Você está na página 1de 6

QUEM RI DE QUEM EM ROMAGEM DE AGRAVADOS1

Elizabeth Dias Martins(UFC)

1. As questões propostas

É sabido que os pastores são personagens constantes nos textos de Gil Vicente
(GV), desde o Auto da Visitação. A partir de então têm espaço em seus textos os tipos
rústicos, os quais já foram criteriosamente analisados por bom número de críticos e
ensaístas.
Neil Miller, por exemplo, dedicou longo estudo ao elemento pastoril e, no que
denomina “tipologia rústica vicentina”2, inclui não só o pastor mas também o lavrador,
o vilão e o parvo. Ao apontar as qualidades da obra que investiga, o ensaísta destaca o
amor à natureza e a espontaneidade com que GV caracteriza os rústicos, apresentados
segundo a linhagem teatral de Juan del Encina, cujo tipo de pastor é aproveitado do
drama ibérico conforme a tradição litúrgica, ou livre da influência de Encina, de modo
atípico e individualizado.
Devido ao grande número de rústicos encontráveis nos autos de GV, optamos
por trabalhar com Romagem de Agravados por ser bastante representativo o elenco dos
que neste auto tomam parte. Das quinze figuras, oito são de rústicos, distribuídas pelas
seguintes categorias: lavrador, vilão, camponês, pastora e regateira. A última
(quitandeira, vendedora de pescado, hortaliças e frutas) mesmo sendo profissional
ligada à vida citadina, representa os mais desfavorecidos do meio em que vive e
trabalha com produtos rústicos, simbolizando sempre estratos sociais inferiores.

2. A variada galeria de personagens e tipos

GV foi um poeta palaciano que, sob o patrocínio do paço e por encomenda da


rainha, escreveu peças, fazendo jus ao mecenato e à tença que lhe foi concedida por
mercê régia.
Tal convívio explica seu largo conhecimento de fatos, costumes, e da
mentalidade dominantes na casa real, materia imprescidível à vasta produção que, em
última instância tinha por fim apontar os erros da sociedade da época sem a mínima
preocupação de poupar sequer o clero, a justiça ou a fidalguia.
Daí provém a variada gama de personagens de seus autos, que representam não
só os mais diversos tipos componentes da sociedade quinhentista e também alegorizam
certas instituições, no mais das vezes dissimulando a voz do próprio poeta para zombar
ou castigar os maus costumes.

1
Referência da publicação do ensaio: MARTINS, Elizabeth Dias Martins. Quem ri de quem em
Romagem de Agravados. In: MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. (ORG.) Atas do III Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: ABREM/ Editora Ágora da Ilha. 2001.
2
MILLER, Neil, 1970:69-119.
2.1. Personagens do drama vicentino, dentre os quais, os rústicos

Para retratar a sociedade dicotômica e contraditória do tempo em que viveu, GV


não economizou recursos. Lançando mão de disfarces ajustados a seus impagáveis
personagens, adotou a maneira de Homero de poucas vezes falar em seu próprio nome,
e ainda seguiu o preceito poético segundo o qual o autor deve falar muito mais através
de personagens. A caracterização estereotipada destes, somada aos recursos
comunicativos do riso, só veio aumentar a força com que persuadia o público. Como
autor satírico GV sutilizou os elementos retóricos e fragmentou sua personalidade com
o intuito de induzir o auditório a pensar na hipocrisia, vícios e absurdos que denunciava,
alcançando o fim último da sátira: censurar e castigar para corrigir.
Com base numa classificação de Teyssier3 , os tipos vicentinos estão distribuídos
em personagens originários: a) Da tradição cristã; b) Da mitologia e da História; c) Da
Alegorização.
Categoria das mais importantes na obra de GV é a dos tipos dotados de caráter
distintivo de etnia ou de natureza social, traços modeladores do espírito humano que
sobretudo simbolizam o estereótipo de dada classe. Esses tipos representam desde os
integrantes dos estamentos mais elevados, como o fidalgo, o conde , o duque, o rei,
passando pela Igreja, sempre satirizada pelo autor; nesta, destacam-se o frade 
principal alvo da burla de GV  o bispo, o arcebispo e até mesmo o papa. O dramaturgo
português também investe contra a magistratura, da qual extrai tipos como os do
corregedor, do procurador, do alcaide e do juiz.
Há ainda a série de outros profissionais: médicos, ourives, marinheiros,
sapateiros; o conjunto se completa com os tipos de mulheres do povo, a exemplo das
criadas, parteiras, feiticeiras, regateiras e alcoviteiras, até chegar à mais humilde
categoria, a dos rústicos, da qual fazem parte pastores, lavradores, vilões, ratinhos e
parvos.
Foi a esta última categoria (a dos mais simples e com a qual teve mais
condescendência), que GV dirigiu toda a sua simpatia.4
O rústico em GV parece ter a finalidade de estabelecer o contraste entre o
ridículo dos urbanos e a naturalidade da vida agreste. Na cidade imperam a corrupção, o
artificialismo, o desejo imoderado de ter, de ser, e de saber mais do que a natureza
permite, em contraposição à pureza, à espontaneidade e à simplicidade do bucolismo.
Nessa tipologia se acham os pastores da tradição dramática seguida por GV, os
quais foram “escolhidos para ouvir a anunciação do nascimento de Jesus Cristo” 5
Puros e simples são também os lavradores, vilões e parvos, pois, vivendo na
cidade mas sendo pessoas do povo, levaram vida bem semelhante à dos campesinos –
caso específico das regateiras.
Todos esses personagens e tipos são manifestações de um mundo ingênuo,
inocente e modesto, diametralmente oposto ao da corte, freqüentado por fidalgos, frades
e magistrados, quase todos hipócritas e contra os quais GV “dirigia toda a sua sátira
contundente, menos cômica do que mordaz: a prepotência e a desonestidade o
irritavam.”6 . É por meio dessa simplicidade e dos disparates proferidos em cena pelos
tipos vicentinos, que a verdade vem à tona de maneira mais indireta, através de uma

3
TEYSSIER, Paul, 1985:
4
BERARDINELLI, Cleonice, 1984:11.
5
MILLER, Neil, 1970:71.
6
BERARDINELLI, Cleonice, 1984:11.
relação de oposição, quando ele dá preferência às pessoas mais simples e mais
limitadas, não para burlar-se delas, mas sim para escarnecer dos homens sábios. 7
Para melhor compreensão do papel do rústico nas peças vicentinas, passamos à
análise do auto Romagem de Agravados, a fim de demonstrar que o riso causado pelos
tipos humanos é arma de combate usada por GV para demolir a falsa autoridade e a
grandeza postiça daqueles que são por ele submetidos ao escárnio (PROPP, 1992, p.
46), a exemplo dos integrantes da Igreja, da justiça da corte.

2.2. As espécies de rústicos em Romagem de Agravados.

Nesta peça de circunstância, representada em Évora para celebrar o nascimento


(25 de março de 1533) do infante D. Filipe, há interessantes tipos humanos.
Significativo é o número de rústicos, dentre os queixosos, por sinal bastante
representativo do estrato social mais simples.
Sete pares de “agravados” passam diante de Frei Paço, que os interpela a
propósito do rosário de queixas de cada um dos figurantes. O frade exerce desse modo
as funções de figura dialógica e de arauto. Encarna duas categorias na tipologia
apresentada no item anterior. Enquanto alegoria-tipo, nele vemos, ao mesmo tempo, a
caricatura de um eclesiástico da corte e a alegorização do paço.
Dos pares que desfilam na peça, quatro são rústicos: João Mortinheira ou
Morteira (vilão) e seu filho Bastião; Branca do Rego e Marta do Prado (regateiras);
Aparicianes (lavrador) e sua filha Giralda; e ainda Juliana e Ilária (pastoras).
Mortinheira aparece queixando-se de Deus que, segundo diz, está com má
vontade para ajudá-lo na colheita: “Fr. P. De que te queixas vilão?/ Vil. De Deus, que é
cousa provada/ que me tem grande tenção”.8
O vilão passa a atribuir a Deus toda a culpa pelos fenômenos da natureza que
prejudicam a plantação, causando-lhe grandes prejuízos: “Vil. Que chove quando não
quero,/ e faz um sol das estrelas,/ quando chuva alguma espero./ Ora alaga o semeado,/
ora seca quando i há,/ ora venta sem recado,/ ora neva e mata o gado,/ Vil. Vedes vós?
Eu, Padre, digo/ que tempere a invernada,/ e leixe criar o trigo./ Mas elle de tençoeiro,/
sem ganhar nisso ceitil,/ vai dar chuvas em Janeiro,/ e geadas em Abril,/ e calmas em
Fevereiro,/ e névoas no mês de Maio, /e meado Julho pedra.”. 9
Depois de confessar o cansaço com tanto trabalho, Mortinheira diz não entender
o fato de ser Deus seu protetor, pois em vez de amparo lhe lega prejuízo. O frade
questiona o vilão sobre suas obrigações para com o dízimo e as orações, a fim de saber
se o romeiro está em dia com o Protetor. Quanto ao dízimo, Mortinheira põe a culpa da
inadimplência no próprio Deus: “Bem me dizimaria eu,/ se Ele de birra pura/ não
danasse o seu e o meu.”. 10
No que tange às rezas, esclarece que não há compatibilidade entre oração e
blasfêmia, pois pessoas irritadas não se podem reger pelo fervor religioso.
No comportamento de Mortinheira vislumbramos a “ironia cósmica”, aspecto
pelo qual esta figura  expressão mais elevada do espírito satírico  se manifesta, pois
que consiste na “„revolta da criatura contra o seu criador‟”. 11
Após concluir que sua sorte era das piores, Mortinheira apresenta o filho ao
frade rogando-lhe que o faça padre, embora o jovem não tivesse nenhuma vocação

7
KIERKEGAARD, Sören, 1991:218.
8
VICENTE, Gil, 1942:5 v.5.
9
Ibidem, 6-7.
10
Ibidem, 8.
11
CATZ, Rebecca, 1978:111.
sacerdotal, e apenas para que pudesse usufruir da boa vida na corte, ardil dos mais
usados para ascender socialmente.
Frei Paço inicia as aulas, mas o que sucede é um jogo verbal cômico entre
Bastião e seu instrutor, diálogo constituído de trocadilhos arrevesados pela falta de
senso: “Fr. P. Ora sus sem mais debate/ dize ABCDE./ (...)/ Bas. Arre, arre, cedo é/(...)/
Fr. P. Hás mister bem examinado./ E no latim te quero ver./ Dize ora Beatus vir./ Bas.
Pouco é isso de dizer:/ Vi ora três ratos vir”. 12
Agindo como bobo Bastião faz com que seja observada a inconsistência do
discurso de Frei Paço, constituído de palavras inteiramente vazias e sem qualquer valor
para a formação sacerdotal.
O emprego de jargões de casta pertence ao domínio da comicidade dos meios
lingüísticos, o qual, falado por cada casta soa para quem a ela não pertence como
palavras desprovidas de sentido. Tal procedimento tem, freqüentemente, um matiz
satírico. 13
Aparicianes é outro lavrador que comparece à romaria e vem tão descontente
quanto Mortinheira. Aquele, porém, difere deste em alguns pontos; não é tão dramático
e chega querendo disfarçar a rusticidade de sua linguagem, mas não vai muito longe
com o artifício, pois causa estranheza a Frei Paço, que o interpela com certo desdém,
logo revidado por Aparicianes.
O modo de falar de Aparicianes indica que há uma outra diferença entre ele e
Mortinheira. O primeiro pertence à classe média rural, ou seja, está socialmente situado
acima do vilão. E mais: Aparicianes não acusa Deus pelo seu atraso, antes se queixa por
ser explorado pelos frades, os quais, mais rigorosos que os “rendeiros” na cobrança dos
foros, tanto lhe exigiam que era insuficiente a renda da propriedade.
As falas de Aparicianes ainda guardam duas ironias de GV com endereço certo,
o do clero; ambas são do tipo mais usual, cuja característica está em dizer-se o
contrário do que se pensa; são da espécie em que a palavra, que é o fenômeno, contraria
o pensamento, que é essência.14 Vejamos como nos versos em destaque a verdade
inexiste, pois não há identidade entre o sentido mental e a fala: “Apa. porque eu tenho
dous casais/ dos frades d‟apanha porros,/ e co‟os fortes temporais,/ são as novidades
tais,/ que não chegam pera foros./ E os padres verdadeiros/ cartuxos de santa vida,/
apanham-me os travesseiros/ com mais ira que os rendeiros,/ sem me rezão ser ouvida./
Cuidei que eles me esperaram,/ por não ficar em camisa,/ e o com que me
consolaram,/ foi dizer quer não tomaram/ espera por sua divisa./ Não lhes rogo
mal, nem nada,/ porque são santas pessoas;/ mas praza à paixão sagrada/ que
lhes dêem tanta seixada,/ que lhes quebrem as coroas./ Quero ora perder
rancor,/ e não ir com isso ao cabo;/ perdôo -lhes pelo amor/ de Deus nosso
Salvador,/ encomendo-os ó Diabo.” 15
Nos dois lavradores a revolta contra a Igreja era comum. Sentiam ser cada vez
maior a distância entre os atos e os ideais nos integrantes da vida monástica. Uma outra
similaridade havia entre os dois homens da terra: ambos queriam livrar os filhos da vida
de sacrifício que levavam. Mortinheira queria fazer de Bastião, padre. Aparicianes
recorreu ao religioso para fazer da filha Giralda, moça paçã.
Frei Paço inicia novo processo de instrução. Concentra esforços para que a
jovem assimile os modos corretos de andar, falar e rir, advertindo-a dos cuidados a
serem observados quando cortejada. Na segunda parte da lição Giralda leva Frei Paço

12
VICENTE, Gil, 1942:10.
13
PROPP, Vladímir, 1992:128.
14
KIERKEGAARD, Sören, 1991:215.
15
VICENTE, Gil, 1942:35-36.
ao ridículo, demonstrando saber mais que o instrutor. O diálogo serve para revelar o
modo burlesco das convenções galantes na corte. Na seqüência, Giralda retoma a fala de
Frei Paço para dar-lhe suas respostas, deixando-o em situação difícil, pois as
intervenções da moça são desconcertantes e chistosas, pondo a nu o vazio discurso
cortesanesco, seus artificialismos e hipocrisias, precisamente os da retórica amorosa.
Outro par de agravados desponta, dessa vez, as regateiras Marta do Prado e
Branca do Rego. As duas vêm fazer queixa de um moço que as enganou com um
“alvará de filhamento” falso, o qual passou-se por fidalgo da câmara do rei e casou-se
com a sobrinha de ambas, obtendo mediante fraude grande quantia dotal. Valendo-se
das duas, GV aproveita para criticar os privilégios e o favoritismo praticados na corte.
Por “aderência”, na corte eram conseguidos despachos, empregos e alvarás, mediante
recompensa paga a corruptos, prática ainda hoje comum no Brasil.
Após certificarem-se de que haviam sido vitimadas por um tipo desprezível, as
regateiras lançam suspeitas sobre os oficiais do paço encarregados dos despachos:
“Mar. Mau quebranto que os quebrante,/ porque vão oportunar,/ pera ajudar a enganar/
uma cachopa ignorante/ c‟um rascão de mão pesar./ Bra. Eles são os presidentes,/ e os
mesmos requerentes;/ e se lhes dizeis que é mal/ tornam a culpa ao sinal/ e eles fazem-
se inocentes”. 16
Mais uma vez aflora a ironia, pois vendo tanta facilidade para falsificações
Marta tenta conseguir, servindo-se dos mesmos expedientes, um alvará de virgindade
para facilitar-lhe um casamento.
As regateiras escarnecem funcionários, ministros e o soberano, zombando deles
e de toda a corte. GV, por sua vez, extrai do episódio rico efeito cômico obtido da
mescla de ficção  história do casamento e alvará falsos  com realidade, pois os nomes
citados pelas regateiras como suspeitos do ardil são de pessoas que realmente
freqüentavam a corte e a sociedade daquela época.
Um outro recurso satírico utilizado nessa mesma passagem é o da invectiva
direta, presente na série de injúrias lançadas pelas regateiras contra o frade, sob forma
de epítetos, quando desconfiam da participação direta do religioso na farsa que dá causa
a seus agravos. Os epítetos – “cigarra”, “trogalho”, “chocalho” e “bolorento” –
significam, respectivamente, ordinário, embusteiro, mexeriqueiro e decadente. A
seqüência de epítetos instrumentaliza a invectiva satírica, “expressão direta e didática
da opinião, em que o tédio e o mau gosto são ressalvados pelo recurso a mecanismos
cômicos”.17 Os figurantes, a princípio entediados, a partir da chalaça ficam
catarticamente vingados.
Juliana e Ilária são os últimos rústicos que aparecem. É com elas que também
finda a romaria. Queixam-se de coisas do coração. Os pais querem-nas casar
contrariamente a seu desejo, com rapazes que, segundo dizem, não somam os
predicados que têm os jovens preferidos, seus namorados.
Conscientes da punição de que seriam merecedoras, caso faltassem ao
consentimento dos pais na escolha dos maridos, as duas pastoras traçam estratégias que
podem ser consideradas ingênuas, mas, na verdade, estão carregadas de comicidade. É
possível identificar nelas boa dose da ironia de GV quanto à fragilidade de certos
costumes patriarcais da época. Além do mais, ao tratar da rusticidade de alguns
costumes, de modo caricaturesco, o dramaturgo português bem poderia estar satirizando
a falsa moral que reinava na corte.
Assim se põe termo à apresentação e análise dos rústicos de Romagem de
Agravados, que desempenham função de agentes causadores de riso na obra de GV.
16
Ibidem, 24.
17
CATZ, Rebecca, 1978:109.
3. À guisa de conclusão

Ao fim deste trabalho não é difícil perceber que nossa conclusão quanto ao
sentimento de GV, relativamente a seus rústicos, seja de simpatia. A afeição do
teatrólogo português pelos tipos humanos que criou se fundamenta em pontos
desenvolvidos a seguir.
O primeiro é o fato de serem os rústicos participantes da simbologia cristã.
Analisando o pensamento religioso do autor Irma Brito Chaves afirma:

O clero, fazendo mau uso da religião cavava um abismo entre a


cristandade e o Cristo. Gil Vicente, espírito profundamente religioso e
lúcido, uniu sua voz ao coro dos que enxergavam claro a distância que
havia entre a verdadeira Igreja e aquela. 18

Daí, as críticas vigorosas ao clero, a todos os escalões deste, à prática da simonia


e às rezas mecânicas, entre outras atitudes reprováveis.
A irreverência de Mortinheira para com Deus, por exemplo, revela a existência
de sentimentos puros manifestados de maneira espontânea. Vê-se que GV deixa
transparecer, através dos tipos mais ingênuos, seus próprios princípios religiosos.
Em segundo lugar, como os rústicos são pessoas simples, GV se deixa fascinar
pela singeleza e pelo sofrimento por que passam esses campesinos, sujeitos a duras
canseiras que proporcionam as rendas distribuídas na corte.
GV se compadece com o desamparo dos homens do campo, ao mesmo tempo
que não esconde que os admira, sobretudo por não perderem a altivez diante dos
exploradores. Essa preferência se comprova na voz acusadora de lavradores como
Mortinheira e Aparicianes, ambos, cônscios de sua condição social de explorados.
A simpatia pelos rústicos, em terceiro lugar, vem do fato de funcionarem como
se fossem o alter ego do autor.
Era GV, em última análise, quem pela voz de seus rústicos se manifestava. É
bom não olvidar a atitude irônica do autor, a que se processa na relação de oposição,
através da qual escarneceu os sábios fingindo burlar os mais cândidos.
O quarto e último ponto conclusivo desta análise está interligado ao terceiro. Os
rústicos detinham a simpatia do autor porque lhe possibilitavam o exercício da ironia e
da sátira contra os poderosos, os quais, em sua obra, são os verdadeiros ridicularizados.

Referências

BERARDINELLI, Cleonice. Introdução. Antologia do teatro de Gil Vicente. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
CATZ, Rebecca. A sátira social de Fernão Mendes Pinto. Lisboa: Prelo, 1978.
CHAVES, Irma de Brito. “A atualidade no teatro de Gil Vicente”. In Alfa, Marília-SP,
n 15, p. 241-251, 1969.
KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia. Petrópolis: Vozes, 1991.
MILLER, Neil. O elemento pastoril no teatro de Gil Vicente. Porto: Inova, 1970.
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
TEYSSIER, Paul. Gil Vicente o autor e a obra. Amadora: Livraria Bertrand, 1985.
VICENTE, Gil. Obras Completas. v. 5. Lisboa: Sá da Costa, 1942.

18
CHAVES, Irma de Brito.1969:248.

Você também pode gostar