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1. As questões propostas
É sabido que os pastores são personagens constantes nos textos de Gil Vicente
(GV), desde o Auto da Visitação. A partir de então têm espaço em seus textos os tipos
rústicos, os quais já foram criteriosamente analisados por bom número de críticos e
ensaístas.
Neil Miller, por exemplo, dedicou longo estudo ao elemento pastoril e, no que
denomina “tipologia rústica vicentina”2, inclui não só o pastor mas também o lavrador,
o vilão e o parvo. Ao apontar as qualidades da obra que investiga, o ensaísta destaca o
amor à natureza e a espontaneidade com que GV caracteriza os rústicos, apresentados
segundo a linhagem teatral de Juan del Encina, cujo tipo de pastor é aproveitado do
drama ibérico conforme a tradição litúrgica, ou livre da influência de Encina, de modo
atípico e individualizado.
Devido ao grande número de rústicos encontráveis nos autos de GV, optamos
por trabalhar com Romagem de Agravados por ser bastante representativo o elenco dos
que neste auto tomam parte. Das quinze figuras, oito são de rústicos, distribuídas pelas
seguintes categorias: lavrador, vilão, camponês, pastora e regateira. A última
(quitandeira, vendedora de pescado, hortaliças e frutas) mesmo sendo profissional
ligada à vida citadina, representa os mais desfavorecidos do meio em que vive e
trabalha com produtos rústicos, simbolizando sempre estratos sociais inferiores.
1
Referência da publicação do ensaio: MARTINS, Elizabeth Dias Martins. Quem ri de quem em
Romagem de Agravados. In: MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. (ORG.) Atas do III Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: ABREM/ Editora Ágora da Ilha. 2001.
2
MILLER, Neil, 1970:69-119.
2.1. Personagens do drama vicentino, dentre os quais, os rústicos
3
TEYSSIER, Paul, 1985:
4
BERARDINELLI, Cleonice, 1984:11.
5
MILLER, Neil, 1970:71.
6
BERARDINELLI, Cleonice, 1984:11.
relação de oposição, quando ele dá preferência às pessoas mais simples e mais
limitadas, não para burlar-se delas, mas sim para escarnecer dos homens sábios. 7
Para melhor compreensão do papel do rústico nas peças vicentinas, passamos à
análise do auto Romagem de Agravados, a fim de demonstrar que o riso causado pelos
tipos humanos é arma de combate usada por GV para demolir a falsa autoridade e a
grandeza postiça daqueles que são por ele submetidos ao escárnio (PROPP, 1992, p.
46), a exemplo dos integrantes da Igreja, da justiça da corte.
7
KIERKEGAARD, Sören, 1991:218.
8
VICENTE, Gil, 1942:5 v.5.
9
Ibidem, 6-7.
10
Ibidem, 8.
11
CATZ, Rebecca, 1978:111.
sacerdotal, e apenas para que pudesse usufruir da boa vida na corte, ardil dos mais
usados para ascender socialmente.
Frei Paço inicia as aulas, mas o que sucede é um jogo verbal cômico entre
Bastião e seu instrutor, diálogo constituído de trocadilhos arrevesados pela falta de
senso: “Fr. P. Ora sus sem mais debate/ dize ABCDE./ (...)/ Bas. Arre, arre, cedo é/(...)/
Fr. P. Hás mister bem examinado./ E no latim te quero ver./ Dize ora Beatus vir./ Bas.
Pouco é isso de dizer:/ Vi ora três ratos vir”. 12
Agindo como bobo Bastião faz com que seja observada a inconsistência do
discurso de Frei Paço, constituído de palavras inteiramente vazias e sem qualquer valor
para a formação sacerdotal.
O emprego de jargões de casta pertence ao domínio da comicidade dos meios
lingüísticos, o qual, falado por cada casta soa para quem a ela não pertence como
palavras desprovidas de sentido. Tal procedimento tem, freqüentemente, um matiz
satírico. 13
Aparicianes é outro lavrador que comparece à romaria e vem tão descontente
quanto Mortinheira. Aquele, porém, difere deste em alguns pontos; não é tão dramático
e chega querendo disfarçar a rusticidade de sua linguagem, mas não vai muito longe
com o artifício, pois causa estranheza a Frei Paço, que o interpela com certo desdém,
logo revidado por Aparicianes.
O modo de falar de Aparicianes indica que há uma outra diferença entre ele e
Mortinheira. O primeiro pertence à classe média rural, ou seja, está socialmente situado
acima do vilão. E mais: Aparicianes não acusa Deus pelo seu atraso, antes se queixa por
ser explorado pelos frades, os quais, mais rigorosos que os “rendeiros” na cobrança dos
foros, tanto lhe exigiam que era insuficiente a renda da propriedade.
As falas de Aparicianes ainda guardam duas ironias de GV com endereço certo,
o do clero; ambas são do tipo mais usual, cuja característica está em dizer-se o
contrário do que se pensa; são da espécie em que a palavra, que é o fenômeno, contraria
o pensamento, que é essência.14 Vejamos como nos versos em destaque a verdade
inexiste, pois não há identidade entre o sentido mental e a fala: “Apa. porque eu tenho
dous casais/ dos frades d‟apanha porros,/ e co‟os fortes temporais,/ são as novidades
tais,/ que não chegam pera foros./ E os padres verdadeiros/ cartuxos de santa vida,/
apanham-me os travesseiros/ com mais ira que os rendeiros,/ sem me rezão ser ouvida./
Cuidei que eles me esperaram,/ por não ficar em camisa,/ e o com que me
consolaram,/ foi dizer quer não tomaram/ espera por sua divisa./ Não lhes rogo
mal, nem nada,/ porque são santas pessoas;/ mas praza à paixão sagrada/ que
lhes dêem tanta seixada,/ que lhes quebrem as coroas./ Quero ora perder
rancor,/ e não ir com isso ao cabo;/ perdôo -lhes pelo amor/ de Deus nosso
Salvador,/ encomendo-os ó Diabo.” 15
Nos dois lavradores a revolta contra a Igreja era comum. Sentiam ser cada vez
maior a distância entre os atos e os ideais nos integrantes da vida monástica. Uma outra
similaridade havia entre os dois homens da terra: ambos queriam livrar os filhos da vida
de sacrifício que levavam. Mortinheira queria fazer de Bastião, padre. Aparicianes
recorreu ao religioso para fazer da filha Giralda, moça paçã.
Frei Paço inicia novo processo de instrução. Concentra esforços para que a
jovem assimile os modos corretos de andar, falar e rir, advertindo-a dos cuidados a
serem observados quando cortejada. Na segunda parte da lição Giralda leva Frei Paço
12
VICENTE, Gil, 1942:10.
13
PROPP, Vladímir, 1992:128.
14
KIERKEGAARD, Sören, 1991:215.
15
VICENTE, Gil, 1942:35-36.
ao ridículo, demonstrando saber mais que o instrutor. O diálogo serve para revelar o
modo burlesco das convenções galantes na corte. Na seqüência, Giralda retoma a fala de
Frei Paço para dar-lhe suas respostas, deixando-o em situação difícil, pois as
intervenções da moça são desconcertantes e chistosas, pondo a nu o vazio discurso
cortesanesco, seus artificialismos e hipocrisias, precisamente os da retórica amorosa.
Outro par de agravados desponta, dessa vez, as regateiras Marta do Prado e
Branca do Rego. As duas vêm fazer queixa de um moço que as enganou com um
“alvará de filhamento” falso, o qual passou-se por fidalgo da câmara do rei e casou-se
com a sobrinha de ambas, obtendo mediante fraude grande quantia dotal. Valendo-se
das duas, GV aproveita para criticar os privilégios e o favoritismo praticados na corte.
Por “aderência”, na corte eram conseguidos despachos, empregos e alvarás, mediante
recompensa paga a corruptos, prática ainda hoje comum no Brasil.
Após certificarem-se de que haviam sido vitimadas por um tipo desprezível, as
regateiras lançam suspeitas sobre os oficiais do paço encarregados dos despachos:
“Mar. Mau quebranto que os quebrante,/ porque vão oportunar,/ pera ajudar a enganar/
uma cachopa ignorante/ c‟um rascão de mão pesar./ Bra. Eles são os presidentes,/ e os
mesmos requerentes;/ e se lhes dizeis que é mal/ tornam a culpa ao sinal/ e eles fazem-
se inocentes”. 16
Mais uma vez aflora a ironia, pois vendo tanta facilidade para falsificações
Marta tenta conseguir, servindo-se dos mesmos expedientes, um alvará de virgindade
para facilitar-lhe um casamento.
As regateiras escarnecem funcionários, ministros e o soberano, zombando deles
e de toda a corte. GV, por sua vez, extrai do episódio rico efeito cômico obtido da
mescla de ficção história do casamento e alvará falsos com realidade, pois os nomes
citados pelas regateiras como suspeitos do ardil são de pessoas que realmente
freqüentavam a corte e a sociedade daquela época.
Um outro recurso satírico utilizado nessa mesma passagem é o da invectiva
direta, presente na série de injúrias lançadas pelas regateiras contra o frade, sob forma
de epítetos, quando desconfiam da participação direta do religioso na farsa que dá causa
a seus agravos. Os epítetos – “cigarra”, “trogalho”, “chocalho” e “bolorento” –
significam, respectivamente, ordinário, embusteiro, mexeriqueiro e decadente. A
seqüência de epítetos instrumentaliza a invectiva satírica, “expressão direta e didática
da opinião, em que o tédio e o mau gosto são ressalvados pelo recurso a mecanismos
cômicos”.17 Os figurantes, a princípio entediados, a partir da chalaça ficam
catarticamente vingados.
Juliana e Ilária são os últimos rústicos que aparecem. É com elas que também
finda a romaria. Queixam-se de coisas do coração. Os pais querem-nas casar
contrariamente a seu desejo, com rapazes que, segundo dizem, não somam os
predicados que têm os jovens preferidos, seus namorados.
Conscientes da punição de que seriam merecedoras, caso faltassem ao
consentimento dos pais na escolha dos maridos, as duas pastoras traçam estratégias que
podem ser consideradas ingênuas, mas, na verdade, estão carregadas de comicidade. É
possível identificar nelas boa dose da ironia de GV quanto à fragilidade de certos
costumes patriarcais da época. Além do mais, ao tratar da rusticidade de alguns
costumes, de modo caricaturesco, o dramaturgo português bem poderia estar satirizando
a falsa moral que reinava na corte.
Assim se põe termo à apresentação e análise dos rústicos de Romagem de
Agravados, que desempenham função de agentes causadores de riso na obra de GV.
16
Ibidem, 24.
17
CATZ, Rebecca, 1978:109.
3. À guisa de conclusão
Ao fim deste trabalho não é difícil perceber que nossa conclusão quanto ao
sentimento de GV, relativamente a seus rústicos, seja de simpatia. A afeição do
teatrólogo português pelos tipos humanos que criou se fundamenta em pontos
desenvolvidos a seguir.
O primeiro é o fato de serem os rústicos participantes da simbologia cristã.
Analisando o pensamento religioso do autor Irma Brito Chaves afirma:
Referências
18
CHAVES, Irma de Brito.1969:248.