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SUMÁRIO
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I. RELATÓRIO
AA propôs a presente ação declarativa comum contra BB e T..., Ldª. pedindo que:
- seja declarada revogada a doação efetuada pela Autora ao Réu BB, da quantia de Eur
300.000,00 (trezentos mil euros), condenando-se o Réu a restituir à Autora tal quantia,
acrescida de juros de mora, contados desde a data da citação, até integral pagamento;
- seja declarada revogada a doação efetuada pela Autora ao Réu BB, da quota social de
Eur 3.000,00 titulada por este na Ré T..., Ldª., declarando-se o direito de propriedade da
Autora sobre tal quota social, condenando-se ambos os Réus a reconhecerem esse
direito e a restituírem tal quota à Autora, operando-se as competentes inscrições no
registo comercial;
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- seja condenada a Ré T..., Ldª., a restituir à Autora o valor dos suprimentos de Eur
826.048,98 (oitocentos e vinte e seis mil, quarenta e oito euros e noventa e oito
cêntimos), em prazo a fixar,
ou, subsidiariamente, caso se entenda que tal quantia não integra suprimentos à Ré
sociedade, mas sim doações ao Réu BB,
- seja declarada revogada a doação efetuada pela Autora ao Réu BB, da quantia de Eur
826.048,98 (oitocentos e vinte e seis mil, quarenta e oito euros e noventa e oito
cêntimos), condenando-se esse réu a restituir à Autora tal quantia, acrescida de juros de
mora, contados desde a data da citação, até integral pagamento.
Para substanciar tais pretensões alega que foi casada com o 1º réu no regime de
separação de bens, tendo, em 2014, dado ao marido a quantia de €300.000,00, que este
destinou à aquisição e reconstrução de um bar.
Acrescenta que, em finais desse mesmo ano, foi constituída a ré T..., tendo custeado
todas as despesas e entradas para realização do capital social, seja da autora, seja do
então seu marido (cuja quota se cifra no valor de 3.000,00€).
Alega ainda ter efetuado diversos empréstimos à sociedade ré, assumindo esta a
obrigação de restituição à medida que os lucros de exploração do estabelecimento o
permitissem, empréstimos que ascenderam a um valor total de 961.107,97€, tendo a T...
restituído a quantia de 135.058,99€.
Por último, articula que em anterior ação proposta para fixação judicial de prazo para o
reembolso dos aludidos empréstimos, a ré negou a natureza de suprimentos dos
mesmos, sustentando que esses valores foram doados ao réu, o que justificou a
necessidade de propositura da presente ação.
Citados os réus, apresentaram contestação conjunta, alegando que foi o réu quem pagou
o capital necessário à realização da sua quota na 2ª ré.
Referem ainda que a quantia colocada pela autora à disposição da ré T... não
corresponde, quer a uma doação ao réu, quer a suprimentos à ré, alegação que fazem
assentar na natureza do negócio celebrado pela ré, estando o réu BB convencido que os
suprimentos eram feitos em seu nome, com dinheiro doado pela autora, cuja única
preocupação era obter uma ocupação profissional para o então marido, 1º réu.
Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas
da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgou «a ação
parcialmente procedente por provada e, em consequência:
I) declaro[u] revogada a doação no valor de 300.000,00EUR (trezentos mil euros)
efetuada pela autora ao réu BB, condenando este último a restituir tal quantia à autora,
acrescida de juros contados desde a data de citação até efetivo e integral pagamento; II)
condeno[u] a ré T... a reembolsar os suprimentos da autora no valor de 826.048,98 EUR
(oitocentos e vinte e seis mil e quarenta e oito euros e noventa e oito cêntimos), fixando
em nove meses o prazo para efetivação de tal reembolso;
III) Absolv[eu] os réus do demais peticionado».
Não se conformando com o assim decidido, vieram os réus interpor o presente recurso,
que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente
devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a
final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1.- O Tribunal a quo declarou revogada a doação no valor de €300.000,00 efetuada pela
Autora ao Réu BB e condenou a Ré “T...” a reembolsar os suprimentos da Autora no valor
de €826.048,98 e fixou em 9 meses o prazo para efetivação do reembolso de tal quantia.
Mas não constitui a quantia de €300.000,00 uma doação da Autora ao Réu, nem os
€826.048,98 constituem suprimentos da Autora à Ré “T...”, e ainda que tal quantia seja
qualificada como suprimentos, não podia o Tribunal a quo fixar em 9 meses o prazo para
o seu reembolso.
Vejamos,
A – Da revogação da doação dos €300.000,00
2.- Resultou provado que Autora e Réu casaram-se entre si em 09-06-2012. Que a
Autora é de nacionalidade belga e chilena e que se casaram no regime de separação de
bens “atendendo à enorme desproporção dos patrimónios de cada um dos cônjuges,
sendo de uma dimensão muito significativa o da Autora”.
3.- Após o casamento, mudou-se a Autora da Bélgica, juntamente com o seu filho menor
e fixou residência em Portugal. Em 20-06-2013, nasceu o filho de ambos, passando o
agregado familiar a ser de quatro elementos.
4.- O Réu era GNR e a Autora, por ele ter saído da GNR, proporcionou ao Réu um
negócio, escolhido por ele, de acordo com os seus gostos, onde pudesse exercer uma
atividade produtiva.
5.- O Réu, para o exercício de tal atividade constituiu a Ré “T...”, com um capital social de
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€5.000,00, dividido em três quotas: uma quota de €3.000,00 pertencente ao Réu; uma
quota de €1.000,00 pertencente à Autora; e uma quota de €1.000,00 pertencente a CC.
6.- O Réu BB apalavrou a aquisição do estabelecimento comercial, com todos os seus
componentes, designadamente com a licença de exploração do bar na praia da ....
Entretanto foi constituída a sociedade “T...” e “o sócio BB, em representação da
sociedade Ré, em conjunto com o sócio CC, acabaram por negociar a licença do Apoio
de Praia, ..., por €225.000,00”.
7.- “A Autora transferiu para a conta de BB a quantia de 300.000,00 Eur a 10-10-2014”. A
quantia destinou-se à aquisição da licença de exploração do bar na praia da ..., cuja
negociação final já foi feita pelo sócio BB e o sócio CC, “em representação da sociedade
Ré”, por €225.000,00.
“Essa aquisição custou 225.000,00 Eur, sobrando 75.000,00 Eur que foram destinados a
obras de reconstrução do bar”.
8.- Além dos €300.000,00 que a Autora depositou na conta do Réu, que a sociedade
“T...”, utilizou para adquirir o estabelecimento comercial de exploração do bar na praia da
..., a Autora depositou ainda, na conta da Ré “T...”, mais de €800.000,00 para concretizar
o mesmo negócio.
9.- A quantia de €300.000,00 que a Autora depositou na conta do Réu BB, teve por fim
adquirir a licença de exploração e construção do bar da Praia ....
Os mais de €800.000,00 que a Autora depositou na conta da Ré “T...” foram aplicados na
construção do bar da praia. A licença de exploração do Apoio de Praia, e o bar lá
construído, pertencem à Ré “T...”. A Ré “T...” pertence ao Réu, à Autora e ao sócio CC. E
a Autora veio reclamar, a juízo, €300.000,00 ao Réu BB a título de doação e €826.048,98
à Ré “T...” a título de suprimentos, como se as quantias não tivessem rigorosamente o
mesmo destino e o mesmo beneficiário: aquisição pela sociedade “T...” da licença e
concessão de exploração do bar da praia ... e construção do bar!...
10.- Não foi o Réu BB o beneficiário dos €300.000,00, mas a sociedade “T...” da qual a
Autora também é titular e, aceitou e quis, que tal quantia se destinasse “à aquisição do
estabelecimento comercial, com todos os seus componentes, designadamente com a
licença de exploração do bar na praia ...”, que acabou por ser adquirida pela sociedade
“T...”.
11.- Não tendo o Réu BB sido o beneficiário da quantia dos €300.000,00, mas a
sociedade “T...” - possuída em 20% pela Autora - não existiu uma doação de tal quantia
pela Autora ao Réu, uma vez que, como dispõe o artigo 940º, nº1 do Código Civil
“doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu
património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma
obrigação, em benefício do outro contraente”.
12.- A manter-se a decisão de que se recorre, que não se aceita, a Autora teria um
benefício injustificado, um enriquecimento à custa do Réu BB, pois receberia deste os
€300.000,00 e ainda beneficiaria dos €300.000,00 que foram colocados na sociedade
“T...” para a aquisição da licença de exploração e para a reconstrução do bar, pertença da
sociedade “T...”.
13.- Se a Autora é credora dos €300.000,00 é à sociedade “T...” a quem os deve
reclamar, e não ao Réu porque não foi, nem é, o beneficiário de tal quantia. Aliás, da
mesma forma que está a reclamar à Ré “T...” os €826.048,98, que se destinaram ao
mesmo fim.
B – Da qualificação dos €826.048,98 como suprimentos
14.- As transferências das quantias depositadas pela Autora na conta bancária da Ré
“T...” teve por fim proporcionar ao Réu BB um negócio, escolhido por ele, de acordo com
os seus gostos, onde pudesse exercer uma atividade produtiva.
15.- A Autora não impôs à Ré “T...” qualquer prazo para a restituição das quantias que lá
colocou. A única condição foi, “com a obrigação de restituição à medida que os lucros da
exploração o permitissem”.
16.- Considerando todo o circunstancialismo e a finalidade em que a Autora colocou as
quantias em dinheiro na Ré “T...” – criar um negócio para o Réu BB e devolver tal quantia
“à medida que os lucros de exploração o permitissem” – só pode ser qualificado como
investimento.
Aliás,
17.- O dinheiro foi colocado na Ré “T...” para esta adquirir um contrato de concessão à
Agência Portuguesa do Ambiente para explorar o Apoio de Praia ..., Vila Nova de Gaia. O
investimento feito pela Ré “T...” na concessão, apenas lhe garante a exploração do Apoio
de Praia durante alguns anos, não estando garantido o reembolso do investimento feito.
A Autora tinha conhecimento deste condicionalismo e sabia, como aceitou, que a Ré “T...”
só era titular de um direito de concessão e que a devolução à Autora do capital que lá
colocou só poderia ser devolvido pelos lucros da exploração e à medida que estes se
fossem gerando. Assim, o capital colocado pela Autora na Ré só pode ser qualificado
como investimento e não suprimentos, “com a obrigação de restituição à medida que os
lucros da exploração o permitissem”; “Não tendo sido acordado entre Autora e Ré
qualquer prazo para a restituição das quantias”, conforme ficou provado.
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Como emerge da materialidade apurada (que não foi alvo de impugnação em sede
recursiva), a 10 de outubro de 2014, a autora (que, à data, era casada com o réu BB, no
regime de separação de bens) transferiu para a conta deste a quantia de €300.000,00
(cfr. alíneas b) e h) dos factos provados). De igual modo ficou provado (cfr. alíneas i) e
aa)) que a referida importância foi dada pela demandante ao então seu marido, tendo
este, com esse montante, adquirido um estabelecimento comercial, com todos os seus
componentes, designadamente a licença de exploração do bar na praia da ....
Perante esse tecido fáctico o decisor de 1ª instância considerou que essa relação jurídica
assumia a natureza de uma doação entre casados, sujeita, por isso, ao regime da livre
revogabilidade nos termos do disposto no art. 1765º do Cód. Civil.
Os apelantes rebelam-se contra esse segmento decisório sustentando que, ao invés do
entendimento plasmado na sentença recorrida, o beneficiário dos €300.000,00 não foi o
réu BB mas antes a sociedade ré.
Não lhes assiste razão.
Com efeito, resultou expressamente provado (proposição fáctica que, como se referiu,
não foi objeto de impugnação) que a aludida importância foi diretamente dada pela autora
ao réu BB que, embolsando-a, a destinou à aquisição de um estabelecimento comercial,
sendo certo, outrossim, que à data da realização dessa transferência monetária a ré
ainda não se achava sequer constituída (o que apenas ocorreu em 6 de novembro de
2014 – cfr. al. k) dos factos provados).
Tal materialidade permite, pois, a afirmação do preenchimento dos elementos
constitutivos do tipo contratual definido no art. 940º do Cód. Civil Que, sob a epígrafe
Noção, dispõe no seu nº 1 que “[d]oação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito
de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um
direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”., que, como emerge
da respetiva exegese, são três, concretamente: (i) atribuição patrimonial geradora de
enriquecimento; (ii) diminuição do património do doador; (iii) espírito de liberalidade.
Estando-se, assim, em presença de um contrato de doação realizado entre a autora e o
1º réu, e considerando que à data da sua concretização estes eram casados entre si,
segue-se, pois, ser aplicável a essa relação negocial o regime vertido nos arts. 1761º a
1766º, do Cód. Civil.
O traço mais caraterístico desse regime é o da livre revogabilidade das doações entre os
cônjuges, com a qual a lei entendeu obviar satisfatoriamente aos inconvenientes que as
mesmas oferecem Inconvenientes esses que, conforme tem sido enfatizado pela doutrina
(cfr., entre outros, RITA LOBO XAVIER, in Limites à autonomia privada na disciplina das
relações patrimoniais entre cônjuges, Almedina, 2000, págs. 195 e seguintes, PEREIRA
COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, in Curso de Direito de Família, vol. I, 5ª edição,
Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 538 e seguintes e PIRES DE
LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição revista e atualizada,
Coimbra Editora, págs. 493 e seguintes), se prendem com o receio de que a doação
resulte do ascendente ou influência dum dos cônjuges sobre o outro; a comunhão de
vida, de um modo geral, e o sentimento de que os bens doados “ficam na família” podem
levar um deles a beneficiar o outro irrefletidamente, tudo com prejuízo da liberdade e
espontaneidade do ato. Por outro lado, também os interesses de terceiros,
nomeadamente dos credores dos cônjuges, estarão contra a possibilidade de eles
fazerem doações um ao outro, transformando bens comuns em bens próprios ou bens
próprios em bens comuns. .
Dispõe, com efeito, o nº 1 do art. 1765º, que «[a]s doações entre casados podem a todo
o tempo ser revogadas pelo doador, sem que lhe lícito renunciar a este direito».
As doações entre cônjuges podem, por conseguinte, ser revogadas por qualquer motivo,
ou seja, o princípio é o da revogabilidade ad nutum, não carecendo, pois, essa revogação
de ser motivada ou fundamentada. Deste modo, embora essas doações produzam
imediatamente os seus efeitos, estes ficam, no entanto, dependentes de uma condição
resolutiva legal (a revogação pelo doador), cuja verificação opera retroativamente, de um
modo geral.
Como assim, tendo a autora emitido declaração negocial de revogação (unilateral Sobre
a excecionalidade da revogação unilateral de contratos bilaterais (como é o caso da
doação entre cônjuges) e respetiva justificação, vide ROMANO MARTINEZ, in Da
cessação do contrato, Almedina, 2005, págs. 51 e seguintes. ) da ajuizada doação,
declaração essa que foi recebida pelo réu, daí emerge que, tal como se decidiu na
sentença recorrida, ficou este constituído na obrigação de restituir o montante (rectius, o
tantundem) que, a esse título, embolsou.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões 2ª a 13ª.
*
IV.2. Da qualificação jurídica das transferências realizadas pela autora para a conta
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Uma outra questão que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem prende-se com a
qualificação jurídica das transferências que a autora efetuou para a conta bancária da ré
sociedade e bem assim dos pagamentos que realizou no seu interesse.
Na decisão recorrida o juiz a quo considerou que essas transferências e pagamentos
assumem natureza de suprimentos feitos pela autora à ré, razão pela qual condenou esta
última no reembolso das importâncias que aquela despendeu a esse título.
Os apelantes discordam dessa qualificação jurídica, argumentando que essas entradas
em dinheiro não foram realizadas pela autora como suprimentos, mas antes como
investimento feito na sociedade ré, que apenas será reembolsável pelos lucros que esta
obtivesse na concessão do “Apoio de Praia ...”.
Quid juris?
Como é consabido, o contrato de suprimento é hoje um contrato nominado e típico,
sendo legalmente definido no nº 1 do art. 243º do Código das Sociedades Comerciais
(CSC) como “[o] contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa
fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou
pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos
seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo caráter de
permanência”.
O recurso a este tipo contratual constitui uma das formas a que vulgarmente se recorre
para o financiamento societário, sendo relativamente pacífico o entendimento de que
estamos perante uma espécie do contrato de mútuo – contrato de que deriva uma
multiplicidade de outras formas de “empréstimos”. Daí que qualquer sócio, desde que,
em termos normais, possua essa qualidade, poderá celebrar um contrato de suprimento,
sendo irrelevantes as suas motivações, propósitos ou interesses (empresariais, ou,
simplesmente, de investimento) prosseguidos.
Como a este propósito tem sido sublinhado pela doutrina Cfr., por todos, TARSO
DOMINGUES, O financiamento societário através de suprimentos, prestações
suplementares e prestações acessórias, in Revista de Direito Comercial (acessível em
www.revistadedireitocomercial.com), págs. 849 e seguintes e RAUL VENTURA, in
Sociedades por quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. II,
Almedina, 1989, pág. 85, onde escreve que “o sócio quer, por um lado, ser empresário e,
por outro lado, evitar o risco empresarial; quer ser sócio e simultaneamente aparecer
perante a sociedade como um credor estranho”., quando um sócio efetua suprimentos à
sociedade está a dotá-la de meios patrimoniais para que esta exerça a sua atividade
comercial, o que significa que, em rigor, aquele suprimento está na verdade a
desempenhar a função de capital próprio da sociedade porquanto provém de um dos
seus titulares e visa “alimentar” o acervo patrimonial da empresa, ou seja, visa suprir uma
necessidade de capital na prossecução do objeto social. Contudo, ao fazê-lo por meio de
um empréstimo Note-se que a lei (cfr. arts. 243º, nº 6 e 244º, nº 3, do CSC) não rodeia de
especiais cautelas a constituição e realização destes suprimentos que poderão resultar
de um simples contrato entre a sociedade e um sócio, sem observância de qualquer
forma especial, e sem necessidade de uma prévia deliberação dos sócios para o efeito.
, o sócio está simultaneamente a rejeitar a afetação do empréstimo ao regime do capital
social visto que espera a restituição daqueles meios patrimoniais segundo determinadas
condições (por si acordadas com a sociedade). Assim, o sócio pretende que lhe seja
reconhecido um crédito sobre a sociedade equivalente à quantia ou objeto mutuado
(eventualmente acrescido dos respetivos juros) o que significará, inevitavelmente, que
será também um credor social.
De acordo com o transcrito inciso normativo, o contrato de suprimento pode resultar: (i)
de um empréstimo (de dinheiro ou outra coisa fungível) concedido pelo sócio à
sociedade; ou (ii) do diferimento do vencimento de um crédito do sócio sobre a
sociedade. Fala-se, a este respeito, de suprimentos ativos (os que resultam do
empréstimo) e suprimentos passivos (que resultam do diferimento do crédito).
Em ambas as situações, é necessário que o crédito tenha caráter de permanência, sendo
essa caraterística que justifica o especial regime dos suprimentos (cfr. art. 245º do CSC),
porquanto é essa circunstância que revela o caráter estrutural (e não meramente pontual
ou transitório) da necessidade de financiamento da sociedade.
Com efeito, como escreve ALEXANDRE MOTA PINTO In Código das Sociedades
Comerciais em Comentário, vol. III, 2ª edição, Almedina, pág. 649., houve que encontrar
“um elemento facilmente reconhecível, que permita concluir com suficiente segurança
que os bens são postos à disposição da sociedade com vista a preencher as finalidades
próprias de uma entrada de capital. Esse elemento ou critério é, na nossa lei, a
permanência dos créditos dos sócios na sociedade”.
A permanência constitui um critério objetivo que, assentando no tempo de duração dos
créditos, indica que os bens não foram postos à disposição da sociedade de uma forma
transitória, tendo sido afetados a fins semelhantes aos do capital.
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Porém, a permanência é também um conceito vago, não permitindo, só por si, identificar,
in concreto, um contrato como sendo um contrato de suprimento. Por essa razão, o
legislador sentiu necessidade de, nos nºs 2 e 3 do citado art. 243º, estabelecer vários
índices de permanência, que constituem presunções iuris tantum (e, como tal, ilidíveis
Admitindo-se, por um lado, a prova, por parte do credor social, do caráter de
permanência do empréstimo ainda que não haja decorrido um ano; por outro, a prova,
agora por parte do sócio, de que o diferimento superior a um ano se fica a dever, nos
termos do nº 4 do art. 243º, a “circunstâncias relativas a negócios celebrados com a
sociedade, independentemente da qualidade de sócio”.) da verificação de contratos de
suprimento.
Estes índices baseiam-se em duas circunstâncias: o prazo estipulado para o reembolso
do crédito ao sócio, e a duração efetiva do crédito. Assim, constituirão índices do caráter
de permanência do crédito concedido pelo sócio à sociedade – e, como tal, presunções
de que é um suprimento – a estipulação (contemporânea ou posterior ao negócio) de um
prazo de reembolso superior a um ano, ou, no caso de não ter sido estipulado prazo de
reembolso, ou de ter sido estipulado um prazo inferior a um ano, a não utilização da
faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano. Portanto, no
silêncio das partes, a existência de um contrato de suprimento será indiciada, e logo
presumida, em três hipóteses:
- se as partes estipularam um prazo de reembolso superior a um ano, sendo indiferente
que esta estipulação seja contemporânea ou posterior ao contrato;
- se as partes não estipularam qualquer prazo e o reembolso não foi exigido durante um
ano;
- se as partes estipularam um prazo inferior a um ano, mas o reembolso não foi exigido
durante um ano.
Resulta do exposto que a qualificação do contrato como de suprimento efetua-se
automaticamente desde que se constituam de facto os respetivos elementos, sendo que,
como adverte RAUL VENTURA Ob. citada, pág. 92., para afastar esse resultado “o único
meio é produzir declarações de vontade que não se enquadrem na figura legal deste
contrato; para isso, pode concorrer a ilisão das presunções que a própria lei estabelece”.
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, resulta do substrato factual
apurado (cfr., v.g., alíneas o), p), bb), dd), ee) e ff) dos factos provados) que a autora,
enquanto sócia da 2ª ré, no período compreendido entre 31 de janeiro de 2015 e 31 de
agosto de 2017, efetuou transferências/pagamentos a esta num valor total de
€961.107,97 que se destinaram ao financiamento da exploração do estabelecimento da
demandada. Registe-se, igualmente, que essa quantia, até ao dia 31 de dezembro de
2019, encontrava-se identificada no extrato de conta de sócia como “suprimento de
sócio”, tendo sido contabilisticamente restituída àquela o montante de €135.058,99, sem
que, no ínterim, tenha ocorrido qualquer outro pagamento.
Perante tal materialidade e considerando o analisado recorte normativo do contrato de
suprimento, afigura-se-nos estarem preenchidos os elementos constitutivos deste tipo
contratual, sendo que, não tendo as partes estipulado qualquer prazo para o reembolso
dos valores que a autora (na sua qualidade de sócia) disponibilizou à ré e não sendo
esse reembolso exigido por período superior a um ano, se mostram verificados os
indícios de permanência estabelecidos nos nºs 2 e 3 do art. 243º que fazem presumir a
existência desse contrato.
No sentido de afastar essa catalogação, esgrimem os apelantes o argumento de que as
mencionadas entradas em dinheiro não constituem suprimentos, mas antes, e
verdadeiramente, “um investimento feito pela autora na ré T...”.
Certo é que - para além da já assinalada irrelevância das motivações e interesses
(empresariais, ou, simplesmente, de investimento) prosseguidos pelo sócio que realiza
esse apport financeiro -, os réus não lograram demonstrar factos que permitissem ilidir a
aludida presunção relativa, razão pela qual se impõe concluir (tal como se decidiu na
sentença recorrida) que os pagamentos/transferências realizados terão de ser
juridicamente qualificados como suprimentos.
Improcedem, pois, as conclusões 14ª a 18ª.
*
IV.3. Das nulidades da sentença
Resta, por último, apreciar os vícios de nulidade que os apelantes imputam à sentença
recorrida, o que apenas se faz nesta oportunidade, posto que, na economia do recurso,
esses vícios formais somente ocorrerão caso se qualifique como suprimentos os
pagamentos/transferências realizados pela demandante/apelada.
Como se viu, na sentença sob censura, depois de se qualificar juridicamente tais inputs
como suprimentos (qualificação que, como supra se considerou, se nos revela ajustada),
decidiu-se fixar em nove meses o prazo para o seu reembolso à autora.
Sustentam os apelantes que, neste segmento decisório, a sentença enferma de vícios de
nulidade, seja por constituir uma decisão-surpresa (por não ter a ré sido chamada a
pronunciar-se sobre a fixação do prazo), seja porque condenou essa demandada além
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12/09/23, 23:21 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
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12/09/23, 23:21 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
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V. DISPOSITIVO
Porto, 09/01/2023
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12/09/23, 23:21 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
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