haverá diferença no tipo de vida eterna experimentada pela
humanidade salva, quer seja Israel ou a igreja. Os dispensacionalistas revisados diferiram entre si,
no entanto, sobre a natureza e a esfera da vida eterna. Enquanto os dispensacionalistas clássicos
colocavam a humanidade celestial no céu e a humanidade terrena na terra, os dispensacionalistas
revisados colocavam todos os remidos no “céu” ou todos na nova terra.
Como resultado, há duas concepções diferentes de eternidade no dispensacionalismo
revisado. McClain, Pentecost e Hoyt conceberam a eternidade como uma vida ressuscitada na
nova terra onde a cidade de Deus está localizada. Para eles, as promessas de um reino eterno na
terra são literalmente cumpridas na terra renovada.
Walvoord e Ryrie, apesar de usarem a terminologia de “nova terra”, na verdade trabalham
com um conceito mais platônico de “céu”, que se aproxima do conceito de “céu” dos
dispensacionalistas clássicos. Eles afirmam que as promessas acerca de um reino terreno eterno
não significam realmente eterno. Ou, eles dizem que se aplicam apenas ao tempo e à história de
tal forma que, quando o tempo e a história chegarem ao fim, dando lugar à uma eternidade
atemporal, as promessas eternas, que somente se aplicam ao tempo e à história, serão consideradas
como tendo sido cumpridas. O ponto chave em suas mentes é que as promessas devem estar em
um estado de cumprimento no momento em que o tempo e a história acabarem. Isso leva à um
ponto de vista curioso de que pouco mais de mil anos de posse da terra, mais dois mil anos de
desapropriação, mais uma posse futura de mil anos de toda terra logo antes do tempo e da
história acabarem, seriam iguais a uma posse eterna da terra!
Ryrie fala de Israel sendo levado aos céus no final do milênio no mesmo livro em que alegou
interpretar as Escrituras de uma maneira consistentemente literal. Os dispensacionalistas
clássicos, no entanto, argumentaram que somente uma interpretação espiritual colocaria o futuro
eterno de Israel no céu.

As Dispensações. Os dispensacionalistas revisados preservaram a maior parte da estrutura do


dispensacionalismo clássico sobre este lado da eternidade. Eles geralmente mantinham a divisão
das dispensações de Scofield. Eles distinguiram entre os propósitos de Deus nas dispensações
anteriores à Graça (as dispensações anteriores à igreja), o propósito de Deus na dispensação da
Graça (a igreja) e o propósito de Deus na dispensação do reino (o milênio). Antes da presente
dispensação, Deus estava buscando seu propósito para Israel e as nações. Esse propósito é
político, nacional e territorial. Mas também era espiritual. Deus concedeu vida eterna aos que
eram da fé. Na presente dispensação, Deus está buscando somente um propósito individual e
espiritual. O propósito espiritual é o mesmo que foi dado a Israel no passado e no futuro, exceto
por alguns ministérios do Espírito, tais como o batismo, o selo e a habitação permanente. Além
disso, a estrutura da igreja é única nesta dispensação (por exemplo, ofícios e ministérios), e ela
tem um relacionamento dispensacional singular com Cristo. Ela se relaciona com o Cristo que
está nos céus, não com o Cristo que virá ou com o Cristo na terra. Ele é o Cabeça dela, não seu
rei, visto que a igreja não é uma entidade política e nacional.
Juntando as características acima, podemos visualizar as posições revisadas do
dispensacionalismo como indicadas nas tabelas das páginas 43 e 43.

A Natureza da Igreja. Assim como os dispensacionalistas clássicos, os revisados viam a igreja


como uma entidade espiritual. A salvação e a santificação eram vistas primariamente de uma
maneira individualista. Pouco pensamento foi dado à natureza social da igreja. Entretanto, no
começo dos anos 70, o movimento Body Life começou com a forte liderança do
dispensacionalista Ray Stedman.16 Os dispensacionalistas começaram a considerar a natureza
comunitária da igreja. Gene Getz também contribuiu para essa mudança de perspectiva ao
enfatizar os mandamentos “uns aos outros” do Novo Testamento.17 O resultado foi uma
modificação gradual da visão altamente privada do cristianismo no dispensacionalismo
primitivo.18
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO REVISADO
1. VISÃO DO CUMPRIMENTO CELESTIAL
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO REVISADO
2. VISÃO DO CUMPRIMENTO DA NOVA TERRA

Interpretação Bíblica. Os dispensacionalistas revisados continuaram com a ênfase dos


dispensacionalistas clássicos acerca da interpretação literal da profecia. Eles falaram da
interpretação gramatical e histórica das Escrituras e continuaram com a hermenêutica da “Leitura
da Bíblia” na maneira como ensinavam e apresentavam temas teológicos.
Entretanto, eles diferiram dos dispensacionalistas clássicos no seu abandono gradual da
“tipologia”, a hermenêutica espiritual dos primeiros dispensacionalistas. Os dispensacionalistas
revisados alegavam seguir somente a interpretação literal das Escrituras, e afirmavam que os
resultados de tal interpretação produziriam o dispensacionalismo (isto é, o dispensacionalismo
revisado). Em Dispensationalism Today, Charles Ryrie insistiu que uma interpretação literal
consistente pertencia à essência do dispensacionalismo.19 Somente os dispensacionalistas, afirmou
Ryrie, eram consistentemente literais em sua interpretação. Embora, como notamos, isso não
fosse verdade para o dispensacionalismo clássico, não obstante, os dispensacionalistas revisados
passaram a se enxergar dessa forma.
Nas décadas de 50 e 60, outros evangélicos também estavam esquivando-se da
“hermenêutica espiritual” a favor da interpretação histórico-gramatical. No entanto, a
interpretação histórico-gramatical evangélica foi ampliada em meados do século XX para incluir
o campo de estudo da teologia bíblica, que estava em desenvolvimento. A análise gramatical se
expandiu para incluir os desenvolvimentos no estudo literário, particularmente no estudo do
gênero, ou forma literária e estrutura retórica. A interpretação histórica passou a incluir uma
referência ao contexto histórico e cultural dos fragmentos literárias individuais para sua
interpretação geral. E no final da década de 80, os evangélicos se tornaram mais cientes do
problema do contexto histórico do intérprete e o pré-entendimento tradicional do texto que
estava sendo interpretado. Esses desenvolvimentos são agora compartilhados por eruditos bíblicos
evangélicos de diferentes tradições, incluindo muitos dispensacionalistas. Eles abriram novas
perspectivas de discussão que não foram consideradas pelos primeiros intérpretes, incluindo os
dispensacionalistas clássicos e muitos dos revisados. Esses são desenvolvimentos que levaram ao
que é agora conhecido como “dispensacionalismo progressivo”.
A hermenêutica tornou-se muito mais complexa hoje em dia do que quando Charles Ryrie
afirmou a interpretação literal como o método “claro, natural e normal” de interpretação. Talvez
possamos explicar isso da seguinte forma. Ryrie preparou uma equação: dispensacionalismo =
interpretação literal = hermenêutica clara-natural-normal = interpretação histórico-gramatical.
Ele alegou, então, que somente os dispensacionalistas praticavam de modo consistente a
interpretação literal. Se uma pessoa praticava uma interpretação literal consistente (como
definido pela equação), ela seria um dispensacionalista.
Mesmo na época desta publicação, os eruditos evangélicos bíblicos estavam começando a
avançar em direção a uma interpretação histórico-gramatical mais consistente, mas era uma
interpretação histórico-gramatical que se desenvolvia em sofisticação para além daquela praticada
pelos dispensacionalistas clássicos ou até mesmo pelos primeiros dispensacionalistas revisados.
Nas últimas três décadas, a prática da interpretação histórico-gramatical consistente (onde
“histórico-gramatical” se desenvolveu para uma forma mais avançada de estudo literário) não
levou os evangélicos a adotarem o dispensacionalismo clássico ou revisado. Além do mais, vários
dispensacionalistas que hoje praticam uma interpretação histórico-gramatical consistente (no seu
sentido desenvolvido) revisaram algumas das interpretações distintivas do dispensacionalismo
inicial. A interpretação literária desenvolveu-se de tal forma que coisas que antes eram vistas
“claramente” nas Escrituras, agora já não são mais vistas tão “claramente” assim.
Isso levanta uma questão sobre o significado de interpretação “literal” e a alegação de que sua
prática consistente é a essência do dispensacionalismo. Parece que “literal” é frequentemente
usado para significar o sistema e a tradição do dispensacionalismo revisado. Porém, a
interpretação tradicional deve sempre ser testada pela interpretação histórico-literária vigente, à
medida que essa interpretação se desenvolve em seu entendimento, métodos e procedimentos.
Ela deve ser testada, isto é, se o intérprete permanecer comprometido com as Escrituras como a
autoridade primária na teologia.
Quando lemos a afirmação de Ryrie de que uma hermenêutica consistentemente “clara,
natural e normal” é a essência do dispensacionalismo, temos que interpretar essa observação
historicamente. Pode ter sido verdade como um ideal ou objetivo para o dispensacionalismo
revisado, mas a declaração não é verdadeira como um princípio abrangente, incluindo o
dispensacionalismo clássico. Quando substituímos a frase histórico-gramatical por literal ou clara-
natural-normal, temos essas observações: (1) mais uma vez, a observação não se aplica ao
dispensacionalismo clássico, uma vez que eles não procuraram praticar tal hermenêutica de forma
consistente ou exclusiva. Consequentemente, se a palavra “dispensacionalismo” na frase “essência
do dispensacionalismo” pretende identificar a tradição dispensacional, então a observação é, na
melhor das hipóteses, simplista demais, na pior das hipóteses, falsa. (2) A observação não se
aplica à prática atual do dispensacionalismo revisado (como vimos com as promessas “eternas” de
Israel e como veremos com as alianças bíblicas), embora tenha funcionado como um objetivo
declarado. (3) A observação não se aplica se alguém voltar a ler o termo “histórico-gramatical”
como ele é considerado na hermenêutica de hoje em dia. Dessa forma, cairá no risco de
anacronismo. Finalmente, (4) como um objetivo, a interpretação histórico-gramatical
consistente, no sentido em que histórico-gramatical significa hoje, está muito próxima de ser
percebida na hermenêutica do dispensacionalismo progressivo.
Consequentemente, a observação de Ryrie, mesmo que tenha falhado como uma descrição
da essência imutável do dispensacionalismo, ainda assim apontou uma direção na qual a
hermenêutica dispensacionalista deveria se desenvolver. O antigo princípio da espiritualização foi
deixado para trás, e os dispensacionalistas — primeiramente os revisados e posteriormente os
progressivos — buscaram o objetivo da hermenêutica histórico-gramatical consistente, mesmo
quando o desenvolveram em significado e método e em diálogo com outros evangélicos.

As Alianças Bíblicas. Os dispensacionalistas revisados geralmente aceitavam a forma pela qual os


dispensacionalistas clássicos viam as alianças. A aliança abraâmica era vista como fundamental. As
alianças mosaica, palestina e davídica eram vistas como terrenas, políticas e nacionais. Apesar da
insistência do dispensacionalismo revisado na interpretação literal consistente, eles acreditavam
que a igreja era a descendência “espiritual” de Abraão, isto é, a aliança abraâmica se cumpriu
“espiritualmente” na igreja. De modo literal, entretanto, eles acreditaram que isso seria cumprido
em termos nacionais e políticos para Israel no futuro.
Os dispensacionalistas revisados que eram discípulos de Lewis Chafer, especialmente Ryrie e
Walvoord, originalmente defenderam a opinião de Chafer de que a nova aliança que o Novo
Testamento cumpriu na igreja não era a nova aliança predita por Jeremias e Ezequiel. Charles
Ryrie escreveu em 1953 que se a doutrina das duas novas alianças fosse abandonada, o
dispensacionalismo seria enfraquecido.20 Logo depois disso, contudo, tanto ele quanto Walvoord
abandonaram a visão, pela simples razão de que não era biblicamente defensável. Além do mais, a
visão oposta, de que a mesma nova aliança predita pelos profetas do Antigo Testamento de fato
regulava o relacionamento de Deus com a igreja hoje em dia, era inegavelmente ensinada nas
Escrituras! Isso foi argumentado de forma convincente por John F. McGahey em 1957 numa
dissertação no Dallas Theological Seminary. (McGahey se tornou por muitos anos um membro
docente e presidente do departamento de Bíblia e Teologia no Philadelphia College of Bible até
sua morte em 1986).
Reconhecer que o Novo Testamento ensinava “literalmente” que as bênçãos espirituais da
nova aliança de Israel estavam sendo cumpridas pela igreja hoje exigia uma explicação. E a
interpretação “literal” do Antigo Testamento? Geralmente, os dispensacionalistas revisados
recorriam à hermenêutica espiritual do dispensacionalismo clássico para interpretar a relação do
Antigo Testamento com a igreja: a nova aliança estava sendo cumprida espiritualmente na igreja
hoje, mas Israel experimentaria os aspectos nacionais e políticos (as características terrenas) da
aliança no futuro. Esse foi o modo encontrado para lidar com a aliança abraâmica e o modo
como Scofield também tratou a nova aliança. Não obstante, eles tiveram que reconhecer que
havia um elo de aliança entre Israel e a igreja no ensino “literal” do Novo Testamento.
Mais uma vez, podemos ver a tensão entre o método hermenêutico do dispensacionalismo
revisado e sua atual prática hermenêutica. Contudo, o reconhecimento de que o Novo
Testamento realmente ensinava um elo de aliança entre Israel e a igreja era importante,
especialmente à luz do quão vigorosamente o ponto de vista oposto (duas novas alianças) havia
sido defendido como sistematicamente importante para o dispensacionalismo. Entretanto, esse elo
não pôde ser explicado por muito tempo por uma interpretação “espiritual”, uma vez que os
dispensacionalistas começaram a seguir por um caminho de interpretação histórico-literário das
Escrituras, onde quer que isso possa levar. Eventualmente, a igreja teria de ser vista como
permanecendo na linha de um cumprimento histórico da promessa da nova aliança a Israel. Seria
uma dispensação no progresso histórico da redenção, não um parênteses (ou intercalação) não
relacionada a ela. Consequentemente, a visão revisada da nova aliança provou ser um avanço
significativo para repensar a relação entre Israel e a igreja nas Escrituras, levando a
desenvolvimentos posteriores no dispensacionalismo.

O Reino. A distinção do reino de Deus versus o reino dos céus no dispensacionalismo clássico foi
importante para expressar o dualismo central do dispensacionalismo. O espiritual (reino de
Deus) era visto como sendo distinto do terreno (reino dos céus), mesmo quando os propósitos
terrenos e celestiais eram mantidos distintos.
Em 1952, George E. Ladd, trabalhando com os métodos da teologia bíblica, criticou
fortemente a distinção dispensacionalista clássica desses termos.21 Duas críticas eram
particularmente importantes: (1) uma distinção substantiva (ou metafísica) desses termos é
exegeticamente indefensável e (2) a separação das características do reino espiritual e terreno em
dois diferentes reinos é imprecisa. Os dispensacionalistas revisados criticaram fortemente Ladd
por falhar em considerar adequadamente os propósitos nacionais e políticos do ensino de Jesus
sobre o reino. Entretanto, ele foi criticado principalmente por defender uma visão que “poderia
levar” ao amilenismo (ainda que o próprio Ladd fosse um dos maiores defensores do pré-
milenismo).22 Contudo, ainda que eles se recusassem a reconhecê-lo, os dispensacionalistas
revisados aparentemente levaram a sério a crítica de Ladd. Eles abandonaram a distinção clássica
dos termos reino dos céus e reino de Deus. Além disso, muitos dispensacionalistas revisados
começaram a encontrar uma forma de falar de um reino espiritual na dispensação presente.
Várias visões alternativas do reino foram propostas.
Nos parágrafos seguintes, examinaremos quatro teologias do reino abordadas pelos
dispensacionalistas revisados. O ponto principal desse exame é demonstrar que não há somente
uma visão dispensacionalista revisada sobre o reino. Muitas visões alternativas foram propostas.
Entretanto, para o leitor que tem alguma familiaridade com o dispensacionalismo revisado,
cremos que um exame das diferenças pode ser útil, visto que essas diferenças raramente foram
colocadas lado a lado.

Alva J. McClain: McClain introduziu a terminologia do reino universal e do reino mediatário no


seu livro The Greatness of the Kingdom.23 O reino universal foi definido como a soberania de
Deus sobre todas as coisas. O reino universal tem sido constante em todas as dispensações. O
reino mediatário se referiu ao governo de Deus sobre a terra através de um mediador
divinamente escolhido. McClain acreditava que Abraão foi o primeiro mediador. Uma sucessão
de mediadores continuou através dos reis de Israel. Jesus Cristo é o legítimo herdeiro davídico e o
mediador do reino mediatário messiânico. Entretanto, uma vez que Jesus não está atualmente na
terra, McClain acreditava que não havia um reino mediatário presente na terra durante esta
dispensação. Consequentemente, ele intitulou a presente dispensação de Interregno, o período
entre os reinos. O reino mediatário aparecerá novamente no retorno de Cristo. No fim do
milênio, o reino mediatário se fundirá e se tornará simplesmente o reino universal de Deus.
Stanley Toussaint concordou com McClain que não há nenhum reino mediatário presente
hoje. Ele argumentou que todas as passagens no Novo Testamento que falam da presença do
reino devem ser entendidas prolepticamente. Elas se referem ao reino futuro.24
A TEOLOGIA DO REINO DE ALVA J. McCLAIN

Charles Ryrie: Ryrie concordou com McClain sobre a ideia e a terminologia do reino universal.
Deve-se reconhecer que Deus é, sempre foi e sempre será soberano sobre todas as coisas. Parte do
que a Bíblia tem a dizer sobre o reino de Deus se refere a esse atributo da soberania divina. Em
relação ao reino político na terra, ele preferiu seguir a essência da doutrina de Scofield sobre o
reino dos céus, mas sem assumir a sua terminologia. Em vez disso, ele simplesmente o se referiu
ao reino davídico. O reino davídico apareceu na antiga dispensação, mas foi suspenso a partir do
exílio e não foi restaurado nem mesmo com a vinda de Jesus. Com Jesus, um programa triplo de
reino tem o seu começo. O primeiro é o reino davídico, oferecido por Jesus a Israel, mas foi
rejeitado por eles (esse é essencialmente o mesmo reino dos céus presente na pregação de Jesus
segundo Scofield). O seguinte é a forma misteriosa do reino que Ryrie define como cristandade
(idêntico ao reino dos céus segundo Scofield na forma misteriosa). Depois, é o reino davídico
milenar, que é o cumprimento final do reino davídico (novamente igual a Scofield). No fim do
milênio, entretanto, Israel e a igreja estarão no céu sob o reino universal de Deus.25
Ryrie também complementa o esquema de Scofield ao adicionar outro reino na dispensação
presente: o reino espiritual. Este reino espiritual é o atual governo de Cristo sobre os crentes. Ele é
exatamente “a verdadeira igreja, o corpo de Cristo”. Essa é uma importante revisão, pois define o
relacionamento de Cristo com a igreja como um reino. Seu governo é espiritual, o poder da
regeneração.26
O reino espiritual de Ryrie parece ser equivalente ao reino de Deus de Scofield, no entanto,
Ryrie o limita somente a esta dispensação. A esse respeito, essa visão é similar a de Ladd, exceto
que Ryrie a distingue completamente do cumprimento do reino davídico.
A singularidade dispensacional e o isolamento do reino espiritual produzem várias
inconsistências na teologia de Ryrie. Por um lado, ele diz que o reino espiritual é a esfera do novo
nascimento. Visto que o reino espiritual é limitado a esta dispensação, logicamente parece que a
regeneração é igualmente limitada. Entretanto, em outro lugar, Ryrie ensina que a regeneração é
transdispensacional. Além do mais, a existência de um reino espiritual, que é a igreja, indicaria
que Cristo se relaciona com a igreja como um Rei. Por um lado, Ryrie reconhece que Cristo
governa a igreja como seu reino e que ele é um Rei hoje. Entretanto, na mesma obra, ele se
contradiz ao negar que Cristo é o Rei da igreja ou ao afirmar que, mesmo se ele for o Rei, ele não
governa!27 O que temos aqui é um exemplo de uma tradição que tenta lidar com os criticismos
bíblicos apresentados contra ela. Contudo, os problemas permanecem.
A TEOLOGIA DO REINO DE CHARLES RYRIE

John Walvoord: Walvoord distingue entre um reino universal e um reino espiritual. O reino
universal é a soberania de Deus sobre tudo que ele fez. Esse conceito é essencialmente o mesmo
que a doutrina de McClain do reino universal. O reino espiritual é o governo de Deus sobre os
salvos de todas as eras, incluindo a presente dispensação. Ele também o define como a esfera de
submissão voluntária a Deus, que é essencialmente o mesmo conceito do reino de Deus de
Scofield. Um terceiro reino, o reino davídico, é definido como uma subdivisão do reino
universal. Ele entende o reino davídico apenas como um reino político. É o governo teocrático
de Deus através de Davi ou de um descendente de Davi agindo como mediador de Deus. Dessa
forma, o reino davídico de Walvoord é praticamente o mesmo que o reino mediatário de
McClain, exceto que para Walvoord esse reino começa com Davi, enquanto que para McClain
começa com Abraão.
Walvoord então introduz dois termos relacionados ao reino davídico: O reino adiado, que é
o reino davídico que Jesus ofereceu a Israel, mas que foi adiado quando o rejeitaram; e o reino
milenar, que é o cumprimento do reino adiado, o reino davídico que é realizado no governo de
mil anos de Cristo na terra.
Walvoord nos dá ainda outra categoria de reino na forma misteriosa do reino. É o governo
espiritual de Cristo na igreja hoje. Nesse esquema, esse é realmente o reino espiritual. Contudo,
ele acredita que as parábolas de Mateus 13 predizem esse reino em um sentido especial para esta
dispensação quando falam dos mistérios do reino dos céus. Ele também conecta a forma
misteriosa do reino ao ensino do Novo Testamento sobre a presença do reino para a igreja. Ele
acredita que é um mistério, pois o Antigo Testamento não antecipou a presença do reino
espiritual à parte do reino davídico, o reino meramente político (de acordo com ele). Perceba que
Walvoord usa a linguagem de Scofield (também usada por Ryrie): a forma misteriosa do reino.
Porém, ele a define de uma forma completamente diferente de Scofield (e de Ryrie). Enquanto
Scofield entendia a presente forma misteriosa do reino (predita em Mateus 13) como a
cristandade, um aspecto do reino davídico, e enfatizou que não era a igreja, Walvoord argumenta
(a partir da mesma passagem bíblica) que não tem nada a ver com o reino davídico, mas ela é
precisamente a igreja.
Walvoord ainda defende uma distinção entre o reino dos céus e o reino de Deus. Como
observado anteriormente, sua categoria do reino espiritual é essencialmente a mesma de Scofield
quanto ao reino de Deus. Assim como Scofield, ele acreditava que o reino dos céus é uma esfera
de ofício diferente, mas inclusiva, do reino de Deus (ou reino espiritual). E ele continua a
acreditar que o uso dos termos no Evangelho de Mateus apoia essa distinção.28
No fim do milênio, Walvoord vê o reino terreno (davídico) chegando ao fim. Os reinos
espiritual e universal serão unidos para sempre. Embora algumas vezes ele use a linguagem da
nova terra de Apocalipse 21, Walvoord faz uma distinção radical entre os estados milenar e
eterno. Ele não relaciona as promessas eternas da esperança do Antigo Testamento a esse estado
eterno, mas as vê cumpridas no milênio. De fato, Walvoord insiste que elas não podem ser
cumpridas na nova terra. Isso se deve à diferença radical entre os dois estados, de modo que o
último não possui as condições para o cumprimento dessas promessas. Parece que Walvoord está
trabalhando com uma visão de nova terra que difere pouco da visão clássica não-terrena e não-
temporal dos céus.29
O TEOLOGIA DO REINO DE JOHN WALVOORD

A doutrina do reino de Walvoord ilustra um problema persistente do dispensacionalismo


revisado. Enquanto Jesus pregava a vinda do reino de Deus, Walvoord transforma essa
mensagem na proclamação de vários reinos. Ele não é capaz de ver como esses diferentes “reinos”
são na verdade diferentes aspectos de um reino escatológico. Jesus anunciou esse reino, revelou
alguns aspectos dele em si próprio e começou a trazê-lo para o cumprimento progressivo,
inaugurando alguns aspectos hoje e ao mesmo tempo prometendo cumpri-los completamente no
futuro.

J. Dwight Pentecost: Como os outros dispensacionalistas revisados, Pentecost usa a terminologia


do reino para distinguir entre os atributos absolutos e relativos de Deus. Ele usa o termo reino
eterno para se referir à onipotência de Deus sobre tudo o que ele fez. O termo eterno tem o
sentido de atemporalidade. Ele até mesmo postula a ordem da própria Trindade como o reino
divino. Assim como McClain, ele vê o reino eterno mediado de maneira temporal e possível
através de um mediador escolhido divinamente. McClain chama isso de reino mediatário;
Pentecost o chama de reino teocrático. Diferente de McClain, no entanto, Pentecost vê esse
reino mediado revelado em dez estágios sucessivos desde a criação até o milênio. Os quatro
primeiros e os dois últimos estágios são equivalentes a seis das sete dispensações de Scofield.
Pentecost divide a dispensação da Lei de Scofield em quatro reinos teocráticos sucessivos: Juízes,
Reis, Profetas e Cristo.30
É importante notar que Pentecost acredita que o reino teocrático está presente hoje em dia
nesta dispensação. Além do mais, ele acredita que a própria igreja é um aspecto do reino
teocrático. Nessa crença, ele é notavelmente diferente de McClain e Toussaint. Sua visão é
similar a de Walvoord, exceto que ele usa uma terminologia que conecta o reino nesta
dispensação às manifestações terrenas do reino nas dispensações passadas e futuras. Essa conexão
aponta a direção na qual o dispensacionalismo modificou e desenvolveu sua compreensão sobre o
reino.
Pentecost também vê o reino continuando numa forma terrena no estado eterno. Ele
acredita que tanto Israel quanto a igreja estarão juntas com Cristo na nova terra após o milênio.
Pentecost também prevê que as identidades nacionais continuam no estado eterno, com
distinções delineadas entre as nações de Israel e gentílicas. Aqui as promessas do reino eterno de
Cristo serão cumpridas em uma nova terra para sempre.31
A TEOLOGIA DO REINO DE J. DWIGHT PENTECOST

Parece que Pentecost vê uma inter-relação mais próxima entre suas categorias eternas e
teocráticas do que Walvoord viu entre suas diferentes formas do reino. Porém, essa relação parece
estar confinada dentro de cada estágio do reino teocrático. Embora a terminologia seja a mesma,
os vários reinos teocráticos parecem relativamente independentes uns dos outros, como as
dispensações do dispensacionalismo clássico. O que falta é um verdadeiro senso de continuidade
e progressão históricas interligando-os. Em outras palavras, a unidade dos reinos teocráticos é
encontrada verticalmente no reino eterno atemporal. Ela não é encontrada em uma obra de Deus
escatologicamente convergente na história.
Como um exemplo disso, embora Pentecost reconheça uma manifestação das bênçãos
espirituais no presente reino teocrático, assim como uma manifestação das bênçãos espirituais no
futuro reino teocrático do retorno de Cristo, ele não as compreende relacionadas a uma revelação
manifesta do reino de Jesus, filho de Davi. Ele não as compreende como parte de uma revelação
progressiva unida na própria pessoa de Cristo.

Conclusão. No final das décadas de 50 e 60, alguns dispensacionalistas introduziram


importantes revisões ao dispensacionalismo clássico. Essas revisões tornaram-se amplamente
aceitas de tal modo que muitos graduados de escolas dispensacionalistas nos anos de 60 e 70
dificilmente sabiam o que era o dispensacionalismo clássico. Muitos nem sequer sabiam da
diversidade de pontos de vista dentro do dispensacionalismo revisado. No entanto, o
dispensacionalismo revisado é uma forma distinta da tradição dispensacionalista, que através de
suas modificações e dos problemas com os quais estava lidando, preparou o caminho para o
eventual desenvolvimento do dispensacionalismo progressivo.32

DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO
Redenção Holística na Revelação Progressiva. O dispensacionalismo é conhecido por seu
reconhecimento dos múltiplos propósitos da redenção divina. Isso inclui propósitos terrenos,
nacionais, políticos, sociais e espirituais. Os dispensacionalistas geralmente reconhecem que esses
propósitos serão cumpridos na salvação eterna (exceto para alguns dispensacionalistas revisados
que acreditam que os propósitos terrenos e políticos terminarão no milênio). Os
dispensacionalistas também reconhecem que alguns desses propósitos foram enfatizados mais
fortemente em algumas dispensações do que em outras. No entanto, entender a relação entre
esses diferentes propósitos sempre foi um problema.
O dispensacionalismo clássico defendia um eterno dualismo celestial/terreno para explicar os
diferentes propósitos de redenção. Os dispensacionalistas revisados rejeitaram esse dualismo
eterno, o que os forçou a escolher entre uma visão da eternidade mais celestial ou mais terrena.
Alguns escolheram uma, alguns escolheram outra. O colapso do dualismo celestial/terreno uniu
o Israel crente do Antigo Testamento com o Israel do milênio. Os gentios crentes também foram
reunidos em uma redenção eterna. Entretanto, pensava-se que os judeus e gentios da dispensação
da igreja eram um grupo de pessoas completamente separado.33 Muitos dispensacionalistas
revisados não conseguiam entender como a igreja estaria relacionada ao plano de redenção sem
sacrificar o cumprimento futuro das promessas étnicas, nacionais e políticas que distinguem
judeus e gentios. Muitos dos seus oponentes interpretaram que essas promessas foram
“transformadas” na igreja, não deixando nenhum cumprimento “literal” das promessas nacionais
para Israel no futuro.
Os dispensacionalistas progressivos concordam com os dispensacionalistas revisados (e
clássicos) que a obra de Deus com Israel e as nações gentílicas na dispensação passada aguarda a
redenção da humanidade em seus aspectos políticos e culturais. Consequentemente, há um lugar
para Israel e para as outras nações no plano eterno de Deus.
Por outro lado, os dispensacionalistas progressivos acreditam que a igreja é uma parte vital
desse mesmo plano de redenção. O surgimento da igreja não sinaliza um plano redentivo
secundário, seja para ser cumprido no céu à parte da nova terra, ou em uma elite de judeus e
gentios que são para sempre distintos do resto da humanidade redimida. Em vez disso, a igreja
hoje é uma revelação das bênçãos espirituais em que todos os redimidos compartilharão a despeito
de suas diferenças nacionais e étnicas.
Consequentemente, o dispensacionalismo progressivo defende uma visão holística e unificada
da salvação eterna. Deus salvará a humanidade em sua pluralidade nacional e étnica. Porém, irá
abençoá-la com a mesma salvação dada a todos sem distinção; a mesma, não somente em
justificação e regeneração, mas também em santificação pela habitação do Espírito Santo. Essas
bênçãos virão a todos sem distinção através de Jesus, o Rei de Israel, e de todas as nações da
humanidade redimida.

As Dispensações. Os dispensacionalistas progressivos entendem as dispensações não apenas como


arranjos diferentes entre Deus e a humanidade, mas como arranjos sucessivos na revelação
progressiva e na realização da redenção. O plano de redenção tem diferentes aspectos. Uma
dispensação pode enfatizar um aspecto mais do que outro; por exemplo, a ênfase nos assuntos
políticos divinamente dirigidos na dispensação passada, e a ênfase na identidade espiritual
multiétnica em Cristo na presente dispensação. Porém, todas as dispensações apontam para uma
futura culminação na qual Deus administrará politicamente Israel e as nações gentílicas e
habitará nelas igualmente (sem distinções étnicas) por meio do Espírito Santo.
Consequentemente, as dispensações progridem ao revelarem os diferentes aspectos da redenção
unificada final.
As dispensações também revelam uma progressão qualitativa na manifestação da graça. Por
exemplo, houve manifestações da graça na dispensação do Israel do Antigo Testamento que eram
qualitativamente melhores do que as reveladas aos patriarcas antes do Êxodo. Da mesma forma,
as Escrituras ensinam que há manifestações da graça na presente dispensação que são
qualitativamente melhores do que as reveladas aos judeus e gentios na dispensação passada. E
também haverá um avanço qualitativo da graça na dispensação futura (nossa futura glorificação).
Consequentemente, as dispensações não são simplesmente diferentes expressões históricas da
mesma experiência de redenção (como em alguns modelos do aliancismo), embora elas conduzam
e culminem em um plano de redenção.
No dispensacionalismo progressivo, os propósitos sociopolíticos e espirituais de Deus se
complementam. O espiritual não substitui o político e nem os dois acontecem de forma
independente. Eles são aspectos relacionados em um plano holístico de redenção. A dispensação
final revelará todos esses aspectos em relações complementares entre si. Antes disso, diferentes
dispensações podem revelar mais de um aspecto ou mais de outro, mas cada dispensação está
relacionada à dispensação final na qual o plano culmina. Uma vez que todas elas têm o mesmo
objetivo, há uma relação real progressiva entre elas. À medida que cada uma leva ao objetivo da
redenção final, as Escrituras estabelecem várias conexões entre elas que as relacionam de uma
forma verdadeiramente progressiva. É desse relacionamento progressivo entre as dispensações que
surge então o nome dispensacionalismo progressivo.

A Natureza da Igreja. Assim como os primeiros dispensacionalistas, os dispensacionalistas


progressivos veem a igreja como uma nova manifestação da graça, uma nova dispensação na
história da redenção. Os primeiros dispensacionalistas viam a igreja como um tipo de redenção
completamente diferente da que havia sido revelada anteriormente ou da que seria revelada no
futuro. A igreja então teve seu próprio futuro separado da redenção prometida a judeus e gentios
nas dispensações do passado e do futuro. Os dispensacionalistas progressivos, no entanto, ao
verem a igreja como uma nova manifestação da graça, acreditam que essa graça está precisamente
de acordo com as promessas do Antigo Testamento, particularmente as promessas da Nova
Aliança em Isaías, Jeremias e Ezequiel. O fato de essas bênçãos terem sido inauguradas na igreja
distingue-a dos judeus e dos gentios da dispensação passada. Porém, apenas algumas dessas
bênçãos foram inauguradas. Consequentemente, a igreja deve ser distinguida da próxima
dispensação, na qual todas as bênçãos não serão simplesmente inauguradas, mas plenamente
cumpridas (cujo cumprimento será concedido aos santos de todas as dispensações através da
ressurreição dos mortos).
Uma das maiores diferenças entre os dispensacionalistas progressivos e os dispensacionalistas
anteriores é que os progressivos não veem a igreja como uma categoria antropológica do mesmo
tipo que termos como Israel, nações gentílicas, judeus e gentios. A igreja não é uma raça separada
da humanidade (em contraste com judeus e gentios), nem uma nação concorrente (ao lado de
Israel e das nações gentílicas), nem é um grupo de humanos angelicais destinados aos céus em
contraste com o restante da humanidade redimida na terra. A igreja é precisamente a
humanidade redimida em si (judeus e gentios) conforme existe nesta dispensação antes da vinda
de Cristo. Quando Paulo fala da igreja como “um novo homem” em Cristo (Ef 2.15), ele quer
dizer precisamente a humanidade redimida em oposição aos não salvos. Judeus e gentios fora de
Cristo são “o mundo”, o “velho homem”. Quando Paulo diz que não pode haver judeu nem
grego em Cristo, ele não está falando de algum tipo de homogeneização étnica, assim como
também não está falando de um tipo de gênero andrógino quando diz que não pode haver nem
homem nem mulher na igreja. As diferenças étnicas, políticas, nacionais e culturais permanecem
na igreja. Mas o argumento de Paulo é que as bênçãos do Espírito que constituem a igreja como
a nova dispensação são dadas igualmente sem distinção étnica, de gênero ou de classe.
As promessas proféticas predizem que Cristo governará para sempre sobre as nações dos
remidos. A igreja não é outro “grupo de pessoas” nesse quadro. Os judeus e gentios que
compõem a igreja antes da volta de Cristo se unem aos judeus e gentios redimidos das
dispensações anteriores para compartilharem igualmente da glória da ressurreição. Aqueles que
durante a dispensação em que viveram tiveram certas bênçãos somente como promessa ou de
uma forma inaugurada, serão todos levados ao mesmo nível de cumprimento completo quando
ressuscitarem dos mortos. Judeus e gentios redimidos compartilharão igualmente das bênçãos
completas do Espírito. A igreja nesta dispensação testifica esse aspecto da redenção. Os mesmos
judeus e gentios redimidos serão direcionados e governados por Jesus Cristo de acordo com suas
diferentes nacionalidades. As identidades nacionais e as promessas políticas de Israel e dos gentios
na dispensação passada testificam, por sua vez, esse aspecto da redenção.
Podemos ilustrar essa visão dispensacional progressiva da igreja no caso dos judeus cristãos.
Um judeu que hoje torna-se um cristão não perde seu relacionamento com as promessas futuras
de Israel. Os judeus cristãos se unirão ao remanescente da fé do Antigo Testamento na herança
de Israel. Os gentios cristãos serão unidos aos gentios salvos das dispensações passadas. Todos
juntos, judeus e gentios, compartilharão as mesmas bênçãos do Espírito, como testificam o
relacionamento dos judeus e gentios na igreja desta dispensação. O resultado será que todas as
pessoas serão reconciliadas em paz, com suas diferenças étnicas e nacionais não sendo causa de
hostilidade. As formas anteriores de dispensacionalismo, apesar de toda a ênfase em um futuro
para Israel, excluíram os judeus cristãos desse futuro, postulando a igreja como um grupo de
pessoas diferente de Israel e dos gentios.
Ao pensar na igreja como um grupo distinto de pessoas, uma raça humana diferente dos
judeus e gentios, alguns dos primeiros dispensacionalistas não foram tão sensíveis como deveriam
em relação às diferenças étnicas e culturais existentes no corpo de Cristo no dias de hoje. Essa
falta de sensibilidade leva à dominação cultural de um grupo sobre o outro dentro da igreja (tal
como a gentilização de judeus cristãos, ou a anglicização ou americanização de cristãos do
terceiro mundo). Isso, por sua vez, se torna um obstáculo para a unidade do corpo. O problema,
que não é exclusivo dos dispensacionalistas, manifesta-se especialmente em missões, na questão
da contextualização. A obra do Espírito não é a dominação cultural, mas sim a reconciliação; não
é a eliminação das diferenças humanas, étnicas, culturais e nacionais, mas sim a redenção delas da
inimizade contra o verdadeiro Deus para a santidade e de um estado de hostilidade entre si para
um estado de paz.
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO

1. Remanescente da fé = judeus e gentios crentes (um remanescente das nações de Israel e dos gentios).
2. A Igreja = judeus e gentios crentes (um remanescente das nações de Israel e dos gentios).
3. Os remidos = judeus e gentios crentes (um remanescente das nações de Israel e dos gentios) incluindo a Igreja da presente
dispensação e o remanescente crente das dispensações passadas, unidos na vida ressurreta.
4. Os remidos = judeus e gentios crentes de todas as dispensações anteriores ressuscitados dos mortos.

Interpretação bíblica. Já observamos em nossa discussão sobre o dispensacionalismo revisado


como a interpretação bíblica se desenvolveu da metade para o fim do século XX. Os
dispensacionalistas mudaram de uma defesa de uma dupla hermenêutica de interpretação
espiritual e literal para uma ênfase numa interpretação literal consistente. Essa interpretação
“literal” desenvolveu-se de um método “claro, natural” de agregar às palavras qualquer
significado que “parecesse claro” ao intérprete para uma conscientização mais crítica de como o
preconceito (ou o pré-entendimento) condiciona as nossas intuições, as nossas impressões de
certeza e clareza de interpretação. A interpretação literal também se desenvolveu para uma
interpretação histórico-gramatical. A partir de uma ênfase inicial na análise gramatical das
palavras, a interpretação foi ampliada para incluir um estudo sintático, retórico e literário. A
interpretação histórica se expandiu para além das datas e cronologia para incluir o cenário
histórico e o desenvolvimento de temas, palavras e ideias. Também veio a suportar parte da
história da interpretação, da questão da tradição e do contexto histórico do intérprete.
Esses desenvolvimentos na interpretação bíblica têm sido um fator importante na ascensão
do dispensacionalismo progressivo. Os dispensacionalistas progressivos são na verdade os
dispensacionalistas revisados que, através de uma interpretação histórico-literária mais
desenvolvida, chegaram ao que acreditam ser um entendimento mais preciso de certos temas
bíblicos.
Deve-se perceber que o dispensacionalismo progressivo não consiste em um abandono da
interpretação “literal” para dar lugar a uma interpretação “espiritual”. O dispensacionalismo
progressivo é um desenvolvimento da interpretação literal em uma interpretação histórico-
literária mais consistente.
Essa é a maneira que o interesse do dispensacionalismo progressivo em tipologia deveria ser
entendido. Os dispensacionalistas progressivos veem a tipologia como um aspecto da
interpretação histórico-literária. Esse não é o mesmo modelo de tipologia praticado no
dispensacionalismo clássico, o qual era muitas vezes uma forma de interpretação “espiritual” em
que objetos materiais, pessoas ou outros fenômenos representavam algo no mundo espiritual. Por
exemplo, o óleo era considerado um “tipo” do Espírito Santo, e o fermento um “tipo” de mal.
Em contraste a isso, a tipologia na hermenêutica histórico-literária refere-se a padrões de
semelhança de pessoas e eventos da história anterior à pessoas e eventos da história posterior. Por
exemplo, o reino davídico-salomônico é um tipo de reino escatológico, assim como o julgamento
do Dia do Senhor no século VI a.C é um tipo de Dia do Senhor futuro e escatológico.
Consequentemente, a tipologia para o dispensacionalismo progressivo é primariamente uma
relação “horizontal” (histórica) em vez de uma “vertical” (espiritual).34
Uma discussão mais extensa dessas questões hermenêuticas acontece nos capítulos 2 e 3 deste
livro.

As Alianças Bíblicas. O dispensacionalismo progressivo oferece uma visão mais unificada das
alianças bíblicas do que o dispensacionalismo passado. A aliança abraâmica é vista como o
fundamento de todas as alianças. As bênçãos das alianças posteriores explicam a promessa feita a
Abraão: “Eu abençoarei você”. A nova aliança é a forma pela qual a aliança abraâmica foi
inaugurada nesta dispensação e será cumprida integralmente no futuro. A aliança davídica é um
aspecto da bênção abraâmica e o meio pelo qual as bênçãos são agora inauguradas e serão
integralmente concedidas.
Os dispensacionalistas progressivos não acreditam que as alianças abraâmica e davídica e a
nova aliança estão sendo cumpridas hoje “em um sentido espiritual”. As bênçãos espirituais que
são dadas atualmente são bênçãos que na verdade foram preditas pela nova aliança. Essas bênçãos
são dadas de uma forma parcial e inaugurada, que espera concluir o cumprimento no retorno de
Cristo.
O fato de que as bênçãos da nova aliança estão sendo dadas a gentios e judeus atualmente é
consistente com a promessa abraâmica de abençoar não somente os judeus, mas também aos
gentios. O escopo das bênçãos abraâmicas de toda a humanidade direciona a forma como a nova
aliança está sendo cumprida hoje.
A inauguração presente e a plenitude futura do cumprimento da nova aliança revelam outro
aspecto no qual as alianças abraâmica e davídica estão sendo cumpridas hoje. Todas essas alianças
serão cumpridas numa dispensação futura, consistente com o sentido histórico-gramatical de suas
promessas. Entretanto, a natureza progressiva das dispensações e a interconexão entre as alianças
é tal que as bênçãos presentes são um cumprimento parcial, não “alegórico”, dessas promessas.
Elas esperam se cumprir totalmente no retorno de Cristo.
Uma apresentação completa de uma visão dispensacionalista progressiva das alianças pode ser
encontrada nos capítulos 5 e 6.

O Reino de Deus. O tema do reino de Deus é muito mais unificado e central ao


dispensacionalismo progressivo do que ao dispensacionalismo revisado. Em vez de dividir as
diferentes características da redenção em “reinos” independentes, os dispensacionalistas
progressivos veem um reino escatológico prometido que tem dimensões políticas e espirituais. O
reino está sempre centrado em Cristo. A revelação progressiva de um ou outro aspecto do reino
escatológico (espiritual ou político) antes do reino eterno de Cristo, segue a história de Jesus
Cristo e depende dele conforme age de acordo com a vontade do Pai. Se certas características do
reino escatológico (espiritual ou político) serão ou não realizadas ou reveladas antes do completo
estabelecimento desse reino, não é algo a ser determinado pelo raciocínio sobre as amplas
descrições dos profetas do Antigo Testamento. Pelo contrário, é uma questão da vontade do Pai
para essa ou qualquer dispensação intermediária, uma questão que é discernida através da
revelação do Novo Testamento. O Novo Testamento esclarece como o reino predito pelos
profetas do Antigo Testamento está sendo revelado hoje, como aparecerá de fato numa forma
milenar e como isso contribui para o reino eterno no qual todas as profecias serão cumpridas.
Os dispensacionalistas progressivos dão uma ênfase primordial ao reino eterno para
entenderem todas as formas anteriores do reino, incluindo o milênio. Eles não fazem uma
distinção substancial entre os termos reino dos céus e reino de Deus. E eles veem o presente
relacionamento de Cristo com a igreja de hoje como uma forma de reino escatológico que afirma
e garante a revelação futura do reino em toda a sua plenitude. Veja o quadro mais a frente para
uma visualização dessa visão.
O capítulo 7 oferecerá uma discussão mais completa do reino de Deus no
dispensacionalismo progressivo.

CONCLUSÃO
Nesse capítulo, vimos que o dispensacionalismo tem sido uma tradição do pensamento
evangélico americano muito significativa e difundida. Porém, o dispensacionalismo não tem sido
estático. Além da dinâmica da nuances e inflexões de professores e teólogos individuais, a
tradição dispensacionalista sofreu uma modificação significativa no terceiro quarto desse século.
Isso não significa que todos os dispensacionalistas clássicos se tornaram revisados de uma vez. Na
verdade, alguns dispensacionalistas mais clássicos ainda podem ser encontrados hoje. Porém,
uma mudança ocorreu e se estabeleceu de tal forma que o dispensacionalismo revisado se tornou
o dispensacionalismo que a maioria das pessoas conhece.
O REINO DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO
Atualmente, há uma mudança significativa acontecendo no dispensacionalismo que modifica
ainda mais as visões do dispensacionalismo revisado. Isso é o que chamamos de
dispensacionalismo progressivo. Nesse capítulo, tentamos delinear sua continuidade com ênfases
dispensacionais anteriores e explicar brevemente suas diferenças. Sua principal distinção é
encontrada na concepção de um cumprimento e uma revelação progressivos de uma redenção
holística e unificada. Essa redenção cobre os aspectos pessoais, comunitários, sociais, políticos e
nacionais da vida humana. Ela é revelada em uma sucessão de dispensações que variam na
maneira como enfatizam os aspectos da redenção, mas todas apontam para uma culminação final
na qual todos os aspectos serão juntamente redimidos.
Os capítulos seguintes discutem em mais detalhes algumas das distinções mencionadas aqui.
São apresentados em duas partes: (1) princípios para interpretação da Bíblia e (2) uma exposição
das estruturas bíblicas que sustentam o dispensacionalismo progressivo. Nessa última parte,
procuraremos interpretar o ensino da Bíblia sobre as dispensações, as alianças e o reino de Deus.
O último capítulo listará algumas implicações ministeriais e teológicas para uma reflexão mais
aprofundada.
O dispensacionalismo progressivo é um fenômeno de mudança e continuidade dentro da
tradição dispensacional. Os dispensacionalistas progressivos diferem entre si em vários pontos.
Há, sem dúvida, interpretações e pontos de vista oferecidos aqui que serão corrigidos pelas ideias
e contribuições de outros. Contudo, acreditamos que o apresentado aqui é suficiente para
mostrar uma direção geral, bem como apresentar questões e problemas nos quais um amplo
número de teólogos dispensacionalistas e eruditos bíblicos estão trabalhando atualmente.

1. Algumas das visões dispensacionalistas se tornaram bem comuns no evangelicalismo. Nem todos que ensinavam visões
dispensacionalistas se chamavam dispensacionalistas. Além do mais, como veremos neste capítulo, nem todos que são chamados
dispensacionalistas concordam em cada detalhe ou então com as “bem-conhecidas” interpretações dispensacionalistas.
2. Veja o capítulo 4.
3. As dispensações por si mesmas são discutidas nas Escrituras. Consequentemente, interpretar um texto à luz de sua dispensação
é outro exemplo de interpretar as Escrituras à luz das Escrituras, ou interpretar uma passagem das Escrituras à luz da interpretação
mais ampla das Escrituras. A interpretação das dispensações e de textos e passagens individuais é aperfeiçoada no estudo contínuo
das Escrituras. Isso leva tanto ao desenvolvimento do dispensacionalismo quanto a um melhor entendimento de porções
individuais das Escrituras.
4. Como as especulações de Lindsay de que Cristo viria dentro de uma geração (40 anos?) de 1948, e que os anos 80 seriam
provavelmente a última década da história. Os teólogos dispensacionalistas mais cuidadosos, como John Walvoord e Charles
Ryrie, negam deliberadamente que alguém poderia prever a vinda de Cristo por eventos vigentes.
5. Há certa variedade na exata extensão da tribulação. Isso é parcialmente dependente de como o termo tribulação é usado com
respeito à septuagésima semana de Daniel, em Daniel 9.27. Por conta do que foi dito por Jesus em Mateus 24.21, alguns
dispensacionalistas usaram o termo tribulação para se referir à segunda metade do período de sete anos de Daniel ou a um período
de três anos e meio.
6. Várias instituições dispensacionalistas produziram declarações doutrinárias que variaram em sua ênfase, algumas delas
refletindo interpretações dispensacionalistas antigas de forma mais explícita que outras.
7. Ainda hoje há críticos do dispensacionalismo que não conseguem entender esse ponto, e por isso, frequentemente, suas críticas
se aplicam apenas à uma forma (geralmente passada) da tradição dispensacionalista, a qual não é mais defendida pela maioria dos
dispensacionalistas atuais.
8. Robert L. Saucy, The Case for Progressive Dispensationalism (Grand Rapids: Zondervan, 1993) e Craig A. Blaising and Darrell
L. Bock, eds., Dispensationalism, Israel and the Church: The Search for Definition (Grand Rapids: Zondervan, 1992). Para uma
pesquisa em alguns desenvolvimentos no dispensacionalismo a partir do período clássico até o começo dos anos 80 e os
problemas de definição do termo dispensacionalismo veja Craig A. Blaising, “Doctrinal Development in Orthodoxy” e
“Development of Dispensationalism by Contemporary Dispensationalists”, Bibliotheca Sacra 145 (1988): 133-40, 254-80; e
“Dispensationalism: The Search for Definition” em Dispensationalism, Israel and the Church. Por volta do começo dos anos 80,
vários artigos levantaram questões acerca da proposta de Charles Ryrie a respeito da condição sine qua non do dispensacionalismo
(composta por três elementos, a distinção entre Israel e igreja, uma hermenêutica literal consistente e a unidade doxológica das
dispensações; Charles Ryrie, Dispensationalism Today [Chicago: Moody, 1965], pp. 43-47). Ao focar na característica central
dessa proposta, Israel e a igreja, o trabalho de 1992, Dispensationalism, Israel and the Church, revelou que o dispensacionalismo
estava atualmente passando por uma importante revisão no nível do que havia sido anteriormente considerado essencial para o
sistema. Essa revisão foi demonstrada como sendo amplamente embasada no que as Escrituras dizem tanto sobre a relação quanto
sobre a distinção entre Israel e a igreja. O capítulo final deste livro propõe uma base ampla para definir a tradição
dispensacionalista e dá um panorama do dispensacionalismo progressivo. Ele deve ser lido em conjunto com o presente trabalho.
O leitor deve observar, no entanto, que alguns rótulos diferentes são usados para fazer uma periodização da história do
dispensacionalismo. Esses rótulos foram escolhidos em relação à forma como os dispensacionalistas dos diferentes períodos
podem definir o dispensacionalismo (o assunto desse livro é sobre a definição de dispensacionalismo). Os rótulos no presente livro
estão melhor adequados como designações gerais das diferentes fases da tradição dispensacionalista. Consequentemente, deve-se
notar que o dispensacionalismo clássico neste livro abrange as categorias que no trabalho anterior foram chamadas de
Brethrenismo, Pré-milenismo de Niágara e o Scofieldismo. O dispensacionalismo revisado neste trabalho refere-se ao que
anteriormente foi chamado de dispensacionalismo essencialista.
9. Essa distinção levou a um espírito de separatismo da parte dos Irmãos exclusivistas em relação às outras formas de cristianismo
organizado. No dispensacionalismo americano, a distinção ajudou a suportar o separatismo do fundamentalismo, porém, assim
como no Movimento dos Irmãos, ela poderia ser facilmente invocada para outros graus de separação. Consequentemente, essa
separação pode ser facilmente aplicada contra o ideal ecumênico do dispensacionalismo primitivo.
10. Para uma lista das dispensações ensinadas na Bíblia de Estudo Scofield, veja o quadro no capítulo 4.
11. O dispensacionalismo clássico acreditava que o Espírito seria dado à humanidade terrena no milênio e no estado eterno; não
obstante, o dom do Espírito a humanidade terrena era grandemente distinguido do dado ao povo celestial.
12. Lewis Sperry Chafer, Systematic Theology, 8 vols. (Dallas: Dallas Seminary Press, 1948), 4:40.
13. Veja o capítulo 5.
14. Bíblia de Estudo Scofield, nota em Mateus 3.2.
15. É dito que o batismo do Espírito é o que diferencia a igreja de Israel. Entretanto, o batismo do Espírito é em si definido como
o relacionamento com Cristo que faz a igreja ser igreja. Consequentemente, ficamos apenas com uma distinção nominal, mas que
foi vigorosamente defendida, pelo menos por alguns. Alguns dispensacionalistas revisados, entretanto, começaram a questionar a
importância dessa distinção na eternidade (veja Robert W. Cook, The Theology of John [Chicago: Moody, 1979], pp. 226-
227n.27). Esse processo contínuo de avaliação e revisão acabou eventualmente levando ao dispensacionalismo progressivo.
16. Ray C. Stedman, Body Life (Glendale, Calif.: Regal, 1972).
17. Veja Gene A. Getz, Sharpening the Focus of the Church (Chicago: Moody, 1974); e The Measure of a Church (Glendale, Calif.:
Regal, 1975).
18. Para uma resposta dispensacionalista revisada ao assunto mais abrangente da responsabilidade social, veja Charles Ryrie, What
You Should Know About Social Responsibility (Chicago: Moody, 1982).
19. Charles C. Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1965), pp. 45-46.
20. Charles C. Ryrie, The Basis of the Premillennial Faith (Neptune, NJ: Loizeaux Bros., 1953), pp. 106, 115, 118.
21. George E. Ladd, Crucial Questions About the Kingdom of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1952).
22. O uso polêmico desse tipo vago de declive argumentativo geralmente aparece quando um crítico carece de substância. Ainda
que Ladd defendesse o pré-milenismo, por causa de Apocalipse 20, dispensacionalistas revisados tentaram tratá-lo como um
amilenista “fechado”. A tática, ainda que polemicamente efetiva dentro dos círculos dispensacionalistas, foi uma representação
injusta da posição de Ladd.
23. Alva J. McClain, The Greatness of the Kingdom (Winona Lake, Ind.: BMH Books, 1959). Essa visão também é compartilhada
por Herman Hoyt em The End Times (Chicago: Moody, 1969); e em “Dispensational Premillennialism”, em The Meaning of the
Millennium, ed. Robert G. Clouse (Downers Grove, Ill.: InterVarsity, 1977), pp. 63-92.
24. A discussão de Tossaint do reino pode ser encontrada em seu comentário sobre Mateus, Behold the King (Portland:
Mulnimah, 1980).
25. Charles C. Ryrie, Basic Theology (Wheaton: Victor Books, 1986) [edição em português: Teologia Básica (São Paulo: Mundo
Cristão, 2004)], pp. 397-99.
26. Ibid., pp. 398-99.
27. Ibid., compare p. 259 com pp. 398-99.
28. As distinções de Walvoord dos diferentes reinos pode ser encontrada em Major Bible Prophecies (Grand Rapids: Zondervan,
1991) [edição em português: Todas as Profecias da Bíblia (São Paulo: Editora Vida, 2000)], pp. 212-13, 218, 361-62.
29. Para declarações recentes de Walvoord sobre esse assunto veja Major Bible Prophecies (Grand Rapids: Zondervan, 1991), pp.
413-14; e Prophecy: 14 Essential Keys to Understanding the Final Drama (Nashville: Thomas Nelson, 1993), pp. 167-75, cf. pp.
74-79. É curioso que Walvoord use uma leitura literalista de alguns dos elementos da visão de João em Apocalipse 21-22 (que ele
acredita que evidencia a descontinuidade com a criação presente) para negar uma visão “literal” da eternidade nas profecias do
Antigo Testamento de um reino eterno (relegando aquelas promessas para um milênio cuja duração e qualidade são radicalmente
diferentes do estado “eterno”).
30. A visão de Pentescost pode ser encontrada no seu livro Things to Come; A Study in Biblical Eschatology (Grand Rapids:
Zondervan, 1958) [edição em português Manual de Escatologia (São Paulo: Editora Vida, 1998)], esp. pp. 427-583. Um resumo
mais recente apareceu em Thy Kingdom Come (Wheaton: Victor Books, 1990).
31. Pentecost, Things to Come, p. 562.
32. Deve-se notar o papel do dispensacionalista Erich Sauer, que levantou várias críticas contra a visão clássica (de Scofield) do
reino. Os dispensacionalistas revisados não responderam às críticas de Sauer, mas suas visões tiveram um efeito no
desenvolvimento do dispensacionalismo progressivo. Veja Erich Sauer, From Eternity to Eternity: An Outline of the Divine
Purposes, trad. G.H. Lang (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), ver esp. pp. 175-77, 185-94.
33. Em outras palavras, os dispensacionalistas clássicos tinham os santos do Antigo Testamento, judeus e gentios, dentro da classe
das pessoas celestiais, juntamente com a igreja desta dispensação. Os santos do milênio, judeus e gentios, deveriam habitar na
terra. Os dispensacionalistas revisados colocaram os santos do Antigo Testamento e os santos do milênio juntos na eternidade.
Consequentemente, no dispensacionalismo revisado, os santos judeus do Antigo Testamento e o Israel milenar se uniram para
produzir uma categoria: os remidos de Israel. O mesmo era esperado dos gentios do Antigo Testamento e do milênio. Entretanto,
judeus e gentios da igreja foram mantidos distintos desses outros judeus e gentios por toda a eternidade.
34. O Novo Testamento às vezes traça tipos verticais e correspondências baseadas na ascensão de Cristo ao céu. Hebreus fala de
um tipo de tabernáculo entre os terrenos e os celestiais (Hb 8.5; 9.23). Porém, Hebreus também nos lembra que a cidade acima é
a cidade que está vindo no futuro escatológico (Hb 13.14; cf. 12.22-24). Consequentemente, mesmo na tipologia de Hebreus, há
uma relação “horizontal” histórica do presente e do futuro que é a culminação e o cumprimento das relações verticais vistas no
presente.
PARTE DOIS
HERMENÊUTICA
por Darrell L. Bock
CAPÍTULO 2

INTERPRETANDO A BÍBLIA: COMO LEMOS OS TEXTOS

“Prática sem teoria é cega, mas teoria sem prática é burra”, observa N.T. Wright, notável erudito
do Novo Testamento, em The New Testament and the People of God.1 Essa citação nos adverte
em nossa abordagem de interpretação da Bíblia. Ela nos avisa que a interpretação precisa casar a
teoria com a prática. Podemos criar expectativas sobre como desejamos que a interpretação da
Bíblia funcione ou signifique, mas, no fim, devemos testar essas teorias dentro do texto. Como
intérpretes, devemos perguntar por que vemos o texto como vemos. Isso é especialmente
importante em um mundo onde muitas posições concorrentes existem acerca do que a Bíblia diz.
O que cria tal diversidade e como nos engajamos na discussão acerca de tais diferenças? Como
alguém resolve as opiniões? É através da disciplina conhecida como hermenêutica, ou o estudo de
“como determinamos o que uma passagem significa”.
Para alguns, interpretação é como o popular comercial da Nike: assim como alguém
meramente amarra um tênis novo de basquete e toca o chão para “Just do it” [“apenas fazer”],
então o intérprete deveria meramente abrir o texto e “apenas ler”. Infelizmente, não é tão simples
assim. Teólogos e estudantes de literatura têm debatido há muito tempo sobre como ler textos;
especificamente nas discussões do século XX ocorreram muitas idas e vindas. O debate se focou
em quatro elementos interligados que influenciam nosso entendimento dos textos: (1) o autor,
(2) o texto, (3) nós mesmos como leitores e (4) as cosmovisões que nós e o texto trazemos para a
leitura. Diferentes abordagens hermenêuticas argumentam por uma gama diferente de
prioridades e relacionamento entre esses quatro elementos, mas todos concordam que cada um
tem um impacto sobre como percebemos os textos. Na interpretação bíblica, trabalhamos com
todos os quatro elementos. Procuramos entender as perspectivas do autor e a maneira pela qual
ele expressa suas ideias no texto. Ao mesmo tempo, devemos também estar cientes do fato de que
nosso entendimento pode ser profundo, limitado, ou influenciado por nossas próprias
perspectivas como leitores. De fato, o que surge é que todos têm uma “hermenêutica” (uma
matriz de compreensões com a qual alguém se aproxima de um texto) que impacta a
“hermenêutica” (os princípios interpretativos usados para encontrar significado no texto). Esses
dois termos intimamente relacionados resumem dois lados intrinsecamente ligados de uma
mesma moeda da interpretação. A falha em prestar atenção em ambos os lados da moeda resulta
numa confusão acerca de como alguém entende o texto da Bíblia.
Neste capítulo, discutiremos a interação dinâmica entre autor(es), texto, leitores e
cosmovisões, concentrando-nos em pares. Esse foco pode parecer de alguma forma mecânico e
tedioso, como um arremesso sendo analisado por um computador, mas é nossa esperança que
essa análise capacite o leitor não para “simplesmente fazer”, mas fazer bem. Como intérpretes,
devemos ser sensíveis a (1) como nos aproximamos dos textos (ou falamos a eles) e (2) como
deixamos o texto falar a nós. Iremos trabalhar de trás para frente, a partir de como um texto é
lido, em vez de como o texto é criado.
COMO NOS APROXIMAMOS DO TEXTO: OLHANDO POR UM PRISMA
Leitores e Cosmovisões, Parte 1. De acordo com Charles Ryrie: “Hermenêutica é a ciência que
fornece os princípios de interpretação. Esses princípios guiam e governam o sistema de teologia
de qualquer um. Eles devem ser determinados antes da teologia de alguém ser sistematizada, mas
na prática, o contrário é geralmente verdade”.2
Reconhecendo que há diferentes formas pelas quais todos interpretam a Bíblia, Ryrie nos
adverte que nós devemos saber como chegamos ao texto antes de construir uma teologia acerca
dele. Os céticos geralmente afirmam: “podemos fazer a Bíblia dizer qualquer coisa”. Isso não é
correto, mas é verdade que lemos nossas próprias ideias dentro do texto ou o interpretamos mal
devido às nossas próprias limitações de conhecimento e entendimento. De fato, cada um de nós
tem sua própria forma de ver, uma matriz de compreensões, que impacta o que esperamos ver no
texto, as questões que perguntamos, e consequentemente, as respostas que obtemos.
Tanto nossas limitações quanto nossa matriz de compreensões se combinam para formar um
prisma através do qual interpretamos a realidade e através do qual lemos os textos. Essa é nossa
cosmovisão. Não importa quão bom seja o texto que lemos, ele sempre chega até nós através do
prisma que construímos da realidade.
Agora, muitas pessoas diriam que esse prisma é meramente uma questão de “pressupostos”.
Se alguém tem boas pressuposições, fica mais próximo da verdade do que alguém que tem más
pressuposições. Porém, as cosmovisões não são tão simples. Elas são o resultado tanto de
pressupostos como o que podemos chamar de “pré-entendimentos”.
Qualquer pressuposição é um elemento no pensamento de alguém que não está aberto para
negociações, a menos que venha sob extrema coação. É uma convicção bem fixada na qual
percepções ou visões são edificadas, podendo ser conscientes ou inconscientes. Imagine-se um
leitor medieval da Bíblia e chegue a Salmos 19.4b-6 (NVI): “Nos céus, ele armou uma tenda
para o sol, que é como um noivo que sai do seu aposento e se lança em sua carreira com a alegria
de um herói. Sai de uma extremidade dos céus e faz o seu trajeto até a outra; nada escapa ao seu
calor”. O leitor medieval teria dito para você que isso descreve como o sol se move ao redor da
Terra. Sua pressuposição acerca do universo, compartilhada uniformemente com outros naquela
época, era que a Terra estava no centro e tudo girava em volta desse centro da criação de Deus.
Esse era o prisma através do qual o mundo era entendido. Enquanto essa suposição fosse
defendida, isso seria um aspecto da interpretação do verso. O assunto que estamos preocupados
aqui não é se essa pressuposição estava certa ou errada, mas que ela existia e influenciou a forma
que o texto era compreendido.
Poucos séculos depois, os astrônomos, usando telescópios, começaram a argumentar que a
Terra não está no centro do universo. Aqueles com a pressuposição original da Terra no centro, e
que não consideravam suas pressuposições negociáveis, chegaram a considerar essa posição de
forma bem negativa, provavelmente porque era um desafio direto a como eles viam a realidade e
o retrato de Deus disso. Eles não podiam ver a realidade de forma diferente. As lentes estavam
fixas nesse ponto, por causa de uma pressuposição essencial.
Por outro lado, os pré-entendimentos são crenças ou percepções fluídas, pois estão abertas
para ajustes, refinamentos ou desenvolvimentos através de interações e reflexões adicionais.
Alguém com uma pressuposição acerca da Terra no centro do universo poderia olhar para a
evidência astronômica e consequentemente afirmar: “isso é uma nova consideração; observarei a
questão de perto”. No momento em que essa abordagem é adotada, uma pressuposição dentro
do prisma se torna um pré-entendimento. A investigação então continua em um nível diferente
daqueles que mantém a pressuposição que a Terra está no centro. Em seguida, é feita uma
sugestão de que tal linguagem no salmo é “fenomenológica”, isto é, ela descreve a realidade como
a percebemos como fenômeno e não como ela é cientificamente. Se alguém com um pré-
entendimento acerca da Terra no centro adota essa sugestão literária acerca da interpretação do
texto e vem a acreditar que a Terra não está mais no centro do universo, então tanto os seus pré-
entendimentos nesse ponto quanto a sua cosmovisão, até certo nível, mudaram. A visão dos
detalhes da cosmologia e da Bíblia mudam, embora a pessoa permaneça teísta no nível mais
básico.
Este é senão um exemplo de uma área crucial que impacta nossa percepção em muitos níveis,
apesar de não a examinarmos cuidadosamente. Então, que diferença faz a cosmovisão, o
pressuposto e o pré-entendimento?
Primeiro, todos nós vemos o mundo com pressuposições; isso é uma coisa que não podemos
negar. Uma questão importante é quais pressuposições temos que são úteis e quais não são.
Pode-se afirmar que as pressuposições que são úteis são aquelas da Bíblia, mas já vimos o
potencial de ler algo como “bíblico” que pode não ser. Logo, devemos averiguar cuidadosamente
o que faz com que uma perspectiva seja de fato bíblica.
Segundo, todos nós possuímos pré-entendimentos, apesar de não estarmos conscientes de
todos eles. Ao examinarmos uma questão ou o texto, é útil considerar como e por qual motivo
estamos nos aproximando deles. Algumas vezes, é o diálogo com alguém que pensa diferente de
nós que nos ajuda a compreender por que vemos as coisas da forma que vemos.
Terceiro, algumas mudanças no pré-entendimento não alteram a cosmovisão. Elas
simplesmente abrem a mente de alguém para examinar alternativas ou criar a possibilidade de
novas categorias para o entendimento ao olhar para a questão de uma forma nova. Porém, outras
mudanças no pré-entendimento impactam a cosmovisão. Estar aberto à questão do que está no
centro do universo abriu a possibilidade de uma resposta literária ao dilema, ainda que alguém
nunca tenha respondido à questão original de onde está o centro do universo! De fato, se tornou
uma questão teológica menos importante como um resultado da mudança na cosmovisão.
Quarto, nem toda pressuposição ou pré-entendimento é boa, assim como nem toda
pressuposição ou pré-entendimento é má. Na verdade, algumas pressuposições deveriam operar
mais como pré-entendimentos. Por outro lado, algumas pressuposições e pré-entendimentos já
são o produto de reflexão e podem ser mantidas com boas razões. Nem toda mudança no
entendimento é boa, já que fazemos boas e más decisões, mas nunca poderemos aprender sem
estarmos abertos para mudanças em nosso pensamento.
Quinto, alguns pressupostos e pré-entendimentos são o produto de um tempo ou cultura em
que alguém vive. A visão medieval da realidade foi definida pelos limites da cosmovisão de seu
tempo. Somente à medida que novas informações abriram novas possibilidades, o elemento
textual pôde ser considerado a partir de novos ângulos.
Mais importante, a cosmovisão é uma combinação de pressupostos e pré-entendimentos que
existem em diferentes combinações em diferentes pessoas. Eles influenciam perspectivas e
impactam a interpretação; eles também podem criar diferenças na leitura. Porém, se o papel deles
for apreciado, eles podem se tornar o assunto de uma discussão frutífera, mesmo havendo
discordância. Ainda assim, os impasses existem onde as pressuposições diferem. Aqueles que têm
uma cosmovisão que acredita em milagres lerão a Bíblia de forma diferente daqueles que insistem
que milagres não podem ocorrer. É impossível que eles concordem com o papel dos milagres na
Bíblia. Porém, mal-entendidos também podem existir onde pré-entendimentos diferem. Saber as
diferenças é importante, pois só é possível discutir pré-entendimentos quando eles são
conhecidos. Várias pessoas muito rapidamente confinam toda discordância ao nível da
pressuposição e assim dizem, com efeito, que não podemos discutir as nossas diferenças. Porém,
pode haver oportunidade de engajamento em discussões mutuamente frutíferas acerca do texto,
desde que seja possível fazer uma distinção entre pressuposição e pré-entendimento.
Então, reconhecemos que nós como leitores contribuímos (correta ou incorretamente) para
nossas interpretações do texto. Veremos agora dois outros elementos envolvidos na abordagem
do processo interpretativo, o(s) autor(es) e o texto.

Autor(es) e o Texto. O surgimento da Bíblia começou com comunicadores cuja mensagem


eventualmente acabou em textos. Isso é uma forma indireta de dizer que a Bíblia tem autores,
mas é importante reconhecer que geralmente a Bíblia contém uma mensagem mediada. Essa
mediação ocorre de várias formas: autoridade, mensagem e história.
Mediação da autoridade significa a comunicação da vontade divina através dos autores
humanos. Mediação da mensagem diz respeito à questão do orador da mensagem, bem como o
autor do texto. Essas não são as mesmas coisas. Por exemplo, Jesus, a figura central do Novo
Testamento, não escreveu um único livro. Em vez disso, está presente através dos olhos e das
palavras dos quatro evangelistas. Esse primeiro tipo de mediação de mensagem é notório nos
Evangelhos, onde geralmente é contada a mesma história acerca de Jesus, mas com palavras
diferentes. Em segundo lugar, alguns salmos individuais são atribuídos aos “filhos de Corá”
(Sl 84-85), fazendo com que sejam o produto de uma múltipla autoridade humana. A produção
de outros textos, como as epístolas, é mais simples, já que apenas um autor humano produz sua
mensagem. E indo mais além, podemos dizer que a Bíblia não é sobre meras ideias abstratas, mas
sim sobre eventos, experiências e ideias que se relacionam à atividade ou presença entre pessoas.
Esses relatos sobre eventos direcionados divinamente apresentam a mediação de Deus na história.
É importante também perceber que esse relato em si é uma parte inseparável do terceiro tipo de
mediação, a mediação da história. Em outras palavras, há a atividade de Deus na história e então,
há a apresentação daquela história através de autores humanos. Esses níveis múltiplos de
mediação tornam a discussão acerca do significado algo complexo, porque as várias considerações
descritas acima são em si mesmas complexas e inter-relacionadas.
Tal complexidade não deveria ser perturbadora, pois ela serve como base para a
profundidade, beleza e complexidade da mensagem bíblica. A Bíblia se torna uma bela tapeçaria
com vários fios de considerações tecidos através dela. Parte dessa diversidade surge dos vários
gêneros ou formas literárias que os autores usam para transmitir sua mensagem, um ponto para
ser examinado posteriormente.
Além das complexidades de uma mensagem mediada, é necessário também considerar o
conceito teológico de inspiração. A realidade da inspiração requer que qualquer discussão do
significado do texto bíblico tenha em vista múltiplos autores (o humano e o divino), assim como
o orador ou o evento histórico associado com sua mensagem. A intenção de quem deve ser
procurada? Elas são sempre as mesmas?
Esse é um debate acalorado. Alguns argumentam que não podemos obter acesso ao autor
humano, então somos deixados com o texto que Deus nos deu. É a Escritura que é soprada por
Deus e é a Escritura que estudamos, então é o significado das Escrituras que devemos buscar.
Porém, aqueles que são contrários respondem: pode um texto por si mesmo — destituído de seu
contexto social, histórico e literal — gerar significado? O significado do texto, se não estiver
unido à comunicação original do autor, não poderá ficar à deriva de uma audiência de leitores?
Essas questões profundas têm produzido muita discussão e não podem ser reduzidas a uma
escolha ou outra. Os autor(es) e o texto caminham juntos. Essa ligação é importante, porque ela
afirma que estamos interessados não no estado de espírito do autor durante a produção textual
— nem em uma intenção que pode ser reduzida a um propósito singular — mas na mensagem
que ele buscou apresentar no texto. É essa mensagem que o povo de Deus recebeu em última
instância e passou para gerações subsequentes. Mesmo em um livro como Hebreus ou certos
salmos, casos onde a autoria é incerta, temos acesso ao autor em sua mensagem que nos foi
deixada no texto. Foi o desejo de comunicar que produziu esses textos e, portanto, o ponto de
largada para a interpretação é a busca dessa mensagem.
Para lidar adequadamente com a interpretação de um corpus mediado envolvendo múltiplos
autores humanos e um autor divino, três assuntos precisam de atenção: (1) autoria inspirada, (2)
texto e significado e (3) reutilização dos textos por autores humanos posteriores.
Em certo sentido, esse capítulo inteiro e o próximo lidam com a questão da autoria
inspirada, isto é, a escolha de Deus de falar de modo verdadeiro e autoritativo em várias épocas
dentro da história através de agentes humanos. Porém, é importante considerar o que inspiração
significa na prática. Isso pode ser resumido em três pontos.

1. Sendo a Palavra de Deus, o texto bíblico funciona em uma posição privilegiada e única. Ele
se dirige a nós como um texto exclusivamente autoritativo. Deus fala verdadeiramente nessa
mensagem.
2. Há uma concepção e uma unidade no todo. A Bíblia não é meramente uma antologia, uma
coleção conflitante de várias opiniões acerca de experiências religiosas. Através dos textos
dos vários autores, vem a mensagem do Deus vivo e os relatos de como o povo o conheceu e
pode vir a conhecê-lo.
3. Esses textos têm uma mensagem que se estende para além das definições originais nas quais
eles são dados. Algo acerca do que eles dizem permanece. Seu valor intrínseco os fez serem
preservados e passados adiante. Como isso funciona exatamente é muito discutido e não
podemos resolver todos esses debates aqui. Porém, a interpretação da Bíblia é uma tarefa
importante porque Deus fala através das Escrituras, e sua autoridade surge a partir da
conexão dela com ele.

Isso nos leva ao assunto do texto e do significado. Alguns preferem trabalhar com uma distinção
entre significado e significância. Significado é o que o autor pretendeu dizer na definição original
no qual o texto foi produzido; significância se refere a todos os usos subsequentes do texto, ou o que
E. D. Hirsch chamou de “significado anacrônico”. Nessa visão, toda interpretação legítima deve
estar unida ao significado do autor, enquanto toda significância será uma implicação do
significado. Há uma interpretação daquele sentido original e muitas aplicações
(significâncias).Em certo nível, isso é uma distinção útil, mas sua simplicidade envolve toda uma
série de assuntos quando alguém está lidando com a descrição dos eventos que são parte de uma
cadeia mediada. É correto distinguir entre o que o texto diz à sua audiência original e como ele
continua a falar para nós. Porém, o significado textual não é realmente limitado a reproduzir o
que o leitor pensa que o autor pode ter pretendido. Em um sentido, a determinação do
significado envolve essa tarefa descritiva; mas em outro sentido, há uma diferença entre descrição
e compreensão. A compreensão geralmente surge dos eventos e suas sequências, em vez de serem
inerentes aos eventos em si. Uma vez que as Escrituras tratam de eventos interligados e não
simplesmente sobre ideias abstratas, o significado dos eventos nos textos tem uma qualidade
dinâmica, não estática.
A seguinte ilustração revela a distinção crucial entre descrição e entendimento, enquanto
revela o caráter dinâmico e multidimensional de cada. Imagine um caipira australiano visitando
os Estados Unidos no dia de eleição em 3 de novembro de 1992. O que ele observa em uma
escola local são muitos adultos colocando pedaços de papel em uma caixa. Ele é capaz de
descrever precisamente quais ações estão acontecendo, mas não sabe o significado do que está
acontecendo. Agora, os cidadãos americanos entendem que o que está acontecendo não é algum
tipo de ritual social estranho, mas uma eleição. Eles têm um entendimento básico do evento, mas
isso não é tudo.
Mais tarde fica claro que Bill Clinton ganhou e que os Estados Unidos têm um novo
presidente. Esse resultado reflete uma compreensão mais profunda sobre o evento do que a
compreensão que se poderia ter no momento em que ele acontecia. O resultado também é, eu
concordaria, parte do significado do evento de votar na eleição geral de 1992 dos Estados
Unidos. O significado surge a partir de uma relação de eventos para eventos subsequentes (a
contagem de votos do público).
Agora, o impacto imediato desse resultado fala de forma diferente dependendo do ponto de
vista de alguém. O resultado foi motivo de alegria entre os apoiadores de Clinton, mas motivo de
tristeza entre os seguidores de George Bush, pelo menos inicialmente. Posteriormente, alguns
apoiadores do Bush argumentaram que talvez o resultado foi bom, porque impediria que os
republicanos fossem complacentes, e se a revolução de Clinton falhasse, isso abriria a porta para
mais quatro anos republicanos em 1996. Isso mostra como o mesmo evento pode falar de forma
diferente; e de igual forma isso acontece com os textos. Esses efeitos adicionais mostram como
um evento pode render uma variedade de respostas significativas, até mesmo complementares.
Até mesmo nesse ponto, não terminamos ainda. Qual foi o significado da eleição de Clinton
em termos da história dos Estados Unidos? Podemos argumentar corretamente que ele terminou
um reinado de 12 anos do governo executivo republicano. Porém, isso é somente o seu
significado a curto prazo.
Levará anos para avaliar seu real sentido (significância) historicamente. Com um espaço de
tempo amplo, podemos responder melhor à questão do significado a longo prazo dessa eleição.
Novamente, uma variedade de opiniões pode surgir. Algumas certamente estarão certas, outras
erradas, outras parcialmente corretas. Tal sempre foi o caso em interpretar os eventos e os fatores
que contribuem para nosso entendimento deles.
Agora, alguém pode contestar que nossa ilustração é sobre eventos e não sobre um texto de
um autor, e portanto o argumento não se aplica. Porém, imaginemos um comentário sobre a
eleição escrito em 4 de novembro de 1992. Nele o autor diz: “O voto de ontem foi um ponto de
virada na política americana”. O comentarista pode até mesmo elaborar as razões porque isso é
assim a partir da perspectiva do dia seguinte em uma reflexão sobre a eleição. Essas razões
refletem o que o comentarista quis dizer. Porém, o significado do comentário e as razões para ele
podem assumir mais profundidade e valor conforme os eventos subsequentes revelam a precisão
dos destaques do comentarista. Um historiador citando o comentário anos depois poderá notar
como a frase “ponto de virada” foi perspicaz, mesmo que por razões além daquelas que o
comentarista notou. Ao ter a perspectiva do avanço da história em uma sequência de eventos, o
historiador pode comentar acerca tanto do significado dos eventos quanto do sentido mais
adequado cujas palavras do comentarista eram verdadeiras.
Tal potencial para o desenvolvimento do significado dos eventos e comentários acerca deles é
especialmente grandioso quando os eventos discutidos estão vinculados às promessas. Já que a
Bíblia é fundamentalmente acerca de promessas, a ligação dos eventos e o significado que se
desenvolve a partir da promessa é uma parte herdada da sua mensagem geral. Traçar essa ligação
e seu desenvolvimento é uma das principais tarefas do intérprete da Bíblia. O texto bíblico deve
ser estudado no contexto do desenvolvimento da sua história e não simplesmente extraído de
declarações isoladas a partir de eventos que as retratam.
O ponto de nossa ilustração é que o significado dos eventos, como aqueles relatados nas
Escrituras, é parte de uma sequência dinâmica: o significado é influenciado pela sequência de
eventos expandidos a partir do evento original, assim como pelo ponto de vista trazido a ele.
Pode-se apreciar melhor o significado dos eventos à medida que se obtém mais tempo para
avaliar o impacto desses eventos. Porém — e isso é um ponto crucial — o evento pode ser
examinado a partir de uma variedade de pontos de vista temporais ou ângulos de perspectiva,
cada um dos quais pode contribuir para uma apreciação de seu sentindo geral. Em outras
palavras, um significado de um evento não é unidimensional, mas, em vez disso,
multidimensional.
A realidade do texto mediado acerca dos eventos e a presença do autor divino carregam
implicações importantes para o significado no texto bíblico. Esses fatores permitem que um texto
fale além do seu autor humano, então, uma vez que o texto é produzido, comentários sobre ele
podem seguir em textos subsequentes. A conexão à passagem original existe, mas não de uma
forma que é limitada ao entendimento do autor humano original, o texto subsequente pode
desenvolver o significado do texto original. Agora, é a natureza dos eventos em sequência que dá
a possibilidade do comentário. Mas é a presença de um autor divino que dá a tal comentário a
possibilidade de desenvolvimento, porque é construído sobre o padrão da atividade de Deus e a
presença da natureza do autor divino. Esse comentário tem uma posição privilegiada devido a
natureza do autor divino. Por conta de um único autor se manter atrás dos vários textos e autores
humanos nas Escrituras, uma unidade autoral que transcende os autores humanos permanece.
De fato, é essa dinâmica única que permite a revelação progredir e o plano de Deus ser revelado
de tal forma que os textos posteriores relembrem as promessas dos anteriores.
Isso levanta uma questão sobre a reutilização de textos. Olharemos esse fenômeno mais de
perto no próximo capítulo. Aqui, lidamos somente com o assunto do significado e a reutilização
de textos. Argumentamos na base da qualidade dinâmica dos eventos. Reutilizar um texto para
discutir um evento subsequente é trazer esse texto a um novo contexto, e assim, aumentar seu
significado, ao associar novos níveis de referência e contexto ao texto anterior. Isso adiciona um
novo ângulo ao nosso prisma de entendimento através do qual o texto foi previamente visto.
Pode não ser tanto uma questão de mudar o significado, alterando a mensagem, quanto
adicionar referências ou contexto para desenvolver o alcance do texto. Adicionar referências é
adicionar ou desenvolver significado. A mudança pode acontecer pela adição sem subtração (ou
distorção do significado). De fato, a falha em reutilizar textos dessa maneira os relegam somente
para sua configuração original e os tornam somente uma curiosidade histórica.
Geralmente, tal reutilização de um texto gera uma ambiguidade no sentido original,
permitindo que ele represente uma gama de sentidos possíveis. Por exemplo, o uso do termo
“descendente de Abraão” na Bíblia tem uma ambiguidade que permite que o mesmo se refira a
Isaque, Jacó ou Israel em Gênesis, mas especificamente e unicamente a Jesus em Gálatas. Ainda
assim, até mesmo em Gálatas 3, Paulo dá uma volta depois de argumentar pelo ofício único de
Jesus como o “descendente de Abraão” e chama todos aqueles que creem em Jesus, tanto judeus e
gentios, de “descendentes”. Cada um desses usos é ditado pelo contexto e dependente dele. Cada
uso também considera o uso de certa perspectiva, período de tempo e cosmovisão.
Autores bíblicos podem geralmente reusar textos de uma segunda maneira. Um sentido
original se torna a base e padrão para um evento subsequente. Deus age de formas similares em
diferentes tempos, então aquele evento pode ilustrar e explicar outro. Os dois eventos espelham
um ao outro em abordagem e assim podem estar ligados, até mesmo quando alguns de seus
aspectos diferirem um do outro. O que é compartilhado é o ponto essencial ou paralelo que é
espelhado.
Isso envolve o que é geralmente chamado de tipologia da Bíblia, embora talvez seja melhor
chamá-lo de padrão de cumprimento. Exemplos incluem a reutilização de imagens do Êxodo do
Antigo Testamento para descrever um segundo Êxodo nos profetas do Antigo Testamento e o
uso de Melquisedeque, o líder-rei-sacerdote, como um tipo de Jesus. A habitação de Deus no
templo no Antigo Testamento pode ser paralela ao Espírito Santo habitando em nós. Uma
tipologia pode não estar limitada a um evento original e um único paralelo posterior, mas pode
envolver múltiplos pontos de cumprimento. Novas imagens da criação no Novo Testamento
remetem para os motivos encontrados em Gênesis e tem realização tanto no novo nascimento da
salvação (2Co 5.17), como na criação dos novos céus e nova terra (Ap 21.1).
A variedade de maneiras em que o significado atua e em que os textos são reutilizado são
fatores que revelam um ponto importante. Interpretação não é uma questão de ver uma regra ou
abordagem aplicada a cada texto; envolve apreciar a variedade de maneiras pelas quais Deus tece
sua mensagem. A Bíblia é como uma paisagem de um continente diverso. Assim como há praias,
desertos, colinas, planícies, vales, montanhas, ilhas, cânions, rios, golfos, lagos e oceanos, também
há uma miríade de formas nas quais Deus une o texto, a mensagem, a verdade e o evento, para
revelar quem Ele é. Para apreciar o que se está vendo no texto bíblico, é importante entender o
tipo de terreno em que se está, e apreciar a possível variedade de terrenos que se pode encontrar.
Levantar essa questão sobre as diversas perspectivas e o desenvolvimento do sentido não
significa que existe um número infinito de entendimentos do texto bíblico. Existe um significado
legítimo e ilegítimo. Mas há também aspectos complementares de significado, onde um ângulo
adicional no texto revela um elemento adicional da sua mensagem ou uma nova forma de
relacionar as partes de uma mensagem de um texto.
Então, como lidamos com a autoridade da Bíblia? Como lidamos com sua variedade e
profundidade?

O Texto e os Leitores, Parte 1. Uma premissa crucial de interpretação é que a Bíblia é projetada
para desafiar a nós e a nossa cosmovisão. Essa premissa manifesta-se em cinco formas diferentes.
Primeiro, a Bíblia possui uma posição privilegiada, pois ela nos direciona. Sua qualidade
divina significa que ela fala com autoridade ao povo de Deus através das eras. Sua habilidade de
dirigir as eras não significa que podemos simplesmente trazer textos diretamente ao nosso
mundo, porque alguns ensinos são limitados contextualmente. Essa limitação contextual pode
indicar que uma dada passagem, escrita e pretendida somente para um período fixo de tempo, se
aplica somente em certos contextos. Por exemplo, as leis do Antigo Testamento relacionadas ao
sacrifício, à comida impura ou ao mofo ilustram que nem tudo nas Escrituras tem a intenção de
ser praticado por todo o tempo. Porém, até mesmo quando a lei não mais se aplica, ela ainda
pode nos instruir. A discussão de Paulo sobre a carne e os ídolos em 1 Coríntios 8-10 ou as lições
do Êxodo revelam como as leis ou eventos de muito tempo atrás podem continuar a nos
iluminar. Determinar quando tais limitações se aplicam e como elas são sinalizadas é parte de um
estudo mais avançado das Escrituras. Tais discussões são geralmente difíceis para nós, mas elas
devem ser buscadas para evitarmos fazer a Bíblia dizer mais do que Deus quis.
Outras qualidades do texto surgem da sua posição privilegiada. Ele não somente nos
informa; ele nos chama. As Escrituras desejam a nossa resposta, e não somente o nosso
entendimento. À medida que nos desafia, nos leva à reflexão. Se as Escrituras não nos fazem
reexaminar a nós mesmos e o nosso relacionamento com o mundo, ela provavelmente não está
sendo lida corretamente. Porém, a qualidade divina do texto, bem como sua complexidade, dá às
Escrituras um ar de mistério. Deveríamos ser tardios em acreditar que descobrimos tudo até o
último pingo no “i”.
Um segundo assunto que a realidade de um texto privilegiado levanta é o papel do Espírito.
Alguns desafiaram o chamado à humildade na leitura das Escrituras, argumentando que o
Espírito nos mostra o que o texto significa. Ele é nosso professor. Porém, quando dois
“intérpretes instruídos pelo Espírito” argumentam posições mutuamente excludentes, um
problema surge. Quem traz a mensagem correta ensinada pelo Espírito? Como decidimos?
Argumentaríamos que essa questão enfatiza a obra de ensino do Espírito no lugar errado,
enfatizando a compreensão do conteúdo. João 14-16 descreve a obra do Paracleto como um
ministério de convencimento do mundo e instrução aos santos por meio de encorajamento. Em
outras palavras, o Espírito opera em nossos corações para nos convencer da verdade do que lemos
nas Escrituras e para nos encorajar com respeito a como aplicamos o que é dito. Há uma
diferença entre entender o que o evangelho diz e aceitá-lo. Aqueles que crucificaram Jesus
entendiam suas alegações, mas as rejeitaram como não vindas de Deus. Nossa argumentação seria
que o Espírito está primariamente preocupado com nossa capacidade de resposta. A vantagem de
ver o Espírito dessa forma é que ele amplia o escopo da leitura ao enfatizar a questão da resposta.
Em terceiro lugar, há a questão da certeza e da clareza no entendimento da Bíblia à medida
que ela nos desafia. Por conta da complexa profundidade das Escrituras, os numerosos pontos de
julgamento que se aplicam à sua interpretação e as limitações que trazemos à tarefa, é sábio
reconhecer níveis de certeza em nosso entendimento. Ao pedir tal atitude, a questão não é um
problema com o texto ou sua veracidade, já que é um texto divinamente inspirado. Tampouco
há uma negação de que existe um significado legítimo para o texto. O problema é perceber
honestamente nossas limitações em buscar essa verdade. Em reconhecimento às nossas
limitações, deveríamos classificar nossas percepções acerca do texto. A famosa doutrina da
“clareza das Escrituras” foi aplicada pelos reformadores às porções centrais da sua mensagem, não
aos detalhes de cada doutrina. O credo apostólico menciona somente as doutrinas mais
fundamentais da fé. Não é preciso ser um leitor muito cuidadoso para entender que Deus é o
Criador a quem todas as pessoas devem prestar contas, e que a Bíblia condena o pecado e chama
todas as pessoas de pecadoras, e que apresenta Jesus, o Filho de Deus, como a solução para o
problema do pecado. Porém, muitos outros assuntos são muito discutidos. Há valor em
classificar nosso nível de certeza acerca do que as Escrituras ensinam.
Na prática, uma escala de quatro categorias é útil. Primeiro, há aquelas coisas acerca das
quais não há dúvida: os fundamentos mais básicos da fé. Esses são temas de convicção absoluta.
Segundo, há aquelas questões em que estamos cientes de que há diferenças de opinião, mas
acerca das quais alguém está bastante certo da visão preferida. Descreveríamos a visão de alguém
aqui como firme convicção. Uma terceira categoria é o caso onde há diferença de opinião, mas
agora o sentimento é que quando Deus nos levar ao céu, há a possibilidade de descobrir que a
outra pessoa estava certa. Essa categoria chamaríamos de convicção leve. Por último, há aquelas
áreas onde podemos jogar uma moeda, porque nenhum de nós realmente sabe. Essa seria a
incerteza genuína. O valor dessa leitura do texto é que ela nos ajuda a focar nas questões
principais das Escrituras, ao mesmo tempo em que é sensível aos nossos próprios limites
conforme examinamos o texto. Tais categorias também podem facilitar a discussão quando
consideramos nossas diferenças uns com os outros.
O quarto ponto diz respeito à habilidade que o texto possui de nos desafiar e desenvolver a
categoria anterior. Podemos sempre saber melhor. A Bíblia é tão profunda que pode nos fazer
refletir mais acerca da nossa cosmovisão e nosso relacionamento com Deus. Se sentir de outra
forma é argumentar que possuímos toda verdade e que não há nada mais que Deus tenha para
nos ensinar. É nos trazer para dentro do cânon.
Quinto e último, são dois perigos associados às interpretações — fazer a Bíblia dizer muito
ou pouco. Ambos os erros são perigosos. Imagine uma escala, de um lado, onde a Bíblia diz
muito pouco, resulta um pluralismo de pontas soltas que trata toda verdade como relativa; no
outro lado, há um tipo de farisaísmo que regula e doutrina cada situação com pouco espaço para
discussão acerca de qualquer aspecto da vida. Deve-se ter cuidado para não se mover demais para
qualquer um desses extremos.
Em suma, a Bíblia possui a verdade, tem uma posição privilegiada e é capaz de falar por si
mesma ao nos desafiar a ver o mundo e a nós mesmos de maneira diferente. Colocar-se diante
das Escrituras em sujeição significa que tanto a humildade quanto a transformação são atitudes às
quais estamos comprometidos, conforme Deus procura nos chamar para aprofundarmos nosso
relacionamento com ele. É o trabalho do Espírito nos convencer; o nosso chamado é instruir,
repreender e encorajar uns aos outros na tarefa, mas devemos fazer isso com humildade e amor
enquanto discutimos o que a Bíblia significa. Essa responsabilidade coletiva mútua levanta as
questões da tradição e comunidade.

Leitores e Cosmovisões, Parte 2. Outro aspecto de como abordamos o texto é o modo como
nossa tradição — ou melhor, nossa subtradição — funciona para nossa compreensão. A
interpretação nunca é realmente um assunto individual, tendo em vista que todos nós somos
chamados para funcionar no contexto da comunidade. Cada um de nós entra na comunidade
unindo diferentes corpos, cada um vindo de tradições teológicas distintas. Tais tradições
enquadram como fazemos perguntas ao texto. A tradição, nesse sentido, é valiosa, porque ajuda a
prover perspectiva e uma matriz para compreensão. Servindo como um guia, e muitas vezes
refletindo o julgamento coletivo de muitos crentes ao longo do tempo ou dentro de uma
localidade, uma tradição dá identidade e pode prover uma base adicional para a unidade. Ela
pode também operar como uma verificação potencial contra idiossincrasias individuais, porém,
ela não deve ser uma tirana que manda em tudo.
Há um limite para o valor e autoridade de uma tradição. Uma tradição não deve ser igualada
com a autoridade das Escrituras. Ela não é o cânon. Isso significa que ela também deve estar
sujeita às Escrituras. Alguns aspectos da tradição são realmente questões de preferência coletiva,
em vez de algo exigido pela Bíblia. E estar confortável em nossa comunidade geralmente inclui
questões de preferências e gostos pessoais.
A primeira igreja que um de nós estagiou tinha acabado de construir um novo prédio.
Durante um tempo, os membros lutaram sobre qual deveria ser a cor do carpete no novo
santuário. Aqueles que preferiam simbolismo, pressionavam por um carpete vermelho, enquanto
aqueles que se inclinavam à estética optaram por azul. Era um debate sobre preferência, não
sobre as Escrituras. Muitas áreas que discutimos operam nesse nível. Não sabemos de um texto
claro que nos diga claramente qual ritmo musical ou que tipo de instrumento deveria ser usado
na igreja, ainda assim, sabemos de muitas comunidades que lutam por causa da música no culto
e com as percepções associadas às escolhas musicais. Esses são geralmente debates sobre tradição,
associações e/ou gostos. Diferenças doutrinárias geralmente não são tão claras, mas o mesmo
princípio permanece. A tradição, apesar de nos impactar significativamente, deveria ser
autoritativa (versus meramente preferida) somente quando a mesma refletir as Escrituras. Isso
levanta a questão do teste quanto ao entendimento e tradição, já que subtradições diferem entre
si acerca de como o texto é entendido.
Existem três elementos para testarmos qualquer visão ou tradição. Primeiro, ela precisa
refletir os detalhes do texto. Tal leitura também envolve o julgamento, já que a interpretação é
geralmente uma questão de decidir qual significado é mais possível. Estabelecer que uma leitura
do texto é possível não é o mesmo que mostrar que é a forma mais provável de ler um texto.
Segundo, dentro de um escopo, ela deve ser abrangente. Isso significa que ela é apta para explicar
de uma forma mais satisfatória, se comparada às outras opiniões sobre todos os textos
relacionados ao tópico. Geralmente, se leio um texto e tenho o sentimento “queria que esse texto
não estivesse aqui”, isso significa que pode haver algo acerca da maneira como eu uno uma
doutrina que precisa de atenção. Terceiro, deve haver consistência em como as partes se
encaixam. Retornaremos posteriormente ao tópico das várias formas que os textos se relacionam
um com outro. Às vezes, a discussão existe porque diferentes julgamentos são feitos sobre a
consistência.
Dois casos geralmente aplicados para tais disputas precisam de atenção. Uma regra
frequentemente usada para julgar disputas é chamada de “analogia das Escrituras”. Ela
argumenta que textos claros devem interpretar textos obscuros. Embora seja uma boa regra, sua
aplicação pode ser problemática, já que a clareza é geralmente vista através dos olhos do
observador. Tal regra, quando mal aplicada, pode nivelar os textos de uma forma que os façam
significar a mesma coisa quando talvez o relacionamento deles seja algo mais complexo.
Por exemplo, alguém pode argumentar que, porque Jesus é claramente o “Filho de Deus” em
termos de ser Deus encarnado no Evangelho de João, todo texto que menciona “Filho de Deus”
nos outros Evangelhos deveria ser lido plenamente nesse sentido. O texto mais claro e completo
interpreta o texto mais incerto. Porém, muitas passagens nos sinóticos usam “Filho de Deus”
como um título de realeza para se referir ao ofício de Jesus, em vez de destacar o que sua pessoa é.
O resultado dessa má aplicação é a redução do escopo do ensino bíblico acerca do Filho.
Outro problema ocorre quando se correlaciona um texto que declara uma ideia de forma
absoluta com outro texto que parece oferecer uma ressalva. Duas abordagens para essa situação
são possíveis. Alguém pode argumentar que a declaração absoluta é aquela que controla, afim de
que alguém encontre um significado para o texto que oferece uma ressalva, mostrando que ele
não é realmente uma exceção de forma alguma. Ou pode-se tratar essa ressalva como exatamente
isso, uma limitação acerca de quando a declaração absoluta se aplica.
Um exemplo desse problema é o debate em torno das cláusulas de “exceção” sobre o divórcio
em Mateus, bem como a disputa sobre o que o termo “imoralidade” significa nesses versos (5.32;
19.9, NVI). Alguns, enfatizando a declaração absoluta, argumentam que a exceção não é
realmente uma exceção, mas em vez disso, é uma referência histórica ao casamento incestuoso de
Herodes, algo ilegal perante as Escrituras, concluindo então que nunca houve um casamento de
fato. Geralmente, apelos à consistência com textos sem ressalvas, como Marcos 10.11-12 e
Lucas 16.18, são feitos em favor dessa visão, assim como também à simplicidade prática de
manter uma visão contrária ao divórcio. Outros, usando outra abordagem, argumentam que
Jesus proíbe o divórcio, exceto onde imoralidade sexual de vários tipos tenha ocorrido. Em tais
casos, o divórcio é permitido. Em outras palavras, a exceção em Mateus é uma limitação da
aplicação das passagens em Marcos e Lucas, onde nenhuma exceção é notada. Essa posição apela
ao sentido comum de “imoralidade” em outros contextos e também menciona como Paulo
parece permitir outra exceção no caso de deserção por um descrente em 1 Coríntios 7. Essa
abordagem também argumenta: se Jesus realmente não detém quaisquer exceções em outro
lugar, então como Paulo poderia adicionar uma aqui? Jesus deve ter permitido uma exceção para
que Paulo também tenha adicionado uma.
Nosso objetivo não é resolver essa disputa particular, mas simplesmente apontar duas formas
distintas nas quais esses textos podem estar relacionados entre si quando se discute a consistência.
A resolução se torna uma discussão acerca de qual abordagem faz um trabalho melhor de
relacionar com precisão os detalhes, que melhor lida com todos os textos e que possui mais
coerência. Julgamentos avaliativos são feitos ao longo do caminho. Isso nos ajudará como
comunidade a reconhecer que tais julgamentos estão sendo feitos em disputas como essa.
Tais diferenças entre tradições geralmente giram em torno de como várias partes do texto são
ajuntadas. Tais diferenças requerem nossa atenção e discussão, ao mesmo tempo em que
levantamos a questão de como prestamos atenção aos textos como parte de várias comunidades.

O Texto e os Leitores, Parte 2. A comunidade é saudável porque ela pode fazer com que cada
indivíduo venha a examinar suas próprias visões e corrigir suas perspectivas. Além disso, muitas
dessas diferenças de perspectivas são uma questão sobre qual o ângulo está sendo tomado no
trato do assunto. Algumas disputas são uma questão de genuína diferença, mas outras,
sugerimos, são uma questão de ênfases diferentes acerca do ângulo usado para avaliar a questão.
Às vezes, discussões abertas entre comunidades podem ajudar cada uma a apreciar aspectos de
ênfases das Escrituras que não poderiam ter sido consideradas de outra forma. Os envolvidos em
tais discussões ainda podem acabar com alguma discordância acerca da ênfase relativa entre como
as partes estão relacionadas, porém, como resultado do diálogo, podem deixar claro onde
concordam, podem se aproximar um do outro, ou podem determinar mais precisamente onde e
porque suas diferenças existem.
A interpretação de textos difíceis geralmente tem uma característica multidimensional. Às
vezes, uma dada tradição olha para a questão a partir de um ângulo somente. Um olhar no texto
de outra perspectiva pode abrir possibilidades ou permitir uma correlação nova dos textos. Assim
como a efetividade do replay instantâneo em jogos de futebol é uma questão de olhar para a
jogada a partir do lado certo ou da combinação de ângulos, assim também é na leitura do texto.
Podemos melhorar nosso entendimento do texto ao examiná-lo de vários ângulos. Por vezes, os
diálogos entre tradições ou entre comunidades podem nos ajudar a olhar para textos diferentes a
partir de ângulos diferentes.
Temos gastado um longo tempo discutindo como nos aproximamos do texto e o que
influencia essa abordagem. A interação entre autor(es), texto e leitor(es), paralela à questão do
texto e a cosmovisão do(s) leitor(es), impactam nosso entendimento do texto. Temos observado
como chegamos ao entendimento, e os vários fatores que contribuem para a forma como vemos
o texto. No fim, nossa abordagem do texto deve estar fundamentada no próprio texto; devemos
nos esforçar para permitir que o texto fale. Sermos membros da comunidade de Deus, a qual
possui um texto-base, significa que haverá diálogo entre nós mesmos e o texto, e também entre
nós mesmos e os outros. Nenhum intérprete deveria ser uma ilha em si mesmo. Devemos
abordar o texto em humildade, a fim de que ele nos desafie. Às vezes, esse desafio ao nosso
entendimento vem a partir dos insigths dos outros sobre o texto, ou a partir do questionamento
de nossa própria interpretação. Ao abraçarmos a mensagem do texto com humildade,
desenvolveremos uma convicção sensível sobre a verdade. Porém, devemos sempre ter
consciência sobre nossas limitações em entender essa verdade, de modo que tenhamos um senso
do nível de convicção e clareza com a qual percebemos uma verdade em particular.

1. N.T. Wright, The New Testament and the People of God (Minneapolis: Fortress, 1992), p. 118.
2. Ryrie, Dispensationalism Today, p. 86.
CAPÍTULO 3

INTERPRETANDO A BÍBLIA: COMO OS TEXTOS FALAM CONOSCO

“Um importante aspecto do problema de definir o que é ‘literal’ é que, em muitas instâncias, as
palavras, e não as sentenças, possuem um sentido literal ou normal. Além do mais, tanto para
palavras quanto para sentenças, o contexto é totalmente importante em determinar o sentido em
qualquer determinado ponto em um ato de comunicação. Quais contextos devem ser vistos e
como eles devem ser vistos, na determinação do sentido, é muito importante”, observa o teólogo
aliancista Vern S. Poythress.1
A teologia evangélica tem sempre discutido os princípios pelos quais interpretamos a Bíblia.
Como uma comunidade, compartilhamos uma herança que leva a mensagem divina da Bíblia a
sério. Se perguntassem aos evangélicos acerca do método hermenêutico que usam, eles poderiam
responder de variadas formas. O crente comum pode dizer que lê a Bíblia “de uma forma simples
ou normal, como leria qualquer outro livro, mas reconhecendo que Deus é seu autor em última
instância”. Outros poderiam dizer que leem de acordo com “o que significa para mim”. Mas para
ser bem feita, o que deve envolver tal leitura? Alguns teólogos responderiam que eles usam o
“método histórico-gramatical”. Na verdade, eruditos evangélicos têm estado confortáveis por
algum tempo descrevendo o método histórico-gramatical como sua abordagem à interpretação.
Isso significa buscar inicialmente o sentido do autor/Autor, como expresso no texto, com uma
sensibilidade à configuração textual original. Tal abordagem demonstra que ler de acordo com “o
que significa para mim” nos faz perder a compreensão sobre o que o texto significava e significa.
Porém, o que exatamente envolve tal leitura?
Inspecionaremos essa abordagem em três categorias: (1) a histórica, (2) a gramatical e (3) a
teológico-literária. Esses são três componentes no ajuntamento do quadro do significado das
Escrituras e examinaremos em três subseções distintas. Novamente, dividimos em pedaços o que
é de fato um processo interativo e dinâmico. Pense nessas três seções como sobreposições
separadas que juntas formam uma imagem vista do alto. Isso reflete o aspecto multidimensional
da interpretação. Primeiro, o nível histórico procura ser sensível à mensagem da forma como ela
chegou ao seu público inicial, entendendo termos e ideias originais. Segundo, o nível gramatical,
considera como a terminologia dessa mensagem está disposta. Os termos não são entendidos de
forma isolada uns dos outros, mas em conjunto. Terceiro, o nível literário-teológico destaca o
fato de que há uma mensagem eterna e uma unidade no texto, que é disposta literariamente de
várias formas chamadas gêneros. Cada gênero apresenta a verdade de sua própria forma e faz
demandas únicas sobre como ele deveria ser lido. Ler a Bíblia requer uma conscientização da
natureza mutável do terreno dentro do texto, assim como uma apreciação dos vários ângulos
usados para apresentar a verdade.
Uma subseção de final considerará como relacionar diferentes textos entre si, ao discutir as
várias formas que a Bíblia inter-relaciona as passagens. A categoria da profecia e do cumprimento
recebe atenção especial. O que surge é o que chamaremos de método “histórico-gramatical-
literário-teológico”. Essa descrição quádrupla da hermenêutica é realmente o que muitos querem
dizer quando falam simplesmente do método histórico-gramatical. Apesar das diferenças
existirem em como aplicar o método aos textos individuais, há uma concordância que essa é a
abordagem mais apropriada para interpretar e entender os textos. Então, o que está envolvido
nesse método?

PINTANDO O CENÁRIO: INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA


O primeiro contexto de interpretação é o histórico. A comunicação nunca ocorre no vácuo. Uma
mensagem utiliza categorias de entendimento que o autor compartilha com a audiência. Mesmo
que o autor esteja buscando criar novas categorias de entendimento para sua audiência, a estrada
tomada para alcançar esse novo entendimento requer um rearranjo de antigas categorias ou fazer
novas associações que rompam antigas barreiras de entendimento. Para o leitor, o grau de
compreensão do texto depende, em parte, de compartilhar com o autor uma rede de informações
de pano de fundo. Isso inclui normas sociais antigas, expressões culturais, fatos geográficos e
históricos, assim como uma compreensão da forma literária da comunicação.
Às vezes, a Bíblia não é clara para nós porque não dispomos informações suficientes do pano
de fundo para apreciarmos o texto. Podemos não compreender os sentimentos de uma pessoa
antiga diante de certos acontecimentos. Por conta do acesso a tais informações ser algo um tanto
quanto difícil certas vezes, é geralmente esperado pelo leigo que o pregador ou o professor de
Bíblia forneça um pano de fundo importante, para que, então, a compreensão do texto possa se
tornar mais clara. Esse problema da distância histórica pode ser um obstáculo decisivo para lidar
com a mensagem do texto.
Alguns tentam sobrepor esse obstáculo simplesmente relacionando o texto à experiência
presente. A falsa suposição é que atitudes, expectativas, costumes e cosmovisões corresponderão
ao longo de vinte ou mais séculos, que o mundo bíblico é exatamente como o mundo moderno.
Dizer isso não é negar a possibilidade de laços comuns entre os dois períodos; tanto antes quanto
agora, pessoas experimentam as idas e vindas da vida. Devemos nos identificar com os
personagens bíblicos, pois tanto eles como nós somos humanos, mas devemos ser cuidadosos
para não assumir o que é verdade de nossos costumes e sentimentos como verdade sobre os deles.
Como podemos compreender esses aspectos do mundo bíblico que nos parecem tão
estranhos quando os encontramos pela primeira vez? Como alguém entra em uma máquina do
tempo para viajar de volta por um longo período até chegar a esses tempos e perspectivas tão
antigas?
Primeiro, devemos reconhecer que temos acesso incompleto ao mundo bíblico, pois nosso
conhecimento é geralmente limitado aos artefatos e aos escritos antigos que representam somente
uma pequena porção do que uma vez existiu. Em certo sentido, podemos dizer que nunca
conseguiremos superar inteiramente esse problema da distância. Nunca conseguiremos entender
o mundo antigo exatamente como as pessoas da sua época entendiam. Porém, apesar de toda essa
limitação, possuímos uma vasta gama de materiais que nos mostram como a vida deles era vivida,
nos ajudando então a nos aproximarmos daquele mundo. Esses materiais nomeiam, ilustram,
descrevem ou refletem os principais eventos históricos, categorias antigas de pensamento,
juntamente com os costumes e ideias religiosas daquela época.
Na discussão a seguir, focaremos nos resquícios literários. Alguns deles estão presentes na
própria Bíblia, mas muitos deles estão contidos em textos extra-bíblicos. Historiadores judeus
como Josefo e Filo recontaram a história de Gênesis até Malaquias de uma forma que nos
permitirá ver como alguns estudiosos judeus do primeiro século leram muitos textos
escriturísticos. Josefo até mesmo detalha o que aconteceu em Israel a partir do fim do período de
70 d.C. Textos judaicos sobre costumes religiosos e ensinos respeitados de sabedoria e vida
religiosa existem em coleções conhecidas como os apócrifos do Antigo Testamento e
pseudoepígrafos. Nos famosos Pergaminhos do Mar Morto de Qumran, aprendemos acerca das
visões e práticas de uma comunidade separatista judaica. Esses textos nos mostram tanto a
unidade quanto a variedade de pensamento no primeiro século do judaísmo. As regras rabínicas
da vida diária do segundo século d.C. são encontradas na Mishná, mas algumas dessas regras
provavelmente retrocedem ao tempo de Jesus e dos apóstolos. Além disso, várias obras greco-
romanas revelam como aqueles fora do judaísmo viviam naquele período. Vários documentos das
várias culturas do oriente antigo próximo nos falam acerca dos sumérios, egípcios, assírios,
babilônios e outros grupos étnicos, iluminando assim detalhes no Antigo Testamento.
Todos os documentos acima revelam como os antigos viveram e como olharam o mundo.
Eles não viam o mundo da mesma forma. De fato, a rica diversidade da vida antiga em todos os
níveis é algo evidente nesses textos. Tais trabalhos não são verdades absolutas, mas descrevem a
vida antiga e sua perspectiva. Eles ajudam na formação de um pano de fundo para certas ideias
referidas na Bíblia. Os que se envolvem em um estudo sério da Bíblia podem se beneficiar com o
aprendizado sobre essas fontes e em como usá-las. Todos nós podemos avaliar como tais fontes
podem mostrar-nos a forma como as pessoas viviam e pensavam no mundo antigo.
Dois exemplos podem ilustrar como esse material nos permite apreciar melhor a mensagem
da Bíblia. O primeiro é a declaração que Herodes é uma “raposa” em Lucas 13.32. No uso
coloquial do inglês, o significado normativo figurado desse termo não tem nada a ver com um
macho; ele se refere a uma fêmea. O que quer que Herodes seja, ele não é esse tipo de “raposa”!
Porém, até mesmo a segunda opção contemporânea se refere a alguém que é astuto. Isso também
é o significado em alguns textos gregos antigos e nos pais da igreja (Plutarco, Sólon 30.2; Dio
Crisóstomo em Discursos 74.15). Entretanto, outro sentido comum antigo é que “raposa” é
alguém que é um destruidor ou um carniceiro (Ct 2.15; Lm 5.17-18; Ez 13.4; 1Enoque 89.10,
42-49, 55). Esse sentido de destruidor se encaixa bem com o contexto de Lucas 13, onde o
assunto é a tentativa de Herodes de destruir Jesus. Isso é um exemplo de onde o uso figurativo
histórico é bem coerente no contexto. É claro, a melhor evidência antiga é aquela que é
contemporânea ou a que certamente precede o evento que está sendo estudado. Também é
crucial que qualquer texto extra-bíblico que o intérprete possa usar esteja próximo ao texto
bíblico em termos de contato cultural. A sensibilidade às datas e conexões pode evitar que
alguém faça associações precipitadas.
Um segundo exemplo é a Parábola do Bom Samaritano. O título ainda subverte o efeito da
passagem em seu contexto histórico original. A parábola é bem conhecida. Um homem é
dominado por ladrões e deixado para morrer. Dos três homens que poderiam ajudar, somente
um ajuda. O sacerdote e o levita passam pelo outro lado da estrada, enquanto o samaritano para
e ajuda o homem. Por isso que a parábola é nomeada assim.
Porém, um estudo do judaísmo antigo mostra que isso é precisamente contrário à expectativa
antiga. Em seu contexto original, essa história teria sido chocante, já que os samaritanos eram
desdenhados como mestiços, enquanto os sacerdotes e os levitas eram considerados piedosos e
justos. Essa visão dos samaritanos é clara tanto em um texto como João 4 quanto nas descrições
de Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 9.288-92; 11.340; 12.257) e dos apócrifos.
De fato, na obra apócrifa intertestamentária judaica de Sirac lemos: “Duas nações minha
alma detesta e a terceira não é nem um povo: Aqueles que vivem em Seir e os filisteus e o povo
tolo que vive em Siquém” (50.25-26). O insulto verbal contido nessa antiga e histórica obra não
é claro se o leitor não conhecer a geografia antiga. Siquém está localizada próximo ao Monte
Gerizim, que é onde os samaritanos adoravam e ofereciam sacrifícios a Yahweh, em vez de
Jerusalém. A localização distinta dos samaritanos para adoração e costumes diferentes resultou
em uma forte rejeição judaica. Então, a atitude de Sirac é que samaritanos “nem sequer são um
povo”. Ainda assim, um desses “inexistentes” é que é usado como exemplo de próximo por Jesus.
Dois mil anos de relações públicas após essa parábola tiraram parte da aflição de seu sentido
original. A história de Jesus nunca nos chocará como chocou os ouvintes do primeiro século.
Porém, a reflexão sobre o pano de fundo antigo nos ajudará a não somente ver que Jesus está
exortando seus ouvintes a serem bons com o próximo, mas perceber que algumas vezes podemos
nos surpreender quanto a quem é esse próximo.
Entretanto, fazer uma leitura histórica também significa não ser anacrônico em nossa
abordagem ao texto. Devemos ser cuidadosos em não atribuir ao entendimento dos destinatários
do texto um conceito que só surge posteriormente. Um exemplo é Gênesis 3.15, o que alguns
chamam de “primeira pista do evangelho”, o “Protoevangelho”. Esse entendimento argumenta
que Deus prediz que o descendente de Eva, Jesus, esmagará a Serpente, Satanás. Agora, no
contexto do desenvolvimento do tema da descendência de Adão na Bíblia, esse significado acaba
surgindo do texto, sendo uma leitura legítima da passagem. Entretanto, é muito específico para a
audiência original de Gênesis. Antes de tudo, os primeiros leitores judeus do texto nunca
souberam que o nome do Messias seria Jesus. Além disso, no contexto do Pentateuco, a vinda de
uma figura real para a nação de Israel é, na melhor das hipóteses, somente aludida no detalhe de
uma passagem (Gn 49.10). Terceiro, a identificação específica da serpente com Satanás não é
algo claro dentro do Pentateuco. Todas essas conexões surgem somente posteriormente nas
Escrituras.
Então, o que o texto significava originalmente? Ele simplesmente apontava para a introdução
do caos dentro da criação como resultado do pecado. A natureza estaria agora em conflito com o
homem. Uma serpente, agora limitada a rastejar pelo chão pela maldição de Deus, morderia o
calcanhar do homem. Enquanto isso, conforme o homem tentava se defender, ele buscava ferir a
cabeça da serpente. É claro, essa ênfase se encaixa com a mensagem de Gênesis, explicando
porque Deus levantou Israel — uma nação da graça e da promessa — através da qual ele
abençoaria todas as nações. Tal mensagem também prepara para o ponto de reversão no Novo
Testamento, da obra de Adão no segundo Adão, Jesus Cristo.
O ponto é que o estudo historicamente sensível do Antigo Testamento pode abrir um estudo
adicional, para além dos assuntos destacados, no ensino do Novo Testamento acerca do Antigo
Testamento. Apesar do Novo Testamento desenvolver os ensinos do Antigo Testamento como
avanço da história divina, não deveria ser perdido o ensino do Antigo Testamento no processo.
Então, sensibilidade histórica serve como um importante pano de fundo potencial para a
interpretação, mas as peças centrais do quadro vêm do texto — os contextos gramaticais e
literários da mensagem.

JUNTANDO AS PEÇAS: INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL


O segundo contexto para a interpretação é a combinação de expressões e palavras juntamente
tecidas através de sentenças e parágrafos. Perceba que não falamos de palavras isoladas, pois
palavras isoladas não carregam significados, somente significados possíveis. A palavra “bruto”
pode significar muitas coisas, dependendo se sua audiência é composta de adolescentes,
empresários ou outros públicos. Alguém disse que palavras são como um jogo de xadrez. Elas
adquirem seus sentidos e importância a partir de outras palavras que estejam conectadas com
elas. Um peão é geralmente uma peça de xadrez insignificante, mas o coloque em certas posições
no tabuleiro e então ele será a peça mais importante. Palavras são assim, e seu contexto literário-
gramatical significa quase tudo. Deve-se trabalhar nos textos dando atenção especial à relação dos
termos com outros termos na sentença e no parágrafo. Além do mais, tem de ser dada atenção ao
trabalho como um todo, seu estabelecimento histórico e o gênero da passagem. Retornaremos
depois à importância da natureza literária do texto, mas agora focaremos nos termos.
Até mesmo as nuances das palavras podem mudar à medida que o contexto muda. O termo
“patriota” como um termo histórico, para um revolucionário americano, é um termo positivo,
mas fale de um alemão patriota que era leal a Hitler na Alemanha nazista, a nuance muda
significativamente. Finalmente, mencione o termo “patriota” com referência à recente Guerra do
Golfo e não estará falando de uma pessoa, mas de um míssil. Então, textos se referindo a um
patriota americano, a um patriota alemão, ou a um míssil patriota terão diferentes significados
por causa dos seus contextos limitadores e identificadores. Isso mostra o quão flexíveis são os
termos e como é central o contexto para determinar o significado, o que, na maioria das vezes,
não é aleatório. Em outras palavras, não se conta o quanto uma palavra é usada em uma forma
em particular, mas se pergunta se esse significado é o mais apropriado ao contexto que se está
sendo estudado. Olha-se para o pano de fundo e para os conceitos com os quais os termos
estudados estão associados.
É importante ressaltar que, na determinação do significado, pode haver precisão ou distorção
na percepção. Se eu disser a você “nós temos um gato”, você imaginará um animal que não é um
cachorro, morcego, rato ou macaco. Mas você também pode concebê-lo como um gato de rua,
um persa ou um malhado. Só que agora você foi além do que queríamos comunicar, ou então
podemos ter dado pouca informação para revelar tudo o que queríamos sugerir. Porém, para
entender nosso ponto no nível mais básico, somente o primeiro conjunto de discriminações de
sentido era necessário. Um entendimento geral de sentido de gato é bom o suficiente, apesar dos
detalhes do sentido mais específico poderem representar um tipo de distorção do nosso sentido.
Alguém que nos conhece bem saberia que temos um gato de rua cinza. Eles saberiam
imediatamente tudo que pudéssemos ter sugerido e não somente apreciariam o sentido básico,
mas também poderiam fornecer detalhes adicionais. Nosso ponto é que geralmente podemos ter
um sentido geral do ensino de um texto, mas quanto melhor a consciência que temos sobre o
pano de fundo de comunicação, mais detalhes estaremos aptos a apreciar. À medida que
incorporamos, de uma forma sensível, mais do contexto, nosso entendimento pode ser
aprofundado.
Por outro lado, uma regra geral de interpretação é que não se deve extrair um termo técnico
de uma palavra a menos que o contexto aponte para tal necessidade. Um sentido menos
específico é geralmente mais preciso do que ler demais sobre um termo, principalmente por
estarmos distanciados historicamente do texto.
Nossa ilustração do gato revela outras características da interpretação. A ilustração do gato
tem a vantagem de permitir a nós, os autores, explicarmos a você, o leitor, o que estamos
tentando comunicar. Entretanto, alguns níveis de distorção de significado são inevitáveis na
interpretação de textos antigos. Não podemos perguntar aos escritores humanos o que foi
pretendido. Na verdade, geralmente um escritor não está ciente de todos os fatores que
contribuem para a escrita e escolha dos termos. Esses fatores significam que há um caráter
provisório para toda interpretação, não importa o quão cuidadosos sejamos.
Porém, esse caráter provisório não precisa resultar em relatividade. Algumas distorções de
sentido são triviais, enquanto outras são significativas. Aqueles que entenderam que quisemos
dizer “gato” e não cachorro, mas imaginaram um malhado em sua mente, não foram realmente
prejudicados pelo seu detalhe incorreto, já que tudo o que desejamos comunicar foi a identidade
básica do animal doméstico. Por outro lado, se alguém tiver entendido que temos um rato, e não
um gato, esse alguém poderia não querer nos visitar! Nos textos, a única forma que um intérprete
pode lidar com o entendimento ou com o nível do potencial de distorção é prestar atenção aos
outros termos no contexto para confirmar ou esclarecer melhor uma leitura. Se no contexto
mencionarmos que o animal possui pelos ou que faz “miau”, as outras evidências do contexto
confirmam uma identificação em detrimento de outra. Onde tal confirmação adicional estiver
faltando e o termo em questão for vago, deve-se ter muito cuidado para não o entender de forma
muito específica.
Duas outras características acerca das palavras são importantes. Algumas palavras são
obscuras, outras abrangentes, enquanto outras são bem precisas. A Bíblia geralmente usa termos
ou palavras abrangentes, que podem ser referidas com mais especificidade ou podem assumir
representações adicionais à medida que o conceito é repetido depois nas Escrituras. Uma grande
ilustração disso é o conceito de servo. Em Isaías 49.3, o servo é chamado de Israel, mas em
Isaías 53, ele é descrito com os traços de um indivíduo. O Novo Testamento também trabalha
com essa ambiguidade. Em Lucas 1.54, Israel é o servo, mas em Atos 8.32-33, o servo é
associado a Jesus. Finalmente, em Atos 13.47, Paulo e Barnabé descrevem sua missão em termos
de servo ao citar Isaías 49.6. A figura do servo descreve várias representações de Deus. Não é uma
pessoa, mas muitas, apesar de uma — Jesus — ser particularmente um aspecto chave do
cumprimento para o termo. Ele é sua realização de uma forma que outros não são. Perceba como
cada contexto revela a diversidade do uso. Um contexto não garante ou dita como o termo é
usado em outro, apesar de poder ajudar a explicar o relacionamento entre os vários usos.
De fato, há também um conceito histórico antigo em ação nesse tema. É a ideia de “um
representando muitos” ou “muitos em um”. Jesus como servo pode ser visto como o servo por
excelência, um indivíduo fiel representativo do que a nação de Israel tinha sido chamada para ser.
Por sua vez, Paulo e Barnabé podem ser vistos como estando “em Jesus” e assim assumem um
papel do servo como ele. Temos figuras similares hoje, como quando o presidente fala por todos
os cidadãos do país ou quando um grupo de advogados em nome de um cliente.
Uma segunda característica dos termos é que a mesma ideia pode ser dita de formas
diferentes. Temas e conceitos bíblicos geralmente envolvem mais do que um termo. Então, para
limitar a procura de um conceito procurando a presença de um termo específico pode,
geralmente, resultar em subdesenvolver um tema nas Escrituras. Um exemplo é que Jesus como
Senhor (At 2.30-36) e Jesus como Cabeça (1.19-23) são duas formas de retratar a autoridade
regente de Jesus sobre a igreja. Ambos os títulos estão associados com a imagem de
Salmos 110.1, que é um salmo régio (ou real). Perceba nesse exemplo, a presença da imagem
sobre estar exaltado e sentado à direita de Deus (Sl 110.1) ajuda a preencher o retrato de
“cabeça” (uma imagem régia ou real). Falar acerca do reinado de Jesus ou do seu senhorio inclui
discutir a sua liderança. De fato, Paulo pode ter escolhido usar o termo “cabeça” para evitar
confusão em contextos gregos nos quais ele pregou acerca do tipo de regência de Jesus quando ele
se assentou à direita de Deus. Aqui, o estudo do pano de fundo histórico e o estudo de como um
termo é usado pode nos ajudar a sermos sensíveis à razão para tal uso. Ao colocar todos os
elementos juntos, a imagem sugere que Jesus transcende a regência política de Roma. De fato,
Jesus disse assim em João 18.36, quando declarou, “O meu reino não é deste mundo”. Isso
aconteceu porque o seu reino é o reino de Deus. Ou, como Jesus disse em outro lugar, “Dai,
pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.21). Qual seja o tipo de
regência que Jesus possuiu, ela não representou uma ameaça vigente, direta a regência de Roma.
Seu alcance nas vidas das pessoas foi além da autoridade política, pois foi focada no coração. As
características históricas perfazem o cenário que compõe um contexto para a interpretação,
enquanto as palavras em seu contexto gramatical revelam as peças de um quebra-cabeça. Um
fator permanece a ser considerado. Deve-se colocar as peças juntas à luz do todo, tanto à luz dos
termos na variedade do gênero literário usado para apresentar a mensagem bíblica, quanto à
unidade teológica dessa mensagem. Então, voltemos agora ao aspecto literário-teológico da
leitura.

UNIFICANDO MENSAGEM E HISTÓRIA: LITERÁRIO-TEOLÓGICO


Seja Sensível ao Gênero. O estudo de gênero nos leva para a área da interpretação que nos ajuda
a unificar as peças da mensagem, mesmo que essa unidade seja alcançada através do uso de uma
ampla variedade de meios literários. Podemos reconhecer esses gêneros porque podemos vê-los
em grande parte do mundo antigo também. Deve-se pensar sobre esse aspecto da interpretação
como sendo as Olimpíadas, uma grande ocasião feita de uma variedade de esportes. Apesar de
todos serem esportes, cada jogo é jogado por suas próprias regras e tem suas próprias expectativas
acerca de como ser jogado. A variedade de literatura é da mesma forma. Ela tem uma mensagem,
mas transmite essa mensagem em uma variedade de formas e com uma variedade de expectativas.
Tentar jogar basquete com as regras do futebol nunca funcionará, apesar de ambos usarem uma
bola e necessitarem de agilidade nos pés. Ou pense em instrumentos musicais, todos eles fazem
música, mas em diferentes formas com diferentes sons. Ninguém pode tocar um violino como
um piano ou bateria; nem deveria ser esperado que um violino soe como um piano ou como
uma bateria! Da mesma forma, ler a poesia dos Salmos como um livro histórico é perder o
impacto emocional e pictórico da mensagem, apesar de ambos os gêneros transmitirem uma
realidade acerca da experiência das pessoas com Deus. Transformar a imagem e configuração do
saltério em mera proposição teológica é como tirar a paixão e força vital das suas veias.
Iremos resumidamente fornecer seis principais gêneros da Bíblia para tentar destacar suas
características dominantes. Cada um conta a história bíblica da sua própria forma. Por história,
queremos dizer a apresentação dos eventos, figuras e/ou ideias acerca de Deus e a humanidade
em uma sequência organizada. O ponto é: seja sensível ao gênero quando estudar o texto.

1. Narrativa teológica. Aqui nos referimos aos livros históricos do Antigo e do Novo
Testamento — Gênesis a Ester e Mateus a Atos. Esses livros contam uma história com um enredo
acerca dos eventos. Eles discutem eventos que envolvem a interação de Deus com a humanidade.
Porém, eles fazem isso com temas, personagens, um desenrolar de histórias e conflitos. Esses
elementos todos interagem uns com os outros para constituir a história e fornecer contato com a
vida. Os personagens geralmente representam não simplesmente indivíduos na história, mas
tipos de pessoas. A história em si é geralmente centrada em torno de promessas ou esperança que
pessoas têm em seu relacionamento com Deus. Conflitos surgem porque um obstáculo fica no
caminho daquela esperança. A interação entre personagens, enredo e conflito, revela temas e
lições acerca do caminhar com Deus. Uma narrativa teológica é mais do que uma coleção de
eventos passados e fatos. É a história de vida das pessoas expressa em termos de esperança e
desapontamento.
Por todo o triunfo do Êxodo, há uma nota trágica para o fim da vida de Moisés, já que ele
não pode entrar na terra prometida no fim do Pentateuco. A esperança de alcançar a terra
continua viva e a história segue com Josué, mas há uma nota de dor quando a desobediência
evita que Moisés compartilhe do momento de triunfo. Tudo o que ele consegue é um vislumbre
de sua realidade. A desobediência geralmente nos defrauda da experiência completa da promessa.
Aqui está uma lição principal da narrativa em termos de vida, mas há outras também. Embora
tenhamos um sabor maravilhoso do que seria o envolvimento com Deus agora, isso não passa de
um relance se comparado ao que podemos ter se nossa obediência fosse completa. Moisés
também percebeu que no plano de Deus, ele era somente quem preparava a mesa. Outros
experimentariam da plenitude da promessa de Deus em formas que ele não iria. Porém, ele se
contentou no maravilhoso papel de servo que Deus o chamou para ter.
Subgêneros dentro da literatura de narrativa incluem relatos de milagres, parábolas e material
discursivo. Eles também possuem suas próprias formas de leitura específica. Os milagres têm uma
qualidade representativa ao retratar dentro do evento o poder de Deus sobre as forças que se
opõem à humanidade (Lc 5.17-26; 11.14-23). As parábolas geralmente retratam através de
histórias verdades teológicas ou formas de viver (Lc 10.25-37; 15. 1-32; 16.1-23). Os discursos
podem ser lidos mais como epístolas, com a comunicação do ensino em sequência lógica,
embora, mesmo dentro desse subgênero, pode haver o uso intenso de figuras e imagens.

2. Literatura poética. Os livros poéticos e algumas partes dos proféticos são canções teológicas.
São histórias do coração. O material de hinos é menos frequente no Novo Testamento, mas,
existem alguns (por exemplo, Lc 1.68-79). Isso é a história com emoções na manga. Os Salmos
figuram eventos que se tornam representativos para o leitor. Apesar da experiência de um leitor
diferir daquela do salmista em detalhes, o leitor ainda pode se identificar com a tentativa do hino
de comunicar a experiência de alguém e suas emoções diante de Deus.
É importante reconhecer a qualidade representativa desse material. Tal literatura muitas
vezes tinha um cenário concreto na vida do salmista. O que é interessante é que a linguagem é
geralmente tão simbólica que não podemos estar certos dos detalhes dessa experiência. Porém, o
mero colocar de um salmo no Saltério (ou na Bíblia para outros hinos) demonstra que o povo de
Deus reconheceu que o que está expresso ali é algo que todo o povo de Deus poderia
compartilhar e se identificar. Quer em louvor, dor, ou ambos, a experiência do salmista,
geralmente desconhecida para nós, ainda pode ser compartilhada e ensinada. Através da
combinação de emoções e reflexões teológicas vem o entendimento.
A maioria dos salmos são “lamentos”, onde a dor do desapontamento na vida fere o coração.
O salmista verbaliza a dor e a raiva antes de perceber que Deus se importa e é soberano sobre
esses eventos. Outros salmos, que são “cânticos de louvor”, são aclamações sinceras sobre Deus,
um puro deleite em oitavas mais altas. Outros ainda, os “salmos régios”, revelam promessas
acerca do rei de Israel e expressam a esperança que ele será tudo que Deus prometeu. A realização
singular desse reinado ideal vem em Jesus Cristo no contexto das suas duas vindas. Outros
salmos, como os “salmos do justo sofredor”, mostram o sofrimento do povo de Deus ou de um
indivíduo nas mãos daqueles que rejeitaram a Deus. Aqui novamente os salmos retratam o
coração de certo tipo de pessoa. Mais uma vez também, Jesus se torna no Novo Testamento um
exemplo do “justo sofredor” por excelência, e ao fazer isso, modela nossa caminhada no meio de
um mundo hostil.
Em resumo, os salmos aparecem em vários subtipos (ou “formas”), cuja compreensão ajuda a
revelar a mensagem. Porém, uma pessoa nunca deveria ignorar a emoção que vem dessas imagens
vivas. É esse elemento, juntamente com a possibilidade de identificar-se com o salmista, que dá
aos salmos seu poder. Interpretar sensivelmente é explicar a imagem e reter um sentido de sua
emoção.

3. Literatura de sabedoria. Esse gênero textual, como Provérbios, Eclesiastes e Tiago, contém
curtos dizeres em abordagens generalizadas da vida, história em generalidade. Eles muitas vezes
não são concebidos para serem entendidos como verdadeiros em cada momento particular, já
que alguns provérbios estão internamente em tensão (Pv 26.4-5). Porém, eles servem para
motivar alguém a viver com um senso de responsabilidade e prestação de contas diante de Deus,
através de figuras emocionalmente dirigidas. A sabedoria chama o leitor a evitar armadilhas que
muitas vezes levam a relações e formas de viver que são destrutivas. Pode ser útil traçar um tema
específico através do livro, em vez de focar em um provérbio de cada vez, para que se possa
apreciar a amplitude e a variedade de conselhos acerca de um tema. Assim, alguém pode
examinar com proveito o sábio, o tolo, o dinheiro, o trabalho e o preguiçoso. Ou alguém pode
examinar as seduções do pecado e suas consequências, coletando todas as referências ao tema e
considerando uma de cada vez. Geralmente, esses provérbios não possuem um contexto. Isto é, o
provérbio anterior ou posterior não é relevante para o significado. Tais provérbios desvinculados
são mais proveitosamente estudados quando são coletados e agrupados sobre o mesmo tema, em
vez de analisados dentro de um fluxo de contexto literário.

4. Literatura profética. Os profetas do Antigo Testamento e as seções proféticas de outros livros


não são essencialmente predições, embora existam algumas. Em vez disso, são histórias de
confrontos e novas perspectivas. Elas são concebidas para subverter a complacência espiritual e
declarar a responsabilidade perante Deus, enquanto afirmam a presença, a promessa e o
julgamento de Deus. Os profetas estabelecem uma imagem de um mundo diferente daquele que
o povo de Deus experimenta na presente situação. Ao fazerem isso, eles relembram o povo de
que Deus está no controle, que o julgamento virá para os ímpios e que Deus considera todos
responsáveis pela forma como vivem e como tratam os outros. Nesse gênero, reprovação e
exortação predominam. Os profetas dependem fortemente de imagens simbólicas para
estabelecerem seus pontos. Tal imaginário faz com que os profetas sejam difíceis de serem lidos se
o leitor não apreciar o pano de fundo das metáforas. A mensagem deles apela para o caráter justo
e advertem das consequências por tratar os outros com injustiça. No âmago da sua pregação, está
a revelação dos valores e virtudes divinas. Assim, os profetas também se dirigem ao coração e
rejeitam a importância de regras ou rotinas, optando por buscar em vez disso a motivação. Assim
como os Salmos e a literatura poética, as lições para o leitor moderno aqui não são
necessariamente encontradas ao emparelhar as circunstâncias particulares que os profetas se
referiram, mas sim ao considerar as atitudes que são mostradas durante tais eventos.
5. Literatura epistolar. Esse gênero do Novo Testamento é história com explanação, ou discurso
de ensino. Comparado às seções de discurso nas narrativas, a epístola é o mais explicitamente
proposicional de todos os gêneros. Enquanto a mensagem de seções não-discursivas nas
narrativas aparece através de personagens, situações, conflitos, diálogos e interação, no gênero
epistolar o ensino é expresso mais diretamente. Geralmente essas cartas disponibilizam uma
leitura mais natural para nós, se entendermos bem a maior parte da terminologia teológica usada.
É maravilhoso ler essas cartas e perceber que elas foram originalmente endereçadas para pessoas
comuns, e não para teólogos. É claro que, no caso das cartas de Paulo, seus leitores geralmente
tinham a vantagem de tê-lo ouvido ensinar e pregar sobre esses temas, assim, eles sabiam a força
de seus termos, incluindo os técnicos. Ainda assim, lemos em 2 Pedro 3.16 que as cartas de
Paulo eram geralmente difíceis de entender.
Na classificação quanto ao uso dos termos nesse gênero, é geralmente importante permanecer
dentro do uso dado pelo autor humano estudado, antes de considerar como outros autores
usaram o termo. Por exemplo, o uso paulino de justiça é limitado ao que os teólogos descrevem
como a doutrina da justificação, ou seja, Deus nos declara justos através da obra de Cristo em
resposta à fé, ou ao que muitas pessoas chamam de “ser salvo”. Porém, em Mateus o termo
justiça significa a demonstração de justiça em nossas ações, ou o que os teólogos rotulam de
“justiça ética”. Tal justiça ética não tem nada a ver com ser salvo, mas, em vez disso, tem a ver
com a resposta à graça de Deus. O exemplo é um lembrete e a variação de um ponto feito
anteriormente: os termos são determinados por seu contexto. Nesse material, é o significado dos
termos e as relações gramático-sintáticas entre as sentenças que carregam grande parte da
responsabilidade da interpretação.

6. Literatura Apocalíptica. Encontrada em Daniel, Apocalipse, porções de Zacarias e Isaías,


juntamente com os discursos escatológicos de Jesus (Mt 24-25; Mc 13; Lc 17.20-37; 21.5-38),
esse gênero é de longe o mais enigmático na Bíblia. Essa é a história que vê o presente através das
lentes de uma perspectiva celestial, do conflito no mundo, do futuro e do fim dos tempos. A literatura
apocalíptica olha para frente, penetrando nos corredores do tempo e eternidade através de visões,
sonhos e jornadas nos conselhos dos céus. É uma literatura altamente simbólica, por isso que sua
força é muito debatida. Essa literatura lida com o conflito básico entre Deus e o mundo, mas
também conforta aqueles no sofrimento ao lembrar-lhes que um dia Deus restaurará a justiça e
ordem na terra. Por causa da dificuldade de suas imagens e sua relevância ao tópico mais amplo
deste livro, discutiremos esse gênero em alguns detalhes.
No livro de Apocalipse, muitas imagens ecoam conceitos presentes no Antigo Testamento.
De fato, ainda que nenhum verso em Apocalipse apareça com uma fórmula introdutória
marcando seu fraseado como sendo do Antigo Testamento, alusões veterotestamentárias podem
ser encontradas muitas vezes em suas páginas. Tais alusões transmitem uma ligação com o ensino
e a esperança do Antigo Testamento, o que serve para destacar a percepção de que o livro de
Apocalipse detalha o capítulo culminante da história da promessa de Deus.
Argumentar que a literatura apocalíptica é altamente simbólica não é o mesmo que
argumentar que ela é não-referencial. Há uma realidade presente nas imagens, ainda que essas
imagens possam parecer estranhas. De fato, um dos muitos pontos dessas imagens incomuns
(como a meretriz que bebe sangue montando um monstro de sete cabeças em Apocalipse 17) é
comunicar graficamente através de figuras. A figura da meretriz e do monstro retrata o caráter
grotesco do sistema pecador do mundo que o livro de Apocalipse condena. Revela que esse
sistema se opõe a Deus de uma forma terrível, e se manifestará em uma rebelião contra o povo de
Deus. Sua presença necessita da volta de Cristo, que trará sua queda. A figura supostamente
deveria levantar uma resposta como, “que cena feia! Quem iria querer se associar com ela?” Essa
cena retrata a morte dos crentes. Como Deus reagirá? Ele reagirá esmagando-a no julgamento.
Comentaristas debatem sobre como entender imagens apocalípticas, o que elas representam e
como elas se relacionam exatamente com os eventos futuros. Alguns tentam explicar o texto
usando o método da “interpretação literal”. Outros destacam sua qualidade “figurativa”. Porém,
a carência de concordância acerca do que esses rótulos realmente significam mostra a dificuldade
de apelar a eles como a chave para interpretar tais textos bíblicos. As imagens podem
legitimamente representar a realidade em vários níveis de detalhes e de várias formas. Podem ser
específicas, gerais, ou até mesmo representativas, podendo se expandir enquanto mantém uma
unidade básica de sentido. Alguns exemplos textuais específicos podem nos ajudar a definir se
tais rótulos realmente nos ajudam a apreciar a complexidade desse gênero.
Por exemplo, deveríamos simplesmente admitir coisas como helicópteros e armas modernas
para as imagens de gafanhotos, escorpiões e outras figuras em Apocalipse 9.3? As imagens de
Apocalipse sempre são assim tão específicas? Deveríamos assumir que o profeta viu algo como
um filme do futuro em sua visão e então tentou explicá-la de acordo com sua realidade? Ou ele
viu um quadro preciso das imagens que ele dá, imagens que pintam a realidade em vez de
descrevê-la? Qual descrição dessas opções é “mais literal”? É aquela que foca em como poderia ser
para nós, para que expliquemos o que significa em palavras e imagens bastante diferentes dos
termos e imagens do profeta? Ou deveria focar em como pareceria ao profeta e como pareceria
no texto antigo? A resposta correta é que deveríamos buscar entender suas palavras em seu caráter
literário, examinando a imagem no contexto, as imagens do Antigo Testamento e o(s) plano(s)
de fundo que evocam.
Literal versus figurado é a melhor forma de abordar esse debate? Imagens como a prostituta e
o monstro mostram claramente que, pelo menos às vezes, uma descrição representativa, e não um
filme, está presente. As interpretações das várias visões dentro de Daniel também indicam que as
imagens do texto são representações da realidade e evocam as imagens bíblicas primitivas,
enquanto se olha para a futura e genuína vingança do povo de Deus. A mensagem é tanto real
quanto figurada. Ela olha para o futuro não para detalhar tudo que irá acontecer no futuro como
imagens projetadas em um filme, mas, para declarar enfática e artisticamente que tal libertação
ocorrerá de uma forma abrangente. É uma mensagem que lida com a realidade, apesar do uso de
imagens.
Por exemplo, considere os gafanhotos de Apocalipse. Imagine-se sendo um antigo intérprete
desse texto, digamos que um homem do século XVII ou até mesmo o leitor original do primeiro
século, que eram apegados à iminência — você poderia obter uma identificação explícita dos
gafanhotos como sendo helicópteros? Será que o sentido literal desse texto estava totalmente
inacessível a seus destinatários originais? Se esse mundo permanecer até o ano 3000, o que será
que esses gafanhotos irão representar? Poderíamos saber disso agora? É possível que tal
identificação específica seja implicada por tal imagem, mas isso não é muito provável. Se a
interpretação interna desses textos nos ajudarem a desvendá-los e se as lições da história nos
ensinam algo sobre sua interpretação, então devemos ser sensíveis ao caráter literário da sua
retratação da história.
Então, por que se referir a gafanhotos? Talvez a questão dentre várias nesse texto seja retratar
a presença de forças destrutivas que se movem na terra junto a Satanás, sem pretender comunicar
nenhum detalhe a mais acerca do que tais forças podem realmente ser. As imagens suscitam à
figura de Joel 2, através desse paralelismo com as imagens do Antigo Testamento, podemos
chegar ao entendimento de que há uma alusão à chegada do terrível Dia do Senhor, que agora
está relacionado ao retorno de Cristo que traz vindicação final dos santos e julgamento para
todos. A realidade que o texto comunica é que, assim como passar por uma praga de gafanhotos,
tal julgamento é terrível, entretanto, afinal, isso se manifesta na história.
Relembrado nossa ilustração do gato, sabemos que alguém pode comunicar algo em um
nível geral sem precisar preencher todos os detalhes. As imagens apocalípticas parecem
geralmente operar nesse nível básico, desde que suas imagens e interpretações internas pareçam
revelar uma abordagem representativa. A chave para a literatura apocalíptica é determinar as
raízes — em um nível geral — das imagens que são evocadas.
Por outro lado, outras imagens apocalípticas têm uma percepção específica, até mesmo
israelita: os 144 mil (Ap 7), ou a alusão aos 42 meses (Ap 13.5), que é similar à linguagem de
Daniel 12.11. Ou também as 70 semanas de Daniel 9.24-27, onde Jerusalém e o templo são
descritos. Essas promessas feitas aqui ainda não foram realizadas em nosso tempo. Visto que
Deus cumpre o que promete, algo mais em termos de cumprimento pode ser antecipado. Tais
promessas incompletas dentro da literatura apocalíptica aguardam seu cumprimentos. Por outro
lado, em Apocalipse 20, as referências feitas à primeira e segunda ressurreição não são simbólicas,
mas específicas, distintas, sequenciais e descritivas. Esses vários exemplos mostram que alguns
detalhes na literatura apocalíptica não são imagens simbólicas, mas descrevem realidades
concretas no mundo do escritor. Eles parecem apresentar uma cosmovisão onde Israel está
presente, uma vez que muitos deles nos apontam de volta tão vividamente ao mundo e realidade
da esperança do Antigo Testamento.
Ainda assim, outras imagens do Antigo Testamento, embora reutilizadas, têm uma nova
força explicitamente observada no novo contexto. Por exemplo, Gogue e Magogue em
Apocalipse 20 se referem explicitamente aos quatro cantos da terra (v. 8), em vez de à entidades
nacionais no Antigo Testamento (Ez 38-39). Tal mudança da imagem é percebida não
simplesmente ao citar o Antigo Testamento e suas imagens, mas também preenchendo os
detalhes explícitos no novo contexto.
Essa mistura de imagens altamente simbólicas e diretamente descritivas, junto à presença de
novos referentes em alguns outros contextos, é algo que dificulta a interpretação do livro de
Apocalipse, embora se refira claramente à realidade futura. A interpretação da literatura
apocalíptica não é uma questão de uma interpretação literal versus figurativa/alegórica, mas sim
de como identificar e entender a referência da figura em questão. Acontece que, muitas vezes, as
imagens mais bem definidas do Antigo Testamento foram expandidas para cobrir um escopo
mais amplo em Apocalipse, mas não à custa da ênfase original do termo; em vez disso, tal
expansão é uma adição à imagem original. Por outro lado, outros textos simplesmente evocam o
Antigo Testamento e sugerem que, para entender a imagem, basta simplesmente ir ao texto ao
qual se está fazendo referência.
Outro exemplo dessa dificuldade simbólica/literal é o debate sobre a identidade da Babilônia
em Apocalipse 17. Esse texto mostra o quão multifacetadas são às associações numa passagem
apocalíptica e como o foco em apenas um elemento pode limitar sua compreensão. Deve-se
apelar para Jeremias 51 e interpretar literalmente como sendo a reconstrução da Babilônia, de
modo que o centro do sistema mundial no fim dos tempos será onde agora está o Iraque? Ou é
um código para uma reconstrução de Roma como a referência aos sete montes que
Apocalipse 17.9 sugere? Qual contexto nos ajuda a identificar o que está acontecendo — o
Antigo ou o Novo Testamento? As duas associações estão em conflito ou podem formar uma
unidade? Até mesmo os dispensacionalistas não concordaram aqui. Talvez, em última instância,
uma escolha entre os dois contextos não seja necessária. Esse é um dos poucos textos em
Apocalipse que oferece uma interpretação com sua imagem. Como tal, é a chave para esse livro.
A besta em Apocalipse 17 é composta de sete cabeças representando vários reinos (ou muito
provavelmente dinastias nacionais). As imagens representativas características de Apocalipse estão
claramente presentes. Nenhuma nação é a besta, especialmente uma com várias cabeças. A
interpretação nos diz que cinco cabeças caíram, uma existe e uma ainda está por vir por um breve
tempo. Então surge uma oitava figura relacionada a isso, mas distinta da sétima. Aqueles que
tentam limitar o ensino de Apocalipse nesse ponto a um período contemporâneo a João,
referindo essa passagem à história da Roma Antiga, tem um problema terrível de explicar quem
as cabeças na besta representam em termos de reis romanos passados. Não há uma lista histórica
que se ajuste com o período de João! Simplificar a leitura de Apocalipse como uma referência a
história na época de João não parece funcionar; é um documento futurista.
Porém, que tipo de imagem futura está presente? Poderíamos sugerir que essa imagem se
refere a uma varredura da história. A besta figura cada grande dinastia dos tempos bíblicos:
Egito, Assíria, Babilônia, Medo-Pérsia e Grécia são os cinco reis caídos. O sexto, Roma, é “o que
existe”, assim honrando a alusão às sete colinas em Apocalipse 17.9. O sétimo, o que ainda está
por vir por um curto tempo, pode também ser de uma região não identificada no texto, como
também é o oitavo rei, a besta. Se perguntarem por que o texto pula alguma das dinastias do
mundo, tais pulos de períodos e tempo não são incomuns na profecia. A história simplesmente
busca a retomada do programa de Deus em associação com o retorno de Cristo.
O princípio de ler detalhes dessa forma é um estudo cuidadoso e contextual das imagens
dentro do texto. Assim como em outros gêneros, tal leitura honra a interpretação no contexto,
com o contexto imediato tendo prioridade. Tomando a imagem como um todo, o intérprete
pode ver que cada cabeça representa um novo período localizado em uma capital diferente. O
centro do império do mundo está sempre mudando, ainda que cada era sucessora esteja
organicamente relacionada às anteriores.
Dentre muitos pontos da imagem, destacamos três. Primeiro, há um relacionamento
genealógico e orgânico entre os vários impérios dinásticos do mundo que têm permanecido em
oposição a Deus. De fato, a imagem da “besta do abismo” sugere um apelo à imagem do Leviatã
do Antigo Testamento, o oponente de Deus, uma imagem do mal consumado registrado nas
Escrituras. Esse conflito não é somente no âmbito cósmico, mas tem sido contínuo em duração!
Essa conexão também levanta o ponto de que o conflito transcende os oponentes humanos.
Como Paulo diz em outro contexto, nossa luta não é contra carne nem sangue (Ef 6.12).
Segundo, um dia a “besta” se manifestará em uma rebelião mundial horrível e culminante
contra Deus e seu povo. A morte estará em todo canto e a besta e a meretriz assassinarão os
cristãos. Tal leitura se encaixa no escopo cósmico de outra imagem no livro também. Aqueles
que associam essa imagem com a Babilônia estão certos, por ser a grande figura do Antigo
Testamento e por possuir tal poder. Por isso que a besta é chamada de Babilônia. Aqueles que a
associam com Roma também estão certos porque Roma era a manifestação vigente dessa besta no
tempo de João, o escritor. E, ainda, a imagem da besta nos lembra de que sua existência real é de
muito tempo atrás. Então, tanto Roma como Babilônia se aplicam, sendo a besta também mais
do que qualquer identificação nacional. Porém, é provável que nem Roma, nem a Babilônia
sejam a localização final dessa oposição mundial, dada a natureza mutável da localização das eras
representadas pelas cabeças da besta. O texto tanto é específico quanto indefinido ao mesmo
tempo. Ele descreve o que a besta é especificamente, mas não onde residirá em última instância.
Terceiro, há uma relação orgânica entre o mal na geração de João e sua culminação no fim.
Todo aquele que se identifica com Deus é advertido a não se identificar com o que é
representado nas maldades da besta. O que é requisitado no ínterim, à luz do que o futuro traz, é
fidelidade a Deus e seu povo, já que a vindicação última dos santos virá. A mensagem se aplica à
audiência de João e ao futuro.
Essa terceira leitura pode ser incorreta. De fato, identificar a besta com a reconstrução da
Babilônia ou Roma aqui pode estar correto, como também é possível outra interpretação do
texto. Contudo, nossa leitura exige atenção e reflexão, pois, ela tenta lidar com a imagem a partir
do contexto da própria interpretação do livro, junto com uma sensibilidade ao gênero
apocalíptico. Admitimos que a imagem aqui é difícil, mas o objetivo da interpretação é ser tão
fiel quanto possível à imagem em seu contexto. Independentemente de quem está certo sobre a
questão da localização, deveríamos ainda argumentar os três temas — o caráter genealógico da
besta, a rebelião final mundial que ela traz e a conexão entre a besta e o presente — estes são os
pontos mais importantes na passagem, aqueles que possuem diferentes detalhes podem também
concordar com nossa declaração dessas preocupações centrais.
Todos os gêneros literários considerados acima nos revelam a vasta variedade de terrenos que
a Bíblia possui. Devemos entender como cada gênero literário opera para que possamos estudar
os textos corretamente. Acima de tudo, devemos nos manter sensíveis para cada contexto no qual
um texto está. Devemos estar sensíveis aos quatro níveis de contexto ao interpretar a Bíblia — o
histórico, o gramatical, o literário e o teológico. A interação desses contextos levanta os assuntos
das diferentes formas de ler o texto e como relacionar diferentes passagens entre si.

FORMAS DE LER A BÍBLIA E RELACIONAR DIFERENTES TEXTOS


Pensar acerca do processo de leitura é considerar como alguém deveria lidar com o texto. A partir
do que foi dito, uma coisa deveria estar bastante clara: é importante deixar cada contexto de uma
passagem falar ao seu significado. Em particular, é crucial que cada interpretação seja sensível à
categoria de gênero e temática literária, antes de integrá-la com a mensagem de outros textos em
outros contextos. Isso simplesmente permite que a história da Bíblia progrida, permanecendo
sensível a como a história é contada. Também é sensível a qual tipo de terreno que uma
determinada parte da história está usando para avançar a jornada através da mensagem.
Se não formos cuidadosos, podemos ler um texto de uma forma que dilui a mensagem de
outro texto. Algumas vezes, o que acontece é que um texto anterior é tomado de forma tão clara
que um texto posterior simplesmente é lido em seus termos. Porém, isso pode nivelar por baixo o
significado de tal forma que a progressão na história seja perdida. Quando o progresso ou
desenvolvimento da história ocorre, ele é indicado por outras características no contexto posterior
que mostram o desenvolvimento do tema, ainda que alguns termos do texto se conciliam com os
termos usados anteriormente nas Escrituras (por exemplo, Gogue e Magogue em Ap 20). Porém,
também há outra forma de nivelar o texto por baixo. É argumentar que o texto posterior
redesenha as linhas do anterior de tal forma que o significado do segundo texto é o que o
primeiro sempre significou. O efeito desse tipo de leitura é também uma redução da
profundidade da mensagem bíblica. Essa abordagem também faz perder o sentido de progresso
na história.
Um exemplo de como isso ocorre em ambas as direções é encontrado quando comparamos
as diferentes maneiras de lidar com o tema do reino de Deus no Novo Testamento. Alguns,
percebendo textos que claramente situam o reino de Deus no futuro, argumentam que esse tema
se refere somente ao que o Antigo Testamento o retratou para ser, um reino terreno. Sobre esse
alicerce, alguns comentaristas alegam que ou não há forma presente do reino hoje, ou que a
presente forma celestial do reino não tem nada a ver com a promessa do reino do Antigo
Testamento. Essa posição diz que argumentar em favor de uma forma presente do reino é
contradizer os textos do Antigo Testamento sobre sua chegada no futuro. Essa abordagem da
escatologia compreende o reino como residindo totalmente no futuro. Essa limitação é o erro de
ler o Novo Testamento exclusivamente à luz do Antigo Testamento.
Por outro lado, alguns têm argumentado que os textos sobre a presença do reino significam
que o reino já chegou. Isso tem sido chamado de escatologia realizada. A promessa do futuro
veio completamente agora; Jesus é a presença do cumprimento, então o que ele traz deve vir em
totalidade. Os textos sobre a futuridade do reino não passam de extensões do que já está aqui.
Essa realidade presente é simplesmente projetada em direção à eternidade. Os textos do Antigo
Testamento sobre o reino são então focados em, se não limitados a, seu significado nessa forma
de reino vigente. Essa abordagem erra ao ler o Novo Testamento voltado para o Antigo
Testamento.
A característica bíblica de ver os eventos a partir de uma variedade de perspectivas nos mostra
que podemos interpretar a partir de uma perspectiva “tanto/quanto” sem negar qualquer lado
dessa relação presente-futuro. É possível obter um cumprimento “já” em alguns textos e ao
mesmo tempo perceber que o cumprimento “ainda não” existe em outras passagens. De fato, em
alguns textos, o cumprimento pode ser inicial ou parcial, se opondo a ser final ou total. Como
resultado, podemos falar de escatologia inaugurada, sem negar o que o Antigo Testamento indica
acerca do reino terreno futuro ou o que o Novo Testamento afirma acerca da chegada do reino
como parte do cumprimento na primeira vinda de Jesus. Chamar tal escatologia de inaugurada é
somente dizer que o progresso de cumprimento começou; há mais — ainda muito mais — por
vir.
Tais tensões de “já e ainda não” não são surpreendentes. Elas residem na nossa descrição de
salvação em si. Sou salvo agora quando confio em Jesus, mas Deus irá completar essa salvação no
futuro. Em um sentido, a salvação chegou; em outro, espero por ela. Nos casos tanto da salvação,
quanto do reino de Deus, devemos prestar atenção para qual lado do relacionamento está sendo
destacado em cada texto observado. Perceber a presença de um aspecto do relacionamento não é
negar a outra parte da sua realização. O ensino de que “já e ainda não” liga o plano de Deus em
um todo unificado. Ele permite ver tanto a continuidade quanto a descontinuidade no decorrer
das promessas de Deus.
Há outra dimensão de leitura que precisa de atenção: uma história pode ser lida a partir de
diferentes ângulos, sendo traçada em diferentes quantidades de contextos para ser contada. A
melhor ilustração para esse conceito é pensar quando lemos um mistério ou assistimos um filme
sobre um assassinato. Na primeira abordagem, estamos observando os eventos sem termos
conhecimento do fim, nos vemos no drama de tentar descobrir “quem é o culpado”. A história se
revela um passo de cada vez, as perspectivas e expectativas são limitadas por um conhecimento
parcial. Somente no fim da história é que todas as peças se juntam. Entretanto, se formos bons
observadores, poderemos descobrir a solução do crime antes da história se desenrolar
completamente.
Por outro lado, ao lermos a história ou ver o filme pela segunda vez, veremos de forma bem
diferente. Agora toda a tensão da história é reduzida, mas também perceberemos conexões que
talvez não tenhamos visto na primeira vez. Perceba que a história é exatamente a mesma, mas é
percebida e avaliada em termos diferentes por causa do melhor conhecimento ou por causa do
diferente ângulo tomado ao ver a história como um todo. Ambas as maneiras de relacionar a
história são legítimas formas de encontrá-la e considerá-la. Retornando à nossa ilustração
anterior, é um pouco como avaliar a eleição de Clinton em 3 de novembro de 1992 versus o dia
de eleição em 1996, ou qualquer outra data posterior na história.
Agora, quando se pensa acerca do evento e do texto nas Escrituras, pode-se pensar através do
mesmo tipo de analogia. Uma diferença de abordagem pode impactar como o texto é lido. Se
observarmos o evento das Escrituras em seu contexto imediato como evento, então o veremos
sendo retratado em uma perspectiva limitada de como foi originalmente experimentado. Muitas
vezes, as reações das personagens refletem uma perspectiva que é menos compreensível do que a
perspectiva que o leitor das Escrituras hoje em dia possui, já que o leitor hoje sabe toda a história.
As conexões, apesar de terem o potencial para existir, não eram claras em seu período original.
De fato, os eventos geralmente parecem desarticulados e expectativas se encontram com surpresas
somente ao longo do caminho. Porém, quando alguém examina a história à luz de todos os
eventos, as conexões podem emergir mais explicitamente e podem ser estabelecidas com maior
clareza. Coisas que pareciam distintas à primeira vista têm uma relação mais próxima do que
alguém poderia ter inicialmente imaginado. Isso é como ver o filme pela segunda vez.
Independente de qual ângulo alguém tome ao ver a história, ambos os ângulos são formas
apropriadas de ver o evento.
Nossa ilustração anterior de Gênesis 3.15 com a imagem do descendente de Eva e a serpente
é um exemplo dessa distinção. No contexto próximo de Gênesis, a ênfase seria o caos que o
pecado introduziu na criação, enquanto no contexto da história canônica essa tensão é resolvida
através da obra de Jesus Cristo.
Pode-se também sugerir que isso ajuda na compreensão da diferença de perspectiva entre os
Evangelhos sinóticos e João. Os sinóticos contam a história de Jesus ao destacar como os
discípulos experimentaram seu ministério. A ênfase está na falta de entendimento deles e a luta
que tiveram em compreender quem Jesus era. Contam a história de Jesus “da terra para cima”,
trabalhando com categorias que o leitor pode se identificar, mostrando então como Jesus vai
além dessas expectativas. É como ler a história da primeira vez.
João escreve a partir de outro ângulo, destacando a história à luz do seu entendimento total
acerca de Jesus. De fato, em certos pontos, ele mostra para o leitor que no tempo dos eventos os
discípulos não entendiam o significado de certas ações (Jo 2.22; 12.16). Somente depois da
ressurreição de Jesus é que eles puderam juntar as peças de tal forma que entenderam quem Jesus
realmente era. A forma de João relatar a história é “do céu para baixo”, começando seu texto
exaltando Jesus como o Verbo Encarnado desde o início. É interessante como os cristãos
geralmente gostam mais do Evangelho de João por conta de sua natureza explícita, enquanto
descrentes geralmente se relacionam melhor com Mateus, Marcos e Lucas, por poderem se
identificar mais facilmente com o retrato de Jesus que é dada por esses livros.
Agora, o que é importante aqui é que cada ângulo em questão é legítimo e carrega um
aspecto da mensagem canônica total. As Escrituras complementam essa mensagem, não por ter
um Evangelho, mas quatro, com retratos existentes a partir de vários ângulos. Um leitor sensível
irá deixar cada história e ângulo falar por si mesmo em vez de nivelá-los todos por baixo em uma
mensagem onde cada texto diz exatamente a mesma coisa. Porém, se alguém procura tal leitura
unificada e canônica, ela é feita com sensibilidade à contribuição de cada peça ao todo. Em vez
de dispor cada relato um em cima do outro para fazê-los dizer uma mesma coisa, eles são
colocados em união e encaixados como um quebra-cabeça, para que assim o quadro total, com
todos os seus elementos, possa ser, então, observado.

Três Níveis de Leitura. Em resumo, os textos da Bíblia podem ser lidos de três formas.
Primeiro, eles podem ser lidos em um nível histórico-exegético, no qual o assunto é o contexto do
evento visto como uma unidade bastante auto-contida. Ainda que essa perspectiva seja limitada,
ela pode ter valor por destacar o impacto imediato do evento. A sensibilidade a esse nível de
leitura preservará o senso de progresso na história e permitirá que se aprecie como a história se
constrói à medida que o tempo passa e a revelação progride.
Segundo, um texto pode ser lido no contexto do livro todo no qual está inserido. Podemos
chamar isso de leitura bíblico-teológica (não a confundamos com a forma normal que alguém fala
de teologia bíblica, que geralmente se refere a todos os escritos de um dado escritor ou período).
Para colocar de outra forma, podemos ler Romanos tentando lidar com ele como um leitor
romano poderia ter lidado, isto é, sem assumirmos que o leitor romano tinha acesso a
1 Coríntios (ou a qualquer outra carta de Paulo) para ajudá-lo a descobrir o significado de Paulo.
Romanos foi originalmente concebido para ser autossuficiente. Agora, geralmente esse segundo
nível de leitura estará muito perto do significado do primeiro nível, mas em livros longos isso não
será o caso. A promessa da descendência de Abraão nos primeiros capítulos de Gênesis
concentra-se em Isaque. Para Abraão, o aspecto mais importante para promessa da descendência
foi o seu começo. Somente quando a história de Gênesis se move através das gerações é que Jacó
e seus filhos emergem como a descendência. Somente à luz de todo o Gênesis é que vemos a
nação de Israel como a descendência. A reorientação da descendência unicamente sobre Jesus não
está explícita em lugar nenhum no contexto de Gênesis. Somente o movimento da história da
promessa além de Gênesis começa a mostrar a possibilidade para tal estreitamento no conceito
do rei como representante da nação. Porém, esse movimento nos leva à terceira forma de ler o
texto bíblico; no nível canônico-sistemático. Essa leitura toma a passagem à luz do todo, quer seja
através de tudo de que um autor as escreveu, das lentes de um dado período, ou de uma forma
mais abrangente, à luz do todo do cânon. Agora, a história da descendência assume uma
dimensão ampliada, conforme Jesus se torna o descendente que traz a promessa. A promessa de
Abraão está ligada com a de Davi (veja Lc 1-2 [esp. 1.31-35, 67-79]). Jesus como Cristo — o rei
prometido da linhagem de Davi — cumpre as promessas a Abraão e concede o Espírito de Deus.
Jesus traz a manifestação inicial do reino (veja o pronunciamento de João Batista “do que está
por vir”). Ao ligar o Espírito e o reino, a esperança davídica real está entrelaçada à promessa do
Espírito na Nova Aliança, assim como à esperança de Abraão. A discussão inteira assume um
contexto de promessa e cumprimento, então é a sua concretização da promessa fundamental a
Abraão que está sendo percebida. Mesmo assim, tendo Jesus como o ponto de virada, nós ainda
não terminamos. Pois, aqueles que são “de Cristo” também são a “descendência”, como
Gálatas 3.29 nos mostra. A Bíblia ama dar muitas dimensões para um único tema. Descobrir
essas dimensões é como a alegria e o maravilhar que alguém tem ao ver um raio de luz se dividir
em muitas cores ao passar por um prisma.
Outro tema que se aproxima desse tipo de leitura dinâmica é o desenvolvimento dos textos
acerca do reino na Bíblia. A jornada se move a partir da sua formação na promessa para Israel e
Davi para sua culminante descrição em termos do milênio e então os novos céus e nova terra. O
Antigo Testamento na maioria das vezes discute a promessa de um reino na terra (2Sm 7.8-16),
com a exceção de breves destaques em Daniel que sugerem uma origem celestial (esp. Dn 2 e 7).
O Novo Testamento desenvolve esses elementos celestiais de esperança (Ef 2.4-7; Fp 3.20;
Hb 12.22-24), culminando no milênio e nos novos céus e nova terra (Ap 20-22). Quando
Apocalipse é lido de forma sistemático-canônica, sua mensagem é refratada de volta aos textos do
reino do Antigo Testamento para mostrar que o reino prometido é cumprido em parte dentro do
Milênio e parte nos novos céus e nova terra. As promessas do Antigo Testamento que ainda não
se cumpriram, serão cumpridas no futuro. Como o apóstolo Pedro sugere, há muitos detalhes
acerca do ministério de Jesus e a decorrência da promessa declarada no Antigo Testamento (At
3.21). Para apreciar como a história inteira se desdobra e quais promessas pertencem a seu lugar,
deve-se ler o texto histórica-exegeticamente, bíblica-teologicamente e canônica-sistematicamente.
Todos os três níveis de leitura são apropriados, ainda que, em última instância, a leitura
canônica-sistemática ajunte as peças da mensagem bíblica. Para considerar o quão
cuidadosamente o plano de Deus é unificado, como o cumprimento opera e como as partes da
Bíblia se relacionam entre si, devemos nos dirigir para nosso tópico final de interesse — a
variedade de formas em que a promessa e o cumprimento se relacionam. Quais são as várias
formas que o Novo Testamento usa o Antigo?

O Uso do Antigo Testamento no Novo. Nós já dissemos muito do que é preciso para essa
discussão. Como tem sido esclarecido, promessa e profecia nem sempre são uma questão de
textos proféticos exclusivamente diretos, onde a passagem do Antigo Testamento se refere
somente a um evento ou pessoa em um contexto. O cumprimento em Jesus pode ser preparado
ao se estabelecer o padrão da atividade de Deus em uma era, e então reproduzi-lo
posteriormente. Algumas vezes, tais reproduções ocorrem mais de uma vez. Os conceitos como o
Servo de Deus, o Justo Sofredor dos Salmos, tanto é profético quanto tipológico. No projeto
“padronizado” do evento reside a profecia. Porém, a profecia é somente um subconjunto no
tópico mais amplo de como o Novo Testamento usa o Antigo.
Há diferentes tipos de usos ou combinações de usos: alguns são proféticos, outros são
ilustrativos, enquanto outros são explanatórios. Alguns textos misturam essas categorias. Alguns
textos como Daniel 7.14 são diretamente proféticos, tendo em mente somente alguns referentes.
Por exemplo, há somente um “Filho do Homem”, que retorna no julgamento.
Textos que refletem padrões podem ser chamados de tipológicos-proféticos. Eles apresentam a
realização do padrão ou o surgimento de alguém que cumpra novamente um dado papel. Isso o
faz um tipo. Porém, a progressão normalmente associada com o cumprimento do padrão de
Jesus revela seu caráter profético. A progressão significa que Jesus o cumpre a um nível maior do
que outros antes dele, apontando para sua única e, geralmente culminante, posição dentro do
padrão. A maioria das promessas reais atreladas aos descendentes de Davi culminam em um
cumprimento progressivo em Jesus. Por exemplo, o uso do Novo Testamento dos Salmos 45, 89,
110, 118 e 132 estão situados aqui. O que era esperado de qualquer rei da linhagem de Davi foi
realizado (ou será realizado) em Jesus. O fato de que Jesus cumpre tais promessas de uma forma
única revela que ele é a chave e culminação do padrão. João Batista como um profeta-Elias é
outro exemplo de tal uso. De fato, um número significativo de usos do Antigo Testamento no
Novo Testamento se adequam nessa categoria.
Outros textos fazem meramente uma comparação ilustrativa. Eles envolvem um uso
analógico. Quando Paulo alude ao Êxodo em 1 Coríntios 10.1-13, ou quando o autor de
Hebreus relembra o conceito de descanso no Salmo 95, eles estão fazendo comparações entre os
atos divinos antigos e os atuais.
Alguns textos se relacionam com a promessa ao observar a sua realização ou o seu término.
Eles servem para explicar os relacionamentos dentro da promessa.
Alguns textos afirmam o cancelamento da realização anterior. A lei da circuncisão é
explicitamente cancelada como os textos em Atos 15 e Gálatas indicam.
Porém, outros textos indicam substituição, pelo menos por um dado período. A parábola dos
trabalhadores indica que a vinha da promessa é dada para outros, sendo tomada daqueles que a
cultivaram, a saber, a nação de Israel. Porém, a natureza de tal substituição precisa ser definida
por textos adicionais sobre esse tema. Romanos 11 esclarece que virá um tempo no futuro no
qual Israel é enxertado novamente, e Atos 3.18-21 deixa claro que quando Jesus retornar, ele
completará as promessas proféticas remanescentes do Antigo Testamento.
O tipo de qualificação significa que alguns temas e textos possuem uma relação
complementar. A inclusão adicional de alguns na promessa não significa que os destinatários
originais estão dessa forma excluídos. A expansão da promessa não significa o cancelamento de
comprometimentos anteriores que Deus fez. A realização da esperança da Nova Aliança hoje para os
gentios não significa que a promessa feita a Israel em Jeremias 31 foi abandonada. O
cancelamento da promessa somente ocorre quando ele é explicitamente declarado. Os capítulos 5
e 6 desta obra desenvolverão esse ponto.
Dada a variedade de possíveis formas que o Antigo Testamento pode ser citado dentro do
Novo Testamento, o relacionamento entre os testamentos em dados temas devem ser lidados
caso a caso. As regras que se aplicam em todo caso a despeito de cada texto esvaziam a discussão e
ignoram a variedade de possibilidades. Nessa área, um lado não se encaixa em todos os casos.
Os textos nem sempre estão associados por meio de uma identificação simples, uma vez que
o progresso da promessa, as questões de gênero e a presença de temas desenvolvidos (por
exemplo, descendência) permitem que as ideias se aprofundem e se desenvolvam. Nem sempre a
relação é uma questão de substituição. Por exemplo, a natureza das promessas e o programa de
Deus proíbem substituir meramente a igreja por Israel (At 3.18-21). Uma simples analogia nem
sempre funciona, porque alguns textos desenvolvem temas em contextos nos quais a promessa e
o cumprimento claramente residem (At 2; Hb 8-10). Os textos frequentemente possuem uma
relação complementar (geralmente ao apelar para o padrão), para que realizações posteriores
desse padrão possam ocorrer quando Jesus retornar. O cumprimento pode ser “já e ainda não”,
isto é, parcial e então completo. Para resolver se o cumprimento é inaugurado, realizado, ou
ainda antecipado, deve-se estudar cada passagem com sensibilidade aos vários aspectos que
contribuem à mensagem textual: histórica, gramatical, literária e teológica. Cada passagem deve
ser livre para falar em seus próprios termos e deveria ser estudada com sensibilidade aos vários
ângulos a partir dos quais ela pode ser lida. Devemos também estar cientes das várias formas que
os textos podem ser associados um com o outro.

CONCLUSÃO
Interpretação é o produto de como falamos ao texto e como ele fala conosco. Entretanto, o texto
ocupa uma posição privilegiada. Colocamo-nos em uma posição de submissão a ele. O papel das
Escrituras é nos transformar diariamente à medida que nos dirigimos e procuramos ser desafiados
por ela. Porém, nosso diálogo não ocorre no vácuo, nem nossas deliberações deveriam ser
privadas. Outros leem o texto conosco. Apesar de nem sempre concordarmos com os outros no
que a Bíblia diz, essas diferenças refletem as nossas limitações de entendimento. Algumas vezes,
nosso diálogo com os outros nos ajuda a ver nossos próprios pontos cegos. Como as Escrituras
dizem: “o ferro com o ferro se afia” (Pv 27.17). Essas realidades exigem humildade, mesmo que
procuremos ganhar uma perspectiva ou convicção a partir da verdade das Escrituras. De fato, o
Espírito trabalha para convencer o mundo e encorajar seus filhos.
No fim, as Escrituras contam a história da busca de Deus pela humanidade. A Bíblia
apresenta não simplesmente sua mensagem, mas sua ação em nosso favor. Em sua mensagem, ele
declara seu relacionamento e seu envolvimento conosco. Essa mensagem contém uma promessa,
revela a possibilidade de relacionamento e garante a responsabilidade humana em relação a Deus.
Os textos das Escrituras também revelam a sua autoridade e o seu programa. A atividade de Jesus
Cristo permanece no seu centro. Ele é o possuidor final da promessa e o mediador da bênção.
As Escrituras constroem uma cosmovisão. O mundo não é simplesmente sobre uma série
aleatória de fatos, doutrinas ou proposições. Nem é sequer uma figura de grupos diferentes, todos
com igual acesso a Deus. Não há relativismo nas Escrituras acerca de como alguém entra em um
relacionamento com Deus. Em vez disso, a Bíblia fala de relacionamentos, quer saudáveis ou
deficientes, e chama o leitor a entrar na bênção nos termos de Deus através de Jesus, ou será
deixado de fora, sujeito à ação de Deus na história. Em última instância, as Escrituras são sobre a
promessa de Deus realizada em Jesus. Todos são responsáveis diante daquele que é nosso
Criador. Na mensagem das Escrituras, encontramos como Deus criou e entrou no mundo da
humanidade. Deus nos diz como ele o fez, faz e planeja fazer. Ele nos convida para nos juntar a
ele nessa jornada. A tarefa da hermenêutica é ouvir cuidadosa e humildemente sua voz, para que
possamos caminhar com ele.

1. Vern S. Poythress, Understanding Dispensationalists (Grand Rapids: Zondervan, 1987), p. 79.


PARTE TRÊS
EXPOSIÇÃO
por Craig A. Blaising
CAPÍTULO 4

DISPENSAÇÃO NA TEOLOGIA BÍBLICA

A ideia de que a história da Bíblia é dividida em diferentes dispensações não foi inventada pelos
dispensacionalistas. Na verdade isso tem sido reconhecido a muito tempo na teologia cristã. A
própria Bíblia em si usa a palavra dispensação ao falar sobre diferentes arranjos que Deus
instituiu na história no processo de trazer a salvação ao mundo.

A PALAVRA DISPENSAÇÃO
Estamos usando a palavra dispensação para traduzir a palavra grega oikonomia. Tertuliano, um
cristão norte-africano do terceiro século que definiu muito do vocabulário para a igreja de língua
latina, foi quem usou a palavra latina dispensatio para traduzir oikonomia. A partir deste termo
latino que é derivada a nossa palavra.

Sentido Geral. Na cultura grega antiga, um oikonomos era um servo encarregado de uma casa.
Oikonomia se referia a seu trabalho ou atividade de gerenciar a casa. Entretanto, essas palavras
logo foram usadas mais amplamente para qualquer tipo de gerenciamento ou administração. Não
somente um gerente de propriedade, mas um cozinheiro poderia ser designado como um
oikonomos. Cargos públicos e políticos, dos procuradores romanos aos tesoureiros da cidade, até
mesmo gerentes de casas de banho eram tratados por esse título.1
A atividade de gerenciamento de um oikonomos geralmente envolvia transações financeiras
que exigiam uma responsabilidade cuidadosa dos fundos recebidos e desembolsados. Essa
referência ao dinheiro e às finanças resulta na nossa palavra economia que translitera a palavra
grega oikonomia. As palavras mordomo e mordomia, que também traduzem oikonomos e
oikonomia, carregam essa noção de responsabilidade financeira, enquanto expandem o sentido de
responsabilidade para questões não financeiras também.
Na tradução grega do Antigo Testamento (a Septuaginta), o indivíduo que era encarregado
do palácio do rei de Judá era chamado de oikonomos (veja 1Rs 4.6; 16.9; 18.3; 2Rs 18.18, 37). E
sua oikonomia, sua responsabilidade gerencial, se estendia sobre tudo que estava relacionado ao
palácio, da manutenção e do mobiliário, até a acomodação de convidados e a coordenação de
atividades diárias. Sua obrigação principal era para com o rei, ele deveria ter certeza que o palácio
estava adequado às necessidades do rei e da sua família. Se seu serviço fosse inaceitável, uma
mudança na oikonomia ocorria com a nomeação de um novo oikonomos (Is 22.15-25).
No Novo Testamento, encontramos evidência do uso geral de oikonomos e oikonomia. Em
Romanos 16.23, Paulo transmite as saudações de Erasto, o oikonomos da cidade de Corinto. Isso
provavelmente significa que ele era o tesoureiro ou o oficial financeiro chefe da cidade. (O fato
de que ele era de Corinto testifica o quão rapidamente o cristianismo estava penetrando na
sociedade romana.)
Jesus usou esses termos em algumas de suas parábolas. Em Lucas 12.42, ele introduz uma
parábola acerca de um mordomo (oikonomos) que era responsável por supervisionar todos os
outros servos que estavam no campo. O desempenho do mordomo estava sujeito a uma revisão a
qualquer momento por seu mestre, com a possibilidade de promoção por um trabalho bem feito,
ou punição e até mesmo demissão por negligência de dever. Em Lucas 16.1-13, Jesus conta a
história de um administrador (oikonomos) infiel que é chamado para uma avaliação pelo dono
dos negócios. A avaliação dizia respeito à oikonomia do gerente, isto é, a forma pela qual ele
conduziu o negócio, incluindo uma auditoria dos livros. O resultado foi uma mudança na
oikonomia com a demissão desse gerente em particular e provavelmente a nomeação de um novo.
A partir dessas várias fontes, podemos resumir o uso geral de oikonomos como qualquer tipo
de gerente ou administrador. O termo oikonomia, que é traduzido para dispensação, geralmente,
se refere à atividade de um gerente e o acordo organizacional global no qual essa atividade foi
realizada. Seu sentido pode adequadamente ser transmitido por palavras como administração,
arranjo, ordem, plano e gerenciamento.

Sentido Teológico. As parábolas de Jesus acerca dos mordomos e suas responsabilidades não são
somente histórias acerca da dificuldade de encontrar boa ajuda. Jesus contou parábolas para
ensinar acerca do reino de Deus que estava porvir. Elas falavam de um relacionamento entre
Deus e Israel (especialmente os líderes de Israel) que será cobrado nos julgamentos precedentes
do reino porvir. Por meio desse ensino, a palavra oikonomia, que transmitia somente a noção de
um arranjo de gerenciamento, adquiriu um sentido teológico — isto é, ela passou a designar a
relação entre Deus e o mundo.
O apóstolo Paulo usa tanto oikonomia quanto oikonomos para descrever a relação de Deus
com o mundo. A maioria desses usos se refere ao próprio ofício de Paulo como apóstolo de Jesus
Cristo. Deus, o Mestre do mundo, confiou a Paulo, juntamente com os outros, a
responsabilidade apostólica de proclamar uma nova revelação. Paulo se referiu a essa revelação
como o mistério (ou mistérios) de Deus e Cristo (1Co 4.1-2; Ef 3.2-6; Cl 1.25-29). Os oficiais
da igreja também poderiam ser vistos como parte desse arranjo ministerial (um bispo deveria ser
pensado como um “despenseiro do Deus” [Tt 1.7]). E Pedro estende o conceito para incluir
todos os cristãos (todos eles eram despenseiros, oikonomoi, da graça de Deus [1Pe 4.10]).
Em Efésios 3.9, Paulo fala da dispensação (oikonomia) do mistério de Cristo. Lendo isso à
luz dos versos 4-6, vemos que esse uso da palavra dispensação se refere a uma nova ordem, um
novo arranjo no relacionamento geral entre Deus e a humanidade. Aqui está o sentido teológico
de dispensação que é mais importante. É mais amplo que outros sentidos teológicos (a noção das
responsabilidades do ministério individual), enquanto os inclui nesse escopo. O relacionamento
entre Deus e os seres humanos deveria ser pensado como uma dispensação, uma gerência de
relacionamento a qual Deus instituiu. Também é a dispensação que é nova no tempo, tendo sido
preparada através da morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo, substituindo o arranjo que
estava previamente em efeito. Isso, é claro, implica que o arranjo anterior deveria também ser
pensado como uma dispensação, uma implicação que Paulo torna explícita em Gálatas 3.23-4.7.
Como Paulo discute essa nova dispensação em suas cartas, três coisas se destacam acerca dela:
(1) ela é estruturada por certas características de uma nova aliança que Deus inaugurou para
cumprir e substituir a aliança que fez com Israel no Sinai; (2) nenhuma distinção de raça, gênero
ou classe é traçada na concessão das bênçãos a partir dessa nova aliança — elas são dadas a todos
os que creem em Jesus Cristo; e (3) a nova dispensação está sendo revelada na comunidade que se
reúne no nome de Jesus Cristo, a igreja.
Teremos mais a dizer acerca das especificidades dessa dispensação posteriormente nesse
capítulo e nos capítulos que se seguem. Porém, precisamos perguntar: qual é o significado de
chamar o relacionamento de Deus com seres humanos de dispensação? Como o sentido geral de
oikonomia transmite seu sentido teológico? Ou para perguntar de outra forma, o que uma
dispensação implica acerca do relacionamento de Deus ao mundo?
Antes de tudo, falar dessa forma — como Paulo faz — enfatiza a soberania de Deus sobre os
assuntos humanos. Assim como o senhor de um campo, o dono de um negócio, ou o CEO de
uma corporação exerce a autoridade fundamental de projetar e estruturar seu negócio, e contratar
e apontar pessoas para os níveis delegados e posições de autoridade, assim Deus é soberano na
concepção e organização de assuntos da terra. “Deus está dispensando ou administrando os
assuntos [do mundo] de acordo com sua própria vontade.”2
Em segundo lugar, enxergar a relação entre Deus e o mundo como uma dispensação enfatiza
o propósito e planejamento geral. A atividade gerencial tem alguma visão ou plano, algum
propósito em vista. Da mesma forma, qualquer dispensação que Deus institui com seres
humanos tem um propósito ou projeto interno. Assim como uma gestão comunica sua visão
para transmitir seu propósito, nós vemos que Deus revela a estrutura e o projeto da dispensação
que ele institui. Porém, há mais. Negócios e outras organizações podem de tempos em tempos
passar por reestruturações e reorganizações. Há muitas razões porque isso pode acontecer, porém,
não acontece acidentalmente. Alguns propósitos gerais guiam o processo de reestruturação para
levar o negócio adiante. Da mesma forma, a Bíblia fala de Deus reorganizando o relacionamento
dos seres humanos para si mesmo, mudando de dispensação para dispensação. Há um propósito
divino que guia esse processo da mudança dispensacional, apontando para um objetivo final que
Deus tem em vista.
Terceiro, uma dispensação é um conjunto ordenado de relacionamentos. Ao estudar qualquer
dispensação particular, é necessário conhecer quais são os relacionamentos fundamentais que
formam sua estrutura distintiva. Em uma modelo de negócios, isso significa saber qual é a
estrutura de gerenciamento, como é o plano organizacional, o que os vários departamentos fazem
e como a própria descrição de um trabalho se encaixa nesse arranjo geral. Da mesma forma, ver o
relacionamento de Deus com a humanidade como dispensação implica ordem e estrutura na
forma como as pessoas se relacionam com ele e umas com as outras. Quando Paulo expõe a
presente dispensação, a posição de gerenciamento principal é ocupada por Jesus Cristo. Há
mordomos que ele designou (apóstolos e outros ministros) e dons que ele concedeu pelo Espírito
Santo (de tal modo que todos os crentes são mordomos da graça de Deus). Porém, a ênfase é
primariamente colocada sobre o fato que, em contraste à dispensação anterior, o arranjo presente
coloca todos os crentes, a despeito de contextos culturais e políticos, no mesmo nível como
membros da família de Deus.
Quarto, juntamente com a estrutura de relacionamentos vêm as responsabilidades e os
requisitos. Quando essas responsabilidades são realizadas e os requisitos cumpridos, o plano para
essa dispensação é cumprido. Em compensação, isso contribui para a proposta geral que guia a
história das dispensações. Em relação à presente dispensação, o Novo Testamento ensina que
todos nós em Cristo temos responsabilidades de mordomia que nos foram confiadas por Deus.
Os ofícios da igreja tais como aqueles do apóstolo ou bispo (pastor) são mordomias
especialmente mencionadas nas Escrituras. Porém, isso poderia ser estendido a várias formas de
ministério também. Para cada um de nós, entretanto, é dada a mordomia (oikonomia) da graça
de Deus. Somos instruídos na administração dessa graça de acordo com a lei de Cristo, ou lei do
Espírito, que faz referência aos mandamentos que Cristo passou para nós através dos seus
apóstolos. Isso nos leva à questão prática do ensino bíblico da vida cristã.
Finalmente, conforme observado acima, ver a relação de Deus no mundo de uma forma
dispensacional é levantar a perspectiva de mudança dispensacional. Tal reestruturação está
enraizada no propósito geral de Deus. É um fator atual na forma que ele cumpre seu propósito
mais importante. Falar de mudança dispensacional, entretanto, é falar de história, ou da história
das dispensações. O propósito de Deus é cumprido historicamente. Ele opera sua vontade através
da história em sucessivos arranjos administrativos onde todos progridem em direção ao
cumprimento final do seu propósito.
Em resumo, ao usar a palavra dispensação (oikonomia), a Bíblia apresenta uma forma de
entender o relacionamento de Deus com os seres humanos em termos de arranjos (dispensações)
que ele instruiu no curso da história. Ele administra a forma na qual seres humanos estão
relacionados a ele e entre si através desses arranjos que ele preparou. A igreja é a nova dispensação
que Deus organizou através da morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo. Ela difere em
importantes domínios da dispensação que estava em vigor antes de Cristo. E, no entanto, não é
totalmente diferente. Esta dispensação é o cumprimento da antiga e, como veremos, olha em
direção ao arranjo futuro na qual todas as promessas e alianças de Deus serão completa e
eternamente cumpridas.
A relação dispensacional entre Deus e o mundo é uma característica importante da teologia
bíblica. A terminologia dispensacional é central ao entendimento do Novo Testamento e da
igreja. E é particularmente usada ao explicar a relação da igreja com o Antigo Testamento, com
os eventos centrais do ministério de Jesus e com todo o plano geral e propósito de Deus que
ainda serão cumpridos no retorno de Cristo.
Para entender melhor a noção das dispensações, iremos examiná-las em relação a outras
noções estruturais da teologia bíblica, tais como a história da salvação, as alianças divinas com os
homens e o reino de Deus. O que vem a seguir é o começo desse estudo. Os capítulos a seguir
explorarão a natureza dispensacional das alianças bíblicas e o reino de Deus em mais detalhes.

DISPENSAÇÕES NA HISTÓRIA BÍBLICA


O Dispensacionalismo do Novo Testamento e a História da Salvação. A história da salvação
ou história da redenção são termos usados por teólogos hoje para se referir à história das
intervenções de Deus em favor do seu povo para livrá-los ou salvá-los: tais como, sua proteção a
Noé; suas promessas e cuidados pessoais aos patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó); e suas muitas
intervenções em favor do povo de Israel, incluindo o Êxodo. A história da salvação se refere à
história dos relacionamentos de Deus com seres humanos como está descrito na Bíblia. É uma
das categorias principais da teologia bíblica. Quando se lê a Bíblia de uma forma cronológica,
nota-se que os escritos posteriores se referem às narrativas anteriores. Assim, declarações
posteriores das ações de Deus em favor do seu povo indicam ao leitor um padrão de
relacionamentos — relacionamentos baseados nas promessas feitas na história. Para entender a
teologia da Bíblia, a pessoa precisa reconhecer e se ater a essa estrutura da história da salvação.3
O Novo Testamento apresenta Jesus Cristo como o clímax da história da salvação tanto em
sua primeira quanto em sua segunda vinda. Seu ministério cumpre o padrão de relações
humano-divinas e se torna a base para assegurar essas relações eternamente. Sua morte,
ressurreição e ascensão marcam o ponto de virada no progresso da história na era escatológica.
Seu retorno futuro traz o processo à sua consumação.
Nas epístolas neotestamentárias de Efésios, Colossenses e Gálatas, as palavras oikonomia e
oikonomos são usadas em referência a um novo arranjo entre Deus e os seres humanos que vieram
à existência na história da salvação. A sensação de novidade histórica ou mudança histórica é
enfatizada nesses textos por palavras temporais e frases que marcam um contraste entre o presente
e o passado. Em Efésios 3, onde Paulo fala da dispensação do mistério, ele diz que “em outras
gerações [o mistério, e assim sua dispensação], não foi dado a conhecer [...] como, agora, foi
revelado”. Ele então acrescenta que a dispensação [mistério] em si estava “desde os séculos, oculto
em Deus”, mas que “agora” é revelada “pela da igreja”.
Esses destaques prosseguem o argumento dado nos capítulos anteriores de Efésios no qual
Paulo explica a significância histórica da morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo. No
capítulo 2, ele nota que “outrora”, “naquele tempo”, os gentios estavam “sem Cristo, separados
da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa”. Então, no verso 13, ele declara:
“Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de
Cristo”.
Isso não é simplesmente uma declaração sobre descrentes vindo à fé. Ela diz respeito à
própria natureza da estrutura dispensacional identificada no terceiro capítulo. Além do mais, é
uma declaração acerca das mudanças que Deus introduziu na história através do envio do seu
Filho. Ele alia a noção de mudança de dispensação diretamente ao conceito de história da
salvação, a história da redenção que Deus faz se cumprir por meio do seu Filho Jesus Cristo. Um
arranjo passado (dispensação), entre Deus e os seres humanos que manteve uma divisão entre as
raças na experiência das bênçãos divinas foi agora substituído por uma nova dispensação na qual
não há distinção racial na concessão e experiência de certas bênçãos prometidas que agora são
dadas. A subordinação racial dos gentios foi uma característica estrutural da aliança mosaica. Mas
Paulo argumenta em Efésios 2.14-15 que através da morte de Jesus Cristo, a subordinação
estrutural foi removida. Na nova humanidade, todas as raças têm acesso direto a Deus, o Pai,
através do Filho por meio do Espírito Santo. Deus está habitando em seu templo — essa
assembleia de todas as raças — trazendo paz entre os povos com a paz que eles agora têm com
Deus.
Essas observações em Efésios 2 estão por sua vez relacionados à oração de Paulo em
Efésios 1.18-23. Aqui ele fala do poder de Deus presente na igreja. Esse poder foi manifestado na
ressurreição de Jesus Cristo dos mortos (observe a frase temporal, “quando o ressuscitou dos
mortos”, v. 20, BKJ). Depois da sua ascensão aos céus, esse poder foi dado à igreja (“[quando
Ele] o colocou à sua própria destra nos lugares celestiais [...] E colocou todas as coisas sob seus
pés, e o fez ser cabeça da igreja sobre todas as coisas, que é o seu corpo, a plenitude daquele que
cumpre tudo em todos”). Paulo ora para que a igreja possa compreender o que Deus fez. Porém,
nosso ponto aqui é reconhecer que essa bênção, que é historicamente relacionada à morte,
ressurreição e ascensão de Jesus Cristo, é parte de um novo arranjo (dispensação).
Esses pensamentos são repetidos de maneira um tanto abreviada em Colossenses 1.24-29,
onde Paulo fala da oikonomia dada a ele por Deus para pregar “o mistério que esteve oculto
durante épocas e gerações, mas que agora foi manifestado a seus santos”. Ele, então, fala das
“gloriosas riquezas deste mistério, que é Cristo em vocês, a esperança da glória”. Novamente, ele
está falando da mudança das relações de Deus com os seres humanos que tomou lugar através de
Jesus Cristo, das quais a característica mais óbvia é a bênção do habitar de Cristo nos gentios
crentes.
Paulo esboça em Gálatas as relações históricas entre a revelação das promessas a Abraão, a
dispensação da Lei (aliança mosaica), Jesus Cristo e a presente relação da igreja com Deus através
de Jesus Cristo. Marcadores históricos estão presentes em todo o argumento. A Lei veio 430 anos
depois da promessa ter sido dada (3.17). Ela não invalidou ou substituiu a promessa; ela foi dada
“até que viesse o descendente a quem se fez a promessa” (v. 19). Esse “descendente” é Jesus
Cristo (v. 16), que apareceu apenas recentemente na história. Paulo então fala da “fé em Jesus
Cristo” — essa fé cujo conteúdo é especialmente o Jesus histórico de Nazaré — que veio a existir
na história: “antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados, para essa fé que,
de futuro, haveria de revelar-se [...] a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo [...] mas,
tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio” (vv. 23-25).
Esse conceito de estar “sob a lei” por um tempo é repetido na analogia da supervisão dos
filhos. A criança está sob “administradores” (administrador aqui é a palavra oikonomos) “até ao
tempo predeterminado pelo pai” (Gl 4.2). Essa situação de estar sob o oikonomos é comparada a
nossa situação de estar “sob a lei” (v. 5). E a data na qual a criança é liberada do seu oikonomos
(isto é, libertada da dispensação do guardião para receber seu completo estado de filiação) é
comparado àquela “plenitude dos tempos” na qual o Filho de Deus veio “para que nós possamos
receber a adoção de filhos.”
É inconfundível que na teologia de Paulo houve pelo menos duas dispensações (arranjos)
entre Deus e os seres humanos na história. Elas não são arranjos simultâneos existindo lado a
lado através do curso da história, mas, arranjos sucessivos, um sendo substituído pelo outro no
tempo. E o tempo da mudança dispensacional ocorreu em conjunção com o grande evento da
história da salvação: a encarnação, morte, ressurreição e ascensão de Jesus de Nazaré, o Cristo.
Outro uso de oikonomia por Paulo também deve ser considerado. Em Efésios 1.9-10, ele diz
que o propósito divino para a “plenitude dos tempos” diz respeito a uma dispensação, um arranjo,
estruturado pela “reunião de todas as coisas em Cristo, tanto as do céu como as da terra”. É
plausível que essa dispensação seja a mesma da qual ele fala em Efésios 3.9. Como já notamos,
essa dispensação (a que tem existido desde a ascensão de Cristo) tem sido o conteúdo da oração
de Paulo em 1.15-23 e seus destaques acerca dos judeus e gentios em 2.11-22. Com a presente
dispensação recebendo tanta atenção no resto da carta, seria razoável interpretar Efésios 1.10
como uma referência introdutória a ela. Também, a união de todas as coisas em Cristo,
mencionada em 1.10, pode ser relacionada ao que Paulo diz em Efésios 2.11-22 e 3.6-9 acerca da
presente dispensação. Em Colossenses 1.19-20, falando novamente da dispensação presente,
Paulo diz que “foi do agrado de Deus que [...] reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que
estão na terra quanto as que estão nos céus”. E em Gálatas 4.4, ele diz que Cristo nasceu na
“plenitude dos tempos”.
Apesar de que a linguagem de Efésios 1.10 possa estar relacionada ao que Paulo diz em outro
lugar acerca da presente dispensação, a possibilidade de que Efésios 1.10 se refira a uma ainda
futura dispensação não pode ser descartada. O tema da bênção presente e da herança futura são
apresentados nos versos 13-14. E é claro que o presente arranjo (dispensação) é um pagamento
inicial de bênçãos que serão completamente realizadas no futuro. Apesar de existirem bênçãos
que irão diferir daquelas no futuro, a diferença é de grau, não de tipo.
É bem possível que Paulo tenha essa futura herança em mente quando fala da dispensação
que Deus planejou para a plenitude dos tempos. A presente dispensação é um arranjo no qual as
bênçãos da herança têm sido inauguradas. O presente arranjo não é a culminação do plano
divino, mas é tanto a revelação quanto a garantia que o plano será ainda realizado.
Na teologia de Paulo, esse arranjo futuro — a futura recepção de nossa herança — coincide
com o retorno de Jesus Cristo, o evento futuro culminante da história da salvação. Ele escreve em
Colossenses 3.4: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis
manifestados com ele, em glória” (cf. Fp 3.20-21; 1Ts 1.10; 4.13-5.11; 2Ts 1.6-2.14; 2Tm 4.1).
A herança de Israel também é incluída como uma característica dessa história da salvação que
culmina na vinda de Cristo (Rm 11.26). Como resultado, a próxima mudança dispensacional —
a mudança para o arranjo da futura herança — coincide com a próxima grande característica da
história da salvação. Para Paulo, a teologia dispensacional e a história da salvação estão inter-
relacionadas.

As Dispensações na História Bíblica. Vimos que Paulo usa a terminologia de oikonomos e


oikonomia para distinguir pelo menos duas e até possivelmente três dispensações sucessivas. O
ensino de Jesus de que a vinda do reino envolveria mudanças na mordomia também mostra
como é apropriado usar a terminologia dispensacional para caracterizar sua visão do presente e do
futuro. Poderíamos usar a palavra dispensação para outros períodos da história também? Ela
poderia ser utilizada através de todo o período da história da redenção para caracterizar a relação
de Deus com os seres humanos a partir da criação até a eternidade?
Certamente parece apropriado usar a palavra dispensação nessa forma estendida. E de fato ela
tem sido usada dessa forma por muitos na história da teologia cristã. Irineu, bispo de Lião no fim
do segundo século, usou o termo dispensação repetidamente para se referir aos arranjos que Deus
preparara na história. No terceiro de cinco livros de seu volume Contra Heresias, ele segue Paulo
em distinguir entre a dispensação da lei estabelecida por Moisés e a nova dispensação da
liberdade, a aliança instruída através de Cristo.4 Então, ele divide a história bíblica em períodos
de acordo com as alianças instruídas através de Adão, Noé, Moisés e a nova aliança por meio de
Cristo.5 As últimas duas se correlacionam com o uso do termo dispensação. Isso mostra a forma
natural na qual dispensação pode ser estendida na periodização da história bíblica.
Agostinho falou dos períodos da história do mundo como sendo distinguidos pelas diferentes
dispensações.6 Em outro lugar, ele favorece a divisão da história em milênios sucessivos, uma
noção popular na igreja primitiva. Ainda que, como os teólogos primitivos, a divisão poderia
variar de uma pessoa para outra. Agostinho dividiu os milênios de Adão a Noé, de Noé a Abraão,
de Abraão a Davi, de Davi ao Exílio, do Exílio a Cristo, de Cristo em diante, incluindo sua
própria época.7 O esquema de periodização dupla de Agostinho não se encaixa inteiramente, mas
eles mostram o escopo abrangente que ele deve ter tido em mente quando falou das várias
dispensações da história mundial.
Prosseguindo para tempos mais recentes, podemos ver que muitos teólogos e eruditos
bíblicos da época da Reforma até o século XIX usaram a ideia de uma história de dispensações
para estabelecer a estrutura da história bíblica. A teologia da aliança, que começou a ser
formalizada no fim do século XVI, prontamente adotou essa noção para explicar as diferentes
manifestações históricas da aliança da graça. A Confissão de Westminster falou de “várias
dispensações” que administraram a aliança da graça.8 Depois desse período, divisões
dispensacionais da história bíblica se tornaram muito comuns nos estudos bíblicos britânicos. Os
quadros a seguir, mostram uma comparação de alguns desses esquemas oferecidos naquela época.
O primeiro quadro abaixo, fornece uma comparação de escritores a partir do século XVII até o
começo do século XX, enquanto o segundo quadro compara os esquemas de escritores
pertencentes especificamente à tradição dispensacionalista.
Alguém poderia dizer que, através da história da igreja, certas divisões da história bíblica têm
sido comumente reconhecidas: Criação à Queda; Queda ao Dilúvio de Noé; do Dilúvio a
Abraão; de Abraão a Moisés; de Moisés a Cristo; da primeira vinda de Cristo à Segunda Vinda.
Cada um desses períodos da história bíblica tem sido e podem ser caracterizados por alguns
intérpretes como uma dispensação. Ao mesmo tempo, reconhecemos que a história bíblica é mais
complexa do que uma simples periodização permite. O tempo entre Moisés e Cristo (a história
de Israel do Antigo Testamento) pode certamente ser subdividido de várias formas: o Êxodo, a
permanência no deserto, a conquista por Josué, o tempo dos Juízes, Saul, Davi, Salomão, os
reinos divididos, o Exílio e o retorno. A palavra dispensação é flexível o suficiente em seu
significado que poderia ser adequadamente aplicada para cada um desses diferentes arranjos
históricos. Subdivisões posteriores poderiam também aplicar a posse de cada um dos patriarcas,
cada um dos juízes ou o reinado de cada um dos reis. Na verdade, como vimos anteriormente, as
diferentes mordomias sob o Rei Ezequias subscrevem a distinção como diferentes dispensações.

REPRESENTAÇÃO DOS ESQUEMAS1 DISPENSACIONAIS (século XVII ao XIX)

1. Com exceção dos quatros primeiros, esses contornos gerais podem ser encontrados em “A bibliography of dispensatilism”, de
Arnold Ehlert, Bibliotheca Sacra 101-03 (1944-46). Compilado numa época quando “dispensacionalismo” e “teologia da
aliança” estavam polarizados através de um criticismo mútuo. Ehlert propositalmente omitiu os esquemas dispensacionalistas
dos teólogos aliancistas anteriores. Ele não omitiu todos os aliancistas, como pode ser visto a partir de alguns registros (por
exemplo, Charles Hodge). Entretanto, as distinções dispensacionais feitas por teólogos da tradição aliancista devem ser
incluídas como parte da prática geral de dividir as Escrituras em uma série de dispensações.
2. Veja Hermos Witsius, The economy of the covenants, trad. Wm. Crooksbank (Londres:1822), pp. 307-24.
3. Charles Sherwood McCoy, “The convenant theology of Johannes Cocceivs” (Ph.D. diss. Yale Univ., 1956), p. 177.
4. Francis Turretin, Institutio theologiae elenctiae 12.7. Esse esboço foi adotado por Charles Hodge. Veja sua Teologia
Sistemática, 3 vols. (Nova York: 1874), 2:373-77

DISPENSAÇÕES NA TRADIÇÃO DISPENSACIONALISTA


1 Darby ensinou que essas situações não eram “dispensações”. Veja Larry Crutchfield, The origins of dispensationalism
(Lanham, Md.: Univ. Press of America, 1992), pp. 67-75.
2. A partir de Hall Brookes, I am coming, 7a ed (Glasgow: Pickerring and Inglis, n.d). O esboço dado por Arnold Ehlert, “A
Bibliography of Dispensationalism”, Bibliotheca Sacra (1945), 327, e reproduzido em Charles Ryrie, Dispensationalism Today
(Chicago: Moody, 1965), p. 84, é o mesmo na estrutura, mas diferente em nomenclatura. Brookes atribuiu esse esboço a
W.C Bayne de McGill University. Brookes concorda com a estrutura, mas mudou a nomenclatura. O esboço final está muito
próximo do eventualmente adotado por Scofield.
3. Os esquemas dispensacionais de Bullinger a Scroggie podem ser encontrados em Ehlert, “A Bibliography of
Dispensationalism”.
4. O Dia do Senhor
5. Esse esboço foi adotado e seguido por muitos, incluindo Arno C. Gaebelein, H.A. Ironside e Lewis Sperry Chafer.

Essa flexibilidade importa para a variação vista nos quadros acima nos quais diferentes teólogos
tentaram dividir a história bíblica. Até mesmo dispensacionalistas não concordaram acerca do
número de dispensações na história bíblica e em nossa amostra (segundo quadro) somente três
transições históricas foram uniformemente reconhecidas como mudanças dispensacionais
significativas.
Entretanto, podemos propor uma forma de dividir as dispensações da história bíblica ao
seguir três princípios básicos: (1) começar com a estrutura do dispensacionalismo do Novo
Testamento; (2) manter o esquema dispensacionalista básico o mais simples possível; e (3) ser
flexível com a noção de uma dispensação, de modo a ser capaz de ver uma maior simplicidade ou
maior diferenciação do que o esquema dispensacional em ação permite. Deixe-me explicar esse
último ponto. A Bíblia em si traça continuidades e distinções através da história da revelação. É
preciso ser flexível o bastante para falar tanto da continuidade dispensacional quanto das
diferenças, dependendo de qual aspecto da história bíblica esteja sendo visto. Por exemplo, a
partir de uma perspectiva, a dispensação da aliança mosaica pode ser vista como um todo; e
ainda assim, de outra perspectiva, o mesmo período da história é examinado ao notar-se a
diferença entre a dispensação da monarquia e a dispensação dos Juízes. A flexibilidade em traçar
distinções dispensacionais possibilitará que diferentes intérpretes das Escrituras trabalhem juntos
de uma forma construtiva, à medida que buscam entender e explicar a revelação bíblica.
Com esses princípios em mente, vamos construir as dispensações que distinguem a história
bíblica. Começamos, primeiramente, com o dispensacionalismo paulino, que explicitamente
utiliza uma terminologia e uma estrutura fundamental para o pensamento dispensacional.
Conforme observado acima, isso nos rende pelo menos dispensações do passado e presente, e
possivelmente uma terceira do futuro também. Se nos ativermos à terminologia paulina,
elencaríamos essas: (1) a dispensação da lei, (2) a dispensação da plenitude dos tempos e (3) a
dispensação do mistério.
A primeira, “dispensação da lei”, vem a partir da ilustração de Paulo da lei como um
oikonomos (Gl 4). Entretanto, o termo lei é usado em diferentes sentidos por Paulo, sendo um
dos quais uma referência à aliança mosaica como tal. É preferível intitular essa dispensação como
“a dispensação da aliança mosaica” para evitar a confusão que surgiu com o uso inadequado de
Scofield do termo lei em seu título da mesma dispensação (veja o segundo quadro). Apesar da
designação de Scofield ter se tornado muito popular, pode ser visto a partir do quadro que outros
dispensacionalistas se referiram a essa dispensação como Mosaica. Isso evita a implicação que
Paulo estava ensinando antinomianismo (ausência de lei) ao declarar o fim da dispensação da lei.
Alguns podem também desejar uma terminologia para essa dispensação chamando-a de
“dispensação teocrática”, já que a aliança mosaica primariamente dizia a respeito da constituição
de Israel como uma teocracia, um estado político governado por Deus.
Quer seja apropriado ou não entender a “dispensação da plenitude dos tempos” em
Efésios 1.10 como futura (um ponto que conforme observado acima é discutível), não há dúvida
que Paulo espera futuras mudanças no relacionamento entre Deus e os seres humanos no retorno
de Cristo. Romanos 8.18-25 olha em direção ao futuro quando os filhos de Deus habitarão na
terra renovada e redimida na ressurreição dos corpos. Em 1 Coríntios 15, Paulo antecipa aquele
tempo depois da ressurreição quando o Filho “entregar o reino ao Deus e Pai” e Deus será “tudo
em todos”. Logo antes desse tempo existe a situação na qual o Cristo reinante coloca “todos seus
inimigos sob seus pés”, incluindo a morte. Isso pode ser aquela ordem milenar que João prevê em
Apocalipse 20. Dessa forma, antecipamos na teologia bíblica uma dispensação futura que pode
ser subdividida em dois arranjos reconhecíveis: o reino milenar do Jesus Cristo que retornou e a
ordem eterna da vida ressurreta na terra redimida. Alguns podem desejar simplesmente designar
essas como duas dispensações futuras como: o Milênio e a nova terra. Ou, seguindo Efésios 1.10,
poderíamos prever ambas as fases, milenar e eterna, como as dispensações Finais ou Siônicas.9 Os
princípios de simplicidade e flexibilidade deve nos guiar aqui.
O mistério referido na “dispensação do mistério” (Ef 3.9) é o relacionamento de judeus e
gentios com Cristo e entre si. Esse relacionamento é a característica distinta da igreja.
Consequentemente, pode-se chamar esta dispensação de a “dispensação da igreja”, ou
“dispensação eclesiástica”. Também poderia ser chamada de “dispensação do Espírito”, já que
Paulo contrasta a vinda do Espírito com a mordomia da Lei em Gálatas 4. Qualquer título desses
(ou algum outro) servirá. Para propósitos de consistência, entretanto, iremos nos referir a ela
como a “dispensação eclesiástica”.
A partir dessa análise do dispensacionalismo paulino, pode ser sugerido que vejamos três
dispensações: A mosaica ou dispensação teocrática, a dispensação eclesiástica, e a siônica ou
dispensação final que inclui os reinos milenar e eterno.
Com respeito às dispensações antes da dispensação teocrática, deveríamos seguir os
princípios de simplicidade e flexibilidade. Em Gálatas 3, Paulo fala do tempo antes da Lei (antes
da aliança mosaica), neste tempo é que a Promessa (abraâmica) foi dada. Porém, ele nunca fala
da dispensação da promessa como Scofield faz. Em Romanos 5.13, Paulo fala do tempo antes da
Lei a partir do ponto da existência do pecado no mundo. O pecado estava no mundo antes da
Lei, mas foi contado como transgressão depois da Lei ser dada. Nessa discussão, do pecado como
transgressão, a dispensação mosaica é comparada com a situação de Adão a Moisés, implicando
que vemos todo o período sob um arranjo comum ou dispensação. Paulo, então, prossegue para
falar da nova situação desde a vinda do Espírito (Rm 7-8). O contraste da Lei e Espírito é
essencialmente o mesmo que foi dado em Gálatas 3-5, onde Paulo distingue essas situações como
duas dispensações diferentes: a mosaica e a eclesiástica. Isso nos leva a ver a estrutura com
respeito ao pecado em Romanos em harmonia mais próxima das divisões dispensacionais de
Paulo do que sua introdução da noção da promessa em Gálatas 3.
Como resultado, poderíamos sugerir ver a situação antes do tempo da aliança mosaica como
uma dispensação patriarcal unificada. “Patriarcas” parece estar mais adequado com o título. Essa
dispensação patriarcal inclui as relações de bênçãos de Deus, julgamento e aliança com as várias
famílias da terra incluindo notáveis indivíduos, tais como: Abel, Caim, Sete, Enoque, filhos de
Noé e Abraão, Sara e seus descendentes: Isaque, Jacó e seus doze filhos. Uma próxima
dispensação importante começa quando Deus faz a aliança no Sinai com as doze tribos de Israel.
Seguindo o princípio da flexibilidade, podemos certamente permitir que outras divisões
dispensacionais sejam traçadas durante esse período da história. Alguns destacarão as condições
anteriores à queda do Éden como um arranjo particular. Outros distinguirão as condições antes e
depois do dilúvio de Gênesis 6-9. Ainda assim, ao mesmo tempo, há uma consistência às ações
de Deus com a humanidade que reúne essas condições como as relações fundamentais para as
dispensações posteriores que apresentam a aliança mosaica e a nova aliança.
Concluindo, temos quatro dispensações primárias na história bíblica: Patriarcal, Mosaica,
Eclesiástica e Siônica.
As Dispensações e as Alianças. Conforme Paulo explica em Efésios 3.4-10, a presente
dispensação (que ele chama de dispensação do mistério) relaciona os gentios com os judeus como
“coerdeiros, membros do mesmo corpo e coparticipantes da promessa em Cristo Jesus por meio
do evangelho” (Ef 3.6).A palavra promessa tinha sido usada anteriormente em Efésios 2.12 em
um contexto no qual Paulo desenvolveu o mesmo pensamento acerca da correlação com os
judeus e os gentios em Cristo. Nessa passagem, ele fala das alianças da promessa a qual os gentios
não mais eram estranhos (2.12, 19). Essas alianças pertencem a Israel como as frases paralelas em
2.11-12 tornam claro. Isso significa que no dispensacionalismo paulino, as dispensações passadas
e o presente devem ser entendidas como formas de relacionar as alianças.
A conexão entre aliança e promessa foi traçada em Gálatas 3.17, onde a referência é feita à
aliança que precedeu a Lei (aliança mosaica) na qual Deus garantiu a promessa a Abraão. Paulo
vê o evangelho de Jesus como enraizado nessa promessa pactual feita ao patriarca (Gl 3.8, 16).
Ele também vê essa aliança como englobando os gentios nesse escopo profético (3.8). Gentios
que agora acreditam em Jesus Cristo são herdeiros dessa promessa da aliança (3.28-29).
A nova dispensação é então um novo arranjo no qual as bênçãos prometidas através da
aliança abraâmica estão sendo concedidas. Entretanto, para que a concessão aconteça em sua
forma presente (sendo garantida igualmente aos gentios como aos judeus), mudanças em outras
alianças tiveram que acontecer.
Em Efésios 2.14-15, Paulo argumenta que para os gentios serem trazidos a um lugar igual de
bênçãos com os judeus, Cristo, “tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a
inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças”. A parede que
dividia era aquela porção do templo que separava os judeus dos gentios. Sua presença era uma
característica estrutural da aliança mosaica. Nessa passagem, ele simboliza que a aliança como um
todo, se referia à “lei dos mandamentos na forma de ordenanças”.
Na teologia bíblica, o fim da aliança mosaica está correlacionado com o estabelecimento da
nova aliança. Paulo apresenta a si mesmo como um ministro da nova aliança (2Co 3.6). E é
através das bênçãos recentemente inauguradas da nova aliança que a mudança dispensacional em
Efésios 2-3 aconteceu.
Paulo escreve que aqueles que acreditaram na mensagem do evangelho foram “selados [em
Cristo] com o Espírito Santo da promessa” (Ef 1.13). A palavra promessa aqui é tomada
novamente em 2.12 como “alianças da promessa”. O plural, alianças, indica que mais do que
uma aliança está em vista. Já vimos que a aliança abraâmica é para Paulo uma aliança de
promessa. Quando nos lembramos que a habitação do Espírito Santo foi uma promessa
específica da nova aliança (Is 59.21; Ez 36.27), parece que a ligação de 1.13 e 2.12 através da
palavra promessa indica que a nova aliança é corretamente incluída entre as alianças pelas quais os
gentios têm sido trazidos para perto. Ainda mais do que isso, entretanto, a bênção da nova
aliança inaugurada com a ascensão de Cristo é a bênção que caracteriza o arranjo da nova
dispensação. Efésios 2.22 descreve os judeus e os gentios sendo edificados em Cristo como uma
“habitação de Deus no Espírito”. A paz pela qual a nova dispensação é caracterizada (Ef 2.15) é o
fruto do habitar do Espírito Santo (Gl 5.22) — o cumprimento da promessa da nova aliança.
As alianças de promessa corretamente incluem a aliança feita com Davi. Perceba que a nova
aliança não é mencionada por nome em Efésios, mas é evidente pela referência a seus elementos
característicos (perceba o perdão dos pecados em Ef 1.7 e o conhecimento de Deus em Ef 3.19 e
4.13 [cf. Jr 31.34]). Da mesma forma, os elementos da aliança davídica estão presentes em
Efésios, indicando que ela se destina da mesma forma dentro das alianças da promessa
mencionadas em 2.12.
Deus prometeu a Davi a respeito do seu descendente: “Eu lhe serei por pai, e ele me será por
filho”. Ele prometeu estabelecer o reino do seu filho e manter sua benignidade para sempre com
ele. Ele também predisse que esse filho construiria uma casa (um templo) para o Senhor
(2Sm 7.12-15). Jesus é apresentado em Efésios 4.13 (assim como em outros escritos de Paulo e
nos escritos do Novo Testamento em geral) como o Filho de Deus. Ele é o amado (Ef 1.6), um
título que está ligado ao Filho nas descrições que Ele tem do Pai em Seu batismo e transfiguração
(Mt 3.17; 17.5; Mc 1.11; 9.7) e que relembra as promessas associadas à filiação e benignidade
eterna na aliança com Davi. Efésios 1.20-22 o mostra sentado à destra de Deus com “todas as
coisas debaixo dos pés”. Isso relembra a promessa de um reino estabelecido na linguagem de
Salmos 2 e 110. E finalmente, Efésios 2.14-22 retrata esse como construindo um “santuário
dedicado ao Senhor”, uma atividade da aliança davídica. E além do mais, essa mesma estrutura é
o elemento estrutural da nova dispensação — a edificação de judeus e gentios como parceiros das
bênçãos patriarcais e da nova aliança.
Conforme vimos, a transição a partir da dispensação passada até a presente envolve uma
mudança no aspecto da aliança. A dispensação passada era caracterizada pela aliança mosaica; a
aliança presente é caracterizada por certas bênçãos da nova aliança que aparecem na forma
inaugurada. Ambas as dispensações são formas de se relacionar com as promessas das alianças
patriarcal e davídica (dadas ainda na dispensação passada). Iremos elaborar sobre esse assunto da
melhor forma no próximo capítulo. Porém, a partir desse mesmo fato da continuidade de
aspecto da aliança e mudança, a natureza progressiva da transição dispensacional pode ser vista.

As Dispensações e o Reino de Deus. Em Colossenses 1.26, Paulo fala do mistério de Deus que
“se manifestou aos seus santos”. É evidente a partir do contexto de Colossenses 1 que essa é a
dispensação que Paulo fala em Efésios 3. É válido ressaltar que esse arranjo também é referido em
Colossenses 1.13 (NVI) como o “Reino do seu Filho amado”. As palavras amado e Filho são
usadas para Jesus em Efésios, conforme vimos, relembrando as designações do Pai no batismo e
na transfiguração do seu filho e também olhando para trás para as promessas na aliança davídica.
(De fato, a designação Tu és o meu Filho amado no relato de Lucas do batismo de Jesus [Lc 3.22]
é sem dúvida uma referência à aliança da promessa davídica citada em Lucas 1.32-33: “Este [...]
será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai”.) Isso, é
claro, se encaixa com o que já temos dito acerca do cumprimento da aliança davídica em
Efésios 1 e 2 (cf. Sl 110.1). Jesus está sentado à destra de Deus, “acima de todo principado, e
potestade, e poder, e domínio”, com “todas as coisas debaixo dos pés”.
Essa noção do reino de Deus está relacionada diretamente à pessoa e obra de Jesus,
especialmente sua ascensão aos céus. Como vimos, isso é exatamente o ponto de mudança
dispensacional na teologia de Efésios. Iremos trabalhar isso de forma mais completa em um
capítulo posterior. Porém, é importante notar que a teologia dispensacional e a teologia do reino
estão integralmente conectadas. A mudança da passada à presente dispensação é coordenada com
um aspecto do reino escatológico de Deus. Certos elementos preditos no reino escatológico estão
presentes nessa nova dispensação, incluindo um Messias reinante e o fenômeno de paz entre seus
membros judeus e gentios (Ef 2.15, 17).
Na teologia bíblica, o reino escatológico é o arranjo no qual as promessas pactuais são
cumpridas. A presente dispensação, entretanto, é somente uma inauguração, uma parcela de
entrada (Ef 1.13) sobre aquelas bênçãos prometidas. Consequentemente, assim como as bênçãos
da aliança ainda estão para serem cumpridas em sua plenitude (v. 14), então, da mesma forma, o
reino do Filho de Deus ainda tem que receber sua revelação completa.
Enquanto é dito na dispensação de Colossenses 1.13 que já transportados para o reino, em
Colossenses 3.4, esperamos que “quando Cristo [...] se manifestar”, então, nós também seremos
“manifestados com ele, em glória”. Há um aspecto do reino que ainda é futuro, ligado ao retorno
de Cristo (1Co 15.23-28; 2Tm 4.1). Isto constitui a dispensação que ainda está por vir.

CONCLUSÃO
Uma dispensação é um arranjo administrativo ou gerencial. A Bíblia usa esse termo para
descrever o relacionamento de Deus com o mundo. Não é somente o atual relacionamento de
Deus com o mundo descrito como uma dispensação, mas a Bíblia também compara e contrasta
esse presente relacionamento com as dispensações passadas e futura. A partir disso, entendemos
que o relacionamento de Deus com seres humanos consiste em uma história de sucessivas
dispensações.
Essas dispensações podem ser descritas como formas de relacionar as alianças bíblicas. Elas
também podem ser vistas como estágios progressivos da história da salvação que encontra seu
cumprimento na revelação do reino escatológico de Deus. Como resultado, entender essas
dispensações bíblicas é algo crucial para entender a história e teologia da Bíblia.
Entender a Bíblia dispensacionalmente é especialmente importante para entender o
relacionamento de Deus com os seres humanos hoje em dia. Ajuda-nos a enfatizarmos nos
relacionamentos distintos que ele institui hoje e nas explícitas responsabilidades que ele nos dá.
Em outras palavras, interpretar a Bíblia dispensacionalmente enfatizando em especial nesta
presente dispensação clarifica o que é a igreja, quais são os princípios da vida cristã e qual a
natureza da responsabilidade cristã. A interpretação dispensacional ajuda o leitor das Escrituras a
entender as comparações e contrastes que o Novo Testamento faz com a história anterior e com
o tempo do retorno do Senhor, quando este descreve nossa presente situação como a igreja de
Jesus Cristo.
1. Veja James Moulton e George Milligan, The Vocabulary of the Greek Testament Illustarated from the Papyri and Other Non-
literary Sources (1930; Grand Rapids: Eerdmans, 1972), s.w. “oikonomia, oikonomos”; Colin Brown, ed., The New International
Dictionary of New Testament Theology, vol. 2 (Grand Rapids: Zondervan, 1976), s.v. “house/oikonomia” por Jürgen Goetzmann;
Gerhard Friedrich, Theological Dictionary of the New Testament, vol. 5, trad. Geoffrey Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans,
1967), s.w. “oikonomos, oiknomia” por Otto Michel.
2. Ryrie, Dispensationalism Today, p. 31.
3. Deve-se fazer aqui referência ao capítulo anterior sobre hermenêutica.
4. Irineu de Lião, Contra as Heresias 3:10.2, 4.
5. Ibid., 3.118
6. Agostinho, Cartas a Marcelino 5-8.
7. Agostinho, Sermões 125.4
8. Confissão de Fé de Westminster 8.6.
9. O termo, siônico, de Sião, é escolhido em vista do grande cumprimento das promessas do reino para Israel e para as nações,
geralmente retratadas como a glória do Sião escatológico, a cidade do reino de Deus e seu Messias (Is 2; 60; Hb 13.10; Ap 21-
22).
CAPÍTULO 5

A ESTRUTURA DAS ALIANÇAS BÍBLICAS: AS ALIANÇAS ANTES DE


CRISTO

A palavra aliança, berit em hebraico e diatheke em grego, é usada na Bíblia para se referir a uma
variedade de arranjos formais e legais. Esses arranjos, que podem ser desde vontades individuais,
contratos de negócios, escrituras territoriais, até constituições nacionais, definem as relações entre
pessoas. Uma vez que o termo dispensação também fala de um arranjo relacional entre pessoas, é
fácil ver como esses termos se sobrepõem conceitualmente. Quando se fala de relações teológicas
— isto é, relações entre Deus e seres humanos — as noções de dispensação e aliança estão
definitivamente inter-relacionadas. Conforme observado no capítulo anterior, a percepção de
Paulo da mudança dispensacional trazida por Jesus Cristo estava ligada, e explicada, pelas
mudanças de aliança que Jesus instituiu. Consequentemente, um estudo das alianças que Deus
instituiu com os seres humanos e a história do seu desenvolvimento informará nosso
entendimento das dispensações e a natureza progressiva da mudança dispensacional.

A ALIANÇA NOÉTICA
A palavra aliança aparece primeiramente no livro de Gênesis, no qual ela é usada para formalizar
as promessas divinas da bênção. Essas alianças permanecem em contraste com os julgamentos
divinos contra a rebelião humana e o pecado, trazendo destruição e morte. O maior desses
julgamentos é encontrado em Gênesis 3, onde Deus amaldiçoou a terra, expulsou Adão e Eva de
uma terra de bênção e decretou a morte. O dilúvio de Gênesis 6-8 também é um julgamento
dramático sobre a pecaminosidade humana, introduzido pelo lamento em 6.5-7:

Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era
continuamente mau todo desígnio do seu coração; então, se arrependeu o SENHOR de ter feito
o homem na terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da
terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me
arrependo de os haver feito.

Esses julgamentos questionam o plano da criação. À medida que Deus fez os céus e a terra,
encheu-a com vida. Repetidamente lemos que “e viu que era bom” (Gn 1.4, 10, 12, 21, 25, 31).
A Bíblia diz que quando ele criou a humanidade, “Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos,
multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus
e sobre todo animal que rasteja pela terra” (v. 28). A rebelião humana prejudicou essa bênção ao
ponto de trazer a raça humana e a maioria da vida da terra ao ponto da extinção.
Individualmente, todas as pessoas encarariam a morte. Coletivamente, famílias, tribos e culturas
inteiras, juntamente com a própria vida terrestre, poderiam ser perdidas.
Entretanto, contra a certa e ameaçadora tempestade do julgamento divino, ouvimos as
palavras, “Noé achou graça diante do SENHOR” (Gn 6.8). Mais adiante, em Gênesis 6.18, o
Senhor formaliza uma aliança com Noé, prometendo preservar sua vida e a vida de todo tipo de
criatura levada para a arca. A palavra aliança é usada novamente em Gênesis 9.9-17 na promessa
de Deus de nunca mais destruir a vida na terra através de um dilúvio.
Quer seja vista como uma aliança apenas ou duas alianças separadas, essas promessas
confirmam a intenção divina expressa na criação (Gn 1-2), de que haverá uma terra habitada
com vida, preenchida por uma humanidade em comunhão com Deus. Além do mais, a natureza
formal da aliança enfatiza essa intenção, apontando o caminho para um plano de redenção no
qual ela será cumprida.

A ALIANÇA ABRAÂMICA
O Conteúdo da Aliança. As narrativas de Gênesis a respeito de Abraão começam com uma
promessa da parte de Deus de abençoá-lo e de abençoar todos os povos da terra através dele. Essa
promessa é posteriormente expandida em uma coleção de promessas, todas contribuindo para a
noção da bênção. Incluídas, estão as seguintes:

1. Deus abençoará Abraão (Gn 12.2; 22.17)


2. Abraão mediará as bênçãos de Deus a outros (para todas as nações) (Gn 12.2-3; 18.18;
22.18)
3. Ele também mediará a maldição de Deus (Gn 12.3)
4. O nome de Abraão será grande (Gn 12.2)
5. Ele se tornará uma grande nação (Gn 12.2; 18.18)
6. Deus dará para ele e para seus descendentes a terra de Canaã (Gn 12.7; 13.14-17; 15.7-21;
17.8)
7. Abraão terá inúmeros descendentes (Gn 13.16; 15.4-7; 17.4-7, 15-21; 22.17)
8. Essa aliança será estabelecida com os descendentes de Abraão (Gn 17.7, 19, 21)
9. Deus será o Deus de Abraão e de seus descendentes e eles serão seu povo (Gn 17.7-8)

Assim como a aliança noética, a aliança abraâmica permanece em contraste aos julgamentos de
Deus sobre o pecado humano e apresenta novamente um novo plano da criação. Isso pode ser
visto através de elementos importantes na criação da humanidade que são repetidos na bênção a
Abraão: A multiplicação de seres humanos, a provisão de uma habitação especial na terra (uma
terra de bênçãos) e uma relação pacífica entre Deus e a humanidade.
A bênção abraâmica também atinge as dimensões étnicas e nacionais da existência humana.
Gênesis 10-11 mostra como a vida humana se desenvolve em várias nações. Gênesis 11 revela
como o pecado se espalhou ao nível nacional e como o julgamento divino agravou as tensões
entre as nações. A promessa a Abraão em Gênesis 12, entretanto, oferece abençoar as nações. As
bênçãos virão a uma nação, descendente de Abraão, e então serão mediadas para todas as outras
nações.
Consequentemente, Deus afirmou a pluralidade étnica e nacional da humanidade. Ao
prometer abençoar todos os povos através de Abraão, ele não seguiu o caminho que tomou com
Noé. Não propôs destruir tudo, preservando apenas Abraão e sua família, o fazendo como novo
progenitor da raça. Por outro lado, a promessa de abençoar todas as nações não identifica
qualquer nação particular, exceto uma que descenderá de Abraão. Essa nação, é claro, será Israel,
aquela que leva o nome do neto de Abraão, Jacó, que foi renomeado como Israel por Deus. Com
a exceção de Israel, nada previne o desaparecimento de certas nações no curso da história e nada
invalida que Deus opere novamente ou recombine as estruturas políticas e étnicas da
humanidade através do curso da sua história. Não obstante, as bênçãos previstas nesta aliança
contemplam uma pluralidade de nações.
A natureza da bênção que vem sobre as nações iria presumidamente ser similar à bênção que
é prometida à nação dos descendentes de Abraão: numerosos povos, possessões territoriais e um
relacionamento pacífico com Deus. Esses elementos apresentam, em uma forma nacional, as
bênçãos que Deus anunciou sobre toda humanidade quando ele a criou. Porém, agora, elas são
prometidas primeiro a Abraão e então através dele às outras nações na terra.
As bênçãos prometidas a Abraão são holísticas, isto é, elas cobrem toda a vida e experiência
humana: física, material, social, pessoal (incluindo mental e emocional), política, cultural e
religiosa. Mais uma vez isso mostra que essa aliança afirma o plano da criação, pois ela oferece as
bênçãos que se estendem através de todo o escopo da vida conforme Deus a criou.
A bênção religiosa (vista na promessa de Deus de ser seu Deus e eles serem seu povo) é a
chave para as outras, pois, foi a separação entre Deus e a humanidade que causou a perda das
outras bênçãos em primeiro lugar. A restauração de um relacionamento pacífico com Deus
requer um ato de reconciliação, de redenção, de perdão. Tal ato está implícito no próprio fato de
que Deus se aproximou de Abraão para abençoá-lo. Porém, é revelada mais diretamente na
promessa uma relação permanente entre Deus como o Deus do seu povo e seu povo como o
povo de Deus. Sobre o que exatamente seria esse ato de redenção, se faz necessário uma revelação
maior. Depois, perceberíamos que isso não é nada mais que a morte expiatória de Jesus Cristo.

A Natureza da Aliança. Desde o começo, em Gênesis 12.1-3, a bênção a Abraão é apresentada


como uma coleção de promessas. Não há uma única passagem que contenha todos os diversos
elementos. Conforme a narrativa progride, um ou dois aspectos podem receber foco especial e
uma elaboração mais específica, e novas promessas podem ser adicionadas. É claro, entretanto,
que elas devem ser tomadas como uma promessa coletiva.
Em duas passagens, o termo aliança é usado para formalizar a promessa (isto é, a coleção de
promessas) como um acordo legal entre Deus e Abraão (Gn 15.18; 17.2; 7-21). Estudos sobre a
forma da aliança abraâmica indicam que ela é uma promessa outorgada em vez de um contrato
bilateral (como em um contrato de negócios ou tratado). Isto é, ela segue a forma legal usada no
antigo Oriente Médio de assegurar a integridade de um presente de uma pessoa para outra,
geralmente de um mestre para o servo (ou de um rei para um súdito). De tal forma, a promessa
outorgada é incondicional, pois ela garante a dádiva ao servo do mestre e seus herdeiros.1
A forma pela qual Abraão recebeu a aliança também apoia a incondicionalidade da aliança.
Em Gênesis 15 o Senhor repete sua promessa a Abraão, e as Escrituras nos dizem que, a despeito
das circunstâncias que fizeram a promessa parecer impossível, “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi
imputado para justiça” (15.6). Uma revelação posterior é dada a Abraão acerca de como a
promessa seria cumprida e, então, numa cerimônia formal completa e com sacrifícios associados,
“fez o SENHOR aliança com Abrão” (15.18).
Em Romanos 4 e Gálatas 3, Paulo argumenta que Gênesis 15 é fundamental para o
entendimento da natureza promissória da aliança abraâmica. A bênção não foi dada a Abraão
porque ele fez certas obras. Em vez disso, ele a recebeu pela fé. Deus deu a Abraão uma promessa.
Abraão creu em Deus. Deus o considerou justo e formalizou a promessa com ele como uma
aliança outorgada.
Uma aliança outorgada, entretanto, não exclui a obrigação do relacionamento geral de um
beneficiário a seu mestre. A desobediência ou deslealdade são ofensas puníveis. A punição pode
tomar o deleite da outorga temporariamente (como no caso do aprisionamento) ou
permanentemente (através da punição capital). Ainda assim a natureza incondicional da aliança
outorgada garante a possessão legal da dádiva mesmo durante o período de tal punição. No caso
da punição capital, a aliança outorgada garante a herança da dádiva pelos herdeiros beneficiários.
Certamente, Abraão foi obrigado a servir a Deus fiel e lealmente. Em Gênesis 17.1, o Senhor
ordenou a ele: “anda na minha presença e sê perfeito”. Em Gênesis 18.19, o Senhor declara que
ele escolheu Abraão “para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem
o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o
que tem falado a seu respeito”.
Há algumas ocasiões quando Abraão falhou em ser “irrepreensível”. Ele deixou, por um
tempo, a terra na qual ele foi dito para habitar. E em duas ocasiões, ele não foi completamente
honesto acerca da sua relação com Sara, de tal forma que quase causou que ela cometesse
adultério, sem mencionar a possibilidade de perdê-la completamente para o harém de outro
homem. Não obstante, Abraão é geralmente descrito em Gênesis 26.5 como alguém que
“obedeceu à minha palavra e guardou os meus mandados, os meus preceitos, os meus estatutos e
as minhas leis”. Sua obediência ao oferecer Isaque ao mandamento do Senhor é recompensada
por um juramento que o Senhor certamente irá cumprir sua promessa a Abraão e aos seus
descendentes (Gn 22.16-18).
O fato de que Deus dá mandamentos a Abraão não torna sua aliança com ele um contrato
bilateral, onde as bênçãos de Deus seriam completamente dependentes da obediência de Abraão
(ou dos seus descendentes). Como Paulo observa em Romanos 4.1-5, o relacionamento de Deus
com Abraão não é contratual de tal forma que a bênção é oferecida a ele como uma recompensa.
O relacionamento da aliança outorgada é mais como um legado, com a bênção tomando a forma
de uma dádiva.
Outros têm observado que mesmo na estrutura dos mandamentos do Senhor a Abraão, o
destaque está na intenção de abençoar.2 Muitas passagens repetem a promessa sem
acompanharem uma obrigação (veja Gn 12.7; 13.14-17; 15.1-7, 18-21) e até mesmo falam da
dádiva como duradoura (veja Gn 13.15; 17.7, 13, 19).
Por outro lado, a obediência de Abraão aos mandamentos de Deus funciona como o meio
pelo qual ele experimenta as bênçãos de Deus em uma situação cotidiana. Esses mandamentos
funcionam como condições para a experiência histórica de Abraão da bênção divina, pois,
conforme ele obedece a Deus, Deus o abençoa mais e mais. Porém, essas obrigações não
condicionam a intenção fundamental de abençoar Abraão. Elas condicionam o como e o quando
da bênção.
Isso é melhor visto talvez na passagem de Gênesis 18.18-19 na qual, na linguagem mais forte
possível, o Senhor declara que “Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele
serão benditas todas as nações da terra”. Então, ele acrescenta, “Porque eu o escolhi para que
ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e
pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu
respeito”.
Se a aliança abraâmica fosse uma aliança bilateral, o verso 18 não poderia ser dito dessa
forma. Atos de desobediência da parte de Abraão ou de seus descendentes seriam o suficiente
para a recusa da bênção prometida. Porém, na verdade, Deus promete cumprir a bênção a
despeito da desobediência humana. Até mesmo depois de uma longa história na qual os
descendentes de Abraão falharam “em manter-se no caminho do Senhor fazendo o que é justo e
direito”, o Novo Testamento apresenta Jesus Cristo como o presente e futuro cumprimento na
aliança abraâmica.
Isso não significa que os mandamentos do Senhor são inconsequentes ou irrelevantes à
promessa. Eles funcionam como um meio para experimentar a bênção, que mostra que Deus está
preocupado com a santidade, com “a justiça e a retidão”. Ele está tão preocupado com a
obediência humana como estava na criação ou no tempo do dilúvio. Porém, há uma intenção
incondicional de abençoar, que resolverá o problema da desobediência humana de uma maneira
que ainda será revelada. O fato de que isso vai acontecer é visto na promessa incondicional de
que ele será o seu Deus e eles serão o seu povo. Também é visto no fato de que ele aceita os
herdeiros como base da fé e promete ser com eles e ajudá-los. A resolução final será revelada
posteriormente na promessa da nova aliança. Enquanto isso, ele aceita Abraão e seus
descendentes crentes nessa aliança de bênçãos, treinando-os e disciplinando-os através de
mandamentos e ordenanças.3

A Aliança Abraâmica e a Bíblia. Em Gênesis 17.7, Deus prometeu estabelecer a aliança com os
descendentes de Abraão (definida como a linhagem de Isaque em 17.21 e então a linhagem de
Jacó em 27.27-40) através de suas gerações por uma aliança perpétua. A natureza duradoura da
aliança de Abraão provê a revelação última de sua incondicionalidade. Enquanto Deus impõe
várias obrigações sobre os descendentes de Abraão, a história bíblica relembra várias falhas da
parte deles ao obedecê-las. Não obstante, a relação dessa aliança permanece em vigor durante as
gerações, guiando a história da redenção para uma conclusão abençoada.
A declaração de Gênesis 17.7 estendendo a aliança para todas as gerações subsequentes é
significante. Ela significa que a história dos descendentes de Abraão (através de Isaque e Jacó)
deve ser entendida teologicamente a partir do ponto de partida dessa aliança. Já que o resto da
humanidade também está previsto nas promessas para abençoar ou amaldiçoar todos os povos, a
aliança abraâmica estabelece por conseguinte o relacionamento fundamental entre Deus e toda
humanidade, de Abraão em diante. Isso significa que, para entender a Bíblia, é preciso lê-la em
vista da aliança Abraâmica, pois essa aliança com Abraão é o pano de fundo fundamental para
interpretar as Escrituras e a história da redenção que ela revela.

A Aliança Abraâmica e as Narrativas de Isaque e Jacó. A natureza fundamental da promessa


certamente governa as narrativas de Isaque e Jacó que, no livro de Gênesis, seguem a narrativa de
Abraão. Duas vezes para Isaque (Gn 26.1-6, 19-26) e três vezes para Jacó (Gn 27.18-29; 29-10-
16; 35.6-15) a promessa é oficialmente confirmada. É dito para Isaque que a promessa está sendo
dada a ele por causa da, ou com base na, promessa dada a Abraão (Gn 26.3, 5, 24). Da mesma
forma, quando a promessa é transferida para Jacó, Deus se apresenta a Jacó como o Deus de
Abraão e de Isaque (Gn 28.13). Os seguintes elementos da promessa aparecem nesses textos:

1. Deus os abençoará (Gn 26.3, 24; 27.27-29)


2. Eles mediarão a bênção de Deus para os outros (Gn 26.4; 27.29; 28.14)
3. Eles mediarão a maldição de Deus (Gn 27.29);
4. Deus dará para eles e para seus descendentes a terra prometida a Abraão (Gn 26.4, 24;
28.14; 35.11)
5. Deus dará a eles inúmeros descendentes (Gn 26.4,24; 28.14; 35.11)
6. Deus será o seu Deus (visto em suas promessas de estar com eles) (Gn 26.3, 24; 28.15)

Essa última afirmação — que Deus estará com eles — é marcante, especialmente no caso de
Jacó, no qual isso é vinculado à promessa do retorno à terra (Gn 28.15). Também deveríamos
notar que quando a promessa é transferida para Jacó, sua mediação da bênção para outros povos
e nações é interpretada como seu reinado sobre eles (Gn 27.29). Quando a bênção é então
transferida para os filhos de Jacó, esse elemento específico do reinado é dado a Judá (Gn 49.8-
10),4 a qual antecipa o Messias, mostrando que seu reinado tem origem na promessa abraâmica
de abençoar todos os povos.
As narrativas de Isaque e Jacó revelam um tema importante acerca da transferência da aliança
abraâmica. Os descendentes físicos a partir de Abraão não garantem em si a herança da aliança.
Ismael, como um legítimo filho de Abraão com os direitos de primogênito, é ignorado em favor
de Isaque. O processo de seleção também se estende para os descendentes de Isaque, com Esaú
sendo ignorado em favor de Jacó. Tanto Ismael quanto Esaú são abençoados por Deus, porém
eles são abençoados como estrangeiros à aliança. Eles são abençoados por causa de Abraão, Isaque
e Jacó. Eles são incluídos entre as famílias da terra, não dentro do “você” em quem as famílias da
terra são abençoadas.
O tema da seletividade na herança da aliança é importante na história da redenção bíblica. A
escolha de Isaque em detrimento de Ismael revela o processo da eleição divina. Não é
necessariamente uma escolha aqui entre condenação e bênção, mas em vez disso entre mediar a
bênção e recebê-la através da mediação. A escolha entre Jacó e Esaú, entretanto, é especialmente
instrutiva para os descendentes de Jacó — as gerações de Israel. Jacó, é escolhido para receber e
mediar a aliança, pois ele é um homem de fé que verdadeiramente deseja a aliança abraâmica (a
pesar de sua pecaminosidade). Esaú desprezou seu direito de primogenitura e é retratado como
um descrente (Hb 12.16-17). Consequentemente, a herança da aliança passou por ele. No seu
arrependimento, a bênção é garantida a ele, mas não é a de um herdeiro da aliança. Ele é
abençoado por causa dos herdeiros da aliança, Isaque e Jacó, e não como ele mesmo sendo um
dos herdeiros.
Em resumo, os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó foram escolhidos por Deus para
receber a aliança. Todos os outros, incluindo outros descendentes de Abraão e Isaque, têm a
oportunidade de receber a bênção através da mediação da linha eleita. Além do mais, a eleição
sucessiva dos patriarcas e sua resposta a Deus em fé revelam dois importantes princípios para a
história de Israel: (1) é possível uma maior seletividade na linha fisicamente eleita; e (2) os
verdadeiros herdeiros são aqueles que creem em Deus, aqueles que receberam a aliança dele pela
fé.

A Aliança Abraâmica na História de Israel e das Nações. Observamos aqui que ao estabelecer
a história de Israel e das nações, as Escrituras testificam sobre a natureza duradoura da aliança
abraâmica. Reservaremos comentários sobre como as bênçãos da aliança foram recebidas para a
discussão da aliança mosaica nas páginas a seguir, pois a aliança mosaica proveu a estrutura
dispensacional na qual Israel experimentou a bênção abraâmica.
Várias referências à aliança abraâmica no restante das Escrituras destacam sua natureza
fundamental para as gerações que seguem os patriarcas. No começo do livro de Êxodo, a
declaração é feita, “Ouvindo Deus o seu gemido, lembrou-se da sua aliança com Abraão, com
Isaque e com Jacó. E viu Deus os filhos de Israel e atentou para a sua condição” (Êx 2.24-25).
Ainda que a palavra aliança não tenha sido usada quando a promessa foi transferida para Isaque e
Jacó, essa passagem ensina que a promessa dada a eles deve ser entendida precisamente dessa
maneira legal. Além do mais, essa declaração em Êxodo 2 é posicionada como um destaque
interpretativo para todos os eventos do Êxodo. A aliança com os patriarcas (Abraão, Isaque e
Jacó) é o relacionamento fundamental e formal que explica as ações de Deus para com Israel e
para com o Egito durante esse tempo.
Nossa observação é confirmada pelo destaque do Senhor em Êxodo 6.3-9 que se refere
explicitamente à sua aliança com os patriarcas e destaca duas das promessas subsidiárias: a terra
da herança e a promessa de ser seu Deus. A promessa feita aos patriarcas de estabelecer essa
aliança com seus descendentes sustenta toda essa passagem. A frase “e me lembrei da minha
aliança” é explicada posteriormente: “eu sou o SENHOR, e vos tirarei de debaixo das cargas do
Egito, e vos livrarei da sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes
manifestações de julgamento.”
Por todo Êxodo e Deuteronômio, e em menor proporção em Levítico e Números, há várias
referências explícitas ao relacionamento da aliança patriarcal, quer seja usando o termo aliança
como tal, ou por referência ao juramento declarado a Abraão, Isaque e Jacó. Também é visto em
repetidas referências a Deus como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Adicionado a isso, há o fato
que essa literatura apresenta uma discussão estendida de duas das promessas subsidiárias da
aliança patriarcal: a Terra Prometida e o relacionamento de Deus com Israel como o seu Deus e
eles como o seu povo. Repetidamente, esses assuntos são mencionados como as promessas feitas
aos patriarcas.5
A natureza fundamental e duradoura da aliança abraâmica como o relacionamento
constitutivo entre Deus e Israel é reafirmada através de declarações explícitas nas narrativas da
história do Israel posterior e na literatura profética e sapiencial. Em 1 Crônicas 16, porções de
dois salmos são historicamente situados nas celebrações de Davi sobre a chegada da arca do
Senhor em Jerusalém. Nos louvores que estão sendo oferecidos estão as palavras:

Lembra-se perpetuamente da sua aliança,


da palavra que empenhou para mil gerações;
da aliança que fez com Abraão
e do juramente que fez a Isaque;
o qual confirmou a Jacó por decreto
e a Israel, por aliança perpétua,
dizendo: Dar-vos-ei a terra de Canaã
como quinhão da vossa esperança.
Então, eram eles em pequeno número,
Pouquíssimos e forasteiros nela (1 Crônicas 16.15-19).

O salmo prossegue para recontar o Êxodo do Egito. Assim como os livros de Êxodo e
Deuteronômio, essa passagem vê a corrente inteira dos eventos compondo o Êxodo a partir da
perspectiva da aliança com Abraão. (O Salmo 105 é a versão estendida desse salmo; ele conclui
com a frase: “Porque estava lembrado da sua santa palavra e de Abraão, seu servo. E conduziu
com alegria o seu povo e, com jubiloso canto, os seus escolhidos.”) Porém, o cronista coloca esse
salmo no contexto da conquista de Jerusalém por Davi de seus habitantes cananeus rebeldes (os
jebuseus), expressando louvor a Deus com a frase “Lembra-se perpetuamente da sua aliança [...]
que empenhou para mil gerações”. Assim, o cronista vê esses eventos em Jerusalém no tempo de
Davi como fundamentalmente baseados na aliança abraâmica (e especialmente relacionados à
promessa da aliança da terra de Canaã).
Em 2 Reis 13.22-23, o escritor interpreta a graça de Deus para com Israel durante o reino de
Jeoacaz como fundamentalmente baseada na aliança com Abraão. Esses eram dias da monarquia
dividida. As tribos do Norte, retendo o nome de Israel, foram lideradas por uma série de reis
idólatras. Jeocaz não foi diferente, exceto que ele pediu a Deus por libertação de Israel da pesada
opressão dos Sírios. As Escrituras dizem: “Porém o SENHOR teve misericórdia de Israel, e se
compadeceu dele, e se tornou para ele, por amor da aliança com Abraão, Isaque e Jacó; e não o
quis destruir e não o lançou ainda da sua presença.” A última frase estende essa lealdade da
aliança ao período do escritor (por volta do tempo do exílio de Israel). Consequentemente, a
aliança abraâmica é vista como a relação fundamental entre Deus, Israel e Judá através da história
das duas monarquias.
À medida que o tempo do exílio se aproximava, as interpretações dos profetas do juízo
vindouro fizeram frequente referência à aliança abraâmica. Por um lado, as advertências acerca
do julgamento iminente estão condicionadas às ofertas para abençoar com promessas da aliança.6
Por outro lado, com a certeza do julgamento, as bênçãos da aliança são preditas para um dia
ainda futuro.7 O ponto importante é que a aliança da promessa feita com os patriarcas continua
como o relacionamento fundamental entre Deus e Israel, ainda que os julgamentos extremos
eliminem por um tempo a experiência presente da bênção (ou pelo menos os aspectos mais
visíveis dessa bênção).

RESUMO
A aliança abraâmica esclarece a maneira pela qual Deus cumprirá para a humanidade a bênção
prometida a Noé para toda carne. Um princípio de mediação foi introduzido, começando com
Abraão e transferindo para seus descendentes que eram selecionados e aceitos por Deus. A partir
do(s) mediador(es), as bênçãos passaram para outros (ambos para mediadores subsequentes e
beneficiários externos que a procuram pela fé — ou na linguagem da aliança, que abençoaram
Deus e Abraão ou os mediadores descendentes dele).
Essa bênção não é completamente detalhada na narrativa de Gênesis, mas sujeita a uma
revelação posterior. Entretanto, a bênção é estabelecida contra o pano de fundo das maldições
anteriores, de morte e destruição, maldições que ameaçavam o plano divino da criação.
Consequentemente, a bênção prometida aparece para oferecer a esperança da redenção a partir
daquelas maldições e a restauração do favor mostrado na criação. A bênção é um renovo de vida
como revelada na criação em si e vista na repetição de certos temas pronunciados na criação da
humanidade.
A revelação desses e alguns outros aspectos da bênção a revela como sendo holística, isto é,
ela cobre todos os aspectos da experiência humana. Incluída dentro da bênção e fundamental
para todos os outros aspectos está a relação entre a humanidade e Deus. A bênção abraâmica
oferece a esperança de relacionamento com Deus, a restauração da devida adoração e a
comunhão divina-humana. Na revelação posterior, vemos que essa bênção inclui a expiação de
Cristo, a retificação da pecaminosidade humana que leva à plena comunhão com Deus e a
ressurreição para imortalidade e vida eterna.
As alianças noética e abraâmica revelam aspectos do plano geral de redenção e estabelecem
uma estrutura fundamental para o relacionamento subsequente entre Deus, a humanidade e a
vida na terra. Esse fundamento é estabelecido em uma determinação divina incondicional com
intenção de abençoar. Ele é revelado tanto nas próprias narrativas patriarcais, quanto na
reafirmação repetitiva da aliança através do progresso da revelação. Ao continuarmos nosso
estudo das alianças, veremos esse fundamento confirmado, esclarecido e expandido. Veremos
também que a confirmação e expansão progressiva se manifestam numa sucessão de novas
dispensações que surgem quando as alianças subsequentes são reveladas, inauguradas e cumpridas
na experiência humana.

A ALIANÇA MOSAICA
O Conteúdo da Aliança Mosaica. À medida que Israel é preparado para entrar na terra
prometida na aliança patriarcal, Moisés relembra uma relação especial que Deus estabeleceu com
eles no Sinai (Horebe). Ele declara:

O SENHOR, nosso Deus, fez aliança conosco em Horebe. Não foi com nossos pais que fez o
SENHOR esta aliança, e sim conosco, todos os que, hoje, aqui estamos vivos. Face a face falou o
SENHOR conosco, no monte, do meio do fogo (Nesse tempo, eu estava em pé entre o SENHOR e
vós, para vos notificar a palavra do SENHOR, porque temestes o fogo e não subistes ao monte.)
(Deuteronômio 5.2-5).

Devido ao papel mediador de Moisés nessa ocasião, essa aliança é geralmente chamada de aliança
mosaica. Como observado na passagem acima, foi uma aliança especial que não foi feita com os
patriarcas. Ainda assim, foi dada a Israel por causa do relacionamento com Deus garantido a eles
pela aliança patriarcal. Relembrando os eventos do Êxodo e a aliança do Sinai, Moisés declara:

Dos céus te fez ouvir a sua voz, para te ensinar, e sobre a terra te mostrou o seu grande fogo, e
do meio do fogo ouviste as suas palavras. Porquanto amou teus pais, e escolheu a sua
descendência depois deles, e te tirou do Egito, ele mesmo presente e com sua grande força, para
lançar de diante de ti nações maiores e mais poderosas do que tu, para te introduzir na sua
terra e ta dar por herança, como hoje se vê” (Deuteronômio 4.36-38).

Já temos visto que os livros do Êxodo e Deuteronômio contêm muitas referências à aliança
abraâmica. Essas referências estabelecem o fato que não somente o evento do Êxodo e da
peregrinação no deserto como um todo, mas também o estabelecimento específico da aliança no
Sinai, são todos baseados na aliança fundamental com Abraão. Reafirmando o caráter gracioso da
garantia patriarcal, o Senhor primeiramente uniu essa geração de Israel a ele mesmo pela fé
(Êx 14.31), e então estabeleceu uma aliança com eles para trazer à sua história do dia-a-dia uma
experiência de bênçãos prometidas aos patriarcas.
A dependência da aliança mosaica sobre a aliança abraâmica é vista numa comparação das
suas respectivas bênçãos. As bênçãos da aliança mosaica (veja Lv 26; Dt 6-11; 28) declaram
novamente as promessas da aliança abraâmica.

1. Deus irá abençoá-los (Lv 26.4-12; Dt 7.13-15; 28.3-12)


2. Deus irá multiplicá-los (Lv 26.9; Dt 6.3; 8.1; 28.11)
3. Deus lhes dará esta terra (Lv 26.5; Dt 6.3; 8.1; 9.4; 28.11)
4. Deus os fará uma grande nação (Dt 7.14; 28.1, 3)
5. Deus será seu Deus e eles serão seu povo (Lv 26.11-12; Dt 7.6-10; 28.9-10)
6. Deus confirmará sua aliança com esses descendentes particulares dos patriarcas (Lv 26.9)

A única diferença na forma como as bênçãos são estabelecidas é que a promessa geral “Eu os
abençoarei”, recebe um conteúdo mais específico no âmbito físico, material e de prosperidade
nacional.
Com Israel preparado para entrar em Canaã na guerra santa, pouco é dito nesses textos
acerca da promessa de mediar bênçãos às nações. A mediação da maldição divina, entretanto, é
prontamente aparente. Deus está usando Israel para julgar as nações de Canaã. Porém, a
promessa de mediar a bênção não é esquecida. Balaão profetiza em Números 24.9: “Benditos os
que te abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem”. Em Jeremias 4.1-2, Israel é admoestado
que se eles retornassem ao Senhor (em concordância com a aliança mosaica), “então, nele serão
benditas as nações e nele se glorificarão”.

A Natureza da Aliança Mosaica. Já que essas bênçãos já estão prometidas na aliança com
Abraão, qual o propósito de declará-las na forma de uma aliança no Sinai? A aliança mosaica é
mais do que uma nova declaração da aliança com os patriarcas?
A diferença entre as duas alianças é vista primeiramente na declaração de Moisés, que a
aliança feita em Horebe (Sinai) não foi feita com os patriarcas (Dt 5.3). Segundo, as duas alianças
possuem formas distintas. Enquanto a aliança com Abraão foi uma aliança outorgada, a aliança
mosaica segue a forma de um tratado de suserania-vassalagem, isto é, um tratado entre um rei
(suserano) e aqueles que lhes estão sujeitos (vassalos). Esse tipo de aliança não é uma outorga para
um sujeito em particular, mas um acordo bilateral entre o rei e a nação sujeita a ele, na qual o rei
promete permitir os que lhe estão sujeitos a desfrutar da vida sob seu reino beneficente em
retorno do seu serviço leal a ele. Por outro lado, ele ameaça punir aqueles que desobedecerem a
suas leis. A aliança mosaica segue essa forma de tratado. De fato, a estrutura do tratado típico
suserano-vassalo pode ser detectada nas estruturas literárias do Êxodo e Deuteronômio
(praticamente todo Deuteronômio segue essa estrutura):

Elementos de um tratado de suserania-vassalagem


1. Identidade do rei (Êx 20.2; Dt 1.1-6)
2. Relacionamento histórico entre o rei e o povo (Êx 20.2; Dt 1.6-4.49)
3. Estipulações, as leis do rei (Êx 20-31; Dt 5-26)
4. Bênçãos e maldições (Lv 26; Dt 27-30)
5. Testemunho (Dt 4.26; 30.19; 31.28)
6. Refeições cerimoniais (Êx 24.9-11)
7. Preservação do tratado (Êx 25.16; 40.21; Dt 31.25-26)
É importante observar que as bênçãos de um tratado de suserania-vassalagem são condicionadas
ao cumprimento das estipulações. A maldição também é uma possibilidade real caso as leis sejam
transgredidas. Isso, por sua vez, ajuda a esclarecer a significância da aliança mosaica.
A aliança abraâmica prometeu uma bênção em um futuro indefinido. Deus simplesmente
disse: “Eu lhe abençoarei”. Além do mais, a bênção em si foi parcialmente indefinida, permitindo
uma especulação futura. A aliança mosaica ofereceu a uma geração específica dos descendentes de
Abraão a oportunidade de experimentar aspectos bem específicos dessa bênção (veja Dt 28), no
futuro definido, o aqui e agora. Porém, essa bênção era dependente da obediência de Israel à lei
da aliança. A desobediência à lei não somente removeria a experiência da bênção, mas traria a
maldição de Deus sobre eles — o oposto radical de uma vida abençoada (veja as maldições
listadas em Dt 28).
A aliança mosaica, então, tinha uma função similar aos mandamentos dados aos patriarcas.
Sua obediência era similar aos meios de experimentar a bênção da aliança em suas vidas pessoais.
A aliança mosaica funcionou dessa forma em favor da nação dos descendentes de Abraão.
Entretanto, devemos também observar que os primeiros três mandamentos dizem respeito à
fé e confiança exclusiva do povo no Senhor. Eles são ordenados a ser um povo de fé no Senhor, e
então são ordenados a viver uma vida de obediência à sua vontade. Assim como Abraão e os
patriarcas, agora a nação como um todo receberia a outorga da aliança pela fé e experimentaria,
em sua própria situação histórica, as bênçãos que Deus concederia a eles.
É importante, nesse ponto, lembrar que a aliança abraâmica é o relacionamento
fundamental. A aliança mosaica depende dela. Isso significa que, ainda que certa geração (ou
gerações) falhe nos termos da aliança mosaica e experimente a maldição ao invés da bênção, a
oportunidade ainda existe para uma oferta renovada de bênçãos para aquela geração ou dos
descendentes posteriores de Abraão.
As declarações dentro da estrutura literária da aliança mosaica confirmam esse ponto. Em
Deuteronômio 4, a porção da aliança imediatamente precedente aos Dez Mandamentos e às leis
adicionais, Moisés adverte Israel das consequências de não seguir os mandamentos de Deus.

Hoje, tomo por testemunhas contra vós outros o céu e a terra, que, com efeito, perecereis,
imediatamente, da terra a qual, passado o Jordão, ides possuir; não prolongareis os vossos dias
nela; antes, sereis de todo destruídos. O SENHOR vos espalhará entre os povos, e restareis
poucos em número entre as gentes aonde o SENHOR vos conduzirá (vv. 26-27).

Ainda assim, ele prevê que a bênção do Senhor irá eventualmente ser restaurada.

De lá, buscarás ao SENHOR, teu Deus, e o acharás, quando o buscares de todo o teu coração e
de toda a tua alma. Quando estiveres em angústia, e todas estas coisas te sobrevierem nos
últimos dias, e te voltares para o SENHOR, teu Deus, e lhe atenderes a voz, então, o SENHOR,
teu Deus, não te desamparará, porquanto é Deus misericordioso, nem te destruirá, nem se
esquecerá da aliança que jurou a teus pais (vv. 29-31).

Perceba a referência à aliança que Deus jurou aos patriarcas. Por causa dessa aliança fundamental,
o fracasso total de uma geração pode ser substituído pela bênção de uma futura.8
Essa relação entre as alianças mosaica e abraâmica ajuda a explicar a combinação de
advertências e promessas dadas pelos profetas, especialmente à medida que a destruição de
Jerusalém e o exílio da nação se aproximava. Jeremias 11.1-5 declara uma maldição contra
aqueles que não obedecerem às leis da aliança mosaica, a aliança que foi dada “para que confirme
o juramento que [Deus] fiz a vossos pais [Abraão, Isaque e Jacó]” que eles seriam o seu povo e
habitariam na terra. Jeremias resume a mensagem de todos os profetas como uma mensagem de
arrependimento para que possam desfrutar da bênção patriarcal (25.5ss). Porém, como resultado
da contínua desobediência [à lei mosaica], Jeremias prediz a destruição iminente e o exílio. E
ainda assim, ele profetiza posteriormente, “Porque eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que
mudarei a sorte do meu povo de Israel e de Judá, diz o SENHOR; fá-los-ei voltar para a terra que
dei a seus pais, e a possuirão”. Ezequiel também explica a destruição e o exílio da nação como um
julgamento por manter os termos da aliança mosaica, porém, como Jeremias, ele prediz uma
futura restauração às bênçãos prometidas aos patriarcas (Ez 20.1-44; 36.17-38).
Os patriarcas que receberam a aliança abraâmica receberam-na pela fé. Certamente, eles
foram escolhidos por Deus. Abraão foi escolhido e recebeu a promessa que a bênção e a
mediação da bênção seriam dadas a seus descendentes. Entretanto, Deus reservou o privilégio de
selecionar alguns dentre todos os descendentes físicos para receber a promessa. Aqueles que a
receberam fizeram pela fé.
Uma vez que a aliança mosaica é uma forma da aliança abraâmica, devemos esperar que a
concessão da bênção exija que os favorecidos sejam crentes. Entretanto, a aliança mosaica foi
dada a Israel como uma nação, o que gera um problema: e se a nação for mista, incluindo crentes
e descrentes — aqueles que adoram e confiam em Deus e aqueles que confiam em si mesmos ou
em falsos deuses? E se alguns deles desprezassem a aliança como fez Esaú?
As histórias de Israel e Judá e as advertências e admoestações dos profetas revelam dois
princípios relacionados que falam a esse respeito. Um é que a resposta da aliança de Deus à nação
varia dependendo do caráter geral dela. Quando Israel como um todo é caracterizado como uma
nação de fé e confiança no Senhor, Deus os abençoa com as bênçãos da aliança mosaica. Por
exemplo, no Mar Vermelho ele os livrou da morte, preservou suas vidas e os direcionou a
herança da terra prometida aos patriarcas. Da parte deles, “o povo temeu ao SENHOR e confiou
no SENHOR e em Moisés, seu servo” (Êx 14.31).
O povo que cruzou o Jordão temeu o Senhor; eles confiaram nele e agiram em obediência
aos mandamentos com base na sua fé. E ele deu-lhes a terra prometida aos seus antepassados. No
fim da conquista, eles afirmaram juntos:

Então, respondeu o povo e disse: Longe de nós o abandonarmos o SENHOR para servirmos a
outros deuses; porque o SENHOR é o nosso Deus; ele é quem nos fez subir, a nós e a nossos
pais, da terra do Egito, da casa de servidão, quem fez estes grandes sinais aos nossos olhos e
nos guardou por todo o caminho em que andamos e entre todos os povos pelo meio dos quais
passamos. O SENHOR expulsou de diante de nós estas gentes, até o amorreu, morador da terra;
portanto, nós também serviremos ao SENHOR, pois ele é o nosso Deus. Disse o povo a Josué:
Ao SENHOR, nosso Deus, serviremos e obedeceremos à sua voz (Josué 24.16-18, 24).

Para essa geração, as Escrituras dizem: “o SENHOR dera repouso a Israel de todos os seus inimigos
em redor” (Js 23.1). Josué também testificou: “nem uma só promessa caiu de todas as boas
palavras que falou de vós o SENHOR, vosso Deus; todas vos sobrevieram, nem uma delas falhou”
(Js 23.14).
Em 1 Samuel 7, no fim do tempo dos Juízes, “os filhos de Israel tiraram dentre si os baalins e
os astarotes e serviram só ao SENHOR” (v 4). Eles confessaram, “pecamos contra o SENHOR”, e
clamaram ao Senhor para salvá-los (6-8). E o Senhor os livrou e garantiu paz na terra (vv. 9-14).
Os reinos de Davi e Salomão estabeleceram o culto ao Senhor em Israel, de tal forma que no
reino de Salomão foi dito:

Eram, pois, os de Judá e Israel muitos, numerosos como a areia que está ao pé do mar;
comiam, bebiam e se alegravam. Dominava Salomão sobre todos os reinos desde o Eufrates
até à terra dos filisteus e até à fronteira do Egito; os quais pagavam tributo e serviram a
Salomão todos os dias da sua vida [...] Porque dominava sobre toda a região e sobre todos os
reis aquém do Eufrates, desde Tifsa até Gaza, e tinha paz por todo o derredor. Judá e Israel
habitavam confiados, cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, desde Dã até
Berseba, todos os dias de Salomão (1 Reis 4.20-21, 24-25).

Entretanto, quando Israel como um todo foi caracterizado como uma nação sem fé, eles
experimentaram as maldições ao invés das bênçãos da aliança. No Sinai, enquanto Moisés estava
no monte, o povo fez um ídolo dizendo: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da
terra do Egito” (Êx 32.4). Em resposta, o Senhor disse a Moisés: “Agora, pois, deixa-me, para
que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação”
(Êx 32.10). Esse julgamento proposto foi similar àquele que o Senhor realizou sobre toda
humanidade nos dias de Noé e está diretamente relacionado com a falta de fé de Israel no
Senhor. A decisão posterior de Deus de não realizar essas ameaças leva a uma revelação do seu
caráter como “compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade”.
Entretanto, para que não haja dúvida, ele rapidamente adiciona que, “não inocenta o culpado”
(Êx 34.6-7).
O livro de Juízes conta a história da luta de Israel com a fé e as bênçãos divinas provisórias.
Em Juízes 2.10, lemos que depois da morte da geração que entrou na terra sob Josué, “outra
geração após eles se levantou, que não conhecia o SENHOR, nem tampouco as obras que fizera a
Israel”. Eles eram uma geração incrédula que:

Deixaram o SENHOR, Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e foram-se após outros
deuses, dentre os deuses das gentes que havia ao redor deles, e os adoraram, e provocaram o
SENHOR à ira. Porquanto deixaram o SENHOR e serviram a Baal e a Astarote. Pelo que a ira do
SENHOR se acendeu contra Israel e os deu na mão dos espoliadores, que os pilharam; e os
entregou na mão dos seus inimigos ao redor; e não mais puderam resistir a eles. Por onde quer
que saíam, a mão do SENHOR era contra eles para seu mal, como o SENHOR lhes dissera e
jurara; e estavam em grande aperto (Juízes 2.12-15).

A partir do fim do reinado de Salomão até a história dos reis de Israel e Judá, o povo lutou com a
fé no Senhor. A despeito de notáveis exceções, ambas as nações vieram a ser caracterizadas como
um povo descrente, nações que se esqueceram do Senhor ao colocar sua confiança em outros
deuses. Eventualmente, isso trouxe a maldição final da morte, destruição e expulsão da terra da
bênção. Em 2 Crônicas 36.11-21, lemos como Zedequias, o último rei de Judá, seguindo o
padrão daqueles que vieram antes dele:

Fez o que era mau perante o SENHOR, seu Deus, e não se humilhou perante o profeta Jeremias,
que falava da parte do SENHOR. [...] mas endureceu a sua cerviz e tanto se obstinou no seu
coração, que não voltou ao SENHOR, Deus de Israel. Também todos os chefes dos sacerdotes e
o povo aumentavam mais e mais as transgressões, segundo todas as abominações dos gentios; e
contaminaram a casa que o SENHOR tinha santificado em Jerusalém. O SENHOR, Deus de seus
pais, começando de madrugada, falou-lhes por intermédio dos seus mensageiros, porque se
compadecera do seu povo e da sua própria morada. Eles, porém, zombavam dos mensageiros,
desprezavam as palavras de Deus e mofavam dos seus profetas, até que subiu a ira do SENHOR
contra o seu povo, e não houve remédio algum.

Porque a nação como um todo foi caracterizada como um povo descrente e sem fé, a ira de Deus
veio sobre eles. Eles foram cortados das bênçãos prometidas a Abraão e seus descendentes, pois
essas bênçãos eram para serem recebidas pela fé no Senhor. Sob os termos da aliança mosaica,
quando a nação era uma nação de fé, confiando no Senhor e andando em seus caminhos, eles
eram abençoados com a forma dispensacional da bênção abraâmica oferecida na aliança mosaica.
Quando eles eram uma nação que rejeitava o Senhor, caracterizada pela descrença, colocando sua
fé em outros deuses que não o Senhor e andando em seus caminhos, eles não recebiam a bênção
de Deus. Eles eram vistos por Deus como “não meu povo” (Os 1.9).
Consequentemente, vemos que na dispensação mosaica Deus se relacionou com Israel como
uma nação, um grupo coletivo de pessoas que poderia ser caracterizado no todo, quer como um
grupo coletivo de pessoas de fé, ou um povo descrente. Porém, havia outro princípio, o princípio
do remanescente da fé. O tratamento de Deus da nação como um todo leva em consideração
esses indivíduos que verdadeiramente colocaram sua fé, segurança e confiança no Senhor. Eles
são os verdadeiros beneficiários da outorga abraâmica, significando que não somente eles
recebem a bênção do Senhor, mas eles fazem mediação dela para o restante.
A presença de uma grande maioria de crentes dentro de Israel leva à caracterização da nação
como de uma única fé. Entretanto, o fato de que a nação como um todo é tratada como um
povo crente e fiel não significa que todo membro dela é dessa forma um crente e
consequentemente justificado como foi Abraão. Em vez disso, a presença de uma grande maioria
de indivíduos que são crentes, e consequentemente justificados, cria uma situação na qual o
Senhor concede bênçãos nacionais sobre o todo coletivo.
Quando a nação como um todo é caracterizada pela descrença, não obstante o Senhor
mantém um remanescente de fé dentro dela. Nos dias em que Acabe e Jezabel governaram Israel
e levaram a nação ao culto a Baal, as maldições da aliança de fome e tribulação caíram sobre a
nação. Elias sentiu que ele era o único adorador de Deus deixado entre o povo. Porém, o Senhor
revelou a ele que havia deixado sete mil que ainda o adoravam (1Rs 19.14-18).
Conforme o julgamento de Deus vem sobre a nação, que de modo geral é caracterizada pela
incredulidade, o remanescente mantém sua confiança no Senhor. Suas vidas estão
fundamentadas sobre a Rocha de Israel, encontrando segurança nele, mesmo que uma destruição
surgisse ao redor deles (Is 28.16). A bênção feita na aliança com eles é uma esperança escatológica
de que a ira de Deus caindo sobre a nação servirá como purificação, um fogo refinador que os
conduzirá — o remanescente de fé — à bênção da aliança.

Mas quem poderá suportar o dia da sua vinda? E quem poderá subsistir quando ele aparecer?
Porque ele é como o fogo do ourives e como a potassa dos lavandeiros. Assentar-se-á como
derretedor e purificador de prata; purificará os filhos de Levi e os refinará como ouro e como
prata; eles trarão ao SENHOR justas ofertas. Então, a oferta de Judá e de Jerusalém será
agradável ao SENHOR, como nos dias antigos e como nos primeiros anos. [...] Pois eis que vem
o dia e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os que cometem perversidade serão
como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o SENHOR dos Exércitos, de sorte que não lhes
deixará nem raiz nem ramo. Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da
justiça, trazendo salvação nas suas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria
(Malaquias 3.2-4; 4.1-2; cf. Is 1.24-26).

Esse tema é repetido geralmente nos profetas. O Senhor deixará um remanescente daqueles que
se refugiam nele (Sf 3.12-13), que verdadeiramente confiam no Senhor (Is 10.20-23). Eles serão
suas ovelhas e ele governará sobre eles (Mq 2.12; 4.6-8). Eles serão santos e abençoados com a
bênção prometida aos patriarcas (Is 4; Mq 7.18-20; Sf 8.11-13). Nesse tempo, eles constituirão
totalmente a nação de Israel, para que essa seja de fato uma nação totalmente constituída pela fé
e confiança no Senhor, e por consequência, totalmente abençoada por ele.
O remanescente da fé, que através dos julgamentos da ira de Deus surge para se tornar a
nação escatológica, é também o objeto das profecias de uma nova aliança que olha para além da
dispensação mosaica para o cumprimento da garantia feita aos patriarcas, um tema que nos leva
adiante em nosso estudo das alianças. Eles são também o povo a quem um reino eterno é dado
nas visões apocalípticas de Daniel — os santos do Altíssimo. Esse tema, por sua vez, nos levará a
um capítulo posterior onde traçaremos o ensino bíblico acerca do reino escatológico de Deus.

O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA MOSAICA


Como um tratado bilateral, pode-se dizer que a aliança mosaica é cumprida sucessivamente na
história de cada geração dos descendentes dos patriarcas. É uma aliança que diz respeito ao
relacionamento concreto e presente de Israel e Judá com Deus. Em cada geração, Deus manifesta
a bênção ou a maldição (os aspectos de ambos) em resposta à fé e obediência (ou descrença e
desobediência) do povo. Entretanto, predições começam a surgir nos profetas posteriores,
dizendo que a aliança mosaica será substituída por outra aliança que cumprirá a intenção que
Deus revelou na promessa abraâmica. Consequentemente, além desse cumprimento histórico
vigente, falaremos de um cumprimento da aliança mosaica que o Novo Testamento vê como se
manifestando em Jesus Cristo.

A DISPENSAÇÃO MOSAICA
Antes de deixar essa discussão da aliança mosaica, precisamos observar o que ela tem a dizer
acerca da história das dispensações. O arranjo relacional da aliança mosaica é identificado pelo
apóstolo Paulo como a dispensação que precede aquela na qual agora nos encontramos. Nosso
estudo nesse ponto indica que quando foi instituída, a dispensação mosaica marcou uma
mudança na forma como Deus se relacionara com os patriarcas. Uma aliança que não existia na
época dos patriarcas agora foi feita. Ela preparou um arranjo pelo qual Deus se relacionaria com
os descendentes dos patriarcas como uma nação, distinguindo-os de outras nações na terra. Não
era, entretanto, totalmente diferente da dispensação patriarcal que a precedeu. Na verdade, a
dispensação mosaica foi uma dispensação da bênção prometida aos patriarcas. As promessas feitas
na aliança com Noé e com Abraão (que também assumem os planos e intenção para humanidade
revelada nas narrativas da criação) formam a continuidade estrutural entre essas dispensações.
Porém, a mudança dispensacional ocorre quando Deus institui um novo arranjo para realizar
essas bênçãos.
Ao mesmo tempo, a dispensação mosaica é uma progressão na história dispensacional. Ela
prepara um culto religioso nacional para o relacionamento entre Deus e seu povo. A aliança
mosaica também ofereceu uma revelação extensiva da vontade de Deus ao dar a Lei e ela proveu
os meios para abençoar uma nação inteira e, através dessa nação, todas as pessoas na terra.

A NOVA ALIANÇA
O Conteúdo da Nova Aliança. Entre as profecias de Isaías, Jeremias e Ezequiel, com respeito à
futura restauração das bênçãos da aliança patriarcal, depois do exílio de Israel e Judá, estão
predições de uma nova aliança que substituirá a aliança feita no Sinai. Essa nova aliança tem um
propósito similar à aliança mosaica — isto é, trazer a bênção da aliança abraâmica de volta à
experiência presente de uma geração ou gerações de Israel. Entretanto, enquanto a aliança
mosaica foi estabelecida com austeras advertências da falha nacional e responsabilidade em
relação à maldição do julgamento de Deus, os profetas falaram de forma mais otimista acerca da
nova aliança.

Um Novo Coração Habitado Pelo Espírito de Deus. Uma razão para o otimismo é que a nova
aliança será constituída por uma ação divina no coração humano. Esse será um ato unilateral de
Deus que tornará o favorecido fielmente dedicado a Deus e obediente à sua lei.
Jeremias fala desse gracioso ato de Deus como a escrita da lei no coração. “Porque esta [em
contraste com a lei de Moisés] é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias,
diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas
inscreverei”(Jr 31.33). O ato de escrever a lei nos seus corações é um ato de tornar a lei de Deus
um princípio interno de vida e conduta do seu povo. Deus está dizendo que pela ação divina ele
irá sobrepor a distância entre os mandamentos divinos externos e a rebelião interna humana. Ele
os fará ser o tipo de povo que ele quer que sejam. Como resultado da escrita da sua lei
diretamente em seus corações, ele diz: “eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jr 31.33); e
“todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles” (v. 34).
Essa ação é antecipada na promessa ao final de Deuteronômio, que na restauração — depois
da consumação das maldições da aliança mosaica — Deus faria a circuncisão nos corações do seu
povo. Ele já ordenou que eles circundassem seus corações (Dt 10.16; cf. Jr 4.4; 9.25), uma
metáfora que fala de fazê-los santos, separados para Deus (a circuncisão física foi um sinal que,
como um povo, eles eram santos, separados para Deus). Ainda assim, advertências foram dadas
de que eles falhariam, invocando as maldições da aliança até mesmo ao ponto da expulsão da
terra da herança. Ao contemplar seu retorno a um estado de bênção (de acordo com a aliança
patriarcal), Deuteronômio 30.6 prediz: “O SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o
coração de tua descendência, para amares o SENHOR, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua
alma, para que vivas”.
Em Jeremias 32, a ação divina no coração humano é descrita como incutindo o temor do
Senhor: “porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim” (v. 40). Isso
também é descrito como dando a eles um coração diferente em direção a Deus: “Dar-lhes-ei um
só coração e um só caminho, para que me temam todos os dias, para seu bem e bem de seus
filhos” (v. 39).
O tema de um novo coração é tomado em Ezequiel: “Dar-lhes-ei um só coração, espírito
novo porei dentro deles; tirarei da sua carne o coração de pedra e lhes darei coração de carne;
para que andem nos meus estatutos, e guardem os meus juízos, e os executem; eles serão meu
povo, e eu serei o seu Deus” (Ez 11.19,20). Isso é repetido em Ezequiel 36.26: “Dar-vos-ei
coração novo”, com a promessa associada da habitação do Espírito. A habitação do Espírito
Santo será o agente pelo qual a escrita da lei no coração é cumprida e o novo coração é assim
formado. “Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os
meus juízos e os observeis” (Ez 36.27). Isaías combina ambos os conceitos da Palavra e Espírito
ao preceder a aliança que o Senhor fará quando ele vier como redentor de Sião: “Quanto a mim,
esta é a minha aliança com eles, diz o SENHOR: o meu Espírito, que está sobre ti, e as minhas
palavras, que pus na tua boca, não se apartarão dela, nem da de teus filhos, nem da dos filhos de
teus filhos, não se apartarão desde agora e para todo o sempre, diz o SENHOR” (Is 59.21).

O Perdão e a Purificação do Pecado. Uma segunda razão para o otimismo dos profetas acerca
da nova aliança contrastar com a antiga é que Deus garantirá a seu povo o perdão e a purificação
de todo pecado. Em Jeremias, o Senhor declara, “perdoarei as suas iniquidades e dos seus
pecados jamais me lembrarei” (Jr 31.34; cf. Ez 16.62-63). No livro de Ezequiel, ele declara:
“Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de
todos os vossos ídolos vos purificarei” (Ez 36.25). Tendo sido purificado da idolatria, o povo será
confirmado na fidelidade do Senhor. Deus será seu Deus e ele abençoará o povo com as bênçãos
prometidas a Abraão.

Ressurreição e Vida Eterna. Finalmente, a nova aliança oferece a bênção mais importante,
prometendo ressurreição dos mortos (Ez 37.1-23). É a bênção mais importante porque sobrepõe
a maldição da morte pronunciada sobre toda a humanidade em Gênesis 3. É a promessa da vida
imortal, que é a verdadeira vida, a redenção do plano da criação. Em Ezequiel 37.12, a promessa
do Senhor, “abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela”, está ligada à promessa “vos trarei à
terra de Israel”. A ressurreição com uma visão em direção à herança da Terra Prometida é
cumprida pelo Espírito Santo, conforme Deus diz em 37.14: “Porei em vós o meu Espírito, e
vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra” (veja também a visão dos vv. 1-10, em o
Espírito vem aos mortos). Por um lado, a habitação do Espírito Santo e a herança da terra da
promessa olham de volta para 36.22-28. Por outro lado, entretanto, também olha em direção a
37.15-28, quando Deus habitando em seu povo e seu povo habitando na terra são chamados de
uma “aliança de paz” e uma “aliança perpétua” (37.26).
A promessa da ressurreição dos mortos e imortalidade foi revelada nas profecias de Isaías
como uma bênção que seguiria o grande dia do julgamento do Senhor. Ele escreve:

O SENHOR dos Exércitos dará neste monte a todos os povos um banquete de coisas gordurosas,
uma festa com vinhos velhos, pratos gordurosos com tutanos e vinhos velhos bem-clarificados.
Destruirá neste monte a coberta que envolve todos os povos e o véu que está posto sobre as
nações. Tragará a morte para sempre, e, assim, enxugará o SENHOR Deus as lágrimas de todos
os rostos, e tirará de toda a terra o opróbrio do seu povo, porque o SENHOR falou. Naquele dia,
se dirá: “Eis que este é o nosso Deus, em quem esperávamos, e ele nos salvará; este é o
SENHOR, a quem aguardávamos; na sua salvação exultaremos e nos alegraremos” (Isaías 25.6-
9).

Visto que a aliança abraâmica prometera que todos os povos seriam abençoados em Abraão e seu(s)
descendente(s), assim, a bênção da ressurreição dos mortos é concedida a todos os povos.
Em outro lugar, a ressurreição é prometida especialmente ao remanescente de Israel. Isaías
promete que depois do grande dia do julgamento:

Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que
habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz
os seus mortos (Isaías 26.19).

Daniel também, em uma visão paralela àquela na qual os santos do Altíssimo herdam um reino
eterno, profetiza: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e
outros para vergonha e horror eterno” (12.2).
Ezequiel, entretanto, identifica essa bênção como um aspecto da nova aliança que Deus fará
com seu povo. É uma bênção que correlaciona com a forma especial na qual Deus habitará em e
com seu povo, santificando-os e outorgando sobre eles suas bênçãos para sempre.9

A Natureza da Nova Aliança. As bênçãos da nova aliança se mostram como uma aliança
outorgada, em vez de um contrato bilateral ou tratado. Consequentemente, sua superioridade
sobre a aliança mosaica, a qual ela substitui, é imediatamente aparente. Como a aliança mosaica,
ela oferece trazer as bênçãos da outorga abraâmica para a experiência cotidiana do povo de Deus.
Porém, a nova aliança cumpre a intenção da outorga abraâmica ao outorgar a experiência dessas
bênçãos a Israel. Ela irá substituir tanto a dispensação mosaica quanto a patriarcal, até mesmo ao
garantir um coração fiel, leal e obediente ao povo de Deus, eliminando a separação entre a
promessa da bênção futura e a experiência diária dela. Na nova aliança, Deus confirmará seu
povo na fé e obediência. Será a suprema manifestação de graça, pois ele dará ao seu povo aquilo
que exige deles e ele exigirá aquilo que dá.10
Assim como a aliança abraâmica, da qual é o cumprimento, a concessão da nova aliança será
recebida pela fé. As promessas da nova aliança aparecem em Jeremias e Ezequiel como a
esperança expandida ao remanescente de Israel e Judá, aqueles que esperam no Senhor o
cumprimento das bênçãos da aliança enquanto vivem em um tempo quando julgamento e
maldição caíram sobre a nação como um todo.

A Nova Aliança e a Aliança Abraâmica. A ação divina sobre os corações humanos — perdão
completo dos pecados — e ressurreição dos mortos são bênçãos que expandem a noção de bênção
na aliança abraâmica. Agora devemos entender que o cumprimento da promessa “te abençoarei”
(Gn 12.2) incluirá a habitação do Espírito Santo em seus corações e a internalização da vontade
divina na volição humana. A bênção, também incluirá o perdão e a purificação do pecado, com a
implicação de que a maldição do juízo divino, tanto atual quanto possível, será removida da
experiência do povo de Deus. E o fato que essas maldições são completamente removidas é visto
na promessa da vida imortal.
Enquanto a ressurreição dos mortos é, sem dúvidas, nova, não deveríamos assumir que Deus
nunca condicionou os corações do seu povo, que seu Espírito nunca habitou neles, ou que ele
nunca antes perdoou os seus pecados. Entretanto, a nova aliança faz dessas bênçãos um elemento
constitutivo eterno do relacionamento de Deus com seu povo. Eles serão dados a todas as nações
(“desde o menor até ao maior deles”, Jr 31.34) para sempre (“desde agora e para todo o sempre”,
Is 59.21).
Além do mais, há um avanço qualitativo na experiência dessas bênçãos sob a nova aliança. O
perdão é abrangente e eterno. E a habitação do Espírito de Deus produz santificação completa.
O ponto é que a nova aliança promete uma completa eliminação do pecado para sempre. Será o
cumprimento do decreto celestial visto na visão de Daniel: “para fazer cessar a transgressão, para
dar fim aos pecados, para expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna” (Dn 9.24).
O relacionamento da nova aliança com a aliança de Abraão também é visto na forma como
as promessas da nova aliança reafirmam as bênçãos já reveladas na aliança abraâmica. As
promessas que pertencem à aliança patriarcal e que são citadas nas predições da nova aliança são:

1. Deus os abençoará (referência feita às bênçãos de paz e prosperidade especificadas pela


aliança mosaica, uma especificação da promessa geral de abençoar na aliança patriarcal)
(Is 49.9-10; Jr 32.42-44; Ez 34.26-29; 36.8-9, 29-36)
2. Deus lhes dará a terra prometida aos seus antepassados (Is 49.8; 54.3; Jr 32.37, 41;
Ez 11.17; 34.27; 36.24, 28; 37.12, 14, 21, 25-26)
3. Deus multiplicará os seus descendentes (Jr 31.27; Ez 36.10-12, 37-38; 37.26)
4. Deus fará deles uma grande nação (Jr 31.36)
5. Deus os fará seu povo e ele será seu Deus (Jr 31.33; 32.38; Ez 11.20; 34.24, 30-31; 36.28;
37.23, 27)

A promessa específica feita aos patriarcas de abençoar todos os povos através deles não é
explicitamente declarada nesses textos. Entretanto, já temos visto que certas promessas, tais como
a ressurreição dos mortos, são direcionadas para todos os povos em outras profecias. A extensão
universal da bênção é implicada nos textos de Jeremias e Ezequiel na promessa para conceder paz
com as nações (Jr 32.37; 33.16; Ez 34.25, 28). Isso também está implícito no termo aliança de
paz, que é algumas vezes usada para se referir a essa nova aliança (Is 54.10; Ez 34.25; 37.26).
Nessa paz, todas as nações conhecerão e temerão o Senhor (Is 59.19; Ez 37.28).
Paz com as nações foi um elemento da aliança davídica, uma aliança que ainda temos que
examinar. Consequentemente, não deveria ser uma surpresa que à medida que a nova aliança
incorpora a promessa de paz com as nações, o faz em conjunto com o cumprimento da aliança
davídica. Em Isaías 55.3-5, a promessa de uma aliança perpétua (também chamada de aliança de
paz, 54.10, que manifestará a “misericórdia eterna” de Deus, 54.8) está de acordo com as “fiéis
misericórdias prometidas a Davi” na qual ele liderará as nações e fará uma reconciliação entre elas
e Israel no culto ao Senhor.
Em Isaías 49, o Servo do Senhor será feito “mediador da aliança do povo” (v. 8). Esse servo é
identificado como Israel no verso 3. Entretanto, no verso 5, ele é um israelita que trará o resto de
Israel de volta ao Senhor. A restauração à terra (v. 8), prosperidade e multiplicação dos
descendentes (vv. 10-21), estão entre as promessas patriarcais a serem cumpridas através do
ministério desse servo. A maioria dos intérpretes reconhece um ministério messiânico em
perspectiva aqui. O fato de o servo ser feito como “mediador da aliança do povo” vincula a
promessa de uma nova aliança (que é dada precisamente para cumprir essas promessas
abraâmicas) com o cumprimento da aliança davídica. (Teremos mais a dizer acerca disso depois.)
Deveríamos também observar que nessa passagem temos alguma informação sobre como a nova
aliança cumprirá a promessa de abençoar as nações. No verso 6 lemos: “Sim, diz ele: Pouco é o
seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes de Israel;
também te deu como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra.”
A promessa da aliança nessa passagem se conecta com outras profecias que predizem uma bênção
gentílica.
A promessa de uma nova aliança mostra a natureza duradoura da aliança abraâmica, uma vez
que a nova aliança será dada precisamente para trazer a promessa da aliança abraâmica ao seu
cumprimento. Ao mesmo tempo, o significado de “bênção” prometida aos patriarcas é
expandido para incluir a habitação do Espírito Santo no povo e uma ação divina no coração
humano para fazê-los santos. A bênção é também encarada agora ao incluir a vida imortal e
duradoura através da ressurreição dos mortos. O fato que a promessa da renovação espiritual é
posta lado a lado com as promessas de prosperidade física e material (incluindo uma ressurreição
corporal dos mortos), mostra que, na teologia bíblica, as bênçãos físicas e espirituais não
deveriam ser pensadas como contraditórias ou mutuamente exclusivas.
Ainda que essas promessas sejam dadas em um tempo de grande conflito com as nações
gentílicas — de tal forma que o tema da restauração é geralmente dado em conjunto com
declarações de retribuição sobre os poderes gentílicos — o tema da bênção mediadora a todas as
nações não está ausente. É notável, entretanto, que esse tema da bênção para as nações é
discutido em textos que vinculam a nova aliança à aliança davídica. Não seria surpreendente que
a maioria do que o Antigo Testamento tem a dizer sobre a bênção das nações será encontrado
nas profecias que falam do reino de Deus escatológico.

A Dispensação da Nova Aliança. A nova aliança é profetizada como um novo arranjo para a
experiência da bênção patriarcal. Conforme vimos no último capítulo, Paulo fala de uma nova
dispensação do Espírito que segue a dispensação da aliança mosaica. Quando examinarmos o
ensino paulino da nova aliança no próximo capítulo, veremos que essa nova dispensação do
Espírito é precisamente uma inauguração da nova aliança.
Do ponto de vista do Antigo Testamento, esperava-se que a nova aliança trouxesse as
bênçãos patriarcais ao cumprimento eterno. Não obstante, a dispensação da nova aliança não
poderia ser completamente diferente da dispensação a qual a precedeu. Seu propósito, e sua
continuidade com as dispensações precedentes, residem nas alianças patriarcais. A dispensação da
nova aliança será um avanço progressivo sobre a dispensação mosaica. Trará uma maior revelação
de Deus e expandirá (não substituirá) o sentido de “te abençoarei”. Essa expansão ocorrerá através
de uma reversão decisiva da maldição divina sobre a humanidade ao ressuscitar os mortos — um
povo renovado e santificado, voluntário e obediente — em comunhão com Deus, inumeráveis,
habitando na terra e na sua presença para sempre.

A ALIANÇA DAVÍDICA
Davi, o segundo rei de Israel, é apresentado nas Escrituras como um homem de fé no Senhor.
Ele é descrito como o homem segundo o coração de Deus (1Sm 13.14); alguém que “fez o que
era reto perante o SENHOR e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara, em todos os dias da sua
vida, senão no caso de Urias, o heteu” (1Rs 15.5). Com a exceção observada, ele é apresentado
nas Escrituras como alguém que exemplificou a relação com Deus esperada na aliança mosaica.11
No ponto mais alto do reinado de Davi — depois dele ter conquistado Jerusalém e tê-la
renovado como a Cidade de Davi, depois de trazer a arca do Senhor para a cidade (porém antes
do “caso de Urias, o heteu”) — Davi propôs construir uma “casa” (templo) para o Senhor. O
Senhor abençoou Davi ao lhe dar uma promessa. O Senhor construiria uma casa (uma dinastia)
e um de seus filhos construiria o templo do Senhor.

Conteúdos da Aliança Davídica. Essa promessa é desenvolvida como um aglomerado das


promessas encontradas principalmente em 2 Samuel 7 e 1 Crônicas 17, mas reiterada e
suplementada nos Salmos 89, 110 e 132. Há duas partes principais: as promessas concernentes
ao estabelecimento da casa de Davi e das promessas concernentes ao relacionamento íntimo entre
Deus e o descendente de Davi.

A Promessa de Construir a Casa Davídica. A promessa central, e primária, é a da construção


da casa de Davi. Isso é explicado pela promessa do Senhor de estabelecer o reino do descendente
de Davi, uma promessa que é repetida quatro vezes em 2 Samuel 7, assim como em
1 Crônicas 17, alternando os termos reino e trono para ênfase literária (2Sm 7.12, 13, 16;
1Cr 17.11-12, 14). Três vezes em cada passagem é dito que o reino prometido é para sempre.
2 Samuel 7 enfatiza a continuidade do governo davídico ao usar as frases “sua casa”, “seu trono” e
“seu reino”. 1 Crônicas 17 destaca o estabelecimento do reinado do descendente dentro do governo
real sobre Israel e as nações, ao estabelecer em paralelo as frases “seu trono será estabelecido para
sempre” e “o confirmarei na minha casa e no meu reino para sempre” (1Cr 17.14).
A promessa de Deus de construir a casa de Davi é repetida em outra passagem também. O
Salmo 132.11 declara:

O SENHOR jurou a Davi com firme juramento e dele não se apartará:


“Um rebento da tua carne farei subir para o teu trono.”

O salmo 89, escrito mais provavelmente durante o exílio de Judá, repetidamente relembra a
promessa da aliança de Deus para (1) estabelecer os descendentes de Davi e (2) estabelecer o
trono de Davi (v. 4, 29, 36-37). Como o salmo 132.11, a promessa é vista como estando
fundamentada na própria veracidade do próprio Deus (Sl 89.1-3, 14, 24, 28, 33, 35).

A Promessa do Relacionamento Especial com o Filho de Davi. A segunda maior parte da


promessa davídica diz respeito ao relacionamento entre Deus e o rei davídico. “Eu serei seu pai e
ele será meu filho” (1Cr 17.13; cf. 2Sm 7.14). Da mesma forma, no Salmo 89.26-27 lemos:

Ele me invocará, dizendo: “Tu és meu pai,


meu Deus e a rocha da minha salvação.”
Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito,
o mais elevado entre os reis da terra.

Essa linguagem revela a intimidade que existirá entre o rei da aliança e o Senhor, bem como a
segurança desse relacionamento. O Senhor declara que sua benignidade habitará com esse rei, o
filho adotado do Senhor (2Sm 7.15; 1Cr 17.13; Sl 89.24, 28, 33). Da sua parte, o rei confia no
Senhor e pela fé ele recebe as promessas da sua aliança. No vínculo do amor de Deus por ele e
através da sua confiança mútua no Senhor, o reino do Filho é estabelecido sobre tudo e para
sempre.
A promessa que “esse me edificará casa” (1Cr 17.12; 2Cr 17.12; 2Sm 7.13) também mostra
a resposta amorosa do Filho ao Pai. A casa falada aqui é o templo do Senhor, o novo modo da
presença de Deus entre o seu povo. De tal forma, o templo funcionaria como um cumprimento
histórico da bênção abraâmica declarada a Jacó, que Deus estaria com seu povo, assim
constituindo-o como seu povo e revelando a si mesmo como seu Deus.
A promessa para Davi foi que seu filho estabeleceria o modo pelo qual Deus seria
apresentado entre seu povo e pelo qual o povo, por sua vez, adoraria a Deus. Vemos isso
primeiramente em Salomão, quando ele constrói o templo de Deus.12 O Senhor o aceitou como
o modo da sua presença entre seu povo ao enchê-lo com sua glória (1Rs 6.12-13; 2Cr 7.1-4).
Salomão apresentou o templo ao povo como o lugar central para o culto em Israel. Dessa forma,
o rei apoiou e afirmou o culto a Deus. E 1 Crônicas 17.12 e 2 Samuel 7.13, a frase “e eu
estabelecerei o seu trono para sempre”. Isso mostra que o estabelecimento do trono do rei anda
lado a lado com o estabelecimento do rei do culto a Deus.
Construir e manter um templo são atos sacerdotais. Sacerdotes pagãos mantiveram altares
para o culto a seus deuses. Sacerdotes levíticos também foram conhecidos por manter altares (em
violação à lei mosaica, veja Jz 18). Já que o rei davídico constrói e mantém a casa de Deus, não é
surpreendente que ele seja descrito nas Escrituras como um tipo de sacerdote. Em Salmos 110.4
lemos:

O SENHOR jurou e não se arrependerá:


Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque.

Melquisedeque foi o rei de Salém e “sacerdote do Deus Altíssimo” que abençoou Abraão
(Gn 14.18). A conquista de Jerusalém por Davi, a antiga cidade de Salém, deram-lhe o antigo
trono de Melquisedeque. Apesar de a cidade ter caído em idolatria desde o tempo de
Melquisedeque, Davi — o novo Melquisedeque — restaurou o culto ao único verdadeiro Deus.
Além do mais, como rei não somente de Jerusalém, mas de todo Israel, ele fez de Jerusalém o
centro religioso para toda a nação. Ao trazer a arca do Senhor para a cidade, as Escrituras
descrevem Davi estando vestido de trajes sacerdotais liderando os sacerdotes em uma jubilosa
celebração (2Sm 6.14-15, 18-19). Como o rei-sacerdote (da ordem de Melquisedeque) ele fez
planos para a construção do templo e exercitou sua autoridade sobre os sacerdotes sujeitos, os
levitas, ao organizá-los para o serviço na casa de Deus quando essa casa fosse construída
(2Cr 23.18; 29.25-30; 35.2-6, Ed 3.10; Ne 12.24).
Não deveria haver dúvida de que o sacerdócio de Melquisedeque é parte da aliança davídica.
Assim como a aliança abraâmica, a aliança davídica é uma coleção de promessas. O termo aliança
aparece pela primeira vez no final da narrativa de Samuel (2Sm 23.5), olhando de volta para as
promessas que Deus deu a Davi e seu(s) descendente(s). Em Salmos 110.4, a posição é
prometida sob juramento divino. O juramento de Deus primariamente funciona nas Escrituras
para garantir um relacionamento de aliança.13 Finalmente, não há dúvida a partir de uma
perspectiva do Novo Testamento que o sacerdócio de Melquisedeque é um ofício dado ao filho
de Davi como parte de sua herança. Conforme veremos no próximo capítulo, Hebreus une os
papéis da filiação da aliança e o sacerdócio de Melquisedeque no ministério de Cristo.
O ofício sacerdotal do rei davídico está de acordo não somente com sua função de mediar o
relacionamento entre Deus e o povo, mas também com sua intimidade com o Senhor. Deus
promete que a sua benignidade irá sempre habitar com ele. Mesmo as advertências de punição
pelo pecado, punição “com vara [...] e com açoites” (Sl 89.30-32; 2Sm 7.14) carregam a
expectativa de um relacionamento duradouro.

A Natureza da Aliança Davídica. Apesar de 2 Samuel 7 e 1 Crônicas 17 não usar o termo


aliança, a encontramos em passagens posteriores. Davi testifica em 2 Samuel 23.5: “[o Senhor]
estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo bem-definida e segura”. Salomão também fala
da promessa como uma aliança (1Rs 8.23), e ela é interpretada como tal por escritores
posteriores. O salmista cita o Senhor ao dizer:

Fiz aliança com o meu escolhido


e jurei a Davi, meu servo: [...]
Conservar-lhe-ei para sempre a minha graça
e, firme com ele, a minha aliança (Salmos 89.3, 28).

Nas narrativas dos reis posteriores, de Israel e Judá, lemos:

Não vos convém saber que o SENHOR, Deus de Israel, deu para sempre a Davi a soberania de
Israel, a ele e a seus filhos, por uma aliança de sal? (2 Crônicas 13.5)

Porém o SENHOR não quis destruir a casa de Davi por causa da aliança que com ele fizera,
segundo a promessa que lhe havia feito de dar a ele, sempre, uma lâmpada e a seus filhos
2 Crônicas 21.7).

Assim como a aliança com Abraão, a aliança com Davi é uma aliança outorgada. É o
estabelecimento formal de uma concessão ou dádiva a Davi, o servo do Senhor. Ela consiste em
promessas a Davi e é frequentemente referenciada dessa maneira, como a promessa do Senhor a
Davi (2Sm 7.28; 1Rs 2.4, 24; 5.12; 8.20, 24-25, 56; 9.5; 2Rs 8.19; 1Cr 17.26; 2Cr 1.9; 6.10,
15-16; 21.7). Como uma aliança outorgada, a aliança davídica é incondicional. Davi, um
homem de fé, recebe essas promessas acreditando que Deus irá cumpri-las. Deus declara sua
intenção de realizar essas bênçãos a Davi como um ato de sua graça. Em concordância com isso,
as condições estão ausentes quando a promessa é revelada a Davi (2Sm 7; 1Cr 17). E a intenção
de Deus de cumprir a promessa é repetida na história subsequente dos reis davídicos, a despeito
dos muitos atos de deslealdade da parte deles (veja 1Rs 11.11-13. 34-36; 15-4-5; 2Rs 8.19;
2Cr 21.7; 23.3).
Entretanto, quando a aliança é transferida a Salomão, ela é colocada em uma forma
condicional. Davi anuncia:

E, de todos os meus filhos, porque muitos filhos me deu o SENHOR, escolheu ele a Salomão
para se assentar no trono do reino do SENHOR, sobre Israel. E me disse: Teu filho Salomão é
quem edificará a minha casa e os meus átrios, porque o escolhi para filho e eu lhe serei por pai.
Estabelecerei o seu reino para sempre, se perseverar ele em cumprir os meus mandamentos e os
meus juízos, como até o dia de hoje (1 Crônicas 28.5-7).

No seu subsequente encargo a Salomão, Davi revela uma nova promessa que é condicional em
natureza, e que não tinha aparecido na lista de promessas em 2 Samuel 7 ou 1 Crônicas 17:

Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem! Guarda os preceitos
do SENHOR, teu Deus, para andares nos seus caminhos, para guardares os seus estatutos, e os
seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus testemunhos, como está escrito na Lei de
Moisés, para que prosperes em tudo quanto fizeres e por onde quer que fores; para que o
SENHOR confirme a palavra que falou a mim, dizendo: Se teus filhos guardarem o seu caminho,
para andarem perante a minha face fielmente, de todo o seu coração e de toda a sua alma, nunca te
faltará sucessor ao trono de Israel. (1 Reis 2.2-4)

A promessa condicional de que nunca te faltará sucessor ao trono de Israel é repetida mais duas
vezes por Salomão (1Rs 6.12; 8.25; cf. 2Cr 6.16) e reafirmada pelo Senhor (1Rs 9.4-9; cf.
2Cr 7.17-22). Também aparece em Salmos 132.12, no qual é justaposta com a promessa
incondicional de colocar um descendente sobre o trono (v. 11). A promessa de Deus de levantar um
descendente é incondicional. Porém, um reino contínuo e ininterrupto não é. Isso é
condicionado pela fidelidade dos reis davídicos.
A forma condicional da aliança davídica dada a Salomão faz paralelo com a forma
condicional da promessa abraâmica dada a Israel como a aliança mosaica. Como vimos, a aliança
mosaica não comprometeu a intenção original expressa na aliança abraâmica. Em vez disso,
tornou possível uma experiência histórica da bênção de Abraão na forma específica da bênção da
aliança mosaica. A intenção de Deus de abençoar os descendentes de Abraão é clara, porém se ele
dará ou não certas bênçãos a uma geração particular desses descendentes em um tempo específico
na história, isto foi condicionado pelos termos da aliança mosaica. Ainda assim, Israel
experimentou muitas bênçãos de Deus através da história da aliança mosaica a despeito dos
exemplos de infidelidade para com a aliança. E como vimos, a intenção incondicional de Deus
de abençoar foi geralmente confirmada através dessa história como uma promessa a ser realizada
no futuro.
O mesmo é verdade em relação à aliança davídica. Deus prometeu a Davi que ele
estabeleceria o reino do(s) seu(s) filho(s). Porém, quando um filho específico foi escolhido, de tal
forma que a possibilidade de herança da promessa foi estreitada aos descendentes desse filho de
Davi, a promessa foi condicionada na fidelidade à aliança. A intenção de Deus de cumprir a
promessa davídica permaneceu firme, como pode ser visto nas narrativas de sucessão dos reis
davídicos. Mas, a desobediência à lei mosaica trouxe vários tipos de punições. Ainda assim, o
Senhor manteve o trono davídico por causa da aliança outorgada feita a Davi (veja 1Rs 11.11-13,
34-36; 15.4-5; 2Rs 8.19; 2Cr 21.7; 23.3). Eventualmente, quando o Senhor julgou a casa
davídica, deixando vago o trono de Davi (veja as maldições em Jr 22.28-30; 36.30-32), a
condicionalidade de uma linha ininterrupta foi claramente demonstrada.
Por muito tempo, na verdade, não houve um descendente de Davi sentado no trono de
Israel. Entretanto, as profecias acerca de um futuro rei davídico e a reconstrução da casa de Davi
reafirmaram a intenção última da aliança de Deus a Davi. Repetindo a linguagem da aliança
davídica, os profetas declararam que o Senhor levantaria um descendente de Davi (Is 9.6;
Jr 23.5) e estabeleceria seu reino (Is 9.7; 16.5; 28.16). Ele será um renovo ou ramo do tronco
cortado (Is 11.1; Jr 23.5; 33.15) da casa caída de Davi (Am 9.11-12). Muito da profecia diz
respeito ao caráter desse rei davídico: ele será justo e governará com justiça e retidão (Is 9.7; 11.3-
4; 16.5; 28.17; Jr 23.5; 33.15) e será sábio, cheio com o Espírito de sabedoria, piedade e
conhecimento de Deus (Is 9.6; 11.2; Jr 23.5). Como um resultado dessa sabedoria e retidão, ele
cumprirá completamente a condição colocada sobre os filhos de Davi, tanto é, que Jeremias fala
da promessa de não faltar um homem para sentar no trono, tão certo quanto é o cumprimento
eterno da aliança noética (Jr 33.14-26).

O RELACIONAMENTO DA ALIANÇA DE DAVI COM AS OUTRAS ALIANÇAS DO


SENHOR
A aliança davídica estabeleceu o reinado davídico como crucial ao cumprimento das bênçãos de
Abraão. Isso requer um exame mais próximo e nos levará a investigar o relacionamento entre a
aliança davídica e mosaica e a nova aliança, já que, conforme vimos, elas são as formas nas quais a
aliança abraâmica tem sido e será cumprida.

A Aliança Davídica e a Aliança Abraâmica. No começo do grupo das promessas dadas a Davi
em 2 Samuel 7 e 1 Crônicas 17 estão duas promessas que são parte da aliança abraâmica.
Primeiro, o Senhor diz: “Engrandecerei o seu nome” (2Sm 7.9 NAA; cf. 1Cr 17.8). Para Abraão,
o Senhor disse: “de ti farei uma grande nação [...] e te engrandecerei o nome” (Gn 12.2). A
promessa do grande nome agora passou especificamente ao rei davídico. Seu nome será grande. E
já que ele é o rei, o governador da nação, a grandeza do seu nome se traduz na grandeza da
nação. Consequentemente vemos, como sob seu governo, a promessa abraâmica da grande nação
e grande nome vem juntas.14
Essa conexão entre a bênção sobre o rei e a bênção sobre a nação parece guiar a estrutura
literária do texto também, pois, seguir a promessa do grande nome é uma referência à promessa
Abraâmica de estabelecer Israel “no seu lugar” em paz e segurança (2Sm 7.10-11; 1Cr 17.9-10).
A promessa que “não mais seja perturbado, e jamais os filhos da perversidade o aflijam”, olha
para um tempo além das maldições da aliança mosaica, para o tempo no qual a bênção
abraâmica será cumprida em última instância. É importante notar que nessas promessas o
cumprimento último da aliança abraâmica coincide com o cumprimento da aliança davídica. Em
outras palavras, o cumprimento final da promessa abraâmica da bênção na Terra Prometida
acontecerá sob o governo de um rei davídico.
Aqui está o relacionamento entre as alianças davídica e abraâmica. Por um lado, a aliança é
parte da bênção da aliança abraâmica. Um rei abençoado da linhagem de Davi é uma forma na
qual a promessa de abençoar os descendentes de Abraão se manifestará. Por outro lado, a aliança
davídica provê os meios pelo quais a bênção será cumprida por todos os descendentes. A bênção
para muitos será mediada pelo governo desse, o rei. Através de sua ação, os inimigos da bênção
serão subjugados, as nações serão pacificadas e Israel será estabelecido no culto a Deus.
Podemos ver esses reinos de Davi e Salomão. Davi estabeleceu paz e segurança para Israel ao
lutar as guerras do Senhor, dirigindo os inimigos do povo de Deus a partir da terra da promessa.
Salomão governou sobre as nações ao redor em uma hegemonia que manteve a paz e trouxe
prosperidade a Israel. 1 Reis 4.20-21 descreve a situação na linguagem da aliança patriarcal.

Eram, pois, os de Judá e Israel muitos, numeroso como a areia que está ao pé do mar;
comiam, bebiam e se alegravam. Dominava Salomão sobre todos os reinos desde o Eufrates
até a terra dos filisteus e até à fronteira do Egito; os quais pagavam tributo e serviram a
Salomão todos os dias da sua vida.
A segurança dessa paz estava enraizada no culto apropriado de Israel a Deus. A monarquia
contribuiu aqui ao supervisionar a construção e manutenção do templo. Como sumo sacerdote
(da ordem de Melquisedeque), o rei deveria liderar Israel no culto a Deus. O bem-estar da
monarquia e da nação está vinculado ao culto a Deus. O rei estabeleceu o exemplo e a direção
para a nação. Conforme o rei cultuava ao Senhor e mantinha o templo como o centro de culto
de Israel, assim a nação geralmente respondia à sua liderança. O zelo pelo Senhor levaria o rei a
destruir os altares, os santuários concorrentes de idolatria espalhados pela terra. Ao purificar a
terra, ele reforçou o culto somente a Deus. Isso, por sua vez, levaria às bênçãos de paz
continuada, prosperidade e segurança da terra.15
Porém, o que dizer sobre o resto das nações? A aliança abraâmica prevê bênçãos sobre todos
os povos mediadas por Abraão e seus descendentes. Aqui também a aliança davídica posiciona o
rei davídico como o mediador dessa bênção para todos. Isso já é implicado em 2 Samuel 7.10-11
(cf. 1Cr 17.9-10) na promessa de pacificar os inimigos de Israel, que poderia vir na forma de
julgamento punitivo (como as campanhas militares esmagadoras de Davi) ou sob uma
hegemonia pacífica (como o reinado de Salomão). Em última instância, é o último no qual a
promessa prevalecerá.
A função do rei como o mediador da bênção da aliança para todas as nações é estabelecida no
Salmo 72.16 O rei é justo, reto e sábio, e Israel desfruta das bênçãos da aliança. Há paz,
prosperidade, justiça e possessão total da Terra Prometida. O rei também é visto para governar
toda a terra, sobre todos os povos da terra (vv. 8-11), com o resultado de que as bênçãos de paz e
prosperidade se estendem por toda a terra. A bênção sobre Israel vem à medida que o povo
abençoa o rei (v. 15). Da mesma forma, as nações são abençoadas à medida que “elas o chamem
bendito” (NVI).
Essa é a linguagem da aliança abraâmica. Os descendentes de Abraão têm sido reestruturados
politicamente de tal forma que a função de mediar a bênção repousa principalmente com o rei.
Ao passo que Deus disse “te abençoarei”, o te deve agora ser visto em uma estrutura política com
o rei no topo, recebendo a bênção e a mediando para o resto do povo. E ao passo que Deus diz
que abençoaria todas as nações “em ti” (Gn 12.3) e “em tua descendência” (Gn 22.18), o “ti” e o
“descendência” devem, da mesma forma, não mais serem tomados em um sentido uniforme de
todos os descendentes em geral, mas em um sentido monárquico, significando em primeiro lugar
o rei e depois a nação em submissão a ele. É através dele e seu reinado que a promessa da aliança
abraâmica, que promete abençoar todas as nações, será cumprida.

A Aliança Davídica e a Aliança Mosaica. A aliança davídica foi dada sob a dispensação da
aliança mosaica. Como uma aliança outorgada, atrelada ao cumprimento futuro da aliança de
concessão que foi dada aos patriarcas, seu cumprimento final aponta para além da dispensação
mosaica. Entretanto, a experiência das bênçãos da aliança davídica durante o tempo da
dispensação mosaica foi condicionada pela aliança mosaica. Havia até mesmo uma forma da
aliança davídica que era condicional e que correlaciona com a natureza condicional da aliança
mosaica em si.17
Conforme observamos, a bênção davídica é tanto uma forma da bênção abraâmica como da
mediação da bênção abraâmica. Sob a dispensação mosaica, a bênção abraâmica é oferecida em
termos de bênçãos específicas da aliança mosaica. Consequentemente, durante tal dispensação, o
rei davídico é abençoado e traz bênçãos aos outros precisamente nos termos das bênçãos mosaica
escritas em Deuteronômio 28.
A aliança mosaica, entretanto, também pode trazer a maldição de Deus para a experiência do
povo. Sob tal dispensação, a mediação do rei davídico pode também trazer a maldição de Deus.
Isso pode acontecer de duas formas. Primeiro, pela sua própria deslealdade e falta de fé, o rei
pode provocar a maldição de Deus sobre a nação. Perceba a advertência do Senhor para Salomão.

Porém, se vós e vossos filhos, de qualquer maneira, vos apartardes de mim e não guardardes os
meus mandamentos e os meus estatutos, que vos prescrevi, mas fordes, e servirdes a outros
deuses, e os adorardes, então, eliminarei Israel da terra que lhe dei, e a esta casa, que
santifiquei a meu nome, lançarei longe da minha presença; e Israel virá a ser provérbio e
motejo entre todos os povos. E desta casa, agora tão exaltada, todo aquele que por ela passar
pasmará, e assobiará, e dirá: Por que procedeu o SENHOR assim para com esta terra e esta casa?
Responder-se-lhe-á: Porque deixaram o SENHOR, seu Deus, que tirou da terra do Egito os seus
pais, e se apegaram a outros deuses, e os adoraram, e os serviram. Por isso, trouxe o SENHOR
sobre eles todo este mal (1 Reis 9.6-9).

Vemos aqui que a idolatria e a desobediência da parte do rei trariam a maldição última da aliança
mosaica — a expulsão da terra. Também vemos a implicação sobre as pessoas seguirem o
exemplo do rei em uma aliança infiel, mostrando assim, o poder do rei de influenciar a adoração
religiosa da nação como um todo.
A outra forma pela qual o rei medeia a maldição da aliança mosaica seria como um
instrumento do Senhor para castigar e punir aqueles em Israel que quebraram a aliança. Reinar
justa e retamente significava realizar os requisitos da lei incluindo suas punições para
transgressões.

A Aliança Davídica e a Nova Aliança. Uma nova aliança foi profetizada para substituir a
aliança mosaica, para trazer a bênção abraâmica completa e permanentemente à existência dos
descendentes de Abraão. A nova aliança faria isso por meio da outorga de outra bênção, a
renovação e santificação do coração humano por meio da habitação do Espírito Santo,
juntamente com a ressurreição dos mortos e vida eterna. A esse povo renovado, santificado e
ressuscitado, a promessa da bênção seria cumprida para sempre.
A aliança davídica também foi dada para trazer a aliança abraâmica ao cumprimento eterno.
Consequentemente, as alianças davídica e a nova devem estar juntas nessa tarefa. Na aliança
davídica, a bênção que vem sobre o rei é a bênção abraâmica. Na aliança mosaica, ela vem sobre
ele como a bênção da aliança mosaica. Numa futura dispensação, a bênção viria sobre o rei como
a bênção da nova aliança. Essa bênção da nova aliança seria o cumprimento da bênção prometida
a Abraão. Isso incluía muitas das coisas previstas pela aliança mosaica — paz, prosperidade e
segurança na terra da promessa. Porém, ela também incluía a promessa da ressurreição de vida
com um novo coração. Consequentemente, o cumprimento da aliança davídica aconteceria no
rei que incorporaria a promessa da nova aliança de um novo coração e uma vida imortal mediada
pela habitação do Espírito de Deus.
Os profetas que predisseram a nova aliança geralmente falaram do cumprimento da aliança a
Davi no reino de um rei futuro. Esse rei é repetidamente caracterizado pela retidão, justiça e
fidelidade. Ele é completamente habitado pelo Espírito de Deus, governando para sempre com
sabedoria piedosa e poder (veja Is 9.6-7; 11.1-10; Jr 23.5-6; 33.14-26). Ao passo que sob a
dispensação mosaica o rei de Israel estava certamente habitado pelo Espírito de Deus
(1Sm 16.13), essa bênção não era necessariamente permanente (1Sm 16.14; cf Sl 51.11), não
resultou na renovação completa do coração levando a completa obediência conforme prevista nas
promessas da nova aliança, nem o tornaria imortal. O rei que foi profetizado pelos profetas da
nova aliança supera grandemente em caráter, poder e dimensão do reino, tanto de Davi quanto
de Salomão, a grandeza dos antigos reis de Israel.
Também vimos que a aliança davídica constituiu o rei como um mediador da bênção da
aliança ao resto de Israel, assim como um mediador da bênção para todas as nações. Visto que a
nova aliança é a forma pela qual a bênção da aliança abraâmica será cumprida, nesse caso
concordando com a estrutura da aliança davídica, a bênção da nova aliança será mediada pelo rei
davídico. Isso significaria que até mesmo as bênçãos de ressurreição, renovo e santificação pelo
habitar do Espírito Santo irão de alguma forma serem mediadas através do rei.
Podemos ver isso implícito no cenário da nova aliança de Ezequiel 37, onde as promessas são
cumpridas com Davi (isto é, o rei davídico) governando sobre o povo e Deus habitando no meio
deles para sempre. Também observamos como nas predições do governo desse rei, as Escrituras
geralmente se movem do caráter do rei de retidão para a retidão que caracteriza o reino (Is 11.1-
10; Jr 23.5-6). Porém, a evidência é mais forte nos textos como Isaías 49.5-8 e 55.3. O servo,
predito nos oráculos de Isaías 41-53, às vezes é o próprio Israel, mas às vezes é uma pessoa de
Israel, que representa e atua em favor da nação. Essa pessoa, em Isaías 52.13, é um rei futuro de
Israel, o Messias de Deus.18 Em Isaías 49.8, esse servo será dado “para o povo, para restaurar a
terra e distribuir suas propriedades abandonadas” (NVI). Em outras palavras, esse servo
funcionaria como aliança de Deus, trazendo as promessas ao cumprimento. Como ele faz isso
parece estar implícito em 49.5 — ele irá “trazer de volta Jacó e reunir Israel a ele mesmo” (NVI).
Ele traz Israel a Deus para o cumprimento da bênção da aliança. A nova aliança é a obra de graça
de Deus trazendo Israel de volta a si mesmo para a completa recepção das bênçãos da aliança.
Esse rei futuro, que será dado em um ato de expiação pelos pecados da nação (Is 53), será usado
por Deus para mediar a bênção que renova e restaura seu povo.
Porém, como as promessas da aliança preveem uma bênção sobre todos os povos, o futuro
rei davídico, da mesma forma, mediará a bênção da nova aliança para todas as nações. Em
Isaías 49.6, lemos:

Sim, diz ele: Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os
remanescentes de Israel, também te dei como luz para os gentios, para seres a minha salvação
até à extremidade da terra.

Isso está de acordo com outras profecias, que através do futuro rei davídico a bênção viria aos
gentios (Is 11.10; 55.3-4). Uma vez que o rei é aquele em quem todos serão abençoados, ele é
aquele por quem a paz virá sobre todos os povos. Consequentemente, é por meio dele que o
renovo, a ressurreição e a santificação pela habitação do Espírito de Deus serão dados não
somente para Israel, mas para todos os povos.

RESUMO
A história das alianças antes de Jesus Cristo é a história da promessa divina de abençoar toda vida
na terra — todas as nações e povos que a compõe. É a história do plano divino de redenção, de
reconciliação, que expressa a esperança do cumprimento desse propósito que foi revelado na
criação: uma terra repleta de vida, repleta especialmente com seres humanos vivendo em paz,
prosperidade e completa comunhão com Deus.
É necessariamente uma história de redenção porque as bênçãos de Deus apresentadas nas
alianças estão em contraste aos julgamentos fundamentais contra o pecado — advertências e
pronunciamentos de miséria, insegurança, destruição e morte.
A aliança com Abraão é fundamental, pois ela coleta a promessa da aliança noética (feita com
toda vida) e dirige diretamente à existência humana. Ela oferece a bênção de Deus sobre a vida
humana tanto individualmente, quanto na sua identidade coletiva nacional. A história da Bíblia,
de Abraão em diante, é a história do relacionamento de Deus com os seres humanos como
estabelecido na sua aliança e desenvolvido a partir dela à medida que seus elementos são
expandidos e detalhados em uma revelação subsequente.
A bênção (em contraste aos julgamentos merecidos de miséria, morte e destruição) foi
decretada pela iniciativa divina como uma concessão a Abraão, que por sua vez a recebeu pela fé
e experimentou muitos de seus aspectos em sua vida pessoal e familiar enquanto andou com o
Senhor em obediência a seus mandamentos. A aliança designou Abraão como mediador da
bênção de Deus para todos os povos e nações na terra. Todos que abençoassem Abraão,
acreditando na promessa que Deus concedeu a ele, seriam da mesma forma abençoados por
Deus.
A bênção e a mediação da bênção passaram para os descendentes de Abraão à medida que
eles eram escolhidos por Deus para herdar a aliança. Uma nova dispensação para as bênçãos foi
instituída pela aliança mosaica, que constituiu os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, como
uma nação, tomando o nome divino para Jacó — Israel. A lei da aliança mosaica desafiou as
gerações de Israel para confiarem somente em Deus e obedecerem a seus mandamentos. Aqueles
que eram da fé dos patriarcas buscaram adorar a Deus de acordo com seus mandamentos. Eles
eram os verdadeiros herdeiros da outorga patriarcal e mediaram sua bênção (na forma da
dispensação específica da bênção mosaica) ao resto da nação e outros povos também. Quando o
Israel da fé constituiu somente um pequeno remanescente do Israel físico, as maldições da aliança
mosaica, o julgamento da miséria, a destruição, o exílio e a morte ameaçaram a nação. Porém, o
remanescente da fé herdou a esperança de herdar a bênção divina em uma era escatológica.
Durante a dispensação mosaica, o papel da mediação da bênção foi politicamente
reestruturado como uma função do rei davídico. Uma aliança foi feita com Davi para abençoar a
ele e ao(s) seu(s) filho(s) com o governo sobre Israel e o resto das nações; um relacionamento
íntimo e abençoado com Deus e a mediação (até mesmo mediação sacerdotal) da bênção para
Israel para todos os povos e nações. Na dispensação mosaica, essa outorga manifestou-se em
vários níveis nos reinos daqueles reis davídicos que confiaram no Senhor de acordo com a aliança
mosaica.
Porém, conforme a história da infidelidade e apostasia de Israel finalmente levaram à
destruição nacional e exílio, os profetas olharam para uma nova dispensação, na qual uma nova
aliança substituiria a aliança mosaica e traria a outorga abraâmica em cumprimento eterno. Nessa
nova aliança, Deus garantiria a bênção de corações reconstruídos, cheios do Espírito,
completamente confiantes e obedientes a ele, tendo a vontade de Deus escrita diretamente em
suas próprias vidas. Ele eliminaria o problema do pecado de tal forma que a bênção seria recebida
completa e eternamente. Ele concederia total perdão dos pecados e ressurreição dos mortos para
uma vida imortal. Todas as promessas de bênçãos para uma vida pessoal e nacional de comunhão
com Deus, com paz e prosperidade, seriam cumpridas para sempre.
A bênção da nova aliança seria exemplificada na vida de um rei davídico, cujo governo e sua
mediação levariam as bênçãos ao Israel da fé — esse remanescente do Israel físico que confia em
Deus — e também à todas as nações que confiassem em Deus através desse rei, para que, desta
forma, venham a constituir aquelas nações que são abençoadas para sempre “nele”

1. Moshe Weinfeld, “The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East,” Journal of the American Oriental
Society 90 (1970): pp. 184-203.
2. Cleon Rogers, Jr., “The Covenant with Abraham and Its Historical Setting,” Bibliotheca Sacra 127 (1970): 252; Walter Kaiser,
Jr., Toward an Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978), pp. 92-94.
3. O argumento de Robert Chisholm merece atenção. Ele argumenta que a promessa era condicional até o momento do sacrifício
de Isaque por Abraão. Nesse momento, a aliança foi efetivamente feita através da terra de Deus como uma garantia aos
descendentes de Abraão. Assim como uma aliança outorgada, a promessa condicional anterior se torna de agora em diante
incondicional. O artigo de Chisholm foi publicado um pouco antes da escrita desse capítulo. Não houve tempo suficiente para
analisar e incorporar seus argumentos aqui. Veja: Robert Chisholm, “Evidence from Genesis,” em A Case for Premillennialism: A
New Consensus, ed. Donald Campbell and Jeffrey Townsend (Chicago: Moody, 1992), pp. 35-54.
4. Comparando os dois textos em Gênesis 27.29 e 49.8-10, a frase “Sirvam-te povos” é transferida para Judá como “e a ele
obedecerão os povos”. A frase “e os filhos de tua mãe se encurvem a ti” é transferida como “os filhos de teu pai se inclinarão a ti”.
Para Jacó, essa última frase é distinguida entre aqueles da promessa e aqueles de fora. À medida que a bênção do reinado é dada
especialmente para Judá, ela também distingue um regente de outros dentro da promessa.
5. Compare os seguintes textos: Êxodo 2.24; 3.6; 15-17; 4.5; 6.3-8; 19.5-6; 20.2-4; 32.13; 33.1, 12-16; Levítico 26.42;
Números 24.9; 32.11; Deuteronômio 1.8; 4.29-31, 37-40; 5.6-11; 6.3, 10; 7.8-13; 8.1; 9.5; 29.13; 30.20; 34.4.
6. Deve-se lembrar que a controvérsia entre Deus e Israel (ou Judá) acerca da possibilidade do exílio é no todo uma controvérsia
acerca de um elemento chave na aliança patriarcal — a terra e uma vida abençoada nela. Ocasionalmente, uma menção é feita aos
patriarcas por nome (veja Jr 4.2; 11.1-5; 24.10; 25.5; 35.15).
7. Veja Isaías 51.2-3; Jeremias 30.3; 31.33; 32.21-44; Ezequiel 20.42; 36 28; 47.14; e Miqueias 7.20. Essas referências servem
para interpretar o tema inteiro da restauração por entre os profetas como baseada fundamentalmente na aliança patriarcal.
8. Essa predição é repetida em Deuteronômio 30, uma passagem que tem sido chamada algumas vezes como aliança palestina.
Parece melhor, entretanto, não a ver como uma aliança distinta da aliança mosaica, mas como parte da nova declaração dessa
aliança no tempo da entrada de Israel na terra.
9. Pode ser argumentado que a visão de Ezequiel da ressurreição é uma metáfora para o retorno de uma geração posterior à terra
prometida. Isso é plausível à luz do gênero literário de Ezequiel e o contexto histórico. O Novo Testamento, entretanto,
incorpora a linguagem de Ezequiel em seu próprio ensino acerca da ressurreição futura dos mortos. Veja Romanos 8.11.
10. Agostinho, Confissões 10.29.40.
11. Isso é visto não somente nas narrativas históricas de Samuel e Crônicas, mas também nos Salmos. Veja especialmente sua
atitude em relação à aliança mosaica no Salmo 119.
12. Salomão declarou que a construção do templo seria um cumprimento da promessa da aliança de Deus a Davi (1Rs 8.15-21).
13. Colocamos acima que a aliança abraâmica é geralmente referida como o juramento que Deus fez aos antepassados.
Encontramos a aliança davídica referida como o juramento divino em Salmos 89.3, 35, 49 e 132.11. A estrutura é a mesma que
em Salmos 110.4.
14. Não deveria ser pensado que essa promessa é concernente a Davi somente, mesmo que tenha sido falada para ele. A aliança se
transfere à linhagem de Davi conforme a casa davídica é estabelecida. 1 Crônicas 29.25 diz: “O SENHOR engrandeceu
sobremaneira a Salomão perante todo o Israel; deu-lhe majestade real, qual antes dele não teve nenhum rei em Israel”. A
promessa do grande nome passou para Salomão juntamente com o resto das promessas da aliança (cf. 2Cr 1.1)
15. Veja as ações de Ezequias e Josias em 2 Reis 18.1-7 e 2 Reis 22.11-23.27. No caso de Josias, sua reforma não foi suficiente
para afastar da ira de Deus em forma de julgamentos dos pecados desses que foram diante dele.
16. A epígrafe, “um Salmo de Salomão” elenca esse salmo real como uma adoração descritiva para o reino do filho de Davi.
17. Veja novamente 1 Reis 2.3-4, quando a promessa condicional do trono no verso 4 repousa sobre o cumprimento dos
requisitos da aliança mosaica no verso 3.
18. A promessa que o servo “será exaltado e elevado e será mui sublime” se compara com a promessa da aliança davídica nos
Salmos 89.19, 24, 27: “do meio do povo, exaltei um escolhido [...] e em meu nome crescerá o seu poder [...] Fá-lo-ei, por isso,
meu primogênito, o mais elevado entre os reis da terra”. Também compare a descrição de Salomão em 1 Crônicas 29.25 e
2 Crônicas 1.1.
CAPÍTULO 6

O CUMPRIMENTO DAS ALIANÇAS BÍBLICAS ATRAVÉS DE JESUS


CRISTO

No Novo Testamento, o nome Jesus é mais frequentemente acompanhado pelo título Cristo. Na
pregação da igreja primitiva, este título era geralmente usado em conjunção com Jesus ou como
um substituto para o nome Jesus, tanto que muitos gentios confundiam como parte do seu
nome.1 Essa confusão continua muitas vezes até hoje.
Na verdade, a palavra Cristo é uma transliteração em português do substantivo grego christos,
que significa o Ungido. Ela está relacionada ao verbo chrio, que significa ungir. Tanto sacerdotes
quanto reis eram ungidos no Antigo Testamento, então, qualquer um poderia ser chamado de
christos, um ungido. Mais frequentemente, entretanto, o título era reservado para o rei. Na
Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento que era mais popular na igreja primitiva),
christos traduz o aramaico meshicha e o hebraico mashiach de onde tiramos a palavra em
português Messias. Assim, vemos que tanto as palavras em português Messias quanto Cristo são
em última instância derivadas da mesma fonte. Elas deveriam ser vistas como sinônimos,
significando o ungido, o rei.2
O título “Cristo” claramente significa rei nos Evangelhos. Em Mateus 2.2-4, os títulos Rei
dos Judeus e Cristo são usados em paralelo. Em Marcos 15.32, o título Cristo é definido para
significar, “o rei de Israel”. A genealogia de Jesus em Mateus 1 é introduzida como “genealogia
de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão”. A genealogia então cuidadosamente traça não
somente sua descendência de Abraão, mas também de Davi, através de Salomão e a linha dos reis
davídicos.
Tudo isso nos traz essa observação, que o fato mais conhecido da proclamação de Jesus do
Novo Testamento, a saber, que ele é o Cristo, é a proclamação que ele é o rei davídico, o Rei de
Israel. Isso significa que o modo primário para entender Jesus e seu ministério encontra-se na
aliança outorgada feita com Davi. E já que, como vimos, o cumprimento da aliança davídica é o
meio de trazer ao cumprimento todas as grandes promessas da aliança de Deus, a consideração
do reinado davídico de Jesus revelará que ele é o cumprimento das alianças bíblicas.

JESUS E O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA DAVÍDICA


A Apresentação do Novo Testamento de Jesus, o Rei da Aliança. Em Lucas 1.32-35, o anjo
Gabriel faz essa predição à Maria acerca da criança que ela carregaria:

Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi,
seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim. Então, disse
Maria ao anjo: Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? Respondeu-lhe o
anjo: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra;
por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus.

A predição diz respeito à transferência da outorga davídica a Jesus. Ambos os aspectos da


promessa davídica são apresentados aqui, o estabelecimento da casa davídica através do
estabelecimento do reino e trono desse descendente de Davi para sempre e o relacionamento
íntimo entre Deus e esse descendente de tal forma que ele seria Filho de Deus.
Zacarias, o pai de João Batista, profetizou que Jesus é o “chifre da salvação” que Deus
“suscitou [...] na casa de Davi, seu servo”. Isso relembra as promessas da aliança davídica em
Salmos 89.17, 24 e Salmos 132.17 com respeito ao chifre de Davi assim como as promessas
sobre “levantar” um descendente em 2 Samuel 7.12. A unção de Jesus, pela qual ele é revelado
como o Cristo, o rei davídico, se dá no batismo pelo profeta João no Rio Jordão.3 O Espírito
Santo veio sobre ele4 e o testemunho divino declarado do céu: “Este é o meu Filho Amado, em
quem me comprazo” (cf. Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22). Através da linguagem de Salmos 2.7, a
voz celestial afirmou Jesus no relacionamento com Deus que pertencia ao rei davídico — filiação
(cf. 2Sm 7.14; 1Cr 17.13 e Hb 1.5, que associa Salmos 2 a 2Sm 7 e 1Cr 17) e benignidade eterna
(2Sm 7.15; Sl 89.2, 24, 28).
Tendo sido ungido pelo Espírito Santo, Jesus prossegue para um ministério que,
essencialmente, cumpre o papel do Servo predito por Isaías. Sua atividade demonstra o seu poder
de conceder bênçãos de paz, prosperidade e bem-estar, bênçãos do reino predito para o filho de
Davi. O povo o reconhece como o filho de Davi (veja Mt 12.23; 21.9) e ele é declarado como
sendo maior que Davi ou Salomão (Mt 12.42; 22.42-45).
Como o Servo de Deus, ele cumpre o castigo predito da casa de Davi (uma predição que
também foi parte da aliança davídica): “castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos
de homens” (2Sm 7.14). (Isso, obviamente, não foi por causa do seu próprio pecado, mas, ele
mesmo foi o substituto para o julgamento dos pecados da casa de Davi.) Vemos isso na
linguagem usada na crucificação em Mateus 27.29-30, onde os soldados gentios o saudaram
como “rei dos judeus” e “tomaram o caniço e davam-lhe com ele na cabeça”. Sua crucificação
deve-se à sua reivindicação como o Cristo, o Filho de Deus (Mt 26.63-65), e os termos da
promessa davídica são lançados como insultos enquanto ele morre:

É rei de Israel! Desça da cruz, e creremos nele. Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se,
de fato, lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus (Mateus 27.42-43).

A maioria das reivindicações messiânicas terminou com a morte do requerente. Jesus, entretanto,
levantou dos mortos. O fato de sua ressurreição, juntamente com sua ascensão aos céus e sua
atividade pós-ascensão, renovaram e afirmaram a fé de muitos de que ele era e é de fato o rei
profetizado, o cumprimento último das promessas de Davi.
Começando em Atos 2, os apóstolos de Jesus começaram a pregar que sua ressurreição foi o
cumprimento da promessa da aliança de “levantar” o descendente de Davi. A promessa de
levantar um descendente em 2 Samuel 7.12 está associada à promessa de estabelecer o seu reino;
colocando de outra forma, de estabelecer o seu trono. Pedro argumenta em Atos 2.22-36 que
Davi predisse no Salmo 16 que seu descendente seria ressuscitado dos mortos, incorruptível, e
dessa forma, ele estaria assentado no seu trono (At 2.30-31). Ele então argumenta que essa
entronização se deu na entrada de Jesus nos céus, ao manter a linguagem de Salmos 110.1 que
descreve o assentar do filho de Davi à direita de Deus. Pedro declara (At 2.36) que Jesus foi feito
Senhor sobre Israel (Sl 110.1 usa o título de Senhor do rei entronizado) e Cristo (o rei ungido)
por virtude do fato que ele agiu (ou foi permitido agir) a partir da posição celestial em favor do
seu povo para abençoá-los com o dom do Espírito Santo.
Paulo oferece um argumento similar em Atos 13. Ele observa, “Da descendência deste [Davi],
conforme a promessa, trouxe Deus a Israel o Salvador, que é Jesus” (v. 23). A promessa a qual ele
se refere é 2 Samuel 7.12, “farei levantar depois de ti o teu descendente,5 que procederá de ti, e
estabelecerei o seu reino”. Ele então prossegue para proclamar as boas novas de que Deus
cumpriu “a promessa feita a nossos pais” (v. 32), em que ele ressuscitou Jesus (v. 33). O verbo
“ressuscitar” é o mesmo em 2 Samuel 7.12, “farei levantar depois de ti o teu descendente”,
indicando que a ressurreição de Jesus foi precisamente o cumprimento dessa promessa aos
antepassados, à qual Paulo também fez alusão no verso 23. Porém, esse levantar, no caso de
Jesus, não foi somente um descendente humano, mas também uma ressurreição dos mortos
(v. 30: “Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos”). Ele então argumenta (vv. 34-37) que esse
tipo de levantar foi predito pelo Salmo 16 e Isaías 55.3. Ao ser levantado, nesse sentido, as
bênçãos de Davi são estabelecidas nele (At 2.33-34), uma posição que também está em sincronia
com o recebimento do título de Filho de Deus (v. 33).6
A ressurreição de Jesus, filho de Davi, dos mortos, seu título Filho de Deus, sua entronização
à destra do Pai e sua atividade de abençoar os judeus e todos os outros povos que o abençoaram,
que confiaram nele, são todos aspectos da promessa davídica. O Novo Testamento
repetidamente proclama esses como cumpridos no presente. Paulo até mesmo fala disso como o
evangelho.

O evangelho de Deus, o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus
profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da
descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de
santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor (Romanos 1.1-4).

Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos, descendente de Davi, segundo o


meu evangelho (2 Timóteo 2.8).

A entronização à destra de Deus, a posição prometida para o rei davídico em Salmos 110.1, é
atribuída a Jesus em muitos textos do Novo Testamento. Isso é evidentemente proclamado em
Atos 2.33-36. Atos 5.31 declara que “Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e
Salvador”. Estevão testificou em seu martírio que viu Jesus “em pé à destra de Deus” (7.55-56).
Paulo escreve que “Cristo Jesus [...] está à direita de Deus e também intercede por nós”
(Rm 8.34). Efésios 1.20-22 e Colossenses 3.1 também veem Cristo sentado à direita de Deus,
com a última passagem destacando o fato de que todas as coisas estão atualmente em sujeição a
ele.7 A posição de Cristo à direita de Deus é referida repetidamente em Hebreus (Hb 1.3, 13;
8.1; 10.12; 12.2) e uma vez em 1 Pedro 3.22, quando Pedro se junta a Paulo ao destacar a
presente sujeição das autoridades e poderes a ele.
A descrição de Cristo como “assentado à direita de Deus” em Colossenses 3.1 aparece no
contexto com a frase “reino do Filho do seu [de Deus] amor” (1.13), uma frase que combina três
características da promessa davídica — reino, eterna benignidade e filiação — e aplica todas elas
à presente posição de Jesus e sua atividade. Também achamos no contexto descrições de Jesus
como “primogênito de toda a criação” e “primogênito de entre os mortos” (1.15, 18). O título
“primogênito” relembra sua posição na aliança como “Filho” de Deus e também a preeminência
de seu reino sobre todo governo e autoridade na terra conforme visto na linguagem em
Salmos 89.27: “Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito, o mais elevado entre os reis da terra”.
Conforme vimos, a teologia do Novo Testamento retrata o “levantar” do reinado de Jesus
tomando lugar na sua ressurreição dos mortos. Consequentemente, Colossenses 1.18 o declara
sendo o governador,8 “o primogênito de entre os mortos” [unindo a filiação com a maneira na qual
ele foi “levantado”], “para em todas as coisas ter a primazia”. Ter “primazia” corresponde a ser o
“mais exaltado dos reis da terra” em Salmos 89.27. Apocalipse 1.5 é ainda mais explícito na
aplicação de Salmos 89.27 à posição presente ao descrevê-lo como “o Primogênito dos mortos e
o Soberano dos reis da terra”.
A descrição do rei davídico como tendo o grande nome e a maior autoridade é aplicada a
Jesus em muitos textos também. Filipenses 2.9-10 diz que “Deus o exaltou sobremaneira e lhe
deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos
céus, na terra e debaixo da terra”. Tanto Atos 2.33 e 5.31 falam de sua exaltação, a sua presente
posição, e Paulo em Efésios 1.21 descreve sua posição como “acima de todo principado, e
potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século,
mas também no vindouro”. A linguagem de exaltação aqui é a mesma que é usada em
Salmos 89.27, “o mais elevado entre os reis”, e está conceitualmente relacionada à descrição de
Salomão encontrada em 1 Crônicas 29.25: “O SENHOR engrandeceu sobremaneira a Salomão
perante todo o Israel; deu-lhe majestade real, qual antes dele não teve nenhum rei em Israel”.
Ao manter o relacionamento da aliança entre o filho de Davi e a casa do Senhor, Jesus
predisse que ele edificaria o templo de Deus. No entanto, essa predição também está vinculada à
sua profecia de que o templo até então existente seria destruído. Paulo apresenta Jesus em
Efésios 2 como o Senhor entronizado e exaltado que está edificando a casa de Deus ao unir
judeus e gentios para a habitação de Deus pelo Espírito.
Traçamos em alguns detalhes o fato que o Novo Testamento apresenta a posição presente de
Jesus e sua atividade como o cumprimento das promessas da aliança davídica. Isso tem sido
necessário porque formas anteriores do dispensacionalismo tenderam a negar isso. Eles estavam
preocupados em destacar o cumprimento futuro dos aspectos políticos e terrenos das promessa
davídica à medida que essa promessa interage com as promessas políticas e terrenas das demais
alianças. Precisamos notar que o Novo Testamento indica que os aspectos do reinado davídico
de Jesus serão cumpridos no futuro. Porém, os primeiros dispensacionalistas tenderam a esquecer
o fato que na teologia bíblica, a natureza davídica da presente atividade de Cristo garante o
cumprimento de toda a promessa davídica no futuro, incluindo as dimensões nacionais e políticas
dessa promessa.
Podemos ver em Atos 1-3. Quando os discípulos perguntam a Jesus: “Senhor, será este o
tempo em que restaures o reino a Israel?”, eles mostram que esperavam que ele cumprisse os
papeis nacionais e políticos preditos para o filho de Davi. Eles dificilmente poderiam ter
interpretado mal seus ensinos já que perguntaram depois de receber 40 dias de instrução pelo
próprio Jesus ressurreto nas “coisas concernentes ao reino de Deus” (At 1.3, 6). Sua resposta,
“Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade”
(v. 7), assegura a expectativa deles enquanto adverte que o tempo não é revelado.
Pedro argumenta em Atos 3.21 que “ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da
restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a
antiguidade”. Nesse tempo, Deus enviará “Jesus, o Cristo, o qual lhes [Israel] foi designado” (cf.
12, 20). Apesar de o rei estar no céu agora, a revelação de Jesus na sua vinda trará com ela a
revelação do reino na terra (2Tm 4.1). Paulo fala de todo Israel sendo salvo (Rm 11.26).
Hebreus 2.5 fala da sujeição do mundo porvir. Jesus prediz que “Quando vier o Filho do
Homem na sua majestade [uma referência a sua vinda apocalíptica descrita em Mateus 24] [...]
então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele
separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas” (Mt 25.31-32). Para
alguns, ele dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado
desde a fundação do mundo” (v. 34).9
No livro de Apocalipse, a atividade davídica presente-futura de Jesus é bem aparente. Jesus é
agora “o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra” (1.5; cf Sl 89.27); ele já recebeu
autoridade sobre as nações (2.26-27); ele tem as “chaves de Davi” (3.7); ele está assentado com o
“Pai no seu trono” (3.21); e ele escreve às igrejas como “a Raiz e a Geração de Davi, a brilhante
Estrela da manhã” (22.16). Esse é aquele que “vem com as nuvens” (1.7); aquele que “regerá [as
nações] com cetro de ferro” (19.15); aquele que vem “sem demora” (22.12, 20), aquele que a
igreja chama: “vem!” (22.17, 20).

RESPONDENDO ALGUMAS OBJEÇÕES


O Novo Testamento apresenta Jesus como o herdeiro da aliança davídica. Além do mais, ensina
que certas bênçãos da aliança davídica já foram outorgadas a Jesus, enquanto outras bênçãos
ainda esperam sua volta.
Nas controvérsias entre aliancistas e dispensacionalistas, entretanto, objeções foram
levantadas contra o cumprimento presente e futuro da promessa davídica. Alguns
dispensacionalistas contestam interpretar a relação passada e presente de Cristo com o Pai, assim
como seu momento atual, em termos da aliança davídica. Eles acreditam que as bênçãos da
aliança davídica serão estrita e completamente cumpridas no retorno de Cristo quando ele
governar sobre Israel e todas as nações.10
Alguns aliancistas contestam a crença de que haverá um cumprimento futuro de aspectos
nacionais-políticos da aliança davídica quando Cristo retornar à terra. Eles acreditam que a
promessa davídica é completamente cumprida no presente momento de Jesus.
O apoio a essas visões parecem vir da confiança em parte da evidência bíblica, excluindo o
todo. Várias falsas dicotomias são criadas dessa forma: a realização deve ser presente ou futura,
completa ou incompleta, material ou espiritual, terrena ou celestial.
Quando toda a Escritura do Antigo e do Novo Testamento é levada em conta, as antíteses
presumidas tornam-se estágios no progresso da revelação — não polos opostos, mas relatos
parciais no desenvolvimento da história da redenção.
Esse capítulo já demonstrou a exatidão de uma progressão presente-futura no cumprimento
da aliança davídica. O próximo capítulo adicionará mais apoio a essa visão pelo estudo dos
estágios progressivos do reino de Deus. Entretanto, pode ser útil responder algumas objeções
típicas levantadas contra a noção da presente posição e da atividade davídica de Jesus. Isso
adicionará mais coisas à resposta geral apresentada acima e servirá para resumir as informações
talvez de forma mais conveniente.

Objeção 1. O trono que Jesus recebeu na sua ascensão não foi o trono prometido a Davi. Essa
objeção assume que o trono de Davi e seu descendente na aliança davídica deveria ser entendido
somente como um ofício nacional-político localizado geograficamente em Israel, ou mais
especificamente, em Jerusalém. A localização geográfica é particularmente crucial para essa
interpretação. A localização presente de Cristo no céu parece ser uma contradição óbvia a
qualquer alegação que ele ocupe um trono davídico. Davi governou na terra, em Jerusalém,
como fez a linha de reis descendentes dele. Como alguém pode dizer que o trono presente de
Cristo é um cumprimento da promessa davídica?
Primeiro de tudo, a objeção falha em observar o fato que toda descrição neotestamentária do
presente trono de Jesus é traçada a partir das promessas da aliança davídica. Repetidamente, o Novo
Testamento declara que ele está entronizado à destra de Deus em cumprimento da promessa
dada em Salmos 110.1. Isso é uma promessa davídica; é o filho de Davi que a cumpre. Em
Atos 2.30-36, a ressurreição, a ascensão e o assentar de Cristo no céu à destra de Deus (Sl 110.1)
são apresentados à luz da predição “que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se
assentaria no seu trono”. Nenhum outro trono é discutido nesse texto exceto o trono davídico.
As descrições neotestamentárias dessa entronização à destra de Deus são geralmente
cumpridas com outras características tais como ser exaltado acima de todos os reis, todo governo
e toda autoridade. Ter todos os inimigos sujeitos a ele, ou em alguns textos, esperando para ter
todas as coisas sujeitas a ele. Ambas as descrições são traçadas a partir das promessas davídicas. O
título Filho de Deus aparece várias vezes nesses textos e está explicitamente ligado à promessa
davídica da filiação divina.
Hebreus 1 é um bom exemplo do que está sendo falado. O título Filho, introduzido em 1.2,
e atribuído à entronização, “à direita da Majestade nas alturas” em 1.3 é, subsequentemente,
identificada em 1.5 pela promessa feita em 2 Samuel 7.14, “Eu lhe serei por pai, e ele me será
por filho”. Sobretudo, Sua exaltação é vista em seu apontamento como herdeiro de todas as
coisas (Hb 1.2), sua sustentação de todas as coisas (v. 3), sua superioridade aos anjos (v. 4) e seu
nome mais excelente (v. 4). Seu título de “primogênito” (v. 6) adiciona outra designação
davídica. A descrição desse trono do Filho em 1.8 (“O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre”)
é traçada a partir de um salmo davídico que fala de um rei davídico.
Seu reinado presente é posteriormente elaborado em Hebreus em termos de seu ofício e
função de sacerdócio melquisedequiano, outra promessa da aliança davídica (o juramento feito a
Davi e revelado em Salmos 110.4). Esse ofício sacerdotal é trazido com a filiação davídica já
definida para descrever novamente o trono presente — o “trono da graça” (Hb 4.16), ocupado
por nosso “grande sumo sacerdote [...] Jesus, o Filho de Deus” (4.14, cf. 5.5-6).
Um verso que é algumas vezes citado como uma exceção às descrições davídicas do presente
trono de Jesus é Apocalipse 3.21, “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim
como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono”. É alegado que esse verso ensina
que Jesus não está assentado no trono davídico, mas no trono divino. Essa interpretação falha em
notar a frequente referência à posição davídica de Jesus e sua atividade no contexto imediato.
Apocalipse 1.5 descreve a presente posição de Jesus na linguagem da aliança davídica traçada a
partir de Salmos 89.27. Além do mais, Jesus identifica a si mesmo como o Filho de Deus
(Ap 2.18) que recebeu autoridade do seu pai para governar as nações (2.26-27). Ele tem a chave
de Davi (3.7) e edificará a casa de Deus (3.12). A declaração em 5.5 que “a raiz de Davi venceu”
provê uma referência de identidade para “eu” em 3.21 que “venci e me sentei com meu Pai no
seu trono”. É a “raiz de Davi” que está sentada no trono do Pai. Porém, o fato que é dito como
sendo o trono do Pai, longe de apresentar um problema para nossa interpretação, na verdade a
confirma. Pois é uma das formas nas quais o Antigo Testamento fala do trono herdado pelo rei
davídico; é, de fato, o trono do Senhor.11 Até mesmo sua referência ao trono como pertencendo
a “Meu Pai” é uma expressão da aliança (1Cr 17.13-14; Sl 89.26).
Até mesmo o fato de que o presente assentar de Cristo no céu estando à destra de Deus está
de acordo com o padrão davídico do reinado. Através dos Salmos, Davi é apresentado como
alguém que está à destra de Deus.12 Em Salmos 139.8, 10, ele contempla como seria recebido se
subisse aos céus. Ele diz: “ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá”. Esse
é Davi falando do relacionamento com o Senhor que foi estabelecido pela aliança. A recepção no
céu à direita de Deus é uma bênção davídica. E isso é o que o Novo Testamento declara ter sido
concedido a Jesus, Filho de Davi.
O segundo problema com a objeção é que ela falha em abranger o relacionamento entre o
governo celestial de Deus sobre Israel e governo do seu rei escolhido. Ela perde o fato que na teologia
do Antigo Testamento, o trono de Deus, que é o reinado de Deus, é orientado dentro da aliança
para Israel. Com certeza, é dito que Deus é soberano sobre todas as coisas. Ele sempre foi e
sempre será. Nesse sentido, podemos falar do trono celestial de Deus como sua soberania eterna
sobre todas as coisas. Porém, devemos também observar que na teologia do Antigo Testamento,
Deus se estabelece de uma maneira especial como Rei sobre Israel. Ao manter sua promessa da
aliança a Abraão, ele cria uma nação dos seus descendentes, com ele mesmo como seu rei,
formalizada na aliança mosaica. Quando o reinado humano foi instituído, ele não substituiu o
reinado especial de Deus sobre Israel, mas funcionou sob ele. Esse é o motivo por que Crônicas
fala do trono que Salomão herda como o trono do Senhor. O trono humano terreno é uma
manifestação do trono celestial e do governo sobre Israel.13
Em Atos 2, Pedro declara a entronização de Jesus no céu como tendo grandes implicações
para Israel. Ele não está primariamente falando da deidade de Jesus, apesar que em si mesma
tenha grandes implicações. Ele não está falando da soberania divina eterna de Jesus. Em vez
disso, o ponto que ele está trabalhando é que esse filho de Davi ressurreto e imortal foi feito o
Cristo e Senhor no trono divino sobre Israel. Por causa da orientação da aliança do trono celestial
para Israel, a entronização de Jesus faz dele o Cristo, o rei ungido de Israel. E porque Deus, o rei
de Israel, fez uma aliança com Davi que seu descendente governaria Israel e todas as nações, essa
colocação de Jesus (o filho de Davi a quem Deus levantou dos mortos) no céu pelo divino rei de
Israel prevê um descendente iminente para o trono de Jerusalém.

Objeção 2. A presente atividade de Jesus é melhor entendida como soberania divina, não reinado
davídico. Mais uma vez, essa objeção limita o reinado davídico a funções meramente políticas. Já
que Cristo não está na terra agindo como seu governante político, é assumido que ele não está
operando como rei davídico. Toda sua obra presente é caracterizada como atividade divina,
incluindo todas as referências a seu governo e reinado.
Primeiro de tudo, observamos que a Bíblia explica a presente atividade de Jesus tanto em
termos davídicos como em termos divinos. As descrições da atividade de Jesus não precisam ser
revisadas aqui, já que não estão em disputa. Porém, perceba algumas caracterizações davídicas da
sua obra atual. Repetidamente, através do livro de Atos e das epístolas, é desta forma que ele está
ativo hoje: descrito como o Cristo (isto é, o Messias, o rei davídico ungido de Israel), sentado à
direita de Deus (posição davídica). Os milagres que acontecem em Atos são atribuídos a Jesus
Cristo (cf. At 3.6, “Jesus Cristo, o Nazareno”). O evangelho que recebemos e que traz salvação é a
boa nova acerca do Messias davídico (Rm 1.1-4; 2Tm 2.8). Quando o recebemos, somos
transferidos para dentro do reino do Filho amado de Deus, uma descrição na linguagem da
aliança. Em Efésios, Cristo age a partir de sua posição à direita do Pai, com todos seus inimigos
sujeitos a ele, para construir a casa de Deus. Ele faz isso ao dar o Espírito Santo — uma atividade
que João Batista predisse e que os apóstolos confirmaram que seria feita por Cristo. Em Hebreus,
Jesus medeia para nós como nosso sacerdote melquisedequiano, o ofício sacerdotal e função
prometidos a Davi (e ao descendente de Davi). No livro de Apocalipse, ele instrui as igrejas como
o rei davídico:

Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas às igrejas. Eu sou a Raiz e a Geração
de Davi, a brilhante Estrela da manhã (Apocalipse 22.16).

Em segundo lugar, a objeção falha em entender a unidade divino-humana da pessoa de Cristo, bem
como a maneira que essa unidade cumpre as profecias convergentes do governo divino e messiânico no
reino escatológico de Deus. Sem dúvida, a razão por que Cristo é apto para perdoar pecados e dar o
Espírito Santo é porque ele é Deus por natureza. Porém, é a pessoa de Cristo, o Deus-Homem,
que age. Sua volição humana está ativa juntamente com o divino na unidade da sua decisão
pessoal. Somado a isso está o fato que sua humanidade não é genérica; ele é um descendente de
Davi que foi ungido, entronizado e a quem foi dada “toda autoridade no céu e na terra”
(Mt 28.18). Quando ele age, ele age como o rei divino e davídico.
No próximo capítulo, veremos que alguns profetas predisseram um reino escatológico em
que Deus governaria na terra, enquanto outros predisseram o governo eterno de um descendente
futuro de Davi. A regra em ambas as linhas da profecia é a mesma: mesmas atividades, mesmos
resultados. Agora vemos, entretanto, que essas profecias se juntam em uma pessoa, que
conhecemos como Jesus, que é tanto Deus quanto descendente de Davi. As profecias com
respeito ao governo de Deus e o rei davídico são simultaneamente cumpridas pela conjunção das
volições divina e humana na unidade singular da ação pessoal de Jesus. Não se pode excluir sua
volição humana dessa atividade. Esse é o motivo por que na linguagem das Escrituras, ações que
somente podem acontecer pelo divino poder são atribuídas a Jesus de Nazaré, o Cristo.

Objeção 3. Falar do cumprimento presente da promessa davídica por Cristo no céu é uma
interpretação espiritual das promessas terrenas e políticas. Essa objeção somente tem apelo se as
promessas davídicas são reduzidas simplesmente às atividades políticas do Filho de Davi na terra.
É então assumido que a alegação do presente cumprimento davídico transforma
hermeneuticamente essas atividades futuras terrenas em realidades transcendentes espirituais.
Nada poderia se distanciar mais da verdade. Primeiro de tudo, a Bíblia em si descreve a
presente posição e atividade de Cristo em termos das promessas feitas na aliança com Davi. Essas
verdades são discernidas através de uma interpretação histórico-literária das Escrituras. Não
estamos seguindo uma “interpretação espiritual” quando lemos e entendemos o título de Cristo
como significando o rei davídico e interpretamos as Escrituras como dizendo que Jesus
atualmente é e atua como o Cristo. Não estamos seguindo uma “interpretação espiritual” quando
vemos a promessa feita na aliança de uma relação Pai-Filho cumpridas presentemente na pessoa
de Jesus. Nem estamos seguindo uma “interpretação espiritual” quando lemos a proclamação de
Pedro que Jesus foi ressuscitado de acordo com a promessa de estabelecer um dos descendentes
de Davi sobre seu trono e então ouvi-lo dizer que Jesus está assentado à direita de Deus e foi feito
Senhor e Cristo. Nenhuma “interpretação espiritual” está em ação quando entendemos a carta
aos Hebreus dizer que Jesus recebeu o ofício do sacerdócio de Melquisedeque, o ofício que Deus
fez uma aliança pelo juramento a Davi. Nenhuma “interpretação espiritual” está em ação quando
interpretamos as Escrituras como dizendo que Jesus é agora o mais exaltado dos reis da terra, que
ele foi estabelecido para sempre no reino de Deus, que a benignidade do Pai perdura com ele
para sempre e que ele está de fato construindo uma casa para a habitação do Senhor. Esses e
muitos outros aspectos do presente ministério davídico de Cristo, conforme visto nas páginas
anteriores, vem de um estudo literário, histórico e gramatical do ensino do Novo Testamento.
Isso levanta questões, entretanto, acerca da hermenêutica daqueles que alegam que a Bíblia
não ensina essas coisas. Conforme observado nos capítulos sobre hermenêutica, inevitavelmente
chegamos às Escrituras com um pré-entendimento formado por nossa tradição. O verdadeiro
teste para determinar se a Escritura ou a tradição é a nossa autoridade fundamental encontra-se
em nossa disposição para testar nossos pré-entendimentos através de um estudo mais
aprofundado das Escrituras, examinando seus ensinos novamente de um modo histórico-
literário. Se as interpretações posteriores nesse capítulo estão corretas, elas serão verificadas e mais
profundamente desenvolvidas, se necessário, deste modo. Aqueles que adotam uma visão
contrária precisam entrar no mesmo processo de estudo. Temos a esperança de que isso
contribuirá para um melhor entendimento das Escrituras por todos nós.

JESUS E O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA ABRAÂMICA


Em Lucas 1.46-55, encontramos o cântico de louvor de Maria em resposta às notícias que seu
filho cumpriria a aliança prometida a Davi. Ela conclui com esse louvor:

Amparou a Israel, seu servo,


a fim de lembrar-se da sua misericórdia
a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre,
Como prometera aos nossos pais (v. 54-55).

Essa linguagem relembra o primeiro oráculo da série encontrada no livro de Isaías (41.8-10).

“Mas tu, ó Israel, servo meu, tu, Jacó, a quem elegi, descendente [semente] de Abraão, meu
amigo, tu, a quem tomei das extremidades da terra, e chamei dos seus cantos mais remotos, e a
quem disse: Tu és o meu servo, eu te escolhi e não te rejeitei, não temas, porque eu sou
contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento
com a minha destra fiel”.14

O cântico de Maria revela sua crença de que aquele que ela carregaria para cumprir as promessas
a Davi também cumpriria as promessas feitas a Abraão. Na mente dela, o cumprimento da
aliança davídica foi o meio pelo qual a promessa abraâmica seria cumprida. E não parece ser uma
coincidência que ela declare a promessa abraâmica na linguagem do primeiro oráculo de Isaías,
pois como uma série de oráculos em progresso, o Servo é eventualmente identificado como um
indivíduo dentro de Israel que serve Israel e através de quem o serviço de Israel a Deus é
alcançado (Is 49.5-6).
A profecia de Zacarias em Lucas 1.68-79 continua esse tema ao proclamar “Deus de Israel
[...] nos suscitou plena e poderosa salvação na casa de Davi, seu servo [...] e lembrar-se da sua
santa aliança e do juramento que fez a Abraão, o nosso pai”. Isso levará, ele diz, Israel a servir a
Deus “em santidade e retidão por todos os nossos dias”, uma descrição que relembra a promessa
da aliança de que eles seriam seu povo e ele seria seu Deus.
O segundo sermão de Pedro, Atos 3.12-26, proclama Jesus como o Servo do Deus de
Abraão, Isaque e Jacó que foi enviado a Israel para fazê-los voltar para Deus (vv. 13, 26). A
referência a Isaías 49.5-6 (quando o Servo traz Israel de volta para Deus) é inconfundível. Além
do mais, ele declara que Deus é o mediador da bênção prometida na aliança abraâmica.

Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com vossos pais, dizendo a
Abraão: “Na tua descendência, serão abençoadas todas as nações da terra.” Tendo Deus
ressuscitado o seu Servo, enviou-o primeiramente a vós outros para vos abençoar, no sentido de
que cada um se aparte das suas perversidades (Atos 3.25-26).

Aqui, o arrependimento que o Servo do Senhor causaria em Israel é visto como sendo um
aspecto da bênção que Deus prometeu a Abraão. Isso está de fato atrelado à promessa da nova
aliança que examinaremos subsequentemente. Porém, observe os versos 20-21 desse sermão.
Pedro olha em direção à futura vinda de Cristo a qual todos os elementos da bênção prometida
serão confirmados. Ele declara que “é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração
de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade”. Isso
deve incluir aspectos nacionais e territoriais da aliança abraâmica, já que os profetas falaram da
restauração dessas bênçãos.
O sermão de Pedro confirma que as bênçãos da aliança abraâmica são mediadas pelo
Cristo.15 Conforme a aliança davídica é cumprida com ele, assim as bênçãos da aliança
abraâmica são cumpridas com respeito a seus vários destinatários. Entretanto, o cumprimento
ocorrerá em estágios que estão atrelados à história do Cristo. Certas bênçãos estão agora
disponíveis, outras esperam o tempo do seu retorno.
O ensino em Lucas e em Atos de que o Cristo, o rei ungido, é aquele que medeia as bênçãos
da aliança abraâmica concorda completamente com nosso estudo da aliança davídica no Antigo
Testamento, especialmente o Salmo 72. Além do mais, esse pano de fundo do Antigo
Testamento ajuda a interpretar os destaques de Paulo em Gálatas 3 acerca de Cristo cumprindo
as promessas a Abraão. Ele diz em Gálatas 3.16: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao
seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como se falando de muitos, porém como de um
só: E ao teu descendente, que é Cristo”. Paulo não está dizendo que Cristo é o único indivíduo
que será abençoado, pois no verso 14, ele diz: “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios,
em Jesus Cristo”. E no verso 29, ele fala dos judeus e gentios que “sois de Cristo” e são
consequentemente “descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa”.
Descendência [semente] é um nome coletivo tanto no grego quanto no português. Enquanto
sua forma singular pode se referir a uma única semente, geralmente significa muitas sementes do
mesmo tipo. Por exemplo, podemos dizer que um fazendeiro compra um saco de semente
(significando sementes do mesmo tipo) e então que ele semeia sua semente em seu campo
(significando novamente que ele plantou todas as sementes). Também notamos a natureza
orgânica e reprodutiva da semente. De uma semente semeada no solo podem vir muitas
sementes. Consequentemente vemos a relação entre a forma singular e o significado plural de
semente.
Paulo parece estar argumentando que a aliança davídica estruturou a descendência [semente]
de Abraão de tal forma que a bênção da aliança primeiramente tem vistas ao Rei, um único
indivíduo, e então através dele todos os outros beneficiários da aliança. Assim, ele diz que as
promessas se referem a “de um só [...] que é Cristo.” Cristo, o rei ungido, recebe as bênçãos e faz
sua mediação a quem lhe é sujeito. Esses se “vestiram com Cristo” pela virtude do batismo
(v. 27) para que assim sejam “todos um em Cristo” (v. 28). Dessa forma, todos eles são
“descendentes [semente] de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (v. 29).
A partir do Novo Testamento, as promessas de Abraão estão sendo e serão cumpridas através
de Cristo, que é proclamado como Jesus. A linguagem da promessa da aliança “te abençoarei
[...]; em ti [ou “em tua descendência”, cf Gn 22.18] serão benditas todas as famílias da terra”
(Gn 12.2-3), veio a significar que Deus abençoa Cristo, o descendente de Abraão, a semente de
Davi, e todos aqueles de Abraão e das nações da terra que estão nele.
É a esse respeito que devemos entender a doutrina paulina da bênção em Cristo. É um termo
da aliança combinando as alianças abraâmica e davídica, no qual a última funciona como o meio
para o cumprimento da primeira. Veremos que a frase também faz referência à nova aliança, já
que como revelado no Antigo Testamento, a nova aliança é a forma na qual a aliança abraâmica
será desfrutada para sempre.
Antes de deixar a aliança abraâmica, entretanto, precisamos observar dois importantes
aspectos desse cumprimento que o Novo Testamento nos apresenta: (1) que a bênção inclui
gentios assim como judeus; e (2) que tanto judeus quanto gentios devem receber a bênção pela fé
em Cristo.

BÊNÇÃO SOBRE OS GENTIOS


O ensino de Paulo sobre a aliança abraâmica concentra-se particularmente na promessa de
abençoar “todas as nações”. Em Gálatas 3.8, ele diz: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus
justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: ‘Em ti, serão abençoados todos
os povos’”. Paulo entende essa promessa da bênção aos gentios como sendo atualmente cumprida
através Cristo. Ele escreve no verso 14: “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios”.
É importante notar que a bênção que Paulo tem em mente em Gálatas é o recebimento do
Espírito Santo (veja 3.2, 5; 4.6) e o dom de justiça (3.21-22). Essas são, de fato, bênçãos da nova
aliança, mas Paulo as apresenta como bênçãos da aliança abraâmica. Novamente, isso mostra que
a nova aliança é a forma na qual a aliança abraâmica será cumprida. Também é importante notar
que tanto Paulo quanto Pedro veem a bênção abraâmica mediada em estágios que estão atreladas
à história de Cristo. Os estágios distinguem não somente entre os graus de bênção, mas também
entre os diferentes tipos de bênção. Assim, Pedro fala da restauração de todas as coisas preditas
pelos profetas na futura vinda de Cristo. Isso certamente inclui as promessas nacionais a Israel, já
que aquelas promessas estão incluídas em “todas as coisas preditas pelos profetas”. Da mesma
forma, Paulo fala da salvação de todo Israel na vinda de Cristo (Rm 11.26), baseado no fato que
“quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas; porque os dons e a vocação de Deus
são irrevogáveis” (vv. 28-29). Sua linguagem aqui relembra as palavras de Moisés em
Deuteronômio de que depois de todas as maldições da aliança mosaica, o Senhor iria restaurar as
bênçãos nacionais e territoriais para Israel porque ele “não se esquecerá da aliança que jurou a
teus pais”; e “porquanto amou teus pais, e escolheu a descendência depois deles [...] para te dar
[...] [essa] terra como herança” (Dt 4.31, 37-38).
Com a bênção nacional futura atrelada ao retorno de Cristo, há no tempo presente certas
bênçãos sendo dadas aos judeus e gentios igualmente. Essas bênçãos são dadas no cumprimento
da promessa de abençoar “você” (judeus) e abençoar “todas as nações” (At 3.25-26; Gl 3.8, 14).
Em conjunto com a promessa de abençoar todas as nações “em você”, gentios que eram
“estranhos às alianças da promessa” (Ef 2.12) foram reconciliados “em Cristo” e abençoados
juntamente com os judeus. A bênção está sendo dada igualmente sem qualquer distinção de raça,
classe ou gênero (Gl 3.28).

A RECEPÇÃO DA BÊNÇÃO PELA FÉ


Muito do que o Novo Testamento tem a dizer da aliança abraâmica tem a ver com como e a
quem suas bênçãos são dadas. João Batista advertiu os judeus que somente essa origem física não
seria suficiente para as bênçãos da aliança. Em vez disso, ele predisse um julgamento futuro sobre
todos que não se arrependeram (Mt 3.9; Lc 3.8). Jesus também advertiu seus ouvintes que nem
todos os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó herdariam o reino de Deus (Mt 8.11; Lc 13.28),
o que quer dizer que nem todos os descendentes físicos de Abraão compartilham o futuro
cumprimento das promessas da aliança.
Em João 8.39-58, Jesus repreendeu seus ouvintes, os descendentes físicos de Abraão, por não
serem verdadeiros filhos de Abraão, isto é, por não replicarem em suas vidas a fé e as obras de
Abraão. Ele diz que eles eram filhos do diabo, pois buscavam fazer as obras do diabo.
Paulo argumenta que “os da fé é que são filhos de Abraão” (Gl 3.7). Ele observa que em
Gênesis 15.6, Abraão recebeu a promessa pela fé: “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado
para justiça”. Paulo vê a fé como o meio de receber a aliança outorgada a Abraão. Tal recepção é
apropriada à natureza graciosa e intenção da promessa.

Não foi por intermédio da lei que a Abraão ou a sua descendência coube a promessa de ser
herdeiro do mundo, e sim mediante a justiça da fé. [...] Essa é a razão por que provém da fé,
para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa pra toda a descendência, não
somente ao que está no regime da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque
Abraão é pai de todos nós [...] (Romanos 4.13,16).

Novamente, ele diz (em Gl 3.9), “os da fé são abençoados com o crente Abraão”. Isso
necessariamente pressupõe uma distinção dentro de Israel: aqueles que são da fé de Abraão e
consequentemente recebem as bênçãos da aliança abraâmica, e aqueles que não são da fé de
Abraão e que consequentemente perdem a possibilidade de herdar essa bênção. Em
Romanos 9.6-8, ele argumenta:

Porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes [semente]
de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência [semente].
Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados
como descendência os filhos da promessa.

Aqui, os filhos da promessa são aqueles descendentes físicos que Deus escolheu (veja Rm 9.11,
16, 18; 11.5). Eles também são vistos como aqueles que creem. Aqueles que são rejeitados o são
“por sua incredulidade” (11.20). Porém, “se não permanecerem na incredulidade, serão
enxertados” (v. 23). Aqueles judeus que falharam em obter a bênção da aliança falharam porque
“não decorreu da fé, e sim como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço, como está
escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, e aquele que nela crê
não será confundido”. (Rm 9.32.33).
Os gentios que acreditam em Jesus Cristo recebem as bênçãos de Abraão consistente com a
promessa de abençoar todas as nações nele. Paulo argumenta em Romanos 4.9-12 que Abraão
recebeu a promessa pela fé antes de ser circuncidado. Isso é um sinal que os gentios iriam ser
abençoados através dessa aliança pela fé. Em Gálatas 3.8, Paulo chama a promessa para abençoar
as nações do evangelho, que é para ser recebido pela fé. “Assim, os que são da fé são abençoados
juntamente com Abraão, homem de fé”. É “em Cristo Jesus” que “a bênção de Abraão” vem “aos
gentios [...] através da fé”.
A bênção que os judeus e os gentios receberam através da fé é compartilhada igualmente por
ambos os grupos sem distinção de raça, gênero ou classe social (Gl 3.28; Ef 2.14-16; 3.6).
Quanto ao conteúdo específico dessa bênção, devemos voltar à nova aliança.

RESUMO
No seu ministério davídico presente e futuro, Jesus recebeu e mediou as bênçãos da aliança
abraâmica. Nele, e através dele, essa aliança é e será cumprida. Sua mediação da bênção se
estende a todas as pessoas, aos judeus e gentios que confiam nele. Porém, ele a medeia em
estágios, com as bênçãos nacionais e políticas aguardando a dispensação do seu retorno.

JESUS E A ALIANÇA MOSAICA


Temos visto que a aliança mosaica foi um arranjo no qual Israel e Judá poderiam experimentar a
bênção da aliança abraâmica (ou por outro lado, a maldição do Senhor) em sua vida nacional
diária. Como resposta de Deus ao povo, as bênçãos ou maldições eram o cumprimento da
aliança. Consequentemente, a aliança mosaica foi sendo continuamente cumprida no dia-a-dia
da história de Israel, pois eles estavam sempre sob a bênção ou maldição de Deus.
As promessas da nova aliança, entretanto, olharam para um tempo quando a aliança mosaica
seria substituída. Ela viria a um fim e seria substituída por uma nova aliança.
O Novo Testamento ensina que Jesus Cristo trouxe a aliança mosaica a seu cumprimento
final. Em Mateus 5.17-18, Jesus ensinou:

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.
Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais
passará da Lei, até que tudo se cumpra.

O termo Lei é usado aqui como uma referência às Escrituras em si. Quando é usado
juntamente com Profetas ele se refere ao Pentateuco, os primeiros cinco livros do Antigo
Testamento, comumente referenciados como a Torá, ou Lei. O segundo uso de lei, no verso 18,
se refere às Escrituras do Antigo Testamento como um todo. É importante notar que Jesus não
está se referindo aos mandamentos divinos sozinhos quando ele fala da lei aqui. O uso mais
amplo abrange esses mandamentos conforme eles aparecem dentro das alianças as quais eles
pertencem. Esse uso mais amplo também abrange os padrões de como Deus lida com Israel
apresentados nas narrativas das Escrituras do Antigo Testamento. Jesus inclui tudo isso quando
ele diz que ele não veio para abolir a lei, mas para cumprir.
A palavra em ação é cumprir. Alguns sugeriram que isso significa que ele veio para defender e
proclamar a Lei assim como outros mestres das Escrituras. O uso da palavra cumprir no
Evangelho de Mateus, entretanto, parece levar a um entendimento diferente. Jesus cumpre as
Escrituras ao replicar em sua própria vida os padrões das relações históricas de Deus com Israel e
ao cumprir em sua própria história os eventos preditos da profecia.16
Quando é o caso das alianças apresentadas ou preditas no Antigo Testamento, Deus as
cumpre também. Já vimos como ele é apresentado como o cumprimento das alianças davídica e
abraâmica, um cumprimento que se dá na sua obra vigente. Quando é o caso da aliança mosaica,
entretanto, o Novo Testamento apresenta essa aliança como completamente cumprida na morte
de Jesus Cristo. Os termos específicos dessa aliança não foram arbitrariamente postos de lado
(abolidos). A aliança estava legalmente vinculada à menor letra ou traço até que os céus e terra (o
testemunho da aliança em Dt 4.30) tiverem passado.17 Porém, Jesus introduz outro até: “até que
tudo seja cumprido”. O cumprimento das alianças, das profecias e dos padrões das Escrituras se
dão na história do seu ministério — alguns durante o tempo do seu nascimento, infância e pré-
ascensão adulta ao ministério, alguns em sua morte e ascensão, alguns ainda na sua atuação
presente, e o restante em seu retorno futuro e reino eterno. É nesse “cumprimento” das alianças,
das profecias e dos padrões das Escrituras que a aliança mosaica tal como é dita é cumprida e
substituída por uma nova aliança que dura para sempre.
Hebreus 8-10 fala dessa mudança da aliança. Muito do que ela tem a dizer diz respeito à
fundamentação, a base, e às implicações do estabelecimento da nova aliança. A aliança mosaica é
referenciada como “obsoleta”, “envelhecendo” e “pronta para desaparecer”. Certas características
cerimoniais dessa aliança são especialmente salientadas como tendo sido substituídas.
Usando a linguagem de Deuteronômio 30, Paulo diz em Romanos 10.1-10, que “Cristo é o
fim da lei” (v. 4). A palavra lei aqui se refere às estipulações da aliança mosaica, pois foram essas
estipulações da aliança como um todo que estavam em vista em Deuteronômio 30. O mesmo é
verdade para sua declaração em Efésios 2.14-15, que Cristo “tendo derribado a parede da
separação [uma característica estrutural do templo que separava gentios dos judeus] aboliu, na sua
carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças”. A palavra Lei aqui se refere à seção da
aliança mosaica das estipulações que foi geralmente referenciada como “os mandamentos, os
estatutos e os julgamentos [ordenanças]” (Dt 6.1-2, 17; 7.11; 8.11; 11.1; 12.1; 28.1, 15; 30.10,
16). As estipulações foram talvez a característica mais marcante e vital da aliança mosaica, tal que
uma referência a essa porção da aliança foi uma referência à aliança como um todo.
Essa observação se torna até mesmo mais clara em Romanos 7.1-6 quando Paulo compara a
lei a uma aliança de casamento. Certamente, nessa passagem, a lei significa a aliança mosaica em
si. Paulo fala de nosso relacionamento com a lei (aliança mosaica) terminando na morte de Jesus
Cristo, assim como a obrigação de casamento de um parceiro à aliança do casamento termina na
morte do outro parceiro (vv. 3-4). É possível para esse parceiro do casamento entrar em uma
nova aliança de casamento e da mesma forma que Paulo usa a linguagem das profecias da nova
aliança, ele fala de sermos “libertos da lei” (libertados da aliança mosaica) e “servindo na
novidade do Espírito” (trazida para a nova aliança).
O fim da aliança Mosaica é também proclamado em Gálatas 3-4, quando Paulo fala do
presente recebimento do Espírito Santo na igreja (3.2, 5; 4.6), uma provisão da nova aliança.
Nesta passagem, ele se refere à aliança mosaica pelo termo lei e à aliança abraâmica pelo termo
promessa. A aparição do termo aliança em 3.15,17 ajuda a esclarecer que as alianças estão de fato
em perspectiva, como faz também a referência histórica à lei, ao ser formalmente instituída
(v. 19) 430 anos depois da promessa (v. 17). Finalmente, em Gálatas 4.24, Paulo explicitamente
declara que ele está falando de duas alianças, uma das quais foi feita no Monte Sinai. Ele faz
importantes observações acerca dessas alianças:

1. A aliança abraâmica tem precedência sobre a aliança mosaica.


2. A aliança mosaica não pôs de lado a aliança abraâmica (3.17).
3. A aliança abraâmica é recebida pela fé.
4. As bênçãos da aliança mosaica são recebidas pela obediência a essas estipulações (v. 12).
5. A aliança mosaica foi instituída por causa do pecado (v. 19).
6. A aliança mosaica foi temporária, estando em efeito “até que viesse o descendente a quem se
fez a promessa” (v. 19).

O último ponto recebe atenção estendida de 3.19 a 4.31. Jesus Cristo é o “descendente” (3.16)
cuja vinda marca o fim da aliança mosaica. Paulo repete esse ponto de três formas.
Primeiro, ele diz que não estamos mais sob a aliança mosaica (a lei) agora que a fé em Jesus
Cristo veio (vv. 22-25). A fé já existia antes da encarnação, já que, como Paulo argumenta,
Abraão foi um crente, e que a promessa abraâmica sempre foi recebida pela fé (3.6-9,14). Porém,
quando Deus, o Filho, o redentor, se encarnou como Jesus de Nazaré, a fé em Deus concentrou-
se especialmente sobre Jesus. A lei (aliança mosaica) funcionou como um “tutor até Cristo”
(3.24, NVI), “Agora, porém, tendo chegado a fé [isto é, fé em Jesus Cristo, já que Jesus Cristo
veio agora], já não estamos mais sob o controle do tutor” (3.25, NVI). Já que o “tutor” é a
aliança mosaica, Paulo está dizendo que não estamos mais sob essa aliança.
Em segundo lugar, ele fala da aliança mosaica como um mordomo encarregado de cuidar das
crianças “até a data estabelecida pelo pai”, até que eles alcancem a idade da herança (4.1-2). A
implicação é que quando a idade da maturidade é alcançada, a função do mordomo chega ao
fim. A vinda de Cristo fez isso por nós com respeito à aliança mosaica. Agora que Jesus veio, nos
redimiu e nos deu a bênção da nova aliança (v. 6, o Espírito Santo prometido), não estamos mais
sob a mordomia da aliança mosaica (v. 7, cf. vv. 1-3).
Finalmente, Paulo argumenta com uma alegoria em 4.21. Usando a história da Sara e Hagar,
sua escrava, Paulo ensina que os cristãos da nova aliança são filhos da promessa abraâmica. Como
Hagar foi “expulsa” juntamente com seu filho, assim a aliança mosaica foi posta de lado. Aqueles
que tentam se relacionar com Deus através dos termos dessa aliança perdem o relacionamento da
nova aliança que Deus estabeleceu através da fé em Jesus Cristo, uma relação que concede a
bênção de Abraão à parte da aliança mosaica.
Em Gálatas 3.10-13, Paulo explica como a morte de Cristo cumpriu e assim encerrou a
aliança mosaica. “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em
nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro)”. Cristo
tomou a maldição da aliança mosaica sobre si mesmo para satisfazer as exigências de Deus. Isso
não teria acontecido, entretanto, se ele mesmo fosse um pecador, precisando de expiação para
seus pecados. Porém, como Paulo diz em 2 Coríntios 5.21, Deus “o fez pecado por nós; para
que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”. Ele estava completamente obediente às estipulações
da aliança mosaica. Esse é o motivo pelo qual aqueles que estão em Cristo são vistos como justos
(cf. Dt 6.25; 1Co 1.30) e encontramos a maldição de Deus completamente satisfeita para eles.
A mediação sem pecado de Cristo, que cumpriu e encerrou a aliança mosaica e inaugurou a
nova dispensação da nova aliança é um ensino principal na carta aos Hebreus. Hebreus declara
que Jesus é um sumo sacerdote sem pecado. Consequentemente, ele é apto para interceder
completamente em favor do seu povo.

Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula,
separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus, que não tem necessidade, como os
sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro, por seus próprios pecados,
depois, pelos do povo; porque fez isto de uma vez por todas, quando a si mesmo se ofereceu
(7.26-27).

Hebreus argumenta que o ato sacerdotal foi uma função de mediação do seu sacerdócio
melquisedequiano, que pertence a ele como Cristo, o Filho de Davi. Ele ofereceu o sacrifício de
si mesmo, que cumpriu o sistema sacrificial da aliança mosaica e “sentou à direita de Deus”,
como Senhor (Sl 110.1) de Israel e das nações (Hb 10.1-18; veja especialmente o verso 12).
Tendo cumprido a aliança mosaica, ele tornou possível o estabelecimento de uma nova aliança
em seu lugar.
Romanos 7.1-6 vê a morte de Cristo como a morte de um parceiro da aliança que, portanto,
marca o fim de uma aliança bilateral. Paulo não explica como Cristo deve ser visto como um
parceiro da aliança. O fato de que ele é o Cristo, o rei de Israel, sugere que sua morte é
representativa da nação. Esse pensamento está relacionado ao seu papel como o Servo de Deus,
que é tanto Israel quanto um representante de Israel ministrando em favor de Israel e das nações.
Ele também é Deus (Rm 9.5), aquele que faz a aliança, assim sua morte é mais significativa do
que qualquer rei davídico anterior. E quando adicionamos o fato que sua morte foi satisfatória à
aliança para a transgressão do povo de Deus, ao cumprir a maldição da aliança, o encerramento
da aliança mosaica é tido como completo.
Antes de deixarmos a questão do cumprimento da aliança mosaica por Jesus, devemos
destacar que o término dessa aliança não significa que o povo de Deus é deixado em um estado
de ausência de lei. Certamente, Abraão não estava em uma condição de ausência de lei 430 anos
antes da lei (aliança mosaica) ser dada. O próprio Senhor o ordenou, “anda na minha presença e
sê perfeito” (Gn 17.1) e depois ele disse acerca dele “porque eu o escolhi para que ordene a seus
filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça
e o juízo” (Gn 18.19). O término da aliança mosaica estava em vista do estabelecimento de uma
nova aliança em que Deus escreveria sua lei nos corações do seu povo (Jr 31.33) e faria com que
eles andassem em seus caminhos (Ez 36.27). Então, apesar de Paulo ensinar que Cristo é o fim
da lei (Rm 10.4; isto é, a lei na forma da aliança mosaica), ele também diz que os crentes não
estão “sem a lei de Deus, mas sob a lei de Cristo” (1Co 9.21; cf. Gl 6.2; isto é, a lei em forma da
nova aliança). Ele também fala dessa lei da nova aliança como a “lei do Espírito” (Rm 8.2), visto
que o Espírito é o elemento característico da nova aliança. Tiago se refere a ela como a “lei régia”
(Tg 2.8,12), associando-a novamente a Cristo, o rei ungido.
A teologia do Novo Testamento do dispensacionalismo progressivo não é antinomista.18
Pois enquanto ensina que a lei da aliança mosaica terminou dispensacionalmente, também ensina
que foi substituída pela lei da nova aliança, e apresenta essa mudança dispensacional como parte
integrante do plano de redenção de Deus que afirma e cumpre a demanda divina de justiça e
santidade, assim como ele salva e abençoa eternamente os redimidos.

JESUS E A NOVA ALIANÇA


Nosso estudo da história das alianças mostra que elas são a estrutura na qual a história da
redenção é realizada. Essa história é revelada em uma progressão de dispensações divinas. As
alianças outorgadas aos patriarcas, que prometeram bênçãos para todos, foram dadas em
expressões dispensacionais na aliança mosaica. A outorga davídica previu um mediador em quem
e através de quem as concessões patriarcais seriam finalmente cumpridas. Esse mediador
supervisionaria a transição dispensacional da aliança mosaica para uma nova aliança, para o
cumprimento das promessas da bênção. Esse mediador é Jesus, o Cristo, que trouxe a
dispensação da aliança mosaica para uma conclusão e que, em sua própria história de
cumprimento da promessa davídica, inaugurou a nova aliança e dirige a história do seu
cumprimento para sua consumação eterna.

JESUS, O MEDIADOR DA NOVA ALIANÇA


Na noite antes de ser crucificado, Jesus se juntou com seus discípulos no cenáculo de uma casa
em Jerusalém para celebrar a Páscoa. É relatado em Lucas 22.20, que ele tomou a taça antes de
compartilhá-la com seus discípulos e deu sua significância: “Este é o cálice da nova aliança no
meu sangue derramado em favor de vós”. Mateus 26.28, relatando o mesmo episódio: “porque
isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de
pecados”.À luz das várias citações e alusões às Escrituras do Antigo Testamento, tanto no relato
de Lucas quanto de Mateus desse evento, é somente adequado traçar os destaques de Jesus acerca
da nova aliança para o perdão dos pecados àquela promessa em Jeremias 31.31-34, que começa
com: “firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá”; e termina com as
palavras: “pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei”.
Paulo coloca a igreja do Novo Testamento sob esse mesmo arranjo da nova aliança quando
ele identifica a prática eclesiástica da Ceia do Senhor como um compartilhar do pão e do cálice
que Jesus instituiu naquela noite antes da crucificação. Ele repete as palavras de Cristo como
encontradas em Lucas 22.20: “Este cálice é a nova aliança do meu sangue” (1Co 11.25). Ele fala
da igreja como bebendo esse cálice (vv. 26-29) em obediência aos mandamentos de Jesus dados
naquela noite (vv. 23, 25), e explica essa atividade como sua proclamação da morte de Cristo
(v. 26) e como a própria participação deles em seu sangue (10.16).
Em 2 Coríntios 3.6, Paulo identifica a si mesmo e seus companheiros de ministério como
“servos da nova aliança”. Essa não é uma nova aliança indefinida, mas uma que foi predita por
Jeremias e Ezequiel. Sabemos disso porque Paulo identifica os elementos chave dessa nova
aliança como aquela que Jeremias e Ezequiel predisseram quando profetizaram a nova aliança
futura.

Jeremias: “Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o
SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu
serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jeremias 31.33).

Paulo: “Estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita
não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de
carne, isto é, nos corações” (2 Coríntios 3.3).

Ezequiel: “Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis
os meus juízos e os observeis”. (Ezequiel 36.27). “Porei em vós o meu Espírito, e vivereis”
(Ezequiel 37.14).

Paulo: “[Somos] ministros de uma nova aliança [...] do Espírito; para [...] o Espírito que dá
vida” (2 Coríntios 3.6).

Além do mais, Paulo continua a contrastar esse ministério da nova aliança com o ministério da
“antiga aliança” (2Co 3.14), que foi associada a Moisés (2Co 3.7, 13, 15), a mesma “antiga
aliança” contra a qual Jeremias e Ezequiel profetizaram uma nova aliança futura (Jr 31.32). A
carta aos Hebreus culmina esse testemunho ao citar Jeremias 31.31-34 por completo (Hb 8.6-
13) e proclamando Cristo como “o mediador de uma nova aliança [...] para a redenção das
transgressões que foram cometidas sob a primeira aliança” (Hb 9.15). E prossegue dizendo que a
morte de Cristo é a expiação por todos os pecados de acordo com a promessa revelada em
Jeremias 31.33-34.

Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à
destra de Deus [...] Porque, com uma única oferta, aperfeiçoou para sempre quantos estão
sendo santificados. E disto nos dá testemunho também o Espírito Santo; porquanto, após ter
dito:
“Esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei no seu coração
as minhas leis e sobre a sua mente as inscreverei,”
acrescenta:
“Também de nenhum modo me lembrarei dos seus pecados e das suas iniquidades, para
sempre” (Hebreus 10.12-17).

A carta prossegue para traçar a linha da fé a partir dos santos do Antigo Testamento aos crentes
em Jesus hoje em dia, concluindo com uma figura da Cidade de Deus na qual a “igreja do
primogênito” e “os espíritos dos justos aperfeiçoados” [uma referência aos santos do Antigo
Testamento, veja Hebreus 11.40 onde “eles” se refere à lista precedente dos santos]” são unidos a
“Jesus o mediador de uma nova aliança” (Hb 12.22-24).
É indiscutível que o Novo Testamento vê a nova aliança predita por Jeremias e Ezequiel
como estabelecida na morte de Jesus Cristo, com algumas das suas bênçãos prometidas sendo
agora concedidas a judeus e gentios que são crentes em Jesus. Essas não são bênçãos semelhantes
aquelas preditas por Jeremias e Ezequiel. Elas são as mesmas bênçãos que aqueles profetas
predisseram. Pois a nova aliança que está presentemente em efeito através de Jesus Cristo não é
uma que é como aquela predita por Jeremias e Ezequiel, mas é a mesma aliança que eles
profetizaram que está em efeito hoje. Há elementos prometidos naquela aliança cujo
cumprimento foi postergado até o retorno de Cristo (como as promessas nacionais e territoriais
em Jeremias 31.31, 36 e Ezequiel 36.28 e 37.14). Porém, esses são elementos que retrocedem à
aliança abraâmica em si e ainda assim o Novo Testamento fala das bênçãos presentes da aliança
abraâmica. A atual forma inaugurada da nova aliança é de fato a forma dispensacional, na qual
bênçãos abraâmicas estão presentes hoje.

O PERDÃO DOS PECADOS


Temos visto que o Novo Testamento interpreta a morte de Jesus como o sacrifício fundamental
que inaugurou a nova aliança. O próprio Jesus explanou o perdão dos pecados que vem através
da sua morte como uma bênção da nova aliança. Ele ordenou aos seus discípulos “que em seu
nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de
Jerusalém” (Lc 24.47). Depois da ascensão de Jesus, no dia de Pentecoste, Pedro começou a
pregar em Jerusalém, “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo
para remissão dos vossos pecados” (At 2.38). Paulo também pregou na sinagoga, “Tomai, pois,
irmãos, conhecimento de que se vos anuncia remissão de pecados por intermédio deste; e, por
meio dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vós não pudestes ser
justificados pela lei de Moisés” (At 13.38,39).
A doutrina do Novo Testamento do perdão dos pecados, exposta nas epístolas paulinas e nas
epístolas gerais, tem sua base aqui. A partir das palavras de Jesus na noite antes da crucificação,
podemos ver todo o ensino neotestamentário sobre o perdão como uma exposição estendida da
bênção da nova aliança, que por sua vez é uma revelação do significado específico da promessa
abraâmica declarada de forma geral: “Eu abençoarei você.” Quando Paulo reconta as bênçãos que
Deus concedeu sobre nós em Cristo (Ef 1.1-14), ele declara que “nele temos redenção através do
seu sangue, o perdão de nossas transgressões, segundo as riquezas da sua graça, as quais derramou
sobre nós.” Isso é uma bênção que não é somente dada aos judeus segundo a promessa patriarcal,
“eu abençoarei você”, mas também aos gentios segundo a promessa patriarcal “abençoarei todas
as nações em você”. Consequentemente, Paulo diz que os gentios que estavam “mortos em suas
transgressões e pecados”, que eram “estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e
sem Deus no mundo”, agora “foram aproximados pelo sangue de Cristo” (Ef 2.1, 12-13). O
evangelho em si, que é “primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16), é uma proclamação
de “que Cristo morreu por nossos pecados de acordo com as Escrituras” (1Co 15.3), uma
proclamação que a igreja, judeus e gentios unidos em Cristo (12.13), também faz quando ela
participa do cálice da lembrança (11.26), o cálice que Jesus disse “esse é o cálice da nova aliança
em meu sangue; façam isso em memória de mim” (11.24).

A PROMESSA DO ESPÍRITO SANTO, DO NOVO CORAÇÃO E DA


RESSURREIÇÃO DOS MORTOS
Talvez o elemento mais marcante da nova aliança como foi profetizada no Antigo Testamento
tenha sido a promessa da habitação do Espírito Santo e a renovação do coração humano.
Quando Paulo identifica a si mesmo e seus associados como ministros de uma nova aliança em
2 Coríntios 3.6, é essa atividade do Espírito Santo que ele identifica especialmente. À medida
que ele continua em sua carta, ele contrasta esse ministério da nova aliança que ele chama “o
ministério do Espírito” (3.8) com o ministério da aliança mosaica, que ele chama “o ministério
da morte, em cartas gravadas em pedras” (3.7) ou “o ministério da condenação” (3.9). Ele fala de
como o ministério da antiga aliança foi confrontado por um véu de dureza sobre os corações e
mentes do povo (3.14-15). Mas o Espírito do Senhor remove o véu de dureza e efetivamente
transforma as pessoas na imagem do Senhor (3.16-18). A linguagem de Paulo é praticamente a
mesma de Ezequiel, que falou do Senhor renovando através do Espírito Santo corações
endurecidos.
O tema dos corações velados é levado até o capítulo 4 onde o problema é diagnosticado
como uma cegueira satânica (4.3-4). Mais significativamente, a mensagem da bênção da nova
aliança é chamada de evangelho nesses versos. No ministério da nova aliança (perceba a
continuação “desse ministério” em 4.1, olhando de volta ao ministério da nova aliança de 3.6ss),
Deus está removendo a cegueira dos corações e mentes humanas ao fazer a luz do evangelho
brilhar “em nossos corações para dar à luz do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo”.
O conhecimento de Deus foi também uma das promessas da nova aliança (Jr 31.34). A luz da
glória “na face de Cristo” é posta em contraste com a glória que desvanece de Moisés (2Co 3.13),
mais uma vez, enfatizando a diferença nesses contextos. Paulo continua a falar da renovação
interna sob o ministério da nova aliança (4.16) que levará à ressurreição dos mortos (5.1-5).
Novamente o tema é consistente com Ezequiel 36-37 quando temos o renovo do coração e a
ressurreição dos mortos, ambos cumpridos pela habitação do Espírito Santo. Os temas seguem
além quando Paulo fala em 2 Coríntios daqueles em Cristo como novas criaturas (5.17), unidos
como “templo de Deus” assim como está escrito em Ezequiel 37.27: “O meu tabernáculo estará
com eles; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo”.
Paulo usa o termo “nova aliança” somente uma vez em 2 Coríntios e ainda assim ele sem
dúvida carrega a linguagem e conceitos das bênçãos da nova aliança através do argumento dessa
carta. Quando lemos no fim (13.14), “e a comunhão [koinonia] do Espírito Santo esteja com
todos vocês”, devemos entender essa frase na forma que Paulo fez em sua carta — um
compartilhamento do ministério da nova aliança do Espírito Santo. Tão importante é esse
conceito da pneumatologia da nova aliança que estamos inclinados a olhar para ele em outros
lugares nos escritos de Paulo, mesmo na ausência de referência específica à nova aliança.
A carta de Paulo aos Romanos é um caso em questão. Em nenhum outro lugar o termo nova
aliança aparece. Ainda assim, a linguagem da bênção da nova aliança acompanhada por
contrastes traçados entre essas bênçãos e as condições sob a aliança mosaica nos levam a ver a
própria concepção de Paulo como um ministro da nova aliança (assim definido em 2Co 3.6)
conforme nos embasamos e interpretamos suas observações nessa carta. Seria impossível tratar
esse tema em detalhes, mas alguns itens podem ser mencionados. Em Romanos 2, Paulo
contrasta os judeus que são circuncidados na carne, e que possuem e ensinam “a Lei” com “um
judeu que é um internamente; e a circuncisão [...] a que é do coração, no Espírito, não segundo a
letra” (2.29). A linguagem do Espírito e letra é a mesma que em 2 Coríntios 3.6, onde Paulo
identifica tal ministério do Espírito como uma bênção da nova aliança. Paulo também expõe, “os
gentios, que não têm a lei, [...] mostram que as exigências da lei estão gravadas em seus
corações.” (Rm 2.14-15). Romanos 7.1-6 fala de uma mudança da aliança na qual fomos
“libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos
em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (v. 6). A condição sob “a Lei” é
contrastada com “agora” (8.1), quando Deus através “da lei do Espírito da vida em Cristo Jesus
os libertou da lei do pecado e morte”, fazendo “o que a lei [aliança mosaica] não poderia fazer”
(8.2-3). Esse ministério do Espírito Santo eventualmente levará à ressurreição dos seus corpos,
uma bênção que também é parte da promessa da nova aliança (relembre novamente Ez 36-37).

Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que
ressuscitou a Cristo Jesus dentro os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio
do seu Espírito, que em vós habita (Romanos 8.11, cf. 18-25).

Romanos 11.26-27 cita Isaías 59.20-21, uma predição da nova aliança, com uma visão em
direção à salvação futura de todo Israel, uma referência à nação como um todo. Romanos 12.2
ordena ao leitor a “renovação da sua mente”; e 15.13 dá a bênção da alegria e paz, abundante
“em esperança pelo poder do Espírito Santo”.
Dois temas posteriores associados com o ensino de Paulo sobre a renovação da nova aliança e
habitação do Espírito Santo requerem uma atenção mais próxima. Um é o ensino de que esse
ministério acontece em Cristo, e o outro é o fato que ainda há uma plenitude futura para a
bênção da nova aliança. Enquanto a nova aliança foi, sem dúvida, inaugurada, ela é somente um
começo. Nem tudo que foi predito acerca da renovação pelo Espírito Santo (incluindo a
ressurreição dos mortos) já aconteceu. A nova aliança foi inaugurada, porém o cumprimento
completo aguarda o retorno de Cristo.

BÊNÇÃO DA NOVA ALIANÇA EM CRISTO


Percebemos anteriormente neste capítulo que o rei davídico funciona como um mediador da
bênção da aliança. Também vimos que o dom do Espírito Santo é proeminente entre as bênçãos
da nova aliança. Porém, é possível que um rei davídico pudesse mediar esse dom do Espírito
Santo? Através da história do Antigo Testamento, foi Deus que deu o Espírito. Dar o Espírito
relembra a criação. O Deus que “soprou” do pó para formar Adão é quem promete colocar o seu
Espírito nas pessoas, levantando-os do pó e recriando seus corações, mentes e vontades.
A autoridade divina e a mediação davídica vêm juntas quando Deus se torna encarnado
como Jesus. Como o rei davídico humano, ele é o receptor primário da bênção da nova aliança.
Isso significa que não somente ele receberia o Espírito, segundo sua realeza, mas que o Espírito
habitaria com ele e o preservaria em santidade e imortalidade para sempre. Assim, as Escrituras
testificam que, no seu batismo, o Espírito veio e permaneceu sobre ele (Jo 1.32; Mt 3.16;
Lc 3.22). Ele foi “cheio” do Espírito Santo e guiado por ele (Lc 4.1; Mt 4.1). Ele ministrou no
poder do Espírito (Lc 4.14, 18-19; Mt 12.18-21, 28) e foi ressuscitado dos mortos, imortal, pelo
Espírito (Rm 1.4; 2Tm 1.10; Hb 7.16; 1Pe 3.18).
Como o rei davídico divino, ele é quem dá o Espírito ao seu povo, recriando seus corações e
unindo-os em submissão a ele mesmo. Foi dito sobre ele que ele batizaria o povo com o Espírito
Santo (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33), um testemunho que começou a se cumprir no
Pentecostes seguindo sua ascensão (At 1.5, 8; 2.2-4, 33, 38-39).
Essa função de dar o Espírito é especialmente tratada no Evangelho de João onde Jesus
convida os sedentos a virem a ele, beberem e se tornarem uma fonte de água viva (Jo 7.37). A
linguagem é parcialmente aquela de Isaías 55.1-3, um texto da nova aliança, no qual aqueles que
estão sedentos são convidados às águas e recebem “uma aliança eterna [...] segundo a fidelidade
prometida a Davi”. João explica que Jesus “falou do Espírito, que aqueles que acreditaram nele
deveriam receber”. Em outras palavras, Jesus convida o povo a vir a ele para receber a bênção da
nova aliança da habitação do Espírito Santo.
O convite de João 7.37-39 para receber o Espírito Santo remonta à revelação divina dada a
João Batista em João 1.33, “Aquele sobre quem vires descer e pousar o Espírito, esse é o que
batiza com o Espírito Santo” (Jo 1.33). Também está associado ao discurso de Nicodemos,
quando Jesus destacou a necessidade de ser “nascido do Espírito” para ver o reino de Deus. A
linguagem da água, Espírito e vento soprando sobre a carne (3.5-8) relembra Ezequiel 36.25-27 e
37.1-14. O tema de Jesus dar o Espírito é transportado também para os capítulos conclusivos do
Evangelho. Por um lado, Jesus explica que ele pedirá ao Pai para enviar o Espírito Santo
(Jo 14.16), e ele promete que o Pai de fato o enviará no nome de Jesus (v. 26).Por outro lado,
Jesus diz, “eu o enviarei para vocês” (15.26), uma predição que ele simboliza depois da
ressurreição ao soprar sobre eles, dizendo, “recebam o Espírito Santo” (20.22). Quando dado, o
Espírito habitará neles para sempre (14.16) e lhes concederá o conhecimento de Deus (14.26;
16.13; cf. o título, “Espírito da verdade” em 14.16-17; 15.26), ambos os quais são promessas da
nova aliança.
O ensino de João acerca do Espírito Santo não nega que o Espírito estava ativo antes da
vinda de Jesus. Entretanto, ele é bem claro acerca de uma dádiva qualitativamente nova do
Espírito que foi vinculada historicamente (ou dispensacionalmente) ao ministério de Jesus.
Podemos ver isso especialmente na interpretação de João acerca de Jesus dizendo sobre a fonte
interior de água viva: “Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele
cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda
glorificado” (Jo 7.39).
Atos dos Apóstolos começa com a reafirmação de Jesus aos seus discípulos para conceder-lhes
o Espírito sobre eles (At 1.5, 8). Atos 2.1-4 relata o evento no qual o Espírito veio (cf, 10.47;
11.15-17). Pedro a interpreta como a ação de Cristo: “Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo
recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis” (2.33). Ele
convida o povo em Jerusalém “para receber o dom do Espírito Santo” (v. 38), dizendo “para vós
é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o
Senhor, nosso Deus, chamar” (v. 39). O quão abrangente o dom seria se tornaria claro em
Atos 10.44-47 (cf. 11.15-18), quando o Espírito Santo “desceu” sobre os gentios que creram em
Jesus. No concílio de Jerusalém, Pedro explicou que “Deus [...] concedeu o Espírito Santo a eles,
como também a nós nos concedera, e não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles,
purificando-lhes pela fé o coração” (At 15.8-9). O dom do Espírito Santo e a purificação do
coração são novamente a linguagem da promessa da nova aliança. O ponto importante aqui é
que a bênção é dada tanto para judeus como para gentios. Além do mais, é uma bênção mediada
por Cristo, como Pedro prossegue ao explicar: “Mas cremos que fomos salvos pela graça do
Senhor Jesus, como também aqueles o foram” (15.11).

BÊNÇÃO FUTURA DA NOVA ALIANÇA


Embora o Novo Testamento seja claro sobre o fato de a nova aliança agora ter sido inaugurada,
isto é, que as bênçãos pertencentes à nova aliança estão agora sendo dispensadas a todos que
creem em Jesus (sejam judeus ou gentios), é igualmente claro que as promessas da nova aliança
não foram completamente realizadas. As promessas em Jeremias, Isaías e Ezequiel descrevem um
povo que tem a lei escrita em seus corações, que andam no caminho do Senhor, totalmente sob o
controle do Espírito Santo. Essas mesmas promessas olham em direção a um povo que é
ressuscitado dos mortos, desfrutando as bênçãos de uma herança eterna com Deus habitando
com eles e neles para sempre.
O Novo Testamento vê as bênçãos da perfeição moral e espiritual, juntamente com a
imortalidade, como bênçãos a serem recebidas no futuro, na vinda de Jesus. Entretanto, em
2 Coríntios 3.18, Paulo descreve o ministério presente da nova aliança (3.6) como um processo
de transformação naquela glória que já está completamente realizada em Cristo.

E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor,
somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o
Espírito (2 Coríntios 3.18).

Considerando que Deus tem colocado o conhecimento de si mesmo em nossos corações (4.6) e
pensamos sobre nós mesmos e nos outros em Cristo como novas criaturas (5.17), não obstante
“temos esse tesouro em vasos de barro” (4.7). Experimentamos os princípios tanto da morte
quanto da ressurreição em um processo de renovação diária, olhando para o futuro de nossa
glória eterna (4.10-18), quando seremos ressuscitados imortais (4.14; 5.1-5). O presente dom do
Espírito, que Paulo identifica como a bênção da nova aliança (3.3, 6), é o penhor da plenitude da
nova aliança futura (5.5; cf. Ef 1.13-14).
Da mesma forma, em Romanos 8, quando Paulo diz que “a lei do Espírito da vida, em
Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (v. 2), ele, não obstante, ensina que a plena
liberdade encontra-se no futuro. O que temos agora são “as primícias do Espírito” (8.23). E
considerando por um ponto de vista, o presente recebimento do Espírito nos levou ao status de
herdeiros completamente adultos (Gl 4.5-7); de outra perspectiva, “igualmente gememos em
nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23; cf. v. 11).
A nova aliança prometeu remover o coração de rebelião contra Deus e nos dar corações
completamente conforme sua direção. Entretanto, em nossa experiência presente, não estamos
completamente livres da experiência de resistência à vontade de Deus. Gálatas 5.17 descreve o
presente conflito.

Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre
si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer (Gálatas 5.17).

Somos chamados para andar pelo Espírito, para viver pelo Espírito, para mortificar (diariamente)
as obras da carne, para nos apresentarmos a Deus para a obra de justiça (Gl 5.16, 25; Rm 8.13-
14; 6.12-13). Essa é a condição de viver sob as bênçãos inauguradas da nova aliança. Somente no
futuro essas bênçãos serão completamente concedidas e a completa transformação prometida pela
nova aliança será realizada.
Esse futuro chegará quando Jesus retornar à terra. Paulo diz em Colossenses 3.4, “Quando
Cristo [...] for manifestado [do céu], então vocês também serão manifestados com ele em glória”.
No “dia do Senhor”, isto é, quando ele voltar, seremos aperfeiçoados (Fp 1.6), sem mácula
(1Co 1.8; Jd 24), purificados completamente assim como ele próprio (1Jo 3.2-3), ressurretos e
transformados corporalmente em gloriosa imortalidade assim como ele próprio (Fp 3.20-21).
O fato que a plenitude da bênção da nova aliança espera o retorno de Cristo não é
surpreendente, já que as profecias da nova aliança previram o Messias reinando na terra sobre um
povo transformado. Incluída nessa visão estava à restauração política de Israel em paz com todas
as nações. Assim, Paulo, o apóstolo da nova aliança que prevê a plenitude da bênção da nova
aliança no retorno do Messias à terra, antevê a salvação nacional de Israel no momento também.
E, assim, todo o Israel será salvo, como está escrito: “Virá de Sião o Libertador e ele apartará de
Jacó as impiedades. Esta é a minha aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados.” Quanto
ao evangelho, são eles inimigos por vossa causa; quanto, porém, à eleição, amados por causa dos
patriarcas; porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11.26-29).

CONCLUSÃO
O Novo Testamento dá as boas novas com respeito a Jesus de Nazaré, um descendente de Davi,
a quem a aliança outorgada de Davi foi confirmada. Ele foi ungido pelo Espírito Santo,
ressuscitado dos mortos, declarado Filho de Deus, feito Senhor e Cristo na medida em que foi
entronizado à direita de Deus, tornando-se o mais exaltado dos reis da terra.
Ao receber as bênçãos davídicas, ele se tornou o herdeiro das bênçãos prometidas a Abraão, e
realiza a mediação dessas bênçãos aos outros, tanto a Israel quanto às nações, uma vez que nele
são abençoadas.
Nele, a aliança mosaica foi cumprida. A antiga dispensação chegou ao fim e uma nova
dispensação começou no momento em que a nova aliança foi inaugurada. Jesus Cristo realizou
um serviço para Israel e para as nações ao propiciar a maldição da aliança mosaica (que se estende
à maldição fundamental de Deus contra o pecado) em sua própria morte e ao mesmo tempo
provendo a base sacrificial para a nova aliança que outorga redenção, renovo e ressurreição.
A bênção feita pela aliança a Abraão vem até nós nesta dispensação como a bênção
inaugurada da nova aliança mediada através de Jesus, o Cristo, a quem a aliança davídica tem
sido e será confirmada. Um remanescente de Israel e remanescentes das nações gentílicas recebem
essa bênção inaugurada igualmente, sem distinção, pela fé em Deus encarnado como Jesus.
A atual dispensação não é o fim. Ela olha para frente para uma dispensação futura na qual a
nova aliança será completamente cumprida e suas bênçãos completamente recebidas. Tudo sobre
as alianças outorgadas será cumprido naquele tempo. A mudança da dispensação ocorrerá na
descida de Jesus dos céus. A bênção da nova aliança (e, assim, a bênção abraâmica) será estendida
às dimensões políticas e nacionais da existência humana à medida que ele realiza sua prerrogativa
davídica para governar pessoalmente as nações. As bênçãos da habitação do Espírito Santo e do
novo coração serão cumpridas com a ressurreição dos mortos e perfeição em santidade. A bênção
sobre ele e nele sobre nós será eterna, confirmando através da redenção o plano de Deus da
criação.
Porém, foi revelado mais sobre como isso tudo acontecerá do que é possível descobrir através
de um estudo das alianças. No próximo capítulo, voltaremos ao tema do reino de Deus, que
oferecerá uma revelação mais profunda da natureza das dispensações que virão (incluindo seus
aspectos milenar e eterno), assim como outro olhar sobre como as dispensações passadas e
presentes conduzem progressivamente para isso.

1. A palavra grega christos (Cristo) era pronunciada da mesma forma que o nome próprio Chrestos, levando alguns gentios a
pensar que a mensagem do evangelho era na verdade acerca de alguém chamado Iesous Chrestos em vez de “Jesus, que se chama o
Cristo” (Mt 1.16).
2. Estes termos são usados tanto em Saul quanto em Davi nas narrativas de 1 e 2 Samuel (1Sm 12.3, 5; 24.6, 10; 26.16;
2Sm 1.14-21; 19.21; 22.51; 23.1) e são usadas para o rei frequentemente nos Salmos (2.2; 18.50; 20.6; 28.8; 84.9; 89.20, 38;
132.10, 17).
3. Apesar dos Evangelhos não usarem as palavras ungir e unção na descrição do evento, os discípulos viram a recepção de Jesus do
Espírito Santo no seu batismo dessa forma. Veja Atos 10.38, “como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com
poder”. O próprio Jesus interpreta isso como uma unção quando ele cita Isaías 61.1 na sinagoga em Nazaré: “O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres” (Lc 4.18).
4. Compare 1 Samuel 16.13 onde o Espírito Santo vem sobre Davi quando ele foi ungido pelo profeta Samuel.
5. A mesma palavra (sperma) é usada em Atos 13.23 e em 2 Samuel 7.12.
6. Paulo se refere a Salmos 2.7 que em troca relembra a promessa em 2 Samuel 7.14 e 1 Crônicas 17.13 que Deus será seu Pai e
ele será filho de Deus. Paulo não está discutindo a questão da filiação divina pré-encarnada aqui.
7. Alguns dispensacionalistas argumentaram que a entronização do Salmo 110.1 se deu na ascensão, mas que o governo de 110.2
não se dará até um tempo futuro (o reino milenar), já que entre a entronização e o governo encontramos a frase:“até que eu faça
dos teus inimigos um estrado para os teus pés” (NVI). Essa interpretação ignora tanto o contexto literário de destaque nos Salmos
e a forma na qual o texto todo é aplicado a Jesus no Novo Testamento. Em outros lugares nos Salmos, é dito que Davi espera no
Senhor pela subjugação de seus inimigos. Isso não implica uma carência de uma função real da sua parte. Entretanto, no Novo
Testamento, o Salmo 110 é geralmente aplicado a Jesus com a assertiva de que seus inimigos já foram subjugados a ele (Ef 1.22;
1Pe 3.22). Seguindo o pensamento desses primeiros dispensacionalistas, deve-se dizer que ele está governando agora também.
8. A palavra “começando” em muitas traduções de Colossenses 1.18 é a palavra arché que poderia também ser traduzida como
governador. Já que o verso apresenta a linguagem da aliança, descrevendo o rei davídico, ela talvez deva ser melhor tomada no
último sentido.
9. Perceba a linguagem da aliança davídica aqui — um pastor de ovelhas (veja 2Sm 7.8), Pai-Filho (2Sm 7.14), trono (2Sm 7.13,
16).
10. Muitos dispensacionalistas revisados limitam o cumprimento desta aliança ao Milênio, interpretando a palavra “para sempre”
(2Sm 7.13, 16) como significando mil anos.
11. Note as seguintes descrições: “Escolheu ele a Salomão para se assentar no trono do reino do SENHOR, sobre Israel” (1Cr 28.5);
“Salomão assentou-se no trono do SENHOR, rei, em lugar de Davi, seu pai” (1Cr 29.23); “Bendito seja o SENHOR, teu Deus, que se
agradou de ti para te colocar no seu trono como rei para o SENHOR, teu Deus” (2Cr 9.8).
12. Veja Salmos 16.11; 17.7; 18.35; 20.6; 63.8; 80.15, 17; 108.6; 110.1; 138.7; 139.10.
13. Showers perde esse ponto quando argumenta em favor de uma distinção entre o trono de Deus e o trono de Davi. Em lugar
nenhum ele considera o fato que o trono celestial é fundamentalmente orientado a Israel. Ronald Showers, There Really Is a
Difference! A Comparison of Covenant and Dispensational Theology (Bellmawr, NJ: Friends of Israel, 1990), pp. 89-90.
14. E como vimos anteriormente nesse capítulo, a linguagem remete ainda mais a afirmação da promessa de Abraão a Jacó em
Betel em Gênesis 28.15.
15. Cf. Romanos 15.8, “Digo, pois, que Cristo foi constituído ministro da circuncisão, em prol da verdade de Deus, para
confirmar as promessas feitas aos nossos pais”.
16. Veja Mateus 1.22-23; 2.5-6, 15, 17-18, 23; 4.13-17.
17. Tecnicamente, alguém não poderia ser julgado por violar a aliança se não houvesse testemunhas. Em Isaías 1, temos um
exemplo de Deus “julgando” Israel diante do testemunho dos céus e da terra, por terem quebrado a aliança Mosaica. A punição, é
claro, são as maldições da aliança.
18. Antinomismo é o ensino que a obediência à lei de Deus não é um componente necessário da vida cristã.
CAPÍTULO 7

O REINO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

Quando Deus tirou os descendentes de Abraão do Egito e fez uma aliança da sua lei com eles no
Sinai, ele os tornou uma nação. Ele mesmo se tornou seu rei e eles se tornaram seu reino. Muito
do que o Antigo Testamento tem a dizer acerca de Deus ser um rei fala desse relacionamento da
aliança a Israel e através de Israel ao resto das nações.
Vimos que a aliança mosaica marcou uma nova dispensação no relacionamento de Deus com
a raça humana. Como resultado, o reino de Deus se refere a algo novo que veio a acontecer na
história. Ainda assim, ao mesmo tempo, essa nova dispensação estava diretamente enraizada a
uma aliança anterior que Deus tinha feito com Abraão. E essa aliança, por sua vez, relembrou as
relações anteriores de Deus com a humanidade tocando até mesmo a criação. O reino de Deus,
então, pertence ao plano de revelação de Deus da redenção.
Em certo sentido, pode ser dito que Deus sempre se comportou como um rei. Depois de
trazer Adão e Eva à existência, deu-lhes uma terra que ele tinha preparado e delegou autoridade a
eles. Deus detinha o poder da vida e da morte, do julgamento e da bênção. Ele ordenou e
esperava obediência. Conforme eles consentiram, desfrutaram sua presença e ele a deles. Depois
da queda do pecado, eles estavam sob seu julgamento, mas mantiveram a esperança de uma
redenção futura.
Depois de salvar Noé do julgamento que veio sobre toda humanidade, o Senhor deu a ele e
aos seus descendentes a terra, fez promessas de vida e de fecundidade e ordenou sua vontade.
Depois ele fez uma concessão a Abraão de abençoá-lo e todos os povos da terra. Ele concedeu
terra, prometeu bênçãos e ordenou os passos da vida patriarcal.
Em todas essas ações, ele foi como ele é, Deus. Ele cria e sustenta a existência de todas as
coisas. Ainda assim, escolhe interagir pessoalmente e historicamente com os seres humanos.
Como o superior nesse relacionamento, o Senhor ordenou, concedeu bênção e puniu o
insubordinado. A aliança que ele fez com Abraão foi modelada na forma de outorgas reais do
antigo Oriente Próximo. Através de toda dispensação patriarcal, Deus lidou com a humanidade
de uma forma divina, mas ainda como um rei.
Entretanto, em sua aliança com Abraão, Deus estabeleceu um princípio de mediação pelo
qual ele se associaria ao resto da humanidade através dos descendentes de Abraão.1 A história do
reino de Deus nas Escrituras é primariamente a história do desenvolvimento dessa aliança. Deus
revelará a si mesmo como rei de Israel. E através de Israel, ele manifestará seu governo real sobre
as outras nações. É esse estabelecimento de relações que irá dizer a direção para a reconciliação
divino-humana.

DEUS, O REI DE ISRAEL


O Senhor é Rei. Três cânticos ou salmos atribuídos a Moisés proclamam o relacionamento
especial do Senhor com Israel como o seu rei. Quando as nações receberam suas várias fronteiras
e heranças, o Senhor escolheu Israel:

Porque a porção do SENHOR é o seu povo;


Jacó é a parte da sua herança (Deuteronômio 32.9).

Ele escolheu ser o rei deles. Ele os redimiu ao lutar por eles contra Faraó e seu exército, e ele
prevaleceu. O cântico em Êxodo 15 celebra sua vitória: “O SENHOR é homem de guerra; SENHOR
é o seu nome” (Êx 15.3). O Senhor é “exaltado” (15.2). Sua destra (sua mão de governo) é
“majestosa em poder” (15.6). Ele estendeu sua mão (de governo) em decreto e a terra responde
em obediência (15.12). Em “triunfo glorioso” ele resistiu a seus adversários (15.7). Os reis das
outras nações consequentemente ficaram consternados e aterrorizados diante dele (15.15-16).
Porém, ele levará seu povo para sua terra escolhida onde sobre eles “o SENHOR reinará para todo o
sempre” (15.18).
A partir da sua decisiva vitória sobre o Egito, o Senhor levou seu povo para o Sinai.
Deuteronômio 33.2-5 descreve como Deus veio sobre eles em majestade e glória e entrou em
aliança com eles:

E o SENHOR se tornou rei ao seu povo amado, quando se congregaram os cabeças do povo com
as tribos de Israel (v. 5).2

Esse cântico prossegue para falar da bênção de Deus sobre as tribos de Israel. Porém,
Deuteronômio 32 adverte da punição caso o povo se rebelasse. Também adverte da vingança
contra os adversários do povo de Deus. Tudo isso concorda com o tratado que o Senhor tinha
com eles como seu rei. Pois eles são seu povo e esta é sua terra (32.43).
Depois, na história de Israel, quando Deus advertiu seu povo da punição iminente, foi como
seu rei que ele apelou a eles. Quando Isaías foi chamado como profeta, ele lamentou sua dor
declarando: “Meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos” (Is 6.5). Deus advertiu que ele
traria a Babilônia sobre seu povo. Ele faria isso como “o SENHOR, o vosso Santo, o Criador de
Israel, o vosso Rei” (Is 43.15). Ele é o único verdadeiro Deus, ainda assim ele é ao mesmo tempo,
“o rei de Israel” (Is 44.6).

O Reino do Senhor. O reinado de Deus sobre Israel é especialmente caracterizado em um grupo


de salmos conhecido como salmos de entronização. Esses salmos carregam tipicamente a
expressão “O Senhor reina”.3 Eles designam Deus como o rei de Israel e também falam da
extensão do seu reinado sobre as nações. Eles estão unidos por vários outros salmos que falam do
reino de Deus e descrevem suas várias características.4 Essas descrições preveem um tempo da
bênção da aliança de Deus sobre seu povo. Eles nos apresentam a concepção mais ideal do reino
de Deus durante a dispensação mosaica.
Deus, o rei, é o Altíssimo; ele é grande e glorioso, governa em esplendor, beleza, majestade e
poder. Ele faz das trevas o seu manto e do fogo seu auxílio. Ele é justo e reto em todos os seus
caminhos. Ele está entronizado nos céus sobre todas as suas obras, sobre toda a terra e sobre todas
as nações, incluindo as coisas que idólatras adoram. Ainda assim, ele também está entronizado
em Sião. É seu lugar de habitação; ele governa de lá; ele brilha de lá. Os céus e Sião estão assim
ligados. Sua conexão é algumas vezes descrita como trono e estrado dos pés. O governo de Deus
procede de ambos.
Deus julga com justiça; ele vindica o justo, pune e destrói o ímpio. Ele faz cessar a guerra e a
violência e estabelece a paz. Ele dá vida e força ao seu povo, ajuda o necessitado e faz um lar para
o desabrigado. Seu povo, que constitui seu reino, responde com louvor, alegria, canções e ações
de graças. A sua confiança está no Senhor com obediência e reverência, mas também com grande
alegria.
O reino é ainda descrito em termos de um povo que foi salvo e liberto, justo, próspero,
sábio, seguro e cheio de contentamento e conhecimento do Senhor. A terra de Israel também é
descrita como regozijando-se com louvor e canções, abençoada com paz, justiça e fecundidade.
Israel, o povo abençoado por Deus, proclama o Senhor a todas as nações. Por meio deles, as
bênçãos de Deus alcançam todas as nações. Ele as governa com justiça e retidão,para que as
nações e a terra sejam cheias do conhecimento de Deus. As nações são descritas como louvando a
Deus com alegria e temor, vivendo em paz e cheias do conhecimento de Deus. A própria terra,
humilhada, derretendo perante a sua ira, é descrita como regozijando-se no Senhor que a
estabelece e a sustém para sempre.

MESSIAS, REI DE ISRAEL


O reino de Deus na dispensação mosaica foi estendido para incluir um papel para o reinado
humano. Na aliança que Deus fez com Israel, a provisão foi feita para tal rei. A pedido do povo,
o Senhor escolheria um rei dentre eles (Dt 17.14-15). O rei deveria exemplificar a resposta da
aliança da nação a Deus, amando o Senhor com todo seu coração, confiando somente nele e
andando em seus caminhos. Ele seria um instrumento pelo qual o reino de Deus sobre Israel e
sobre todas as nações seria estabelecido.

Antecipação do Messias. Na teologia bíblica, o rei humano de Israel tem um papel importante
no plano divino para dominação humana. Na criação da humanidade Deus disse: “Tenha ele
domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a
terra e sobre todos os répteis que rasteja pela terra” (Gn 1.26). Isso também foi estabelecido
como um mandamento para a humanidade: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja
pela terra” (Gn 1.28).
Depois do pecado deles, esse domínio seria exercido sob condições caídas. Entretanto, o
domínio em última instância, até mesmo sob sua situação de queda, é de forma enigmática
predito na maldição sobre a serpente, o tentador e enganador: “Porei inimizade entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar.” (Gn 3.15).
Sob essas condições, o governo humano foi reestruturado hierarquicamente. Encontramos
isso primeiro nas observações do Senhor para Adão e Eva, quando ele diz: “O teu desejo será para
o teu marido, e ele te governará” (Gn 3.16). Quando as nações da humanidade se espalharam
pela terra, o domínio humano tomou estruturas coletivas, hierarquizadas sob patriarcas e reis.
Eventualmente, isso se estendeu ao relacionamento de nações entre si.
A bênção para Abraão previu uma autoridade sobre outras nações que seria herdada pela
nação descendente dele. Isaque esclarece esse ponto ao transferir a aliança patriarcal para Jacó
(Gn 27.29).
Sirvam-te os povos, e nações te reverenciem; sê senhor de teus irmãos, e os filhos de tua mãe se
encurvem a ti; maldito seja o que te amaldiçoar, e abençoado o que te abençoar

A bênção de Deus sobre as nações seria revelada através do governo de Jacó sobre eles. Esse
governo foi, então, especificamente transferido de Jacó para Judá (Gn 49.8-10).

Judá, teus irmãos te louvarão; a tua mão estará sobre a cerviz de teus inimigos; os filhos de teu
pai se inclinarão a ti. Judá é leãozinho; da presa subiste, filho meu. Encurva-se e deita-se como
leão e como leoa; quem o despertará? O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre
seus pés, até que venha Siló; e a ele obedecerão os povos.

A linguagem da bênção de Jacó sobre Judá é repetida nos oráculos de Balaão. Já vimos que
Balaão fala de Deus como o rei de Israel (Nm 23.21), mas ele também vê um rei humano
descrito na linguagem da bênção de Jacó sobre Judá, aquele que cumpre a promessa da aliança de
mediação de bênção ou maldição (Nm 24.9, cf. v. 7).

Este abaixou-se, deitou-se como leão e como leoa; quem o despertará? Benditos os que te
abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem.

Ele é descrito mais adiante (Nm 24.17, 19):

Vê-lo-ei, mas não agora; contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó, de
Israel subirá um cetro [...] De Jacó sairá o dominador.

Finalmente, o reinado humano faz sua primeira aparição legítima quando Saul é ungido rei de
todo Israel. Porém, Saul foi logo rejeitado por Deus por causa de sua desobediência. Davi, um
descendente de Judá, um “homem segundo o coração de Deus”, foi escolhido para substituí-lo.
Davi foi considerado fiel a Deus e Deus fez uma aliança com Davi para estabelecer sua casa como
a casa real de Israel, para levantar seu descendente segundo ele e estabelecer seu reino para
sempre.

O Reino Messiânico. Os reinos de Davi e Salomão tipificam o ideal do reino terreno de Deus
durante a dispensação mosaica. Muitos dos seus elementos são apresentados através dos salmos,
mas uma figura adequada pode ser construída ao examinar os salmos reais, salmos que falam
diretamente acerca do rei davídico, seu reinado e seu reino.5
Os títulos de Rei e do Filho são usados alternadamente para o governador davídico (veja
Sl 2.2, 6-7, 12; 18.50). Ele é caracterizado como santo e piedoso. Ele odeia a impiedade (Sl 101;
45.7). Ele governa com verdade, retidão e justiça (Sl 45.4, 6-7; 72.2). Ele ajuda o aflito, o
necessitado e o pobre (Sl 72.4, 12-14), salvando-os e libertando-os ao esmagar seus opressores
(Sl 72.4). Ele é um sacerdote da ordem de Melquisedeque (Sl 110.4), mediando prosperidade e
paz a Israel e a todas as nações (Sl 72.6-7, 16).
O reino é caracterizado pela justiça, paz e prosperidade (Sl 72.3, 6-7, 16). Tanto Deus
quanto o rei davídico são abençoados (Sl 72.15, 18-19); Deus é adorado e o rei davídico é
honrado (Sl 2.11-12).
Todas as nações são previstas em sujeição a Deus e seu rei davídico (Sl 2; 72.8-11). O Senhor
deu ao seu Messias todas as nações, de fato, toda terra como herança (Sl 2.8). Elas se refugiam
nele e são abençoadas (Sl 2.12; 72.17).
O relacionamento entre Deus e seu rei humano é o assunto primário nesses salmos e é nessa
caracterização desse relacionamento que obtemos a descrição mais detalhada do reino. O rei
davídico confia em Deus (Sl 19.1-3; 21.7; 28.7; 61.1-4). Ele proclama o Senhor (Sl 18.30-31),
permanece nos seus caminhos (Sl 18.21-24) e regozija-se nele (Sl 21.1).
Deus ungiu o seu rei (Sl 45.7) e o instalou em Sião, o lugar do próprio governo de Deus
(Sl 2.6; 110.2; 132.13-14). Ele governa à destra de Deus (Sl 18.35; 110.1),6 e tem os seus
inimigos destruídos por ele (Sl 20.6; 21.8-13; 89.23). O Senhor o fortalece para a batalha
(Sl 18.31-42), subjuga povos sob ele (Sl 18.47; 110.1-2, 5-6) e o estabelece sobre todas as nações
(Sl 89.27). Deus lhe dá vida (Sl 18.28; 21.4; 61.6), força, glória, majestade e esplendor (Sl 21.5).
Deus concede benignidade a ele (Sl 18.50; 21.7; 61.7; 89.1-2), abençoa-o com contentamento
(Sl 21.3-6) e o inclui dentro de sua própria magnitude (Sl 18.35), confirmando a ele todas as
promessas da aliança de Davi (Sl 89.3-4; 132.10-18).

REINADO DIVINO E HUMANO; A UNIDADE DO REINO DE DEUS


Quando comparamos as descrições do reino de Deus nos salmos de entronização com as
descrições do reino do seu Messias nos salmos reais, vemos uma similaridade acentuada. Os dois
reinos convergem em direção a um padrão descritivo que é o modelo ideal do reino de Deus na
dispensação mosaica. Até mesmo a grande extensão do governo providencial de Deus sobre a
criação é trazida a esse padrão, para que Sião apareça como o centro do governo universal de
Deus.
A harmonia dos dois reinos — divino e humano, unidos pela aliança — e a revelação do
governo providencial de Deus são importantes características da teologia do reino do Antigo
Testamento. Todos esses elementos estão profundamente interligados, revelando a unidade do
reino. Antes de tudo, o próprio Deus é ao mesmo tempo Deus sobre todos e rei da nação de
Israel. Essas relações não são totalmente distintas. Elas se sobrepõem intencionalmente. A
autoridade e o poder de Deus sobre a terra e os céus são empregados em seu reino sobre Israel
(desde a divisão das águas do Mar Vermelho até as bênçãos periódicas na terra). Seu governo
sobre Israel medeia seu governo sobre outros povos (tanto nas bênçãos quanto nas maldições).
Israel, então, torna-se o ponto central para as relações de Deus com a humanidade e sua
providência sobre o resto da criação.
A partir disso, podemos ver a inter-relação entre os céus e Sião no reino de Deus. Os Salmos
se referem ao governo de Deus para ambos. Ele é dito estar entronizado tanto nos céus quanto
em Sião e exercendo, em ambos, o mesmo governo real. Algumas vezes, a união entre céus e Sião
é ilustrada como o relacionamento entre um trono e um estrado para os pés. Juntos, eles apoiam
o rei e constituem o seu trono. Mesmo quando são identificados separadamente como tronos de
Deus, eles não podem ser vistos como independentes entre si, já que os mesmos elementos do
governo são atribuídos a ambos. Deus governa Israel de Sião e governa Israel do céu, com o
governo (suas bênçãos e julgamentos segundo sua aliança) sendo o mesmo para ambos. Deus
governa o cosmos do céu, mas também é dito que ele governa de Sião. E de Sião, ele governa
todos os povos na terra.
Em Sião, também achamos o Messias, o rei davídico. É dito que ele governa de Sião sobre
Israel e todas as nações com as mesmas frases descritivas que são aplicadas a Deus. Apesar de suas
pessoas serem mantidas distintas, suas atividades são, não obstante, vistas convergindo em um
reino unificado. As decisões do Messias são decisões de Deus e vice-versa, já que o Messias tem a
palavra de Deus escondida em seu coração e Deus estabelece e transmite seus desejos e sua
vontade. O Messias julga e governa com a sabedoria e retidão dada a ele por Deus. A justiça de
Deus é transmitida em suas decisões. Ele também transmite a ira de Deus, punindo a impiedade
e o mal. A obediência ao Messias se harmoniza com a obediência do povo a Deus e o favor de
Deus (a bênção da aliança) e o favor do Messias (pessoalmente e politicamente) vem juntos na
experiência das pessoas.
As bênçãos que caracterizam o reino revelam outro aspecto da sua unidade. O reino de Deus
é material e espiritual, sagrado e secular ao mesmo tempo. Na gramática bíblica, essas
características descrevem coletivamente o mesmo reino, com características espirituais
suportando as materiais. Elas não são distintas, como se pertencessem a reinos separados (um
celestial e um terreno), não relacionados entre si. Esse é o motivo por que nos Salmos, o reino de
Deus e do seu Messias exibem justiça espiritual e prosperidade material. É abençoado com a paz
de Deus assim como paz e segurança nacional e internacional. O povo desfruta o perdão de Deus
dos pecados juntamente com a cura física e nacional. Eles crescem em conhecimento e sabedoria,
mas especialmente no conhecimento de Deus. Religião e sociedade, templo e palácio, Deus e
humanidade se inter-relacionam em uma experiência unificada do reino de Deus.
Alguns dispensacionalistas têm negligenciado o caráter unificado do reino de Deus no
Antigo Testamento, argumentando, em vez disso, a favor de reinos diferentes operando em
conjunto uns com os outros. Eles argumentariam que o governo providencial de Deus sobre o
cosmos deveria ser distinguido da realidade política de Israel. Certamente, pode-se diferenciar
entre esses dois “reinos” no que diz respeito ao tempo (o primeiro preexiste o segundo) e duração
(o primeiro é imutável, o segundo varia historicamente). O fato que os Salmos falam de Deus
reinando nos céus sobre os cosmos é levado a significar que o reino celestial existe em distinção
dos reinos na terra.
Distinções dessa natureza podem ser úteis no processo de analisar as complexidades das
Escrituras. É preciso ter em mente o fato que Deus é como sempre foi, soberano sobre tudo que
fez. Entretanto, a linguagem bíblica do reinado não é primariamente utilizada dessa forma.
Mesmo nas Escrituras que falam de Deus reinando nos céus, implicações estão à disposição, por
causa de sua relação com Israel e as nações. A providência e a política, humanidade e deidade,
estão proximamente inter-relacionadas nas descrições bíblicas dos reinados de Deus e do seu
Messias.
Essa unidade e harmonia extraordinárias do governo divino e humano são cruciais para a
apresentação do reino de Deus encontrado nos Salmos e em outros lugares das Escrituras. Esse é
o fenômeno que deve ser compreendido para que se entenda os profetas, Jesus e seus apóstolos.
Eles se baseiam nesse modelo do reino idealizado nos reinados de Davi e Salomão quando, por
sua vez, descrevem e retratam um reino que ainda está por vir.
No entanto, há uma importante distinção que precisa ser esclarecida no processo de
identificação desse reino. O reino de Deus apresentado a nós nos Salmos é um modelo ideal
baseado nas bênçãos da aliança mosaica. Isso pode ser confuso, porque a aliança mosaica é a
estrutura básica do reino que permanece constante ao longo da dispensação mosaica. Sob a
estrutura da aliança mosaica, o governo real de Deus sobre Israel pode ser revelado em juízo e
maldição, assim como em bênção. Mas a forma ideal do reino, descrita nos Salmos, não é obtida
dessas maldições. São as bênçãos da aliança mosaica (que são uma revelação dispensacional da
bênção incondicionalmente concedida a Abraão) que se tornam, na gramática profética, a
linguagem do reino de Deus.
Levando isso em conta, o reino de Deus se torna um padrão ideal de bênção, uma esperança e
expectativa, que é aproximada em vários níveis na história de Israel. É o padrão ideal de bênção
que Deus estabeleceu na aliança de Israel. Na experiência histórica de Israel, eles se revelam mais
plenamente como sendo o reino de Deus nos reinados de Davi e Salomão, e em um nível menor
naqueles reinos que seguem o seu exemplo de fé e obediência. Nos reinados desses reis, Israel se
torna, em níveis variados, uma revelação não apenas do reinado benéfico de Deus com respeito a
ela, mas do seu reinado bondoso e abençoado sobre todas as coisas. Israel é abençoado na forma
da aliança e medeia essa bênção para outras nações na terra. Deus, o rei de Israel, demonstra o
seu governo sobre céus e terra através do seu reinado em Sião. Seu rei vassalo é seu instrumento,
governando sobre as obras de Deus. Através dessa bênção da aliança e mediação, Deus revela a
redenção da sua criação e a glória da sua providência divina.
A infidelidade à aliança, entretanto, enfraquece essa revelação de um reino abençoado. As
circunstâncias podem se tornar tão ruins que Israel nem sequer conhece o Senhor, muito menos
o proclama como rei e nem se regozija em seu reinado. O tempo que levou ao estabelecimento
do reinado humano foi um tempo de apostasia. Os pedidos por um rei como os reis das outras
nações foram interpretados como rejeições do reinado de Deus (Jz 8.22-23; 1Sm 8.5-7).
Abimeleque, filho de Gideão, fez uma tentativa frustada de estabelecer uma monarquia (Jz 9).
Ele nunca foi reconhecido por Deus como seu Messias; seu “reino” nunca foi chamado de reino
de Deus. No fim, Deus julgou tanto Abimeleque quanto o povo que o investiu em seu ofício.
Os elementos que vêm juntos sob a bênção de Deus nos reinados de Davi e Salomão (e que
oferecem a revelação mais completa do reino de Deus na dispensação mosaica), se tornam
conflitantes e discordantes nos reinos dos reis posteriores que são infiéis e desleais a Deus. A
infidelidade de Salomão na última parte do seu reino, juntamente com a tolice de seu filho
Roboão, levaram à divisão do reino. O rei davídico não mais governava sobre todo Israel, muito
menos sobre as outras nações. A tensão e o conflito entre Israel, Judá e as nações em volta
ameaçaram a paz e a prosperidade. Com as duas nações divididas em direção a uma idolatria
crescente, as maldições da aliança mosaica trouxeram sofrimentos nacional e individual ao povo.
Quando Sião se tornou um centro de idolatria, o reino beneficente de Deus não foi mais revelado
aqui, somente os decretos de sua ira. Eventualmente, Deus queimou a cidade, arrasou o templo e
cortou o reino da casa de Davi.

O REINO DE DEUS DURANTE O EXÍLIO


O julgamento de Deus sobre Israel e Judá — o encerramento dos reinos experimentais no norte
e no reino davídico no sul — não significou o fim do reino de Deus. Entretanto, significou o fim
temporário da mediação desse reino em Jerusalém (e o fim permanente da sua forma dual em
Samaria). Nesse contexto, o livro de Daniel apresenta uma nova maneira de falar do reino de
Deus. Descrevendo as condições no exílio, Daniel vê o reino de Deus como a inter-relação entre
o céu e o trono imperial do poder gentílico; a união do reino de Deus com o reino do principal
rei gentílico.
Em Daniel 2, Deus revela ao rei da Babilônia seu lugar numa sucessão de impérios terrenos.
Em resposta, o rei da Babilônia reconhece: “Certamente, o vosso Deus é o Deus dos deuses, e
Senhor dos reis” (2.47). O julgamento subsequente desse rei da Babilônia em Daniel 4 o faz
confessar que “o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens; e o dá a quem quer e até ao
mais humilde dos homens constitui sobre eles” (Dn 4.17). Ele reconhece que o reino de Deus é
um “reino sempiterno, e o seu domínio, de geração em geração” (Dn 4.3). O capítulo termina
(Dn 4.37) com a confissão: “Agora, pois, eu, Nabucodonosor, louvo, exalto e glorifico ao Rei do
céu, porque todas as suas obras são verdadeiras, e os seus caminhos, justos, e pode humilhar aos
que andam em soberba”.
A forma de Deus lidar com Nabucodonosor não é simplesmente uma manifestação da sua
soberania divina sobre todas as coisas. É muito parecido com seu tratamento dos reis de Israel.
Juntamente com isso, o filho de Nabucodonosor, Belsazar, é julgado, porque, ainda que soubesse
do pai “que Deus, o Altíssimo, tem domínio sobre o reino dos homens e a quem quer constitui
sobre ele”, não obstante, ele não se humilhou e nem glorificou a Deus (Dn 5.21-23). Como
resultado, em uma revelação do reinado superior, Deus estendeu uma mão e escreveu um decreto
na parede do palácio do rei da Babilônia anunciando o fim de sua autoridade, a reestruturação
do seu ofício e a concessão a outros (5.5-6, 24-28).
Em Daniel 6, Dário, rei dos Medos, é forçado a reconhecer que o Deus de Daniel é “o Deus
vivo e que permanece para sempre; o seu reino não será destruído, e o seu domínio não terá fim”
(6.26).
A ironia nessa linguagem do reino, obviamente, é evidente. Com Israel em juízo, Deus
estabelece sua ligação real com o rei gentílico vigente. Ainda assim, em tudo isso, Israel não é
esquecido. O remanescente fiel de Israel (representado na pessoa de Daniel e seus amigos)
medeia a revelação de Deus aos governantes gentios. O tempo da dominação gentílica é revelado
a esse remanescente e é medido de acordo com os propósitos de Deus para a terra de Israel, após
o qual Deus renovará seu plano para Jerusalém (Dn 9). Ainda que Israel esteja disperso, o Rei de
Israel revela lealdade da aliança a seu remanescente fiel. Sua soberana direção das nações tem seu
remanescente fiel em mente e antevê as promessas com respeito a sua restauração, juntamente
com a restauração do reinado a eles, e através deles, sobre as nações.

O REINO ESCATOLÓGICO DE DEUS NA PROFECIA DO ANTIGO TESTAMENTO


A dissolução da harmonia do reinado divino e humano em Israel durante a dispensação mosaica
é um sintoma da discordância que o pecado trouxe de forma geral para dentro das relações
divino/humanas. Assim como Deus estabeleceu um plano de redenção para reconciliar a
humanidade a ele mesmo, da mesma forma os profetas do Antigo Testamento predisseram que
Deus salvará seu plano de reino que estabeleceu pela aliança. Além do mais, a restituição desse
reino seria o meio pelo qual o plano de redenção seria cumprido. O governo divino e humano
convergiria em uma unidade nunca antes vista.

O Reino Escatológico em Daniel. O livro apocalíptico de Daniel destaca a natureza temporária e


irônica da experiência de exílio de Israel ao predizer um reino de Deus que está vindo no futuro.7
Nesse tempo, “o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; este reino não
passará a outro povo; esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo subsistirá para
sempre” (Dn 2.44). No sonho dado a Nabucodonosor, esse reino vindouro é descrito como uma
pedra que cai do céu, esmagando os reinos sobre os quais ela cai e se tornando uma grande
montanha que enche o mundo inteiro (Dn 2.34-35). A montanha é uma referência a Sião, que
aparece repetidamente no imaginário bíblico como a maior montanha, especialmente nas
profecias acerca do reino escatológico vindouro.
Em Daniel 7, o profeta Daniel antevê um tempo depois da sucessão dos reinos gentílicos
quando “Um como o Filho do Homem” virá sobre as nuvens antes do Ancião de Dias para
receber “domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o
servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído”
(Dn 7.14). Essa descrição do reino vindouro é similar às descrições do reino de Deus presente
que encontramos em Daniel 4-6. Entretanto, a vinda do reino será especialmente manifesta na
terra na substituição de estruturas gentílicas políticas existentes, e não simplesmente em
conjunção com elas. Um rei humano exercerá sua autoridade em substituição da soberania dada
aos reis gentílicos.
A descrição do reino vindouro novamente em Daniel 7.27: “O reino, e o domínio, e a
majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos Altíssimo; o seu reino
será reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe obedecerão”. O reino que está vindo é
uma mediação do governo e autoridade que Deus já estava manifestando sobre as nações, mas
seria exercido política e socialmente pelo “povo dos santos do altíssimo” (o que estava sendo
perseguido pelas nações) através de um rei que Deus escolheria dentre eles.
Os sonhos e visões relatados em Daniel preveem esse reino vindo em um tempo de julgamento
catastrófico sobre os reinos gentílicos. O julgamento antevisto faz paralelo com o julgamento que
já recaiu sobre Judá e seu rei, trazendo morte, destruição e exílio. Em contraste ao relutante
reconhecimento de Deus forçado de Nabucodonosor nos capítulos anteriores do livro, as visões
posteriores de Daniel preveem um futuro governo imperial que arrogantemente blasfema contra
Deus, persegue os santos e perpetra guerra e sofrimento sobre a terra. Sua retratação reaparece em
visões sucessivas de Daniel 7-12. É dito para Daniel que “Haverá tempo de angústia, qual nunca
houve desde que houve nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será salvo o teu povo, todo
aquele que for achado inscrito no livro da vida” (Dn 12.1). Daniel 7.9-11, 26, prevê um Ancião
de Dias pronunciando um julgamento e destruindo esse governador poderoso (cf. Dn 2.34-35,
45), dando soberania ao Filho do Homem e aos santos do Altíssimo. Eles “receberão o reino e o
possuirão para todo o sempre, de eternidade em eternidade” (Dn 7.18). O pecado será expiado.
A transgressão será encerrada. Será um tempo de justiça eterna (Dn 9.24).

O Reino Escatológico nos Profetas do Antigo Testamento. Os profetas do Antigo Testamento


também predisseram o reino escatológico vindouro. Suas características gerais são notavelmente
consistentes através das predições, um profeta enfatiza um aspecto, outro profeta fala de outro
detalhe, mas todos juntos convergem em um padrão harmonioso. As características do reinado
divino e davídico serão mais uma vez trazidas a uma relação próxima. O mesmo reino futuro é
algumas vezes descrito a partir do ponto de partida do governo real de Deus na passagem e a
partir da perspectiva do reino do seu Messias em outra.
O Reino Vindouro de Deus. Muitas passagens falam de um reino futuro na terra no qual Deus
governará as nações. Isso não é simplesmente a afirmação de sua soberania eterna, mas a
revelação do seu reinado no reino mundial futuro dirigido por Deus a partir de Sião.
Tanto em Isaías 2.2-4 quanto em Miqueias 4.1-8 nos são dadas descrições de um reino
mundial que Deus estabelecerá “nos últimos dias”. O mundo do Senhor prosseguirá a partir de
Jerusalém. As nações se submeterão a ele e à sua lei. “O SENHOR reinará sobre eles no Monte Sião
[...] para sempre” (Mq 4.7). As nações conhecerão o Senhor. A guerra estará terminada e haverá
uma paz mundial e prosperidade.
E Isaías 43.15 e 44.6, o Senhor identifica a si mesmo, a Israel, como seu rei, e apela para que
retornem a ele para que ele lhes conceda as bênçãos prometidas aos pais. Como parte desse
contexto geral, Isaías 40.10 proclama:

Eis que o SENHOR Deus virá com poder, e o seu braço dominará; eis que o seu galardão está
com ele, e diante dele, a sua recompensa. Como pastor apascentará o seu rebanho; entre os
seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio; as que amamentam ele guiará
mansamente.

Da mesma forma, em Malaquias 1.11-14, o Senhor declara que ele é um grande rei e que em
todo lugar ele será adorado.
A vinda do Senhor para governar como Rei é descrita como o Dia do Senhor. O Dia do
Senhor é um tema repetitivo nos profetas. Foi um termo invocado para descrever o julgamento
de Deus da destruição sobre Israel e Judá nas mãos da Assíria e Babilônia (Am 5.18-20; 8.8-9;
Is 13.1-22; Ez 7.1-27). Entretanto, também é usado por profetas pós-exílicos para se referir ao
julgamento que ainda estava por vir (Ml 3.1-6; 4.1-6).8 Seria um dia quando o Senhor viria em
julgamento e puniria o pecado, um dia de ira, lamento, escuridão, desespero e morte. Ele punirá
o ímpio, expurgando o mal da terra. Porém, aqueles que confiam nele serão libertos. Tanto Israel
quanto as nações serão tentadas, testadas e julgadas no Dia do Senhor.
O Dia do Senhor é a transição para o reino escatológico do Senhor na terra. Em
Zacarias 14.9, Deus vem no Dia do Senhor para assumir o seu governo como rei. Em
Zacarias 14.16-17, vemos que ele reinará como rei em Jerusalém. Aqueles das nações que
sobreviverem ao Dia do Senhor devem vir para adorá-lo em Sião. A possibilidade de rebelião
existe, mas o Senhor subjugará as nações.
Isaías 24-25 também nos dá uma predição do Dia do Senhor vindouro, o dia do julgamento
e ira. Como consequência desse julgamento “o SENHOR dos Exércitos reinará no monte Sião e em
Jerusalém, glorioso da na presença dos seus líderes” (Is 24.23, NVI). Uma outra descrição do seu
reino é dada em Isaías 25.6-9. Diferentemente de Zacarias 14, no entanto, a descrição é de paz,
bênção e regozijo tanto para Israel como para todas as nações, semelhante a descrição dada em
Isaías 2. Porém, há esse elemento a mais. Deus dará imortalidade à humanidade redimida:

Destruirá neste monte a coberta que envolve todos os povos e o véu que está posto sobre todas
as nações. Tragará a morte para sempre, e, assim, enxugará o SENHOR Deus as lágrimas de
todos os rostos, e tirará de toda a terra o opróbrio do seu povo, porque o SENHOR falou.
Naquele dia, se dirá: “Eis que este é o nosso Deus, em quem esperávamos, e ele nos salvará;
este é o SENHOR, a quem aguardávamos; na sua salvação exultaremos e nos alegraremos”
(Isaías 25.7-9).

As predições em Isaías 65 e 66 de uma nova criação, os novos céus e nova terra, são também
parte desse tema do reino vindouro. Muitos dos elementos do reino escatológico são repetidos
nessas profecias (perceba especialmente a repetição literária entre Isaías 65.25 e 11.6-9). É um
tempo de regozijo, paz, prosperidade, vida longa (apesar de não exatamente a imortalidade de
Isaías 25; cf 65.20 e 25.7-8), o cumprimento da bênção de Israel da sua herança na terra.
O Governo Vindouro do Messias. Assim como o reino de Deus manifestado nos dias de Davi e
Salomão, o reino escatológico vindouro será governado por um rei davídico. Em Amós 9.11, o
Senhor prediz um tempo quando ele levantará a “o tabernáculo caído de Davi, repararei as suas
brechas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei como fora nos dias da antiguidade”.
Isaías 11.1 descreve a casa de Davi como uma árvore que foi cortada. Ainda assim, o profeta
prediz um tempo quando “Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo.”
Isaías 9.7 profetiza a reocupação do trono de Davi. Miqueias 5 fala de um futuro rei nascendo
em Belém. E Ezequiel 37.24-28 prediz o futuro reino de Davi (isto é, um rei davídico),
correspondendo ao cumprimento de todas as bênçãos da aliança.
O reino sobre o qual esse futuro rei davídico reina é descrito da mesma forma que o reino
escatológico sobre o qual é esperado que Deus governe. É um reino de retidão e justiça (Is 9.7,
11.4; Jr 23.5, 33.15). A paz será eternamente assegurada tanto para Israel quanto para as nações
(Am 9.13-15; Is 9.6-7; 11.6-9; Mq 5.5; Jr 23.6, 33.16; Ez 34.25-29; 37.26; Zc 9.10), à medida
que o domínio do rei se estender sobre todas as nações (Am 9.12; Is 11.11-12, Mq 5.4; Zc 9.10).
Não haverá mais guerra (Zc 9.10). A terra será frutífera e próspera (Am 9.13-15; Is 11.6.-9;
Ez 34.25-29).
Como a vinda de Deus no Dia do Senhor, mas consistente com sua função de mediar à
bênção e maldição, esse rei davídico é descrito como decretando julgamento e punição ao ímpio:
“ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso” (Is 11.4).
Através do seu julgamento sobre os ímpios, a paz e a prosperidade do reino virão (Is 11.6-10).
Ezequiel 37.24-28 traz ambas as noções de reinado em um arranjo. O rei davídico reinará
sobre Israel e o santuário do Senhor será estabelecido no meio deles. Deus habitará com eles,
santificando-os e o seu Messias governará.

Resumo. Os profetas do Antigo Testamento, incluindo as visões apocalípticas de Daniel,


predizem que Deus irá estabelecer um reino mundial na terra centrado em Jerusalém na qual ele
e seu Messias, um descendente de Davi, governarão Israel e todas as nações. Esse reino é previsto
como acontecendo em um tempo que permanece futuro aos profetas, um tempo que é algumas
vezes referido como “os últimos dias”. (A palavra escatologia vem da palavra grega eschatos que
quer dizer último; nossa frase reino escatológico significa esse reino que é esperado vir “nos últimos
dias”.)
Os elementos estruturais desse reino escatológico carregam uma semelhança intencional ao
reino de Deus idealizado nos Salmos, os reinados altamente abençoados de Davi e Salomão. As
descrições desse reino formam um tipo ou modelo que são transmitidos e cumpridos em um
grau ainda maior no reino profético que está por vir. Essa tipologia se concentra em um rei
davídico que incorpora ambas as características de Davi e Salomão, mas que excede ambos em
poder, autoridade e caráter. Através do seu governo, o governo de Deus sobre Israel e sobre todas
as nações será revelado, apesar de em um nível mais amplo do que era o caso do modelo
davídico-salomônico. Entretanto, nesse reino escatológico, o relacionamento entre Deus e o
reino davídico será estável eternamente. Porém, ainda mais do que isso, assim como os Salmos
celebram o governo pessoal de Deus sobre Sião, assim os profetas descrevem o reino escatológico
como uma revelação pessoal de Deus. Ele é antevisto como vindo pessoalmente, se estabelecendo
em Sião, e governando a terra, Israel e todas as nações.
A vinda do Senhor para estabelecer esse reino escatológico é uma visitação do julgamento
sobre as nações da humanidade. Os profetas se referem a esse julgamento como o Dia do Senhor.
É um julgamento sobre o pecado humano, tanto individual quanto corporativo (social e político)
e se estende tanto para Israel quanto para as nações gentílicas. As visões de Daniel da entrada do
reino apocalíptico são similares. As visões na última metade de Daniel preveem uma grande
angústia e aflição sob um governador poderoso do mal. A destruição de Deus desse rei e do seu
reino é decisiva e certa (a ilustração chave sendo o julgamento de Belsazar, dado em Daniel 5).
Ele os substituirá com o reino escatológico do “Filho do Homem” e “os santos do Altíssimo”.
A partir das profecias e da tipologia que es profecias formam com os Salmos, podemos
identificar várias características do reino escatológico. O governador davídico é manifestado
como um governador mundial, governando não somente sobre Israel, mas todas as nações. Nele,
a casa de Davi é restaurada e estabelecida para sempre. Ele é poderoso, cheio com o Espírito de
Deus, benevolente e sábio. Mas o traço mencionado mais vezes sobre seu caráter é a justiça. Ele
governa com justiça.
O REINO DE DEUS NA PROFECIA E TIPOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO

O reino em si é uma estrutura política e religiosa. Será constituído na terra, centrado em


Jerusalém e estendido (e restabelecido) não somente sobre Israel, mas também sobre todas as
nações. É geralmente descrito em termos da sua justiça e retidão. É um reino de paz e segurança,
marcado pela ausência da guerra. É um tempo de prosperidade. Algumas descrições o veem em
termos de uma vida longa; outras como um tempo de imortalidade, a eliminação da morte e da
aflição. Consequentemente, é marcado pela alegria e felicidade. O pecado e o mal são erradicados
em algumas descrições; em outras são suprimidos. Isso está em coordenação com as diferentes
visões das pessoas na terra. Alguns textos anteveem a subjugação de sujeitos insubmissos, outros
veem todos os povos regozijando no conhecimento e na adoração ao Senhor.

1. Lembre-se que a aliança prevê descendentes que, assim como Abraão, confiam em Deus. Esses são descendentes físicos que são
constituídos herdeiros da bênção pela sua fé.
2. Compare a profecia de Balaão em Números 23.21, “O SENHOR, seu Deus, está com ele [Israel], no meio dele se ouvem
aclamações ao seu Rei”.
3. Veja os Salmos 47; 93; 95-100.
4. Veja os Salmos 8; 15; 29; 33; 46; 48; 50; 66; 68; 75; 76; 81-82; 84; 87; 114; 118; 132; 145; 149
5. Veja Salmos 2; 18; 20-21; 28; 45; 61; 72; 89; 101; 110; 132.
6. Essa é a posição que pertence ao rei davídico através dos Salmos. O Salmo 110.1 deve ser lido no sentido histórico. Enquanto
tipifica uma honra eventualmente concedida a Jesus, filho de Davi, posteriormente, na sua entrada nos céus (Atos 2), o sentido
histórico do salmo em seu contexto do Antigo Testamento não deveria ser perdido. Ele fala da posição de favor que pertence à
casa real davídica pela aliança. Seja qual for a experiência particular que o rei davídico encontre em, quer em Davi no campo de
batalha, Salomão em Jerusalém, ou Jesus nos céus, ele é o que está à direita de Deus. Veja capítulo 6, n.12.
7. Perceba a natureza do “já e ainda não” do reino no livro de Daniel.
8. Uma tipologia existe entre esse passado e o futuro “Dia do Senhor”. Elementos descritivos são compartilhados entre eles. Um
exemplo dessa tipologia aparecendo em um escrito pode ser achada em Joel. Capítulos 1-2 falam a respeito da praga de
gafanhotos enviada por Deus como um julgamento. É chamada de “o Dia do Senhor”. O capítulo 3, entretanto, apresenta o dia
do Senhor como um grande conflito militar no qual a existência do povo de Deus está em jogo. Elementos descritivos comuns
são compartilhados entre esses capítulos. Podem também ser comparadas às descrições do Dia do Senhor em Isaías 13 com as
dadas em Isaías 24.
CAPÍTULO 8

O REINO DE DEUS NO NOVO TESTAMENTO

Os escritos neotestamentários levam adiante o tema do reino escatológico. O que os faz


diferentes dos escritos veterotestamentários é que eles apresentam a nós a história do
cumprimento do reino. A história se concentra em Jesus de Nazaré. As páginas de abertura de
cada um dos quatro Evangelhos declaram que ele é o Cristo, o rei ungido. Ele é aquele filho de
Davi de quem os profetas estavam falando quando predisseram o rei escatológico. Sua atual
aparição na história marca o cumprimento iminente do reino escatológico. Sem o rei, o reino está
completamente no futuro. Uma vez que o rei aparece, o futuro está próximo.

O REINO ESCATOLÓGICO NA PESSOA E NA MENSAGEM DE JESUS


O Testemunho Inicial de Jesus, o Rei. Os Evangelhos relatam vários testemunhos iniciais de
Jesus como o Cristo. Que tipo de reino eles visualizaram para esse Cristo? Como a concepção da
messianidade dos Evangelhos estava relacionada à profecia do Antigo Testamento?
Lucas nos diz que antes de Maria conceber, ela recebeu uma revelação do anjo Gabriel acerca
da criança que ela portaria: “Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor,
lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado
não terá fim” (Lc 1.32.33). O reino predito nesse anúncio é inteiramente consistente com o
esperado pelos profetas.
Lucas também apresenta uma série de salmos e profecias ocasionadas pelos nascimentos de
João Batista e Jesus, que falam das promessas da aliança sendo cumpridas com respeito a Israel e
todas as nações. Mateus introduz a messianidade de Jesus ao dar sua genealogia através da casa
real de Davi, o anúncio de Gabriel a José e o testemunho da estrela.
A estrela é significativa não somente por causa de sua conexão literária com a profecia de
Balaão (“Uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro que ferirá as têmporas de
Moabe e destruirá todos os filhos de Sete”; Nm 24.17), mas, porque ela é interpretada pelos
magos como indicadora do nascimento do “rei dos judeus” (Mt 2.2) em um sentido bem real e
político. Mateus coloca significância no fato que esses gentios “se prostrando, o adoraram”
(Mt 2.11). Os profetas tinham predito que o Messias governaria os gentios, e Daniel havia dito
que todos os povos serviriam (ou adorariam) o Filho do Homem (Dn 7.14). Herodes interpretou
as novidades à luz da profecia messiânica e se sentiu politicamente ameaçado por Jesus. Cada
indicação aponta para o fato de que o reinado discutido em Mateus 2, em referência a Jesus, é
precisamente aquele que foi estabelecido, descrito e predito pelos profetas do Antigo Testamento.
Um ponto alto na identificação inicial de Jesus como o Cristo, e que aparece em cada um
dos Evangelhos, é o batismo de Jesus no rio Jordão. Aqui temos o testemunho do profeta João, a
voz de Deus, o Pai, vinda do céu e a descida do Espírito Santo. A pregação de João Batista
enfatizou um chamado ao arrependimento devido à proximidade de Jesus e à iminência do reino
(Mt 3.1-12; Mc 1.2-8; Lc 3.1-8; Jo 1.6-28). João negou que ele mesmo fosse o Cristo, e falou
daquele que estava vindo. Esse, então, é apresentado como Jesus. Quando Jesus foi batizado por
João, Deus falou do céu afirmando Jesus na linguagem da aliança davídica: “Meu filho amado
em quem me comprazo” (Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22). O Espírito de Deus também veio sobre
ele (Mt 3.16; Mc 1.10; Lc 3.22). João, que testificou que todo o evento, constatou a ele que
Jesus era verdadeiramente o Cristo (Jo 1.29-34).
O entendimento de João acerca do reino, que ele pregou que estava próximo (Mt 3.2), era
consistente com o ensino da profecia veterotestamentária. Como os profetas anteriores, ele
esperava que o reino viesse em uma revelação de julgamento e ira. Consequentemente, ele pregou
o arrependimento, alertando seus ouvintes que “Já está posto o machado à raiz das árvores; toda
árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo” (Mt 3.10). Ele advertiu que
o Cristo (que viria após ele) “batizará [...]com fogo. A sua pá, ele a tem na mão e limpará
completamente a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo
inextinguível” (Mt 3.11-12).
Nessa profecia, João estava empregando características literárias da predição de Malaquias da
vinda do Dia do Senhor: “Pois eis que vem o dia e arde como fornalha; todo os soberbos e todos
os que cometem perversidade serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o SENHOR
dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo” (Ml 4.1). Relembramos que os
profetas acreditavam que a vinda do Messias abalaria a terra e puniria o ímpio. De forma
semelhante, João prevê o Cristo como aquele que executará o julgamento do Dia do Senhor.1
Em resumo, os testemunhos iniciais acerca de Jesus identificam-no como o Cristo do reino
escatológico. O reino em si é entendido em termos das profecias do Antigo Testamento. Sua
vinda seria marcada pelo julgamento, um Dia do Senhor. Sua extensão seria mundial, com os
gentios submetendo-se ao Cristo. Seria um reino vivificado política e espiritualmente, no qual as
promessas de bênçãos a todos os povos, incluindo as promessas nacionais de Israel, são
asseguradas. E tudo isso aconteceria através de um rei, que cumpriria as promessas feitas a Davi,
tanto em poder político quanto em intimidade com Deus — Jesus de Nazaré.

A Proclamação do Reino Escatológico Vindouro. Como os profetas do Antigo Testamento e


João Batista, Jesus também predisse a vinda do reino de Deus. Como João, mas não como os
profetas, Jesus proclamou que o reino estava próximo (Mt 4.17; Mc 1.15; Lc 10.9). Essas eram
“as boas novas”. Porém, elas chamavam ao arrependimento, à luz do julgamento que precederia à
chegada do reino. (A proximidade do reino fez o julgamento iminente.) Jesus ensinou seus
discípulos a orar pela vinda do reino (Mt 6.10; Lc 11.2). Eles deveriam buscá-lo mais que
comida, roupa e abrigo (Mt 6.33; Lc 12.31). Esse sentido futuro do reino também é visto em
Mateus 13.47-50; 16.28; 20.21; 26.29 e Lucas 13.29.
A Centralidade do Tema do Reino. O reino de Deus não era meramente um dos temas de
Jesus. Era o tópico geral de todas as suas pregações, como pode ser visto na forma que Mateus e
Marcos resumiram seu ministério de pregação: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está
próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15; cf. Mt 4.17). Ambos os escritores
colocam essas palavras no começo dos seus relatos funcionando como uma declaração resumida
de toda a sua pregação e ensino.2
O reino de Deus foi o tema guia de todo seu ministério, como podemos ver em outro
comentário resumido por Mateus:
Percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e
curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. E a sua fama correu por toda a
Síria; trouxeram-lhe, então, todos os doentes, acometidos de várias enfermidades e tormentos:
endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E ele os curou. E da Galileia, Decápolis, Jerusalém,
Judeia e dalém do Jordão numerosas multidões o seguiam (Mateus 4.23-25).

As obras que Jesus fez, especialmente nesses versos, como curas e exorcismos, eram parte de seu
ministério proclamando as boas novas do reino vindouro. Por sua vez, elas contribuem para uma
compreensão de como seria esse reino, uma compreensão que concorda muito bem com as
expectativas das profecias do Antigo Testamento.
A centralidade do tema do reino para Jesus também é vista em sua constante referência a si
mesmo como o Filho do Homem. Nós já observamos que “Filho do Homem” era um título
aplicado por Daniel para aquele que governaria o reino escatológico (Dn 7.13). Jesus claramente
o usa nesse sentido.
Em Mateus 16.13, Jesus perguntou a seus discípulos: “Quem as pessoas dizem que o Filho do
Homem é?” Ele estava falando de si mesmo, conforme indicam as passagens paralelas (“Quem as
pessoas dizem que sou?” Mc 8.27; Lc 9.18) e sua pergunta subsequente em Mateus 16.15 (“mas
quem vocês dizem que sou?”). Pedro responde pelos discípulos: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo” (Mt 16.16). Em outras palavras, Pedro entende que esse título se refere ao Messias, em vez
de simplesmente a um ser humano (veja Sl 8.4), ou até mesmo um profeta (cf. Mt 16.14 com
Dn 8.17 e Ez 2.1-3.27). Jesus assevera a interpretação de Pedro como uma revelação do Pai
(Mt 16.17) e então elabora o significado messiânico do Filho do Homem com o seguinte
destaque: “Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então,
retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mt 16.27). Essa vinda em glória é reformulada no
versículo seguinte como “a vinda em seu reino”. A linguagem afirma a visão apocalíptica de
Daniel do reino escatológico vindouro do Filho do Homem, com o ponto adicional que o
julgamento que Daniel concebeu como vindo do Ancião de Dias é na verdade administrado pelo
Cristo, o Filho do Homem (consistente com a mediação do Messias acerca das bênçãos e
maldições).3
Outros dizeres do “Filho do Homem” por Jesus afirmam sua crença em um reino vindouro
consistente com as profecias de Daniel, e eles demonstram que ele pensou de si mesmo como a
figura central. Eles também reafirmam a expectativa do Antigo Testamento que o julgamento
marcará a vinda do reino (veja Mt 13.41-43; 19.28; 24.1-25.46 [Mc 13.1-37; Lc 21.5-36]).
Um Reino Político Mundial. Jesus acreditava que, como o Messias, ele mesmo viria em glória,
julgaria as nações da humanidade e estabeleceria seu próprio governo político sobre eles
(Mt 25.31-46).

Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará
no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos
outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os
cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de
meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.” [...]
Então, o Rei dirá também aos que estiverem a sua esquerda: “Apartai-vos de mim, malditos,
para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.” [...] E irão estes para o castigo
eterno, porém os justos, para a vida eterna.
No seu julgamento, em resposta à pergunta do sumo sacerdote sobre ser ele “o Cristo, o Filho de
Deus”, Jesus disse que era e afirmou que Daniel 7.13 e Salmos 110.1 seriam cumpridos por ele
(Mt 26.63-64; Mc 14.62; Lc 22.67-70). Ele ensinou que iria embora para receber o reino, mas,
que retornaria para reinar sobre ele (Lc 19.11-15). Seu reino seria o cumprimento do que foi
prometido a Davi (e consequentemente, o cumprimento das profecias de que a casa de Davi seria
restabelecida). Ele governaria sobre Israel e todas as nações para sempre (Mt 25.31, 34, 46;
Lc 1.33). Ele seria entronizado com todos os seus inimigos em sujeição a ele (Mt 26.44).
A ênfase nas promessas nacionais de Israel é vista também em seu envio dos discípulos
especialmente “aos perdidos da casa de Israel”, dizendo para eles pregarem que “o reino dos céus
está próximo” (Mt 10.6-7). Em Atos 1.6, depois de quarenta dias de instrução por Jesus
ressurreto sobre o reino de Deus (At 1.3), os discípulos perguntaram se ele iria “restaurar o reino
a Israel” naquele momento. A esperança nacional de Israel aparece na pergunta deles como um
pressuposto. A questão tinha a ver somente com o tempo do cumprimento.
Essa passagem em Atos, situada no encerramento do ministério pré-ascensão de Jesus, é um
testemunho bem significativo da continuidade do ensino de Jesus com o dos profetas do Antigo
Testamento. A noção de um reino político e terreno não foi abandonada ou ressignificada.4
Parece que a maioria dos ensinos de Jesus toma a natureza política do reino como certa. Ele
está mais preocupado em advertir seus ouvintes do julgamento que precede este reino vindouro.
No entanto, até mesmo os seus pronunciamentos de julgamento destacam a natureza política do
reino.
Na parábola da vinha (Mt 21.33-46), Jesus reprovou os líderes judeus de seus dias por se
oporem a ele. Ele apresentou a si mesmo como o verdadeiro herdeiro do trono de Israel. Eles são
somente servos, fazendo o trabalho para seu mestre. Sua oposição a ele é como a oposição que
Davi recebeu no Sl 118.22. A despeito da resistência, Davi se torna “a pedra angular
fundamental” do reino. Usando a metáfora da pedra, Jesus então associa Isaías 8.14 com
Daniel 2.44 para predizer a destruição dos líderes judeus dos seus dias. A referência de Daniel é
particularmente importante porque fala do estabelecimento do reino escatológico. Jesus colocou
os líderes judeus dos seus dias na parte daqueles governadores gentios que seriam esmagados pelo
estabelecimento do reino de Deus.
Nesse contexto, Jesus diz: “Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será
entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” (Mt 21.43). Seu julgamento se aplica
a eles mesmos a resposta anterior à sua parábola, que a vinha deveria ser arrendada para “outros
lavradores, que lhe deem a sua parte no tempo da colheita”. No contexto da profecia do Antigo
Testamento, essa “nação”, os “outros lavradores”, seriam os remanescentes da fé, a nação
escatológica feita daqueles que suportam o fogo refinador do Dia do Senhor — aqueles de Israel
que são libertos em vez de expurgados (cf. Mq 2.12-23; 4.6-8, Sf 3.12-20; Ml 3.16-17).
De fato, Jesus já havia designado seus próprios apóstolos para cargos de autoridade no reino
vindouro. Eles ocupariam os lugares daqueles que estavam governando naquele momento.

Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na
regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em
doze tronos para julgar as doze tribos de Israel (Mateus 19.28).

Em resumo, vemos que Jesus afirmou a tradição da profecia e do apocalipticismo do Antigo


Testamento e proclamou um reino político mundial vindouro no qual, ele como Messias, da casa
de Davi, governaria Israel e todas as nações. Nós o vemos fazendo as preparações para a
administração desse reino ao prometer a seus discípulos cargos de autoridade juntamente com
ele, enquanto anuncia a exclusão das autoridades presentes no momento.
Julgamento Vindouro. No sermão do Monte das Oliveiras, o sermão escatológico estendido
de Mateus 24.1-25.46 (cf. Mc 13.1-37; Lc 21.5-36), Jesus respondeu às questões dos seus
discípulos sobre sua “vinda no fim da era” (24.3). Ele explicou que a sua vinda se daria num
tempo de aflição e angústia, de grande mal e perseguição. Ao descrever esse tempo, ele usa os
temas, características e citações literárias das profecias do Antigo Testamento do futuro Dia do
Senhor. Porém, ele também fez referências explícitas às visões de Daniel, de um tempo vindouro
de grande aflição marcado pela atividade de alguém que perpetra uma abominação da desolação
(Mt 24.15; Mc 13.14; cf Lc 21.20).5 Dessa forma, Jesus integrou a noção dos profetas de um
Dia do Senhor vindouro com a visão de Daniel de um tempo de aflição. O resultado foi uma
predição sintética do mal e do julgamento que forma o contexto da sua vinda.6 A vinda em si é
apresentada em Mateus 24.30 (cf. Mc 13.26; Lc 21.27) pela citação de Daniel 7.13 e é
completada em Mateus 25.31, quando o Filho do Homem reina como rei no reino de Deus na
terra.
No Evangelho de Mateus, diversas ilustrações e parábolas associadas ao sermão do Monte da
Oliveira (Mt 24.37-25.30) repetem a advertência para estar pronto para o julgamento que
ocorrerá na vinda do Filho do Homem. Muitas das outras parábolas de Jesus, registradas em
outros lugares nos Evangelhos, reiteram a mesma advertência — a repetição frequente mostra o
quão predominante era no ensino de Jesus. E isso é captado no resumo da mensagem registrada
no início de Mateus e Marcos no chamado de Jesus ao arrependimento à luz da vinda do reino
de Deus.
Em um Tempo Desconhecido. Devemos observar os destaques de Jesus acerca do tempo do seu
reino vindouro. Ele disse a seus ouvintes que o reino estava próximo: “O tempo é chegado”, dizia
ele. “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no
evangelho” (Mc 1.15). O fato que o Cristo estava lá, tendo nascido em Belém e vivendo naquele
tempo na história, tornou o reino próximo. Sem o rei, o reino permanecia uma esperança
distante; mas com o rei presente, com a história se tornando sua própria história pessoal, então,
pela primeira vez, o reino escatológico se tornou uma possibilidade presente.
Quanto ao tempo preciso quando ele viria, Jesus alegou que não sabia. No sermão do Monte
das Oliveiras, Jesus respondeu à questão, “Quando essas coisas acontecerão?” — “coisas”, sendo
os julgamentos destrutivos que sinalizariam sua vinda e a vinda do reino (Mt 24.3). Jesus
respondeu essa questão dizendo: “Mas, a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos
dos céus, nem o Filho, senão o Pai” (Mt 24.36). Isso, então, foi seguido por vários dizeres e
parábolas, no sentido que as pessoas devem estar prontas, já que ninguém, exceto o Pai, sabe
quando o reino fará sua entrada apocalíptica.
Em Lucas 19.11, lemos que, em uma ocasião, conforme Jesus se aproximava de Jerusalém,
muitas pessoas “pensaram que o reino de Deus iria aparecer imediatamente”. Na mente deles, a
combinação de Cristo e Jerusalém significava o reino. Eles não entendiam que ele veio fazer o
ministério do Servo (Is 49; 53) primeiro, e que depois da sua ressurreição dos mortos, ascenderia
à posição onde Daniel o visualizou — nos céus, pronto para descer na glória e julgamento do
reino vindouro. No presente momento, entretanto, ele estava fazendo o ministério do Servo,
chamando Israel de volta para Deus (Is 49.5) assim como é testemunhado em Lucas 19.9-10
pelo seu ministério a Zaqueu: “Hoje, houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de
Abraão. Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido”.
Então, “Jesus propôs uma parábola” para corrigir a má interpretação deles acerca do tempo
da vinda do reino. A parábola é sobre “certo homem nobre” que “partiu para uma terra distante,
com o fim de tomar posse do reino e voltar” (Lc 19.12). A parábola ensina que Jesus não iria até
Jerusalém para estabelecer o reino escatológico. Em vez disso, ele iria embora primeiro. Ele
receberia o reino em “um país distante”. E então retornaria em julgamento para executar seu
reino. Nada, entretanto, é dito sobre quanto tempo sua partida duraria ou quanto tempo depois
dela ele voltaria.
Jesus confirmou seu ensino em Atos 1.6-7. Nesse momento ele já tinha ressuscitado dos
mortos e estava preparando para ascender aos céus. Os discípulos perguntaram:“Senhor, será este
o tempo em que restaures o reino a Israel?” ele respondeu: “Não vos compete conhecer tempos
ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva autoridade”. Isso então se tornou a visão oficial
da igreja, como visto na pregação de Pedro em Atos 3.21: “Ao qual é necessário que o céu receba
até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos
profetas desde a antiguidade”. Somente Deus sabe quando será esse tempo, ele permanece no
futuro da própria escolha de Deus.
Aspectos Físicos e Materiais do Reino. Na teologia do Antigo Testamento, não há a ideia de
um reino futuro separado metafisicamente da terra, e, não há nada no ensino de Jesus para
indicar um rompimento radical da tradição que o precedeu. O fato que ele esperava um reino
político na terra revela suficientemente a natureza física do reino que ele ensinou. Suas atividades
ministeriais confirmam isso. Elas demonstram o tipo de reino que ele esperou conforme pregava
“o reino está próximo”, ou em alguns momentos, “veio sobre vós”.
Jesus, o rei, verdadeiramente era, e é, fisicamente humano. Muitos dos testemunhos do
Evangelho sobre seu reinado davídico aparecem nas narrativas acerca do seu nascimento.
Conforme ele pregava as boas novas acerca do reino, ele curava pessoas das enfermidades físicas,
curando “toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo [...] trouxeram-lhe, então, todos os
doentes, acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e
paralíticos. E ele os curou” (Mt 4.23-24).7
Os Evangelhos estão repletos com histórias acerca de curas físicas, muito além do que
podemos evocar aqui. A cura física era uma bênção, listada entre as bênçãos da aliança mosaica,
uma manifestação da promessa feita a Abraão para abençoar a humanidade. Também era um
sinal da vida abençoada do reino, em conformidade com a expectativa do Antigo Testamento.
Além disso, o fato que Jesus curou pessoas era um sinal do seu reinado, pois como vimos, a aliança
davídica fez do rei o mediador das bênçãos de Deus. Quando os discípulos de João perguntaram
a Jesus se ele era o que viria, isto é, se ele era o rei, ele respondeu: “os cegos veem, os coxos
andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres
está sendo pregado o evangelho” (Mt 11.5).
A cura física mais importante foi a ressurreição corporal dos mortos. Jesus é relatado como
ressuscitando três indivíduos que tinham morrido (Lc 7.14-15; 8.49-56; Jo 11.43-44; mas veja
também Mt 27.52-53), mas em sua própria ressurreição ele revelou a futura vida imortal
(2Tm 1.10). Consequentemente, o Novo Testamento se refere a ele como “o primeiro fruto” dos
mortos.
A natureza corporal da sua vida ressurreta é enfatizada nos Evangelhos com o relato dos seus
discípulos tocando-o e até mesmo o abraçando (Mt 28.9; Lc 24.39; Jo 20.17), falando com ele
(Mt 28.10; Lc 24.13-35; Jo 20.14-17; 26-29), sendo ensinados e comissionados por ele
(Mt 28.16-20; Lc 24.13-35, 44-53; Jo 21.15-23; At 1.1-11), comendo com ele (Lc 24.41-43;
Jo 21.1-14; At 10.40-41), e andando na estrada com ele (Lc 24.13-35).
O que aconteceu a ele em sua forma corporal é uma revelação da vida humana na vinda do
reino de Deus, uma vida livre da maldição do pecado e da morte. Em uma imagem que relembra
Isaías 25.6-9, ele predisse que muitos viriam do leste, oeste, norte e sul e se juntariam a Abraão,
Isaque e Jacó e todos os profetas num grande banquete no reino de Deus (Lc 13.28-29). Logo
antes da cruz, Jesus prometeu a seus discípulos que ele comeria e beberia a refeição da Páscoa
novamente com eles no reino (Lc 22.16, 18).
Correspondendo à ressurreição, está o renovo da terra. Muitas profecias falam da fertilidade
da terra, juntamente com a paz e harmonia no mundo animal. Eles antecipam uma “nova
criação” de deleite e alegria. Jesus afirmou essas expectativas. À medida que pregava o reino de
Deus, fazia milagres sobre a natureza. Ele “repreendeu os ventos e o mar” para que eles se
tornassem “perfeitamente calmos” (Mt 8.26; Mc 4.39; Lc 8.22-24). Duas vezes ele “abençoou”
uma pequena quantidade de comida e fez uma multiplicação para alimentar uma grande
multidão (Mt 14.19-21; 15.34-38; Mc 6.41-44; 8.5-9; Lc 9.16-17; Jo 6.9-14). Ele encheu as
redes dos pescadores (Jo 21.5-6) e “andou” sobre o mar durante uma tempestade sem que nada
acontecesse com ele (Mt 14.24-33).
Essas atividades funcionam como ilustrações da sua mensagem acerca do reino vindouro.
Juntamente com curas físicas, ambos retratam a natureza da vida do reino e afirmam a
autoridade messiânica do governo de Jesus.
Um Reino Espiritual. O reino que Jesus proclamou era tão espiritual quanto físico. Isso não é
uma contradição, pois o adjetivo espiritual não implica numa mudança no estado metafísico dos
tópicos de Jesus. Refere-se à presença de Deus com sua criação na qual ele a renova e abençoa.
A espiritualidade do reino é primeiramente vista no fato que é o reino de Deus. Assim como
o reino é um reino político, é um reino no qual Deus governa e reina sobre as nações. É um
governo vindouro de Deus descrito da mesma forma que os profetas do Antigo Testamento
falaram do reino vindouro de Deus. De acordo com isso, Jesus ensinou seus discípulos a
buscarem “o reino dele [do seu Pai]” (Mt 6.33; Lc 12.31) e orarem “Pai nosso [...] venha a nós o
teu reino” (Mt 6.9-10; Lc 11.2).
Porém, sem dúvida, a revelação mais chocante acerca da presença de Deus no reino foi a
própria pessoa de Jesus, o Messias.
Enquanto vimos que na profecia do Antigo Testamento, os reinos de Deus e do Messias
deveriam se unir em um reino perfeitamente harmonioso, o Novo Testamento proclama
diretamente o Messias como o Deus encarnado! Paulo escreve: “Deles são os patriarcas, e a partir
deles se traça a linhagem humana de Cristo, que é Deus acima de todos, bendito para sempre!”
(Rm 9.5, NVI). João proclama Jesus como a Palavra, que era Deus e que se tornou carne (Jo 1.1,
14). Tomé o adorou como “Senhor meu e Deus meu” (Jo 20.28). Paulo escreveu que “toda a
plenitude da divindade” habitava nele (Cl 2.9) e se referiu a ele como “nosso grande Deus e
salvador, Cristo Jesus” (Tt 2.13; cf 2Pe 1.1).
O próprio Jesus falou continuamente de Deus como seu pai,e Deus Pai designou Jesus
publicamente como seu filho. Já discutimos a natureza da aliança dessa terminologia, a mais
importante para entender a messianidade de Jesus. Porém, a intimidade do Pai e do Filho,
revelada em Jesus, transcendeu o relacionamento divino-davídico, ainda que o inclua. Ele aponta
a forma de entender como a verdade da divindade de Jesus se relaciona com a divindade do Pai.
Em João 5.20-26, Jesus revelou um relacionamento Pai-Filho muito maior que o revelado
em Davi ou Salomão.

Porque o Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do que estas lhe
mostrará, para que vos maravilheis. Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim
também o Filho vivifica aqueles a quem quer. [...] [O Pai] ao Filho confiou todo o
julgamento, a fim de que todos honrem o Filho do modo por que honram o Pai [...] Porque
assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo.

O escritor de Hebreus declara que o Filho “é o resplendor da glória e a expressão exata do seu
Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3). Pai e Filho conhecem um
ao outro de forma única (Mt 11.27; Lc 10.22); suas pessoas se entrelaçam, de modo que todo
aquele que vê o Filho, vê o Pai (Jo 14.9-11).
Consequentemente, neste Messias, neste filho de Davi que se torna o Filho de Deus pela
aliança, é revelado uma eterna, pré-existente e sempre contínua filiação divina — o Verbo que
“estava no princípio com Deus” que “era Deus” que é “o Deus unigênito” (Jo 1.1-2, 18). A
filiação divina e a filiação da aliança davídica são reunidas na pessoa de Jesus. Como
consequência, o termo Filho de Deus vem a ser usado em um sentido expandido no Novo
Testamento. O significado tradicional se refere ao rei davídico, mas, o significado recentemente
revelado (apesar de eternamente pré-existente) da filiação divina vem em seu referente. O termo
se expande em seu significado em uma maneira complementar (encarnacional).8
Isso também acontece com o termo Senhor. Já vimos como Pedro em Atos 2.36 declara que
Jesus é o Senhor e Cristo, usando o termo Senhor para designar Jesus como o destinatário da
autoridade davídica.9 Porém, o título Senhor, atribuído a Jesus, também adquire uma referência a
Deus através da citação de Pedro de Joel 2.32 (At 2.21) — “Todo aquele que invocar o nome do
Senhor será salvo” — e apela que as pessoas sejam batizadas no nome de Jesus (At 2.38) para que
sejam salvas (At 2.40). Mais tarde, Paulo descreve o seu batismo como “um chamado em seu
[Jesus] nome” (At 22.16). Aquele que foi entronizado com a autoridade da aliança davídica
como Senhor é na verdade o Senhor que salva. O senhorio agora é unificado em uma só ação. A
salvação vem para aqueles que “invocam o nome do nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.2; cf.
Rm 10.13; 2Tm 2.22). Pois aquele que estava “na forma de Deus” (o senhor divino) tomou a
“forma de servo” (o Servo messias) e fez expiação por nossos pecados, depois do qual foi
“altamente exaltado” com “o nome que está acima de todo nome”, assim todos irão “confessar
que Jesus Cristo é Senhor para glória de Deus o Pai” (Fp 2.6-11).10
Com o Messias como Deus encarnado, o reino dificilmente poderia ser chamado de um
reino puramente político. Em vez disso, esse seria um reino no qual ele concederia bênçãos da
nova aliança, incluindo o perdão dos pecados e a dádiva do Espírito Santo para habitar e renovar
os corações humanos. Jesus já estava agindo, perdoando pecados e curando doenças (Mt 9.2-6;
Mc 2.5-10; Lc 5.20-24; 7.47-49). Ele deu a sua vida para inaugurar uma nova aliança, provendo
a base sacrificial para a expiação e a redenção que ele proclamou. Ele revisou e reinterpretou a
Páscoa como uma refeição da nova aliança centrada em sua morte sacrificial, predizendo que ele
participaria dela novamente com seus discípulos no reino de Deus (Mt 26.26-29; Mc 14.22-25;
Lc 22.15-20). Ele venceu Satanás e o pecado (Mt 4.1-11; 16-23; Mc 1.12-13; 8.33; Lc 4.1-13).
Ele expulsou demônios, anunciando que esses exorcismos são o poder do reino (Mt 12.22-28).
Jesus ensinou que o reino seria habitado pelo povo “nascido do Espírito”, dizendo a
Nicodemos que “a menos que alguém seja nascido de novo, não poderá ver o reino de Deus”
(Jo 3.3, 5-8). Essa é a bênção da nova aliança do Espírito de Deus nos corações humanos, como
em Ezequiel 36-37 e Isaías 59.21, quando o remanescente que se torna a nação é habitado,
renovado e ressuscitado pelo Espírito Santo. Jesus ensinou que o Espírito de Deus, dado por
Deus Pai, seria mediado através dele, Deus Filho — Filho de Deus, Messias (Jo 7.37-39; 14.16-
17; 16.7).
O reino que Jesus pregou era, portanto, um reino de santidade e justiça, assim como era um
reino político mundial. Não há contradição ou tensão entre essas noções. Elas são tão
compatíveis no ensino de Jesus quanto nas predições dos profetas do Antigo Testamento.
O Sermão do Monte e a Justiça do Reino. A justiça do reino é o tema do sermão do monte em
Mateus 5-7. Ao passo que não podemos prover uma exposição detalhada nessas páginas,
podemos observar algumas características estruturais que enfatizam o tema. As bem-aventuranças
proclamam o reino dos céus como um tempo de conforto, misericórdia, gentileza, paz e pureza
de coração. Será o reino na terra (5.5). Os cidadãos desse reino serão “filhos de Deus” e eles verão
a Deus. A razão para isso é o dom da justiça de Deus.
A justiça recebe ênfase especial nessas bem-aventuranças. Estruturalmente, é o tema da
quarta e da oitava bênçãos, concluindo dois ciclos de quatro bênçãos cada. Na quarta bênção
(5.6), a justiça é um dom vindo de Deus: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão fartos”.Nesse sermão sobre o reino escatológico, a justiça antecipada parece ser a
justiça da bênção da nova aliança, na qual Deus escreveria sua lei diretamente nos corações do
seu povo.
Na oitava bênção (5.10), Jesus promete o reino para aqueles “que tem sido perseguidos por
causa da justiça”. A repetição do tema da justiça destaca sua importância para o sermão que se
segue. A nona e última bem-aventurança é poeticamente paralela à oitava, repetindo o mesmo
pensamento sobre a bênção para aqueles que são perseguidos. Entretanto, a palavra justiça é
substituída pela pessoa de Jesus, enfatizando uma conexão entre ele mesmo e a justiça que seria
dada. Essa conexão é posteriormente destacada em Romanos 5.17 quando Jesus alega que ele
veio cumprir a lei e os profetas. A justiça do reino já está presente nele próprio.
A justiça escatológica excede a justiça da antiga dispensação. Consequentemente, ela supera
aquela exibida pelos escribas, fariseus, mestres e praticantes da lei mosaica (5.20). A partir de
5.20 até o 5.48, Jesus expõe a superlativa qualidade da justiça escatológica ao fazer comparações
com a forma que a lei da antiga aliança seria aplicada em específicas situações em seus próprios
dias. Em 6.1-34, Jesus descreve a justiça escatológica como a qualidade da vida privada de
alguém com Deus. Essa qualidade elimina a hipocrisia, o fingimento de justiça diante dos outros.
Finalmente, o sermão se encerra ao admoestar os ouvintes “a buscarem em primeiro lugar o
seu reino e a sua justiça” (6.33). Ele promete que “todo o que pede recebe; o que busca encontra;
e, a quem bate, abrir-se-lhe-á” (Mt 7.8). O Pai dará “coisas boas aos que lhe pedirem” (7.11). Na
versão de Lucas desse discurso, a boa dádiva é o Espírito Santo (Lc 11.13), o agente da justiça da
nova aliança.
Entretanto, deve-se buscar a justiça entrando pela porta certa (Mt 7.13-14), indo ao mestre
que verdadeiramente exibe sua justiça (7.15-23) e, mais explicitamente, acreditando e agindo
com base no ensino de Jesus. Ele é a rocha que preserva a vida de alguém durante o julgamento
(7.24-27). O apelo de conclusão é similar ao convite que encontramos em Mateus 11.28-30.
Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre
vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis
descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.

Resumo. O reino de Deus foi o tema constante do ministério de Jesus. Ele reiterou os elementos
básicos desse reino vindouro como comumente proclamado pelos profetas do Antigo
Testamento e ele fez uso especial de temas e imagens das visões apocalípticas de Daniel. O reino
virá numa crise de julgamento no Dia do Senhor, um tempo de grande angústia para todos os
povos. Porém, o reino será estabelecido como um governo mundial sobre todas as nações. Israel
será abençoado nacionalmente e através do seu rei, o Cristo davídico, as bênçãos fluirão para
todos os povos.
A vida no reino será abençoada — sem doença, sem possessão demoníaca. A própria morte
será eliminada — os mortos serão levantados e vida eterna lhes será dada. A terra será abençoada
com paz e fertilidade. Será uma vida de alegria e felicidade, marcada pela eliminação do pecado e
da impiedade. Os povos serão perdoados, com seus pecados tendo sido expiados. Eles serão
nascidos do Espírito e serão cheios da justiça. A misericórdia, o consolo e a paz de Deus
habitarão com eles. Eles verão o Senhor e habitarão com ele para sempre.
A diferença entre Jesus e os profetas com respeito ao futuro reino não reside no
entendimento básico da sua natureza e realidade, mas na revelação do Messias. Jesus proclamou a
si mesmo, e foi proclamado por outros, como sendo o Messias. Além disso, o testemunho sobre
ele aponta para o fato surpreendente: Ele, o Messias, o herdeiro escolhido de Davi, também é o
Deus encarnado. A harmonia do governo davídico e divino, na visão profética do reino, agora é
vista como sendo a ação singular e pessoal do Deus encarnado como Filho de Davi. Agora, uma
harmonia mais profunda veio a ser revelada — a harmonia do trino Deus — Pai, Filho e Espírito
Santo.
A crise do julgamento através da qual o reino virá ao seu domínio político mundial é
revelada como sendo a vinda apocalíptica de Jesus. Ele é o Senhor do Dia do Senhor e ele é
quem julgará e governará as nações. O tempo da entrada apocalíptica do reino é conhecido
apenas pelo Pai. O Filho agirá de acordo com a vontade do Pai para trazer o reino. Toda
autoridade é dada ao Filho. Ele estabelecerá o reino e concederá as suas bênçãos.
As bênçãos, políticas e espirituais, são dadas por Jesus. Ele faz a expiação e perdoa os pecados.
Ele dará o Espírito e ressuscitará os mortos. Trará paz à terra e a fará frutífera. Dará alegria e
felicidade. Ele, como Deus e rei davídico, pastoreará o seu povo com paz, segurança e alegria para
sempre.

O Reino Presente em Jesus. Enquanto Jesus avança a tradição dos profetas do Antigo
Testamento ao predizer a vinda do reino escatológico, com ele mesmo como o Messias, há
algumas ocasiões nos Evangelhos em que ele fala do reino como estando presente em seu próprio
dia. Nesses dizeres, o reino está presente no sentido que ele, o rei do reino, está presente entre
eles, mostrando em si mesmo e em sua atividade as características do reino escatológico.
Três passagens abordam esse assunto em especial. A primeira, em Mateus 11, Jesus identifica
a si mesmo aos discípulos de João Batista como aquele que viria ao recontar as atividades do seu
ministério. Essas atividades são fenômenos pertencentes ao reino escatológico do Messias. Elas já
estavam presentes no ministério de Jesus naquele tempo, provendo uma base para falar da
presença do reino. Depois de falar com os discípulos de João, Jesus se dirigiu a multidão acerca da
importância de João e a vinda do reino. Ele diz “aquele que é menor no reino dos céus é maior
que ele [João]” (Mt 11.11; Lc 7.28). Nessa declaração, o reino dos céus é uma realidade futura.
Entretanto, no verso seguinte (Mt 11.12 cf. Lc 16.16, NAA), Jesus diz: “Desde os dias de João
Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e os que usam de força se apoderam dele”.
Embora seja um verso de difícil tradução, ele parece fazer do reino um objeto de oposição
presente. Essa oposição passou a se concentrar em Jesus, o referente central do reino tanto para
João quanto para Jesus.
Em Mateus 12.22-30 (cf. Lc 11.14-23), alguns fariseus acusaram Jesus de exorcizar um
demônio pela autoridade de Belzebu. Jesus repreende as suas acusações apontando a falta de
lógica de Satanás estar dividido contra si mesmo. Então ele diz: “Se, porém, eu expulso demônios
pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” (Mt 12.28). O reino de
Deus está presente (é chegado) em virtude do fato que ele está exorcizando demônios pelo poder
do Espírito Santo. Essa atividade faz com que a multidão suponha a sua identidade como filho
de Davi (Mt 11.23). O fato que o próprio rei está aqui, agindo no poder do Espírito, forma uma
base para falar da presença do reino escatológico.
Em Lucas 17.20-21, Jesus é questionado por alguns fariseus “sobre quando viria o reino de
Deus”. A resposta de Jesus começa com a alegação: “Não vem reino de Deus com visível
aparência”. Esse comentário parece estranho à luz do seu ensino posterior no mesmo Evangelho
acerca dos sinais que precedem a vinda do reino de Deus (Lc 21.7-31). Até mesmo em Lucas 17,
Jesus falou sobre como a vinda do filho do homem se daria (17.24,30). Entretanto, sua resposta
aos fariseus fica clara no verso 21. Ele disse aos fariseus, “Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está!
Porque o reino de Deus está no meio de vós”. Ele direciona a atenção deles de alguma coisa
“aqui” ou “ali” para si mesmo.11 Ele está no meio deles, o próprio rei do reino. Não há maior
sinal do reino que ele próprio, pois de fato todos os outros sinais apontam para ele. Já que eles o
rejeitaram, nenhum outro sinal os ajudaria. Porém, para nossos propósitos, observamos que sua
presença nesse tempo era a ocasião para falar do reino estando presente.
Em resumo, os Evangelhos apresentam Jesus falando sobre a presença do reino em seus
próprios dias em virtude do fato de que ele mesmo, o Cristo, está presente ministrando pelo
poder do Espírito Santo, manifestando em suas obras as características pertencentes ao reino
escatológico de Deus. Ele perdoa pecados, afasta doenças, demônios e morte. Pacifica o clima e
multiplica os alimentos. Ele traz seus ouvintes ao arrependimento e os leva ao conhecimento e à
adoração a Deus.
Uma teologia que pretende ser bíblica deve incorporar essa presença do reino no ministério
antes da cruz de Jesus ao seu entendimento do reino escatológico. Pela primeira vez na história
das profecias acerca do reino escatológico, esse reino foi falado como algo presente, uma
afirmação que foi justificada sobre a base da presença do rei e sua atividade. Não há a menor
indicação que essa afirmação seria contra o ensino de Jesus acerca da vinda futura do reino. Na
verdade, ela provê uma base mais forte para esse ensino. Pois, se o reino pudesse ser visto em
Jesus, se ele de fato demonstrasse o poder e autoridade desse reino, então haveria ainda mais
razões para acreditar que uma futura vinda de Jesus em glória, de fato, traria o reino em toda sua
glória.
O REINO ESCATOLÓGICO PRESENTE E FUTURO ENSINADOS POR JESUS
A diferença entre a presença do reino em Jesus no tempo de seu ministério antes da cruz e a
futura presença do reino não é somente uma diferença entre seu serviço de sofrimento e sua
glória futura, mas também a diferença entre o reino estando em Jesus e o reino universalmente
estabelecido. O reino foi revelado na atividade de Jesus e por meio dela. Foi bastante dinâmico,
sendo visto em demonstrações do seu poder. Entretanto, ele não instituiu naquele tempo o reino
como uma estrutura duradoura para o mundo. Foi somente após a cruz que ele inaugurou certos
aspectos do reino em um sentido institucional. As Escrituras falam desses elementos como um
depósito (Ef 1.13-14), uma estrutura inicial que espera uma conclusão na sua vinda gloriosa no
Dia do Senhor. Seus ensinos sobre uma futura vinda do reino olham em direção ao seu
estabelecimento completo.

A Presença do Reino Antes do Retorno de Cristo. Muitos ensinos de Jesus foram transmitidos
em forma de parábolas. Já que o reino de Deus era um tópico principal em seu discurso, não é
surpreendente que muitas parábolas tenham a ver com esse assunto e seus temas relacionados.
Não podemos realizar um estudo maior das parábolas nessas páginas, mas, em vez disso,
queremos observar os ensinos de Jesus acerca dos mistérios do reino que aparentam dar uma nova
revelação acerca do reino além daquela que já tínhamos visto. Incluída na nova revelação estava a
predição de uma forma, ou estágio da presença do reino antes do seu estabelecimento completo e
apocalíptico. Esse novo estágio não aparenta ser a presença do reino na própria pessoa de Jesus,
como foi discutido anteriormente (ainda que as epístolas relacionem esses conceitos). Embora
não seja totalmente claro nas parábolas que essa presença recém revelada do reino seguirá a cruz, é
evidente que ela é um estágio que precede a vinda apocalíptica do reino.
Uma coleção útil das parábolas sobre esse assunto é vista em Mateus 13. Jesus explica porque
ele ensina em parábolas.

Ao que respondeu: Porque a vós outros é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas
àqueles não lhes é isso concedido [...] Bem-aventurados, porém, os vossos olhos, porque veem;
e os vossos ouvidos, porque ouvem. Pois em verdade vos digo que muitos profetas e justos
desejaram ver o que vedes e não viram; e ouvir o que ouvis e não ouviram (Mateus 13.11, 16-
17).

Marcos nos diz que apesar de Jesus ensinar em parábolas “porém, explicava em particular aos
seus próprios discípulos” (Mc 4.34). A parábola do semeador (Mt 13.3-9, 18-23) fala sobre esse
assunto também. Somente alguns (isto é, os seus discípulos) recebem “a palavra do reino”
(13.19) e frutificam.
Uma das parábolas mais importantes, é a que está no começo da coleção de Mateus 13
(depois da parábola introdutória do Semeador), a parábola do joio e do trigo (13.24-30). Jesus
explica a parábola a seus discípulos (13.36-43): o Filho do Homem irá plantar “os filhos do
reino” no mundo, onde eles coexistirão com “os filhos do maligno” até “o fim das eras”.

O Filho do homem enviará os seus anjos, e eles tirarão do seu Reino tudo o que faz tropeçar e
todos os que praticam o mal. Eles os lançarão na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger
de dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino do seu Pai. Aquele que tem ouvidos,
ouça (Mateus 13.41-43, NVI).

A vinda do Filho do Homem na conclusão dessa passagem é consistente com o ensino de Jesus,
em outro lugar, acerca da vinda do Filho do Homem de uma maneira apocalíptica, executando o
julgamento e instituindo o reino de Deus. O que difere, entretanto, é a frase: “eles tirarão do seu
reino tudo o que faz tropeçar”. Isso parece identificar uma situação antes da vinda do Filho do
Homem com o seu reino. Tanto aqueles que pertencem a ele quanto aqueles que serão
condenados estão presentes nessa forma do reino. Depois da sua vinda, somente os salvos estarão
presentes no reino. Ambas as condições, antes e depois de sua vinda, são chamadas “reino”. Já
que a fase do reino antes dessa vinda é o único ensino nessa parábola, parece ser o “mistério do
reino dos céus” que a parábola nos dá. Não é um reino separado daquele que se segue, mas sim
uma fase, uma forma misteriosa dele.
A parábola da semente de mostarda (13.31-32) e do fermento (13.33), falam de um
desenvolvimento orgânico do reino, de um pequeno começo para a completa realidade do reino.
A parábola da semente de mostarda usa até mesmo uma ilustração de Daniel 4.12, onde ela
descreve um reino imperial. Essas parábolas não deveriam levar a implicações acerca da taxa de
crescimento do reino. Elas não implicam em uma progressão matemática uniforme. Elas não
descartam aparentes “atrasos”. Tampouco contradizem o ensino do joio e do trigo. O mal estará
presente antes da vinda do Filho do Homem. Mas essas parábolas adicionam isso ao ensino da
parábola posterior: o começo da fase do reino que precede o apocalipse será pequeno, mas está
organicamente relacionado a esse reino que está por vir. É o reino escatológico em uma forma
inicial. Ele crescerá e se desenvolverá durante a dispensação antes da vinda do Filho do Homem.
Na consumação, o reino escatológico será revelado em toda sua plenitude, como predito pelos
profetas e desenvolvido por Jesus.
A parábola do tesouro no campo (13.44) e a do mercador e da pérola (13.45-46) possuem
similaridades literárias que as unem. Elas parecem falar de dois tipos de pessoas que passam a
possuir o reino durante a dispensação que precede o apocalipse. Algumas pessoas, como a do
campo, são ignorantes quanto ao reino. Mas, quando o encontram, elas reconhecem que ele é
digno de tudo que elas têm para possuí-lo. Outras, como o mercador, estão de fato à procura do
reino. Quando elas o encontram, reconhecem da mesma forma que ele é digno de tudo que elas
possuem. Esses dois seriam contados como “filhos do reino” na parábola do trigo e do joio.
A parábola do dono da casa (13.51-52) forma uma importante conclusão para essa coleção.
Assim como a parábola introdutória do semeador, ela fala da revelação sobre o reino. Acerca do
entendimento deles do seu ensino, Jesus diz:

Por isso, todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira do
seu depósito coisas novas e coisas velhas (Mateus 13.52).

O novo tesouro corresponde ao novo conhecimento que Jesus lhe deu a respeito “do reino dos
céus”. Esses são “mistérios do reino dos céus”. O tesouro antigo seriam as profecias já reveladas
acerca do reino. Tanto as novas quanto as antigas estão em possessão do dono da casa. As novas
não substituem as antigas e as antigas não excluem as novas. Elas não são dois tesouros separados.
As novas verdades complementam as antigas verdades para produzir um “tesouro”, o reino dos
céus.
Em resumo, nessas parábolas, Jesus parece predizer uma forma do reino que precederá sua
esperada chegada apocalíptica. Essa é uma forma do reino diferente daquela sobre a própria
presença de Jesus no mundo (que ele identificou como uma presença do reino). Em vez disso,
consiste na presença dos “filhos do reino” (isto é, pessoas que verdadeiramente pertencem ao
reino escatológico) no mundo antes da vinda do Filho do Homem. O próprio Filho do Homem
irá colocá-las no mundo em uma “semeadura” inicial que parecerá pequena. Mas na sua
realidade é aquela do reino escatológico, e ela crescerá e se desenvolverá no mundo, mesmo com
a presença do mal, até o tempo da vinda do Filho do Homem.
O REINO ESCATOLÓGICO DE DEUS ENSINADO POR JESUS

O REINO ESCATOLÓGICO NA VIDA E ESPERANÇA DA IGREJA


O testemunho da igreja, desde os seus primeiros dias até o presente, é que Jesus é o Cristo. Ele
foi investido com a autoridade real do reino escatológico de Deus na sua ascensão aos céus. Ele
está assentado à direita de Deus, a posição apropriada para o Rei davídico. Ele espera no Pai pelo
dia do seu retorno, quando ele governará pessoalmente e eternamente os povos da terra,
cumprindo as bênçãos das alianças da promessa.
O testemunho da igreja sobre Jesus é baseado no relacionamento que Jesus estabeleceu com
ela a partir da sua posição de ascensão nos céus. Ele já proveu a expiação que torna possível uma
nova aliança em todas as suas bênçãos. Sua ressurreição dos mortos revelou e confirmou essas
bênçãos nele mesmo — as primícias dos mortos. Entretanto, poucos dias depois da sua ascensão
aos céus, no dia de Pentecostes de Israel, Jesus (agindo dos céus) deu a seus discípulos um
“adiantamento” das bênçãos da nova aliança do reino, a dádiva do Espírito Santo. Essa ação fez
dos seus discípulos uma comunidade do reino escatológico de Deus, sob a bênção de Jesus, o
Messias. Todos aqueles que vêm à fé em Jesus são da mesma forma abençoados pela dádiva do
Espírito Santo e se juntam a essa comunidade do reino, que veio a ser conhecida como a igreja.
Jesus havia predito que seus discípulos seriam “batizados pelo Espírito”; predisse que ele
próprio enviaria o Espírito a eles depois do seu retorno ao Pai. Ele predisse que qualquer um que
cresse nele seria nascido do Espírito, uma condição necessária para ver o reino de Deus (Jo 3.3).
Depois de 40 dias de instruções finais acerca do reino de Deus (At 1.3), incluindo a restauração
política e nacional de Israel (o tempo que ainda não foi revelado; At 1.6), os discípulos foram
ordenados a esperar em Jerusalém “pelo o que o Pai tinha prometido” e aquilo que ele tinha
ensinado para eles esperarem.

Porque João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo
[...], mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas
tanto em Jerusalém como em toda Judeia e Samaria e até aos confins da terra (Atos 1.5,8).

Quando o Espírito veio sobre os discípulos, eles viram isso como um ato messiânico de Jesus,
indicando que ele tinha sido de fato recebido pelo Pai nos céus, e tinha sido concedida a ele
autoridade messiânica (do reino) e que começava a agir com essa autoridade:

Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo,
derramou isto que vedes e ouvis [...] Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de
que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo [...] Respondeu-lhes Pedro:
Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos
vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo(Atos 2.33, 36, 38).

A comunidade primitiva dos crentes era formada apenas de judeus. Eles viam a si mesmos como
o remanescente da fé que herdaria o reino quando Jesus descesse dos céus como o apocalíptico
Filho do Homem. À medida que cumpriam seu mandamento de proclamar a todos os povos —
incluindo samaritanos e gentios — as boas novas do reino de Deus (At 8.12; 28.23; 28-31), eles
viram muitas dessas pessoas crerem em Jesus. Eles também testemunharam o fato de que Jesus
concedeu sobre esses samaritanos e gentios crentes a mesma bênção do Espírito Santo que ele os
deu (At 8.14-17; 10.44-48; 11.15-18). Eles interpretaram essa ação como Deus “reunindo
dentre as nações um povo para o seu nome” (At 15.14). Tal atividade foi vista como uma parte e
parcela do plano do reino escatológico, como predito nas passagens de Isaías 49.6 e Amós 9.11-
12 (veja At 13.46-48; 15.14-18). Juntos, os crentes constituíram o microcosmo do reino
vindouro. Todos os povos, judeus e gentios, estariam sujeitos ao governo do Cristo e seriam
abençoados por ele.
A natureza da bênção de Cristo durante esse tempo de ascensão, e a equidade da concessão
sobre judeus e gentios (assim como para ambos os gêneros e classes sociais), trouxe para a história
a realidade conhecida como a igreja. Na medida em que viviam na esperança da vinda de Jesus,
judeus e gentios crentes se reuniam regularmente para adorar ao Senhor e encorajar uns aos
outros na fé. A sua assembleia unida pela sua única fé em um Deus e um Senhor messiânico e na
comunhão de um Espírito.
Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo
muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo. Pois, em um só
Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos,
quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito (1 Coríntios 12.12-13).

Porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode
haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós
sois um em Cristo Jesus (Gálatas 3.27-28).

E pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a
qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em toda as coisas [...] Há somente
um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação;
há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos,
age por meio de todos e está em todos (Efésios 1.22-23; 4.4-6).

A Igreja Como a Presente Revelação do Reino. Muito já foi dito acerca do testemunho do
Novo Testamento para a presente autoridade Messiânica de Jesus. Repetidamente, ele é retratado
estando à direita de Deus no cumprimento das promessas que pertencem à aliança davídica. Sua
entronização e autoridade presente são messiânicas. É como o Cristo que ele está presentemente
ativo. Temos visto que o Novo Testamento proclama esse Cristo sendo Deus. Porém, ele é Deus
encarnado, e encarnado não como uma humanidade genérica, mas como o filho de Davi. Nesse
tempo da sua ascensão, ele não se tornou, nem age como Deus desencarnado. Na linguagem do
Novo Testamento, todas as suas atividades, incluindo todas as suas relações com a igreja, são
atribuídas a Jesus (seu nome humano) Cristo (seu título real do reinado davídico).
Na carta de Paulo para a igreja de Colosso, isto é, “aos santos e fiéis irmãos em Cristo em
Colosso”, ele descreve os crentes como tendo sido libertos “do domínio das trevas e transferidos
para o reino do seu (do pai) amado filho” (Cl 1.13). Já percebemos que essa linguagem do reino
pertence à aliança davídica. Esse é o reino messiânico para onde os membros da igreja de
Colossos foram transferidos. Além do mais, o contexto indica que Paulo está falando da presente
relação deles com o reino. Ele não está falando de maneira proléptica quanto à futura
transferência deles para esse reino, como se a presente identidade deles em Cristo pudesse ser
descrita como estando debaixo do “domínio das trevas”.12
A oração de Paulo em Colossenses 1.9-12 assume o presente estado dos santos como
membros do reino escatológico, pois, ele ora para que Deus dê atualmente a eles as bênçãos
pertencentes a esse reino: o conhecimento de Deus, o fruto da justiça e a obediência a Cristo
(1.9-10). Em Colossenses 3, Paulo fala da presente identificação da igreja com a morte, a
ressurreição e a ascensão de Cristo. Eles devem se identificar em seu presente comportamento
com o Messias ressurreto à direita de Deus (3.1-2). O que se segue é uma lista de exortações
guiando-os à justiça. A santificação para qual a igreja é chamada é o presente governo, ou reino,
do Messias na igreja (3.15). Ela antecipa a futura vinda de Cristo em cujo tempo ele será
“revelado com ele em glória” (3.4).
A identidade da igreja como uma realidade presente do reino escatológico vindouro recebe
uma explicação posterior em Efésios. A igreja espera uma herança na vinda do “reino de Cristo e
de Deus” (5.5). Sua esperança está fixa nas “riquezas da glória da sua herança nos santos” (1.18).
Mas a presente realidade da igreja é devida ao fato que “tendo nele também crido, fostes selados
com o Santo Espírito da promessa”(Ef 1.13). O Espírito Santo foi dado como um “penhor da
nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória” (1.14).
Um penhor ou adiantamento é um pagamento parcial que antecede um pagamento futuro
por completo. O adiantamento garante o futuro, assim como ele próprio é uma parte da
realidade futura. De acordo com isso, a obra a qual o Espírito Santo faz na igreja e pela qual a
igreja é constituída nessa realidade como a igreja, é uma revelação parcial no presente daquele
reino que está por vir no futuro. Visto que sua realidade pertence ao reino e que ele existe no
presente, consequentemente a igreja deve ser entendida como uma forma presente do reino
escatológico, uma presença que garante a futura vinda desse reino em sua total plenitude.
Essa visão da igreja é posteriormente desenvolvida em Efésios 1.15-2.22. Paulo ora para que
a igreja possa conhecer a sua esperança, “as coisas da glória da sua herança (isto é, o reino, cf.
Ef 5.5) nos santos” e a “incomparável grandeza do seu poder para conosco” (1.18-19).Esse poder
é, então, explicado em 1.20-2.22 numa descrição da presente atividade do Messias edificando a
igreja. Já observamos como toda essa passagem é descrita na linguagem da promessa da aliança
davídica. O Messias foi ressurreto, assentado (entronizado) à direita de Deus, todas as coisas,
especialmente todo governo e autoridade, foram sujeitos a ele e ele está edificando a casa de
Deus.
A casa de Deus que o Messias está edificando supera em muito aquela que foi construída por
Salomão, pois Jesus está edificando uma casa “viva” (cf. 1Pe 2.5). A humanidade redimida será o
lugar de habitação de Deus. Isso foi, é claro, previsto na promessa da nova aliança, que o Espírito
de Deus habitaria em seu povo. Paulo vê essa promessa cumprida no templo vivo, a igreja
(2Co 6.16 citando Ez 37.27). Efésios 2 oferece uma explicação expandida dessas ideias.
Deus, trabalhando no Messias e por meio dele, torna o povo vivo (2.1-5).13 Nós
compartilhamos do poder que foi revelado no e através do próprio Messias. Nós fomos
“vivificados [...] juntamente com Cristo [...] e ressuscitados com ele e assentados [...] com ele [...]
em Cristo Jesus” (2.5-6). O próprio Messias está reconciliando judeus e gentios que assim são
vivificados nele. Ele estabelece a paz entre esses povos outrora hostis ao se unirem a ele em sua
expiação (2.15-17; cf. Cl 3.15). O estabelecimento de paz é exatamente o que os profetas
esperavam que o Messias fizesse; é um dos elementos mais proeminentes do reino escatológico
junto à justiça. Essa paz é estabelecida através de uma nova aliança (Ef 2.14-15, 22). Ao manter a
promessa abraâmica de abençoar todos os povos, os gentios crentes juntamente com os judeus
crentes são abençoados com as bênçãos da nova aliança de renovo espiritual. Essa é a ação chave
que traz à existência os povos redimidos do reino escatológico, todos vivendo em paz, cheios com
o conhecimento do Senhor.14 Esse “novo homem” é a humanidade escatológica.
O “tornar” de “dois (judeus e gentios em Cristo) em um novo homem” (2. 15) é então
elaborado em 2.18-22 com uma mudança de metáfora. A nova humanidade é o templo de Deus
que Jesus está construindo. O messias não é somente o construtor do templo, mas também o
sumo sacerdote, a pedra angular e o próprio templo (2.18-22), uma conjunção de imagens
devido à convergência de várias linhas da profecia usando diferentes metáforas, mas todas
relacionadas ao templo. O próprio “templo” é constituído como um templo ao ser “uma
habitação de Deus no espírito” (2.22). Tanto judeus quanto gentios em Cristo têm “acesso em
um Espírito ao Pai” (2.18).
Isso nos leva de volta a Efésios 1.13-14. O espírito é o “penhor”, o pagamento adiantado de
nossa futura herança, que é “o reino de Cristo e de Deus” (Ef 5.5). Ele cria em nós na presente
era uma realidade que pertence ao reino futuro, assim trazendo o reino escatológico em existência
presente. Tudo isso é elaborado em 1.15-22 na linguagem que retrata o Messias entronizado e
engajado na atividade do reino. Essa atividade é a realidade presente de unir judeus e gentios
através do adiantamento do reino em uma presente realidade do reino!
As mudanças introduzidas por Jesus na relação dos judeus e gentios com Deus são tão
suficientemente significativas que Paulo as identifica como uma nova dispensação (Ef 3.4-9). A
dispensação anterior revelou o reino de Deus debaixo da aliança mosaica. A inauguração da nova
aliança, do Messias escatológico, trouxe realidades pertencentes ao reino escatológico até a
existência presente. Aqui é onde a igreja encontra sua identidade. Toda a linguagem descrevendo a
igreja no Novo Testamento é diretamente extraída ou é compatível com os gêneros da promessa da
aliança e do reino messiânico.
A atual dispensação não é a total e completa revelação do reino escatológico. Ela é um estágio
progressivo na revelação desse reino. As mudanças que acompanham a revelação final do reino
escatológico são suficientemente significativas para constituir outra mudança dispensacional final
na relação de Deus com a humanidade (Ef 1.10). As bênçãos presentes do reino são nada mais
que um “adiantamento”. Na dispensação futura, o “pagamento” será recebido por completo. A
bênção do espírito é dada no presente em condições mortais, depois em imortalidade de
ressurreição (Rm 8.10-11; 2Co 4.7-5.9). Não somos ainda glorificados, não somos ainda
perfeitos. As bênçãos presentes do renovo espiritual são dadas progressivamente (2Co 3.18), em
condições dispersas com a ausência de Cristo. No futuro, quando Cristo for revelado, as bênçãos
do reino serão dadas completamente.
O REINO ESCATOLÓGICO PRESENTE NA IGREJA

Sendo uma dispensação do reino, a igreja corresponde àquela forma misteriosa do reino que
Jesus revelou nas parábolas de Mateus 13. Ela é uma comunidade de cidadãos do reino antes da
vinda do Filho do Homem. Ela é uma nova revelação de Deus, um mistério do reino. Mas é um
mistério do reino. Apesar de nova no progresso da revelação, não é totalmente diferente, nem é
um plano secundário e paralelo de Deus. Conforme ilustrado na parábola do dono da casa
(Mt 13.52), essa nova revelação complementa a revelação que foi dada anteriormente,
adicionando novos tesouros a casa, os novos e os velhos estando lado a lado de forma
complementar.

A Esperança da Igreja, o Reino Escatológico Futuro. A esperança da igreja está centrada no


retorno de Cristo Jesus. Em 1 Tessalonicenses 1.10, Paulo descreveu a igreja como esperando
“por seu filho dos céus, a quem ressuscitou dos mortos, Jesus, que nos livra da ira vindoura”.
Escreve que a graça nos instrui a estar “aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória
do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus” (Tt 2.13). Novamente ele diz: “aguardamos o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fp 3.20). Pedro escreve: “esperai inteiramente na graça que vos
está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo” (1Pe 1.13). O último livro no nosso Novo
Testamento, “a revelação de Jesus Cristo”, é uma obra que antevê e proclama a sua vinda, com
anúncios agrupados no começo (“eis que ele vem com as nuvens”; 1.7) e no fim (“eis que venho
em breve [...] venho em breve” 22.12, 20 — no meio de um coral que se ergue em “vem, Senhor
Jesus”, cf. 1Co 16.22).
O Dia do Senhor. O que a igreja espera que aconteça na vinda de Jesus está correlacionado de
forma geral com as predições do Antigo Testamento com respeito à vinda do reino. Será o Dia
do Senhor, um tempo de ira e julgamento contra o pecado e o mal (1Ts 5.1-9; 2Pe 2.9; 3.7-12;
Ap 6.17; 16.14). É o “Dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.8); que acontece na sua
“revelação” dos céus (1Co 1.7). As descrições literárias do Antigo Testamento da vinda de Deus
vindo em ira no Dia do Senhor estão combinadas com o novo entendimento do Messias, como
foi ensinado por Jesus. A noção de que o julgamento foi confiado e será executado pelo Filho de
Deus (Messias) que virá nas nuvens do céu, como o Filho do Homem, é transmitida nos ensinos
dos apóstolos. Vemos isso na forma como certas coisas ditas por Jesus marcam as descrições do
Novo Testamento do Dia do Senhor — tal como a ilustração de que o dia está vindo como um
ladrão (1Ts 5.2; 2Pe 3.10; Ap 16.14-15). Porém, primariamente, vimos isso na forma como a
vinda de Deus no Dia do Senhor é apresentada como a vinda de Jesus.

E a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do céu se manifestar o
Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que
não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus.
Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu
poder, quando vier para ser glorificado nos seus santos e ser admirado em todos os que
creram, naquele dia (porquanto foi crido entre vós o nosso testemunho
(2 Tessalonicenses 1.7-10).

O julgamento que Jesus traz começa primeiro com “a casa de Deus” (1Pe 4.17; cf. 1Co 4.5;
Tg 5.7-9; 1Jo 2.28) para revelar o que é verdadeiro e duradouro. De acordo com isso, Paulo diz
que o Dia do Senhor revelará as obras de cada um. Alguns sofrerão perda ainda que sejam salvos
(1Co 3.13-15). O julgamento então procede para os descrentes.
Entretanto, as passagens que relacionam os crentes ao Dia do Senhor falam majoritariamente
de libertação, um tema que também é consistente com o Antigo Testamento. A habitação de
Deus e seu amor em nós nos dá confiança para o dia do julgamento (1Jo 4.17). Paulo, da mesma
forma, fala da confiança que “aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até o Dia
de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Aos Coríntios ele escreve: “nosso Senhor Jesus Cristo, o qual também
vos confirmará até o fim, para serdes irrepreensíveis no Dia de nosso Senhor Jesus Cristo”
(1Co 1.7-8). Os crentes se regozijarão no culminar do crescimento e progresso espiritual uns dos
outros, à medida que o Senhor concluir sua salvação no dia de sua vinda (Fp 1.10; 2.16;
2Co 1.14).
A libertação no Dia do Senhor é um tema especial em 1 Tessalonicenses. Na sua volta, Jesus
“nos livra da ira vindoura” (1.10). Paulo ensina para a igreja que o Dia do Senhor não irá
“surpreendê-los como um ladrão” (5.4). Isso é explicado posteriormente em 5.9, “porque Deus
não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo”.
No contexto, essa libertação parece ser a bênção da ressurreição e a translação para a imortalidade
que Cristo concederá aos seus na sua vinda (1Ts 4.13-18), um evento que é chamado de
arrebatamento (do verbo harpazo,“arrebatar”, em 1Ts 4.17). Essa libertação, ou arrebatamento,
parece coincidir com o começo, ou vinda, do Dia do Senhor, já que esse é o foco em
1 Tessalonicenses 5.2-4.15
O tema da libertação no retorno de Cristo é dito em outro lugar no Novo Testamento. Os
crentes esperam ser salvos, ressurretos, recompensados com uma coroa da vida, transformados
segundo a imagem de Cristo e glorificados em sua glória (Jo 14.1-3; Cl 3.4; Fp 3.20-21;
2Tm 4.8; 1Pe 1.7; 4.13; 1Jo 3.2).
Um Reino Futuro. Com a vinda de Cristo, vem o reino escatológico em sua manifestação
futura. Em Apocalipse 19.11-16, a vinda de Jesus é vista em uma fusão de múltiplas imagens
tiradas, em sua maioria, do Antigo Testamento, incluído várias descrições messiânicas. Entre elas
está: “ele governará [as nações] com cetro de ferro” (19.15)
Repetidamente, na gramática do Novo Testamento, o reino é mencionado no tempo futuro,
como algo que virá e será herdado no futuro. Crentes “entrarão” nele em tempo futuro
(At 14.22; 2Pe 1.11). Tiago fala daqueles que são “herdeiros do reino que ele prometeu aos que
o amam” (Tg 2.5). Paulo fala daqueles que “não herdarão” o reino (1Co 6.9-10; Gl 5.21;
Ef 5.5). A igreja de Tessalônica é descrita como sofrendo pelo reino de Deus (2Ts 1.5),
“esperando alívio [...] Quando o Senhor Jesus foi revelado lá do céu [...] Para ser glorificado em
seus santos naquele dia” (1.7, 10). Paulo admoesta Timóteo por meio de “Cristo Jesus, que há de
julgar vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu reino” (2Tm 4.1).
O reino que virá é o reino de Deus e do seu Messias (Ef 5.5). Frequentemente, ele é
chamado de reino de Deus, assim como também é o reino de Cristo (2Tm 4.1; 2Pe 1.11;
Ap 11.15). Esse reino messiânico é eterno (2Pe 1.11; Ap 11.15), “uma herança incorruptível, sem
mácula, imarcescível” (1Pe 1.4).
O Reino na Terra. Na presente era, esse reino, essa “herança”, é dito que está “reservada nos
céus” (1Pe 1.4). Tal linguagem corresponde à forte ênfase que vimos na presente entronização do
Messias nos céus, e de lá, Cristo governa presentemente a igreja pelo Espírito Santo. Paulo
também ensinou que antes da vinda de Cristo, as almas dos cristãos mortos se juntariam a Cristo
nos céus (2Co 5.6-8). Ele acreditava que na sua própria morte, ele estaria com Cristo (Fp 1.21-
23) e isso parece ser seu pensamento quando ele escreve que “o Senhor [...] me levará salvo para
o seu reino celestial” (2Tm 4.18). Na era presente, os crentes devem pensar em si mesmos em
relação com Cristo, entronizados nos céus. Deus “nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares
celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.6). Devemos “buscar as coisas lá do alto, onde Cristo vive,
assentado à direita de Deus [...] porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com
Cristo, em Deus” (Cl 3.1, 3).
É dito que o reino está nos céus porque o Messias está presentemente nos céus, e as almas de
todos os mortos que herdarão o reino estão com ele aguardando a ressurreição (cf. Ap 6.10-11).
A igreja que está “em Cristo” tem, assim, uma identidade celestial nesta dispensação. Porém,
conforme vimos, Cristo retornará para a terra. “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar,
então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.4). Essa “revelação” será a
conclusão da nossa salvação (1Pe 1.7-9, 13), nossa ressurreição dos mortos (1Pe 1.3), que nos
leva à herança naquela forma futura do reino escatológico (1Co 15.50-57). Correspondendo a
nossa ressurreição dos mortos estará à renovação da terra, o local do reino futuro.

Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser
comparados com a glória a ser revelada em nós.16 A ardente expectativa da criação aguarda a
revelação dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas
por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do
cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas
também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo,
aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo (Romanos 8.18-23).

O local terreno (embora renovado) do reino escatológico é reforçado em 2 Pedro 3.13 onde
lemos: “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais
habita justiça”. Da mesma forma João antevê “um novo céu e uma nova terra” onde Deus
“estará” com a humanidade redimida e “eles serão seu povo e o próprio Deus estará com eles”
(Ap 21.1, 3).
Na visão de João, o “povo” que constitui o reino escatológico da nova terra está agrupado em
“nações” (Ap 21.24, 26; 22.2). Esse é o mesmo termo que é usado em Apocalipse 2.26-27,
citando Salmos 2.8-9 em referência ao Messias que governa as nações, e em Apocalipse 19.15,
que conflui a linguagem de Salmos 2.8-9 com a de Isaías 11.4. A visão de João em
Apocalipse 21-22 é moldada nas imagens das profecias do Antigo Testamento, nas quais, o
Messias governará politicamente todas as nações. Alguns escritos do Novo Testamento
antecipam o fato de que os crentes reinarão com Cristo (2Tm 2.12); com ele, eles julgarão o
mundo (1Co 6.2). As cartas das igrejas em Apocalipse 2-3 também repetem essa expectativa.
O local estabelecido é Sião, a Cidade de Deus, a nova (renovada) Jerusalém (Ap 21.2ss)
descrita em grande resplendor. As nações “andarão mediante a sua luz, e os reis da terra lhe
trazem a sua glória” (Ap 21.24). Essa imagem reafirma as profecias do Antigo Testamento acerca
da exaltação escatológica de Sião como encontrada, por exemplo, em Isaías 60 e em Isaías 2.2-4
(cf. Mq 4.1-4). É dito que a Sião escatológica está nos céus na presente era (Gl 4; Fp 3.20;
Hb 12.22-24), porque o rei está presente nos céus. O rei preparando a cidade (Jo 14.1-3), ainda
que esteja preparando nossa herança do reino (1Pe 1.4). Os crentes são cidadãos da cidade agora,
ainda que estejam presentemente no reino (Fp 3.20; Cl 1.13), em virtude das bênçãos da nova
aliança inauguradas presentemente. Entretanto, assim como é dito que o reino virá no futuro,
assim a cidade é, da mesma forma, a cidade que está por vir (Hb 13.14).17
O governo político sobre as nações coincide com a dádiva de justiça da nova aliança. O
Novo Testamento reafirma essa característica geralmente repetida da esperança do Antigo
Testamento de um reino vindouro: Será marcado pela justiça, santidade e piedade.
O Cumprimento das Promessas de Israel. O reino escatológico retratado nessas passagens é
bem compatível com a esperança do Antigo Testamento. E isso inclui uma esperança específica
para Israel. Muitos escritos do Novo Testamento dizem respeito à extensão das presentes bênçãos
do reino para gentios crentes, assim como é consistente com as promessas do Antigo Testamento
acerca dos gentios. Entretanto, o Novo Testamento nunca apresenta esses eventos como uma
substituição das esperanças específicas de Israel. Em vez disso, eles são argumentados como
compatíveis ou complementares às esperanças de Israel. Alguns têm perguntado por que o Novo
Testamento não destaca um retorno para a terra como as profecias do Antigo Testamento fazem.
Devemos lembrar que, no tempo em que as epístolas do Novo Testamento foram escritas, os
judeus estavam vivendo na terra. Apesar de ainda existirem muitos em dispersão, não obstante,
um retorno suficiente aconteceu para constituir uma presença política judaica na terra da
promessa da aliança. A questão nos escritos do Novo Testamento não era um retorno para terra
(já que eles já estavam na terra), mas o retorno do Messias e um relacionamento apropriado com
ele que garantiria uma herança eterna no reino da glória que ele estabeleceria aqui, nessa terra.
A expectativa que o Messias governará todas as nações em uma terra renovada certamente
não excluiu a nação de Israel! Um império mundial de nações gentílicas com o Messias de Israel
no topo, mas com Israel faltando não é uma explanação crível da escatologia do primeiro século,
particularmente de uma igreja que é primariamente judaica. O concílio de Jerusalém em Atos 15
não aprovou a missão gentílica porque eles esperavam que o cristianismo fosse uma religião
gentílica. Eles viram, através de Amós 9, que o reino escatológico estenderia bênçãos aos gentios
assim como para Israel, não que ele seria um reino gentílico. A reação em Jerusalém à missão de
Pedro para Cornélio foi “Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento
para a vida” (At 11.18).
A questão nos escritos do Novo Testamento era a inclusão gentílica e não a exclusão de Israel.
Mas também era acerca da salvação do remanescente no Dia do Senhor, que precederia a revelação
total do reino. O Novo Testamento fala do julgamento que vem sobre judeus e gentios. Somente
aqueles que são achados na Rocha, cuja fé está em Cristo, serão salvos. A mensagem em Atos
chama a casa de Israel ao arrependimento, para salvação, assim como chamam os gentios para
salvação. Em lugar nenhum eles acrescentam uma nova ideia de que as bênçãos nacionais de
Israel seriam abandonadas.
Em duas passagens, o futuro nacional de Israel é definitivamente garantido. Já observamos o
segundo discurso de Pedro em Jerusalém. Ele teria sido incluído com o resto dos discípulos na
questão relatada em Atos 1.6: “Senhor, este é o tempo que restaurarás o reino a Israel?” Jesus
respondeu diretamente à questão deles acerca do tempo. Ele certamente não ressignificou o
entendimento deles acerca da “restauração do reino a Israel”. Alguns dias depois, vemos Pedro
pregando para as multidões em Jerusalém, “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos” com uma visão
da volta do “Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é necessário que o céu receba até aos
tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas
desde a antiguidade” (At 3.19-21). Não pode haver dúvida de que essa “restauração” acerca da
qual os profetas do Antigo Testamento falaram tinham como foco o Israel nacional.
Paulo dirige a questão da salvação nacional de Israel em sua carta aos Romanos. O evangelho
que ele pregou (Rm 1.1-4) diz respeito à promessa que Deus “outrora, prometido por intermédio
dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio
da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de
santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor”.
Essa boa nova acerca do Messias é “primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16).
Em talvez a mais famosa de todas as suas cartas, Paulo explica as bênçãos da salvação que
vêm através de Jesus Cristo para todos os que creem. Ele argumenta ao longo dela o fato de que
os gentios, assim como os judeus, são justificados e santificados pela graça de Cristo.
Porém, ele também levanta a questão acerca da “vantagem” dos judeus, o “benefício” da
circuncisão (3.1). A vantagem não está em ter Deus todo para eles mesmos, pois há um Deus
sobre todos os povos (3.29). Nem o benefício é de serem mais justos que os gentios. O problema
do pecado afeta tanto judeus quanto gentios da mesma forma (3.9). A justificação para ambos
vem pela fé (3.30).
Os benefícios para os judeus, os circuncidados, em Romanos 3.1-2, devem ser lidos à luz de
2.17-29. Esses são os benefícios para os verdadeiros judeus — que não é um nome para os gentios
crentes, mas se refere aos judeus étnicos cujos corações são circuncidados pelo Espírito de Deus.
É para eles (o remanescente da fé, como declarado pelo Antigo Testamento) que os oráculos de
Deus pertencem verdadeiramente. A descrença de alguns judeus não anulará a fidelidade de Deus
ao seu remanescente! (3.3-4) Os oráculos de Deus, que contém suas promessas para o Israel
crente, serão cumpridos a despeito da pecaminosidade radical que atinge todas as pessoas (3.4-9).
Paulo argumenta que pela graça da justificação e a justiça da nova aliança, a salvação de Deus
levará à revelação de uma humanidade imortal em uma terra renovada (8.11, 18-23). Entretanto,
quando ele volta à questão de Israel, ele lamenta em Romanos 9-11 que muitos judeus tenham
perdido a salvação que vem pela fé em Cristo. Ele relembra as bênçãos que distinguem judeus
dos gentios na antiga dispensação: “a adoção de filhos, a glória divina, as alianças, concessão da
lei, o culto e as promessas”. A eles pertencem “os patriarcas” e deles descende a linhagem humana
de Cristo (9.4-5).
Ainda assim, Paulo afirma que a palavra de Deus não falhou (9.6). A palavra de Deus
certamente inclui a Lei e as ordenanças do templo, mas tem uma referência especial às
“promessas” como é visto na repetição da palavra promessa em 9.8-9. O argumento de Paulo se
concentra novamente no “remanescente” da fé (9.27) como foi predito pelos profetas. Apesar da
maioria de Israel cair sob a ira de Deus contra a injustiça (9.30-32; cf. 1.18), um remanescente
existe pela eleição de Deus (11.5). Eles encontram as riquezas da salvação de Deus em Jesus, o
Messias (10.11-13), bênçãos que vêm até eles pela graça e não por obras (11.5-6).
O remanescente de Israel encontrou as bênçãos de Deus enquanto o resto foi endurecido,
levando à salvação dos gentios (11.7, 11-12). Deus não rejeitou seu povo (11.2). O
endurecimento de Israel é parcial e temporário.
A figura da videira (Rm 11.16-24) fala dos “dons e do chamado de Deus” (11.29), o favor da
bênção de Deus “por causa dos patriarcas” (11.28). Essas bênçãos vêm aos descendentes naturais
dos patriarcas (ramos naturais na ilustração) pela fé (como visto no fato de que os descrentes são
“cortados devido à sua incredulidade” [11.20], ainda assim podem ser “enxertados” novamente
ao vir à fé [11.23]). A bênção também vem aos gentios na videira (isto é, em Abraão, ou mais
especificamente, em seu descendente, o Messias). Não sendo descendentes naturais, são
“enxertados”. Porém eles também vêm a um estado permanente de bênção somente pela fé
(11.20).
Paulo então olha para a salvação de “todo o Israel” na vinda do Salvador.18 O Messias
cumprirá a nova aliança para Israel como um todo, conforme predito pelos profetas do Antigo
Testamento (11.26-27). É importante notar que a aliança à qual se refere a citação em
Romanos 11.26-27 (Is 59.20-21) definitivamente inclui todas as bênçãos da salvação nacional,
incluindo a herança na terra da promessa. Os próximos versos em Isaías predizem a exaltação de
Jerusalém como a capital do reino escatológico (Is 60), a mesma passagem que influencia a visão
de João em Apocalipse 21-22. A nova aliança reafirmou a mesma esperança nacional expressa nas
outras alianças. E Paulo declara que “os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” (11.29).
Nenhuma alegação já feita por Paulo diz que Deus tenha descartado, reformulado, ou
ressignificado as promessas. Ele está convencido que Deus cumprirá sua palavra, a despeito da
pecaminosidade que traz sua ira. Isso acontecerá através de Jesus, o Messias, o Cristo. Na sua
vinda, o dom da justiça, que é manifestado em um remanescente, agora será revelado em uma
nação que emergirá no Dia do Senhor, redimida e purificada, para herdar as bênçãos
“irrevogáveis” da promessa da aliança “pois [...] Cristo foi constituído ministro da circuncisão,
em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais” (15.8).
Entretanto, a preocupação dominante de Paulo é explicar que as bênçãos antevistas
escatologicamente para os gentios (“abençoados nele”) são presentemente inauguradas e recebidas
por eles através do evangelho (1.5; 15.9-19; 16.25-26). Para ele, não é a herança futura de Israel
que está em jogo, mas é a verdade da presente bênção gentílica através da fé em Cristo.

UM REINO MILENAR INTERMEDIÁRIO


O pré-milenismo é a crença de um futuro reino messiânico, com mil anos de duração, que irá
intervir entre o retorno de Cristo à terra e o reino escatológico eterno. O reino milenar constitui
outro estágio na revelação do reino escatológico. Ele segue a revelação do reino na pessoa de
Cristo e a revelação do reino na comunidade da igreja (essa forma do reino presente hoje).
Temos visto acima que a esperança da igreja está fixada no retorno de Cristo, é o tempo ao qual a
herança “do reino eterno do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” é esperada. Não obstante, na
revelação dada a João, existe a visão de um reino intermediário de mil anos durante o qual Cristo
governa a terra antes e como um passo em direção ao cumprimento final das promessas eternas.
Nesse breve capítulo, podemos somente esboçar o ensino da Bíblia acerca desse assunto.
Discussões mais extensas podem ser encontradas em vários livros e comentários.
Observamos acima que Apocalipse enfatiza o retorno de Cristo. O tema da sua vinda está
presente no começo e no fim do livro; as cartas para as 7 igrejas estão repletas com a expectativa
juntamente com as recompensas e julgamentos que Cristo trará. As visões que constituem a
maior parte dos escritos encontram seu clímax no capítulo 19, quando o retorno de Cristo é
retratado em uma imagem vívida.
Nesse ponto não é necessário discutir se Apocalipse deve ser interpretado de uma maneira
preterista (passado, ou seja, primeiro século) ou futurista. Mesmo se o livro como um todo fosse
uma descrição visionária das provações da igreja do primeiro século, este único evento — o
retorno de Cristo, que é o foco do livro — era antes de mais nada uma esperança futura. O livro
termina com um apelo para que ele venha. A vinda ainda não aconteceu; ela é futura.
Isso significa que a visão em Apocalipse 19 deve ser vista como uma esperança futura. E não
há dúvida que o julgamento em 20.11-15, a nova terra e a Sião escatológica em 21-22 também
são expectativas futuras. No meio desses eventos futuros encontramos 20.1-10, a revelação do
reino milenar.
Apocalipse 20.1-3 descreve Satanás sendo amarrado e preso por mil anos para que não
engane as nações. Apocalipse 20.4 descreve os mártires cristãos (que morreram durante a
tribulação) sendo ressuscitados dos mortos para reinar com Cristo. Apocalipse 20.5 declara: “os
restantes dos mortos não reviveram até que se completasse os mil anos”.Os versos 7-15
descrevem o que acontece ao fim dos mil anos, quando Satanás é solto. Deus e Cristo respondem
em julgamento, descrito na imagem do Dia do Senhor, mas também com finalidade eterna.
Os versos cruciais são primeiro 4-5a e então 5b-15. Em 4-5a um padrão é estabelecido
envolvendo duas ressurreições divididas por um reino de mil anos de Cristo e os santos que
pertencem a ele. Nessa visão, João vê as almas dos mortos que foram fiéis a Cristo durante a
tribulação. Isso relembra as visões anteriores de 6.9-11 e 7.9-14. Esses mortos “vieram à vida e
reinaram com Cristo por mil anos”. Versos 5b-6 reformulam o mesmo ponto.

Esta é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira
ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridades; pelo contrário, serão sacerdotes
de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos.

No início deste capítulo, observamos que a expectativa do Novo Testamento é que a ressurreição
dos mortos ocorrerá na vinda de Cristo. Quando Cristo estender a vida ressurreta para aqueles
que acreditam nele, as promessas da aliança avançam o cumprimento e o reino entra em uma
nova fase de revelação. Entretanto, nem todos aqueles do reino milenar participam da
ressurreição, a vida imortal. No fim dos mil anos, Satanás é libertado e engana as nações em uma
rebelião contra Cristo e seus santos. Apocalipse 20.9 nos diz que esses rebeldes serão destruídos,
revelando sua mortalidade.
Além do mais, nem todos os mortos são ressuscitados durante o reino milenar.
Apocalipse 20.5a explica que “os restantes dos mortos não reviveram até que se completasse os
mil anos”. Isso é posteriormente elaborado nos versos 12-15 quando depois dos mil anos (v. 7),
“os mortos, grandes e os pequenos” libertados “do mar [...] da morte e do Hades” (vv. 12-13,
libertos do estado intermediário da morte). A libertação dos mortos da morte é a ressurreição, a
ressurreição prevista como “segunda”, pela identificação do verso 5b, da ressurreição pré-milenar
como “primeira”. Nesse momento, o Julgamento Final acontece (vv. 13-15) tornando possível a
revelação da nova terra e do reino eterno de uma humanidade imortal e exclusivamente ressurreta
(21.1-5).
O reino milenar, então, é uma fase do reino escatológico, o retorno do Cristo ressurreto,
juntamente com todos os santos ressurretos, para governar as nações da terra. É um tempo no
qual a mortalidade ainda condiciona as vidas de um segmento da humanidade e muitos mortos
ainda aguardam ressurreição. Além disso, já que não há dúvida de que muitas bênçãos que
derivam do reino pessoal de Cristo (como seria esperado a partir de outras passagens que
predizem as bênçãos do seu reino), o reino milenar abriga a possibilidade de rebelião e de
julgamento, uma possibilidade que se torna real diante da libertação de Satanás.
Apocalipse 20 é a única Escritura que prediz (ou antevê) explicitamente um reino milenar
intermediário. Nenhuma outra passagem explícita ou implicitamente fala acerca de um reino
milenar, isto é, um reino que dura mil anos. Um reino intermediário pode estar implícito a partir
da delineação de Paulo dos estágios históricos da ressurreição em 1 Coríntios 15.20-28.
Nos versos 23-24, Paulo destaca três estágios da ressurreição:

Cristo, as primícias;
Depois, os que são de Cristo, na sua vinda
E, então, virá o fim [...]

Nessa sequência, o fim é um estágio distinguível da ressurreição paralela à ressurreição do


próprio Cristo, e depois daqueles que pertencem a ele, que são ressuscitados no seu retorno. O
fim também é descrito no verso 24 como o tempo “que ele entregará o reino” a Deus, o Pai. É a
culminação de uma atividade na qual ele abole “todo governo, toda autoridade e poder”. Essa
atividade é posteriormente explicada nos versos 25-28 como um reino durante o qual todos os
inimigos estão sendo sujeitos a ele. O último inimigo a ser subjugado é a morte. A morte foi
parcialmente subjugada através dos estágios anteriores de ressurreição, porém, ela está
completamente subjugada na ressurreição final, a terceira na ordem no verso 24.
O reino de Cristo que precede a revelação final e eterna do reino escatológico cobre qualquer
tempo que se passa entre o segundo e terceiro estágios da ressurreição. Esse reino pode de fato ser
estendido de volta ao primeiro estágio, aquele da ressurreição de Cristo, já que vimos que Paulo
repetidamente fala do presente reino de Cristo usando a linguagem de Salmos 110.1 (cuja
linguagem também é usada aqui em 1Co 15.25). Paulo não indica o tanto de tempo que pode se
passar entre a ressurreição que acontecerá na vinda de Cristo e a ressurreição final de todos os
mortos. Entretanto, a natureza intermediária desse período faz paralelo com aquele reino
intermediário milenar de Apocalipse 20. É o reino na terra (depois da vinda de Jesus Cristo) que
inclui crentes ressuscitados, só que antes da ressurreição final. Além do mais, existem certas
tensões durante esse reino — Cristo está presente subjugando inimigos — uma condição que
também faz paralelo com as condições vistas em Apocalipse 20.
A descrição do reino intermediário de Apocalipse 20, e possivelmente 1 Coríntios 15, está
relacionada a um tipo distintivo da descrição do reino do Antigo Testamento. Por um lado, o
reino escatológico de Deus e do seu Messias é caracterizado pela paz, justiça, bênção eterna e
imortalidade. Por outro lado, algumas passagens descrevem o reino sob condições de mortalidade
humana (Is 65.17-25) e com certa quantidade de tensão entre o rei e as nações, uma tensão que é
facilmente suprimida (Zc 14.9, 16-21; Is 11.4; cf Sl 2). De um ponto de partida do Antigo
Testamento, é certamente possível que essas condições possam ser cumpridas em uma fase
histórica do reino antes do cumprimento final que reúne as descrições de paz e alegria eternas
(como em Is 2.2-4; Mq 4.1-4; Is 60).
A possibilidade de um reino intermediário é bem forte em Isaías 24-25, um oráculo que às
vezes é chamado como o pequeno apocalipse de Isaías. Isaías 24 é uma predição típica da vinda
do Dia do Senhor, com muitas das características que marcam esse evento como um julgamento
divino. Isaías 25.6-9 vê o reino escatológico duradouro de Deus. Deus reina de Sião como rei
sobre todos os povos. Há um banquete jubiloso em sua presença. Porém, de forma mais
importante, Deus concede imortalidade à humanidade redimida. A morte é eliminada. A
comunhão entre Deus e a humanidade é realizada em paz eterna.
Entre essas duas passagens está 24.21-23.

Naquele dia, o SENHOR castigará, no céu, as hostes celestes, e os reis da terra, na terra. Serão
ajuntados como presos em masmorras, e encerrados num cárcere, e castigados depois de
muitos dias. A lua se envergonhará, e o sol se confundirá quando o SENHOR dos Exércitos
reinar no monte Sião e em Jerusalém; perante os seus anciãos haverá glória.
O período de “muitos dias” intervindo entre o Dia do Senhor e o reino imortal eterno é o reino
intermediário. De fato, Apocalipse 20 pode ser entendido como uma interpretação dessa mesma
passagem em Isaías. O Dia do Senhor em Isaías 24 tem um tratamento expandido em
Apocalipse 6-19. Em Apocalipse 19, Cristo retorna para “punir [...] os reis da terra” (Is 24.21)
(seguindo o padrão revelado em Daniel, Apocalipse antevê os reis da terra como consolidando
sua autoridade em um governante; Ap 13; 17.12-13,17). Quando Cristo retorna, ele “pune” os
reis da terra que se opõem a ele e captura e atira o governante imperial no lago de fogo
(Ap 17.14; 19.17-21).
Cristo também pune “os poderes em cima nos céus” (Is 24.21). Em Apocalipse, as hostes
rebeldes dos céus são Satanás e seus anjos, que são expulsos do céu (12.7-9). A linguagem de
Isaías do aprisionamento em uma masmorra por muitos dias (24.22) é aplicada em
Apocalipse 20.1-3 a Satanás: um anjo “lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele, para
que não mais enganasse as nações até se completarem os mil anos”. Isaías diz que “depois de
muitos dias eles serão punidos”. João escreve que depois de mil anos, Satanás será “lançado para
dentro do lago de fogo e enxofre, onde já se encontram não só a besta como também o falso
profeta; e serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos séculos” (20.10). Além disso,
“se alguém não foi achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago de
fogo” (20.15).
Seguindo essa punição, o profeta Isaías escreve que “a lua se envergonhará, e o sol se
confundirá quando o SENHOR dos Exércitos reinar no monte Sião e em Jerusalém” (24.23) e ele
descreve esse reino em 25.6-9. João descreve os céus e a terra abrindo o caminho para novo céu e
nova terra e a Sião escatológica (Ap 20.11; 21.1, 10) que brilha mais intensamente que o sol ou a
lua (21.23). As ideias, as imagens e até algumas das palavras em Apocalipse 21.3-4 são traçadas
diretamente de Isaías 25.6-9.

O SENHOR dos Exércitos dará neste monte a todos os


povos um banquete [...] Destruirá neste monte a
Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis coberta que envolve todos os povos e o véu que está
o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará posto sobre todas as nações. Tragará a morte para
com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo sempre, e assim, enxugará o SENHOR Deus as lágrimas
estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda de todos os rostos, e tirará de toda a terra o opróbrio
lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, do seu povo, porque o SENHOR falou. Naquele dia, se
nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas dirá: Eis que este é o nosso Deus, em quem
passaram (Apocalipse 21.3-4). esperávamos, e ele nos salvará; este é o SENHOR, a
quem aguardávamos; na sua salvação exultaremos e
nos alegraremos (Isaías 25.6-9).

Em resumo, as predições do Antigo Testamento sobre o reino escatológico deram duas


perspectivas sobre a relação entre o rei escatológico e seus subalternos: uma em que a tensão e a
tentativa de rebelião eram possíveis e outra em que paz, regozijo e justiça governam. Essas
perspectivas não são inteiramente incompatíveis. É, no mínimo, possível que sejam cumpridas
em estágios sucessivos que revelam progressivamente o reino, a revelação final coincidindo com
as descrições de glória e imortalidade. Um período entre o Dia do Senhor e o reino de
imortalidade em Isaías 24-25 parece ter sido interpretado em Apocalipse 20 exatamente como
um estágio na história do reino. É uma forma do reino escatológico na qual Cristo está na terra,
governando sobre as nações, mas na qual ele está progressivamente subjugando todos os inimigos
a si mesmo. É um tempo em que a mortalidade ainda condiciona uma porção da humanidade e
alguns se opõem ao seu governo. Esse reino é revelado tendo mil anos de duração. O
tradicionalmente chamado reino milenar.
O REINO ESCATOLÓGICO FUTURO NA ESPERANÇA DA IGREJA

CONCLUSÃO
Na dispensação patriarcal, Deus agiu de uma maneira real no julgamento e na bênção. Ele fez a
aliança de certas outorgas aos patriarcas de forma semelhante às alianças outorgadas dos reis
antigos. A mais importante foi a feita com Abraão para o abençoar, e também aos seus
descendentes e nele abençoar todos os povos da terra.
A aliança mosaica trouxe uma nova dispensação quando Deus constituiu os descendentes de
Abraão em uma nação, o próprio Deus assumindo o papel como seu rei. Seu relacionamento com
outros povos foi mediado através da sua aliança com Israel. Uma provisão foi feita para um rei
humano sujeito ao Senhor. Uma aliança concedida foi feita com a casa de Davi para ser a casa
real de Israel. Uma tipologia de reinado foi moldada nos reinos de Davi e Salomão, iluminando
o reino ideal de Deus e do seu rei davídico ungido. Nesse reino ideal, a intimidade divino-
humana mais próxima possível existe entre Deus e o rei davídico. Também, as bênçãos das
alianças são concretizadas para os descendentes de Abraão e para todos os povos conforme a
hegemonia política do Reino de Deus é estendida pela atividade do reino davídico sobre as outras
nações.
Os pecados de Israel, que trazem em perspectiva uma idolatria contínua, incorreram em
juízo divino, ambos sobre a nação e a casa de Davi. Os profetas que predisseram esse julgamento
também predisseram um reino escatológico — o Reino que seria estabelecido nos últimos dias
em conjunção a uma nova aliança na qual Deus habitaria em seu povo e escreveria sua lei em
seus corações, um reino no qual o Messias davídico mediaria as bênçãos para todos os povos, o
plano divino para domínio humano, um reino de vida imortal e eterna alegria, o reino que tanto
cumpriria e superaria a tipologia ideal dos reinos davídico e salomônico.
No Dia do Senhor, Deus trouxe destruição e morte, pessoal e politicamente sobre Israel. O
governo da casa davídica foi interrompido, os povos foram exilados da terra prometida,
Jerusalém foi arrasada. Durante o exílio, entretanto, operando através de um remanescente fiel de
judeus (de acordo com a aliança abraâmica), Deus revelou seu reinado para e através de certos
reis babilônicos, medos e persas. Novamente, uma tipologia é estabelecida para o reinado de
domínio mundial, mas também para julgamento. As visões apocalípticas de Daniel preveem um
tempo de grande angústia, perseguição e blasfêmia sob o reinado de um rei gentílico. O
julgamento divino destruirá a soberania desse reino maligno e estabelecerá o reino do Filho do
Homem e dos santos do altíssimo, o qual será o reino eterno de Deus. Os profetas pós exílicos
também falam da vinda do julgamento do Dia do Senhor contra os poderes opressivos gentílicos
e como um purificador de Israel, levando a revelação de Deus como rei na terra, suprimindo a
rebelião e a injustiça em alguns textos, e concedendo bênçãos de paz e alegria sobre um povo
redimido em outros.
As Escrituras do Novo Testamento revelam o reino escatológico de Deus vindo à existência
através de sucessivos estágios históricos. Esse reino escatológico de Deus será o cumprimento,
através da tipologia e da profecia, do reino de Deus revelado na antiga dispensação. É o objetivo
das ações reais de Deus nas dispensações patriarcal e mosaica. É a estrutura pela qual o plano de
Deus para a humanidade e para o resto da criação, e especialmente seu relacionamento com
ambos será cumprido.
O reino escatológico começa sua aparição na pessoa do rei escatológico, Jesus, o Cristo. Ele é
um descendente de Davi ungido pelo Espírito Santo, agindo com poder e autoridade para
conceder as bênçãos do reino. Ele também é Deus, o rei, encarnado como um descendente de
Davi, unindo ambos os reinados em uma pessoa. [Essa aparição de Deus como Jesus traz uma
nova revelação de Deus — uma trindade de pessoas como uma realidade divina.]. O próprio
Jesus identifica suas ações realizadas através do Espírito Santo como o reino de Deus. O reino
está presente porque ele é o rei escatológico e está presente na terra. As obras de Jesus dão
vislumbres dinâmicos do reino: pecados são perdoados, doenças são curadas, deficiências são
saradas, demônios são exorcizados e os mortos são ressuscitados. Ele acalma o vento e o mar e
multiplica comida ao abençoá-la. Ele leva pessoas ao conhecimento de Deus e promete a bênção
da nova aliança de justiça pela renovação interna através do Espírito Santo. Ele então dá sua
própria vida em um ato sacerdotal messiânico para expiar o pecado humano e então ressuscita
dos mortos, revelando em si mesmo a vida imortal e ressurreta que foi predita para o reino
escatológico.
Jesus não somente identifica a si mesmo e suas ações como uma presença do reino
escatológico, mas ele também proclama o estabelecimento futuro desse reino de forma
consistente com o padrão geral predito pelos profetas, mas, com a nova revelação de que ele
próprio virá como o Senhor no Dia do Senhor e reinará como o rei do reino eterno. Ele
continuamente faz referência a si mesmo como o Filho do Homem que virá em glória
apocalíptica em um tempo de angústia e julgamento, descrito através de uma síntese de
elementos a partir das visões de Daniel e das profecias do Dia do Senhor. Porém, ele também
predisse que retornaria para Deus, o Pai, antes dessa vinda apocalíptica. Em suas parábolas, ele
explicou que receberia o reino nesse tempo, que batizaria seus discípulos pelo Espírito Santo (a
inauguração da bênção da nova aliança), que colocaria “filhos” ou cidadãos do reino (constituído
como tal pelo Espírito) no mundo onde através da proclamação do evangelho eles cresceriam em
número e que retornaria com julgamento sobre o mal e conduziria os herdeiros para o reino
eterno de Deus.
Essa fase do reino escatológico do qual Jesus falou em parábolas é revelado em Atos e outras
epístolas do Novo Testamento como a nova dispensação, estabelecida através das bênçãos
inauguradas da nova aliança baseadas na morte sacrificial de Jesus. Essa próxima fase do reino
escatológico coincide com a glorificação de Cristo no céu, onde ele foi entronizado como Messias.
Ele recebeu autoridade sobre todo governo e domínio na terra. De fato, toda autoridade nos céus
e na terra foi dada a ele. Porém, ele espera do Pai pelo tempo do seu retorno quando ele revelará
essa autoridade no padrão completo predito para o reino escatológico (e revelará aspectos de
autoridade ainda maiores também). Enquanto isso, ele já começou a agir institucionalmente como
Rei, ao garantir para aqueles que acreditam nele as bênçãos da nova aliança de perdão dos
pecados, habitação e presença renovadora do Espírito Santo (o batismo do Espírito Santo o qual
ele falou). Essas são, de fato, bênçãos do reino escatológico (características do reino que está por
vir). Elas servem como adiantamento, uma garantia, do cumprimento futuro de todas as bênçãos
da nova aliança.
Nessa fase presente do reino, Jesus atraiu para si mesmo um remanescente de Israel e das
muitas nações gentílicas. Ele concedeu igualmente as bênçãos da nova aliança para crentes judeus
e crentes gentios, sem distinção de gênero ou classe. A dádiva das bênçãos da nova aliança, dessa
mesma maneira, constituem uma nova dispensação no relacionamento de Deus com a
humanidade. É também a primeira aparição institucional do reino escatológico. De forma
consistente com sua autoridade messiânica, Jesus está formando esse remanescente de judeus e
gentios em um “templo” ou “casa” para ser o lugar de habitação de Deus na terra. Como a
aparição anterior do reino escatológico ocorreu quando Deus se encarnou como Jesus, o
descendente de Davi, o Rei dos reis, assim a presente forma do reino aparece quando o Espírito
de Deus habita os judeus e os gentios, cidadãos do reino. Eles formam uma nova sociedade, a
qual a paz e justiça do reino devem ser manifestadas. Sua identidade, assim como suas bênçãos,
são encontradas em Cristo (consistente no padrão de aliança da bênção “nele”). Eles são o corpo
de Cristo, a igreja — no sentido universal desse termo.
Enquanto o Novo Testamento proclama o relacionamento entre Cristo e a igreja (o rei
messiânico e judeus e gentios que confiam nele), uma revelação do reino escatológico, ele
também prediz a vinda futura daquele reino em toda sua plenitude. Essa vinda coincidirá com a
vinda de Jesus para julgar o pecado na terra, concedendo todas as bênçãos das alianças e trazendo
os remanescentes de todas as nações (Israel e gentios) sob sua hegemonia real. Isso é o que Paulo
parece se referir por “a dispensação da plenitude dos tempos”, quando todas as coisas no céu e na
terra são recapituladas em Cristo (Ef 1.10). Entretanto, João recebe uma revelação de que isso
aconteceria em dois estágios, o primeiro durando mil anos (o reino milenar) e o segundo no
cumprimento final do reino escatológico.
O império milenar do Messias é a próxima fase do reino escatológico depois dessa fase que
agora está presente — a comunidade do Rei, a igreja. E, como observamos, sua aparição marca
uma mudança de dispensação, de uma dispensação eclesiástica para o primeiro estágio da
dispensação final, ou Siônica. A mudança da primeira para a segunda aparição do reino
escatológico foi marcada pela ressurreição e glorificação do Rei. A mudança da segunda para a
terceira fase do reino é marcada pela ressurreição e glorificação da igreja. Entretanto, a
mortalidade é presente para um segmento significativo da humanidade. O Cristo ressurreto e os
santos ressurretos (cf. Dn 7.14, 27; 12.2) irão administrar a vida humana na terra em suas
dimensões nacionais e políticas. Como o Messias de Israel, Jesus irá cumprir para essa nação as
promessas quem foram feitas em alianças com ela e ele governará sobre todas as nações, para que
através dele todas elas possam ser abençoadas. Ele governará com “cetro de ferro”, aprisionando a
impiedade espiritual e subjugando toda autoridade humana para ele mesmo. As bênçãos
espirituais que foram realizadas na dispensação anterior na vida da comunidade escatológica, a
igreja, serão estendidas nesse estágio do reino através de dimensões políticas e nacionais da vida
humana também. As bênçãos terrenas que foram vislumbradas nas obras messiânicas individuais
durante o primeiro advento serão estendidas ao redor do mundo. No fim desse estágio do reino,
o próprio mal será destruído em uma demonstração do julgamento de Cristo contra as rebeliões
satânica e humana, e a morte e o pecado serão eliminados.
AS DISPENSAÇÕES E O PROGRESSO DO REINO

Quando Jesus tiver sujeitado todas as coisas a ele mesmo e tiver destruído o pecado e a morte, o
reino escatológico de Deus se manifestará eterno e imortal em toda sua plenitude numa terra
renovada. Esse reino é o objetivo da redenção, a conclusão de todas as revelações anteriores do
reino de Deus. É o governo de Deus Pai, Deus Filho — encarnado como Messias, filho de Davi,
Filho do Homem — e Deus Espírito Santo sobre a terra com todos os seus habitantes e sobre os
céus e tudo que nele há para sempre. Esse reino é terreno. A maldição que veio através do pecado
será substituída pela bênção da vida e a fertilidade sobre a terra. Morte, doença e a ação
demoníaca serão eliminadas e a Cidade de Deus será estabelecida na terra. O reino também é
espiritual, como uma redenção é estendido por completo em ambos os aspectos individuais e
sociais da existência humana. Será caracterizado pela vida eterna e imortal, pela retidão e justiça.
A impiedade terá sido julgada e removida. Graça, misericórdia, compaixão, paz, santidade,
piedade, pela regeneração e habitação do Espírito Santo, tendo conhecimento de adoração, de
obediência desejosa a Deus, em alegria, felicidade e bênção para sempre. O reino também é
nacional e político naquilo que envolve o estabelecimento e a administração de todas as nações
através do Messias de Israel, Jesus, filho de Davi. Deus reinará sobre as nações em glória, poder e
majestade, abençoado, honrado e adorado para todo o sempre.

1. No quarto Evangelho, quando essa advertência por João é ausente, o próprio Jesus testifica que o Pai “deu todo julgamento
para o Filho” (Jo 5.22).
2. O fato de que Mateus usa a expressão “reino dos céus” e Marcos “reino de Deus” sobre as declarações resumidas do ensino de
Jesus, demonstra que essas são expressões alternativas para a mesma coisa. Muitos dizem que “reino dos céus” se refere a algo
diferente de “reino de Deus” por causa da presença de certas parábolas em Mateus. Entretanto, isso é uma falha, pois não leva em
consideração esse dispositivo literário. Consequentemente, perdem o ponto em que naquelas parábolas, Jesus revela frases
progressivas e históricas desse reino, não a vinda de algum reino novo e completamente diferente.
3. Em Mateus 16.28, Jesus diz, “Garanto-lhes que alguns dos que aqui se acham não experimentarão a morte antes de verem o
Filho do homem vindo em seu Reino”. Essa declaração é melhor interpretada no contexto da transfiguração que em Mateus
segue imediatamente o destaque. Três dos discípulos são escolhidos para testemunhar esse evento no qual Jesus aparece em sua
glória vindoura.
4. No quarto Evangelho temos o relato da conversa de Jesus com Pilatos, na qual ele destaca: “O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse desse mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas
agora o meu reino não é daqui” (Jo 18.36). Jesus afirma que ele é um rei, que nasceu para ser rei (18.37), mas seu reino não é
“desse mundo”. Isso não significa que seu reino é imaterial. A declaração deveria ser interpretada à luz da repreensão de Jesus a
Pedro no Jardim (18.10-11). No relato de Mateus, Jesus diz a Pedro: “Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me
mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26.53). O destaque a Pilatos no Evangelho de João funciona como
o destaque a Pedro em Mateus. A questão é a fonte do poder não a localização do reino. O auxílio dos anjos, na verdade, afirma a
tradição do Antigo Testamento do Filho do Homem vindo governar o reino, como Jesus o descreve em Mateus 25.31 (cf 16.27).
Nessa passagem, a localização do reino futuro certamente é na terra.
5. Perceba a personificação da abominação da desolação.
6. A profecia resultante é estruturada por dois dispositivos literários: (1) abominação da desolação de Daniel que divide ao meio
aquela porção do discurso relacionado ao sinal da Sua vinda (Mt 24.4-31; Mc 13.5-27; Lc 21.8-28). A divisão é similar à forma
como a “abominação” divide o período de “sete” (anos) em Daniel 9.27, de tal forma que a segunda parte da divisão em ambos
os discursos — o tempo da abominação da desolação — é um tempo de grande angústia (cf. Dn 12.1, 7-11) e (2) a metáfora do
nascimento do Dia do Senhor (Is 13.8) que é usada em Mateus 24.8 (Mc 13.8) para cobrir por inteiro a mesma porção do
discurso (referente ao sinal da Sua vinda, Mt 24.4-31 e paralelos). No uso dessa metáfora por Jesus, todo o tempo de aflição e
julgamento se torna Sua vinda, com sua aparição em Mateus 24.30 correspondendo ao fim do processo de trabalho de parto, ou
seja, o “nascimento”.
7. Compare Mateus 9.35: “E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino
e curando toda sorte de doenças e enfermidades”.
8. Não é ressignificada. Se assim o fosse, o significado tradicional desapareceria e seria substituído unicamente pelo filho divino.
O resultado seria uma cristologia docética (Cristo somente aparentaria ser humano; ele não seria verdadeiramente humano) em
vez de encarnacional.
9. Veja o capítulo 6.
10. Outros termos messiânicos e descrições passam pelo mesmo tipo de integração. O Messias deveria ser o Pastor de Israel, um
termo derivado do chamado de Davi para se tornar uma designação para o governador de Israel. Porém, Davi declarou que o
Senhor Deus é seu Pastor e os profetas predisseram o reino vindouro de Deus como um tempo quando ele pastorearia seu povo.
Em Jesus, tanto divino quanto davídico, “pastorear” vem em união. Ele é o Bom Pastor que verdadeiramente não é um herdeiro.
Ele é o dono das ovelhas (divino), que doa vida pelos seus (o Messias Servo) e então conduz suas “ovelhas” ao reino eterno onde
ele reinará sobre elas (o Messias reinando na terra para sempre).
11. A frase “no meio de vós” é algumas vezes traduzida “dentro de vós” com uma perspectiva do pensamento que o reino é uma
realidade espiritual no coração dos ouvintes de Jesus. Esse não pode ser o caso da passagem, já que os seus ouvintes são fariseus
que o rejeitam. Em Mateus 23.27, Jesus pronuncia um “ai” sobre os fariseus, a quem ele compara a “sepulcros caiados, que, por
fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia”. O reino de Deus deve se
apresentar como uma realidade espiritual no coração deles.
12. A luz de Cristo é um tema frequente para Paulo, descrevendo um relacionamento presente do crente com Jesus (2Co 4.6).No
ministério de Paulo, ele vê pessoas se voltando “das trevas à luz e do domínio de Satanás para Deus” (At 26.18). Isso dá a eles
uma herança entre os santos, uma herança na qual eles começaram a compartilhar, mesmo que já sejam “santos”. (At 26.18;
Cl 1.12, cf. v. 2).
13. A nova aliança promete prover uma ressurreição tanto espiritual quanto corpórea. Na teologia Paulina, a vivificação é
primeiramente espiritual (isto é, o renovo Espiritual do coração) e então física, na vinda de Cristo (Rm 8. 10-11).
14. Como em Isaías 2 e Miqueias 4.
15. Os dispensacionalistas tradicionalmente têm defendido o pré-tribulacionismo, a crença que o arrebatamento acontecerá antes
da tribulação. A tribulação é um termo que se refere ao período de sete anos visto em Daniel 9.27, incluindo os eventos
associados com ele — eventos que recebem uma elaboração posterior na visão de Daniel. No sermão do Monte das Oliveiras,
Jesus sintetiza, ou combina, as visões dos problemas de Daniel com o tema Profético do Dia do Senhor (veja acima). Tanto Paulo
(em 1Ts 5.1-12) quanto João (em Apocalipse) seguem Jesus nessa combinação (confirmando sua dependência pelo uso literário
das palavras de Jesus). Com isso em mente, a libertação no começo do Dia do Senhor em 1 Tessalonicenses 5 (perceba o início
surpreendente, uma comparação com o início do trabalho 1 Tessalonicenses 5.2-3, e o verbo “apanhar” em 5.4) parece ser pré-
tribulacional.
16. Compare com 2 Tessalonicenses 1.5, onde Paulo diz à igreja que seus sofrimentos são pelo reino de Deus, cuja herança é então
descrita como uma participação na glória de Cristo (2Ts 1.9-10; cf. Cl 3.4). A descrição de Paulo da glória futura que ofusca os
sofrimentos da igreja romana seria entendida de forma similar ao reino de Deus. O fato de os ressuscitados herdarem essa glória
também confirma esta interpretação (cf. 1Co 15.50).
17. A orientação futura de Hebreus 13.14 é significativa à luz do destaque, nessa epístola, das bênçãos da nova aliança
presentemente realizadas. Ela é colocada em paralelo, pelo comentário do escritor, no começo da epístola sobre “o mundo que há
de vir, a respeito do qual estamos falando” (Hb 2.5). O escritor se volta dessa expectativa futura para as presentes bênçãos de
Jesus (Hb 2.9) e permanece nesse tema até o fim da epístola. As referências futuras no começo e no fim, entretanto, advertem
contra ler a teologia da epístola de uma maneira totalmente realizada. Na verdade, a teologia de Hebreus é bastante consistente
com o cumprimento progressivo, presente-futuro, que temos observado em outros escritos do Novo Testamento.
18. Para estudos recentes sobre Romanos 11.26 e seu contexto veja J. Lanier Burns, “The Future of Ethnic Israel in Romans 11”
em “Dispensationalism, Israel and the Church: The Search for Definition”, pp. 188-229; e S. Lewis Johnson, Jr. “Evidence from
Romans 9-11”, em “A Case for Premillennialism, A New Consensus”, ed. Donald K. Campbell e Jeffrey L. Townsend (Chicago:
Moody, 1992), pp. 199-223. Em Romanos 11.26, o termo “assim” é melhor interpretado com a ideia de “assim como”,
indicando que a salvação de “todo Israel” (definitivamente uma referência nacional à luz do uso contextual do termo Israel)
acontecerá como predito pelos profetas; Johnson, pp. 214-216; Burns, pp. 211-216.
PARTE QUATRO
TEOLOGIA E MINISTÉRIO
por Craig A. Blaising
CAPÍTULO 9

QUESTÕES TEOLÓGICAS E MINISTERIAIS NO


DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO

O trabalho do dispensacionalismo progressivo até este ponto tem sido principalmente no nível
da teologia bíblica, exegese e exposição. Estas questões têm sido primordiais: como o Novo
Testamento interpreta as alianças e as profecias com respeito ao Messias e o reino escatológico? O
que é a igreja e como ela se relaciona com plano de Deus revelado na história do Antigo
Testamento, na vinda do Messias e na profecia bíblica? Como as sucessivas dispensações nessa
história de redenção se relacionam uma com a outra e com o plano geral de Deus? É assim que
deveria ser. O dispensacionalismo progressivo pertence a uma tradição evangélica que tem seu
interesse principal no entendimento das Escrituras. Pois são as Escrituras que tem sido a
reivindicação absoluta da nossa fé e prática.
Não temos a pretensão de ter solucionado todos os problemas interpretativos em nossos
esforços para compreender as Escrituras. O trabalho da interpretação bíblica é contínuo, e
devemos estar sempre preparados para nos beneficiarmos dele. Entretanto, uma direção parece
evidente dos estudos realizados até agora, de modo que é possível destacar uma posição geral
acerca das questões levantadas acima. Isso foi feito brevemente no primeiro capítulo deste livro e
no último capítulo de Dispensationalism, Israel and the Church: The search for a definition. Os
estudos exegéticos dessa obra e a exposição oferecida neste livro proporcionam os detalhes que
reforçam e sustentam esta posição interpretativa geral.
Ainda há muito trabalho a se fazer para trazer as interpretações do dispensacionalismo
progressivo para discussões mais amplas da teologia e prática do ministério. Neste capítulo,
gostaríamos de apresentar algumas sugestões sobre como isso deve ser feito. Não tentaremos fazer
um trabalho completo da teologia sistemática nem comentar todos os tópicos teológicos a partir
de um ponto de vista dispensacional. Em vez disso, limitaremos nossos comentários em algumas
áreas, levantando questões e sugestões que pensamos que seriam frutíferas para discussões
posteriores. Uma dessas áreas tem a ver com o relacionamento da igreja e do reino. Uma teologia
da igreja tem como retorno uma teologia do ministério, e é nessa conexão que faremos sugestões
com respeito a alguns aspectos do ministério que são presentes em muitas discussões no
evangelicalismo.
Essas sugestões são oferecidas com a esperança de que os dispensacionalistas e outros teólogos
evangélicos possam ter colaboração conosco, desenvolvendo o que pode ser uma contribuição
digna, e corrigindo onde for necessário, para o benefício de todos.

IGREJA E MINISTÉRIO
Temos visto que o dispensacionalismo progressivo vê a igreja como uma fase do reino
escatológico. A igreja é uma nova manifestação de graça na qual ela é um remanescente reunido
de todas as nações, abençoada por Jesus, o Messias, com a bênção da nova aliança do Espírito
Santo. A igreja é uma obra do próprio Messias. Ele é seu cabeça, Senhor e Rei. A igreja o
reconhece de tal forma em fé. A igreja é o(s) povo(s) do Messias, seu reino especial. A igreja se
estende a todas as nações ao redor da terra, porque tal é a extensão do reino do Messias. Ela é
uma parte do reino futuro do Messias, pois quando ele prepara esse reino, todos os que
pertencem à igreja serão incluídos juntamente com os judeus e os gentios do passado e do futuro
que têm sua fé e esperança firmadas no Redentor. Porém, a igreja em sua dispensação difere dos
santos do Antigo Testamento em suas dispensações porque a igreja é uma criação do Messias (o
Redentor encarnado agora como o tal). A igreja assim pertence ao reino do Messias, que faz parte
do reino escatológico.
A igreja difere da fase futura do reino, o Messias está presentemente “longe” (ainda que ele
esteja conosco sempre, não obstante, está corporalmente presente com o Pai). A igreja espera pelo
seu retorno. Consequentemente, a igreja é uma constituição do reino futuro, presente na terra
antes do reino vir em toda sua plenitude no retorno do Messias. A igreja também difere do reino
futuro naquilo que ela é, por ser somente uma parte desse reino, já que o reino futuro incluirá
todos os indivíduos de todas as dispensações através da ressurreição dos mortos.
A igreja difere do reino futuro quanto a bênção do reino que tem sido recebida, a saber, a
bênção da nova aliança da habitação do Espírito Santo, pois tem sido dada somente na forma
inaugural. A bênção será dada por completo somente no retorno do Messias, em cujo tempo a
santificação será completa em nossa experiência até mesmo na ressurreição e vida imortal.
Com essas diferenças em mente, dizemos que a igreja é uma forma inaugurada do reino
futuro de Deus.
Agora, a continuidade da igreja com o reino futuro, bem como suas diferenças, ajudam a
definir o seu ministério nesta dispensação. Não falaremos aqui do ministério da igreja de chamar
indivíduos à fé em Cristo e os discipular na sua caminhada pessoal com o Senhor, levando-os a
uma adoração, serviço e testemunho de vida. Esses aspectos do ministério são bem conhecidos
por muitos. Os dispensacionalistas anteriores destacaram os aspectos pessoal e individual do
cristianismo exclusivamente. Seu argumento de que alguém só pode nascer de novo
pessoalmente, pela fé em Cristo, não pelas ações dos outros à parte da fé pessoal é saudável e
praticamente todos os evangélicos concordariam com isso. Existem muitos aspectos construídos
ao redor dessa verdade, porém não os exploraremos aqui.
Em vez disso, exploraremos os outros aspectos do ministério que fluem a partir, ou são
destacados, pelo fato de que a igreja é uma manifestação do reino futuro em uma forma especial
nesta dispensação. Isso se relaciona ao ministério social da igreja.

O Ministério Social Interno da Igreja. O reino de Deus tem a ver com retidão, justiça e paz nas
relações dos povos entre si e com os outros. A igreja é uma manifestação escatológica do reino
porque ela é uma assembleia de povos que o Messias, agindo com autoridade real, colocou em
relacionamento uns com os outros, vinculados pelas bênçãos de paz, retidão e justiça inauguradas
através do Espírito Santo. Essas bênçãos são experimentadas em uma forma inaugurada. A igreja
desse lado da glória ainda luta com os problemas do pecado: iniquidade, discórdia e injustiça.
Porém, a igreja é chamada para uma vida de santidade, para crescer em graça andando pelo
Espírito.
Assim como os dispensacionalistas revisados começaram a explorar a natureza comunitária da
igreja na vida corporal, parece que os dispensacionalistas progressivos precisam explorar o
significado de santidade na vida social da igreja. Isso requer reconhecer que a igreja é uma
sociedade. Seus relacionamentos podem ser analisados sociologicamente. A natureza plural e
comunitária da igreja constitui a sua realidade social. A questão aqui é que Cristo pretende
redimir a humanidade tanto socialmente quanto individualmente. A redenção social da
humanidade começa na igreja. A justa sociedade de pessoas profetizada sob o Messias de Israel
começou a aparecer. É o que chamamos de corpo do Messias, judeus e todos os tipos de gentios
unidos pelo dom do Espírito Santo pelo Messias. É o organismo que ele enche e o qual manifesta
sua presença na terra em sua ausência física — a igreja.
Buscar socialmente a santidade na comunidade do Messias significa a busca de justiça,
retidão e paz nas estruturas sociais da igreja como uma extensão pessoal e interpessoal. Os
dispensacionalistas progressivos precisam encarar a questão do pecado estrutural. Ele precisa ser
encarado, antes de mais nada, na igreja. Como pode a santidade ser manifestada nas estruturas
políticas do corpo de Cristo? E o que dizer das estruturas governamentais e de gestão da igreja? O
dispensacionalismo clássico ofereceu uma crítica à forma como a estrutura de poder de ordenação
foi usada para inibir ministérios de pessoas não ordenadas que foram dotadas pelo Espírito. O
que dizer acerca das estruturas de poder nas igrejas evangélicas e nos ministérios para-eclesiásticos
hoje em dia? O que dizer das supostas questões de rotina de emprego no ministério cristão?
Quais padrões governam a distribuição de fundos e determinam os salários? Nossos ministérios
são orientados para se adequar às necessidades sociais dos irmãos e das irmãs em Cristo?
Porque o corpo de Cristo é um, transcendendo as divisões da igreja local, a exploração do
ministério social interno da igreja deve ir além das paredes da igreja local. Os dispensacionalistas
têm reconhecido o relacionamento que existe entre os crentes em Cristo que transcende a
membresia da igreja local. Entretanto, os dispensacionalistas progressivos deveriam reconhecer
especialmente a relação que existe entre igrejas, comunidades e ministérios, não somente
indivíduos. Não estamos falando aqui da ecumenicidade administrativa, aquele medo que
evangélicos possuem acerca do movimento ecumênico. Em vez disso, estamos falando da
ecumenicidade espiritual compartilhada não apenas por crentes, mas pelas comunidades de
adoração que se reúnem no nome de Jesus Cristo. Isso é o que vemos na coleta que Paulo fazia
nas igrejas entre os gentios em favor da igreja em Jerusalém. Esse esforço foi um exemplo de
igrejas cuidando de outra igreja porque era uma reunião de igreja em nome de Jesus Cristo.
Como as igrejas se adequam às necessidades de outras igrejas em Cristo? É possível que um
ministério social possa crescer entre as igrejas?

O Ministério Social Externo e Político da Igreja. Muitas propostas evangélicas relativas ao


ministério social da igreja se concentram exclusivamente no ministério externo da igreja, ou de
cristãos individuais, para as necessidades sociais da sociedade mundana. Isso não é outra forma de
um cristianismo altamente individualizado? Enquanto isso pode parecer uma acusação estranha,
considere o que isso significa em alguns desses cenários. O ministério para as necessidades da
sociedade é um meio de atrair indivíduos ao evangelho. Após a conversão, esses são rapidamente
postos para trabalhar chamando outros indivíduos ao evangelho através de ações direcionadas às
necessidades sociais. Porém, eles não experimentam a redenção social com outros crentes em
Cristo. Qual é o significado do trabalho social deles? Outra forma de evangelicalismo que
contribui para a construção de melhores estruturas sociais na sociedade em geral, juntamente
com a mensagem evangélica da salvação individual. Ambas parecem ignorar o chamado da igreja
para ser a sociedade redimida que somente ela pode ser.
Os dispensacionalistas progressivos fariam bem em explorar a santidade social interna da
igreja como uma forma de testemunho para sociedade externa. Em outras palavras, se nós como
a comunidade de Cristo trabalhássemos em criar nossa comunidade como um modelo de justiça
social e paz, então nós realmente teríamos algumas sugestões a fazer para uma reforma social em
nossas cidades e nações. E poderíamos fazer isso com o evangelho, porque a mensagem, as
sugestões e até mesmo a obra social externa estariam baseadas no chamado a Cristo, em quem a
conversão social e individual estão de mãos dadas.
O que significaria, por exemplo, se uma igreja constituída primariamente de pessoas com
empregos bem remunerados, em sua maioria em cargos executivos e liderança empresarial, uma
igreja forte financeiramente, ministrasse a uma igreja constituída essencialmente de operários e
sofrendo desemprego, e isso tudo por serem crentes em Cristo? E se uma igreja com um grupo
étnico dominante ministrasse a uma igreja cuja maioria de seus membros são de outro grupo
étnico, ajudando a criar oportunidades para aqueles irmãos e irmãs em Cristo que são justos e
honestos, transformando as injustiças raciais que assolam um mundo que não conhece Cristo —
fazendo tudo isso simplesmente porque juntos confessam o nome de Jesus e são chamados para
manifestar, mesmo em uma forma inaugural, a justiça do reino de Deus? E se eles ministrassem
uns aos outros desta forma especificamente com o propósito de explorar e revelar uma santidade
social?
Se a igreja se tornar uma oficina na qual a justiça do reino é buscada em nome de Cristo, o
ministério social externo se torna um chamado a Cristo.
O trabalho político da igreja está de mãos dadas com isso. Com o passar de dois mil anos, ela
existiu sob inúmeras políticas nacionais diferentes. Hoje, muito da igreja é encontrado em
estruturas políticas participativas, democracias de vários tipos. Reconhecendo que Deus
superintende as políticas nacionais da humanidade e que estruturas políticas existentes pedem
uma participação dos cidadãos, a igreja deveria exercitar sua responsabilidade juntamente com os
cidadãos do mundo na legislação, execução e adjudicação da lei. Entretanto, a partir de que base
a igreja falaria acerca de justiça e paz nacional? A partir de uma perspectiva do
dispensacionalismo progressivo, essa base deveria ser o reino escatológico futuro, que é conhecido
através da profecia direta, através do testemunho de dispensações passadas (incluindo a
manifestação da justiça na teocracia de Israel), e a manifestação da justiça do reino na vida da
igreja em si. A igreja deve compartilhar de uma base revelacional na qual ela busca justiça dentro
de sua própria sociedade; e testemunha, a partir dessa base, seu trabalho pela justiça na sociedade
em geral.
Reconhecer a conexão dispensacional com o reino vindouro dá à igreja uma base para uma
participação evangelística nos assuntos políticos e sociais deste mundo. Reconhecer a diferença
dispensacional entre nossa presente situação e aquela que será estabelecida somente na vinda de
Cristo mantém essa atividade evangelística. O cabeça da igreja, o rei de todas as nações, ainda virá
em julgamento. A igreja não porta a espada sobre a descrença. Esse tem sido o erro de algumas
experiências da igreja e do Estado no passado, e resulta de uma má compreensão da dispensação
na qual vivemos. Não deve haver nenhuma execução da lei contra a descrença até que o próprio
Cristo venha. A igreja deve chamar os descrentes às boas novas de Cristo, e nunca legislar sobre
eles. Porém, a justiça nas relações humanas é uma preocupação apropriada do governo. A igreja
deveria trabalhar por leis justas como um testemunho para a justiça que busca dentro de si
mesma, sob o poder do seu Senhor presente e futuro.
Devemos sempre reconhecer que carregamos nosso tesouro em vasos de barro (2Co 4.7). Até
mesmo toda a revelação que temos nas Escrituras e com a obra do Espírito Santo na igreja, há
muito que ainda não sabemos acerca do reino. Vemos como em espelho escurecido, como Paulo
disse (1Co 13.12). Nossa revelação é parcial, somos tentados a pecar (injustiça e discórdia) e
estamos propensos a erros de conhecimento e julgamento. Os cristãos não podem afirmar que
tudo o que vem às suas mentes sobre questões políticas e sociais é necessariamente santificado,
correto ou até mesmo prático. Não temos justificativa para a arrogância.
Mas talvez a chave para aceitar humildemente nosso papel na sociedade em geral resida no
fato de que somos chamados primeiramente para nossa própria conversão, não simplesmente à
individual, mas social e politicamente. A revelação que recebemos e a obra do Espírito em nós
são dirigidas primeiramente para nós. A igreja é a comunidade teste para a justiça social e política.
Se não pudermos ou não a buscarmos aqui, nós realmente não temos nada para dizer aqui. Se
buscarmos entre nós mesmos, ainda que falhemos, temos algo a dizer, e nossas imperfeições
ajudam a nos manter humildes.

O Corpo Multicultural de Cristo. Quando falamos da igreja como uma sociedade, devemos
reconhecer que a forma singular dessa palavra, sociedade, não implica em uma cultura
homogênea. A sociedade da igreja é na verdade uma pluralidade de muitas sociedades, grandes e
pequenas, em um nível em que encontramos as diferenças de etnia e culturas compartilhadas.
Entender a igreja como uma forma presente do futuro reino escatológico deveria nos levar a ver
que esse fenômeno multicultural é exatamente o que Deus pretende. O reino futuro abrangerá
todas as nações. A igreja de hoje é uma comunhão unida pelo Espírito, feita de judeus e de todos
os tipos de gentios.
Isso significa que os dispensacionalistas progressivos devem participar plenamente das
discussões evangélicas de ministério e cultura. Encaramos os desafios de ministérios
multiculturais, mistérios uniculturais chamados às responsabilidades em um mundo
multicultural e ministérios transculturais. Essas não são preocupações secundárias, mas enraizadas
na própria realidade do corpo de Cristo.
Os dispensacionalistas progressivos deveriam estar especialmente preocupados em realçar e
encorajar a realidade multicultural do corpo de Cristo, não vê-la como um prejuízo, ou algo a ser
eliminado em busca de uma homogeneidade humana idealizada (que não é realmente humana).
Reconhecemos que o Espírito é dado (e pretende ser dado) através das fronteiras étnicas e
culturais. Assim como os cristãos judeus aceitaram os cristãos gentios, da mesma forma
encaramos o desafio de ver e encorajar o cristianismo em uma expressão multicultural. Temos
que nos guardar contra a dominação cultural e a repressão que é feita em nome de Cristo. Isso é
algo realmente oposto a Cristo, pois Cristo está destinado a governar (e já governa) uma
humanidade multicultural. Porém, um cristianismo multicultural não é sincretismo. É a
conversão do paganismo multicultural em um cristianismo multicultural. As questões,
preocupações e desafios são reais, como é real no próprio Novo Testamento. Porém, o
dispensacionalismo progressivo deve encarar essas questões diretamente.

TEOLOGIA E HISTÓRIA
Jesus Cristo está atualmente nos céus, sentado à destra de Deus até o tempo estabelecido pelo Pai
para seu retorno. Quando ele voltar, ele revelará a união do governo humano e divino sobre a
terra e todos os seus habitantes. Atualmente, toda autoridade nos céus e na terra tem sido dada a
ele (Mt 28.18). Ele sustém todas as coisas pela palavra de poder (Hb 1.3) e nele todas as coisas
subsistem (Cl 1.17). Ele é o cabeça de todo governo e autoridade. Quando ele vier, sua
administração de assuntos humanos será evidente para todos. Mas, como relacionamos sua
autoridade sobre todas as coisas e o curso dos eventos históricos presentes?
O dispensacionalismo observa uma distinção entre o relacionamento de Cristo com as
nações agora e seu relacionamento com elas em seu retorno. As profecias de Cristo governando
sobre as nações ainda serão cumpridas. O Novo Testamento espera que Cristo venha e governe
as nações de maneira direta, uma forma que não está sendo revelada agora. O próprio Cristo
falou da “restauração do reino” a Israel como uma questão de tempo, com Pedro interpretando
esses destaques como diferenças entre o Cristo que ascendeu e o que voltará. E ainda assim ele
exercita uma autoridade sobre todas as coisas agora.
O dispensacionalismo progressivo não vê o relacionamento de Cristo com as nações agora
como o cumprimento da sua herança política, contudo, ele se relaciona com elas agora com uma
visão em direção ao seu futuro governo sobre elas. O dispensacionalismo progressivo vê a
atividade principal de Cristo como a formação de um remanescente de pessoas a partir de todas
as nações que são suas para manifestar, de uma forma inaugural, a justiça que ele dará a todas as
pessoas nesse reino futuro. Elas são uma comunidade evangelística, testificando o poder salvífico
de Jesus, que está sendo revelado pessoalmente e comunitariamente (socialmente) na igreja.
O relacionamento de Cristo com as nações agora é primariamente com a visão do seu
propósito de formar sua própria comunidade. Mas o que isso significa para o entendimento da
maldição e dos eventos históricos nesta dispensação? Podemos ler os desenvolvimentos políticos e
sociais os relacionando com a atividade de Jesus, o Rei dos reis? Sua autoridade, poder e posição
explicam a história política e nacional de hoje?

Profecia e os Eventos Atuais. Os dispensacionalistas clássicos e revisados têm em comum com o


pré-milenismo histórico uma crença de que as visões apocalípticas e as descrições no Antigo e no
Novo Testamento oferecem um plano detalhado de eventos interconectados, parcialmente
codificados, que descrevem especificamente o cenário do retorno de Cristo. Uma vez
decodificada, essa porção da história, a tribulação, pode ser conhecida em termos
surpreendentemente concretos. Dispensacionalistas e historicistas diferem entre si apenas na
questão relativa aos eventos da tribulação ocorrendo no presente. A doutrina do arrebatamento
pré-tribulacional permitiu aos dispensacionalistas manter a tribulação inteiramente no futuro, e
assim eliminar o constrangimento de repetidos fracassos em tentativas de relacionar eventos
atuais com a profecia.
A pressão popular da interpretação historicista sempre esteve presente na formação do
dispensacionalismo americano. Historicistas participaram lado a lado com futuristas nas
conferências bíblicas e proféticas do último século. A. J. Gordon, por exemplo, historicista
destacado, exerceu uma grande influência na forma e no tom do pré-milenismo nos Estados
Unidos, até mesmo no desenvolvimento do dispensacionalismo. Um público evangélico clamou
por uma explicação religiosa acerca das convulsões políticas, militares e religiosas no começo do
século XX. Os dispensacionalistas responderam com a sua própria solução ao historicismo.
Embora ninguém possa interpretar os tempos como a revelação atual da história da tribulação,
pode ser observada a formação das características da história da tribulação antes do início de fato
dessa história. Eles concordam com os historicistas que um intérprete da Bíblia pode identificar
nações, pessoas e movimentos da tribulação com especificidade, se os códigos apocalípticos forem
devidamente entendidos. Porém, porque eles alegaram estar aptos para identificar esses eventos
enquanto estavam se formando, antes que a própria tribulação começasse de fato, eles efetivamente
convertem a interpretação bíblica numa forma de profecia em si.
Os dispensacionalistas clássicos e revisados diferiram em níveis na especificidade pela qual
eles identificavam os eventos atuais como a formação do cenário da tribulação. Eles também
pareceram capazes de se dobrar e se curvar com as mudanças na história, para que as
identificações que fizeram anteriormente acerca dos poderes e movimentos militares propensos à
tribulação pudessem ser reformuladas de acordo com o que parecia mais ou menos provável com
o passar do tempo.1
Embora, conforme observamos, a literatura apocalíptica bíblica e as profecias continuem
sendo uma característica importante da teologia dispensacional, os desenvolvimentos atuais na
interpretação histórica e literária põem em questão esses elementos historicistas do
dispensacionalismo inicial. Até esse ponto, os dispensacionalistas não buscaram ativamente o
estudo do gênero apocalíptico como um gênero literário. Além do mais, muito da literatura
apocalíptica bíblica tem sido lido à parte das considerações do seu contexto histórico (ler as
profecias e a literatura apocalíptica à luz do seu contexto histórico não exclui um referente
futuro). Os dispensacionalistas, assim como os historicistas, tenderam a lê-lo diretamente à luz
dos seus próprios contextos. O próprio fato de que esses contextos modernos estão em mudança,
foram produzindo muitas mudanças na leitura dispensacional correspondente à profecia; deve-se
dar uma pausa.
À medida que os dispensacionalistas começaram a estudar os elementos literários da profecia
e do apocalíptico, eles precisam levar em conta a forma como as descrições literárias são levadas a
um padrão recorrente de profecia e cumprimento dentro da própria história bíblica. Isso inclui,
por exemplo, a interconexão literária das palavras e dos temas descritivos nos dois Dias do
Senhor em Joel e o uso recorrente da linguagem dos primeiros profetas pelos profetas que vieram
depois e até mesmo pelo Novo Testamento (por Jesus e seus apóstolos), para descrever eventos
históricos diferentes (a conquista assíria de Israel, a conquista babilônica de Judá, a destruição
romana de Jerusalém, um “Dia do Senhor” ainda por vir). O reemprego de descrições literárias
na profecia posterior e no apocalíptico põe em questão a suposição de que essa linguagem fornece
um cenário histórico concreto de forma parcialmente codificada.
Certamente, os dispensacionalistas progressivos acreditam que haverá uma tribulação futura
formando o cenário para o retorno de Jesus. Os eventos atuais que acontecem nesse tempo na
história seguirão o padrão geral delineado nas Escrituras (o mesmo padrão que tem sido aplicado
pelas próprias Escrituras em eventos passados.). Entretanto, os dispensacionalistas progressivos
questionariam a alegação de qualquer intérprete bíblico que tenha identificado eventos atuais
específicos como um cumprimento tribulacional futuro das descrições repetidas historicamente
do Dia do Senhor ou das visões misteriosas do apocalíptico bíblico. Deveria ser observado o fato
de que na história bíblica, o cumprimento profético sempre foi identificado e proclamado pela
autoridade profética. É necessária a autoridade profética ou a aparição do próprio Jesus Cristo
para identificar qualquer padrão de angústia e conflito no mundo com a tribulação. Ninguém
pode, por uma alegação de interpretação “científica”, divinizar esse tipo de autoridade para si
hoje em dia.
Os dispensacionalistas devem proteger a si mesmos e suas igrejas de especulações e do
sentimentalismo que não edificam o corpo de Cristo, levando à ilusões, ressentimentos e falta de
fé, quando profecias que deveriam acontecer sob o pretexto de interpretação falham.

Teologia e a Esperança de Israel. O caso de Israel e do povo judeu é um aspecto especial de


nossa questão geral acerca do relacionamento das Escrituras com a história contemporânea. A
preservação contínua da raça judaica está certamente de acordo com as promessas e profecias de
Deus com respeito à existência do povo e a salvação de um remanescente na vinda do Messias.
Os eventos destacáveis dos últimos dois séculos, nos quais judeus têm gradualmente retornado à
Palestina é certamente consistente com o fato de que o Filho de Davi é Senhor da história.
Vimos em nossos tempos o restabelecimento de um estado judeu e sua preservação através de
várias circunstâncias difíceis.
Porém, também observamos que a obra primária do Filho de Davi, que também é o Deus de
Israel encarnado, nos últimos dois milênios, tem sido o cultivo de um remanescente a partir de
todos os povos que confiam nele. Tal atividade está diretamente ligada em conservar as profecias
que ele governará sobre todos os povos, que os gentios, assim como os judeus, colocarão sua
confiança nele. Agora precisamos perceber que dentre esses redimidos das nações, ele manteve
um remanescente de judeus que confiam nele. Isso é verdade para o tempo presente, na medida
em que temos várias comunidades messiânicas, assembleias de judeus que têm colocado sua fé no
Filho de Davi, antecipando seu retorno.
Precisamos notar que os judeus crentes no Messias são o remanescente crente de Israel. Eles
estão crescendo em número, o que é inteiramente consistente com o senhorio do Messias nesta
dispensação. Eles, juntamente com o remanescente de gentios, devem manifestar a justiça do
Messias, e devem ser um testemunho da justiça para todas as nações, incluindo Israel.
Qual atitude a igreja, a comunidade internacional messiânica e multicultural, deveria tomar
em relação ao presente Estado de Israel? Por um lado, o Senhor instruiu a igreja, sua assembleia
de todas as nações, a orar pelas autoridades governamentais. Isso significa que a igreja, as
comunidades messiânicas e as igrejas predominantemente gentílicas devem orar pelo Estado de
Israel assim como por outras nações do mundo hoje.
A igreja deve obedecer às leis dadas pelas autoridades governamentais. Ela tem um mandato
para testificar o senhorio e messianidade de Jesus que pode conflitar com as leis de alguns
estados. Nesse caso, deve estar preparada para sofrer as penalidades daquelas autoridades, como
foi o caso dos primeiros judeus cristãos que foram perseguidos por autoridades de judeus
descrentes, e também o caso de gentios cristãos perseguidos por autoridades locais imperiais, e
como continua em muitos outros lugares ao redor do mundo ainda hoje.
A igreja, a comunidade messiânica internacional, deveria ser um testemunho e uma revelação
da justiça e da paz entre povos, especialmente entre judeus e gentios. Agora, em uma
comunidade de nações que detém a forma de governo participativo, a igreja tem uma tremenda
oportunidade de testemunhar a paz e a justiça. A igreja deve se opor ao ódio étnico, seja pessoal
ou político. No nível político e governamental, ela deve se opor à hostilidade étnica aos judeus da
parte de governos gentios. Deve se opor, também, à hostilidade étnica contra um povo gentio em
particular por parte de outro governo gentio. Também deve se opor à hostilidade do governo de
Israel contra um povo gentio em particular. Em vez disso, a igreja deve ser um modelo em si
mesma de relacionamentos de paz e reconciliação.
A cumplicidade do cristianismo na hostilidade de alguns poderes gentios contra os judeus
nos últimos dois mil anos é uma das falhas mais claras da igreja nesta dispensação, se
posicionando ao lado das divisões faccionais, perseguição e guerras entre grupos que proclamam
o nome de Cristo. O dispensacionalismo começou como um movimento de protesto contra a
identificação do estado moderno com a igreja (especialmente o caso da Igreja da Inglaterra do
século XIX). Ele buscou a união pacífica de todos os crentes em Cristo dentre as divisões
denominacionais. Assim, ele buscou e promoveu a reconciliação de todas as partes (isto é, todos
os grupos evangélicos protestantes) em Cristo. Ele também reconheceu um futuro para o Israel
étnico e nacional (apesar de ter feito à parte das bênçãos da igreja). Assim, o dispensacionalismo
ajudou a trazer uma atitude favorável em relação aos judeus e o movimento sionista desde o
último século.
Entretanto, no seu entusiasmo para a ressurreição política de Israel, alguns
dispensacionalistas parecem ter perdido de vista a atividade particular do Filho de Davi nesta
dispensação — que é trazer reconciliação e paz entre povos. Alguns têm defendido publicamente
um suporte de carta branca para qualquer política promulgada pelo Estado de Israel.2 Porém, e
quanto à medidas políticas que sustentam a injustiça, como cristãos podem defendê-las? Como
podem judeus ou cristãos gentios de hoje em dia apoiarem as injustiças israelenses quando
profetas judeus no Antigo Testamento condenaram as autoridades em Jerusalém por injustiças
similares, geralmente pondo em risco os próprios profetas? Não houve maiores apoiadores do
povo judeu, e do futuro de Israel debaixo de Deus, do que Moisés, Samuel, Amós, Elias,
Habacuque, Isaías e Jeremias. E ainda assim, nenhum deles confundiu seu compromisso e desejo
de abençoar Israel com o apoio ou tolerância à injustiça!
Por favor, perceba que esses mesmos profetas condenaram as nações gentílicas ao mesmo
tempo pelas mesmas, ou piores injustiças. A igreja nesta dispensação precisa prover um
testemunho para a justiça que faz paralelo com o dos santos do Antigo Testamento.
Com base na profecia política, esperamos um tempo quando muitos judeus se voltarão para
o Filho de Davi, como um remanescente de judeus tem feito através dos séculos. As profecias
com respeito à glória futura de Israel encontrarão seu cumprimento nesse remanescente de fé
constituído como uma nação santa sob o reino do Messias, o Filho de Davi. A reunião
progressiva dos judeus à Palestina nos tempos modernos e sua reconstrução política é certamente
consistente com essa explicação. Porém, não é ainda o cumprimento do reino prometido de
glória. Esse reino vem com o retorno do Messias e é antecipado pelas bênçãos presentes sobre
judeus e gentios que confiam nele.

CRISTOLOGIA
O dispensacionalismo clássico buscou organizar as Escrituras ao redor de uma soteriologia
dualista: uma redenção celestial produzindo um povo celestial e uma redenção terrena
produzindo um povo terreno. Apesar de unirem o dualismo clássico em uma salvação comum
(quer no “céu” ou na “nova terra”), dispensacionalistas revisados permaneceram estritamente
antropocêntricos na sua leitura das Escrituras e na sua organização da teologia. O
dispensacionalismo progressivo vê Cristo como a chave para entender as Escrituras e o foco
adequado para o pensamento teológico.
É claro que outras teologias, até mesmo formas anteriores do dispensacionalismo, podem
também dizer que Cristo é a chave para as Escrituras. Os dispensacionalistas progressivos,
entretanto, buscam entender a apresentação do Novo Testamento de Cristo em uma forma
literária-histórica. O que surge é uma figura do Cristo que é complementar às promessas
históricas das alianças bíblicas e ao acompanhar a revelação progressiva na profundidade e
extensão da redenção. Isso é o que nos leva a uma redenção holística — uma que cobre todos os
aspectos da vida humana.
Seguindo a tradicional crença na unidade da pessoa de Cristo e à integridade das naturezas
divina e humana (porque cremos que essa interpretação é confirmada pela leitura repetitiva da
igreja das Escrituras), nós, não obstante, buscamos entender a revelação de sua deidade e o
significado da sua humanidade de uma maneira histórica. Ele deve ser entendido à luz de uma
história de redenção revelada no Antigo Testamento e propagada no Novo Testamento. Nosso
estudo das alianças e do reino confirma isso. Em outras palavras, ele é esse Messias, esse Rei
ungido do eschaton, que cumprirá as promessas da aliança.
Como Deus, ele também deve ser interpretado à luz da história da redenção, como tem sido
revelado no Antigo Testamento. O Novo Testamento transmite esse entendimento de Deus,
como vimos também nos capítulos anteriores. Isso significa que ele é esse Deus que fez as
promessas da aliança, que é esperado para vir na era escatológica e governar a terra e todos seus
povos — removendo sua culpa e trazendo-os em comunhão próxima e eterna consigo mesmo,
abençoando-os com vida, conforme ele pretendeu para eles para que vivam, para sempre.
Em Jesus Cristo, os governos humanos e divinos estão juntos em uma pessoa. Essa é a
revelação da reconciliação última. A tensão entre o governo davídico e divino é eliminada na
unidade da pessoa e ação de Cristo. Assim, a encarnação é crucial para garantir a salvação dos
seres humanos, pois pelo menos esses seres humanos têm uma vida humana duradoura e eterna.
Sua expiação é crucial para trazer perdão e justificação para todos. Sua ressurreição dos mortos
revela a imortalidade humana assim como o poder divino.
Muito disso é teologicamente familiar, entretanto, a teologia tendeu a tratar a humanidade
de Cristo de forma genérica. Isso pode ser visto, por exemplo, na análise tradicional cristológica
da sua natureza humana. Praticamente, isso significou a “gentilização” de Cristo. Pois sua
judaicidade, e especialmente aquele papel do judeu Filho de Davi, é perdida nessa análise típica.
O que está faltando é uma reflexão séria sobre aquele outro princípio cristológico da
inominização, que declara que Cristo não carece de personalidade humana (tendo portado
natureza humana, mas não uma identidade humana real). Entretanto, para nos guardar do
nestorianismo (a heresia de que Cristo é na verdade duas pessoas, uma divina e uma humana), a
cristologia ortodoxa afirmou que o Cristo tem real personalidade humana na pessoa do Filho
Eterno de Deus, Segunda pessoa da Trindade. O ponto aqui, entretanto, é que a ortodoxia
afirma que Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Porém, que homem? Um
homem genérico?
Concordaríamos que, nas Escrituras, ele é aquele homem predito pelas alianças e pelas
profecias, um homem com o destino esboçado naquelas promessas da aliança e profecias. Esse
destino deveria ser entendido histórica e revelacionalmente através do Novo Testamento. Em
outras palavras, ele é a pessoa que o Antigo Testamento esperava que ele fosse. Porém, ele é mais,
visto bem diretamente na revelação dele como Deus. Isso não é mera deidade ontológica. Esse é o
Deus que não somente é o poder eterno e último, a vida e a morte últimas para nós, mas é o
Deus que disse que viria e teria comunhão conosco no reino eterno. Esse extra que o Novo
Testamento revela em Cristo não elimina ou erradica o Cristo que foi esperado, mas aumenta seu
retrato e papel. Um aumento que mantém o que já estava lá anteriormente enquanto adiciona a
ele. A teologia tradicional tem lutado com a tentação de deixar o extra em Cristo eliminar aquilo
que foi esperado. Porém, esse é o caminho para o docetismo (a heresia acerca de Cristo somente
parecer ser um homem). Pois, é precisamente na expectativa bíblica de Cristo, o Filho de Davi,
que governa todas as nações, que essa sua humanidade deve ser encontrada. Ele é esse homem, o
homem das profecias, o Filho de Davi-Filho de Deus (no sentido da aliança do Filho de Deus —
isto é, o Rei) que governará as nações do mundo.
Já que na teologia do Antigo Testamento, o Filho de Davi é esperado que seja o Filho do
Homem (Sl 8), que é esse homem, no qual a imagem de Deus para o homem é realizada
ultimamente, consequentemente, vemos em Jesus Cristo o cumprimento da vida humana e o
domínio da criação de Deus. Conectado a ele está o futuro da raça humana. Porém, é uma raça
humana em sua pluralidade concreta. Isso é o que vemos nas profecias de que Cristo governaria
todas as nações da terra. É uma reconciliação, não somente da humanidade com Deus, mas da
humanidade consigo mesma em toda sua multiplicidade. É a reconciliação do Filho de Davi com
outros judeus e com gentios, levando à reconciliação desses povos entre si.
Consequentemente, vemos Cristo de forma concreta, e não de forma abstrata ou genérica.
Vemos Cristo de forma concreta como o Deus de Israel e de todas as nações, encarnado em
Jesus, filho de Davi. Esse é o Deus que revelou sua intenção de habitar na e com a humanidade.
A habitação é primeiramente revelada no próprio Cristo e estendida a nós nesta dispensação —
judeus e gentios que confiam nele, numa forma inaugural e depositária, aguardando a revelação
completa de Deus em nós na próxima geração (nossa glorificação).3 A habitação com a
humanidade confirma os aspectos coletivos e corporativos da vida humana, seus elementos
nacionais, políticos e sociais. Deus pretende ter comunhão com uma humanidade corporativa (é
por isso que ele ordenou que os seres humanos enchessem a terra, levando não apenas à
diferenciação individual, mas também à diferenciação coletiva nas famílias, tribos e nações).
Deus revelado em Cristo é Deus que veio para ter comunhão conosco dessa maneira. Jesus Cristo
é Deus encarnado como o Filho de Davi, o governador político da humanidade redimida em
todos os seus aspectos, tanto individuais quanto nacionais.
Porque as Escrituras revelam Jesus sendo esse Deus e Homem, não podemos inventar para
nós mesmos qualquer outra relação com ele que aquela a qual ele próprio revelou para todos os
povos.
Ao ser verdadeiramente humano e ser o homem específico que ele é, sua relação com outros
seres humanos é histórica, isto é, ele é um homem que experimenta a história em relação à terra e
a humanidade nela. Ele não fez isso antes da sua morte. Sua ressurreição dos mortos confirmou
para ele um relacionamento futuro que ele mesmo falou em termos tanto políticos quanto
espirituais. Quando nos relacionamos com ele hoje, estamos nos relacionando com aquele Filho
de Davi que é imortal, que tem um destino, que está vindo para governar as nações. Toda sua
obra presente deveria ser interpretada à luz disso. Ele está reconciliando um povo para si —
judeus e gentios, que serão essa humanidade escatológica das profecias. O caráter e a qualidade
de sua obra entre judeus e gentios hoje não separam mais esses judeus e gentios das promessas de
domínio mundial, senão, não seria Ele quem está fazendo a obra. As Escrituras revelam essa obra
como estando alinhada com sua completa intenção de voltar, renovar a criação e ter comunhão
com os redimidos para sempre — Deus habitando na humanidade que ele criou e juntamente
com ela.
Cristo, então, é a revelação do plano e do propósito do Deus-Cristo em Sua concretude,
como interpretado historicamente e nos padrões literários das Escrituras. Ele é a chave para as
dispensações. O mistério dessa dispensação é devido a determinação dele e do Pai como um
estágio, ou caminho, livremente escolhido em direção ao cumprimento da intenção divina. Ele
dá às dispensações sua unidade — uma unidade no desenvolvimento histórico, não uma unidade
transcendental não-histórica — e ele dá aos redimidos a identidade deles como o(s) povo(s) de
Deus.

1. Para uma história sobre esse tipo de interpretação profética veja: Paul Boyer, When Time Shall Be No More: Prophecy Belief in
Modern American Culture (Cambridge, Mass.: Belknap, 1992).
2. Isso é geralmente justificado com base na provisão mediadora da aliança abraâmica (“abençoarei os que te abençoarem e
amaldiçoarei os que te amaldiçoarem”). Essa interpretação falha em notar como a mediação da aliança tem sido herdada pelo Rei,
o Filho de Davi, para ser exercitada por ele em favor de Israel e de todas as nações (veja os capítulos 5 e 6 acima). A bênção e a
maldição da Aliança abraâmica hoje é direcionada para todo aquele que abençoa ou amaldiçoa o Messias de Israel, Jesus, o filho
de Davi. Gentios deveriam tratar judeus com respeito por causa da exaltação do rei de Israel. Judeus deveriam tratar gentios com
respeito por causa do favor que o rei de Israel tem mostrado aos gentios. Porém, é um uso indevido das Escrituras dizer, com base
na aliança abraâmica, que os gentios receberão uma bênção por aplaudir acriticamente todas as ações tomadas pelo Estado
moderno de Israel. Um olhar cego em direção à injustiça foi o erro dos falsos profetas e não são testemunho para santidade na
igreja.
3. Reconhecemos, é claro, a diferença entre Deus em Cristo e Deus em nós. Não nos tornamos Deus como Jesus é Deus. Porém,
Deus habitando em Jesus é o fundamento, a base para Deus habitar em nós. Os pais da igreja falaram sobre sermos filhos de
Deus pela participação em Cristo, enquanto Cristo era o Filho de Deus por geração eterna.
APÊNDICE
por Darrell L. Bock
APÊNDICE A

O FILHO DE DAVI E O SERVIÇO DOS SANTOS: A HERMENÊUTICA


DO CUMPRIMENTO INICIAL

O plano de Deus, a obra de Cristo e a obra da igreja são temas complexos. Como alguém poderia
resumir o vasto serviço da igreja? Como alguém poderia unir a diversidade de vertentes de ensino
da Bíblia — vertentes que refletem a esperança futura para Israel e ao mesmo tempo descrevem o
que o povo de Deus na igreja deve fazer hoje? Como alguém pode encorajar os santos em um
mundo que parece tão caótico? Como ministrar num mundo que é tão cruel e confuso? Ao final
das contas, quando tentam reunir grandes porções do Novo Testamento, recomenda-se um
retorno à cristologia. Jesus Cristo é o centro do plano de Deus. Ao seu redor, os crentes se unem
e ganham sua identidade.
Portanto, é importante considerar o ministério de Jesus, especialmente em seu papel como o
Filho de Davi. Esta função é significativa pois se relaciona com a questão do reino prometido
sobre o qual o Filho de Davi preside.
Os dispensacionalistas concordam amplamente sobre como este reino funcionará na era
futura, mas têm opiniões distintas sobre como ele funciona na era presente.1 Os
dispensacionalistas da escola de Scofield viam o reino de Davi como o reino dos céus manifesto
tanto no presente (em forma misteriosa) e no futuro (no milênio). Entretanto, para eles o reino
dos céus não é o mesmo que o reino de Deus e a presente era; a forma misteriosa do reino dos
céus descreve somente a cristandade professa.2
Os dispensacionalistas “essencialistas”, representados por Pentecost, Ryrie e Walvoord,
aceitam o conceito da atual forma misteriosa do reino, embora insistam que não é de forma
alguma um cumprimento do reino davídico.3 Além disso, eles negam ou pelo menos minimizam
a distinção entre o reino do céu e o reino de Deus, uma distinção que os primeiros
dispensacionalistas mantiveram vigorosamente. Eles também diferem no modo como veem o
relacionamento da igreja na presente forma de reino. Mas eles concordam que, seja qualquer que
for o relacionamento, os elementos davídicos não estão presentes na atual forma de reino.4
Embora a promessa davídica fora desenvolvida no Novo Testamento, ela foi separada da
promessa do Antigo Testamento a Israel.
Entretanto, esta mudança levanta algumas questões. Como poderia o Filho de Davi, nascido
em Belém e reconhecido desde aquela época como o Messias, trazer um forma misteriosa ou
espiritual do reino de Deus agora e um futuro — o reino de Deus prometido para Israel — e ao
mesmo tempo exercer o papel como o Filho de Davi somente em um reino futuro, considerando
que textos das profecias messiânicas, como Salmos 110.1 e Isaías 53, foram aplicados às suas
atividades atuais? Além disso, como alguns benefícios da salvação (por exemplo, o Espírito Santo
e a Nova Aliança) podem estar associados com os mistérios do reino e/ou sua forma espiritual —
a igreja — e também estar ligados à esperança do Antigo Testamento, especialmente aos
conceitos da esperança davídica nos Evangelhos e em Atos? Como o reino de Deus poderia ser
limitado agora para a cristandade professa? Os dispensacionalistas da linha de Scofield
reconhecem as conexões temáticas entre Davi e as formas presentes e misteriosas do reino. A
maioria dos dispensacionalistas essencialistas reconhecem a igreja como sendo equivalente, ao
menos em parte, à presente forma do reino. Os dispensacionalistas progressivos unem estas duas
posições.
Tais questões textuais, teológicas e hermenêuticas levaram muitos dispensacionalistas a
reexaminar a questão a respeito do reino de Davi, procurando defini-la de forma mais precisa.
Eles perguntam se a filiação davídica de Cristo e seu governo são de fato distintos e se há
conexões bíblicas entre a filiação e o governo que sugerem tanto a continuidade quanto a
descontinuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Qual é o papel do Filho de Davi e como
ele se relaciona com os santos da era presente?
Este artigo começa com a discussão de uma passagem chave que oferece um panorama do
ministério de Jesus (Lc 1.68-79). Esta passagem é considerada tanto historicamente quanto de
uma perspectiva literária com o propósito de aumentar o conhecimento de quem ele é, o que ele
fez e o que ele está fazendo. Em segundo lugar, dois temas nesta passagem são aqui delineados.
Em terceiro lugar, são abordados o tema do reino nos dias de hoje e a capacitação de Deus ao seu
povo pelo Espírito. E em quarto lugar, são consideradas as implicações deste ponto de vista para
o papel da igreja.

O MINISTÉRIO DE JESUS APRESENTADO EM LUCAS 1.68-79


Lucas 1.68-79 é um cântico de louvor dos lábios do pai de João Batista. Neste hino, Zacarias
agradeceu a Deus por redimir a nação por meio do Filho de Davi. O serviço do filho tem duas
características: o livramento terreno (vv. 68-75) e a redenção espiritual, que virá após a ministério
do precursor (vv.76-79).

LUCAS 1.68-70
Os cânticos de louvor incluem uma introdução ao tema, as razões para louvar e então uma
elaboração deste tema (veja também as razões para louvar nos cânticos de Maria e Simeão em
Lucas 1.47-48 e 2.29-30). E é exatamente isso que está incluído no cântico de Zacarias. Ele
louvou a Deus (1.68) por ter visitado o seu povo através da obra do prometido “chifre da
salvação” proveniente da “casa” de Davi (v. 69-70). Em outras palavras devemos ser gratos a
Deus pelo envio do tão esperado Messias. O termo “chifre” (Κέρας) é uma figura para força
(Dt 33.17), simbolizando a presença do grande poder real (1Sm 2.10; Sl 132.17). Os versículos
subsequentes de Lucas 1 detalham como este poder é usado. O versículo 70 relaciona essa
esperança da libertação às profecias do Antigo Testamento, e o versículo 71 detalha esta
promessa ao afirmar que a libertação é dos “nossos inimigos e das mãos de todos os que nos
odeiam”. É ampla a referência aos inimigos, embora não haja dúvida que Zacarias tinha em
mente a oposição política e social.

LUCAS 1.71-75
Além da libertação política, os versículos 71-75 abordam outros dois assuntos. Um deles é que a
ação divina reflete a misericórdia de Deus (v. 72), baseando-se nas promessas feitas há muito
tempo a Abraão (v. 73) bem como a Davi (v. 69). Um terceiro ponto declara que o objetivo
desta libertação é que os santos possam servir a Deus “sem temor, em santidade e justiça”
(vv. 74-75).5 Portanto, Zacarias claramente antecipou a libertação nacional para seu povo Israel,
provavelmente de Roma. Seu cântico é repleto com a esperança do Antigo Testamento, como
mostram as inúmeras alusões ao Antigo Testamento neste hino.6 A questão crucial é que a
libertação messiânica finalmente tem qualidades espirituais e terrenas. Esta profecia da libertação
política-espiritual, da mesma forma que as profecias do Antigo Testamento, foram inspiradas
pelo Espírito Santo (v. 67; cf. 2Pe 1.21). Desta forma, Israel tem um futuro na terra. Deus se
comprometeu pessoalmente com a nação e seu povo fiel por meio das promessas feitas a Abraão e
a Davi. Agora há um remanescente fiel, e há posteriormente uma esperança nacional, uma
verdade defendida também por Paulo (Rm 11.25-27).

LUCAS 1.76-79
Nos versículos 76-77 João Batista é visto como aquele que vai preparar o caminho. Ele pregava
sobre a salvação por meio do perdão dos pecados. Novamente aqui é declarado o tema espiritual,
agora de forma mais explícita. Jesus também pregou sobre o perdão dos pecados, comissionou
seus discípulos para pregá-lo (Lc 24.47), e também esta era a mensagem dos apóstolos (At 5.31,
20.21).
Em Lucas 1.78-79 fica clara a dimensão espiritual da obra do Filho de Davi. Jesus, como o
Filho de Davi (v. 69), é visto como o “sol nascente” (v. 78, cf. Nm 24.17; Is 58.6-8; 60.1-3).
Como Luz (Is 9.2; 42.6-7; 49.6), ele brilha sobre aqueles que estão em trevas e os conduz ao
caminho da luz e da paz. Jesus conduz os indivíduos a um relacionamento com Deus por meio
do perdão dos pecados, o qual João Batista preparou as pessoas para o receberem. O que é crucial
aqui é que, de acordo com o cântico de Zacarias, toda esta atividade é parte do ministério de
Jesus como o “chifre da salvação [...] na casa de Davi” (v. 69). Essas atividades representam os
primeiros passos no cumprimento por parte de Jesus de sua promessa real.7 O cumprimento da
promessa é visto conforme a revelação progride de uma dispensação para a próxima. O
argumento de Zacarias é que Deus traria uma libertação física e espiritual para Israel de todos os
seus inimigos. Esta é uma promessa básica no Evangelho de Lucas. Mas essa passagem funciona
também como uma parte literária da introdução de Lucas-Atos. Como Lucas lidou com os temas
apresentados aqui no decorrer de sua obra? Lucas viu mais nos inimigos e beneficiários do que
Zacarias?
Quem são os oponentes a quem se refere Zacarias (v. 71)? E o que é sugerido através do tema
das trevas (v. 78-79)? O Evangelho de Lucas e o livro de Atos respondem a essas perguntas e
revelam o argumento teológico e literário de Lucas. Os oponentes são Roma, que se opunha ao
povo de Deus, bem como os inimigos também são os líderes religiosos da nação israelita
(Lc 11.37-54) e o povo judeu (At 4.24-29). Por de trás deles há a oposição do próprio Satanás e
o cativeiro em que ele mantém as pessoas por causa do pecado (Lc 4.16-30, 31-44; 8.26-39;
11.14-23). Na cena da tentação, Satanás se opôs a Jesus ao tentar desviá-lo de sua fidelidade a
Deus como Seu Filho (4.1-13). Desta forma, Lucas desenvolveu o argumento da oposição
espiritual mais extensamente do que Zacarias havia feito. Zacarias estava correto quando afirmou
sobre a esperança e como ela impacta a nação de Israel, porém Lucas, tendo a perspectiva
completa do ministério de Jesus, escreveu um desenvolvimento profundo sobre a promessa que a
expandiu, embora mantivesse sua base original. Atos 3.19-21 mostra que o cumprimento da
promessa por meio do Antigo Testamento nunca se perde naquilo que é desenvolvido a partir
dessa promessa.

DA LEITURA HISTÓRICA PARA A LEITURA LITERÁRIA


Um texto bíblico pode ser lido em vários níveis. É mais ou menos como ter uma câmera e
aproximá-la para ter um plano mais fechado ou afastá-la para ter um plano mais aberto. É
possível ler uma passagem de duas formas complementares. Um evento pode ver visto em si
mesmo e/ou lê-lo à luz dos eventos subsequentes. As duas formas de leitura são legítimas e
impactam apropriadamente o sentido da passagem. Tal tipo de leitura feita em várias camadas
não é uma espiritualização ou alegorização do texto; ela simplesmente reflete a profundidade e a
diversidade da mensagem bíblica conforme o seu contexto é examinado.8 Além disso, esta leitura
que surge não é à custa da leitura original, mas sim uma leitura complementar.9 Em outras
palavras Deus pode prometer mais do que originalmente prometeu, mas nunca menos.
Existem dois erros na teoria hermenêutica sobre como esses textos relacionados devem ser
lidos. (1) É um erro ler o segundo texto como se ele apresentasse tudo o que o texto anterior
significava. Alguns intérpretes fazem isso quando argumentam que o Novo Testamento declara o
que o Antigo Testamento realmente significa e então afirmam que isso é tudo o que o Antigo
Testamento queria dizer (e assim os profetas do Antigo Testamento são vistos como se
originalmente estivessem fazendo um grande esforço para expressarem o que realmente
pretendiam ou que se expressaram por meio do “simbolismo inconsciente”).10 Também é um
erro argumentar que a passagem do Novo Testamento pode significar somente o significado do
texto anterior do Antigo Testamento.11 Ambas as abordagens, quando elevadas a cânones
invioláveis, impedem uma leitura sensível do progresso da revelação e correm o risco de impedir
que cada passagem fale por si mesma. Cada texto deve ser examinado em seus próprios termos
em seu contexto.
O conceito da leitura multicamada não deve ser algo surpreendente. Ele é usado
constantemente na leitura das verdades cristológicas ou do reino no Antigo Testamento. A
revelação subsequente sempre pode expandir a revelação anterior. Tal abordagem hermenêutica
tem o “controle” no significado de uma passagem, pois os textos subsequentes aos quais o texto
anterior está relacionado fornecem detalhes adicionais ao conceito sem substituir os conceitos já
apresentados, a menos que um cancelamento seja observado explicitamente (por exemplo, no
caso da circuncisão ou dos sacrifícios levíticos). Isso impede que a leitura de um texto posterior
seja uma “leitura direcionada” ao significado de um texto anterior. Essas são leituras relacionadas,
que são possíveis por causa dos temas levantados implicitamente no texto anterior, temas que
permitem que uma promessa se desenvolva à medida que a revelação progride.
Isto pode ser chamado de hermenêutica complementar, uma abordagem que funciona
naturalmente como o resultado do progresso da revelação dentro de uma leitura do texto
histórico-gramatical-literária. Essa hermenêutica produz camadas de sentido e especificidade para
um texto, à medida que o intérprete deixa de considerar o contexto próximo e passa a considerar
o mais distante. A base para esta leitura complementar da esperança de Deus está em Mt 13.52.
Jesus comparou o escriba do reino a um pai de família que traz do seu tesouro coisas antigas e
novas. Paulo argumentou da mesma forma quando uniu os conteúdos do mistério do evangelho
às Escrituras do Antigo Testamento (Rm 11.25-27). Isso significa que o ensino sobre o plano de
Deus e a obra de Jesus tem uma continuidade com a esperança e a promessa do Antigo
Testamento, mas também pode conter uma nova verdade. O antigo e o novo são colocados lado
a lado e complementam um ao outro. Não há uma escolha entre duas opções, mas sim uma
abordagem ambos/e. Essa leitura complementar se enquadra no texto de Lucas 1.68-79 no
contexto de Lucas-Atos.

O DESENVOLVIMENTO DOS TEMAS DO CÂNTICO DE ZACARIAS


Dois temas (a visita de Deus e a luz) apresentadas no Evangelho de Lucas e em Atos ilustram o
desenvolvimento da promessa proferida por Zacarias.

A VISITA DE DEUS
A ideia da visita de Deus (Lc 1.68) é desenvolvida nos versículos 78 e 79. “A estrela ascendente
vinda do céu nos visitará para brilhar sobre os que vivem nas trevas.”12 Deus visita o seu povo
através do Messias, que adentrou nas trevas espirituais. Mais adiante, quando Simeão pegou o
bebê Jesus, ele disse que tinha visto a “salvação” de Deus, a qual é a “luz da revelação para os
gentios” (Lc 2.28-32). Simeão sabia que o Messias chegara tanto para Israel quanto para os
gentios. O texto de Lucas 7.16 declara que o povo de Naim reconheceu que Deus visitara seu
povo por meio de Jesus como “um grande profeta”. Em Lucas 19.44 é dito que Israel perdeu o
tempo da visitação. Entretanto, a “visita” continua, a despeito do atual fracasso de Israel. No
concílio de Jerusalém, Tiago afirmou que quando Pedro pregou a Cornélio, Deus havia visitado
os gentios (At 15.14). Portanto, o desenvolvimento de Lucas a respeito do tema da “visita” de
Deus expande a promessa para incluir muito mais daquilo que Zacarias dissera.

A LUZ
Um segundo tema no cântico de Zacarias é a luz (Lc 1.78-79). Em Lucas 2.32. Simeão afirmou
que Jesus é a “luz para revelação aos gentios”. Esta imagem está relacionada à salvação (v. 30). De
fato, estas imagens mostram a continuidade com as promessas do Antigo Testamento, como
visto nas passagens do servo no livro de Isaías (Is 46.6; 49.6, 9). Em Atos 13.47, o tema da luz
continua. Entretanto, Paulo e Barnabé referiram-se a si mesmos, e não a Jesus, como luz para os
gentios. Eles assumiram a tarefa do servo de Isaías por causa de seu relacionamento com Jesus.
Este versículo mostra não somente uma expansão do tema da luz, mas também o uso
complementar desses temas no Antigo Testamento de servo e da luz.
Atos 26.16-23 mostra que Paulo estava ciente deste tema da luz. Ao dirigir a sua mensagem
ao povo (Israel) e aos gentios (vv. 20, 23), Paulo disse que o Senhor o chamou para “abrir os seus
olhos e trazê-los das trevas para a luz e do poder de Satanás para Deus, e desta forma eles podem
receber o perdão dos pecados e serem colocados entre aqueles que são santificados pela fé em
[Cristo]” (v. 18). Ele declarou o que o Antigo Testamento havia predito (v. 22), mostrando
assim que a sua mensagem de “luz para o seu próprio povo e para os gentios” (v. 23; cf. Lc 2.30)
tinha raízes no Antigo Testamento. Portanto, o tema da luz está relacionado ao Antigo
Testamento e é expandido. Este é o último discurso de defesa detalhado de Paulo. Ao resumir a
sua missão, ele mencionou as trevas e a luz, da mesma forma que ocorre em Lucas 1.78-79. Ele
se referiu a Satanás como o inimigo, concordando com Lucas 1.68-79 e com o restante de Lucas
e Atos. Assim como o cântico de Zacarias era parte da ária de abertura em Lucas, o discurso de
Paulo é uma ária de encerramento em Lucas-Atos, ao detalhar a sua comissão.
O tema da luz confirma a leitura multicamada argumentada em Lucas 1. Cada passagem
deve ser lida naturalmente em seus próprios termos, mas também deve ser lida à luz dos temas
desenvolvidos a partir dela em passagens posteriores. Essa leitura nunca elimina o que foi
originalmente prometido, mas também não exclui o que é adicionado a ela

RESUMO
Como visto em Lucas e Atos, Jesus é o Rei que cumpre as promessas feitas a Abraão e a Davi, e
quem serve como Luz para Israel e para os gentios. Israel tem uma esperança futura de libertação
pelo Rei que governará sobre eles (cf. Lc 1.31-35). Mas em seus dois volumes, o interesse de
Lucas foi além de Israel. As pessoas enfrentam uma batalha contra Satanás e o pecado, uma
batalha que Jesus está vencendo ao trazer as pessoas das trevas para a luz. Todos esses elementos
descrevem o papel de Jesus como o “chifre da salvação” da casa de Davi (v. 69), como visto à luz
da teologia bíblica e por meio de uma leitura sensível de Lucas-Atos. Mas e o seu reino? Há uma
concordância de que Jesus é o Rei, mas sobre o que ele governa e está governando agora?

O REINO EM SEU ESTÁGIO INICIAL


Um estágio inicial do reino prometido de Cristo está vigente atualmente? A resposta a esta
pergunta ajuda a determinar como o povo de Deus deve ver a si mesmo e qual é o seu papel nos
dias de hoje. Qual é a sua identidade em Cristo e qual a sua tarefa atual? Várias linhas de
argumentação indicam que o reino está presente com Cristo, isto é, o Ungindo prometido por
Davi.

OS DOIS PERÍODOS
O texto de Lucas 7.28 afirma que, embora João Batista fosse o homem mais importante nascido
de mulher até aquela época, ele é o menor dos que estão no reino de Deus. Assim, são delineados
dois períodos de tempo: o período até João e o período após João (como o tempo do reino). João
havia se perguntado se Jesus era “aquele que havia de vir”, ou seja, o Cristo (vv. 18-20. cf. 3.15-
17). Ao responder sobre isso, Jesus citou a linguagem do Antigo Testamento (7.22-23) para
registrar o começo do fim, chamando a atenção para o seu ministério de cura (Is 29.18; 35.5-6;
42.18. 26.19, 61.1). Ele respondeu à pergunta messiânica feita por João ao apontar para as
evidências de seu governo, já que a derrota de Satanás envolve o exercício do seu poder como o
“Santo de Deus” (Lc 4.31-37, esp. v. 36; 11.14-23).
Lucas 7.22-23 e Lucas 3.15-17 revelam os seguintes pontos: (1) o Messias traz o Espírito
(como parte de seu ministério messiânico), (2) o Espírito como um indicador-chave da vinda e
do governo do Messias, (3) a esperança do Espírito (como promessa) é derivada da Nova
Aliança,13 e (4) a esperança de Davi está agora unida à promessa da vinda do Espírito de Deus
junto com ele. Desta forma, a esperança davídica e a Nova Aliança estão unidas. O Rei, a bênção
escatológica e o seu governo estão unidos. E com um vem o outro. Assim como “Elias”, João
Batista proclamou e resumiu a esperança do Antigo Testamento. Portanto, Lucas 3.15-17 deve
ser adicionado a Lucas 1.67-79 como um texto chave sobre o ministério de Jesus.
Em Lucas 16.16 encontra-se o mesmo conceito dos dois períodos de tempo. A Lei e os
Profetas foram pregados até João, mas então “são pregadas as boas novas do reino”. Os dois
períodos retratam a “promessa” e o “cumprimento”. Com a primeira vinda de Jesus, inaugurou-
se o processo e o tempo do cumprimento, embora ainda tenha mais para ser cumprido. É por
isso que o tempo atual faz parte dos “últimos dias” no Novo Testamento (At 2.16-17; Hb 1.1-2;
1Pe 1.10-12). O plano tem estágios complementares, de modo que Paulo se referiu a “esta era” e
a “era porvir” (Ef 1.21). E em 1 Coríntios 10.11 Paulo afirmou que na igreja chegou o
“cumprimento das eras”.

AS DUAS DECLARAÇÕES
Jesus fez duas declarações que refletem a chegada do reino. Uma delas é Lucas 11.20: “Se eu
expulso os demônios pelo dedo de Deus, então é chegado o reino de Deus sobre vós.” Na versão
de Teodócio da Septuaginta o verbo φθάωω (“chegar”) mais a preposição έπί (“sobre”) aparecem
em Daniel 4.24, 28, que fala dos eventos que “chegaram” na vida de Nabucodonosor. Em
Lucas 11.21-22, Jesus falou de um homem forte que toma a casa de outro em uma batalha na
qual uma antiga fortaleza é invadida. Em Efésios 4.7-10, Paulo escreveu sobre a vitória de Cristo,
citando Salmos 68.18 no versículo 8. Para Paulo, a vitória é descrita não em relação aos milagres,
mas em termos do fator decisivo da vitória — a ressurreição-ascensão de Jesus. Novamente, um
relacionamento complementar ao tema da vitória é visto no Novo Testamento como uma
relação temática do ministério de Jesus e de sua exaltação (semelhante a At 10.34-43). Porém, o
conceito de uma série de eventos em etapas também está presente, especialmente quando outras
passagens do Novo Testamento mostram que o sua obra ainda não está concluída (Hb 2; Ap 19-
22). O argumento de Jesus é que o processo está em andamento.
A segunda declaração de Jesus está registrada em Lucas 17.20-21. Jesus disse aos fariseus que
o reino estava “entre vocês”, isso é, no meio deles (ou ao alcance deles). O ponto aqui é que o
reino havia chegado (ao menos em parte) e estava disponível quando Jesus veio. E mesmo que
alguém prefira chamá-lo de “forma misteriosa” do reino, é preciso reconhecer que Jesus estava
falando a respeito do reino prometido. Isso faz parte do plano do reino prometido no Antigo
Testamento, que foi desenvolvido em uma revelação adicional no Novo Testamento.

AS DUAS PARÁBOLAS
Duas parábolas de Jesus — a parábola do grão de mostarda e a parábola do fermento —
ressaltam que o reino tem início de forma pequena (como fermento ou grão), mas termina
grande (como um pão inteiro ou uma grande árvore onde os passarinhos descansam). Qualquer
que seja este reino, ele faz referência a era presente por causa de seu processo de crescimento. Ele
não pode se referir ao futuro, porque quando chegar a forma futura do reino, esta será
imediatamente estabelecida sobre toda a terra.
O pano de fundo do Antigo Testamento para a imagem da árvore na parábola do grão de
mostarda provém dos textos de Daniel 4 e Ezequiel 17.22-24. Em Daniel 4, o governo de
Nabucodonosor é comparado a uma árvore na qual os pássaros viviam, mas que será cortada. Seu
reino passará de uma árvore abundante e segura a um mero toco de árvore. Já a imagem de
Ezequiel 17 é totalmente oposta. Uma árvore que fora cortada crescerá a partir de um toco para
uma abundante e segura árvore de descanso. As parábolas de Jesus incluem um elemento de
surpresa. Já que os grãos de mostarda normalmente não crescem em árvores grandes, a parábola
enfatiza a natureza incomum e sobrenatural deste crescimento. Portanto, o reino tem um início
pequeno, mas no devido tempo se tornará um lugar de descanso para todos aqueles que
pertencem ao Senhor. O toco que é restaurado em Ezequiel 17 é o toco do governo de Davi (cf.
Is 11.1; Ap 5.5; 22.16). Esta reconstrução se inicia com a “semente” da era presente.

O ASSENTO, O ESPÍRITO, O GOVERNO E O MESSIAS


Ao citar o Salmo 110.1 em Lucas 20.41-44,14 Jesus trouxe à tona um dilema messiânico
(portanto, uma promessa davídica) para a sua audiência judaica quando lhes perguntou a respeito
do Messias e do Salmo 110.1 (não 110.415). Jesus enfatizou que esse Salmo descreve o Filho de
Davi (isto é, o Messias) e lhe concede o seu título mais importante — Senhor.
Para responder se ele é o Messias (Lc 22.67-69), Jesus usou a imagem do Salmo 110.1. Ele
disse: “A partir de agora o Filho do homem estará assentado à direita do poder de Deus”. O foco
central é que o governo de Jesus deveria começar em breve (“a partir de agora”). Se há qualquer
dúvida de que “estar assentado” significa governar, então o que mais pode significar o fato que
Jesus atua como Mediador de Suas bênçãos ao lado de Deus (At 2.30-36)? Em Atos, Jesus
governa quando exerce controle sobre a salvação e quando os rituais religiosos, como o batismo,
são realizados em “seu nome”.
Lucas 24.49 e Atos 1.8 referem-se à vinda do Espírito Santo como a próxima atividade a ser
executada por Deus para o seu povo. Ambos os versículos ocorrem em contextos que se referem
às atividades que Jesus realizou como Messias (Lc 24.44-48; At 1.2-7). Em Atos 2, Deus trouxe o
Espírito Santo por meio do Filho de Davi ressurreto, o Messias, como parte de sua atual
atividade como governante entre o seu povo.(cf. a citação de Pedro do Salmo 16).
Este ponto é explicado em At 2.30-36, onde a palavra “assentar” ocorre nos versículos 30 e
34. Esta repetição do termo serve para associar certas ideias. Esse estilo, no qual passagens
interligadas se explicam, é comum no uso do Antigo no Novo Testamento (Mc 1.2-4; Ef 4.7-11;
1Pe 2.4-10). Em Atos 2.30 e 2.34, a expressão “assentar” une a alusão do Salmo 132.11 e do
Salmo 110.1. O Salmo 132.11 registra a promessa de Deus a Davi de que alguém se assentaria
no trono de Davi, um texto que faz alusão a 2 Samuel 7.
As referências do Novo Testamento às promessas feitas a Davi mostram que alguns
elementos dessas promessas se cumprem agora, enquanto outros elementos serão cumpridos
posteriormente. Esse é o relacionamento complementar apresentado anteriormente. A promessa
davídica no Antigo Testamento não está limitada ao texto de 2 Samuel 7, nem possui apenas um
elemento definidor.16 Outros textos chave que se referem a essa promessa davídica são Salmos 89
e 132; Isaías 9 e 11; Ezequiel 17, 34 e 36 e Amós 9.11-12.17 Os Salmos 89.17 e 132.17 falam do
chifre de Davi da mesma forma que Lucas 1.69. O Salmo 132.11 afirma que a prometida
semente de Davi se assentará no trono, assim como afirma Atos 2.30. O Salmo 132.17 observa
que Deus preparará uma lâmpada para o seu Ungido e Isaías 9.2 faz referência ao filho de Davi
como a grande luz que o povo veria (cf. Mt 4.14-17). Novamente aqui está o tema da luz, que já
foi observado em Lucas-Atos. O Rei exercerá seu governo com justiça e retidão (Is 9.7; cf.
Sl 45.6 citado em Hb 1.8, “cetro de justiça é o cetro do seu reino”).18 Isaías 11.2 comenta que o
Espírito de Deus repousará sobre esse Rei (cf. Lc 3.21-22) e que Ele trará sabedoria e
entendimento (cf. Lc 11.29-32). O texto de Isaías 11.2 é o provável elo com Jesus como o
portador régio do Espírito (Lc 3.15-17; 24.49). Ezequiel 34.22-24 fala de um rebanho, usando
imagens régias, enquanto o texto de Ezequiel 36.25 fala dessa era futura ao incluir a obra de
purificação do Espírito. Estes são os temas que aparecem respectivamente em João 10.1-18 e 3.3-
10. Amós 9.11-12 declara que o “tabernáculo” de Davi será reedificado, um assunto que também
é mencionado em Atos 15.15-18 como a base para a solução no concílio de Jerusalém. A aliança
davídica inclui inúmeros elementos e possui pontos de associação com outras promessas como as
da Nova Aliança. A promessa do governo davídico vai além de Cristo estar assentado sobre o
Israel nacional, embora isto também será cumprido um dia (Lc 22.28-30).19
Alguns podem se opor ao uso de passagens que foram originalmente destinadas a Israel para
aplicá-las à igreja. Entretanto, o tipo de expansão complementar visto na Nova Aliança fornece
um precedente bíblico para essa abordagem hermenêutica.20 De fato, Lucas e Atos argumentam
consistentemente que o que Jesus fez e está fazendo corresponde à esperança e à promessa do
Antigo Testamento (veja Lucas 22.43-47, e a pregação de Paulo em Atos 13, 22 e 26). Não se
deve definir o significado desses textos usando somente o sentido do Antigo Testamento ou
somente o sentido do Novo Testamento. Uma leitura canônica permite que ambos os contextos
falem de modo complementar um ao outro.
Uma vez que muitos elementos estão inclusos na promessa davídica, quando a aliança
davídica se cumpriu? Seria no momento em que todos os seus elementos são cumpridos? Ou é
somente quando alguns deles são cumpridos? Não seria melhor falar de um cumprimento inicial
e parcial, bem como de um cumprimento final? Do ponto de vista deste escritor, é possível falar
de um cumprimento inicial quando qualquer um destes aspectos se realizam. Isto significa que
todas as principais alianças — abraâmica, davídica e nova — têm a mesma estrutura de
cumprimento do já e ainda não. Há uma consistência no modo como Deus cumpre as suas
promessas. Alguns aspectos dessas promessas são cumpridos agora e outros ainda precisam ser
cumpridos.21 A aliança abraâmica tem a sua realização inicial como está expresso em Gálatas 3,
mas no futuro, quando Cristo governar sobre Israel, as bênçãos que as nações receberam por
meio de seu governo “progredirão” a um nível mais elevado (Is 2.2-4). A Nova Aliança tem
alguma realização agora, como argumentam os textos de Hebreus 8-10 e 2 Coríntios 3-4, mas as
promessas feitas sobre a presença do Espírito em Israel acontecerão no futuro (Jr 31.31-34;
Ez 36.24-32). Da mesma forma, a esperança davídica tem algum cumprimento agora,
principalmente no envio do Espírito de Deus e na vitória já conquistada sobre Satanás e o
pecado (Lc 1.78-79; 3.15-17; 11.14-23, 22.69; Atos 2.30-36). Entretanto, no futuro, Cristo
reinará em Sião como o descendente de Davi (Zc 14.1-11; Is 2.2-4).
No dia de Pentecostes, Pedro falou do governo de Jesus ao unir o Salmo 132.11
(mencionado em Atos 2.30) e o Salmo 110.1 (citado em Atos 2.34). Pedro afirmou que Jesus
não está sentado passivamente ao lado de Deus, aguardando apenas o dia em que ele retornará.
Pelo contrário, Jesus exerce um elemento chave no governo prometido ao derramar o Espírito de
Deus sobre o seu povo para capacitá-los a realizar suas tarefas atuais. Ele está ativo ao lado de
Deus, ao derramar o seu Espírito Santo, assim como João Batista prometera que Cristo faria
quando o reino se aproxima (Mt 3.2; 11-12; Lc 3.15-17). Este é o âmago do governo de Cristo
na era presente. Ele derrama os benefícios de sua vitória, os despojos de seu governo. Por meio de
seu Espírito, ele transforma as pessoas que fazem parte de sua comunidade recém-formada — a
igreja. Jesus distribui o dom do Espírito como parte da promessa “daquele que haveria de vir”, o
Cristo (Lc 3.15-17), e como parte de sua responsabilidade estando à destra de Deus (Sl 110.1).
Seu governo e sua transformação começam com a distribuição do Espírito. A presença do
Espírito é uma evidência de que Jesus é o Senhor e o Messias, aquele que governa a partir do céu,
dispensando os benefícios da salvação (At 2.34-36). A graça transformadora de Jesus Cristo
permanece no centro da atual atividade dispensacional de Deus.22
O Salmo 110.1 fala a respeito do governo de Deus através da linhagem de Davi. Os céus e a
terra se unem em sua forma inicial através do Filho e seu governo. Mas o trono do Senhor pode
também ser o trono de Davi? O texto de 1 Crônicas 29.23 responde a essa questão. Quando
Salomão se sentou no trono que Davi anteriormente ocupara, ele se sentou no trono do Senhor.
Isso significa que Cristo não terá um governo terrestre futuro proveniente do trono de Davi em
Israel no futuro? Não, esse governo futuro não é negado, pois Jesus retornará para governar a
partir de Israel conforme prometido no Antigo Testamento (Sl 2.6-9; Zc 14.4, 9; cf. At 3.18-21;
Ap 19.11-16). As promessas do Antigo e do Novo Testamento se complementam; não se
anulam, exceto onde o cancelamento é indicado de modo explícito.

DESCRITO POR PAULO


Diversas passagens sugerem que Paulo também escreveu a respeito do governo de Cristo atual e
futuro. Por exemplo, Colossenses 1.12-13 aborda os mesmos temas de luz, trevas, Satanás, reino
e vencedor, como pode ser visto nas frases: “herança dos santos na luz”, “nos libertou do império
das trevas” e “o reino do Filho do seu amor”. Tendo sido regatados das trevas satânicas, os
crentes estão no reino de Deus.
Um texto mais importante é 1 Coríntios 15.25: “Porque convém que ele reine até que haja
posto todos os inimigos debaixo de seus pés”. O verbo “reinar” é βασιλευειν, um infinitivo
presente, indicando portanto um governo atual, mas em andamento, de Cristo.23 Este governo
foi iniciado, mas não está concluído. Alguns querem tornar o versículo 25 dependente do
versículo 24, fazendo do reino de Jesus no versículo 25 um reino futuro. Entretanto, é melhor
ver o versículo 25 como uma explicação (γάρ) dos versículos 23 e 24, com o reinado de Jesus
começando com a sua ressurreição como “as primícias” e continuando até que o último inimigo
— a morte — seja abolido (v. 26).24 Dessa forma, Paulo também apontou para os estágios no
plano de Deus com os cumprimentos iniciais.
Efésios 1.19-23 refere-se ao poder divino disponível aos crentes (v. 19), visto que Deus Pai
fez Jesus “assentar-se à sua direita” (v. 20) acima de todas as autoridades, “não apenas na presente
era, mas também na vindoura” (v. 21), e“pôs todas as coisas debaixo de seus pés” (v. 22). Este
“assentar-se” deve ocorrer no passado, já que todos os outros eventos descritos pelo tempo aoristo
dos versículos 19-23 são passados. O exercício da autoridade real é realizado “em Cristo” (v. 20),
isto é, no Messias (Rm 1.2-4; 16.25-27).25 Se acaso este evento fosse proléptico, o detalhe de
onde Cristo está assentado teria sido mencionado por último. O versículo 23 indica que o seu
corpo, a igreja, é o local onde Deus opera a transformação e a partir do qual ele mostra o seu
cuidado e compaixão. A igreja é o que Deus preenche por meio de Cristo (3.14-19). A igreja é
onde o poder de Deus se manifesta em justiça e santidade. Assim como Jesus é luz (Lc 1.79), e
assim como Paulo e Barnabé também foram luz (At 13.47), agora os crentes são luz e participam
do reino da luz (Mt 5.14-16; Cl 1.12-14; EF 4.17-19; 5.8-14). Esse é o atual reino do Filho
amado de Deus.
Portanto, Cristo trinfou sobre o inimigo Satanás e as suas forças, embora elementos da
batalha e aspectos da promessa ainda irão se realizar. O povo de Cristo foi capacitado para
brilhar. Ele enche o mundo com a Sua presença por meio da igreja. Mas o que significa ser luz
no mundo? Qual é a relação dos crentes com as diversas culturas e estruturas do mundo à medida
que, a partir da igreja, procuram viver o significado de refletir e representar Cristo, aquele que
triunfou sobre Satanás?

IMPLICAÇÕES E CONCLUSÕES
Niebuhr sugeriu cinco possibilidades para o relacionamento entre Cristo e a cultura: Cristo
contra a cultura, o Cristo da cultura (acomodação), Cristo acima da Cultura, Cristo e a cultura
num paradoxo e Cristo o transformador da cultura.26 Outra relação pode ser adicionada, a saber,
Cristo como o transformador de sua comunidade como modelo para outras culturas.
A igreja deve ser uma ilustração — um audiovisual — da presença e obra do amor e da
compaixão de Deus (Ef 3.14-19). Isso deve ser manifesto especialmente no modo como os
crentes interagem entre si, bem como no modo como demonstram concretamente o seu amor
por aqueles que estão próximos, não importa quem sejam (Gl 5.1-6.10; Lc 10.25-37; Jo 13-17).
O amor é exigido, mas não se manifestará da mesma forma em todos os lugares. Ministérios em
regiões ricas de Londres ou Paris diferem dos ministérios nas regiões mais pobres das cidades
interioranas do terceiro mundo. Cristo é necessário em todas as culturas por causa da mesma
necessidade básica da humanidade. Entretanto, pode variar como a sua relevância torna-se
manifesta para os povos, dependendo das questões que confrontam essas diversas culturas.
É na igreja e por meio dela o local onde Deus manifesta o seu caráter de forma mais visível.
Ele faz isso através dos relacionamentos individuais em seu corpo, bem como no modo como os
cristãos se relacionam com aqueles que estão fora da comunidade dos crentes. Como resultado,
os crentes devem ser sensíveis às inúmeras maneiras e formas que podem manifestar o amor de
Deus concretamente, dependendo de onde servem a Deus e como Ele os chama. Nem todos
devem ou podem ministrar da mesma maneira. Os crentes devem ser maduros o suficiente para
reconhecerem a diversidade de ministérios que podem ter ao servir ao Senhor. Uma pessoa pode
revelar a Jesus Cristo ou mesmo a necessidade dele, proclamando-o, refletindo-o, amando-o e
amando os outros. É isso que significa servir a Deus “em santidade e justiça”, como Zacarias
desejava fazer (Lc 1.74-75).
Alguns cristãos estão envolvidos em ministérios focados individualmente, impactando
diretamente algumas pessoas com a mensagem do evangelho. Outros podem proclamar os
padrões do amor e da justiça de Deus ao desafiar a consciência, os padrões e o estilo de vida das
pessoas (e desta forma revelando o pecado e a necessidade de Jesus Cristo). Outros podem
procurar alcançar aqueles que estão sofrendo ou passam fome. Ao fazer isso, precisam chamar a
atenção para as estruturas pecaminosas pelas quais homens pecadores demonstram o seu ódio
pelos outros e impõem abusos aos outros.27 E, ao fazer isso, eles também criam oportunidades
para que alguns busquem refúgio em Cristo, visto que o ministério é motivado pelo amor de
Cristo aos pecadores, pelo reconhecimento da atual autoridade de Cristo sobre o pecado e pelo
desejo da igreja de ser luz no mundo.
Os crentes devem encorajar uns aos outros ao amor e às boas obras (Hb 10.24). As palavras e
ações dos crentes devem refletir a verdade e a compaixão ao servirem o Cristo triunfante. Seu
governo de Cristo capacita os crentes para amarem uns aos outros e se compadecerem de seus
vizinhos necessitados e espiritualmente mortos. Seu poder dá esperança de que os crentes possam
contribuir com algo frutífero ao compartilharem do amor de Cristo, refletindo-o em palavras e
ações. Que aqueles que estão em Seu reino de luz brilhem intensamente, e por Sua graça eles
conduzam muitos das trevas para a verdadeira luz.

1. A história recente do dispensacionalismo pode ser dívida em três grupos. O “dispensacionalismo de Scofield” reflete a
abordagem das edições de 1909 e 1917 da Bíblia de Estudo Scofield. O “dispensacionalismo essencialista” consiste na abordagem
retratada no livro de Charles C. Ryrie Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1965), com a sua definição de
dispensacionalismo em termos sine qua non, cujo os três elementos são: um propósito doxológico, uma hermenêutica literal e
uma distinção entre Israel e a igreja. Já o “dispensacionalismo progressivo” tem seu foco no progresso da revelação, de tal modo
que a dispensação subsequente representa um “progresso” no plano unificado de Deus. Essa abordagem defende uma maior
continuidade no plano de Deus que as outras posições. Para uma exposição mais detalhada destas três posições veja o livro
Dispensationalism, Israel and Church: The search for definition, ed. Craig A. Blaising e Darrell L. Bock (Grand Rapids, Zondervan,
1992).
2. Veja a Bíblia de Estudo Scofield no comentário de Mateus 3.2. Veja ainda o comentário em Mateus 3.15 onde Jesus é visto por
Scofield como o Rei-Sacerdote, com seus ofícios não separados. O que é importante a respeito destes comentários é a consciência
dos elementos da promessa davídica que aparecem nos textos do Novo Testamento e o seu vínculo com as promessas davídicas na
forma misteriosa do reino.
No comentário de Mateus 3.2, lemos: “(1) a expressão reino do céu (lit. dos céus) é peculiar no livro de Mateus, e significa o
governo terreno messiânico de Jesus Cristo, o Filho de Davi. É chamado de reino dos céus pois é o governo dos céus sobre a terra
(Mt 6.10). A frase é derivada do livro de Daniel (Dn 2.34-36, 44, 7.23-27), onde é definida como o reino no qual o ‘Deus do
céu’ estabelecerá após a destruição feita por uma ‘pedra cortada sem auxílio de mãos’ do sistema mundial dos gentios. Este é o
reino pactuado com a semente de Davi (2Sm 7.7-10), descrito pelos profetas (Zc 12.8, nota) e confirmado por Jesus Cristo, o
filho de Maria, através do anjo Gabriel (Lc 1.32-33). (2) O reino do céu tem três aspectos no livro de Mateus: (a) ‘está próximo’
no começo do ministério de João Batista (Mt 3.2), pela virtual rejeição do rei e o anúncio de uma nova irmandade (Mt 12.46-
50); (b) nos sete ‘mistérios do reino do céu’, a serem cumpridos na era atual (Mt 13.1-52), aos quais foram acrescentadas as
parábolas do reino dos céus, que foram ensinadas após as de Mateus 13, e que se relaciona com a esfera da fé cristã durante a
presente era; (c) o aspecto profético — o reino a ser estabelecido após o retorno do rei em glória (Mt 24.29-25.46, Lc 19.12-19,
At 15.14-17).”
Para os seguidores de Scofield, os elementos davídicos oferecidos a Israel foram rejeitados por eles e colocados em espera até que
o seu cumprimento venha com a resposta em fé por parte de Israel no futuro. As únicas exceções para a presença de alguns destes
elementos davídicos na presente era estão associadas com a forma misteriosa do reino, que se relaciona com a esfera da profissão
de fé cristã. Para maior detalhes, veja a nota em Mateus 4.17.
3. Aqui o termo “reino” tem um significado ambíguo, pois os escritores veem os detalhes de forma distinta. Alva J. McClain e
Stanley D. Toussaint foram em uma direção distinta, ao verem o reino prometido somente no futuro, sem nenhuma existência
na atual era. (Alva J. McClain, The Greatness of the Kingdom [Wionna Lake, IN: BMH Books, 1959], Stanley D. Toussaint,
Behold the King [Portland, OR: Multnomah, 1980]). Desta forma, os dispensacionalistas essencialistas lidaram com esta questão
de diversas maneiras. O argumento apresentado por Pentecost, Ryrie e Walvoord estão presentes em cada uma de suas grandes
obras de escatologia: J. Dwight Pentecost, Things to Come (Grand Rapids: Zondervan, 1958); Charles C. Ryrie, Basic Theology
(Wheaton: Victor Books, 1986); John F. Walvoord, Major Bible Prophecies (Grand Rapids: Zondervan, 1991).
4. Novamente os detalhes da apresentação diferem. Ryrie distingue entre a forma espiritual e a forma misteriosa de reino (Basic
Theology, p. 398). Jesus Cristo governa no reino espiritual, mas ele não é o rei da igreja. Ryrie não fornece nenhuma explicação
para esta distinção. Por outro lado, Walvoord iguala a forma misteriosa à forma espiritual (Major Bible Prophecies, p. 218).
Walvoord também distingue o reino de Deus (esfera da realidade) do reino do céu (esfera do ofício), mas não de uma maneira
que negue a presente forma misteriosa de reino (ibid., p. 213). Pentecost afirma simplesmente que as duas expressões do reino são
distintas e intercambiáveis mas não são sinônimas (Things to Come, pp. 143-44). Portanto, os essencialistas não concordam na
forma como estas relações funcionam. O que eles concordam é que qualquer que seja o governo na era atual, este não é o reino
davídico. Entretanto, ao fazer esta distinção entre o reino e a esperança davídica, eles assumem uma posição distinta da edição de
1917 da Bíblia de Estudo Scofield. A revisão feita em 1963 da Bíblia de Estudo Scofield exclui a conexão davídica misteriosa. Outra
diferença é que Ryrie e Walvoord associam a presente forma de reino com a igreja, algo que Scofield não fez.
5. Paulo compartilhou esta posição sobre a relação entre o exercício da misericórdia de Deus em favor do seu povo e o serviço a
Deus como consequência (Ef 2.1-10, esp. vv. 4-6, 10).
6. Veja Eberhard Nestle e Kurt Aland, Novum Testamentum Graece, 26a edição (Stuttgart: Wurttembergische Bibelanstalt, 1983).
7. O fato de que este cumprimento pode envolver não somente um evento único, mas sim uma série de eventos significa que
quando alguém usa o termo “cumprido” ou “cumprimento”, deve ficar claro como eles está usando o termo (e como as Escrituras
o usam). É possível falar de um cumprimento “inicial”, “parcial”, “final”, “padrão” ou “abrangente”. As Escrituras falam de
“cumprimento” sem especificar qual o subtipo de cumprimento. Este subtipo é determinado através do estudo de como é usado o
termo “cumprimento” em seu contexto. A distinção é crucial, desde que a existe a possibilidade do cumprimento de “ambos/e”,
como mostra o uso que o Novo Testamento faz do tema do Servo (At 8.33-35; 13.46-47), e como é visto no uso que Pedro faz
do texto de Joel 2.28-32 em At 2.17-21.
8. Três camadas de leitura são legítimas: (a) a leitura do cenário histórico original; (b) a leitura a partir de uma apresentação
literária mais ampla de um determinado livro bíblico como um todo; e (c) a leitura de uma passagem à luz de todo o cânon
bíblico. Este artigo se concentra nas duas primeiras camadas, mas os três níveis de leitura são legítimos — são formas
complementares de leitura do texto dentro dos limites da hermenêutica histórico-gramatical-literária seguida pelos evangélicos.
9. A ideia da progressividade nas dispensações não é nova. E nem a ideia de que os relacionamentos no plano de Deus são
revelados de modo complementar. Embora existam algumas diferenças nos detalhes sobre como alguém defende isso no
dispensacionalismo, esses conceitos foram corretamente observados pelos essencialistas. Observe o seguinte comentário de Ryrie:
“Unidade e distinção não são necessariamente conceitos incompatíveis. Eles podem ser bastante complementares, como de fato
são no dispensacionalismo” (Dispensationalism Today, p. 101). Ele também observa: “Além disse, o dispensacionalismo não vê as
várias dispensações apenas como manifestações sucessivas do propósito de Deus, mas também como manifestações progressivas do
propósito de Deus” (ibid., p. 104). Ambas as observações estão em seu capítulo que trata da hermenêutica do dispensacionalismo.
10. Bruce K. Waltke, “A Response”, em Dispensationalism, Israel and the Church, p. 358.
11. Em alguns momentos, uma aplicação excessiva da interpretação literal afeta a leitura dos textos do Novo Testamento dentro
das formas mais tradicionais do dispensacionalismo. Talvez o maior exemplo deste tipo de leitura é a alusão às duas Novas
Alianças como uma explicação do texto de Hebreus 8-10. Mas essa leitura também afeta as opiniões sobre o reino, seu
cumprimento e as alianças bíblicas. O resultado é que o Novo Testamento não tem a permissão para desenvolver o progresso da
promessa, mas é limitado somente às categorias do Antigo Testamento. (Veja Dispensationalism, Israel and the Church, pp. 392-
393, onde esta questão é levantada e opções atuais são discutidas. Este artigo é uma tentativa de discutir as opções levantadas lá
com alguns exemplos concretos e oferecer uma explicação detalhada de como funciona esse relacionamento complementar). Essa
abordagem complementar para relacionar textos não é a leitura “simples” como acusa Vern Poythress de terem feito os
dispensacionalistas (Understanting Dispensationalists [Grand Rapids: Zondervan, 1987], pp. 78-110). Essa abordagem
complementar tenta lidar como algumas questões levantadas por Poythress e a faz sem subestimar a contribuição dos textos do
Antigo Testamento para a promessa. Walter C. Kaiser Jr. compartilha também desta preocupação sobre este tema em sua
avaliação das abordagens do aliancismo e do dispensacionalismo (Dispensationalism, Israel and the Church, pp. 369-370, 375).
12. As citações bíblicas são traduções do próprio autor.
13. É por isso que Lucas 24.49 refere-se à vinda do Espírito como a “promessa do Pai”. Ele a prometeu por meio de Ezequiel
(Ez 36.27) e Jeremias (Jr 31.31-33).
14. A posição do autor foi detalhada em outro lugar (Darrell L. Bock, The Reign of the Lord Jesus Christ, no livro
Dispensationalism, Israel and the Church, pp. 37-67), de modo que aqui encontra-se resumida.
15. Esta distinção é importante à luz das recentes tentativas de reconhecer que Jesus cumpre atualmente o Salmo 110.4 somente
na esfera do sacerdócio de Melquisedeque, mas não como uma figura davídica real (Elliot E. Johnson, “Hermeneutical Principles
and the Interpretation of Psalm 110”, Bibliotheca Sacra, 149 [outubro-dezembro, 1992], pp. 428-437). Contudo, contra este
ponto de vista está o fato de que Lucas 20.41-44 refere-se aos aspectos reais do Messias no Salmo 110.1 e não aos aspectos
sacerdotais do versículo 4. Além disso, o ponto central deste Salmo é que o Messias é um Rei-Sacerdote. É isto que faz dele uma
pessoa incomum. Portanto, seus ofícios como Rei e Sacerdote não podem ser divididos, especialmente quando Lucas-Atos cita o
Salmo 110.1 e não o versículo 4. A citação do Salmo 110.1 em Hebreus 1.13 pertence a uma série de textos que enfatizam a
filiação de Jesus e seu governo davídico, uma vez que também é citado ali o texto de 2 Samuel 7.14 (Hb 1.5) Desta forma, este
autor concorda com Johnson que, de acordo com Hebreus, Jesus atua (governa) como um Sumo Sacerdote da ordem de
Melquisedeque, mas deve-se notar que para Lucas e Hebreus esse é um cumprimento messiânico (davídico).
A associação de Johnson da abordagem hermenêutica deste autor com a de George Ladd deturpa a relação hermenêutica entre
esta abordagem e a de Ladd. Uma hermenêutica complementar não anula os elementos judaicos do futuro como Ladd faz. Para
este autor, não há uma “ressignificação radical” em Atos 2 como é apresentada por Ladd.
16. Esse ponto foi defendido detalhadamente em “The Kingdom of God in Progressive Dispensationalism”, uma apresentação feita
pelo presente autor e por Craig L Blaising no encontro da Evangelical Theological Society, em novembro de 1991.
17. Para o uso de Amós 9 em Atos 15, veja Darrell L. Bock, “The Case for Premillennialism in Acts”, em A Case for
Premillennialism, ed. Donald K. Campbell e Jeffrey L. Townsend (Chicago: Moody, 1992), pp. 185-202.
18. O Salmo 45 fala de Salomão, o filho de Davi, pois retrata um casamento. Ele é aplicado tipologicamente a Cristo como uma
promessa real em referência ao filho de Davi.
19. Aqueles para quem o termo “governar” significa somente um “governo coercivo e completo” argumentam que Jesus não
governa agora desta forma e portanto não governa de forma alguma. Este autor concorda com a ideia de que o governo coercivo
total ainda não está presente, mas nega que Jesus não governe de forma alguma neste momento. Jesus governa ativamente ao
manifestar “assentado” sua autoridade, poder e presença de forma dinâmica na comunidade dos crentes. Ele faz isso como o
Messias exaltado. E é por isso que ele se chama Jesus Cristo. Este não é o governo final e coercitivo de Apocalipse 19-20, mas é o
exercício das prerrogativas divinas e, portanto, um aspecto do governo, como o texto de Atos 2.22-36 torna isso claro. É
necessário fazer uma distinção dispensacional das descrições do governo de Jesus, sem romper os pontos de conexão dentro
programa prometido por Deus. Além de tudo isso, não há uma “espiritualização” do texto nessas interpretações, nem há uma
contradição, como alguns erroneamente sugeriram, ao ver algum cumprimento agora e posteriormente um cumprimento maior.
Para esta acusação infeliz e leitura equivocada do Dispensationalism, Israel and Church, veja Thomas Ice, “A Critical Examination
of Progressive Dispensationalism”, Biblical Perspectives 5 (novembro-dezembro, 1992), p. 4. Essa relação complementar também é a
razão pelo qual não um “declive escorregadio” quando se trata das legitimas distinções bíblicas entre Israel e a Igreja. As
promessas de terra a Israel não estão perdidas, nem estão em risco, no cumprimento do Novo Testamento, pois o que o Antigo
Testamento prometeu a Israel como nação governada por seu Messias permanece como promessas ainda a serem cumpridas. Os
textos bíblicos como um todo estabelecem os limites da continuidade ou descontinuidade. Quaisquer reivindicações a priori
sobre hermenêutica e a descontinuidade devem ser confrontadas com o texto, como este estudo faz.
20. Aqui os primeiros dispensacionalistas “essencialistas” deveriam ser elogiados. Eles reconheceram que existe uma Nova Aliança
e que, ao menos, havia uma “forma misteriosa” do reino. Eles descartaram o conceito de um dualismo celestial e terreno que fazia
parte do dispensacionalismo e, desta forma, reconheceram os elementos de continuidade no plano de Deus. Além disso, alguns
enxergavam a possibilidade de tanto um cumprimento quanto um cumprimento inicial em passagens como Joel 2 em Atos 2.
Eles também evitavam limitar o reino apenas ao futuro e não insistiam que o cumprimento sempre significa tudo ou nada. Essas
foram mudanças hermenêuticas e conceituais extremamente significativas na tradição dispensacional. O atual trabalho no
dispensacionalismo “progressivo” está simplesmente perguntando se esses conceitos podem ser usados em outros textos, de modo
que uma estrutura mais consistente surja à luz das numerosas associações bíblicas feitas nesses temas e estruturas.
21. Nesta abordagem, não há uma dialética teológica. Simplesmente o primeiro estágio é seguido pelo segundo. A questão
dialética acontece quando a posição A e a posição B são unidas para produzir a posição C. Numa abordagem complementar, as
informações bíblicas não são unidas, substituídas ou subordinadas, antes, as partes são relacionadas lado a lado para formar um
todo. As discussões a respeito dos pontos de discordância sobre esses assuntos não podem ser reduzidas usando rótulos ou
meramente citando versículos bíblicos entre parêntesis. Passagens como Lucas 1.67-79, 3.15-17, Atos 2.16-40, 1 Corintios
15.25, Colossenses 1.13-14 e Hebreus 1.5-13 devem ser discutidas detalhadamente, especialmente ao levar em consideração o
que elas acrescentam para a compreensão sobre o progresso do plano de Deus.
22. Essa atividade explica por que comparar a unção de Jesus com a de Davi — onde Davi era o rei, mas ainda não governava —
falha em convencer que Jesus governa com a sua autoridade real enquanto está assentado ao lado de Deus. O governo por vir é
uma extensão da autoridade já existente (Mt 28.19-20).
23. O infinitivo presente enfatiza gramaticalmente o aspecto, isto é, o caráter contínuo do governo, mas também inclui uma
referência à sua presença na época em que Paulo escreveu.
24. A palavra γάρ no versículo 25 é melhor entendida como uma explanação de toda sentença anterior. Em outras palavras, o
governo prossegue até que a submissão esteja completa.
25. Essas duas passagens em Romanos deixam claro que o mistério está ligado à esperança do Antigo Testamento, e não separado
dela. A mensagem do Antigo Testamento descreveu a atual atividade de Jesus como Filho de Deus e Filho de Davi para alcançar
a obediência da fé entre todas as nações. Não é possível separar a sua Pessoa de sua obra ou mesmo das promessas do plano de
Deus.
26. Richard Niebuhr, Christ and Culture (Nova York: Harper, 1951).
27. Para aqueles que argumentam que tais tentativas fracassarão e, portanto, devem ser abandonadas pois são inúteis, é
importante notar que Cristo ofereceu a sua mensagem de esperança até mesmo para aqueles que ele sabia que a rejeitariam. O
serviço não requer que a igreja seja sempre bem-sucedida nessas tentativas. Em vez disso, a fidelidade exige que a igreja se envolva
nessa obra com a esperança de que alguns responderão a ela e com o conhecimento de que a obra da justiça é devida a Deus,
ainda que ninguém responda.
APÊNDICE B

POR QUE EU SOU UM DISPENSACIONALISTA COM “D”


MINÚSCULO

POR QUE PERGUNTAR POR QUÊ?


Há mais de uma década atrás, no encontro anual da Evangelical Theological Society, o Grupo de
Estudo Dispensacionalistas da ETS teve o seu encontro inaugural.1 O objetivo de nossos
encontros era discutir as diversas questões relacionadas ao dispensacionalismo, pois aqueles que
iniciaram tais esforços perceberam que essa discussão seria proveitosa não apenas para os
dispensacionalistas, mas também para outros membros da Sociedade interessados em escatologia.
O esforço começou com auxílio mútuo de alguns que hoje podem ser identificados como
dispensacionalistas progressivos ou tradicionais. O grupo estava conscientemente comprometido
em não somente discutir o tema entre si, mas também ter outros palestrantes que não
necessariamente se identificavam com o dispensacionalismo e sim com outras tradições
teológicas. Um dos nossos maiores objetivos nessas reuniões era conversar mutuamente e não
falar uns dos outros.
O objetivo deste ensaio é semelhante. Por que não nos empenhamos em ponderar a respeito
do que é o dispensacionalismo como um movimento? Por que não deixar clara a razão pela qual
os dispensacionalistas consideram o dispensacionalismo uma contribuição relevante para a
teologia evangélica? O que o dispensacionalismo contribui para a teologia evangélica? Por que
não ponderar a respeito de seus pontos fortes, desenvolvimentos e potenciais pontos fracos? Este
será o meu objetivo. Isso é ainda mais importante, pois alguns dentro da nossa tradição têm
perguntado, mesmo publicamente, se o dispensacionalismo progressivo é de fato
dispensacionalismo. Alguns desses críticos consideram isso como um híbrido preocupante e uma
tentativa de ser uma teologia da aliança em pele de cordeiro.2 Acho que é importante e
apropriado responder a esta importante questão da forma mais clara possível. Espero ratificar os
pontos fortes desta tradição e por que eu me identifico com ela.
Também gostaria que todos nós, independentemente da nossa tradição, ponderássemos
sobre o significado e as limitações de tais rótulos tradicionais. O que significa identificar-se com
uma tradição para um grupo orientado biblicamente e que está ciente da repreensão de Paulo em
1 Coríntios 1 a respeito de ser de Paulo, ou de Apolo ou até mesmo de Cristo? Esta é a razão de
um “d” minúsculo. Em minha opinião, todos nós, independente de qual seja as nossas origens
tradicionais, necessitamos manter nossa tradição com um senso de que ela tem uma dimensão de
uma letra minúscula, reconhecendo o fato que muitos pontos de vista que discutimos, são pontos
de vista debatidos entre evangélicos comprometidos com a Bíblia. Uma vez que lidamos com boa
parte do mundo que não conhece a Jesus, o que temos em comum é muito mais importante do
que as nossas diferenças. Como fazer esta distinção de prioridade é a proposta e o teor deste
ensaio, mesmo que este afirme sua identificação com uma importante tradição evangélica.

INTRODUÇÃO: PENSANDO A RESPEITO DE UMA IDENTIDADE TEOLÓGICA


TRADICIONAL
Diferentemente da vocação, a identidade nem sempre é algo simples de explicar. O impacto do
contexto, dos eventos e do meu ambiente cultural influenciam a identidade de uma forma que
provavelmente subestimo. Somos pessoas feitas à imagem de Deus, e ainda assim somos tocados
pela obra divina de Deus em uma infinidade de detalhes desta vida. No meu caso, eu cresci no
Texas e escolhi estudar na Southern Methodist University em meu primeiro ano de faculdade pois
era próximo a minha casa em Houston e parecia ser um lugar bem agradável. Mas Deus também
estava agindo. Por um “acaso” o meu companheiro de quarto, era um batista do sul, que
vivenciava a grande comissão muito antes de eu realmente saber o que era isso. Esses pequenos
detalhes da nossa fidelidade são geralmente esquecidos ou nem mesmo mencionados, mas
também, e estou certo disso, ocupam um lugar de destaque na determinação da nossa identidade.
Há uma dimensão humana e pessoal positiva (e às vezes negativa) em nossa identidade teológica
e na maneira como fazemos teologia. Nós a ignoramos por nossa conta e risco, se não
reconhecermos que ela está lá causando impacto.
A identificação com uma tradição teológica é um exercício semelhante. Muitos de nós somos
o que somos pois pertencemos a uma igreja de uma determinada tradição quando chegamos a
Cristo e ficamos satisfeitos com esta associação. Para outros, as nossas identidades tradicionais são
um produto de uma reação, às vezes bastante intensa, que se chocam contra os alicerces de nossos
novos começos. Ainda para outros, a transição é muito menos chocante e talvez nem seja vista
em termos de estar nela ou sair dela.
A exposição ao corpo de Cristo conduz a uma ponderação e ao desenvolvimento de um
senso das áreas fortes e fracas sobre a tradição ou as tradições com as quais nos identificamos. Em
outras palavras, alguns de nós são o que são porque temos sido assim desde o nosso segundo
nascimento, enquanto outros se tornaram quem são em uma comparação consciente com outras
tradições. Para sermos bons teólogos e independentemente do caminho que seguimos,
justificamos as associações que assumimos com as afirmações e convicções de que somos bíblicos
ao permanecermos naquilo que cremos.
Isso não sugere que aqueles que permaneceram dentro de uma tradição durante toda a sua
vida cristã não tenham sido reflexivos. A menos que uma pessoa viva em uma igreja
hermeticamente fechada, é impossível em nossa época não ser exposto a uma diversidade de
tradições, bíblicas ou não. A resposta mais simples e menos exigente à nossa exposição a esta
variedade é simplesmente afirmar que a nossa tradição é bíblica e com isso, nos convencemos de
que o modo como lemos a Bíblia é a forma como ela deveria ser lida. Defendemos essa associação
usando quaisquer razões plausíveis que pudermos promover, sem nenhum interesse em como ou
por que outros a enxergam de modo distinto. Todos sabemos em nosso coração que esta
abordagem não é somente inadequada, mas também não-bíblica. Se o exercício teológico tem
alguma serventia, ele é chamado a fazer uma reflexão a respeito das Escrituras e do mundo com
reverência na busca pela verdade, onde quer que ela esteja. Isto significa ser justo não apenas
sobre o que creio mas também sobre o que os outros creem. Isto pode significar ver a verdade
para além da minha própria tradição.
Assim, no que estou prestes a falar sobre ser um dispensacionalista, estou sendo o mais
autorreflexivo possível. Eu sei que o que vejo não é tudo o que pode ser visto. Estou no meio
teológico há mais de vinte anos. Estudei, ouvi, li e discuti o que outras tradições sustentam. Vejo
coisas em outras tradições que ressoam com a verdade bíblica, mas também estou associado com
a tradição dispensacionalista durante toda a minha vida cristã. Estou consciente que o
dispensacionalismo parece extraordinariamente hábil em provocar fortes reações a favor e contra
ele. Em parte, eu sou um dispensacionalista com “d” minúsculo pois acredito que o
dispensacionalismo possui inúmeras ênfases bíblicas. Mas também sei que nenhuma tradição vê
isso completamente, e por isso a minha busca pela verdade na comunidade da fé deve
permanecer interativa com as outras tradições, tanto positivamente quanto negativamente. Ao
dizer o que faço em relação ao dispensacionalismo, farei algumas comparações com outras
tradições, as quais também podem ter muito a nos dizer biblicamente. Entendo que o
dispensacionalismo é benéfico para entender sobre o que Deus significa para mim e para o
mundo.
Entretanto, antes de explicar por que sou um dispensacionalista, preciso gastar um tempo
para discutir a questão levantada por alguns de que a minha colocação sobre o
dispensacionalismo é na verdade um pré-milenismo aliancista. Este é um questionamento
importante que merece uma resposta detalhada e que explica por que sou dispensacionalista, por
que é com um “d” minúsculo e por que devemos ser cuidadosos na forma como classificamos os
pontos de vista uns dos outros.

VISÃO GERAL
Eu abordo a minha pesquisa a respeito do dispensacionalismo em quatro etapas. Na primeira
parte, trato da questão pré-milenista e a hermenêutica aliancista. Aqueles que hesitam em aceitar
uma reivindicação de que alguém pode ser progressivo e dispensacionalista sugeriu que a leitura
progressiva do texto é uma hermenêutica aliancista ou reflete um aliancismo pré-milenista.3
Também quero fazer algumas observações importantes a respeito de como rotulamos as pessoas
no processo.
A segunda parte deste artigo trata dos pontos fortes e as contribuições para a teologia que
chegaram à igreja por meio do dispensacionalismo.
Na terceira, considero novos temas e ênfases emergentes na tradição que também beneficiam
a associação com o diálogo dispensacionalista. Aqui falo com as lentes de um dispensacionalista
progressivo, mas entendo que estas questões levantadas são de interesse e importância para todos
nós.
Por último, considero as potenciais fraquezas e perigos da nossa tradição, na qual os pontos
fortes podem causar problemas ao dispensacionalismo se não formos equilibrados no modo
como nos vemos.

PRÉ-MILENISMO ALIANCISTA?
Afinal de contas, por que um dispensacionalista progressivo afirma ser um dispensacionalista?
Por que não se tornar um pré-milenista aliancista? Neste tema, há duas críticas ao
dispensacionalismo progressivo que necessitam ser tratadas: (1) a sugestão de que a hermenêutica
complementar é Laddiana e (2) a maneira como os dispensacionalistas progressivos tem desafiado
a expressão “hermenêutica literal”.
Muitos sugeriram que a hermenêutica usada no dispensacionalismo progressivo é Laddiana,
ou um reflexo do que passou a ser conhecido como pré-milenismo aliancista. Elliot Johnson foi a
primeira pessoa que falou sobre esta conexão com George Ladd.4 Desde então, isto foi repetido
inúmeras vezes.
Dois fatores contribuem para esta comparação: (1) a conclusão do dispensacionalismo
progressivo de que o presente reino já tem uma forma e que é uma expressão inicial do
cumprimento da promessa davídica é de fato superficialmente semelhante à de Ladd. Se a
conclusão é a mesma, então, logicamente, pode-se concluir que o método interpretativo usado
para chegar lá deve ser ipso facto. (2) Na época desta proposta, as duas principais vertentes com as
quais as pessoas tinham que lidar eram o dispensacionalismo e o aliancismo pré-milenista. Assim,
se uma conclusão se parece mais com o aliancismo pré-milenista, então essa deve ser a posição.
É importante compreender que esta comparação também tem um contexto histórico e
sociológico mais cínico. George Eldon Ladd e John Walvoord tiveram um famoso debate sobre
escatologia que percorreu os anos 50 e 60. Relacionou-se, em parte, a uma batalha significativa
maior que estava ocorrendo dentro do evangelicalismo sobre o futuro do
fundamentalismo/evangelicalismo, o papel da escatologia e as visões concorrentes das Escrituras
que surgiram mais tarde, na década de 1970, na controvérsia sobre a inerrância/infalibilidade.
Para Walvoord, a sua discordância com Ladd não era somente a relacionada à questão
escatológica, mas também era uma questão hermenêutica que conduziria a uma negação das
Escrituras caso o literalismo fosse abandonado. Eu desconfio que a razão pela qual as instituições
dispensacionalistas ficam desconfortáveis em considerar os progressivos pra o seu corpo docente
sejam as questões hermenêuticas e bíblicas, que são tão importantes quanto as posições
escatológicas. As raízes desse sentimento são frequentemente subestimadas por quem olha essa
história de uma perspectiva de fora. Ao fazer esta observação não estou afirmando que concordo
com a análise de que a abordagem de Ladd reflete uma leitura liberal das Escrituras, embora
reflita, em minha visão, uma perda de significado do texto.5 Vejo problemas na forma como ele
permite que o Novo Testamento defina as promessas do Antigo Testamento de maneiras que
acredito que acabam negando parte daquilo que o Antigo Testamento está afirmando. Mas uma
coisa é notar que uma abordagem interpretativa tem problemas ao apresentar um significado
bíblico possível e outra é vê-la como biblicamente perigosa por se tratar de uma reflexão inerente
ao liberalismo. De qualquer forma, a comparação entre o método adotado por Ladd e seu
aliancismo pré-milenista com a hermenêutica complementar e progressiva era muito mais que
descritivo; era uma tentativa de sugerir preocupações prescritivas.6
Também é curioso o fato de que muitas das críticas específicas de Ladd feitas a pontos de
vista específicos do dispensacionalismo — por exemplo, as duas novas alianças, ou sua
perspectiva sobre o sermão do monte — representam posições que até mesmo muitos
dispensacionalistas tradicionais aceitariam hoje em dia, mesmo que não adotassem as diretrizes
hermenêuticas de Ladd para chegarem lá. De alguma forma, essas sugestões eram aceitáveis
porque tratavam de soteriologia e ética, enquanto as propostas em torno da promessa e do reino
davídicos não eram. A razão provável para a resposta diferente é que ao se discutir o reinado
davídico, falava-se de Israel como uma instituição. O Antigo Testamento parece ensinar que
Israel tem um futuro que se estende até a resolução da história. O dispensacionalismo sempre
teve em seu coração um ponto sensível por Israel, de modo que afirmar a realização inicial da
promessa davídica sem um papel relevante para o Israel nacional (como Ladd fizera), parecia
separar o que não deveria ser separado. Se Davi ou as suas promessas pudessem fazer parte da
igreja, que necessidade se tinha para Israel? Os teólogos reformados, incluindo os aliancistas pré-
milenistas, fazem-me a mesma pergunta que os dispensacionalistas tradicionais, mas argumentam
que Israel e a igreja são um e são os mesmos — um ponto de vista que rejeito como uma
simplificação excessiva do texto, embora eu aprecie o que está no ensino do Novo Testamento
que leva os teólogos aliancistas a afirmarem isso. Os dispensacionalistas tradicionais preferem que
Davi fique onde ele pertencia: em um Israel nacional que tem um papel central no futuro. Os
dispensacionalistas progressivos defendem que há uma nuance nessa discussão que se situa entre
esses dois opostos.
Um dos incômodos que o dispensacionalismo progressivo parecia causar era a bagunça nas
claras linhas de distinção que os teólogos aliancistas e dispensacionalistas haviam feito em seus
debates (às vezes acalorados) entre as décadas de 1950 e 1970. A confusão resultante deixou as
pessoas que desejavam categorias bem definidas desconfortáveis. Eu estava bem ciente dessa
tensão em 1987, pois tive de enfrentá-la hermeneuticamente ao considerar a proposta. Penso que
parte dessa reação é perfeitamente compreensível, visto que a teologia é marcada pela história de
suas lutas, pela localização temporal dos eventos e pelo desejo de saber de que lado se está.
Quando os dispensacionalistas progressivos desafiaram a viabilidade da expressão “literal” no
recente debate e se o literalismo era uma condição histórica sine qua non do dispensacionalismo,
foi confirmado para muitos que nosso desejo era que o dispensacionalismo perdesse seu aspecto
distintivo e então juntar-se ou desertar para o outro lado.7
Lamentavelmente, a reivindicação de uma conexão perdeu o sentido. Foram feitas
associações que a princípio eram compreensíveis, mas eram incorretas e gravemente enganosas. A
avaliação teológica necessita não somente considerar qual é a conclusão, mas como ela foi
alcançada e o que está sendo abordado. Craig Blaising formulou três argumentos convincentes a
respeito da interpretação “literal”.

1. É um termo pobre para ser usado em uma definição, pois ainda é necessário definir como se
encontra o termo “literal” no texto.8 Charles Ryrie também reconheceu esta dificuldade ao
manifestar a sua preferência pelo termo “normal” ou “simples”.9
Esta abordagem era mais conhecida como interpretação histórico-gramatical, uma descrição
que os evangélicos adotaram e também era aceita por Ryrie.10 Este último conceito é a melhor
frase para definir sobre o que a interpretação deve envolver. A afirmação adicional feita por
Blaising era que todos os evangélicos buscam fazer isso, de modo que as conclusões diferentes
não são o reflexo de um método diferente, mas sim de uma diferença na integração dos textos.

2. Uma reivindicação de interpretação literal consistente não era uma condição sine qua non
claramente e historicamente definida para o dispensacionalismo até os debates polêmicos em meados do
século XX. O argumento de Blaising sobre a interpretação literal consistente era que essa
reivindicação não refletia o pensamento dos primeiros escritores do dispensacionalismo, que
estavam claramente mais confortáveis com leituras mais espiritualizadas do texto.11
Frequentemente eles se envolviam com leituras tipológica do texto, que eram menos
significativas do que se tornou o termo "literal" quando definido por Ryrie. As palavras de
Blaising resumem muito bem esta situação histórica:

Consequentemente, a observação de Ryrie [sobre a interpretação literal consistente como uma


condição sine qua non], mesmo que tenha falhado como uma descrição da essência imutável
do dispensacionalismo, ainda assim apontou uma direção na qual a hermenêutica
dispensacionalista deveria se desenvolver. O antigo princípio da espiritualização foi deixado
para trás, e os dispensacionalistas — primeiramente os revisados e posteriormente os
progressivos — buscaram o objetivo da hermenêutica histórico-gramatical consistente, mesmo
quando o desenvolveram em significado e método e em diálogo com outros evangélicos.12

3. As questões interpretativas na última parte do século XX mostram que todos os evangélicos estão
lutando para entender de que modo o texto está integrado a um todo teológico. Entre os reformados
havia uma reivindicação de uma hermenêutica “especial” na qual muitos teólogos reformados
aceitavam a descrição de sua interpretação como “espiritual” porque acreditavam que esse tipo de
leitura tinha uma base bíblica.13 Porém, hoje em dia a discussão está mudando em ambos os
lados. Hoje, muitos teólogos aliancistas não tentam interpretar mais o texto de forma alegórica
ou não natural ao argumentarem que o livro de Hebreus apresenta um dualismo celestial-
terrestre no qual a forma celestial transcende a terrestre. Do ponto de vista deles, a acusação de
uma interpretação alegórica é moralmente injusta. O debate diz respeito à ênfase e ao
relacionamento das partes, e não à interpretação literal versus alegórica. Quando eles pegam o
exemplo apresentado no livro de Hebreus com referência ao céu e ao templo e o aplicam de
modo geral em diversas outras partes da Bíblia, eu paro e quero perguntar por que, da mesma
forma que fiz ao criticar a análise de Vern Poythress.14 O esforço feito pelos dispensacionalistas
progressivos para deixar de lado o “literal” da discussão não significa que concordamos com a
abordagem aliancista ou que desejamos uma integração como eles fazem. Ao entender as
verdadeiras questões, e não apenas as conclusões distintas, talvez possamos efetivamente aprender
algo sobre como progredir nas discussões de tais diferenças.
A crítica de Ladd também perdeu o sentido, por mais compreensível que ela seja. Nosso
objetivo não era argumentar que os cumprimentos iniciais no Novo Testamento redefiniram os
termos de tal modo que eles não significavam mais o que eles pareciam significar no Antigo
Testamento. Também não defendemos um refinamento de seu significado que
consequentemente muda o sentido do que originalmente parecia ser. Não estávamos recorrendo
ao Sensus Plenior, da mesma forma como George Ladd e Daniel Fuller pareciam usar o termo. A
hermenêutica “complementar” do dispensacionalismo progressivo significava que aquilo que o
Novo Testamento nos oferece está de acordo com o que Deus já revelou no Antigo Testamento.
Deus pode dizer mais sobre o desenvolvimento das promessas do Antigo Testamento no Novo
Testamento, mas não menos que isso. Ele também pode trazer novas conexões no
desenvolvimento da promessa, à medida que mais revelações são acrescentadas. É essa dinâmica
da dimensão multitemporal da promessa que alguns dispensacionalista têm subestimado,
enquanto os teólogos aliancistas têm exagerado no elemento do Novo Testamento. Os textos que
evocam um comentário sobre o cumprimento definem o alcance de sua realização e o seu tempo.
A integração aliancista argumenta que a esperança do Antigo Testamento foi transcendida e/ou
mais claramente expressa no Novo Testamento. Os dispensacionalistas progressivos argumentam
que o Novo Testamento indica que há um complemento das promessas do Antigo Testamento,
também tendo um cumprimento completo dentro das estruturas étnicas já indicadas no Antigo
Testamento. Isso significa que, em ambos os pontos de vista, a igreja pode existir como uma
instituição distinta no plano de Deus e ainda partilhar das promessas que foram dadas
originalmente a Israel, pois Deus as aplica por meio de sua promessa através de seu plano
envolvendo a Cristo, o descendente de Abraão, que foi também o instrumento prometido através
do qual o mundo seria abençoado (Gl 3-4).
A visão de Ladd permaneceu obscura a respeito do programa futuro envolvendo o Israel
nacional, exceto por articular que o plano incluía um programa redentivo e o povo de Deus.15
Acertadamente ele recorreu ao texto de Romanos 11 e a sua ênfase na unidade. Uma planta
mencionada começa com os israelitas, enxerta os gentios, e aguarda com expectativa o dia do
retorno de Israel. Ladd acreditava que Israel se voltaria para Deus no final, porém, no processo,
não falou da instituição nacional de Israel. Para ele, por exemplo, as 144 mil pessoas citadas em
Apocalipse 7 retratam a igreja do fim dos tempos.16 A presença da bênção em Cristo através de
Israel e para as nações é um aspecto fundamental da esperança do Antigo Testamento que é
evocada aqui. Há uma unidade na bênção, e ao mesmo tempo há evidências de uma
reconciliação nacional por meio de Cristo. Entretanto, os dispensacionalistas progressivos veem
os 144 mil como um reflexo das testemunhas judaicas de Jesus em um Israel reconstituído que
será estabelecido na era final.17 Portanto, os dispensacionalistas progressivos afirmam claramente
que (1) há um futuro para o Israel étnico e (2) há uma distinção entre Israel e a igreja como
instituições em atividade ao longo do plano de Deus. Há aqui distinções que permanecem no
meio da articulação da continuidade soteriológica e do reino sobre o progresso da promessa e a
realização da esperança da aliança. Estes desenvolvimentos matizam a nossa discussão teológica
tanto dentro do dispensacionalismo quanto nas diversas linhas de tradição dentro do
evangelicalismo. São novas propostas de síntese, que especificam onde existem continuidades e
descontinuidades no plano de Deus.
Nosso argumento tem sido que o cumprimento inicial na igreja no presente não implica no
fim de um papel central para a crença de um Israel nacional no futuro. Isso também não deve ser
lido como uma proposta do “separado mas igual”, mas sim como uma estrutura “distinta porém
reconciliada” que apresenta como Deus reconciliou aquilo que era anteriormente dividido.18
Todavia, todos que compartilham das bênçãos da salvação também compartilham da unidade da
bênção advinda de Cristo. Recentemente os teólogos aliancistas debateram textos como o de
Romanos 11 e se há um futuro para o Israel nacional, expressando vergonha por não terem
entendido isso anteriormente na tradição.19 Alguns são decididamente pré-milenistas, ou pelo
menos expressaram algum agnosticismo sobre o tema à luz de Apocalipse 20. Outros, como
Anthony Hoekma, falam de um cumprimento físico e literal na terra.20
O que é necessário não é ver quão rapidamente podemos encaixar uma visão no esquema
antigo, mas sim refletir sobre como a nova associação é biblicamente e textualmente organizada.
Portanto, eu não me identifico com o aliancismo pré-milenista, embora tenha algumas
conclusões semelhantes e aprecie algumas de suas críticas a expressões mais antigas do
dispensacionalismo. As minhas conclusões refletem uma estrutura dispensacionalista, razão pela
qual sou um dispensacionalista com “d” minúsculo.
A IMPORTÂNCIA DO DISPENSACIONALISMO21
O dispensacionalismo é muito importante para a igreja como um todo. O que estou prestes a
dizer não é uma afirmação de que o dispensacionalismo seja distinto nas áreas que eu debato.
Esta tradição lida com as preocupações bíblicas e tem a sua ênfase que beneficiam todos os
evangélicos. Outras tradições também poderiam fazer uma lista semelhante. Aqui eu gostaria de
destacar seis áreas importantes.

1. Literatura Apocalíptica. O dispensacionalismo sempre procurou lidar com a literatura


apocalíptica sem tentar desmistificá-la ou domesticá-la. Conheço teólogos que se afastaram do
livro de Apocalipse pois julgavam um livro muito difícil ou até mesmo esotérico. Mas a razão
pela qual a literatura apocalíptica é tão importante é que ela ratifica muito dos temas básicos que
são centrais para o envolvimento de Deus conosco.
Em primeiro lugar, desde Adão até o fim, Deus está elaborando um plano que chegará a uma
resolução triunfante dentro do atual progresso da história.
Em segundo lugar, a literatura apocalíptica afirma de forma evidente que uma batalha
cósmica está de fato acontecendo em nosso mundo. Embora alguns façam com que se pareça
muito com um dualismo, o fato é que na maior parte do mundo moderno há um certo desprezo
das forças invisíveis que atuam em nosso mundo e em nós. A literatura apocalíptica desafia tudo
isso, lembrando-nos de que estamos de um lado ou de outro de uma vasta batalha cósmica em
uma história de responsabilidade cujo fim é indiscutível.
Em terceiro lugar, a literatura apocalíptica é descaradamente antinaturalista. Parte da razão
pela qual muitos hesitam em considerar sobre temas apocalípticos é que esses temas são muito
antiquados. Constatar que há um Deus que invade o nosso mundo de forma tão radical, está fora
de moda desde a época do iluminismo. Muitos de nós sentem-se desconfortáveis com as imagens
perturbadoras do julgamento cósmico da literatura apocalíptica. Preferimos uma vitória limpa na
qual os perdedores são mais esquecidos do que tratados. Em sua essência, a literatura apocalíptica
desafia essa cosmovisão de um mundo falsamente higienizado.

2. A graça de Deus. A descrição da salvação apresentada no dispensacionalismo e a fatídica


jornada de Israel é manifestação da graça de Deus e sua fidelidade às suas promessas. O relato é
de um Deus que não abandona os seus planos nem desiste do pecador. A graça de Deus torna a
história de Israel até o fim muito importante, como mostra o texto de Romanos 9-11. Uma
ênfase na graça de Deus nos relembra de que Deus é “paciente com vocês, não querendo que
ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9, NVI). Ponderar sobre a
graça de Deus significa que devemos levar a sério os nossos pecados como algo que Deus pagou
com um grande custo. Ela também nos traz à memória que pertencemos a Deus por causa da
obra de Cristo e não por causa de alguma obra feita por nós mesmos.
A história de Israel, um objeto indigno da promessa, é também um retrato significativo da
fidelidade de Deus. Aquilo que um dia ele reconquistará é o retrato da constância de Deus que
jamais devemos esquecer.

3. Leitura holística das Escrituras. O dispensacionalismo adota a história das Escrituras como
um todo e procura integrá-la. Nossa tradição, assim como as outras, tem também os seus debates
a respeito de como a integração funciona em seus detalhes. Embora a tradição permaneça
comprometida em ler o progresso da história bíblica como algo em que deve haver uma atenção
especial. É importante perceber onde uma era é igual e onde é distinta de outras eras. Ao afirmar
que o dia de hoje não era como foi ontem, o dispensacionalismo desafia a igreja a ler as Escrituras
com os olhos da singularidade do que Deus está fazendo em um determinado período.

4. A igreja e o mundo. O dispensacionalismo sempre fez uma distinção entre a igreja e o


mundo. Alguns veem isso como uma fraqueza que conduz ao escapismo. Mas eu não vejo assim.
Muitas das grandes organizações missionárias surgiram com os dispensacionalistas, pois estes
criam que a igreja era o meio no qual Deus estava trabalhando de modo especial. O ativismo
social do dispensacionalismo tem o seu foco em uma outra direção por causa da percepção dessa
prioridade. Esta distinção promoveu o evangelismo e demonstrou que a obra de Deus através da
igreja é o local onde são encontradas as verdadeiras reformas e a verdadeira redenção. Isso não
significa que o engajamento neste mundo é desnecessário. Entretanto, precisamos lembrar, como
mostra a história de Israel, que sem uma transformação do coração, uma nova lei corre o risco de
se tornar uma letra morta.

5. As Distinções culturais dentro do corpo. Outro assunto que não é muito reconhecido sobre o
dispensacionalismo é a sua sensibilidade com as distinções culturais na igreja. Somos todos um
em Cristo, e ao mesmo tempo somos de judeus e gentios. Uma parte do evangelho inclui a
poderosa imagem da reconciliação horizontal. O evangelho não faz com que esqueçamos que no
momento em que Deus nos uniu, ele fez isso apesar de sermos distintos e com uma diversidade
de origens. A igreja necessita modelar a reconciliação cultural, uma unidade em meio da
maravilhosa diversidade criativa de Deus.

6. Todos os crentes são ministros. O surgimento das organizações paraeclesiásticas é um dos


desenvolvimentos mais desconcertantes do século XX. É uma inovação, assim como foi a escola
bíblica dominical, que veio para ficar. Na base deste movimento está a crença de que a igreja não
é um prédio e nem está restrita a uma localidade específica. Ela é formada pelo povo da fé que
busca ministrar pelo Deus vivo a quem servem e amam. O dispensacionalismo ajudou e
contribuiu para a origem de muitas organizações paraeclesiásticas. Esta ênfase beneficia a todos
nós.
Um segundo exemplo desse fenômeno é o estudo bíblico nos lares, outra manifestação do
fato de que Deus chama todos nós a levarmos a sério o aprendizado como seus discípulos.
Por fim, ao observar essas categorias, não desejo ser mal interpretado. Não estou dizendo que
todos esses ensinos estejam necessariamente ausentes em outras tradições, ou que muitos desses
temas não aparecem lá. Não reivindico que essas ênfases sejam exclusivas da minha tradição, mas
simplesmente que a minha tradição é bastante útil na maneira como aborda essas questões. O
que eu apresentei aqui são ênfases que ressoam com importantes temas bíblicos de modo que
ofereça algo valioso para o restante da comunidade evangélica.

A IMPORTÂNCIA DAS NOVAS ÊNFASES DISPENSACIONAIS E COMO ELAS


SURGIRAM
Há outras razões mais recentes pelas quais eu sou um dispensacionalista. Um dos maiores
compromissos da minha tradição é ir até aonde as Escrituras vão, uma perspectiva que implica
uma disposição em fazer um minucioso exame próprio. Uma autorreflexão crítica é sempre um
exercício difícil. Às vezes essa reflexão precisa da contribuição daqueles que estão fora da nossa
tradição para nos ajudar a considerar onde nossos pontos cegos podem existir. Em outros
momentos, é necessário que alguns de dentro desta tradição levantem questionamentos e
ofereçam as soluções. Em princípio, uma tradição que não ofereça algum espaço para a reflexão
será fossilizada.
O comprometimento com uma tradição é um compromisso que não somente preserva,
protege e a defende mas também considera a necessidade de reformar e remodelar quando tal é
mais bíblica. O fato de podermos nos envolver em uma ponderação dentro da nossa tradição e
entre as outras tradições é um sinal de nossa saúde. Alguns de nossos temas mais recentes
surgiram de nossas reflexões internas e são saudáveis por si só. Gostaria de ressaltar duas
ponderações que apontam para as ênfases que tornam atraente ser um dispensacionalista.

1. Considerações sobre o tema da unidade. Uma nova ênfase é avaliar a unidade da mensagem
bíblica em meio à conhecida busca pelas distinções no dispensacionalismo. Em parte, isso
provavelmente aconteceu em resposta aos questionamentos feitos por aqueles que estavam fora
da nossa tradição. De qualquer modo, o resultado foi um novo diálogo, biblicamente centrado,
com muitas outras tradições.
Alguns céticos a esses desenvolvimentos acham que esse sempre foi o objetivo — a saber,
reformular o dispensacionalismo de uma maneira que o tornasse mais aceitável para os de fora e
que nesse processo já não o tornasse mais dispensacionalismo. Eles também se sentem
desconfortáveis com a nova aproximação com aqueles que pertencem a outras posições, por
entenderem que a verdade estava sendo comprometida em nome de uma falsa unidade. Mas
aqueles que reagem a esses desenvolvimentos apenas com um desejo de exclusão e rejeição,
correm o risco de serem prejudicados porque se afastam de uma discussão potencialmente
frutífera.

2. O amplo alcance da salvação. Os recentes desenvolvimentos no dispensacionalismo têm o


seu foco no chamado de Deus para reformar a humanidade em todos os seus relacionamentos
através da salvação em Cristo. A verdadeira reforma fora de Jesus Cristo é uma impossibilidade.
No dispensacionalismo, isso se tornou possível pela reintrodução do estudo dos Evangelhos e dos
profetas com o seu ímpeto ético. Este novo foco vai além de um apelo às exigências de ser feito à
imagem de Deus. Ele enfatiza a consideração de como Deus chama as pessoas a se relacionarem
umas com os outras e como isto agora é possível, mas somente em Cristo. Ele insiste que a
salvação e a santificação não são apenas questões de um relacionamento pessoal e direto com
Deus, mas também envolvem uma reconciliação corporativa em uma diversidade dos contextos
da vida. O envolvimento nessas esferas corporativas nos protege de duas ênfases falsas.
Uma falsa abordagem basicamente se afasta do mundo e de seus problemas, deixando-os em
grande parte sem uma solução. Com efeito, a escolha é deixar a pessoa secular afundar-se em sua
própria lama à medida que a sociedade se degrada ao nosso redor, buscando, em vez disso, uma
mudança de coração. Mas como podemos ver onde está o coração, a menos que as questões das
escolhas da vida sejam submetidas ao escrutínio bíblico? Deus corre o risco de ser irrelevante em
todas as extensões do esforço humano.
A segunda falsa ênfase também corre o risco de um perigoso dualismo ao sugerir de modo
sutil que a mera aprovação de certas leis ou até mesmo que a prática de boas políticas e sua
influência irão melhorar a sociedade. Israel tinha a melhor lei que o céu poderia oferecer, e
mesmo assim, em alguns momentos, também a sua sociedade foi completamente corrupta.
Entrar neste ambiente do discurso público sem oferecer a graça de Deus corre o risco de
apresentar somente um lado de Deus e consequentemente se torna uma distorção de sua Pessoa.
Além de tentar apontar para a transgressão e para o pecado e procurar elevar os padrões de nossa
sociedade, precisamos também estender a esperança do perdão e da graça de Deus.
O que o alvo da salvação traz é uma ênfase no fato de que o lugar onde a ação de Deus deve
ser mais evidente na transformação está na igreja. Se uma reforma genuína é possível apenas em
Cristo, então ela deve ser vista nos cristãos e entre os cristãos. A recente ênfase do
dispensacionalismo na atual autoridade de Cristo nesta era e o reconhecimento que Ele está se
derramando na igreja significa que todas essas implicações de nosso envolvimento no mundo
necessitam ser tratadas com sensibilidade.

OS PERIGOS PARA O DISPENSACIONALISMO


Em tudo isso existem várias armadilhas. É preciso ter cuidado para que os pontos fortes não
sejam exagerados e que as suas fraquezas decepcionem e sejam prejudiciais. Portanto, quero
apontar para três perigos potenciais de nossa tradição.

1. Lidar com a verdade e os outros. Um comprometimento elevado com as Escrituras é tanto


uma dádiva quanto uma responsabilidade. A dádiva é resultante de ter acesso à verdade e a uma
preciosa revelação de Deus, da qual a igreja é a guardiã. É grande a pressão que existe sobre os
teólogos de todos os credos para que permaneçam fiéis a verdade e a reflitam naquilo que
ensinamos. Por ser comprometido com a verdade da Palavra, o dispensacionalismo sempre teve
um forte anseio de ser cauteloso na forma como a doutrina é articulada.
Mas o comprometimento com as Escrituras traz também uma responsabilidade. Ter acesso à
verdade em um texto inspirado e conhecer a verdade são duas coisas diferentes. Elas podem ser
facilmente confundidas. É importante a fidelidade a verdade, mas também em como interagimos
com os outros. Nossa responsabilidade é sermos fiéis à Palavra e justos a respeito do que
realmente conhecemos.

2. Lidar com futuro. Um importante elemento de nossa tradição é o compromisso do


dispensacionalismo com o que Deus fará por meio de sua graça no futuro. Entretanto, se formos
honestos, sabemos de muitas instâncias dentro de nossa tradição onde o desejo de conhecer o
futuro foi longe demais. Em nosso zelo e convicção sobre o que as Escrituras ensinam a respeito
do arrebatamento e da segunda vinda, pintamos cenários ao longo dos últimos séculos que se
mostraram errados. É possível que Jesus Cristo volte hoje. Mas devemos ser cautelosos e nesse
momento lembrarmos da história da igreja. Vários dentro de nossa tradição tentaram argumentar
que a sua geração era a última geração. No entanto, esta geração tem agora se estendido por
muitas gerações. A perigosa tentativa de marcar uma determinada data, bem como a tentação de
detalhar tudo, é o perigo de fazermos identificações que não tem nada a ver com o plano final
determinado por Deus. Ao fazer isso, corremos o risco de construir uma falsa cosmovisão pois ela
é feita através de uma identificação errada.
Um último assunto que precisa ser tratado diz respeito à volta de Jesus. Para mim, a “bendita
esperança” implica em um arrebatamento pré-tribulacional. Porém isso é uma dedução e eu a
trato como tal. E eu acredito desta forma pois creio que esta é a ênfase apropriada à luz da
totalidade do ensino das Escrituras a respeito do futuro.
Para mim, a bendita esperança não está vinculada ao momento do evento que dá início a ele,
mas sim sobre o que ela representa. Aguardo ansiosamente a vinda e a plenitude de nossa
transformação e redenção quando nosso glorioso Deus manifestará completamente o seu poder e
executará o seu julgamento. Não é por acaso que o texto de Tito 2.13, um texto que é muito
apreciado e citado pelos dispensacionalistas, ocorre em um contexto ético onde somos exortados
a ponderar um caráter ético de nossa fé até a vinda de Cristo.

3. Lidar com a promessa na Palavra. Minha preocupação final é que em nossa busca pelas
distinções corremos o risco de separar demais nosso Senhor Jesus da teologia de seu servo Paulo.
Não é por acaso que dois dos livros bíblicos que abordam a relação entre o evangelho e a
promessa do Antigo Testamento começam afirmando, nos termos mais claros e contundentes, a
continuidade da mensagem que a igreja traz com essa esperança de outrora. Os textos de
Romanos 1.1-4 e Hebreus 1.1-2 afirmam que Jesus Cristo é o cumprimento da esperança do
Antigo Testamento. O texto de Romanos aborda o tema no contexto da promessa, da lei, da
soteriologia e o relacionamento entre os judeus e gentios. Romanos 9-11 não é um parêntesis no
livro, mas sim uma parte essencial do seu argumento. O livro de Hebreus considera o tema a
partir da perspectiva da superioridade de Cristo baseado em sua atividade atual. Ele considera
também o fim da necessidade dos sacrifícios contínuos, ao retratar esta substituição como uma
expressão da inauguração da Nova Aliança, algo que também é celebrado na ceia do Senhor. Eu
acredito que uma grande separação entre Paulo e Jesus não é saudável para a teologia.

CONCLUSÃO
Eu sou um dispensacionalista com “d” minúsculo por uma série de razões. Alguns deles se
relacionam com os eventos da minha conversão. Outros se relacionam com uma correspondência
que vejo entre as ênfases da tradição e o que creio ver nas Escrituras. Há ainda outros que se
relacionam com os benefícios que enxergo que o dispensacionalismo oferece para as tarefas
teológicas de nossos dias. Isso não significa que esteja fora do alcance a discussão destes temas
com outras tradições, nem significa que eu ache que esta tradição não tenha potenciais
armadilhas na maneira como elas expressam essas ênfases. Porém continuo sendo um
dispensacionalista pois creio realmente que muito do que ele ensina reflete de modo suficiente o
que as Escrituras ensinam e que eu aceito e adoto. De fato, eu recomendo o dispensacionalismo
para os outros, não tendo alguma esperança de vencer uma batalha teológica com eles, mas na
esperança de que este ponto de vista teológico ajude a todos a enxergar mais claramente o nosso
mundo, a nós mesmos e nosso Deus. Entretanto, a minha identidade será sempre com um “d”
minúsculo, pois afinal de contas, o meu compromisso não é com um sistema teológico ou com a
tradição, mas sim com meu Deus e com o seu ensino, de quem a redenção é retratada de modo
maravilhoso por meio das verdades que ele ensina. Isso significa que, ao falar a respeito do que
acredito, estou aberto para ouvir mais dele. Afinal de contas, é a sua voz que eu quero seguir, pois
sei que ainda não ouvi a sua voz final.

1. Este artigo é uma versão resumida de meu discurso para o grupo de estudos dispensacionalistas proferida no encontro nacional
em Jackson, Mississipi, em novembro de 1996. Ele explica seu caráter autobiográfico.
2. Por exemplo, S. J. Nichols, “The Dispensational View of the Davidic Kingdom: A Response to Progressive Dispensationalism”
publicado no The Master’s Seminary Journal, 7, 1996, p. 213-239, que se esforça em argumentar que a afirmação dos
dispensacionalistas progressivos a respeito de uma realização inicial da promessa davídica não é realmente uma posição
dispensacionalista, simplesmente pelo fato de que ela não foi feita anteriormente na história do movimento. Ela faz esta afirmação
ao examinar a história e não os textos, e de modo conveniente ignora o trabalho de E. Sauer no processo. A defesa de Nichols de
um reino espiritual no Novo Testamento como não estando relacionado à promessa davídica ignora o fato de que as imagens
usadas nesses textos que descrevem o reino espiritual são provenientes do Antigo Testamento e das categorias davídicas (veja
Rm 1.2-4; Cl 1.13 em comparação com Lc 1.69-79 com os seus riquíssimos temas da esperança no Antigo Testamento). Isto
mostra por que a criação desta categoria é motivada pelas preocupações teológicas e sistemáticas e não pelo texto em si. Para uma
série completa de artigos que refletem este pano de fundo veja D. L. Bock o artigo: “Current Messianic Activity and OT Davidic
Promise: Dispensationalism, Hermeneutics, and NT Fulfillment” Trinity Journal, 15, 1994) pp. 55-87.
3. Não existe uma regra hermenêutica que afirme que uma unidade de significado não possa ser desenvolvida ou se torne mais
complexa com uma relação subsequente. De fato, aqui há uma certa ironia no desafio de uma leitura complementar. Os
dispensacionalistas que falam que os textos do Antigo Testamento são milenaristas, devem fazer isso por alguma leitura
complementar, pois esta categoria não existe para o escritor do Antigo Testamento, mas vem do livro de Apocalipse. Assim,
mesmo os dispensacionalistas revisados se empenham em uma leitura complementar do Antigo Testamento. Desta forma, o
tempo e seus detalhes são preenchidos por eventos da história divina. Se tivéssemos apagado o sentido que estava originalmente
presente, então sua cobrança terá o seu mérito. Mas isto é exatamente o que não fizemos.
4. Esta associação foi feita em resposta ao meu artigo para o encontro de 1987 do Dispensational Study Group. Este artigo foi
publicado posteriormente como: “The Reign of the Lord Christ”, Dispensationalism, Israel and the Church: A search for definition.
(ed. C. A. Blaising e Darrell L. Bock: Grand Rapids, Zondervan, 1992). Minha resposta inicial a esta associação aparece na
página 54.
5. É a recusa dos dispensacionalistas progressivos em redefinir Israel, por exemplo, que suscita críticas injustas como a oferecida
por R. Thomas sobre a hermenêutica de múltiplos significados. Não se pode comparar as reivindicações de textos evangélicos
mais antigos sobre hermenêutica com uma discussão da teoria progressiva. A maioria desses textos não trata em detalhes como
lidar com o progresso da revelação entre textos da esperança no Antigo Testamento e a realização no Novo Testamento. Em
última análise, os textos bíblicos da promessa da aliança devem ser estudados e examinados em seu contexto para ver como eles se
cumprem no presente. O artigo de Thomas pouco ajuda pois procura ser teórico e prescritivo, sem analisar claramente a exegese
dos textos mais importantes do Novo Testamento onde as passagens do Antigo Testamento são usadas com notas de seu
cumprimento. A recusa dos dispensacionalistas progressivos em redefinir Israel também significa que o padrão hermenêutico
proposto por C. Ryrie para os dispensacionalistas foi alcançado, a despeito de suas críticas; veja Dispensationalism (Chicago:
Moody, 1995) p. 43 para a avaliação adequada de Ryrie sobre a hermenêutica de Ladd. Curiosamente, Ryrie elogia corretamente
a obra de Sauer enquanto reclama das opiniões dos dispensacionalistas progressivos — um surpreendente paradoxo, dado que
Sauer fez observações semelhantes sobre a promessa davídica.
6. Tais esforços podem ser vistos nos títulos que alguns tentaram trazer para a discussão, os quais foram além dos títulos
descritivos “tradicional”, “revisado” e “progressivo” que utilizamos com fundamentos históricos. A infeliz escolha recente de usar
o termo dispensacionalismo “normativo” por alguns que defendem o que chamamos de dispensacionalismo “revisado” é uma
tentativa de ser prescritivo de formas que citam seletivamente a evidência histórica da história do dispensacionalismo, ignorando a
posição de um dispensacionalista reconhecido como Sauer, com o fraco argumento de que ele é um dispensacionalista
continental, e não lidando com comentários como o de Mateus 3.2 na Bíblia de Estudo Scofield.
7. Deve-se observar a linguagem de batalha que está sendo usada e a tentativa mal direcionada de ler o motivo aqui.
8. Blaising e Bock, Dispensacionalismo Progressivo, pp. 43-52.
9. C. C. Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1966) p. 45; veja também Ryrie, Dispensationalism p. 40.
10. C. C. Ryrie, Dispensationalism Today, p. 86-87.
11. Dispensationalism, Israel and the Church (ed. Blaising e Bock), p. 26.
12. Blaising e Bock, Dispensacionalismo Progressivo, p. 46.
13. W. E. Cox, Amillennialism Today (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1966), pp. 14, 24-25.
14. D. L. Bock, resenha de V. Poythress, Undestanding Dispensationalism, JETS 32 (1989), pp. 542-544. Numa atualização de
sua obra, Poythress argumenta que os dispensacionalistas progressivos foram pegos em um dilema hermenêutico por causa da
afirmação deles de uma unidade soteriológica em textos como o de Gl 3 e Rm 11. Mas isso ignora uma consideração do tipo de
nuance apresentada pela minha pergunta sobre o livro de Hebreus. A teologia bíblica só avançará quando as continuidades e as
descontinuidades forem apreciadas e devidamente definidas em categorias apropriadas. A busca de tais nuances no debate sobre a
lei entre os reformados e os teonomistas, um movimento exigido pela crítica reformada à teonomia, também precisa ser trazida
para a discussão da soteriologia e da escatologia. Se isto pode auxiliar na discussão da lei, pode também nos auxiliar a delinear as
estruturas no plano de Deus, conforme as diversas dispensações vão e vêm.
15. G. E. Ladd, O Evangelho do Reino (São Paulo: Shedd Publicações, 2008), pp. 131-147.
16. G. E. Ladd, Apocalipse, Introdução e Comentário (São Paulo: Vida Nova, 1980), pp. 83-88.
17. Blaising e Bock, Dispensacionalismo Progressivo, p. 332.
18. Aqui eu respondo a distinção que R. Mouw ofereceu à minha proposta em resposta à apresentação original deste ensaio.
19. C. E. B. Cranfield, The Epistle to the Romans (Edinburgh: T. & T. Clark, 1979) 2.448 n. 2.
20. A. A. Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids: Eerdmans, 1979) [edição em português: A Bíblia e o Futuro (São
Paulo: Cultura Cristã, 2013)] 205, 274-287; cf. também V. S. Poythress, Understanding Dispensationalists 38, pp. 47-51.
21. Por uma questão de espaço eu resumi bastante as próximas três partes. Para um estudo mais detalhado destes temas, você
pode buscar a versão original deste meu ensaio no Dispensational Study Group.
O Sibima é uma instituição evangélica, sem fins lucrativos, de ensino teológico fundamentada
nas Escrituras Sagradas e que tem como objetivo treinar obreiros visando a expansão e edificação
do Reino de Deus. Dessa forma, há mais de 70 anos estamos promovendo a divulgação e
implementação da cosmovisão cristã em nossa sociedade, a fim de que a Glória de Deus alcance
os confins da terra.
A excelência acadêmica e a maturidade espiritual são o nosso lema. Mas não temos aqui
apenas uma frase de efeito, e sim a realidade da dedicação dos nossos professores que buscam
cada vez mais uma qualificação maior no estudo das Escrituras, e que também são pastores
dedicados aos seus rebanhos. São homens de Deus servindo ao povo de Deus liderando a igreja
do Senhor Jesus Cristo.
Atualmente temos o curso de Teologia Ministerial, com duração de 4 anos, onde nossos
alunos recebem uma profunda base teológica, exegética e missiológica. Além disso, também
temos o curso de Teologia Avançada (Sacrae Theologiae Magister) com foco em Teologia
Sistemática e em Aconselhamento Bíblico. E em 2021 estaremos iniciando um Ph.D. em
Teologia em parceria com a Clark Summit University (Baptist Bible Seminary). Um curso de
alto nível acadêmico e todo voltado para o estudo sério da Palavra de Deus. Tudo isso tem um
único objetivo: servir a Igreja de Cristo e promover sua glória entre as nações.
Valberth Veras,
Deão Acadêmico
www.sibima.com.br

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