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12/09/23, 23:21 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Acórdãos TRP Acórdão do Tribunal da Relação do Porto


Processo: 4105/21.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES
REVOGABILIDADE
CONTRATO DE SUPRIMENTO
Nº do Documento: RP202301094105/21.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 09-01-2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A doação entre cônjuges, por mor do disposto no artigo 1765º do Código Civil, pode
ser livremente revogada pelo doador, ou seja, o princípio é o da revogabilidade ad nutum,
não carecendo, pois, a revogação desse ato gratuito de ser motivada ou fundamentada.
II - Deste modo, embora essa doação produza imediatamente os seus efeitos, estes
ficam, no entanto, dependentes de uma condição resolutiva legal (a revogação pelo
doador), cuja verificação opera retroativamente, de um modo geral.
III - O contrato de suprimento pode resultar: (i) de um empréstimo (de dinheiro ou outra
coisa fungível) concedido pelo sócio à sociedade; ou (ii) do diferimento do vencimento de
um crédito do sócio sobre a sociedade.
IV - Em ambas as situações, é necessário que o crédito tenha caráter de permanência,
sendo essa caraterística que justifica o especial regime dos suprimentos, porquanto é
essa circunstância que revela o caráter estrutural (e não meramente pontual ou
transitório) da necessidade de financiamento da sociedade.
V - Em virtude de a permanência ser um conceito vago, o legislador sentiu necessidade
de estabelecer, nos nºs 2 e 3 do artigo 243º do Código das Sociedades Comerciais,
vários índices de permanência, que constituem presunções iuris tantum (e, como tal,
ilidíveis) da verificação de contratos de suprimento.
VI - Esses índices baseiam-se em duas circunstâncias: o prazo estipulado para o
reembolso do crédito ao sócio, e a duração efetiva do crédito. Assim, no silêncio das
partes, a existência de um contrato de suprimento será indiciada, e logo presumida, em
três hipóteses: (i) se as partes estipularam um prazo de reembolso superior a um ano,
sendo indiferente que esta estipulação seja contemporânea ou posterior ao contrato; (ii)
se as partes não estipularam qualquer prazo e o reembolso não foi exigido durante um
ano; (iii) se as partes estipularam um prazo inferior a um ano, mas o reembolso não foi
exigido durante um ano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 4105/21.6T8VNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Vila Nova de Gaia – Juízo Central Cível,
Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
*

SUMÁRIO
……………………………….
……………………………….
……………………………….
*

I. RELATÓRIO

AA propôs a presente ação declarativa comum contra BB e T..., Ldª. pedindo que:
- seja declarada revogada a doação efetuada pela Autora ao Réu BB, da quantia de Eur
300.000,00 (trezentos mil euros), condenando-se o Réu a restituir à Autora tal quantia,
acrescida de juros de mora, contados desde a data da citação, até integral pagamento;
- seja declarada revogada a doação efetuada pela Autora ao Réu BB, da quota social de
Eur 3.000,00 titulada por este na Ré T..., Ldª., declarando-se o direito de propriedade da
Autora sobre tal quota social, condenando-se ambos os Réus a reconhecerem esse
direito e a restituírem tal quota à Autora, operando-se as competentes inscrições no
registo comercial;
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- seja condenada a Ré T..., Ldª., a restituir à Autora o valor dos suprimentos de Eur
826.048,98 (oitocentos e vinte e seis mil, quarenta e oito euros e noventa e oito
cêntimos), em prazo a fixar,
ou, subsidiariamente, caso se entenda que tal quantia não integra suprimentos à Ré
sociedade, mas sim doações ao Réu BB,
- seja declarada revogada a doação efetuada pela Autora ao Réu BB, da quantia de Eur
826.048,98 (oitocentos e vinte e seis mil, quarenta e oito euros e noventa e oito
cêntimos), condenando-se esse réu a restituir à Autora tal quantia, acrescida de juros de
mora, contados desde a data da citação, até integral pagamento.
Para substanciar tais pretensões alega que foi casada com o 1º réu no regime de
separação de bens, tendo, em 2014, dado ao marido a quantia de €300.000,00, que este
destinou à aquisição e reconstrução de um bar.
Acrescenta que, em finais desse mesmo ano, foi constituída a ré T..., tendo custeado
todas as despesas e entradas para realização do capital social, seja da autora, seja do
então seu marido (cuja quota se cifra no valor de 3.000,00€).
Alega ainda ter efetuado diversos empréstimos à sociedade ré, assumindo esta a
obrigação de restituição à medida que os lucros de exploração do estabelecimento o
permitissem, empréstimos que ascenderam a um valor total de 961.107,97€, tendo a T...
restituído a quantia de 135.058,99€.
Por último, articula que em anterior ação proposta para fixação judicial de prazo para o
reembolso dos aludidos empréstimos, a ré negou a natureza de suprimentos dos
mesmos, sustentando que esses valores foram doados ao réu, o que justificou a
necessidade de propositura da presente ação.
Citados os réus, apresentaram contestação conjunta, alegando que foi o réu quem pagou
o capital necessário à realização da sua quota na 2ª ré.
Referem ainda que a quantia colocada pela autora à disposição da ré T... não
corresponde, quer a uma doação ao réu, quer a suprimentos à ré, alegação que fazem
assentar na natureza do negócio celebrado pela ré, estando o réu BB convencido que os
suprimentos eram feitos em seu nome, com dinheiro doado pela autora, cuja única
preocupação era obter uma ocupação profissional para o então marido, 1º réu.
Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas
da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgou «a ação
parcialmente procedente por provada e, em consequência:
I) declaro[u] revogada a doação no valor de 300.000,00EUR (trezentos mil euros)
efetuada pela autora ao réu BB, condenando este último a restituir tal quantia à autora,
acrescida de juros contados desde a data de citação até efetivo e integral pagamento; II)
condeno[u] a ré T... a reembolsar os suprimentos da autora no valor de 826.048,98 EUR
(oitocentos e vinte e seis mil e quarenta e oito euros e noventa e oito cêntimos), fixando
em nove meses o prazo para efetivação de tal reembolso;
III) Absolv[eu] os réus do demais peticionado».
Não se conformando com o assim decidido, vieram os réus interpor o presente recurso,
que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente
devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a
final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1.- O Tribunal a quo declarou revogada a doação no valor de €300.000,00 efetuada pela
Autora ao Réu BB e condenou a Ré “T...” a reembolsar os suprimentos da Autora no valor
de €826.048,98 e fixou em 9 meses o prazo para efetivação do reembolso de tal quantia.
Mas não constitui a quantia de €300.000,00 uma doação da Autora ao Réu, nem os
€826.048,98 constituem suprimentos da Autora à Ré “T...”, e ainda que tal quantia seja
qualificada como suprimentos, não podia o Tribunal a quo fixar em 9 meses o prazo para
o seu reembolso.
Vejamos,
A – Da revogação da doação dos €300.000,00
2.- Resultou provado que Autora e Réu casaram-se entre si em 09-06-2012. Que a
Autora é de nacionalidade belga e chilena e que se casaram no regime de separação de
bens “atendendo à enorme desproporção dos patrimónios de cada um dos cônjuges,
sendo de uma dimensão muito significativa o da Autora”.
3.- Após o casamento, mudou-se a Autora da Bélgica, juntamente com o seu filho menor
e fixou residência em Portugal. Em 20-06-2013, nasceu o filho de ambos, passando o
agregado familiar a ser de quatro elementos.
4.- O Réu era GNR e a Autora, por ele ter saído da GNR, proporcionou ao Réu um
negócio, escolhido por ele, de acordo com os seus gostos, onde pudesse exercer uma
atividade produtiva.
5.- O Réu, para o exercício de tal atividade constituiu a Ré “T...”, com um capital social de

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€5.000,00, dividido em três quotas: uma quota de €3.000,00 pertencente ao Réu; uma
quota de €1.000,00 pertencente à Autora; e uma quota de €1.000,00 pertencente a CC.
6.- O Réu BB apalavrou a aquisição do estabelecimento comercial, com todos os seus
componentes, designadamente com a licença de exploração do bar na praia da ....
Entretanto foi constituída a sociedade “T...” e “o sócio BB, em representação da
sociedade Ré, em conjunto com o sócio CC, acabaram por negociar a licença do Apoio
de Praia, ..., por €225.000,00”.
7.- “A Autora transferiu para a conta de BB a quantia de 300.000,00 Eur a 10-10-2014”. A
quantia destinou-se à aquisição da licença de exploração do bar na praia da ..., cuja
negociação final já foi feita pelo sócio BB e o sócio CC, “em representação da sociedade
Ré”, por €225.000,00.
“Essa aquisição custou 225.000,00 Eur, sobrando 75.000,00 Eur que foram destinados a
obras de reconstrução do bar”.
8.- Além dos €300.000,00 que a Autora depositou na conta do Réu, que a sociedade
“T...”, utilizou para adquirir o estabelecimento comercial de exploração do bar na praia da
..., a Autora depositou ainda, na conta da Ré “T...”, mais de €800.000,00 para concretizar
o mesmo negócio.
9.- A quantia de €300.000,00 que a Autora depositou na conta do Réu BB, teve por fim
adquirir a licença de exploração e construção do bar da Praia ....
Os mais de €800.000,00 que a Autora depositou na conta da Ré “T...” foram aplicados na
construção do bar da praia. A licença de exploração do Apoio de Praia, e o bar lá
construído, pertencem à Ré “T...”. A Ré “T...” pertence ao Réu, à Autora e ao sócio CC. E
a Autora veio reclamar, a juízo, €300.000,00 ao Réu BB a título de doação e €826.048,98
à Ré “T...” a título de suprimentos, como se as quantias não tivessem rigorosamente o
mesmo destino e o mesmo beneficiário: aquisição pela sociedade “T...” da licença e
concessão de exploração do bar da praia ... e construção do bar!...
10.- Não foi o Réu BB o beneficiário dos €300.000,00, mas a sociedade “T...” da qual a
Autora também é titular e, aceitou e quis, que tal quantia se destinasse “à aquisição do
estabelecimento comercial, com todos os seus componentes, designadamente com a
licença de exploração do bar na praia ...”, que acabou por ser adquirida pela sociedade
“T...”.
11.- Não tendo o Réu BB sido o beneficiário da quantia dos €300.000,00, mas a
sociedade “T...” - possuída em 20% pela Autora - não existiu uma doação de tal quantia
pela Autora ao Réu, uma vez que, como dispõe o artigo 940º, nº1 do Código Civil
“doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu
património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma
obrigação, em benefício do outro contraente”.
12.- A manter-se a decisão de que se recorre, que não se aceita, a Autora teria um
benefício injustificado, um enriquecimento à custa do Réu BB, pois receberia deste os
€300.000,00 e ainda beneficiaria dos €300.000,00 que foram colocados na sociedade
“T...” para a aquisição da licença de exploração e para a reconstrução do bar, pertença da
sociedade “T...”.
13.- Se a Autora é credora dos €300.000,00 é à sociedade “T...” a quem os deve
reclamar, e não ao Réu porque não foi, nem é, o beneficiário de tal quantia. Aliás, da
mesma forma que está a reclamar à Ré “T...” os €826.048,98, que se destinaram ao
mesmo fim.
B – Da qualificação dos €826.048,98 como suprimentos
14.- As transferências das quantias depositadas pela Autora na conta bancária da Ré
“T...” teve por fim proporcionar ao Réu BB um negócio, escolhido por ele, de acordo com
os seus gostos, onde pudesse exercer uma atividade produtiva.
15.- A Autora não impôs à Ré “T...” qualquer prazo para a restituição das quantias que lá
colocou. A única condição foi, “com a obrigação de restituição à medida que os lucros da
exploração o permitissem”.
16.- Considerando todo o circunstancialismo e a finalidade em que a Autora colocou as
quantias em dinheiro na Ré “T...” – criar um negócio para o Réu BB e devolver tal quantia
“à medida que os lucros de exploração o permitissem” – só pode ser qualificado como
investimento.
Aliás,
17.- O dinheiro foi colocado na Ré “T...” para esta adquirir um contrato de concessão à
Agência Portuguesa do Ambiente para explorar o Apoio de Praia ..., Vila Nova de Gaia. O
investimento feito pela Ré “T...” na concessão, apenas lhe garante a exploração do Apoio
de Praia durante alguns anos, não estando garantido o reembolso do investimento feito.
A Autora tinha conhecimento deste condicionalismo e sabia, como aceitou, que a Ré “T...”
só era titular de um direito de concessão e que a devolução à Autora do capital que lá
colocou só poderia ser devolvido pelos lucros da exploração e à medida que estes se
fossem gerando. Assim, o capital colocado pela Autora na Ré só pode ser qualificado
como investimento e não suprimentos, “com a obrigação de restituição à medida que os
lucros da exploração o permitissem”; “Não tendo sido acordado entre Autora e Ré
qualquer prazo para a restituição das quantias”, conforme ficou provado.

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18.- Considerando todo o circunstancialismo que rodeou a colocação de capitais da


Autora na sociedade Ré “T...”, deve qualificar-se tal transferência de capital como
investimento da Autora na Ré, ficando esta obrigada ao seu reembolso à medida que os
lucros o permitirem, como pretende a Autora.
C – Da fixação de nove meses para reembolsar a autora no valor de €826.048,98
19.- A Autora formula o seu pedido nos seguintes termos: “Condenar-se a Ré T..., Ldª., a
restituir à Autora o valor dos suprimentos de Eur 826.048,98 (oitocentos e vinte e seis mil,
quarenta e oito euros e noventa e oito cêntimos), em prazo a fixar”.
20.- Não indica a Autora, nos seus articulados, qualquer prazo para o reembolso do
capital que colocou na Ré “T...”, a não ser com a “obrigação de restituição à medida que
os lucros de exploração o permitissem”.
21.- Não tendo sido pedido ao Tribunal a quo qualquer prazo para o reembolso do capital
colocado pela Autora na Ré “T...”. Tendo o Tribunal a quo qualificado esse capital como
suprimentos e tendo, simultaneamente, fixado nove meses para a Ré reembolsar a
Autora no valor de € 826.048,98, produziu uma sentença, nesta parte:
- Nula por ser uma decisão surpresa.
- Nula por ter condenado em objeto diverso do pedido.
- Nula por violação das regras de competência em razão da matéria.
Vejamos,
22.- A Autora não pediu ao Tribunal a quo o prazo de reembolso do capital colocado na
Ré “T...” de nove meses. Nem de nove meses, nem de seis, nem prazo nenhum. Assim, a
Ré “T...” também não impugnou nos seus articulados qualquer prazo. Nem o prazo foi
matéria submetida à discussão em julgamento, nem fazia parte da matéria assente, nem
da matéria levada aos temas da prova.
23.- O que estava como assente, não impugnado pela Ré “T...”, foi o alegado pela Autora
no artigo 28º da Petição Inicial: “restituição à medida que os lucros da exploração o
permitissem”. E que passou para o elenco dos factos provados:
“Uma vez constituída a sociedade ré, a autora efectuou as entradas referidas em o) e p)
para financiar a reconstrução do bar e a aquisição de equipamentos mediante
empréstimos à sociedade com a obrigação de restituição à medida que os lucros de
exploração o permitissem”. “Não foi acordado entre autora e ré qualquer prazo para
restituição das quantias que a autora fez entrar nas contas da sociedade” (alíneas bb) e
dd) dos factos provados).
24.- Foi com total surpresa que a Ré “T...” recebeu a decisão do Tribunal a quo,
condenando-a a devolver a quantia de €826.048,98 em 9 meses. Quando o que era
normal, lógico e aceitável, atendendo ao objeto da ação, aos temas da prova e à posição
das partes nos articulados, é que o Tribunal a quo condenasse a Ré a devolver tal
quantia “à medida que os lucros de exploração o permitissem”, fosse a quantia, colocada
pela Autora na Ré, qualificada como investimento ou suprimentos.
Proferiu, assim, o Tribunal a quo uma decisão surpresa e em objeto diverso do que foi
pedido, em violação manifesta do princípio do contraditório.
Mas,
25.- Tendo o Tribunal a quo qualificado as entradas em dinheiro da Autora para a Ré
como suprimentos, também não podia fixar qualquer prazo – ainda que fosse pedido –
sem violação das regras da competência em razão da matéria.
Vejamos,
26.- “Não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o
disposto no nº2 do artigo 777º do Código Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá,
porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade,
podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fracionado em certo
número de prestações”, (artigo 245º, nº1 do Código das Sociedades Comerciais).
Não foi ponderado, nem a Ré “T...” teve quaisquer possibilidades de alegar, as
consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, no prazo de nove meses
fixado, porque o prazo não constituía objeto do litígio, nem foram levados aos temas da
prova quaisquer factos relacionados com o prazo.
De qualquer modo
27.- Como se trata de suprimento da Autora sobre a sociedade “T...” e a fixação judicial
de prazo para o reembolso de suprimentos corresponde ao exercício de um direito social,
assim, é da competência dos Tribunais do Comércio, nos termos do artigo 128º, nº1, al.
c) da Lei 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), e
incompetente o Tribunal a quo para fixar prazo, devendo decidir, apenas, como foi a
condição imposta pela Autora , à medida que os lucros de exploração o permitir,
28.- Entre outros, a sentença de que se recorre, violou as seguintes disposições legais:
artigos 940º e 777º, nº2 do Código Civil; artigos 607º, nº4 e 5, 1026º, 1027º, 292º, 293º,
294º, 295º, 609º, nº1, 615º, nº1, al. e) e 3º, nº3 do Código de Processo Civil; e artigo 28º,
nº1, al. c) da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
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A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.


***

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não


podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as
mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e
639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil Diploma a atender sempre que se citar
disposição legal sem menção de origem..
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes,
são as seguintes as questões solvendas:
(i). Da qualificação jurídica da entrega da quantia de €300.000,00 que a autora fez ao réu
BB em 10 de outubro de 2014;
(ii). Da qualificação jurídica das transferências realizadas pela autora para a conta
bancária da ré e pagamentos por aquela efetuados no período compreendido entre 31 de
janeiro de 2015 e 31 de agosto de 2017;
(iii). Da nulidade da decisão que fixou o prazo para se processar o reembolso das
transferências/pagamentos a que se alude em (ii).
***

III. FUNDAMENTOS DE FACTO

III.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:


a) A Autora, de nacionalidade belga e chilena, e o Réu BB, de nacionalidade portuguesa,
casaram entre si a .../.../2012, na Bélgica, estando tal casamento transcrito em Portugal,
conforme assento de casamento n.º ... do ano de 2013, da Conservatória do Registo Civil
de Santa Maria da Feira.
b) Tal casamento foi precedido da celebração de convenção antenupcial, outorgada a
24.05.2012 e aditada a 25.05.2012, tendo sido adotado o regime de separação de bens
da lei belga.
c) Esse regime de separação de bens foi escolhido pelo casal atendendo à enorme
desproporção dos patrimónios de cada um dos cônjuges, sendo de uma dimensão muito
significativa o da Autora.
d) Os então noivos pretendiam fixar a sua residência em Portugal, que foi o que veio a
acontecer, mudando-se a Autora da Bélgica, juntamente com o seu filho menor, DD, para
o nosso país, logo após o casamento.
e) Assim, após o casamento, Autora e Réu fixaram a sua residência em Portugal, país
onde, desde aí, sempre residiram.
f) A 20.06.2013, veio a nascer o filho de ambos, EE,
g) A Autora proporcionou ao Réu um negócio, escolhido por ele, de acordo com os seus
gostos, onde este pudesse exercer uma atividade produtiva.
h) A Autora transferiu para a conta de BB a quantia de 300.000,00 EUR a 10.10.2014.
i) Essa quantia destinou-se à aquisição do estabelecimento comercial, com todos os seus
componentes, designadamente com a licença de exploração do bar na praia da ....
j) Essa aquisição custou 225.000,00 EUR, sobrando 75.000,00 EUR que foram
destinados a obras de reconstrução do bar.
k) Tendo em vista a prossecução da atividade daquele estabelecimento, e novamente
com o aconselhamento do Advogado Senhor Dr. FF, foi constituída, a 06.11.2014, a
sociedade T..., Ldª., com sede no mesmo local que a sede da N..., sociedade que havia
sido constituída por autora e réu em 11.04.2021, ou seja, na Rua ..., sala ..., ... Vila Nova
de Gaia.
l) O capital social da sociedade T..., de 5.000,00 EUR, foi dividido por três quotas, com
valores diferentes e pertencentes a três sócios: uma quota de 3.000,00 EUR pertencente
ao Réu BB, uma quota de 1.000,00 Eur pertencente à Autora, e uma quota de 1.000,00
Eur pertencente a CC, filho daquele Advogado, tendo sido nomeados gerentes apenas o
Réu e este CC, obrigando-se a sociedade com a assinatura conjunta de ambos, sendo o
nome da sociedade o acrónimo dos nomes próprios dos três sócios: BB, AA e CC.
m) A T..., Ldª., passou a explorar o estabelecimento comercial D..., sito na Praia da ...,
Vila Nova de Gaia.
n) A Autora nunca foi gerente da sociedade T....
o) O extrato da conta da sócia ora Autora na T..., Ldª., com o n.º ..., desde 30.04.2012 até
ao dia 31.12.2019, demonstra diversos pagamentos efetuados pela autora à sociedade,
no valor total de 961.107,97 Eur.
p) A Autora fez entradas na T..., Ldª., assim descritas na contabilidade:
i. a 31.01.2015, transferência de 250.000,00 Eur;
ii. a 30.09.2015, empréstimo de 300.000,00 Eur;

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iii. a 30.04.2016, empréstimo de 400.000,00 Eur;


iv. a 31.01.2017, pagamento leroy de 139,86 Eur;
v. a 31.01.2017, pagamento leroy de 265,45 Eur;
vi. a 31.01.2017, pagamento modelo de 86,26 Eur;
vii. a 31.01.2017, pagamento golden de 2,60 Eur;
viii. a 28.02.2017, pagamento brico de 8,90 Eur;
ix. a 31.08.2017, pagamento leroy de 10.604,90 Eur, quantias totais das quais 135.058,99
EUR foram restituídos à autora.
q) Por carta datada de 05.01.2021, dirigida pela Autora à Ré e por esta recebida a
08.01.2021, a primeira solicitou à segunda o pagamento dessa quantia global de
826.048,98 Eur, no prazo máximo de trinta dias.
r) Não tendo a Ré procedido a qualquer pagamento à Autora.
s) Por essa razão, a Autora intentou contra a T..., Ldª., uma acção com processo especial
de fixação judicial de prazo, que deu entrada no tribunal desta comarca a 16.02.2021,
passando a correr termos sob o n.º 1309/21.5T8VNG, no Juízo de Comércio de Vila Nova
de Gaia, Juiz 3, pedindo que fosse fixado prazo de 90 dias para a Ré proceder ao
reembolso dos suprimentos feitos pela Autora, no valor de 826.048,98 Eur.
t) A Ré T..., Ldª., deduziu oposição nessa acção, alegando o que consta do documento
nº14 anexo à petição inicial e aqui se tem por integralmente reproduzido,
designadamente que “A Requerente não tem direito a quaisquer suprimentos porque o
que alega ter emprestado à Requerida, de facto deu ao sócio BB”, defendendo, em
suma, que a autora não efectuou os suprimentos por si alegados.
u) Negada a existência de suprimentos, a acção de fixação judicial de prazo foi julgada
improcedente, por sentença prolatada a 24.04.2021, com a seguinte fundamentação: «No
presente caso a Ré, desde logo, contesta a constituição ou existência de qualquer
obrigação de proceder ao pagamento à Autora de quaisquer suprimentos. A falta daquele
pressuposto essencial da ação, torna impossível, e inútil, a fixação de qualquer prazo, e
conduz necessariamente à improcedência da ação, por falta de um pressuposto
essencial da mesma».
v) Antes de propor a acção, a Autora solicitou à Ré T..., Ldª., por carta datada de
16.07.2020 (Doc. 16), seguida de carta idêntica datada de 06.10.2020, que lhe fosse
«prestada, no prazo máximo de 8 dias, e por escrito, informação sobre todas as entradas
por mim feitas a favor da sociedade, em dinheiro, e sobre todas as saídas da sociedade
para mim, desde a sua constituição. Tal informação poderá ser fornecida mediante cópia
da respectiva conta, e bem assim mediante cópias dos balanços da sociedade de todos
os anos desde a sua constituição e do último balancete acumulado (…)».
w) A Ré respondeu, por carta de 21.10.2020, junta como Doc. 17 anexo à petição inicial,
remetendo à Autora o extracto da conta de sócia desta e o balancete acumulado, até
Dezembro de 2019.
x) Com data de 17.02.2021 consta lavrada a acta número 8 de realização de assembleia
geral extraordinária da ré T..., em que se declara que se encontravam presentes os
sócios BB e CC, estando ausente a sócia AA, que comunicou a sua ausência por
impossibilidade de agenda, tendo a assembleia por ordem de trabalhos, como ponto 1,
apreciar a carta enviada pela sócia AA, recebida a 08.01.2021, na qual reclama
suprimentos no valor de oitocentos e vinte e seis mil quarenta e oito euros e noventa e
oito cêntimos e, como ponto 2, deliberar sobre a pretensão da sócia AA na referida carta;
mais consta que o sócio BB declarou que as quantias que a sócia AA, na sua carta
datada «As quantias que a sócia AA alega, na sua carta datada de cinco de janeiro de
dois mil e vinte e um, no montante de novecentos e sessenta e um mil, cento e sete
euros e noventa e sete cêntimos, não foram emprestados à sociedade T..., mas foram-lhe
doados a ele. (…) Tais quantias só foram contabilizadas em nome da sócia AA, porque o
Contabilista não foi informado que a sócia AA, apesar de estar a subsidiar toda a
construção do “Bar D...”, estava efetivamente a doar esse bar ao sócio BB, como ela
sempre disse. (…). De facto, aquando da transmissão da licença da firma “L...
Unipessoal, Lda.”, para a T..., Ldª., no montante de duzentos e vinte e cinco mil euros a
sócia AA depositou essa quantia na conta particular de sócio BB e este pagou
diretamente à firma “L...”, a transmissão da licença do Bar. Tal quantia, foi contabilizada
como suprimento do sócio BB. Durante a construção do Bar, o BB contactava a sócia AA
para depositar as quantias necessárias na conta bancária, então já aberta, em nome da
“T...”. (…) o que a sócia reclama como suprimentos à “T...” pertence ao sócio BB, que só
por lapso foram contabilizados a favor da sócia AA quando deveriam ser contabilizados a
favor do sócio BB».
y) No ponto 2 da ordem de trabalhos ficou declarado que, considerando o exposto pelo
sócio BB e ainda porque a sócia AA sempre disse que tinha dado o Bar ao sócio BB, foi
deliberado, com o voto favorável dos sócios presentes, comunicar ao Contabilista
certificado da “T...” que contabilize na conta do sócio BB os suprimentos que a sócia AA
reclama na sua carta datada de cinco de janeiro de dois mil e vinte e um (documento
nº18, anexo à petição inicial, cujos demais termos se dão por reproduzidos).
z) Da quantia referida em h), feitos os pagamentos das dívidas da firma “L..., Unipessoal,

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Lda” (cedente da licença) à Agência do Ambiente e à Autoridade Marítima Nacional, o


sócio BB pagou, contra recibo, à cedente da licença, a quantia de 197.020,06€, que foi
registada na contabilidade da Ré sociedade como suprimento do sócio BB.
aa) A quantia de 300.000,00€ referida em h) foi dada pela autora então seu marido, 1º
réu.
bb) Uma vez constituída a sociedade ré, a autora efectuou as entradas referidas em o) e
p) para financiar a reconstrução do bar e a aquisição de equipamentos, mediante
empréstimos à sociedade com a obrigação de restituição à medida que os lucros de
exploração o permitissem.
cc) A autora nunca teve intervenção na gestão da sociedade ré, tendo-se limitado a
financiá-la, para que esta pudesse passar a explorar o D....
dd) Não foi acordado entre autora e ré qualquer prazo para restituição das quantias que a
autora fez entrar nas contas da sociedade.
ee) Os sócios da ré sabiam que as entradas em dinheiro que a autora efectuou na
sociedade ré teriam que ser restituídas.
ff) Fez-se constar da contabilidade da sociedade ré, desde 2015 a 2020, os valores
referidos em o) como créditos da sócia autora, sendo a expressão “empréstimo” utilizada
a propósito de duas das entradas a crédito, em 2015 e 2016, de respectivamente
300.000,00€ e 400.000,00€ e, em 2015, 2018 e 2019, fizeram-se constar quatro
pagamentos como devolução de empréstimo no extracto de conta de sócio da sociedade
ré.
gg) Na sequência da deliberação referida em x) e y), foi alterada a conta de sócia da
autora que, de um saldo positivo de 826.048,08€, passou a ter um saldo zero.
hh) Na ocasião referida em g), a autora deu liberdade ao réu para procurar um negócio
de que gostasse.
ii) A negociação para a aquisição da transmissão da licença do Apoio de Praia ... veio a
concretizar-se em janeiro/2015.
jj) Uma vez apalavrada a compra da licença, o Réu BB decidiu associar o amigo CC, ao
projeto para exploração do Apoio de Praia, na praia ....
kk) A sugestão do pai de CC, o Dr. FF, que dava apoio jurídico à Autora e ao Réu BB,
decidiram constituir uma sociedade por quotas.
ll) A 18-11-2014 o Réu BB procedeu ao depósito de €4.000,00 na conta da “T...”, para
realizar a sua quota e a da sócia AA.
mm) A 21-11-2014 o Dr. FF fez uma transferência de €1.000,00 da sua conta para a conta
da “T...”, ... com a indicação “Quota CC”.
nn) Foi iniciada negociação com a sociedade titular da licença do Apoio de Praia ..., “L...
Unipessoal, Lda.”. Esta pediu, inicialmente, € 300.000,00 pela transmissão da licença.
oo) De imediato a Autora, a 10-10-2014, depositou na conta particular do sócio BB nº ... a
quantia de €300.000,00 para ele adquirir a transmissão da licença.
pp) O sócio BB, em representação da sociedade Ré, em conjunto com o sócio CC,
acabaram por negociar a licença do Apoio de Praia, ... por €225.000,00.
qq) Os gerentes da Ré sociedade, do seu apuro diário, semanal e até mensal, chegam a
ter várias dezenas de milhares de euros em dinheiro na sua posse e só depois é que iam
depositar tais quantias na conta bancária da Ré sociedade.
rr) A Ré sociedade adquiriu a transmissão da licença de ocupação de terrenos do
domínio público hídricos do Estado – Apoio de Praia completo, sito na Praia da ..., Rua
..., ... ... - Vila Nova de Gaia, à firma “L..., Unipessoal, Lda”, (doc. ...).
ss) A licença adquirida, com o nº 77/2005 foi emitida pela Agência do Ambiente –
Administração da Região Hidrográfica, I.P. (ARH), cuja concessão tem um período não
inferior a 18 anos “a contar desde 2010 inclusive, prorrogável mediante a realização de
obras adicionais”.
tt) Na altura da aquisição da licença, o Bar de Apoio de Praia estava totalmente
danificado em virtude de um incêndio.
uu) A Agência Portuguesa do Ambiente, para aceitar a transmissão da licença, da “L...”
para a “T...” e fazer com esta um contrato directo de concessão de utilização do domínio
público hídrico para implantação e exploração de um Apoio de Praia completo na Praia
da ..., exigiu que a Ré sociedade apresentasse um projecto do bar a construir de novo
para ser aprovado por si, pela Alta Autoridade Marítima e pela Câmara Municipal de Vila
Nova de Gaia.
vv) Existe a possibilidade de, no termo do prazo fixado, quando o titular da concessão
tenha realizado investimentos adicionais devidamente autorizados pela autoridade
competente e demonstre que os mesmos não foram ainda nem teriam podido ser
recuperados, prorrogar a concessão pelo prazo necessário a permitir a recuperação dos
investimentos, não podendo em caso algum o prazo total exceder os 75 anos.
ww) Tendo a licença início a 07-01-2010 e tendo sido feitos investimentos vultuosos,
devidamente autorizados pela APA, esta terá que prorrogar a licença para além de 2029,
por um período superior a 30 anos tendo em conta o prazo total da concessão e o
investimento em euros efetuado.
xx) É expectável que a Ré sociedade, no fim do prazo da concessão em 2029, tenha

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direito a ver a licença prorrogada por um período de mais 30 anos.


yy) O Contrato de Concessão, cláusula 18ª, quanto à reversão de todos os bens afectos
à concessão estabelece que: “No termo do presente contrato as obras executadas e as
instalações construídas no estrito âmbito da concessão, que fazem parte do objeto desta
concessão, revertem gratuitamente para o Estado, livre de quaisquer privilégios, ónus ou
direitos.
zz) O único bem que a Requerida tem e que pode gerar lucros para devolver aos sócios,
é a concessão para explorar o Apoio de Praia, na praia ..., Vila Nova de Gaia, no qual
está integrado o Bar.
aaa) O Estado concede à Ré sociedade um número de anos de exploração para que esta
consiga, no sucesso da exploração, obter lucros iguais ou superiores ao investimento
efetuado, sendo desta feita reembolsado do investimento efetuado.
bbb) O Estado não garante a nenhuma concessionária que vai obter o reembolso do
investimento feito.
ccc) O teor dos documentos designados como retificação/ratificação de cessão de quota
e cessão de quota, juntos aos autos em 30.05.2022, do qual consta declarado que o réu
BB cedeu, em 12.01.2022, a GG, a quota que titulava na sociedade ré pelo valor de
5.000,00€, que, segundo declaram os outorgantes, carecia de reconhecimento de
assinaturas que, pelo referido documento rectificam e ratificam, tendo tal acto sido
apresentado a registo em 2022.02.14, documentos que se têm por integralmente
reproduzidos.
*

III.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:


1) A autora, em 2012, mal falava e mal compreendia o português.
2) Foi a autora quem custeou as despesas de constituição da sociedade T... e quem
assegurou as entradas para realização do capital social, dela e do marido, adquirindo
este uma participação social em resultado de um valor que lhe foi dado pela autora.
3) Foi o réu quem pagou as quantias necessárias para realizar as quotas sociais do réu e
da autora na sociedade T...
4) O Contabilista da Ré, sociedade, tinha acesso ao movimento das contas bancárias da
Ré e, como os depósitos eram feitos pela Autora, registava-os como empréstimos em seu
nome, ignorando a natureza e o fim de tais depósitos.
5) O Réu BB usava os valores da facturação e as quantias que não tinham sido
depositadas nas contas da sociedade em gastos comuns do casal.
6) Embora as quantias estivessem contabilisticamente registadas em nome da Autora,
como suprimentos, nunca os outros sócios o reconheceram como tal.
7) O Réu BB estava convencido que os suprimentos estavam registados em seu nome.
8) Se fosse dito ao sócio CC que a Autora, não obstante estar a pôr o dinheiro para a
aquisição da licença do Bar e a sua construção, mas a qualquer momento podia requerer
a devolução de tais quantias, jamais entraria em tal projeto.
9) A Ré sociedade sabia que todo o investimento que estavam a fazer era em bens que,
embora façam parte do activo da sociedade, não podem dispor dos mesmos, já que são
propriedade do Estado e que o investimento que estavam a fazer era de recuperação de
longo ou muito longo prazo.
10) A Ré sociedade, quando se propôs adquirir a concessão do Apoio de Praia ... bem
sabia da impossibilidade de ser reembolsada de tais quantias em menos de 30, 40 ou 50
anos.
11) A Ré sociedade sabia que estava a adquirir esta concessão e para a qual já tinha
havido uma previsão legal de terem um reembolso do capital investido na ordem dos
€15.000,00/ano.
12) O que vai ditar as hipóteses de reembolso dos capitais investidos na concessão, é
capacidade, e sucesso da Ré, sociedade, na sua actividade, gerar lucros durante muitos
e longos anos.
13) Não obstante a Ré sociedade ter registado na sua contabilidade um património
relevante, o bar “D... Lounge Bar” e o seu equipamento, não pode dispor do mesmo para
obter liquidez.
14) A Autora colocou à disposição da Ré sociedade, mais de um milhão de euros, sem
exigir nada em troca a não ser a satisfação de ter conseguido para o seu marido uma
ocupação profissional a seu gosto.
15) A autora, ao colocar dinheiro na sociedade e aceitar que ela investisse na aquisição
da concessão de exploração do Apoio de Praia ..., bem sabia da impossibilidade da ré
Sociedade a reembolsar do seu dinheiro, a não ser ao longo de décadas, concordando
com o diferimento da devolução de tais quantias.
***

IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

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IV.1. Da qualificação jurídica da entrega da quantia de €300.000,00 que a autora fez


ao réu BB em 10 de outubro de 2014

Como emerge da materialidade apurada (que não foi alvo de impugnação em sede
recursiva), a 10 de outubro de 2014, a autora (que, à data, era casada com o réu BB, no
regime de separação de bens) transferiu para a conta deste a quantia de €300.000,00
(cfr. alíneas b) e h) dos factos provados). De igual modo ficou provado (cfr. alíneas i) e
aa)) que a referida importância foi dada pela demandante ao então seu marido, tendo
este, com esse montante, adquirido um estabelecimento comercial, com todos os seus
componentes, designadamente a licença de exploração do bar na praia da ....
Perante esse tecido fáctico o decisor de 1ª instância considerou que essa relação jurídica
assumia a natureza de uma doação entre casados, sujeita, por isso, ao regime da livre
revogabilidade nos termos do disposto no art. 1765º do Cód. Civil.
Os apelantes rebelam-se contra esse segmento decisório sustentando que, ao invés do
entendimento plasmado na sentença recorrida, o beneficiário dos €300.000,00 não foi o
réu BB mas antes a sociedade ré.
Não lhes assiste razão.
Com efeito, resultou expressamente provado (proposição fáctica que, como se referiu,
não foi objeto de impugnação) que a aludida importância foi diretamente dada pela autora
ao réu BB que, embolsando-a, a destinou à aquisição de um estabelecimento comercial,
sendo certo, outrossim, que à data da realização dessa transferência monetária a ré
ainda não se achava sequer constituída (o que apenas ocorreu em 6 de novembro de
2014 – cfr. al. k) dos factos provados).
Tal materialidade permite, pois, a afirmação do preenchimento dos elementos
constitutivos do tipo contratual definido no art. 940º do Cód. Civil Que, sob a epígrafe
Noção, dispõe no seu nº 1 que “[d]oação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito
de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um
direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”., que, como emerge
da respetiva exegese, são três, concretamente: (i) atribuição patrimonial geradora de
enriquecimento; (ii) diminuição do património do doador; (iii) espírito de liberalidade.
Estando-se, assim, em presença de um contrato de doação realizado entre a autora e o
1º réu, e considerando que à data da sua concretização estes eram casados entre si,
segue-se, pois, ser aplicável a essa relação negocial o regime vertido nos arts. 1761º a
1766º, do Cód. Civil.
O traço mais caraterístico desse regime é o da livre revogabilidade das doações entre os
cônjuges, com a qual a lei entendeu obviar satisfatoriamente aos inconvenientes que as
mesmas oferecem Inconvenientes esses que, conforme tem sido enfatizado pela doutrina
(cfr., entre outros, RITA LOBO XAVIER, in Limites à autonomia privada na disciplina das
relações patrimoniais entre cônjuges, Almedina, 2000, págs. 195 e seguintes, PEREIRA
COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, in Curso de Direito de Família, vol. I, 5ª edição,
Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 538 e seguintes e PIRES DE
LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição revista e atualizada,
Coimbra Editora, págs. 493 e seguintes), se prendem com o receio de que a doação
resulte do ascendente ou influência dum dos cônjuges sobre o outro; a comunhão de
vida, de um modo geral, e o sentimento de que os bens doados “ficam na família” podem
levar um deles a beneficiar o outro irrefletidamente, tudo com prejuízo da liberdade e
espontaneidade do ato. Por outro lado, também os interesses de terceiros,
nomeadamente dos credores dos cônjuges, estarão contra a possibilidade de eles
fazerem doações um ao outro, transformando bens comuns em bens próprios ou bens
próprios em bens comuns. .
Dispõe, com efeito, o nº 1 do art. 1765º, que «[a]s doações entre casados podem a todo
o tempo ser revogadas pelo doador, sem que lhe lícito renunciar a este direito».
As doações entre cônjuges podem, por conseguinte, ser revogadas por qualquer motivo,
ou seja, o princípio é o da revogabilidade ad nutum, não carecendo, pois, essa revogação
de ser motivada ou fundamentada. Deste modo, embora essas doações produzam
imediatamente os seus efeitos, estes ficam, no entanto, dependentes de uma condição
resolutiva legal (a revogação pelo doador), cuja verificação opera retroativamente, de um
modo geral.
Como assim, tendo a autora emitido declaração negocial de revogação (unilateral Sobre
a excecionalidade da revogação unilateral de contratos bilaterais (como é o caso da
doação entre cônjuges) e respetiva justificação, vide ROMANO MARTINEZ, in Da
cessação do contrato, Almedina, 2005, págs. 51 e seguintes. ) da ajuizada doação,
declaração essa que foi recebida pelo réu, daí emerge que, tal como se decidiu na
sentença recorrida, ficou este constituído na obrigação de restituir o montante (rectius, o
tantundem) que, a esse título, embolsou.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões 2ª a 13ª.
*

IV.2. Da qualificação jurídica das transferências realizadas pela autora para a conta

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bancária da ré e dos pagamentos por aquela efetuados no período compreendido


entre 31 de janeiro de 2015 e 31 de agosto de 2017

Uma outra questão que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem prende-se com a
qualificação jurídica das transferências que a autora efetuou para a conta bancária da ré
sociedade e bem assim dos pagamentos que realizou no seu interesse.
Na decisão recorrida o juiz a quo considerou que essas transferências e pagamentos
assumem natureza de suprimentos feitos pela autora à ré, razão pela qual condenou esta
última no reembolso das importâncias que aquela despendeu a esse título.
Os apelantes discordam dessa qualificação jurídica, argumentando que essas entradas
em dinheiro não foram realizadas pela autora como suprimentos, mas antes como
investimento feito na sociedade ré, que apenas será reembolsável pelos lucros que esta
obtivesse na concessão do “Apoio de Praia ...”.
Quid juris?
Como é consabido, o contrato de suprimento é hoje um contrato nominado e típico,
sendo legalmente definido no nº 1 do art. 243º do Código das Sociedades Comerciais
(CSC) como “[o] contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa
fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou
pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos
seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo caráter de
permanência”.
O recurso a este tipo contratual constitui uma das formas a que vulgarmente se recorre
para o financiamento societário, sendo relativamente pacífico o entendimento de que
estamos perante uma espécie do contrato de mútuo – contrato de que deriva uma
multiplicidade de outras formas de “empréstimos”. Daí que qualquer sócio, desde que,
em termos normais, possua essa qualidade, poderá celebrar um contrato de suprimento,
sendo irrelevantes as suas motivações, propósitos ou interesses (empresariais, ou,
simplesmente, de investimento) prosseguidos.
Como a este propósito tem sido sublinhado pela doutrina Cfr., por todos, TARSO
DOMINGUES, O financiamento societário através de suprimentos, prestações
suplementares e prestações acessórias, in Revista de Direito Comercial (acessível em
www.revistadedireitocomercial.com), págs. 849 e seguintes e RAUL VENTURA, in
Sociedades por quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. II,
Almedina, 1989, pág. 85, onde escreve que “o sócio quer, por um lado, ser empresário e,
por outro lado, evitar o risco empresarial; quer ser sócio e simultaneamente aparecer
perante a sociedade como um credor estranho”., quando um sócio efetua suprimentos à
sociedade está a dotá-la de meios patrimoniais para que esta exerça a sua atividade
comercial, o que significa que, em rigor, aquele suprimento está na verdade a
desempenhar a função de capital próprio da sociedade porquanto provém de um dos
seus titulares e visa “alimentar” o acervo patrimonial da empresa, ou seja, visa suprir uma
necessidade de capital na prossecução do objeto social. Contudo, ao fazê-lo por meio de
um empréstimo Note-se que a lei (cfr. arts. 243º, nº 6 e 244º, nº 3, do CSC) não rodeia de
especiais cautelas a constituição e realização destes suprimentos que poderão resultar
de um simples contrato entre a sociedade e um sócio, sem observância de qualquer
forma especial, e sem necessidade de uma prévia deliberação dos sócios para o efeito.
, o sócio está simultaneamente a rejeitar a afetação do empréstimo ao regime do capital
social visto que espera a restituição daqueles meios patrimoniais segundo determinadas
condições (por si acordadas com a sociedade). Assim, o sócio pretende que lhe seja
reconhecido um crédito sobre a sociedade equivalente à quantia ou objeto mutuado
(eventualmente acrescido dos respetivos juros) o que significará, inevitavelmente, que
será também um credor social.
De acordo com o transcrito inciso normativo, o contrato de suprimento pode resultar: (i)
de um empréstimo (de dinheiro ou outra coisa fungível) concedido pelo sócio à
sociedade; ou (ii) do diferimento do vencimento de um crédito do sócio sobre a
sociedade. Fala-se, a este respeito, de suprimentos ativos (os que resultam do
empréstimo) e suprimentos passivos (que resultam do diferimento do crédito).
Em ambas as situações, é necessário que o crédito tenha caráter de permanência, sendo
essa caraterística que justifica o especial regime dos suprimentos (cfr. art. 245º do CSC),
porquanto é essa circunstância que revela o caráter estrutural (e não meramente pontual
ou transitório) da necessidade de financiamento da sociedade.
Com efeito, como escreve ALEXANDRE MOTA PINTO In Código das Sociedades
Comerciais em Comentário, vol. III, 2ª edição, Almedina, pág. 649., houve que encontrar
“um elemento facilmente reconhecível, que permita concluir com suficiente segurança
que os bens são postos à disposição da sociedade com vista a preencher as finalidades
próprias de uma entrada de capital. Esse elemento ou critério é, na nossa lei, a
permanência dos créditos dos sócios na sociedade”.
A permanência constitui um critério objetivo que, assentando no tempo de duração dos
créditos, indica que os bens não foram postos à disposição da sociedade de uma forma
transitória, tendo sido afetados a fins semelhantes aos do capital.

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Porém, a permanência é também um conceito vago, não permitindo, só por si, identificar,
in concreto, um contrato como sendo um contrato de suprimento. Por essa razão, o
legislador sentiu necessidade de, nos nºs 2 e 3 do citado art. 243º, estabelecer vários
índices de permanência, que constituem presunções iuris tantum (e, como tal, ilidíveis
Admitindo-se, por um lado, a prova, por parte do credor social, do caráter de
permanência do empréstimo ainda que não haja decorrido um ano; por outro, a prova,
agora por parte do sócio, de que o diferimento superior a um ano se fica a dever, nos
termos do nº 4 do art. 243º, a “circunstâncias relativas a negócios celebrados com a
sociedade, independentemente da qualidade de sócio”.) da verificação de contratos de
suprimento.
Estes índices baseiam-se em duas circunstâncias: o prazo estipulado para o reembolso
do crédito ao sócio, e a duração efetiva do crédito. Assim, constituirão índices do caráter
de permanência do crédito concedido pelo sócio à sociedade – e, como tal, presunções
de que é um suprimento – a estipulação (contemporânea ou posterior ao negócio) de um
prazo de reembolso superior a um ano, ou, no caso de não ter sido estipulado prazo de
reembolso, ou de ter sido estipulado um prazo inferior a um ano, a não utilização da
faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano. Portanto, no
silêncio das partes, a existência de um contrato de suprimento será indiciada, e logo
presumida, em três hipóteses:
- se as partes estipularam um prazo de reembolso superior a um ano, sendo indiferente
que esta estipulação seja contemporânea ou posterior ao contrato;
- se as partes não estipularam qualquer prazo e o reembolso não foi exigido durante um
ano;
- se as partes estipularam um prazo inferior a um ano, mas o reembolso não foi exigido
durante um ano.
Resulta do exposto que a qualificação do contrato como de suprimento efetua-se
automaticamente desde que se constituam de facto os respetivos elementos, sendo que,
como adverte RAUL VENTURA Ob. citada, pág. 92., para afastar esse resultado “o único
meio é produzir declarações de vontade que não se enquadrem na figura legal deste
contrato; para isso, pode concorrer a ilisão das presunções que a própria lei estabelece”.
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, resulta do substrato factual
apurado (cfr., v.g., alíneas o), p), bb), dd), ee) e ff) dos factos provados) que a autora,
enquanto sócia da 2ª ré, no período compreendido entre 31 de janeiro de 2015 e 31 de
agosto de 2017, efetuou transferências/pagamentos a esta num valor total de
€961.107,97 que se destinaram ao financiamento da exploração do estabelecimento da
demandada. Registe-se, igualmente, que essa quantia, até ao dia 31 de dezembro de
2019, encontrava-se identificada no extrato de conta de sócia como “suprimento de
sócio”, tendo sido contabilisticamente restituída àquela o montante de €135.058,99, sem
que, no ínterim, tenha ocorrido qualquer outro pagamento.
Perante tal materialidade e considerando o analisado recorte normativo do contrato de
suprimento, afigura-se-nos estarem preenchidos os elementos constitutivos deste tipo
contratual, sendo que, não tendo as partes estipulado qualquer prazo para o reembolso
dos valores que a autora (na sua qualidade de sócia) disponibilizou à ré e não sendo
esse reembolso exigido por período superior a um ano, se mostram verificados os
indícios de permanência estabelecidos nos nºs 2 e 3 do art. 243º que fazem presumir a
existência desse contrato.
No sentido de afastar essa catalogação, esgrimem os apelantes o argumento de que as
mencionadas entradas em dinheiro não constituem suprimentos, mas antes, e
verdadeiramente, “um investimento feito pela autora na ré T...”.
Certo é que - para além da já assinalada irrelevância das motivações e interesses
(empresariais, ou, simplesmente, de investimento) prosseguidos pelo sócio que realiza
esse apport financeiro -, os réus não lograram demonstrar factos que permitissem ilidir a
aludida presunção relativa, razão pela qual se impõe concluir (tal como se decidiu na
sentença recorrida) que os pagamentos/transferências realizados terão de ser
juridicamente qualificados como suprimentos.
Improcedem, pois, as conclusões 14ª a 18ª.
*
IV.3. Das nulidades da sentença

Resta, por último, apreciar os vícios de nulidade que os apelantes imputam à sentença
recorrida, o que apenas se faz nesta oportunidade, posto que, na economia do recurso,
esses vícios formais somente ocorrerão caso se qualifique como suprimentos os
pagamentos/transferências realizados pela demandante/apelada.
Como se viu, na sentença sob censura, depois de se qualificar juridicamente tais inputs
como suprimentos (qualificação que, como supra se considerou, se nos revela ajustada),
decidiu-se fixar em nove meses o prazo para o seu reembolso à autora.
Sustentam os apelantes que, neste segmento decisório, a sentença enferma de vícios de
nulidade, seja por constituir uma decisão-surpresa (por não ter a ré sido chamada a
pronunciar-se sobre a fixação do prazo), seja porque condenou essa demandada além

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do pedido (porquanto a autora, em parte alguma, pediu a sua condenação “a restituir os


suprimentos em nove meses, nem em qualquer prazo”), seja ainda porque desrespeitou
as regras da competência material, já que compete aos juízos de comércio a preparação
e julgamento das ações destinadas à fixação judicial de prazo.
Começando pelo primeiro dos enunciados vícios, não se discute que qualquer questão
que haja de ser decidida pelo tribunal deve, por via de regra, ser precedida da audição
das partes a fim de, querendo, se pronunciarem sobre a mesma.
Trata-se de uma emanação do princípio do contraditório que se mostra plasmado, em
termos gerais, no art. 3º, sendo que, na sua vertente de direito de resposta, o seu nº 3
expressamente dispõe que “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o
processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta
desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento
oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Como tem sido assinalado, o transcrito segmento normativo veio ampliar o âmbito da
regra do contraditório, tal como era tradicionalmente entendida, como garantia de uma
discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo.
Isso mesmo é enfatizado por LEBRE DE FREITAS In Introdução ao Processo Civil,
Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, pág. 96.,
segundo o qual «a esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais
lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör”
germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no
desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade,
influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram
em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como
potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do
contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou
resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito
de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo».
No entanto, o entendimento amplo da regra da contraditoriedade, nos moldes afirmados
na citada dimensão normativa, não pretende, obviamente, significar a limitação da
liberdade de subsunção ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que,
por mor da regra enunciada no nº 3 do art. 5º, continua a não estar sujeito às alegações
das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Significa isto, portanto, que o sentido útil do nº 3 do art. 3º é o de que, previamente ao
exercício dessa liberdade subsuntiva, o julgador deve facultar às partes a dedução das
razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação
jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não
tinham razoavelmente podido contar, ou seja, sob o enfoque da referida normatividade, o
julgador apenas está constituído no dever de observar a contraditoriedade quando esteja
em causa uma inovatória e inesperada questão de direito que não tenha, de todo, sido
perspetivada pelos litigantes de acordo com um adequado e normal juízo de prognose
sobre o conteúdo e sentido da decisão Cfr., neste sentido, LOPES DO REGO, in
Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 33, onde
afirma que «a audição excecional e complementar das partes, precedendo a decisão do
pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir
alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas
suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão
e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o
processo, tomando oportunamente posição sobre ela», acrescentando, mais adiante
(pág. 34), que «não deverá “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes,
ao abrigo do [artigo 3º, nº 3 do Cód. Processo Civil], de modo a entender-se que toda e
qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas
pretensões passa necessariamente pela atuação do preceituado no art. 3º, nº 3»..
Ora, in casu, não pode considerar-se estar em presença de uma questão jurídica
inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão da fixação do
prazo de reembolso dos suprimentos foi, precisamente, um dos fundamentos que
justificaram a propositura da presente ação declarativa (e sobre o qual a ré teve
oportunidade de se pronunciar no respetivo articulado de defesa) face à improcedência
da ação especial de fixação judicial de prazo que a autora propusera contra a ré (que,
sob o nº 1309/21.5T8VNG, correu seus termos pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de
Gaia), culminando com a formulação expressa de um pedido de condenação de
condenação da ré “a restituir à Autora o valor dos suprimentos de Eur 826.048,98
(oitocentos e vinte e seis mil, quarenta e oito euros e noventa e oito cêntimos), em prazo
a fixar”.
Destarte, tal questão não surge, neste contexto, como uma nova questão jurídica que
justificasse uma prévia intervenção jurisdicional de observância do disposto no nº 3 do
art. 3º, não consubstanciando, pois, a decisão recorrida uma decisão-surpresa A
propósito do conceito de decisão-surpresa (também denominada de decisão solitária do
juiz), a jurisprudência tem considerado que a mesma ocorre se o juiz de forma

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absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico


envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu
juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora – cfr., por todos,
acórdãos do STJ de 27.09.2011 (processo nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1) e de 4.06.2009
(processo nº 09B0523), acessíveis em www.dgsi.pt, .
De igual modo, não se antolha em que medida esse ato decisório enferme do segundo
vício que lhe é assacado, já que, em face do pedido adrede aduzido, competia ao tribunal
fixar um prazo para o reembolso dos suprimentos prestados.
De facto, na ausência de estipulação sobre o assunto, esse prazo é fixado, nos termos
do art. 777º, nº 2 do Cód. Civil No qual se preceitua que “[s]e, porém, se tornar
necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação,
quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as
partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal”., pelo
tribunal que, para o efeito, deverá, de acordo com o estatuído no nº 1 do art. 245º do
CSC, levar em conta “as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade,
podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja efetuado em certo número
de prestações”.
Significa isto, pois, que perante o requerimento da autora, o tribunal não poderia deixar
de fixar um prazo para o cumprimento da obrigação da sociedade, sendo que, nessa
fixação (que se contém dentro da pretensão de tutela jurisdicional que lhe foi solicitada),
ponderou as consequências para a sociedade do ordenado reembolso mediante o
deferimento por nove meses do cumprimento dessa obrigação restitutória.
Já no concernente à alegada violação das regras de competência ratione materiae, para
além da (eventual) inobservância dessas regras não constituir vício (formal) que importe
a nulidade da sentença - consubstanciando, quando muito, error in judicando -, sempre
se dirá que, por força do disposto no nº 2 do art. 97º, a oportunidade de conhecimento
dessa matéria se esgotou com a prolação do despacho saneador, não podendo, pois, ser
suscitada em momento posterior.
Improcedem, por isso, as conclusões 19ª a 27ª.

***
V. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em


julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2)

Porto, 09/01/2023

Miguel Baldaia de Morais


Jorge Miguel Seabra
Fátima Andrade
________________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Que, sob a epígrafe Noção, dispõe no seu nº 1 que “[d]oação é o contrato pelo
qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe
gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em
benefício do outro contraente”.
[3] Inconvenientes esses que, conforme tem sido enfatizado pela doutrina (cfr.,
entre outros, RITA LOBO XAVIER, in Limites à autonomia privada na disciplina das
relações patrimoniais entre cônjuges, Almedina, 2000, págs. 195 e seguintes,
PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, in Curso de Direito de Família, vol. I,
5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, págs. 538 e seguintes e PIRES DE
LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição revista e
atualizada, Coimbra Editora, págs. 493 e seguintes), se prendem com o receio de
que a doação resulte do ascendente ou influência dum dos cônjuges sobre o outro;
a comunhão de vida, de um modo geral, e o sentimento de que os bens doados
“ficam na família” podem levar um deles a beneficiar o outro irrefletidamente, tudo
com prejuízo da liberdade e espontaneidade do ato. Por outro lado, também os
interesses de terceiros, nomeadamente dos credores dos cônjuges, estarão contra
a possibilidade de eles fazerem doações um ao outro, transformando bens comuns
em bens próprios ou bens próprios em bens comuns.
[4] Sobre a excecionalidade da revogação unilateral de contratos bilaterais (como é
o caso da doação entre cônjuges) e respetiva justificação, vide ROMANO
MARTINEZ, in Da cessação do contrato, Almedina, 2005, págs. 51 e seguintes.
[5] Cfr., por todos, TARSO DOMINGUES, O financiamento societário através de
suprimentos, prestações suplementares e prestações acessórias, in Revista de
Direito Comercial (acessível em www.revistadedireitocomercial.com), págs. 849 e

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seguintes e RAUL VENTURA, in Sociedades por quotas – Comentário ao Código


das Sociedades Comerciais, vol. II, Almedina, 1989, pág. 85, onde escreve que “o
sócio quer, por um lado, ser empresário e, por outro lado, evitar o risco
empresarial; quer ser sócio e simultaneamente aparecer perante a sociedade como
um credor estranho”.
[6] Note-se que a lei (cfr. arts. 243º, nº 6 e 244º, nº 3, do CSC) não rodeia de
especiais cautelas a constituição e realização destes suprimentos que poderão
resultar de um simples contrato entre a sociedade e um sócio, sem observância de
qualquer forma especial, e sem necessidade de uma prévia deliberação dos sócios
para o efeito.
[7] In Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. III, 2ª edição,
Almedina, pág. 649.
[8] Admitindo-se, por um lado, a prova, por parte do credor social, do caráter de
permanência do empréstimo ainda que não haja decorrido um ano; por outro, a
prova, agora por parte do sócio, de que o diferimento superior a um ano se fica a
dever, nos termos do nº 4 do art. 243º, a “circunstâncias relativas a negócios
celebrados com a sociedade, independentemente da qualidade de sócio”.
[9] Ob. citada, pág. 92.
[10] In Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código
Revisto, Coimbra Editora, pág. 96.
[11] Cfr., neste sentido, LOPES DO REGO, in Comentários ao Código de Processo
Civil, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 33, onde afirma que «a audição excecional e
complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos
momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito,
só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se
repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando
não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o
processo, tomando oportunamente posição sobre ela», acrescentando, mais
adiante (pág. 34), que «não deverá “banalizar-se” a audição atípica e complementar
das partes, ao abrigo do [artigo 3º, nº 3 do Cód. Processo Civil], de modo a
entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as
partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela atuação do
preceituado no art. 3º, nº 3».
[12] A propósito do conceito de decisão-surpresa (também denominada de decisão
solitária do juiz), a jurisprudência tem considerado que a mesma ocorre se o juiz de
forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou
jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram
submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca
definidora – cfr., por todos, acórdãos do STJ de 27.09.2011 (processo nº
2005/03.0TVLSB.L1.S1) e de 4.06.2009 (processo nº 09B0523), acessíveis em
www.dgsi.pt,
[13] No qual se preceitua que “[s]e, porém, se tornar necessário o estabelecimento
de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das
circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não
acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal”.

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