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360 Outros materiais · Textos informativos complementares Sequência 3.

Gil Vicente

Manual · p. 173

A mundividência social na Farsa de Inês Pereira


As viagens marítimas do final do século XV transformam Portugal. A riqueza que advém do

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comércio de artigos do Oriente promove o desenvolvimento da burguesia, o surgimento de várias
atividades profissionais e, consequentemente, a estrutura da sociedade feudal desestabiliza-se.
O comportamento e a moral tradicionais sofrem abalo em decorrência da urbanização e de clas-
5 ses intermediárias desejosas de imitar o estilo de vida das classes mais abastadas. […]
A produção de Gil Vicente é intensa e diversificada. Em 34 anos de atividade escreveu por
volta de 45 peças, abarcando desde autos religiosos (Auto da Visitação, Auto da Fé), narrativas de
cavalaria (D. Duardos) até farsas que expõem o quotidiano da vida social (Auto da Índia, Velho da
Horta). […]
10 O talento fértil do dramaturgo provocou suspeitas de que as suas obras fossem plágios, ao
ponto de proporem que Gil Vicente passasse por um teste. Alguns nobres entregam ao escritor o
mote “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, a partir do qual deveria
compor uma peça. O resultado desse desafio é o texto Farsa de Inês Pereira.
A sensatez de escolher adequadamente um estilo de vida, de acordo com a classe social a
15 que se pertence, é o tema central da Farsa de Inês Pereira. O mote – “Mais quero asno que me
leve que cavalo que me derrube” – sintetiza a lição aprendida por Inês: mais vale casar-se com
um gentil lavrador que a sustente do que unir-se a um marido fidalgo, de atitudes requintadas,
que a trate mal. Ao condenar essa escolha por valores fúteis, Gil Vicente expressa a sua aversão
em relação às transformações por que passa a sociedade portuguesa quinhentista, que se liberta
20 da rigidez feudal, conhece maiores possibilidades de mobilidade social e perde hábitos e valores
tradicionais. A nova ordem possibilita que indivíduos de classes mais baixas queiram aproximar-
-se, ao menos no que diz respeito à aparência, do modo de vida das classes superiores.
As alterações económicas e sociais da época redefinem inteiramente os padrões de conduta
até então convencionados. A nobreza necessita de manter o conforto a que está habituada; os
25 camponeses, os artesãos, os comerciantes, os serviçais do paço são movidos pelo desejo de as-
censão e encantam-se com a possibilidade de enriquecimento. Para satisfazer essa necessidade
e esse desejo corrompem-se os valores mais autênticos e adequados, segundo a visão de Gil Vi-
cente. Valoriza-se a aparência, a futilidade, a ociosidade, a trapaça que resulta em benefício,
e despreza-se o esforço, a honestidade, a satisfação com a vida modesta e pureza de carácter.
30 Em Inês Pereira, esses vícios estão representados pelo comportamento do interesseiro Brás da
Mata e da sonhadora Inês; o ingénuo Pêro Marques e a sensata Mãe indicam a virtude que se está
perdendo.
Ridicularizando as pretensões descabidas de Inês e o postiço refinamento do fidalgo Brás da
Mata, Gil Vicente, por meio do humor, adverte o público das consequências desastrosas da disso-
35 lução dos princípios que regiam tradicionalmente a sociedade portuguesa. Com essa sátira,
o autor cumpre o seu ideal moralizante: expõe comportamentos risíveis e condenáveis, nos quais
a plateia se reconhece.
TORRALVO, Izeti Fragata, e MINCHILLO, Carlos Cortez, 2006. “Apresentação” In VICENTE, Gil, 2006.
Farsa de Inês Pereira. Granja Viana: Ateliê Editorial (pp. 11, 18 e 19) [adaptado a português europeu]
fotocopiável

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