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Partindo da ação da consciência no trabalho do ator, Gilberto Iele, em


O Ator como Xamã, leva sua análise até as práticas do intérprete em
sua forma relacional com o outro, ou seja, na lnteraç ão com os demais
parceiros de cena e com o público. Aí se encontra o objeto e o estado a ser
atingido pelo processo representatívo, no qual entra em jogo não apenas
o corpo interpretante, mas também as energias corporais, fazendo surgir
na cena uma consciência espaço-temporal alterada do cotidiano, em que
os estados fisico e mental unidos trabalham comportamentos, gestos e
memória amalgamados num todo.
Iele escolhe o clown como a entidade cênica que melhor faz transparecer
essa busca de uma dimensão extracotidiana pelo ator que, ao tomar
consciência de seus aspectos ridículos, os potencializa e transforma em
resultados cênicos de grande intensidade, levando o público ao riso
e à comoção, num paralelo entre as forças do êxtase na atividade de
estudos
invocação ritualística xamânica e a ação construtora de uma presença estudos
para a atuação artística por meio de um estado elownesco em cena.
Aliando rigor teórico à prática com alunos e a depoimentos de
estudos
profissionais, O Ator como Xamã torna-se uma importante contribuição
para aqueles que se interessam pelos rituais e alquimias do palco.

M.H.G . e J.G.

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o Atar como Xamã
Coleção Estudos
Dirigida por J. Guinsburg Gilberto Icle

DEDALUS - Acervo "' FFLCH

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20900099570 CONFIGURAÇÕES DA CONSCIÊNCIA
NO SUJEITO EXTRACOTIDIANO

SBD·FFLCH·USP

1111111111111111111111111111111111111111
324866

Equipe de realização - Edição de texto: Soluá S. de Almeida; Revisão de provas: Lilian


Miyoko Kumai; Sobrecapa: Sergio Kon; Produção: Ricardo Neves e Raquel Fernandes
Abranches.
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X:f-t?\--

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

lele, Gilberto
O ator como Xamã: configurações da consciência no
sujeito extracotidiano / Gilbetto Iele- São Paulo: Perspectiva,
2006, - (Estudos ; 233 / dirigida por 1 Guinsburg)

Bibliografia.
ISBN 85-273-0764-2

I. Consciência na arte 2. Teatro - História e critica Para Augusto. que tem nome de Clown e
3. Teatro - Pesquisa 4. Teatro - Teoria I. Guinsburg, J. trouxe afelicidade de existir.
II. Série. I,;. também. para Carolino e Teotónio, pelos
momentos de comoção.
06-4240 CDD-792.072

índices para catálogo sistemático:


I. Teatro: Pesquisa: Artes da representação 792.072 Ao se tomar consciência da Arte,
entende-se a natureza e o sentido da vida.
Não háfelicidade maior.

STANISLAvSKI

Direitos reservados à
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401-000 - São Paulo - SI' - Brasil
Telefax: (0--11) 3885-8388
www.editoraperspectiva.com.br
2006
Sumário

ÍNDICE DAS FOTOGRAfiAS IX

AGRADECIMENTOS XI

INTRODUÇÃO XIII
A Literatura sobre o Tema: Teatro de Pesquisa e
Pesquisa Teatral XVII
O Clown como Objeto de Estudo xx
O Problema XXIII
A Pesquisa xxv

1. As ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADiÇÕES PEDAGÓGICAS


TEATRAIS 1
Stanislávski e a Consciência da Ação Física 5
Copeau e a Via Negativa 9
O Clown 12

2. O SUJEITO EXTRACOTIDIANO 21
Um Sujeito Epistêmico 24
,
UITI Sujeito de Si 26
Indice das Fotografias
Um Sujeito de Consciência 30
Um Sujeito de Presença 31

3. o MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 35

4. A CONSCIÊNCIA EXTRACOTIDIANA 55

5. o ATOR COMO XAMÃ 67


Os Limites da Pesquisa 75
Da Ilusão da Vontade 76
Das Configurações do Inimaginável 78
Do Êxtase de Fazer ao Êxtase de Compartilhar 79
O Ator para além do Ator 80

6. BIBLIOGRAFIA ........................' 83

Por ordem de aparição:


CADERNO INICIAL

I. Karine Bulgareli e Angélica Müller em A Tonta. a Tola. a Graça


e a Absurda Palhaça. Grupo de Teatro da Fundarte. 1996. Foto:
Gilberto Iele.
2. Arlete Cunha e Marcelo Di Paula em O Ronco do Bugio. Usina
do Trabalho do Ator. 1996. Foto: João Guimarães.
3. Karine Bulgareli e Fernanda Isse em A Tonta, a Tola, a Graça e
a Absurda Palhaça. Grupo de Teatro da Fundarte. 1996. Foto:
Gilberto Iele.
4. Dejair Ferreira, Ciça Reckziegel, Celina Alcântara, Arlete Cunha
e Roberta Casanova em O Ronco do Bugio. Usina do Trabalho do
Atar. 1996. Foto: João Guimarães.
5. Alice Guimarães e Celina Alcântara (atrás Roberto Birindelli)
em Klaxon. Usina do Trabalho do Ator. 1994. Foto: Marineli
Méliga.
6. Ciça Reckziegel e Chico Machado em Mundéu, o Segredo da
Noite. Usina do Trabalho do Ator. 1998. Foto: Marineli Méliga.
x o ATaR COMO XAMÃ

CADERNO FINAL
Agradecimentos

I. Fernanda Isse em A Tonta, a Tola, a Graça e a Absurda Palhaça.


Grupo de Teatro da Fundarte. 1996. Foto: Gilberto Iele.
2. Angélica Müller, Fernanda Andrade, Fernanda Isse e Karine Bul-
gareli em A Tonta, a Tola, a Graça e a Absurda Palhaça. Grupo
de Teatro da Fundarte. 1996. Foto: Gilberto Iele.
3. Fernanda Isse, Karine Bulgareli, Angélica Müller, Fernanda An-
drade e Juliana Moscofian em Neurápira, a Febre Nervosa. Gru-
po de Teatro da Fundarte. 1995. Foto: Gilberto Iele.
4 Karine Bulgareli, Fernanda Isse, Fernanda Andrade e Angélica
Müller em A Tonta, a Tola, a Graça e a Absurda Palhaça. Grupo
de Teatro da Fundarte. 1996. Foto: Gilberto Iele.
5. Gilberto Iele em O Marinheiro da Baviera. Usina do Trabalho do
Ator. 1996. Foto: Elaine Tedesco.
6. Gilberto Iele em O Marinheiro da Baviera. Usina do Trabalho do
Ator. 1996. Foto: Raquel Carvalhal.
7. Celina Alcântara e Gilberto Iele em O Mestre Ausente. Usina do
Trabalho do Ator. 1995. Foto: Elaine Tedesco. Ao professor Dr, Fernando Becker, pela orientação rigorosa, pe-
los elogios e pelas questões instigantes, sobretudo, pelo exemplo de
8. Alice Guimarães em O Mestre Ausente. Usina do Trabalho do
professor e pesquisador.
Ator. 1995. Foto: Elaine Tedesco.
À professora Ora. Inês Alcaraz Marocco, pela co-orientação, pe-
9. Gilberto Iele e Leela Alaniz numa demonstração técnica. Usina los materiais emprestados e pelas leituras atentas.
do Trabalho do Ator. 1992. Foto: Marineli Méliga. Aos professores, Ora. Maria Lucia de Souza Barros Pupo, Ora.
Analice Outra Pillar e Dr. Luis Fernando Nunes Sá, que examinaram
10 Alunos do curso de graduação em teatro Fundarte/uERGS em En-
a proposta e a tese e lançaram questões, interpretações e sugestões
saio Clown. 2002. Foto: Vera Marlene Horn.
que foram fundamentais.
11. Lucimaura Rodrigues e Janaína Kremer em Ensaio Clown. Alu- Aos colegas de orientação, pelos comentários e pelo convívio.
nos do curso de graduação em teatro Fundarte/usnos. 2002. Foto: Aos colegas da Usina do Trabalho do Ator.
Vera Marlene Horn. Aos colegas da Fundação Municipal de Artes de Montenegro/
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em especial, aos mem-
12. Ciça Reckziegel, Leonor Melo, Gilberto Iele e Chico Machado
bros da linha de pesquisa Artes, Criação e Experiências de Si.
em Mundéu, o Segredo da Noite. Usina do Trabalho do Ator.
Aos amigos que colaboraram com sugestões e materiais que são
1998. Foto: Marineli Méliga
tantos que não posso nomeá-los.
Aos alunos da primeira turma do curso de graduação em Teatro,
da Fundação Municipal de Artes de Montenegro/Universidade Esta-
dual do Rio Grande do Sul, que aceitaram participar desta pesquisa.
Aos atores clowns profissionais que se dispuseram a conceder as
entrevistas.
XII o ATOR COMO XAMÃ
Introdução
Aos meus pais e irmãos que, por caminhos tortuosos, me ensina- .
ram a arte de pesquisar.
À Celina, pelo convívio e por parir comigo nossos filhos.
Ao Marcelo, pelo encontro feliz e pelas trocas em tantas instâncias.
Ao Augusto, simplesmente por existir.

Este trabalho de pesquisa nasceu de minha curiosidade como


professor e ator quando, ao trabalhar com a linguagem do clown e
mesmo com outras propostas de trabalho, me deparei com a intrinca-
da questão de como, apesar de experimentar estados cênicos exitosos
em sala de aula, a maioria dos alunos não conseguia transpô-los para
as apresentações públicas.
O trabalho que procuro descrever aqui não centrará sua explica-
ção sobre o que defino como "ator como xamã". Esse é, antes de tudo,
uma imagem de chegada, e não um pressuposto da pesquisa, com a
qual posso dialogar como metáfora daquilo que é o centro deste traba-
lho: as configurações da consciência no trabalho do ator.
Portanto, a idéia do xamã resume a tese principal deste estudo, na
qual discuto a diversidade de configurações que a consciência huma-
na é capaz de produzir para constituir, dar-se conta e repetir compor-
tamentos espetaculares sistematizados.
O xamã é um fenômeno religioso particular que não pode ser
atribuído a todas as formas de magia de povos primitivos. Caracte-
riza-se principalmente pelo uso de técnicas de êxtase para diferentes
funções sociais. Essas técnicas modulam a consciência do oficiante de
maneira similar ao que observei na pesquisa que apresento aqui. Exis-
te um isomorfismo entre essas técnicas de êxtase e o comportamento
extracotidiano do ator. Vou me esforçar em caracterizar o ator como
xamã, desde as primeiras considerações que produzi sobre as idéias
de consciência, das quais nossas práticas pedagógicas são herdeiras,
XIV o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO xv

até um mergulho mais aprofundado na diversidade de configurações esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscívcl c na
da consciência extracotidiana. Assim como um xamã, o ator é sujeito qual o homem assume uma posição episternológica'".
de seu trabalho e está suscetível a determinados processos, configura Na história do trabalho do ator, o conhecimento de si foi o foco
sua consciência para obter êxito em seu trabalho e transcende seu central das preocupações de artistas e pesquisadores dos comporta-
corpo e sua mente para alcançar com todo o seu ser a platéia de obser- mentos cênicos, o que não significa que a compreensão do outro ou
vadores que, em última análise, é a razão de sua ação. da criação coletiva esteja afastada desse universo de preocupações; ao
Em minha dissertação de mestrado, que deu origem ao livro contrário, o conhecimento de si no trabalho do ator sempre conduziu
Teatro e Construção de Conhecimento, já havia trabalhado sobre as para uma relação mais profunda com o outro ou com os outros, tan-
construções de estruturas mentais no trabalho de um grupo de atores, to colegas de cena e/ou grupo, quanto com o público. Sendo assim,
indicando-me com isso que os processos relativos à consciência certa- analisar a consciência no trabalho do ator significa entendê-Ia no seu
mente importavam num ponto-chave a ser perseguido para compreen- funcionamento e não como algo estático. Faz-se necessário cercar o
der como o ator é capaz de retomar um comportamento preparado no problema de forma relacional.
passado e reapresentado no aqui e agora diante do público. As neurociências têm contribuição significativa à questão da
Foi dessa forma, como já disse, que delimitei minha investiga- consciência quando articulam idéias não dicotômicas entre a porção
ção sobre as configurações da consciência. No entanto, não pretendo física do corpo e aquilo que consideram como uma experiência do
tratar a consciência segundo as tradições filosófica, psicológica ou corpo: a consciência.
sociológica, senão sob a perspectiva, ainda pouco explorada, do su- Para Maturana, a consciência é uma experiência e não um ente
jeito ator. Não me refiro apenas ao ator profissional, mas também ao como é o corpo. A proposição explicativa desse autor inclui a com-
universo dos comportamentos cênicos e espetaculares, incluindo aí preensão da consciência como uma experiência de autodistinção.
todos os comportamentos organizados com o fim de apresentar-se a Segundo ele: "A consciência não está localizada no sistema nervoso
outros sujeitos, embora esta pesquisa se concentre numa linguagem ou no corpo em geral; ela é vivenciada como uma experiência na
teatral euro-americana. autoconsciência, [..,] a consciência é vivenciada enquanto é viven-
A consciência, segundo esse ponto de vista, apresenta problemá- ciada como uma experiência'",
ticas específicas que se vinculam às discussões mais generalizadas no Sem ser contrário às idéias de Maturana, Piaget não fala pro-
âmbito das ciências e das artes. priamente em consciência, mas em "tomada de consciência" (prise
Na ciência, o termo consciência assume acepções diversas. Pode de consciencei, o que revela um caráter funcional e dinâmico. Falar
significar o estado do sistema nervoso que permite o comportamen- em tomada de consciência significa falar dos mecanismos, ou seja, de
to organizado, o conjunto das representações e crenças comuns ou a como tais manifestações humanas ou, para usar o termo de Maturana,
capacidade de avaliar criticamente uma situação. Num certo sentido, como tal experiência se constrói a partir da ação do sujeito.
perder a consciência pode significar perder os sentidos. Essa questão traz consigo alguns problemas metodológicos. O
De todas as acepções do vocábulo, podem-se destacar duas que primeiro e mais evidente é o de verificar que a consciência é um atri-
solidariamente se inter-relacionam: consciência como julgamento buto privado da mente, e só temos acesso a ela por intermédio de
moral e consciência como conhecimento que permite ao ser humano nossa própria experiência, ou por indícios nos comportamentos de ou-
conhecer seu mundo interior. A noção de consciência como conheci- tros sujeitos.
mento de si, foco de interesse desta pesquisa, não se atàsta de uma E a consciência em relação ao trabalho do ator ou aos compor-
compreensão de consciência como juízo moral, em que o sujeito pode tamentos cênicos me faz pensar, também, nesta "esquizofrenia" do
determinar o que é moralmente certo ou errado. sujeito-ator, pois ele é forma e conteúdo, instrumento e instrumen-
O tema da conscientização crítica foi objeto de trabalhos im- tista, objeto e sujeito ao mesmo tempo. O trabalho cê nico é prova
portantes de diretores-pedagogos no teatro do século xx. Os traba- da possibilidade de uma consciência superlativa em relação aos de-
lhos de Brecht e, no Brasil, de Augusto Boal, seguem essa direção, mais comportamentos humanos ou apenas uma extensão destes? Seja
notadamente quando exploram o trabalho do ator na relação com como uma consciência especial ou uma extensão desta, o corpo tem
os princípios conscientizadores das respectivas propostas estéti- obviamente um papel singular no trabalho do ator.
cas. Também Paulo Freire utilizou o termo nesse sentido dizendo
que "a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfe- I. P. Freire, Conscientização, p. 26.
ra espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma 2. II. A. Maturana, A Ontologia da Realidade, p. 232.
XVI o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO XVII

Ocorre que cabe duvidar do óbvio, pois a idéia de corpo presente está empenhado em relacionar-se com algum objeto, e o objeto nessa
nas artes cênicas tem sido difundida como sendo esse o instrumento relação causa uma mudança no organismo?'.
do ator (e do bailarino). Não obstante, a tradição cartesiana, própria Entretanto, como já disse, no caso do ator essa objetivação ocor-
de nossa compreensão, nos encaminha para compreender essa palavra re nele próprio. Uma parte de sua consciência está empenhada em
instrumento como tão somente a porção tisica e material do ator, o realizar uma ação, de forma a integrar todo o seu ser; outra, contudo,
que certamente não é suficiente para os propósitos de qualquer estu- permanece consciente da ação programada no passado e executada
do, muito menos para os que apresento aqui. no aqui e agora.
Para entendermos que o corpo não é apenas o instrumento, mas o É dessa forma que construção de conhecimento e consciência se
próprio sujeito, vale lembrar que a porção tisica é apenas parte do tra- confundem, esta última possibilitando a primeira e, de fato, exercen-
balho, e melhor seria dizermos que o ator não trabalha exclusivamen- do o papel de mecanismo para o ato de conhecer.
te com seu corpo, mas antes, trabalha sobre suas energias corporais. Segundo Maturana:
Essas energias são formas de se relacionar com o tempo e o espaço, as
como distinguimos a nós mesmos cm nosso observar, como entidades que operam
quais são corpo, mas também consciência, portanto, atividade tisica e
distintas de nossos corpos, mas associadas com a operação de nossos corpos, loca-
mental das mais refinadas e desenvolvidas que o ser humano foi capaz lizamos a nós mesmos em nossos corpos como entidades conscientes diferentes de
de produzir até agora. nossos corpos. Essas são as experiências que temos que explicar se queremos explicar
Ao falar sobre o trabalho psicofísico do ator, Stanislávski foi a consciência'.
quem primeiro supôs a idéia de que a consciência encontra um ca-
minho muito particular para desenvolver e construir mecanismos Não se trata de uma entidade, mas de uma emergência do sistema
capazes de fazer com que um sujeito ator apresente a outros su- vivo, de algo que emerge de seu funcionamento e estrutura. Falar em
jeitos um comportamento cênico sistematizado, organizado, mas consciência é sempre falar em autoconsciência e, portanto, em conhe-
distinto do comportamento cotidiano. O diretor russo, influenciado, cimento de si.
provavelmente, pelas idéias da psicanálise freudiana emergentes na Foi seguindo essa trilha e usando os dados recolhidos em meu
época, acreditava que a busca do ator era encontrar métodos cons- trabalho com a linguagem do clown que cheguei a formular algumas
cientes para alcançar o inconsciente. Grotóvski, seguindo essa pista, idéias sobre a consciência: a construção de um sujeito extracotidia-
anos mais tarde irá trabalhar sobre a idéia de Jung, de inconsciente no, como processo de diferenciação do sujeito cotidiano, conduzindo
coletivo, pesquisando a possibilidade de fazer emergir do trabalho a exploração dos mecanismos c das características do que designo
psico tisico do ator os arquétipos da coletividade. De qualquer forma, como consciência extracotidiana.
trata-se de uma compreensão em relação à própria ação. Como o ator A idéia de extracotidiano foi amplamente discutida por Barba, entre
é capaz de se dar conta, ou seja, de tomar consciência e, portanto, de outros. Assinala a diferença entre uma dimensão cotidiana, na qual todos
controlar aquilo que faz, ou o que deixa de fazer? nós vivemos, e a dimensão extracotidiana, que caracteriza a reconstrução
O fato cabal sobre a consciência no trabalho do ator, amplamente artificial da vida pelas artes do espetáculo, como veremos a seguir.
demonstrado pelas pesquisas citadas, é que a consciência possui uma Este trabalho, portanto, faz um estudo exploratório das diferentes
íntima vinculação com as emoções, e ambas, embora processos inter- configurações expressas em comportamentos cênicos em sala de aula e
nos e privados, se conectam ao corpo de maneira insubstituível. nos relatos de atores profissionais e pretende conduzir o leitor a refletir
O que o leitor pode estar se perguntando agora é: mas consciência sobre a consciência extracotidiana como experiência singular daquele su-
de quê? No caso do ator, consciência de si, consciência que possi- jeito que convencionamos chamar, no mundo euro-americano, de ator.
bilita aspectos importantes do desenvolvimento humano, como me-
mória, linguagem, razão, atenção, mas que não são formas a priori,
A LITERATURA SOBRE O TEMA: TEATRO DE PESQUISA E
pois aparentemente aspectos fundamentais da consciência parecem
PESQUISA TEATRAL
funcionar à margem dessas funções cognitivas, embora se relacio-
nando com elas. Existe, certamente, uma carência de pesquisas e estudos na área
Na mesma perspectiva de Piaget 3, Damásio diz que "a consciência teatral que possam atender, ao menos em parte, à questão da consciên-
consiste em construir um conhecimento sobre dois fatos: um organismo
4. A. R. Damásio, O Mistério da Consciência, p. 38.
3. A seguir trabalharei com algumas idéias de Jean Piaget. 5. H. R. Maturana, A Ontologia da Realidade. p. 232.
XVIII o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO XIX

cia no campo dos chamados "estudos teatrais", especificamente no tudo, a própria natureza humana no seu constante esforço de com-
trabalho do ator. preensão, no seu processo único de conhecimento. Ao estabelecer
Historicamente, esses estudos, no mundo euro-americano, por di- cientificidade a esse processo, eleva-se ele a um outro patamar de
versos caminhos, vincularam o teatro à literatura, e por isso a semióti- conhecimento e, nesse nível, as diferenças entre arte e ciência, entre
ca, a teoria da comunicação e a teoria literária e histórica foram mais razão e intuição são dificeis de serem percebidas.
pautadas do que as concepções que entendem o teatro, o trabalho do É, nesse aspecto, aliás, que a pesquisa teatral se diferencia do
ator e de forma mais ampla os comportamentos cênicos e espetacu- teatro de pesquisa. Todo fazer teatral supõe, em alguma medida, uma
lares como vinculados às artes corporais. Não obstante, diversos es- pesquisa, no sentido de coleta de dados e, às vezes, análise, para
tudos tentaram uma via alternativa à literatura como foco de análise; transformá-la em cena teatral. Em qual montagem, atores e diretores
é o caso dos estudos de Laban, Da1croze, Decroux; das pesquisas de não recolhem dados sobre os personagens, sobre o período a ser en-
encenadores importantes, como Stanislávski, Meierhold e Grotóvski; cenado, sobre o autor, entre outros? No entanto, pesquisar significa
e, ainda, de estudos contemporâneos, como a Antropologia Teatral, os muito mais. Por outro lado, existe um teatro de pesquisa. Herdeiro
Performance Studies e a Etnocenologia. sobretudo das pesquisas de Stanislávski, Grotóvski e outros, o teatro
A busca de compreender os fenômenos, ações e reações humanas de pesquisa, nos seus diferentes níveis, configura-se na relação entre
ante o esforço de dominar o mundo e a si mesmo aproxima a arte da a resolução de problemas, de formação dos atores ou de linguagem
ciência. A pesquisa em arte, até bem pouco tempo ignorada nos meios teatral e a montagem de um espetáculo ou evento teatral. O resultado,
acadêmicos, encontra na superação dos estereótipos que dicotomizam o espetáculo, é fruto de um processo investigativo que se resolve,
razão e intuição o campo propicio para seu desenvolvimento. ao menos em parte, pela encenação. Esta é, portanto, processo, tanto
Descartes marca, na cultura euro-americana, a passagem para o quanto todos os passos que a precederam, pois ela é a testagem de
conhecimento que tem na razão seu ponto de apoio. Essa razão car- alguma técnica ou poética nova ou com uma nova abordagem.
tesiana tem, na evidência, um de seus principais elementos. Somente A pesquisa teatral, ao contrário, produz um estudo e não, neces-
é verdadeiro aquilo que se pode demonstrar ou de que se tem evidên- sariamente, uma obra de arte. Sistematiza os passos empregados e
cias, pela divisão em partes, da ordenação e da enumeração. Descar- parte de uma problemática e suas respectivas hipóteses. Pode estar
tes deixa fora de seu método tudo o que não se quantifica ou não se ligada a uma obra teatral ou dramática ou à sua análise, mas não se
traduz dentro de um pensamento lógico-matemático. confunde com ela.
Esse pensamento coloca a arte como algo não passível de divi- Stanislávski, o primeiro homem de teatro no Ocidente a realizar
são, de enumeração, de ordenação, com poucas evidências e, portan- um trabalho empírico e investigativo a propósito da formação de um
to, não-ciência, ou seja, não-conhecimento. sistema explicativo e de efeito multiplicador, já afirmava que
Com essa tradição a arte esteve quase afastada da pesquisa no
não é nossa culpa que o campo das artes cênicas tenha sido tão descuidado por estu-
Brasil, de forma sistemática, pelo menos até o final da década de
diosos e tenha ficado inexplorado. Assim, podemos dispor somente das palavras que
1970. O teatro, em especial, arte da pessoalidade, estudo do eu em si- provêm do trabalho prático. Devemos nos contentar com termos cujos significados são,
tuação de comunicação com o outro, era dificilmente encarado como por assim dizer, caseiros".
objeto de pesquisa, não vinculado aos estudos literários, à medida
que o impessoal era critério absoluto na pesquisa da época. A incom- Do início do século xx até os dias atuais, trabalhos importantes
patibilidade da arte em geral com os critérios cartesianos da pesquisa contribuíram para amenizar esse quadro; é o caso das investigações
só começa a ser rompida quando a pesquisa começa a admitir o aba- de Barba, Grotóvski, Meierhold, Decroux, entre outros. No entan-
lo nas referências clássicas da objetividade, aceitando o pesquisador to, autores importantes, como Hornby ou Carlson, reconhecem o que
como observador e objeto do conhecimento produzido, e das múlti- Pradier chama de "deserto científico'", ou seja, esse afastamento dos
plas relações entre esse e o conhecimento. estudos teatrais das ciências. O próprio Pradier formula adequada-
As relações entre fazer e compreender são, antes de tudo, uma mente sua reclamação dizendo que a tradição acadêmica
preocupação das artes nos seus mais variados campos do saber. No
caso do teatro, o fazer se configura como uma verdadeira compreen-
são de si mesmo, ao passo que o compreender se faz na ação. 6. Stanislávski, apud E. Barba, La canoa de papel, p. 215.
Compreender como e por que o artista usa ou deixa de usar este 7. l-Mo Pradier, Os Estudos Teatrais ou o Deserto Científico, Repertório Teatro
ou aquele procedimento, quais as razões de sua criação é, antes de e Dança, p. 38-55.
xx o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO XXI

em vigor, nos dias atuais, orienta seus estudos com base numa linha de força que se
confunde com as ciências literárias ou que lhes é paralela. Mas é necessário precisar Burnier era professor na Universidade Estadual de Campinas,
que cada país mantém sua própria tradição. Se a Itália é conhecida por sua historiogra- onde dirigia o Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, o
fia, não ocorre o mesmo com a França c a Alemanha, onde o gosto pela teoria deu livre Lume. Foi discípulo de Etienne Decroux, o criador do mimo corpóreo
curso aos sistemas de interpretação, fomentados pela lingüística e pela psicanálise. E e um dos renovadores do trabalho do atar no século xx. O Lume pro-
isso a despeito do interesse pela ciência, manifestado por certos artistas'.
movia desde o início da década de 1990 Encontros de Clown, cursos
em forma de retiro, em que um grupo de atares (às vezes nem todos
No Brasil, professores e artistas buscaram principalmente na o eram) era iniciado ou aprofundava seu trabalho de clown. Tive o
França e nos EUA suas formações acadêmicas e, segundo Pradier, privilégio de participar de um desses retiros em 1991. Ali nasceu Eu-
mesmo nos EUA "as Performance Studies norte-americanas [também] lália, meu clown, ou ainda, eu em situação de clown.
não alcançaram o limiar, a porta que conduz para além das "humani- Antes disso havia trabalhado com noções de cômico no curso de
dades", em direção dos espaços onde obram os que se consagram às Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde
ciências da vida'". me graduei, principalmente nas aulas da professora Maria Helena
É nessa medida que a questão da consciência pensada a partir da Lopes, mas não havia trabalhado com o nariz vermelho. Depois do
idéia de vida foi pouco explorada, e sobre ela temos poucas informa- período de iniciação continuei fazendo experiências e tentativas, che-
ções. Mas que outra preocupação tem um atar, senão a de poder rea- gando a fazer diversas performances, passeios, happenings e esque-
lizar um trabalho que seja construído de tal forma que em suas ações tes de clown, quase sempre sozinho. Em 1995, fiz uma participação
fluam uma vida contínua e plena? De fato, Barba formula o problema especial como clown em um dos espetáculos do Lume: Mixórdia em
do trabalho do atar, na sua Antropologia Teatral, destacando as cons-
truções subjacentes em nível pré-expressivo, ou seja, o funcionamen-
I~ Marcha Ré Menor.
Desde 1992 trabalho como diretor do Núcleo de Investigação
to do bios-cénico": Usina do Trabalho do Atar, no qual também fiz diversas intervenções
e experiências no âmbito do clown. O trabalho de improvisação desse
o CLOWNCOMO OBJETO DE ESTUDO grupo foi objeto de minha dissertação de mestrado I I.
Em 1993 ingressei como professor de teatro na Fundação Munici-
Este não é um trabalho sobre a linguagem do clown. Contudo, de pal de Artes de Montenegro, a Fundarte, e iniciei ali o trabalho de clown
todos os trabalhos práticos como atar e como professor de teatro que com os alunos; primeiro com noções sobre o cômico, assunto que mui-
já experimentei, o clown me chama a atenção sob o ponto de vista da to interessa ajovens e adolescentes, depois exercitando a construção do
consciência. Por se tratar de uma tomada de consciência dos aspectos uso dos narizes e, por fim, montando espetáculos com os alunos.
ridículos do atar pelo próprio sujeito, para deles extrair resultados Essa última experiência foi decisiva para a elaboração desta pes-
cênicos que levem o público ao riso ou à comoção, o clown é um tra- quisa, pois, no cantata cotidiano com os alunos em situação de clown,
balho exemplar para a compreensão dos mecanismos da consciência surgiram meus primeiros questionamentos sobre a tomada de consciên-
no trabalho do atar, e por esse motivo escolhi trabalhar com ele, para cia no processo de edificação do clown.
verificar essa consciência extracotidiana. Foi durante os anos em que trabalhei o clown com os alunos da
Ainda lembro a primeira vez que vi um clown. Era criança e fui Fundarte que estruturei e organizei uma proposta pessoal de iniciação
ao circo com meus pais. Todos riam muito, no entanto, achei tudo através do cômico, quando pensei de forma mais sistemática as ques-
muito comovente. O palhaço vestido de vermelho recebia pancadas e tões sobre a ação clownesca.
bofetões, mas não reagia. Uma tristeza profunda parecia entranhada Ao pensar a ação cômica, logo surge a imagem da poesia. Não
em cada ação sua. uma poesia de palavras, mas uma poesia de ações. E se a poesia é
Anos mais tarde, fui iniciado nas artes clownescas por um ho- uma seleção metafórica que toca e encanta, então, a ação clownesca,
mem muito engraçado. Chamava-se Luís Otávio Burnier, tinha olhos plena e construída a partir da experiência profunda, é uma poesia
grandes, traços angulosos e um sorriso farto; cra mímico e clown. em ação, uma metáfora do homem como homem, perdido em sua
humanidade.
Existe, portanto, um sentido estético na pedagogia do clown:
8. Idem, p.44. aquilo que o liga à educação. Essa ligação se define no caráter lúdico
9. Idem, ibidem.
10. E. Barba; N. Savarese, A Arte Secreta do Ator.
II. Teatro e Construção de Conhecimento.
XXII o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO XXIII

do clown, à suposição de que haja um equilibrio em ação entre um O PROBLEMA


plano ou dimensão interior e outro exterior e, por fim, um pleno sim-
Meu objeto de estudo é o trabalho do ator, e é sobre esse conteú-
bolismo nas ações c1ownescas. Ora, ludicidade, equilibrio em ação e
do que pretendo me debruçar. Cabe, então, pensar uma epistemologia
simbolismo são aspectos inerentes ao processo ensino-aprendizagem.
do ator"; ou seja, um estudo sobre a consciência como conhecimento
Essas características, portanto, merecem ser destacadas, dada a extre-
no trabalho do ator.
ma importância de sua contribuição para o universo de nossos saberes
Ao conceber a idéia de uma epistemologia do ator, suponho a
em arte e educação.
construção de uma problemática que une a questão da construção de
Trabalhar com o clown envolve essa poética de tornar conscien-
conhecimento aos estados gerais de representação no trabalho do ator.
tes as características ridículas para delas tomar partido, acionando
O estudo desses estados de representação cênica supõe a formu-
diante do público um estado c1ownesco, mais que uma ação des-
lação de dois planos: o primeiro, definido como cotidiano, caracteri-
sa natureza. O clown, como apresento aqui, possui uma ação que
zado pela construção do sujeito em relação à interação com o meio
é aparentemente mínima e se expressa no seu estado psicofísico.
(tisico, emocional, social etc.), em que articula uma primeira natureza
Portanto, o ator clown precisa de uma consciência apurada para um
humana, formas de pensar e agir que partem do princípio da sobrevi-
processo que se inicia na identificação de suas próprias fragilidades
vência da espécie, o menor esforço para o maior resultado; o segundo
como pessoa e naquilo que lhe é ridículo, orelhas grandes ou medo
também se constrói na interação com esse meio, contudo, define-se
de baratas, por exemplo. Processa-se num caminho complexo de
como um comportamento extracotidiano, articulado e edificado por
experimentações, no qual a percepção tem papel preponderante e,
uma "segunda natureza"!' de comportamento, no qual leis fictícias
auxiliada por outros mecanismos cognitivos, é capaz de construir
agem segundo o princípio do maior esforço para o menor resultado.
repertórios de estados e ações ridículas, para num último momento
O problema que apresenta tal confronto é, então, o de saber como
serem acionados na presença do público.
e por quais mecanismos essa segunda natureza se constrói. Esse pro-
O estado ridículo é extremamente dinâmico, pois lida com uma
blema mais geral me conduz, também, para outros de especificidade
complexidade de energias vivas e pulsantes. No entanto, o que dife-
mais clara, mas igualmente contundentes. É o caso de saber sobre as
rencia um sujeito qualquer de um ator, pois ambos passam por estados
relações, isomorfas ou não, entre a primeira e essa segunda natureza
ridículos no cotidiano, é que o ator é capaz de elevar esse estado a um
de comportamento. Da mesma forma, caberia indagar sobre a gênese
patamar extracotidiano, tomando para si esse estado ridículo, genera-
das estruturas de conhecimento concernentes a essa segunda natureza.
lizando-o em outras ações e reproduzindo-o, para reapresentá-Io em
Teriam elas funcionamento e estruturação semelhantes às estruturas
outro momento, conseguindo um efeito semelhante ao de quando o
conquistadas no cotidiano?
estado foi criado. Portanto, o estado precisa se tornar transformação,
Piaget contribui sobremaneira para essa questão, pois, ao elabo-
e a condição dessa transformação é a sua apropriação.
rar uma epistemologia genética, edificou um quadro teórico com base
Pude perceber, na prática, que "cristalizar", ou seja, deixar que
empírica (mas não empirista) da gênese dos conhecimentos construí-
a transformação permaneça em estado estático, confere um resultado
dos. E é preciso frisar que a palavra "genética" refere-se à "gênese"
nada eficaz ao trabalho c1ownesco. Ao contrário, conseguir que esse
(série de causas que concorreram para a formação de alguma coisa),
estado inicial permaneça em constante transformação, tanto no espa-
e não à "gene" (elemento relacionado aos caracteres hereditários), es-
ço quanto no tempo, é um dos caminhos mais interessantes para uma
tudo que filósofos e cientistas desconheciam até então, pois contenta-
ação que transforma o sujeito que a realiza e a percepção dos outros
vam-se tão somente com os estados ulteriores de conhecimento.
sobre ele.
Compreender a própria ação, tornar consciente, controlar o
Depois de exercitar com meus alunos o picadeiro, exercício prin-
fluxo de vida, o sistema complexo de energias capazes de atrair a
cipal da iniciação clownesca que aprendi com Burnier, dificilmente
algum dos sujeitos não experimenta o estado ideal para seu clown: 12. Crio o termo epistemologia do ator em paráfrase aos estudos psicogenéticos,
o ridículo. Contudo, o problema prático que- todo clown enfrenta é inspirados em Piaget, tentando elevar os processos sociocognitivos do ato r ao patamar
como manter esse estado, como se apropriar dele, manipulá-lo e ser de problemática científica. . .
capaz de acioná-lo noutro momento. Eis um caminho difícil no qual a 13. Termo usado principalmente por Eugenio Barba. De modo geral, diferencia-
se de uma primeira natureza, na qual, imersos na cultura que nos envolve, const~uímos
consciência tem um papel vital, como veremos adiante. modos de ser cotidianos. A segunda natureza, pela prática cotidiana de determinados
elementos, se reencontra naturalidade, fazendo parecer que a extrema artificialidade
à

é algo natural c orgânico.


XXIV o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO xxv
atenção do público e criar universos cenicamente fictícios é o obje- que realiza. Essa dualidade de pensar, de agir e de tomar consciência
tivo desta epistemologia do atar. Como é possível erepetição das de sua ação e de si próprio configura um caso particular de consciên-
energias das ações físicas, este re-apresentar das ações? Como se cia: uma "consciência extracotidiana",
torna compreensível ao atar o mecanismo que, de forma consciente, Como já disse, o problema deste trabalho foi o de verificar a
possibilita que ele, pela sua vontade, acione um estado determina- questão da consciência no caminho entre a primeira elaboração do
do não pelo ânimo presente, mas pela construção passada de ações atar e a re-apresentação das ações ao espectador (terceira elaboração),
físicas? Eis o problema que este trabalho pretende enfrentar: como usando o caso particular do clown como objeto dessa verificação.
age a consciência nesse caminho entre as primeiras criações e a re- Nas sessões de trabalho que desenvolvo é costume se fazer
apresentação? um momento dialógico com o grupo, em que são discutidos os as-
A consciência tem um papel central nesse processo. O atar im- pectos gerais do funcionamento do trabalho. Falar sobre o próprio
provisa e, na sua ação, já existe um conhecimento complexo que só trabalho parece ser mesmo uma tendência dos alunos e prova de
terá validade e eficiência se puder ser repetido, reproduzido. A repro- seu interesse.
dução nunca é algo resgatado do passado em todos os seus termos, ela Mas o discurso oral do atar sobre seu processo de trabalho in-
é uma reconstrução, pois é uma criação no presente propiciada pela fluencia na apropriação dos mecanismos de suas ações, ou são apenas
história das criações das ações no passado. É a consciência em seus descrições dos passos realizados? Qual a importância do raciocínio
diferentes níveis que assegura ao atar a capacidade de recriar estados neste processo? Como funcionam outros mecanismos cognitivos,
energéticos específicos. como a percepção e a interação com os outros atares? A consciência
Nesse caminho, podemos vislumbrar, ao menos, três momentos: está no que se faz ou no que se define oralmente? Saber fazer e saber
uma primeira elaboração, que consiste na preparação do atar, um repetir é prova de consciência do processo? Quando o atar é conscien-
aprendizado anterior ou concomitante à criação de alguma obra, mas te de seu processo, adquire capacidade de manter melhor as qualida-
que não se confunde com ela, pois constrói as habilidades histriônicas des que deseja entre a primeira e a terceira elaboração criativa?
mínimas, como, por exemplo, falar de modo articulado, agir com todo Eis algumas perguntas com as quais me deparei e que originaram
o corpo e não somente com as extremidades. Em especial, constrói tantas outras. Esta pesquisa, certamente, não as responde, mas espe-
uma presença cênica, a capacidade de acionar um estado tal que capte ro que possa oferecer alguma contribuição ao universo de saber em
e mantenha a atenção do público. Quase sempre envolve a criação torno dessas especificidades. Poder perguntar de maneiras distintas
de algum material expressivo, uma primeira seqüência de ações ou a sobre as velhas questões vale mais a pena do que respondê-las em
experimentação de um estado energético específico que vincule algu- definitivo.
ma idéia, um personagem, um tipo ou uma situação em estado bruto.
Uma segunda elaboração pode ser caracterizada como a preparação
A PESQUISA
da obra ou os ensaios, na qual atares (e normalmente um diretor) ope-
ram uma criação sobre algo específico, extraído da primeira elabo- O que o leitor encontrará nas páginas seguintes é o relatório
ração, quase sempre anexando-se um texto, uma idéia, um roteiro. de uma pesquisa realizada com dois grupos de sujeitos. O primeiro
Nesse momento a repetição é enfatizada, pois através dela e de suas foi formado por dezesseis alunos do curso de graduação em teatro,
respectivas significações os atares memorizam as ações propostas. E, da Fundarte/usnos (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul).
por fim, chega-se a uma terceira elaboração: a apresentação. Aquilo Trabalhei com eles numa oficina de iniciação ao clown durante os
que foi conquistado no período de preparações do atar e da obra deve meses de setembro a dezembro de 2002, num total aproximado de
ser agora refeito para a platéia, num momento determinado, num es- cem horas-aula de trabalho. Os dados referentes a esse trabalho foram
paço específico, não importando se o atar tem ou não disposição, dor coletados de três formas: em anotações num caderno de notas, no
ou se algo o importuna. qual eu ia registrando os acontecimentos e minhas impressões sobre o
Ocorre, aí, um trabalho de transferência ou de repetição de esta- desenvolvimento do trabalho; em entrevistas individuais que realizei
dos psicofísicos, experimentados e manipulados em situação de pre- com alguns deles; e em entrevistas coletivas realizadas com todo o
paração, na presença do público. Consciente de todos os aspectos do grupo em três momentos distintos do trabalho. Registrei em vídeo as
ambiente, do tempo e das circunstâncias, o atar deve manipular sua entrevistas e as transcrevi, o que gerou um enorme volume de mate-
consciência para fazer parecer que realiza aquela ação pela primeira rial. Assim, fui obrigado a restringir o material tendo que escolher o
vez, ocupando sua mente (mas não toda sua consciência) com a ação trajeto de alguns desses alunos para focalizar a pesquisa.
XXVI o ATOR COMO XAMÃ INTRODUÇÃO XXVII

o segundo grupo foi constituído de quatro entrevistas com atores um estudo exploratório, constituir significados a partir do confronto
clowns profissionais. Dessas, a primeira considerei uma entrevista-pi-
com a experiência, trabalhando e entrevistando alunos e clowns pro-
loto, tendo sido a base para a formulação das questões das outras três;
fissionais. Essa exploração está, certamente, atravessada pela minha
essas últimas, então, são as que efetivamente utilizei para analisar e
experiência como professor e nela encontra respaldo para seguir e,
estão mencionadas neste trabalho.
ao mesmo tempo, elevá-la a outro nível de apropriação. Assim, seus
Os sujeitos de ambos os grupos foram identificados por letras do
efeitos multiplicadores são tão somente contribuições para a reflexão,
alfabeto e, embora o primeiro grupo fosse formado por sete homens distanciando-se completamente de receitas ou métodos.
e nove mulheres, optei por transcrever e me referir a todos os sujeitos
no masculino para evitar a sua identificação.
O uso desse material no texto que se segue está destacado, para
que o leitor prontamente identifique os dados como coletados dos
sujeitos.
A análise desses dados ocorreu por meio do que designo como re-
lação de implicação, na qual procurei identificar algumas recorrências
nos materiais e, a partir daí, explorar essas recorrências como temas
para estudo. Dessa forma, os temas aqui encontrados e seus desdobra-
mentos foram extraídos das entrevistas com os dois grupos e de minhas
anotações durante o trabalho com o primeiro grupo.
Focalizando a questão da consciência no trabalho do atar, em
especial no trabalho com o clown, inicio pensando no primeiro ca-
pítulo, sobre a forma como estàmos acostumados a pensar a cons-
ciência a partir das tradições pedagógicas teatrais, ora como razão
e ora como uma minimização da razão. E nesse mesmo capítulo
descrevo as idéias sobre o clown para localizar o leitor no trabalho
que realizei.
A partir daí, inicio a discussão dos dados que coletei e analisei,
expondo-os no segundo capítulo para defender a idéia de uma conti-
nuidade funcional e uma ruptura estrutural na constituição do sujeito
extracotidiano.
No terceiro capítulo, procuro trabalhar a idéia do mecanismo da
consciência, amparado em Piaget, que mostra as relações entre fazer
e compreender, a tomada de consciência como uma construção e os
movimentos da periferia indiferenciada até regiões mais centrais do
sujeito e do objeto de conhecimento, como explicação para o meca-
nismo da consciência.
Depois, apresento as idéias que reúnem diferentes configurações
e aspectos da consciência no trabalho do atar que me fizeram cunhar o
termo consciência extracotidiana. Essas idéias conduzem a um quin-
to e último capítulo, no qual discuto as relações entre o trabalho do
atar e o xamanismo como metáfora das configurações singulares da
consciência assumidas no trabalho do atar.
Não é senão na condição de um praticante que apresento essa
reflexão com o objetivo de melhor poder contribuir para a discussão
do trabalho do ator e suas implicações para a educação. No entanto,
essa reflexão não objetiva descobrir verdades sobre o atar, mas, como
1. As Abordagens da
Consciência nas Tradições
Pedagógicas Teatrais

Antes de iniciar a análise dos dados que recolhi nesta pesquisa


e as reflexões acerca da consciência extracotidiana, imagino que ca-
beria localizar o leitor em relação às contribuições que as tradições
pedagógicas teatrais legaram a nós, fazedores de teatro, sob o ponto
de vista da consciência e como a temos entendido. Não se trata de
realizar uma historiografia, mas juntar alguns elementos que possam
ajudar-nos a pensar como a consciência tem sido considerada entre
nós, pessoas de teatro.
As relações entre pedagogia e teatro são mais vinculadas entre
si do que aparentam. A pedagogia teatral não é apenas as formas e os
conseqüentes conteúdos do ensino teatral em geral ou da preparação
e formação do ator em particular. Antes de tudo, a pedagogia teatral
é a busca sempre renovada de construção em níveis cada vez mais
elevados de desenvolvimento teatral.
Por tradições pedagógicas, dentro do campo do teatro, entendo
o conjunto de sistemas, técnicas, poéticas e éticas que artistas e gru-
pos engendraram para a formação, manutenção e desenvolvimento
de diferentes estéticas teatrais. Assim, uma tradição pedagógica se
configura num conjunto de práticas e idéias teóricas que formam uma
unidade de sentido, no qual os artistas cênicos se unem para melhorar,
qualificar ou simplesmente construir seus respectivos trabalhos.
Essas tradições, em geral, não nascem somente da necessidade de
se transmitirem os saberes teatrais de determinado estilo ou técnica
aos iniciantes, mas também, por vezes, trata-se de questionar dctcrmi-
o ATaR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADiÇÕES PEDAGÓGICAS...

nados modos e saberes estabelecidos, sendo, nesse caso, oriundos da As situações pedagógicas estão ao lado de praticamente todas
necessidade de busca e pesquisa. A situação pedagógica com atores as tradições que resistiram ao tempo e chegaram até nós em práticas e
veteranos ou iniciantes é sempre local de mergulho nos problemas teorias teatrais. O fazer teatral no século xx parece ter sido muito mais
teatrais. Assim, no século xx, vimos os grandes homens de teatro do que construir espetáculos e apresentá-los ao público, foi também o
sempre vinculados à pedagogia. As tradições teatrais mais codifica- longo processo de edificação de formas de agir e pensar o teatro sobre
das e elaboradas trazem em si, quase como regra, uma maneira única bases sempre renovadas.
e particular de suscitar no iniciante um caminho semelhante ou cons- Nesse processo de agir e pensar, a pedagogia foi uma das formas
truído sobre bases de sentido semelhante as dos mestres, uma maneira mais usadas para justificar o teatro perante a sociedade, para equi-
de dar continuidade, uma pedagogia. Mas antes de se falar em pura pará-lo à categoria de cultura e para compartilhá-lo. Para Cruciani a
e simples transmissão, o que vemos nessas tradições é uma dialética pedagogia teatral "é uma cultura que se aglutina em torno do fazer
entre os conhecimentos instituídos e novas formas de trabalho sobre teatral como um anel; a circundar com maior capacidade de duração
esses mesmos princípios geradores. E isso não é um privilégio apenas e de penetração do que os frágeis e temporâneos objetos [os espetá-
das tradições pedagógicas teatrais. Todas as tradições vivas, folclóri- culos]'", Continuidade e disciplina são qualidades do processo que
cas ou não, se renovam nesse tipo de movimento em que o velho vai encontram na pedagogia toda a situação propícia para seu desenvol-
dando lugar ao novo sem, contudo, ser negado de todo, ao contrário, vimento. A pedagogia teatral é o cerne sobre o qual se formam dife-
sendo a base para novas formas, rentes culturas teatrais.
No século xx as tradições pedagógicas teatrais euro-americanas Essas culturas teatrais, no século xx, foram formadas quase sem-
se desenvolveram ao lado da própria arte do teatro, sendo, na maioria pre sobre bases estéticas bastante diversas, contudo, sobre princípios
dos casos, a mola-mestra que impulsionou este último a necessida- semelhantes. Formar grupos separados, verdadeiras comunidades, foi
des e saberes novos. Segundo Cruciani, "se de um lado a escola é o um ideal altamente difundido nesse século; além disso, a visão inte-
compromisso com o existente (o que é a realidade do teatro), doutro gradora contra as especializações extremadas e a dinâmica antiga de
é o lugar onde a utopia assume formas concretas'", Foi na situação um mestre para cada discípulo integram o rol de elaboração da maior
pedagógica que Stanislávski e Copeau lançaram as bases de suas artes, parte das escolas teatrais do século xx no Ocidente. O jogo, a impro-
puderam desenvolvê-las e perpetuá-las sem, contudo, impô-las como visação e a atenção ao uso do corpo são características que também
método rígido e caminho único. Esses dois mestres, fundadores de duas unem diversas tradições numa mesma direção.
das mais importantes tradições teatrais do século xx, tomaram conhe- A idéia da escola de teatro enquanto projeto teatral foi alta-
cidas as suas pedagogias, muito mais que seus espetáculos. A própria mente elaborada, inclusive chegando Copeau a dizer que "escola
natureza do teatro, efêmero e incipiente, inserido apenas no tempo, e teatro são a mesma coisa'". Mas as dificuldades, entre muitas,
mais que no espaço, não permite um legado senão pela rica e infinita para concebermos a existência de uma escola de teatro enquanto
possibilidade de recursos que os sistemas pedagógicos constroem para projeto teatral se resume na idéia não contraditória, na qual se per-
dar origem e continuidade às suas conseqüentes tradições. cebe a existência de valores, muito mais do que de conhecimentos
A pedagogia teatral é, na verdade, maior que o próprio teatro. específicos. Os princípios éticos que consolidavam e agruparam
Pois toda arte teatral supõe, antes de tudo, um processo de aprendiza- diferentes artistas cênicos eram mais fortes do que as técnicas que
gem. Esse processo não se resume apenas a uma simples transmissão eles desenvolviam.
de conhecimentos de uma geração à outra, mas em situações íntimas A busca de leis para a criação artística é sempre uma necessidade
de relações entre gerações, nas quais se constrói, num duplo caminho que guia o fazer numa direção sempre cheia de percalços. As expli-
de conhecimento e descoberta de novidades. cações teóricas são mais no sentido da justificação dos processos ou
O território fértil do teatro no século xx perpassou ateliês, oficinas, dos seus aspectos filosóficos do que um auxílio prático ao artista. As
laboratórios e escolas. Stanislávski fundou diversos ateliês, Copeau foi grandes contribuições, contudo, da escola de teatro no século passado
responsável por um marco na história teatral desse século, a escola do são justamente no campo da prática, na tênue, mas importante, linha
Vieux Colombier. Assim foram as escolas de Meierhold e o Actor's que determina alguns princípios para o trabalho prático, ainda que
Studio, o laboratório de Grotóvski e a escola itinerante de Barba.
2. Idem, p. 56.
I. F. Cruciani, II teatro pedagogia dei novecento, Registi pedagoghi e comunità 3. Copcau, apud F. Cruciani, Registi pedagoghi e comunita 'teatrali nel novcccn-
teatrali nel novecento, p.57. lo. r.57.
4 o ATOR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADiÇÕES PEDAGÓGICAS ...

esses estejam longe de formarem leis precisas e fechadas. É o caso STANISLÁ VSKI E A CONSCIÊNCIA DA AÇÃO FÍSICA
do trabalho com máscaras de Copeau, do Sistema de Stanislávski, das
É provável que nenhum outro trabalho tenha influenciado tanto o
pesquisas de Grotóvski ou dos estudos de Barba.
teatro euro-americano do século xx quanto o de Stanislávski. É dificil
É por isso que Cruciani diz que "mais do que pedagogia teatral é
encontrar no Ocidente escola de teatro que não use ao menos como
talvez útil e correto falar de diretores-pedagogos'", São esses homens
referência os seus escritos. Não só aquilo que escreveu, mas a tradi-
que formam, no século xx, o grupo de profissionais que engendram a
ção prática de seu sistema, chegou viva até nós por distintos caminhos
busca muito contemporânea do "espírito de grupo, de hábitos de vida
e discípulos.
favoráveis ao oficio, uma atmosfera de formação intelectual, moral e
Pode-se dizer que boa parte da base do trabalho teatral no Oci-
técnica, uma disciplina'" .
dente é de cunho stanislavskiano. Essa influência se inicia com a emi-
Esses homens romperam com os vínculos comerciais, com o pro-
gração de Richard Bolelávski da Rússia para os Estados Unidos. Este
duto (espetáculo) como objetivo do processo e com o fazer teatral
havia trabalhado com Stanislávski de 1906 a 1910, e nesse momento
restrito às relações profissionais. Mais que tudo isso, a tradição dos
o mestre russo articulava sua Psicotécnica. No entanto, Stanislávski
diretores-pedagogos instaurou ou restituiu a arte ao teatro, uma bus-
continua sua investigação até 1938, chegando a desenvolver esses pri-
ca para justificar de forma mais profunda e humana o resultado, por
meiros resultados em bases bastante distintas.
meio de um processo que o engloba, além de objetivá-lo. Por esse
Bolelávski trabalha com pessoas influentes, como Lee Stras-
motivo Cruciani continua, dizendo que a pedagogia teatral
berger, que disseminam o trabalho stanislavskiano na visão de Bo-
explicita a busca infinita de encontrar concretude, restituindo à humanidade o seu
lelávski. Somados a isso, os trabalhos escritos de Stanislávski são
ser, resultado de uma multiplicidade: dentro do ator, o homem; dentro do ofício, as traduzidos para o inglês com algumas modificações importantes. As
culturas; dentro do Teatro, a teatralidade; dentro do texto, a representação ou a cena, palavras emoção e inconsciente, que não existiam no original em
o artista", russo, foram acrescentadas, só para se ter um exemplo. Isso implica,
provavelmente, uma mudança significativa das intenções originais,
Mas como essas tradições chegaram até nós? Como podemos su- uma vez que, na leitura americana, a emoção é a peça fundamental
por uma continuidade entre as idéias desses instauradores de tradições do sistema stanislavskiano e a procura por emoções escondidas no
e nossa prática hoje? De que somos herdeiros desses fazeres e de suas inconsciente, o principal caminho do ator.
idéias não há dúvida, no entanto, não podemos encontrar uma solução A grande influência que se destaca no Brasil é a da primeira parte
de continuidade histórica entre nomes como Stanislávski e Copeau e do trabalho de Stanislávski, reinterpretada pela visão americana. So-
o trabalho desenvolvido aqui no sul do Brasil no início do século XXI. mente muitos anos depois, o trabalho ulterior de Stanislávski vem a
Ora, foi por caminhos tão tortuosos quanto a diversidade humana que ser conhecido, principalmente por escolas e professores europeus.
essas idéias e suas respectivas práticas chegaram até nós - muito mais De qualquer forma, quer seja pela Psicotécnica ou por seus tra-
numa reelaboração pessoal do que numa prática imitativa e rígida das balhos ulteriores, resumidos no Método das Ações Físicas, o sistema
idéias e práticas de outrora. stanislavskiano se configurou como um modo importante de pensar
O que interessa, então, e pode contribuir para a compreensão e fazer teatro e, em especial, numa tradição pedagógica amplamente
do problema central deste trabalho, nessa grande trajetória de difundida, mesmo que nem sempre essa tradição se pareça com as
tradições, são as distintas construções que esses diretores-peda- supostas intenções do autor, a não ser em alguns poucos pontos.
gogos realizaram como caminho, em que a consciência foi to- O marco principal que a tradição stanislavskiana encerra e abre
mada como processo de criação, tanto deles próprios quanto de ao mesmo tempo é a instauração da novidade, em contrapartida à re-
seus alunos-atores. É por isso que se podem ver abaixo alguns produção de modelos prontos. Dentro do pensamento modernista do
exemplos mais concretos dessas idéias de consciência nas tradi- início do século xx, Stanislávski busca a criação de algo que se con-
ções pedagógicas teatrais. trapõe à tradição do teatro até o século XIX. O teatro em seu tempo
consagra os grandes "monstros": atores que expõem sua personalida-
de muito mais que seu trabalho, num teatro de mero divertimento. O
4. F. Cruciani, II teatro pedagogia dei novecento, Registi pedagoghi e com uni/à aprendizado do ator euro-americano, até Stanislávski, de modo geral,
teatrali nel novecento, p.64. baseava-se na imitação do mestre. O aluno-ator aprendia com um ator
5. Idem, p.64. mais velho, que lhe transmitia os passos, os textos c as formas de exe-
6. Idem, p.64-65.
6 o ATOR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADiÇÕES PEDAGÓGICAS ...

cutá-Ios passo a passo. Stanislávski, preocupado com a vida criadora Assim, as improvisações dos atores durante o processo de preparação
do ator, usa a improvisação para ter um acesso consciente ao mundo da obra devem manter uma coerência em relação aos indícios que o
inconsciente do ator, com o objetivo de lhe conferir organicidade. texto original contém.
O primeiro momento do trabalho stanislavskiano, no entanto, se O Método das Ações Físicas consiste numa seqüência de impro-
desenvolve do exterior para o interior. Ele propunha uma gramática visações dividida, basicamente, em três partes: um reconhecimento
exterior, fisica, uma educação do gesto, dos movimentos, uma ação da ação da peça em que o ator estabelece a fábula e os fatos motores;
sobre o comportamento. o estudo das circunstâncias da peça (circunstâncias dadas e imagina-
Embora, para Stanislávski, a improvisação estivesse muito perto das); e a experimentação nos acontecimentos da peça.
da tentativa de reprodução do cotidiano, para os efeitos necessários Stanislávski trabalha com a idéia de superobjetivo, que orienta
ao naturalismo? dominante na época, pela primeira vez, sistematiza-se o trabalho do ator, e sobre partituras de ações, ou seja, sobre seqüên-
e valoriza-se a necessidade de um contato entre um universo inte- cias de ações tisicas memorizadas pelos atores, a partir de sua própria
rior e um exterior no trabalho do ator, em detrimento da pura forma, criação e que possuem início, meio e fim, respondendo aos indícios
exagerada e mecânica, que a maioria dos grandes atores do final do encontrados no texto do universo da personagem. Para Sonia Moore
século XIX e início do século xx usavam, principalmente nos teatros "o superobjetivo e o princípio da linha de ações são os pontos aos
de variedades, nas farsas e melodramas. quais a construção do personagem está subordinada. Cada elemento
Stanislávski passa a usar a improvisação como método de tra- do Sistema de Stanislávski está subordinado a eles'".
balho para o ator. Mesmo na Psicotécnica, baseada na idéia de viver Assim que conclui a improvisação, o ator deve avaliá-la questio-
o papel, e na Memória Afetiva usa a improvisação como recurso de nando o que fez, por que fez e o que o levou a fazê-lo. Existe nesse
construção ou, ainda, melhor dizendo, de reconstrução da persona- processo uma tentativa de resolução pela razão. Toda ação se justifica
gem. O Método das Ações Físicas, por outro lado, baseia-se comple- por impulsos interiores; o ator compara seus impulsos com a coerên-
tamente na improvisação, abolindo quase inteiramente o trabalho de cia da personagem, e essa identificação seria responsável pela verda-
mesa", bastante presente no trabalho anterior de Stanislávski. de cênica. Stanislávski acreditava, ainda, existir um comportamento
O mestre russo, como um diretor-pedagogo inserido no universo elementar que seria comum a todo ser humano, o qual ele denominava
do real-naturalismo, acredita no ator como um mediador da realidade, de processos orgânicos. Só depois de passar por esse nível primeiro, o
a qual passava, segundo ele, por uma reflexão no trabalho do ator. Foi diretor fazia interferências para liberar novos conhecimentos da peça.
graças à psicologia profunda do texto de Tchékhov que ele encontra Cada detalhe é introduzido ao ator com a seguinte pergunta: "Se você
um caminho para o trabalho do ator: viver o natural. Supremo na obra estivesse nesta circunstância, o que faria?". O trabalho de analogia,
dramática, o ator deve ser sincero no seu comportamento, manifestar então, é uma das bases de seu método, pois o ato r não só experimenta
suas forças criadoras, adotar um comportamento "normal", dominar as circunstâncias do personagem, como também imagina as circuns-
sua natureza psicofisica por meio do treinamento, e isso é a manifes- tâncias que o fariam agir como o personagem.
tação das forças criadoras. Enfim, o sistema stanislavskiano supõe uma tentativa de articula-
O determinismo social de Stanislávski, deixando em seu siste- ção do inconsciente por métodos conscientes, pautada no alinhamen-
ma transparecer que as circunstâncias determinam o comportamen- to de uma coerência entre a ação improvisada pelo ator e a proposta
to, estabelece uma série de improvisações a partir das circunstâncias dramatúrgica.
da trama da peça. No trabalho ulterior na cronologia de Stanislávski, Essa dinâmica de avaliação do processo de improvisação, de es-
chamado de Método das Ações Físicas, repousa o trabalho do ator tudo da coerência da ação a partir da proposta dada e a ênfase na
sobre a ação física e não mais sobre as emoções. circunstância como desencadeadora de toda ação resumem de modo
Ele não chega a se desligar do texto prevíamente escrito por um geral esse sistema e vão influenciar o trabalho do professor de teatro
autor para desenvolver o trabalho do ator. Para ele, este é um intérprete e/ou dos diretores-pedagogos de maneira definitiva.
de textos, revelando ao público os conteúdos e intenções do autor. No Brasil, um fato vai gerar um desenvolvimento acentuado
nessa direção: a tradução de lmprovisation for the Theater, de Viola
7. Stanislávski se interessou bastante, também, pelo simbolismo. Spolin, pela professora Ingrid Donnien Koudela, da Universidade de
8. Por trabalho de mesa, compreendo as sessões de trabalho em que atares e di-
São Paulo.
retor discutem os detalhes do texto a ser montado, sem, contudo, realizar exercícios
de improvisação prática. Na primeira parte dos estudos de Stanislávski, esse trabalho
parecia ter importância fundamental em seu método. 9. S. Moore, Thc Stanislavski System, p. 50.
8 o ATOR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADIÇÕES PEDAGÓGICAS... 9

o método de Spolin se configura como um dos poucos trabalhos COPEAU EA VIA NEGATIVA
práticos levado ao conhecimento do professor de teatro, no Brasil, de Copeau foi tão importante para o teatro euro-americano quan-
acesso fácil, linguagem simples e de resultados plenamente possíveis. to Stanislávski. Teve acesso ao trabalho deste último e com certeza
É estruturado sobre a resolução de problemas, organizados desde ní- poderemos encontrar pontos em comum entre ambos. Nunca viu os
veis bastante simples até os mais complexos. Segundo a autora, esses espetáculos de Stanislávski, mas o reconheceu como mestre em sua
problemas dizem respeito a técnicas teatrais; e isso não é uma inver- pedagogia. No entanto, Copeau instaura um caminho diverso daquele
dade, pois eles se baseiam nas circunstâncias, ao gosto stanislavskia- trilhado por Stanislávski e seus discípulos: a via negativa.
no, sintetizadas nas palavras que agrupam os exercícios de: "onde, Essa via consiste basicamente em processos de eliminação dos
quem e o quê". bloqueios do ator. O trabalho do diretor-pedagogo, nessa acepção, é
Num caminho um pouco diverso, Mikhail Tchékhov publica vinculado à capacidade de identificar o que obstaculiza o processo
em 1952 (na edição americana) o livro Para o Atar. Nessa obra faz criativo do ator e promover um tangenciamento proposital.
uma síntese de seu sistema. É curioso perceber que, embora dentro Como Stanislávski e tantos outros, Copeau preocupava-se com a
da tradição de Stanislávski (Tchékhov trabalhou dezessetc anos no renovação do teatro que, em sua época, na França, estava mergulhado
Teatro de Arte de Moscou), ele dá uma ênfase diferente ao corpo, na ambição comercial. Sonhava retomar o ator lúdico da Commedia
principalmente quando trabalha com o conceito de irradiação, que dell'Arte e do circo. Para Carlson, ele "embora desprovido da postura
aparentemente irá se conectar com as idéias de dilatação, de Barba. de vanguarda, tão popular nos manifestos artísticos da época, apre-
Contudo, essa "tendência" não se distancia das preocupações dos senta um programa claro e até mesmo, em certos aspectos, revolu-
últimos anos de Stanislávski. De mesmo forma, a influência do cionário. Copeau deplora a modema situação do teatro, entregue ao
trabalho de Eugenio Kusnet faz-se sentir, principalmente, no cen- comercialismo, ao sensacionalismo e exibicionismo barato, à igno-
tro do país. rância, à indiferença e à falta de disciplina"!'.
Antes de se fazer um panorama exaustivo dos discípulos do mes- Um dos aspectos revolucionários era o uso da improvisação. Usa-
tre russo, o que não é objetivo deste trabalho, cabe dizer que, embora va esse recurso não só como método, mas na tentativa de ressuscitar o
numa classificação redutora e meramente didática, sob o ponto de vista gênero improvisado com personagens do seu tempo. Não acreditava,
da abordagem prática do processo criativo do ator, é na circunstância que necessariamente, no texto como ponto de partida, mas como resultado
a tradição stanislavskiana irá, em diferentes graus, firmar suas bases. do processo, na formação do atar ou na elaboração do espetáculo e
Não podemos, e nem é meu objetivo aqui, afirmar que essas eram desejava uma nova teatralidade.
as intenções de Stanislávski, mas avaliar as idéias e práticas atribuí- A máscara, para Copeau, segundo Leabhart, era uma volta às ori-
das à sua tradição. gens, ao atar xamã, ao sentido primitivo do teatro. Ele a compreendia
Como se pode ver, a tradição inspirada na obra de Stanislávski toma não apenas como um suporte de expressão, mas como um instrumen-
a questão da consciência como a parte objetiva do trabalho, julgando to poderoso de conexão com o universo interior do atar.
que dessa fonna estados internos podem se expressar. Consciência pa- De todos os aspectos, interessa salientar que Copeau inaugurou,
rece ser quase sinônimo de razão. A questão da transição entre criação ao lado de Stanislávski, uma grande tradição pedagógica teatral; ao
e reapresentação é, pela primeira vez, tratada segundo a perspectiva da contrário do colega russo, Copeau tentou minimizar os processos
ação física, ou seja, um critério objetivo para tratar a subjetividade. racionais como elemento analítico no trabalho do ator. O diretor
Toporkov, em uma das principais contribuições sobre o trabalho francês busca um estado de neutralidade, no qual os aspectos co-
de Stanislávski, relata que o diretor russo afirmou nos últimos anos tidianos, inclusive o pensamento, deveriam dar lugar a uma vida
que o ator deveria "ter em conta que não se pode recordar e fixar os criadora. A neutralidade seria condição para a criação. Esse aspecto
estados anímicos, mas sim, a linha de ações físicas; fixá-la na memó- iria, anos mais tarde, ser reeditado por Grotóvski nas suas pesquisas,
ria corporal e fazer com que o ator possa assimilá-la e que lhe seja na Polônia, embora o polonês fosse nitidamente herdeiro do traba-
familiar"!", lho stanislavskiano e influenciaria Barba e outros grandes diretores,
A tradição de Stanislávski, então, une a idéia de consciência ao como Peter Brook.
corpo.

10. V. O.Toporkov, Stanislavski ln Rehersal, p. 173. ii. M. Carlson, Teorias do Teatro, p. 329.
10 o ATaR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADIÇÜES PI:DAC;Ú'i1CAS ... II

Essa tentativa de iniciar por algo não-verbal, por um estado mais devíamos "calçar" a máscara voltados para a parede c depois virar
primitivo, no qual os processos racionais estão minimizados ao máxi- lentamente e caminhar em direção à professora. Somente isso era li
mo, embora presentes, é justamente o ponto fundamental que distin- orientação, não havia temas ou indicações a que estávamos acostu-
gue as duas tradições pedagógicas teatrais instauradas no século xx. mados. Ao realizar a tarefa, a professora dizia "fulano não está com a
De um lado, Stanislávski e a conseqüência de seu trabalho acreditam máscara", "beltrano está espiando pela máscara" e assim por diante.
na consciência como método que domina e controla o fluxo de vida Quem era citado voltava imediatamente e, embora fosse muito insti-
criador; e, de outro, a tradição, instaurada por Copeau, tenta minimi- gante, era penoso não ter quase nenhum resultado e, quando se tinha,
zar a razão e, em particular, o pensar do processo, para que algo mais pouco se sabia o que havia acontecido.
profundo que a consciência superficial venha a emergir. Na época não compreendia, mas anos mais tarde percebi que isso
Ambos buscam o mesmo: a organicidade das ações do ator. Tanto dizia respeito às minhas primeiras experiências com a via negativa.
um quanto outro trabalham com métodos precisos nos quais o ator O termo introduzido por Copeau refere-se ao método muito usado de
deve ter plena consciência do que realiza. No entanto, existe um pon- eliminação. É pela supressão de tudo o que obstaculiza o processo
to discordante que inaugura tradições e reflete na prática teatral, hoje do ator que o diretor-pedagogo atua. Não se enfatizam as ações que
duas posturas que se inter-relacionam e na maioria das vezes se con- funcionam ou os momentos de plenitude, mas, sim, aquelas que não
fundem; a tradição stanislavskiana inicia do exterior e, para buscar servem à atuação ou à proposta estudada.
organicidade, faz internalizar os comportamentos, enquanto a tradi- Com a mesma natureza de minhas impressões está o relato de
ção de Copeau faz nascer algo orgânico que deve ser formalizado a Thomas Leabhart, que, como Burnier, foi discípulo de Decroux, que
posteriori num comportamento passível de repetição. Trata-se de uma por sua vez foi aluno de Copeau e um dos renovadores do teatro no
consciência analítica e de uma consciência difusa. século xx. Leabhart conta sobre "as aterrorizantes improvisações"
A prática do trabalho com máscaras em geral, e o clown sendo com "instruções enigmáticas"!" solicitadas pelo mestre Decroux às
apenas uma delas, faz-me lembrar do terrível mistério que ainda me sextas-feiras, à noite. Depois conclui que "o que Decroux queria,
assolava quando era aluno no curso de graduação em teatro, nas aulas [...] era um estado no qual o ator estudante estivesse relaxado, porém
de improvisação, com ou sem máscara, da professora Maria Hele- alerta, extremamente presente no momento e suspenso sobre o fio da
na Lopes, ou das aulas do francês Philippe Gaulier, anos mais tarde. navalha que separa o movimento da imobilidade?".
Gaulier foi professor na escola de Jacques Lecoq, onde Maria Helena Esse estado se atingia, segundo Copeau, pela tentativa de mini-
também foi aluna. Lecoq, alerta Elizabeth Pereira Lopes, "aprendeu o mizar a razão, mas não uma eliminação descontrolada e caótica; ao
método de Copeau através de Jean Dasté''!'. Este, por fim, foi atar de contrário, ao mesmo tempo, o método de Copeau e seus discípulos
Copeau. Mas o mistério a que me refiro era a satisfação e a curiosida- encoraja um vazio de pensamento para aí instalar a criação plena, e
de em que nos encontrávamos para resolver os pedidos e orientações isso requer um controle absoluto. Segundo Leabhart: "enquanto, de
dos professores que pouco ou quase nada diziam a respeito do que certa forma, o ator se deixa levar, ele está também sob controle. Cole
fazer, apenas daquilo que não funcionava no que fazíamos. chama de 'uma consciência duplicada que descobrimos ser caracterís-
Não pensar, não premeditar, não entrar na improvisação com tica da experiência de possessão"?".
algo já determinado, essa era a orientação de Maria Helena, Gaulier, Parece, assim, que a tradição instaurada por Copeau pensa e age
Burnier e tantos outros professores com quem trabalhei. A ação de- sobre a consciência de modo particular, espera que pela eliminação
veria ser fresca e surpreendente, inclusive para quem a realizava, não dos obstáculos cotidianos possa emergir uma consciência extracoti-
apenas para o público. O demasiado controle era visto como algo pre- diana. Algo mais perto do inconsciente que seja capaz de sustentar a
judicial e parasitário ao fluxo de vida criador. atuação sem "parasitas" cotidianos.
Passo a descrever um aspecto marcante. Era a sensação de estar Se Stanislávski acreditava na consciência e na razão analítica
perdido, de não saber o que se passava, nem o que o professor dese- como caminho para o inconsciente, Copeau instaura a idéia da mi-
java que fizéssemos. Num trabalho com máscara neutra!', lembro que

12. E. P. Lopes, A Máscara e a Formação do Ator, p. 40. 14. T. Lcabhart, The Mask as Shamanic Tool in the Theatre Training of Jacques
13. O termo "máscara neutra" se refere a uma máscara muito usado no aprendi- Copeau, em Mime Journal /995, p. 82-85.
zado dos atores. Objetiva neutralizar a expressão facial do ato r para enfatizar aspectos 15. Idem, p. 85.
expressivos do corpo, entre outras coisas. 16. Idem, p.I 02.
12 o ATOR COMO XAMÃ

nimização da consciência sem perda de controle como caminho para


atingir um estado pleno e vivo.

OCLOWN

Este não é um trabalho sobre o clown. No entanto, a pesquisa


que realizei se concentrou nessa linguagem e no seu entorno como
uma exemplificação do modo como a consciência do ator trabalha no
caminho e transcurso da criação . Somente com o objetivo de localizar
o leitor no assunto, vou brevemente tentar descrever do que se trata.
O clown não é apenas uma linguagem, é, também, uma forma de
olhar o mundo, de se reconhecer humano e de reconhecer essa huma-
nidade nos outros. O clown está ligado ao cômico, mas não se reduz a
ele; ao contrário, o transcende.
O cômico é o que provoca o riso. Tradicionalmente essa afir-
mação é sustentada pelo senso comum e, muitas vezes, nos meios
artísticos e intelectuais. Todavia, é possível considerarmos outros fa-
tores relacionados ao côrnico e ampliarmos esse conceito além das
fronteiras do riso ou do risível. Cômico, também, pode ser o relativo à
comédia e, portanto, temos novamente como resultado o riso. Segun-
do Propp: "o riso ocorre em presença de duas grandezas : de um objeto
ridículo e de um sujeito que ri - ou seja, do homem"!'. A frase de
Propp esclarece a necessidade da presença humana em torno do fenô-
meno do riso, uma vez que esse autor defende a idéia de que o c ômico
é uma natureza de valor, assim como o belo, que o homem emprega a
determinados objetos ou situações, dependendo das relações mentais
que estabelece. Assim, o riso não é um processo natural à medida que
o cômico é uma articulação de significados construída pelo homem .
Então, só é cômico o que é humano. A questão da humanidade, devo
frisar, na análise de processos e procedimentos c ôrnicos, é de vital im-
portância, pois sem esse elemento não há comicidade. Dessa forma,
uma senhora distinta que cai na rua, um objeto qualquer ou uma obra
de arte podem ser c ômicos, mas um mineral, um vegetal ou a natureza
na sua forma primeira dificilmente terá algum caráter c ômico,
Voltemos, então, à colocação de Propp e detenhamo-nos na pa-
lavra ridículo.
O ridículo está intimamente ligado ao cômico, e assim poderíamos
pensar necessariamente no riso. Necessariamente, mas não exclusiva-
mente, pois, conforme defendo a seguir, o cômico poderá suscitar ou-
tras reações além do riso, calcadas no patético e no nonsense, ambas
emanadas do ridículo.
Seria inexeqüível tentar abordar todas as relações referentes ao
c ômico, bem como fazer levantamento de todas as teorias que formulam

17. V. Propp, Comicidade e Riso, 1'.3 J.


Bumier como Cafa, em Valef Ormos, Lume, 1991 . Linoleogravurn de EmaniChaves.
14 o ATOR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADIÇÕES PEDAGÓGICAS ... 15

explicações a respeito desse fenômeno. Por isso, reduzo meu estudo Assim como os bufões e bobos da Idade Média e as máscaras da
ao aspecto dos procedimentos, que carregam em si a idéia da intencio- Commedia deli 'Arte, o clown tem como essência colocar a estupidez
nalidade, pois distinguem-se dos processos, que ocorrem naturalmente, ou o ridículo humano em evidência.
por exemplo. Um político que esquece o seu discurso, provocando riso Essas figuras bizarras e grotescas da referida época não eram
ou constrangimento na platéia, participa de um processo ou situação atores na acepção que conhecemos, pois não interpretavam ou repre-
cômica, assim como a caricatura desse mesmo político, feita em papel sentavam um personagem; ao contrário, eram bufões por toda a vida,
e grafite por um desenhista, é um procedimento cômico. mesmo porque suas deformações corporais não eram efeitos artifi-
Muitos procedimentos dessa natureza dizem respeito às obras de ciais e, sim, deficiências físicas reais.
arte. São cômicos os filmes de Chaplin, O Gordo e O Magro, Buster Para Pierre Byland "o clown é a expressão do humor de uma
Keaton, entre outros; as comédias teatrais, como Tartufo, de Moliére, pessoa, que pode se tornar teatral ou não, mas o ponto de partida do
ou Muito Barulho por Nada, de Shakespeare, ou as esculturas ca- clown está ali, num humor que pode ser trágico, negro, ou ainda ab-
ricaturais de Honoré Daumier, no Museu d'Orsay. Ainda podemos surdo ou bizarro'?".
encontrar procedimentos cômicos em publicidade, educação ou pro- Na Commedia deli 'Arte, nos séculos xv e XVI, os atores ambulan-
gramas de TV. tes especializavam-se em uma só máscara por toda a vida. Raramente
O clown é um desses procedimentos referidos que tem no seu um mesmo ator jogava mais de uma máscara, pois os espetáculos
cerne uma contemporaneidade muito presente, à medida que revela eram improvisados; seguia-se apenas o canovacci, um roteiro básico
uma intensa humanidade. das entradas e saídas de cena, o qual continha os acontecimentos ne-
Em algumas línguas a palavra clown pode ser traduzida como cessários à trama.
palhaço. Porém, interessa-nos fazer uma sutil diferenciação entre as Nesse gênero popular uma figura iria certamente se desenvolver
duas figuras. Palhaço vem do latim paglia, que significa palha e faz no clown moderno: o zanni. Os zannis, ou servos, eram responsáveis
referência ao revestimento que os 'palhaços usavam no corpo para pelas partes cômicas e muitas vezes apareciam em duplas. Um usava
aliviar as quedas. Clown vem de clod, que significa camponês, ou basicamente a astúcia, é o caso do Brighella; e o outro era o tolo, co-
seja, rústico, tolo. Segundo Luiz Otávio Burnier, "o palhaço é hoje nhecido como Arlecchino.
um tipo que tenta fazer graça e divertir seu público por meio de suas O circo moderno, como conhecemos hoje, teve seu início quando
extravagâncias; ao passo que o clown tenta ser sincero e honesto Philip Asteley, em Londres, em 1768, descobriu a força centrífuga
consigo mesmo?". do picadeiro circular, com o número dos cavaleiros que simulavam
Historicamente, o clown está ligado à baixa comédia grega e camponeses simplórios e astutos.
romana. Havia na Antigüidade uma suposta alternância entre trágico Com o advento do cinema no final do século XIX, o clown encon-
e cômico. Nos festivais gregos de teatro em honra ao deus Dioniso, trou um terreno fértil para o seu desenvolvimento. A maneira de traba-
após a apresentação das tragédias, seguia-se ao menos uma comédia. lhar com a realidade fotográfica, a riqueza de efeitos e a possibilidade
Na Idade Média, nas festas religiosas e principalmente em eventos po- de focalizar detalhes e sutilezas fizeram do cinema um dos melhores
pulares, menestréis, bufões e bobos satirizavam acontecimentos sérios. caminhos para a expressão absurda e ridícula do clown. Max Linder
Para Burnier, "esta combinação do cômico e do trágico acentua a foi o primeiro clown do cinema. Já nos seus filmes ficava claro o uso
percepção de emoções contrapostas e é muito peculiar ao clown. Para da tradição e do desenvolvimento do assunto clownesco.
Shklóvski, o clown faz tudo seriamente. Ele é o homem assumindo Contrários aos comediantes, os clowns criaram tipos únicos que
sua humanidade e sua fraqueza, e por isto tornando-se cômico"!", muitas vezes possuíam seus nomes próprios, é o caso de Stan Laurel
O clown é encontrado quase sempre em dupla e representa mi- e Oliver Hardy. Como diz Luiz Otávio Bumier, "Carlitos é o clown
croestruturalmente as relações de toda a sociedade contemporânea. de Chaplin, pessoal e único, não importando se desempenha o papel
A dupla é formada pelo clown chamado "branco", aquele que pensa de O Grande Ditador, do vagabundo de O Garoto, ou do operário em
ser esperto, o intelectual, o que domina, e quase sempre veste roupas Tempos Modernos" 21.
elegantes; e pelo clown"augusto", que é o bobo, o estúpido, sempre Dentro do trabalho clownesco algumas noções se fazem necessárias
sujeito aos desmandos do branco. para que o aluno-ator seja capaz de improvisar em estado clownesco. O

18. L. O. Burnicr, ;1 Arte de Ator, p. 246. 20. P. Byland, em A. Vigani>,Nasi rossi: ii clown tra circo c teatro, p. 46.
19. Idem, p. 246. 21. L. O. Burnicr, op, cit., p, 251.
16 o ATOR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADIÇÕES PEDAGÓGICAS ... 17

desenvolvimento da noção de "tempo clownesco" é um deles. a clown não fazer, o aluno vai encontrando reações que constroem estados em
age e pensa um pouco mais lento que o agir e o pensar cotidiano, constantes transformações.
o que caracteriza a sua ação. A "personificação das coisas e partes a trabalho que realizei com o grupo de alunos teve três partes:
do corpo" é outra noção importante. Em geral, o clown tem pouco uma primeira, dedicada a exercícios para despertar o ridículo, cons-
controle sobre o mundo que o cerca, e sua ação está mediada por este truindo elementos para cada ator individualmente; uma segunda,
pensar animista. Por fim, as relações "branco versus augusto" são fun- caracterizada pelo exercício do Picadeiro, no qual ocorre uma des-
damentais para a compreensão do estado clownesco e sua conseqüen- montagem de tudo o que foi construído em função do estabelecimento
te ação. Como já mencionamos, o clown branco é aquele que manda, de um estado clownesco; e uma terceira, na tentativa de usar esse
o dominador - é ridiculo na sua tentativa de não parecer estúpido. a estado em pequenas cenas para apresentação pública.
augusto, ao contrário, é mais ingênuo e sem nenhuma esperteza. Não Preciso sublinhar uma diferença sutil entre o que chamo de esta-
possui discernimento sequer para tentar esconder seu lado ridiculo. do e as ações correspondentes. É comum rirmos de um clown, mesmo
Na famosa dupla a Gordo e a Magro, o primeiro era um exemplo de que ele não faça nada, mesmo não tendo ação. a clown exemplifica
clown branco e, o segundo, de clown augusto. a existência desses "estados" no trabalho do ator. Isso pode ser expli-
A característica que destaco no trabalho clownesco é a perso- cado de duas formas. Na primeira poderíamos compreender que esses
nalização ou o caráter único do clown. Para Byland não existe uma estados se caracterizam por microações que, embora não sendo per-
gramática do clown: "cada pessoa usa o seu humor, que em seguida ceptíveis ao observador, existem no corpo do ator, ocasionando um
deve reinventar teatralmente para se tornar um ctown'í", Por isso o fluxo de energia que altera a presença cotidiana e resulta numa altera-
trabalho do clown é tão único e pessoal, distinto do trabalho inter- ção da percepção que o observador tem do ator. Uma segunda expli-
pretativo da tradição teatral euro-americana. Essa característica é que cação poderia ser entendida como o resultado da ação, nesse caso, um
possibilita o uso do clown em diversas dimensões: como treinamento conjunto de ações fisicas provocaria como resultado o acionamento
de atores em escolas de formação 'ou como técnica específica com a de determinadas energias corpóreo-vocais, que configurariam, então,
qual os atores podem construir linguagens para espetáculos. Nesses a percepção de um estado alterado no corpo do ator.
últimos, os clowns podem aparecer como eles próprios em determina- De qualquer forma, entendo que a construção desses estados é
das situações ou números, ou podem, ainda, representar um papel, o decorrência de determinadas ações, no entanto, uma vez experimenta-
clown representando um personagem fictício. Um exemplo bem fácil dos, podem prescindir das ações ou dos exercícios que a originaram.
de entender é Carlitos, o clown de Chaplin, que pode aparecer ora as exercícios para a construção do clown não se configuram
como ele próprio, um vagabundo, ora como um personagem determi- como um método, tampouco um receituário que possa ser seguido
nado, o grande ditador, por exemplo. Nesse último caso não deixa de passo a passo, antes, são princípios de trabalho prático que utilizo,
ser o clown, trata-se de uma metalinguagem. adaptados principalmente de meu contato com Bumier e Gaulier. Ve-
a nariz, considerado a menor máscara do mundo, modifica a ex- jamos os exercícios principais.
pressão facial do ator e conduz a uma expressão ridícula. Isso é ob- Nestas oficinas de iniciação ao clown costumo usar exercícios
viamente um traço cultural, pois culturas que não possuem palhaços fisicos, como alongamento, fortalecimento, motricidade e exercí-
não acharão ou entenderão o nariz vermelho risível. Entretanto, para cios lúdicos, como brincadeiras e jogos para um aquecimento do
nós, o clown é cômico porque faz coisas sérias de forma atrapalhada, corpo e de um estado de prontidão para principiar o clown. Não vou
desconcertante e rompe o cotidiano. Nessa tentativa de fazer coisas descrevê-los, pela ampla diversidade de possibilidades que esses
sérias descobrimos coisas que queremos encobrir, e isso nos torna exercícios possuem.
ridículos. Ri-se daquilo que o clown quer esconder. as exercícios específicos para a iniciação clownesca partem de
a exercício principal que trabalho com os iniciantes a clown é o umjogo geral no qual, em todos os encontros, eu represento Monsieur
Picadeiro", no qual se constrói umjogo. a professor-diretor é o dono Loyal, o dono do circo, enquanto os alunos atores são os palhaços
do circo, e o aluno-ator é o clown que vem pedir emprego no circo. que desejam trabalhar no meu circo. Cada aluno só se tornará clown
a clown deve realizar todas as tarefas que o dono do circo pedir, se conseguir o emprego; então, desde o começo acordamos que não
por mais absurdas e ridículas que lhe pareçam. Nesse jogo de fazer e importa o que Monsieur Loyal pedir, eles terão de executar a qualquer
custo, sob pena de não se tornarem clowns.
Isso acordado, passamos a uma diversidade de exercícios para
22. P. Byland, em A.Vigano, op. cit., p. 46.
23. Uso este exercício a partir de minha experiência com Luiz Otávio Burnicr, tentar expor o aluno a situações ridículas, tentando confundir a figura
18 o ATOR COMO XAMÃ AS ABORDAGENS DA CONSCIÊNCIA NAS TRADiÇÕES PEDAGÓGICAS ... 19

e ele próprio. Assim, numa primeira fase, proponho alguns exercícios é escolher um nome com o qual o clown fique contrariado, porque
com o uso do nariz vermelho e outros sem. acha ridículo ou feio.
Quase sempre inicio com o exercício de calçar a máscara, que Uma vez com figurino e nome, proponho alguns exercícios a
consiste em grupos de quatro alunos que vão ao espaço cênico da sala mais, semelhantes aos iniciais, dessa vez com o clown "montado"
e, virados de frente para a parede, colocam o nariz vermelho e muito para ver como funciona.
lentamente voltam-se para a platéia. Ao virarem-se na nossa direção, Assim, finda a fase inicial de construção do clown e tudo aquilo
os demais alunos e eu estamos obviamente olhando-os, e como não que foi construído, ou ao menos parte do que foi construído, será
há nenhuma outra indicação do que fazer, isso já lhes causa um cer- desfeito, através da segunda fase de construção, o ponto principal da
to incômodo, um constrangimento. Após alguns instantes, começo a iniciação do clown: o Picadeiro.
descrever os defeitos de cada um de forma irânica. Chamo a atenção O Picadeiro visa a desfazer os trejeitos e as ações que não respon-
para a roupa, para as orelhas, para a forma como deixaram os pés dem a um estado cômico exitoso para o clown, além de dar-lhe uma
(para fora, para dentro) e começo a achar apelidos ou a destinar lu- espécie de batismo simbólico.
gares donde teria vindo cada um, por exemplo, de outro planeta, do Esse exercício consiste em propor a cada aluno que venha para
zoológico. Procuro fazer inversões, como chamar de magro alguém uma entrevista com Monsieur Loyal, com o objetivo de conseguir
que é gordo, de anão alguém que é alto e assim por diante. um emprego no circo. Assim, o candidato terá de apresentar tudo o
Uma série de exercícios dessa natureza se segue. Por exemplo, que sabe fazer - dançar, cantar, representar -, para lograr uma vaga.
imitar uma máquina de café da década de 1950 ou dar um susto na Obviamente, nada do que for apresentado será de imediato do agrado
platéia, ou ainda, carregar um piano imaginário. De qualquer forma, do dono do circo que, ao ver uma dança, provavelmente dirá: "eu não
importa nesses exercícios verificar que elementos atingem o aspirante contrato dançarinos", obrigando o candidato a inventar outras alterna-
a clown, para poder usar desses elementos na tentativa de expor seus tivas até que se esgotem as possibilidades mais conhecidas do aluno,
aspectos ridículos. . e ações mais profundas comecem a aparecer.
A essa bateria de exercícios acrescento um outro grupo que é o No Picadeiro, que pode durar de uma a duas horas para cada
das imitações: imitar um guarda de trânsito, uma babá que cuida de candidato, procuro usar informações pessoais que recolhi até então
cinco crianças que choram ao mesmo tempo ou um cantor. de cada aluno, confundindo o universo do clown com o dele próprio.
Ao lado desses exercícios trabalho também em grupos. Por Assim, é comum usar, por exemplo, perguntas sobre a vida pessoal ou
exemplo, chegamos numa festa ou estamos numa ante-sala de um solicitar relatos sobre a infância, entre outros.
dentista, o que acontece? O Picadeiro tenta provocar um estado de "revelação" no qual coi-
Depois desses exercícios nos quais os alunos acumularam uma sas escondidas e veladas da personalidade do aluno vão sendo mos-
série de ações e reações, através de minhas intervenções, dizendo o tradas. Assistir a essa iniciação já é uma tarefa difícil, pois se observa
que funciona e o que eles não devem repetir, já existe um número que os alunos já se encontram num estado alterado ao observar os
considerável de possibilidades. Nesse momento, proponho vestir o colegas e saber de suas fragilidades.
clown. Cada aluno deve trazer de casa ou tomar emprestado do guar- Se o Picadeiro, de certa forma, desconstruiu tudo o que foi elabo-
da-roupa da escola tudo o que achar engraçado ou ridículo, não im- rado até então, é hora de reconstruir novamente, por isso, na terceira
portando se imagina usar ou não, chapéus, sapatos, guarda-chuvas, fase do trabalho, proponho que se recupere esse estado conseguido
calças, camisas, casacos, entre outros. no Picadeiro em improvisações com objetos, em tentar mostrar a re-
Faz-se uma espécie de feira na sala de aula, e cada aluno escolhe lação branco versus augusto ou na dificuldade com partes do corpo,
algumas peças com as quais acha que seu próprio clown se vestiria. que depois poderão ser transformadas em pequenas cenas. Acrescen-
Uma vez vestidos, inicio uma apresentação que culmina com a to, também, um passeio de clown, que consiste em determinar uma
escolha dos nomes dos clowns. Às vezes já houve uma escolha de tarefa para um grupo de' clowns realizar fora da sala de trabalho, ir
apelidos para os alunos logo nos primeiros encontros; então, depois comprar algo no supermercado, por exemplo. Esse passeio possibilita
da apresentação de cada um devidamente vestido, eu indico o que um contato com o público de forma impactante, pois deixa os clowns
funciona nos figurinos e o que não funciona, e todos os demais dão praticamente desprotegidos da segurança do grupo.
idéias para melhorar os figurinos dos colegas, um a um. Confirmamos Eis o problema que começa a aguçar minha curiosidade: a di-
o apelido do aluno como nome do clown ou, caso não seja adequado, ficuldade da grande maioria em recuperar esse estado, agora noutro
propõe-se outro. Nessa brincadeira, a maioria logo percebe que o jogo momento e noutra situação.
2. O Sujeito Extracotidiano

A pergunta que pauta a pesquisa que aqui apresento foi gestada a


partir de minha curiosidade sobre a dificuldade dos clowns iniciantes
de retomarem as conquistas de estados e ações criadas no Picadeiro.
Ao perguntar sobre como se configura a consciência das primeiras
elaborações do atar até a apresentação diante do público, pergunto
sobre o processo de construção do próprio sujeito de conhecimento
implicado nessa questão.
Se as tradições pedagógicas teatrais nos ensinaram a pensar a
consciência de dois modos distintos e solidários, de um lado enten-
dendo a consciência como uma capacidade racional do atar que con-
duz à criação; e, de outro, tentando minimizá-la para, de posse de
outro estado, poder também encontrar o fluxo de vida criador, pode-
mos nos perguntar: qual o papel da consciência no trabalho do atar?
Como ela se manifesta e age sobre o sujeito que cria? E como esse
sujeito se torna construtor de uma consciência capaz de conduzi-lo à
criação e fazê-lo perceber os mecanismos dessa criação a tal ponto
que seja possível retomá-Ia no futuro?
O primeiro problema com que me deparei foi o de reduzir a ativi-
dade desse sujeito ao pequeno quadro de possibilidades que o mundo
euro-americano engendrou e classificou como "o trabalho do atar".
Quando uso a palavra atar, uso um conjunto de idéias que tendem a
delimitar a atividade teatral a um circuito restrito de práticas e con-
cepções. Tais idéias vinculam o atar à interpretação de textos dra-
máticos ou à personificação. Outras manifestações, que não o teatro
22 o ATOR COMO XAMÃ o SUJEITO EXTRACOTIDlANO 23

euro-americano tradicional, estariam fora dessa compreensão, inclu- Esses comportamentos espetaculares, quando organizados so-
sive os rituais, reconhecidamente ligados ao teatro, não participariam cialmente, resultam em manifestações simbólicas, como o teatro, a
dessas definições mais recortadas, nas quais usamos a palavra ator dança, as procissões, os rituais religiosos, as manifestações políticas,
para designar o seu praticante. os esportes coletivos e tudo aquilo que o comportamento humano or-
No entanto, quando pergunto sobre a tomada de consciência no ganiza para dar a ver a outros humanos.
processo deste ser humano que a tradição euro-americana convencio- A pergunta que se desdobra dessas considerações é: quem é o
nou chamar ator, indago, na verdade, sobre os processos vitais que sujeito ou os sujeitos desse comportamento espetacular?
nos fazem humanos. Pergunto sobre como é possível alguns seres hu- Na pesquisa que realizei pude levantar alguns argumentos para
manos reconstruírem a vida para, em contato com outros seres huma- esse debate, considerando essa investigação como uma possibilidade
nos, celebrarem as fronteiras e limites entre o sujeito e a alteridade. de saber sobre o sujeito extracotidiano envolvido nas atividades espe-
Mas o que demarca a diferença, então, entre a vida ordinária dos taculares. O ator, assim, é um exemplo desse sujeito extracotidiano,
seres humanos e isso que convencionamos chamar de teatro? Ou, para não abarcando todas as suas possibilidades.
ser mais abrangente e não tão ctnocêntrico, a atividade extracotidiana Mas quem é esse sujeito? Como ele se constitui? O que carac-
organizada como prática social de relação entre os humanos. teriza o sujeito extracotidiano? Não há, talvez, tarefa mais difícil,
Para os gregos, a ação dramática da tragédia se constituía na ação pois o sujeito, num sentido geral, e a sua constituição não podem ser
de um personagem superior aos seres humanos comuns, comumente resumidos ou sintetizados, e a noção de sujeito continua no decurso
heróis, deuses e semideuses, enquanto na comédia viam-se persona- da tradição euro-americana, uma busca com diversas aproximações,
gens inferiores. Para Bender: "se a tragédia apresenta o herói coinci- sem, contudo, uma resposta definitiva. Enquanto diverso do indiví-
dindo em sua estatura com um padrão médio ou superior, no dizer de duo, o sujeito permanece sempre como uma hipótese, sem ser pos-
Aristóteles, a comédia o mostra abaixo daquele padrão. Sua inferiori- sível a sua concretude. De outro lado, o indivíduo é concreto, sou
dade resulta, portanto, de um defeito ou falha. Tais falhas, porém, são eu, é você, carrega a identidade singular e única da individualidade,
risíveis por sua insignificância'". embora constituída e atravessada por múltiplos outros dos quais so-
As noções gregas, berço ocidental do teatro, marcam essa dife- mos parceiros.
rença entre o cotidiano da vida e o extracotidiano do teatro. Mas o Assim, o sujeito extracotidiano não pode ser conceituado, tam-
que definimos como extracotidiano em oposição à vida comum do pouco a controvérsia em tomo dessa noção pode ser resolvida. Para
dia-a-dia? Na vida, esse dia-a-dia pode ser entendido como o coti- cercar o problema principal a que me dedico, o leitor terá que se con-
diano, enquanto o extraordinário é tudo aquilo que interrompe esse .entar com uma idéia aproximada de sujeito extracotidiano.
cotidiano com a surpresa. Nesse sentido, o espetacu/ar, corno prática Parece consensual que esse sujeito não surge ex abrupto na vida
organizada de dedicar ações sistemáticas e carregadas de significado cotidiana. Ele se constitui numa complexa rede de atividades e fe-
ao convívio social, configura-se num importante meio de irromper o nômenos que obviamente explicitam a vida tanto em sua dimensão
cotidiano. social quanto biológica.
Se o cotidiano é essa dimensão banal e repetível da vida em que A idéia que vou defender é a da continuidade funcional e da
vivemos, quase sempre destituída de visibilidade, que atividades ca- ruptura estrutural entre o sujeito cotidiano e o sujeito extracotidiano.
racterizamos como extracotidianas? Obviamente, é imersa em nossa Essa continuidade e essa ruptura demonstram que posso considerar
cultura específica que cada sociedade constrói formas de estabelecer o sujeito extracotidiano como sujeito de si, sujeito de consciência e
fronteiras entre o cotidiano e o extracotidiano. Segundo Biã0 2, toma- como sujeito de presença. Para tanto vou recorrer primeiro às idéias
mos nossos comportamentos cada vez mais complexos para atender de Piaget, que explicita em sua obra a noção de sujeito epistêmico ou
nossos desejos mais elementares e assim criamos formas de "chamar sujeito do conhecímento.
a atenção" do outro. A essa maneira de comunicação podemos no- De qualquer forma, a continuidade funcíonal se caracteriza pelo
mear de comportamento espetacular. Portanto, é o olhar do outro, a processo de diferenciação que as ações do ator vão assumindo ao se
relação com o outro que estabelece o que é espetacular. fazer alterações no modo próprio de falar, caminhar, respirar. Essa di-
ferenciação do cotidiano do ator em direção ao extracotidiano, como
veremos adiante, ao ser constante, repetida e profunda, causa uma
I. I. Bender, Comédia e Riso, p. 34.
ruptura nas estruturas cotidianas e passam a se configurar estruturas
2. A. Bião, Estética Performática e Cotidiano, Performáticos, Performance &
Sociedade, p.13.
próprias para o extracotidiano. Essas últimas, novas e diferentes das
24 o ATOR COMO XAMÃ

do cotidiano e, embora nascidas de um processo de diferenciação das


primeiras, são caracterizadas por funções e naturezas próprias.

UM SUJEITO EPISTÊMICO
Piaget fala de um sujeito epistêmico ou qualquer, em oposiç ão
ao sujeito individual. Esse modelo supõe dois sistemas cognitivos,
um de estruturas estávei s usadas para compreender o real, caracterís-
tico do sujeito epistêmico; e outro , de procedimentos com mobilidade
contínua usados para se ter êxito e caracterí stico do sujeito individual.
Dessa forma, o sujeito epistêmico é o conjunto de coordenações das
ações que, independentemente das ações de um indivíduo específico,
determinam condições para essas ações na sua interação com o meio .
Vejamos o que isso significa.
A idéia-mestra que situa o trabalho de Piaget como uma teoria da
interação é a certeza de que o conhecimento está na ação do sujeito. É
no resultado da ação que o sujeito identifica ou toma consciência de
si próprio e assim constitui o mundo. Esse mundo se constrói, então,
como tudo o que não é sujeito, ao passo que o sujeito se identifica com
todas as ações e movimentos em relação ao não-sujeito.
É o processo desencadeado pela ação que estrutura e, progres-
sivamente, distingue sujeito e objeto . Em seu início, logo após o
nascimento, a criança não é, ainda, sujeito de suas próprias ações,
tampouco o mundo das coisas (tisicas e sociais) existe para ela.
Por meio da coordenação de ações, classificando, organizando,
comparando, o sujeito edifica não só os conteúdos do que sabe, como
também as estruturas que suportam e possibilitam tais conteúdos.
Com um funcionamento contínuo existe uma estruturação de esque-
mas e conceitos que vão progressivamente sendo superados por novos
patamares de ações , cada vez mais complexos e com a propriedade
de conservar e superar os patamares precedentes numa reorganização
contínua do sujeito .
Esses patamares de ações são, num primeiro momento, apenas
ações sobre os objetos para, através de um longo processo de cons-
trução, se transformarem, pouco a pouco, em ações sobre as ações
ou ações de segunda potência. Trata-se aí de ações operadas sobre
as precedentes, nas quais o sujeito é capaz de tematizar suas próprias
ações, extraindo delas as razões e motivos do seu fazer.
Para Piaget, sujeito e objeto ainda não existem no nascimen-
to, pois o sujeito não tem consciência de si, tampouco do mundo. A
centração extremada do bebê significa indiferenciação entre o eu e o
mundo, ao passo que os movimentos em direção ao mundo repercu-
tem no eu, de forma a constituí-lo.
Piagct entende que esse processo é inacessível no sentido estrito.
Não há um início absolut o, nem um término. O acesso ao conheci- Piaget. Linoleogravura de Emani Chaves.
26 o ATaR COMO XAMÃ o SUJEITO EXTRACOTIDIANO 27

mento do mundo dos objetos (físicos, sociais etc.) é sempre parcial, E mais adiante O fala: "e como a gente assiste os colegas ali no
pois o sujeito tem acesso apenas ao resultado de suas próprias ações picadeiro de roupa, então a gente assiste um pouco misto, assim, entre
e não ao mundo em sua essência, visto que, para conhecer um de- a gente mesmo e a figura que está ali. O clown não é um personagem,
terminado objeto (tisico, social etc.), seja ele qual for, é necessário então fica uma sensação misturada".
modificá-lo e, ao transformar o objeto, o sujeito já não pode obter dele Os depoimentos de A e O mostram essa indiferenciação caracte-
as propriedades anteriores à sua ação. rística do não conhecer. Causa uma confusão entre o eu cotidiano e o
Para Piaget: sujeito extracotidiano.
Se a subjetividade e a objetividade no mundo cotidiano são cons-
os objetos existem e comportam estruturas que também existem independentemente truções, pois não existem desde o início, no comportamento extra-
de nós. Ocorre que os objetos e suas leis, não podendo ser conhecidos senão graças
àquelas nossas operações que lhes são aplicáveis para esse efeito e que constituem o
cotidiano parece não ser diferente. O sujeito cotidiano inicialmente
quadro do instrumento de assimilação que permite atingi-los, somente são alcançáveis, não se diferencia do sujeito extracotidiano, uma vez que as tarefas
portanto, por aproximações sucessivas, o que equivale a dizer que eles representam um psicofísicas que se propõem a um sujeito que não tenha constituído
limite jamais atingido'. estruturas básicas de extracotidianeidade permanecem apenas como
trabalhos mentais, ao contrário de um ator, que conseguirá transfor-
Assim, ao modificar o objeto, o sujeito modifica-se e já não pode mar a tarefa eminentemente mental em ação psico tisica. Aos pou-
interagir com o objeto como interagia há pouco. cos, essas estruturas cotidianas irão se diferenciando sob a égide do
esforço diferenciado, em que o peso, o equilíbrio e mesmo a forma
UM SUJEITO DE SI de pensar encontrarão caminhos distintos dos cotidianos. O trabalho
com os alunos atores deixou claro essa continuidade entre cotidiano
Essas relações entre sujeito e objeto complicam-se no nosso caso, e extracotidiano.
pois o trabalho do atar e do partícipe de outras manifestações espeta- Freqüentemente, quando solicito a meus alunos-atores iniciantes
culares transforma-se de sujeito em objeto. A construção de um perso- uma tarefa simples, como improvisar "um passeio no jardim proibi-
nagem, por exemplo, é nada mais do que a estruturação de um padrão do'", as seqüências não passam de caminhadas e olhares cotidianos
determinado de comportamento extracotidiano. Entretanto, esse pa- não muito diferentes de alguém que passeia num shopping center.
drão é constituído sobre o eu do ator. É a sua fala, seu corpo, sua Além disso, são freqüentes os estereótipos e as imitações esquemá-
mente, sua presença que constituem o personagem. Trata-se, então, ticas das ações. Por meio do trabalho de apropriação das ações, sele-
de uma tematização do próprio eu no personagem. cionando, dividindo e reagrupando as partes e o todo, sublinhando as
Por outro lado, essa transformação do sujeito em objeto de co- idéias e imagens que o aluno se propõe a expressar, vai ocorrendo um
nhecimento requer, de qualquer forma, que uma parte do sujeito processo de transformação. As ações, antes muito próximas do coti-
permaneça sujeito, para ter consciência de uma outra parte que é diano, vão dele se distanciando, assumindo outras formas e energias,
objetivada. tomando-se, aos poucos, extracotidianas. Em breve aquilo que era
O trabalho com o grupo de alunos-atores sobre o clown de- apenas uma forma de olhar cotidiana assume uma energia distinta na
monstrou três fases de apropriação sobre a experiência de si. Essas qual o peso, o equilíbrio e outros aspectos dirigem-se por princípios
experiências parecem ser características do que denomino sujeito ex- diferentes dos do cotidiano. Trata-se da constituição de uma partitura
tracotidiano, pois trata-se de um uso particular do corpo e da mente de ações físicas, na qual estão implicados não apenas a porção mecâ-
(melhor dizer da integridade do indivíduo), organizado em práticas nica da ação, mas também suas construções mentais ou psicofísicas.
que usam da própria experiência e do imaginário pessoal para dar É na coordenação das ações que essa diferenciação irá encontrar
forma e dilatar ações que se distinguem das do cotidiano. sua dialética, pois a diferenciação ocorre na exata medida da coorde-
Vejamos alguns depoimentos das entrevistas coletivas com os nação das ações que em diversos níveis obtém sínteses de ações. Ora,
alunos-atores. Na segunda fase do trabalho, quando perguntados so- para cada nova ação incorporada ao universo já conhecido das ações
bre a experiência do Picadeiro, A responde o seguinte: "me deu uma do ator, ele será obrigado a um novo jogo de acomodações, reorgani-
euforia e uma angústia, mas eu consegui me divertir, assim, quando zações cognitivas para satisfazer a necessidade de auto-organização
passou essa primeira angústia, porque eu acho que é minha mesmo". do sistema. Esse processo pode ser compreendido como coordenação

3.1. Piaget, Epistemologia Genética, p. 108. 4. Tema extraído da demonstração de trabalho Pegadas sobre a Neve, de R. Carrieri.
28 o ATOR COMO XAMÃ O SUJEITO EXTRACOTIDIANO 29

das ações; do outro lado, está, então, um processo complementar e como uma busca de equilíbrio que resulta na construção de novas
diferenciador. estruturas mais adaptadas, isto é, capazes de resolver melhor os pro-
As entrevistas com o grupo de clowns profissionais deixou isso blemas que enfrentam.
bem claro. A, falando sobre o aprendizado do cômico, diz: "como é Ao aproximar a questão do sujeito extracotidiano, resta ainda
que eu aprendi isso? Eu não sei! [...], mas eu posso fazer um monte de explicar, mesmo que de forma precária, como surgem as novidades
gente rir em função de uma alteração minha [00'] no caso era a boca, no trabalho desse sujeito.
a forma de falar". A explicação do senso comum é a de entender que existe uma
Esse processo diferenciador não é simples como aparenta; ao predeterminação nesse trabalho, na qual as estruturas mentais desse
contrário, extremamente complexo, pois envolve uma série de habi- sujeito extracotidiano, suas capacidades de acionar, pela própria von-
lidades do sujeito. tade, sua presença tisica e mental de forma diferenciada, estão dadas,
Na prática teatral essa coordenação se dá, também, nos ajustes que seja no meio, seja nele próprio.
o ator vai realizando em suas ações: corrige, regula com base naquilo Ora, parece claro que o que está dado a priori é a necessidade de
que percebe estar fazendo e nos referenciais que os outros lhe forne- funcionamento e não as estruturas que o suportam. Se compreendermos
cem. À medida que realiza esses ajustes, vai diferenciando as ações que esse sujeito extracotidiano é progressivamente constituído pelo pro-
umas das outras, e estas, de seu aspecto cotidiano, até criar um universo cesso de diferenciação de um sujeito cotidiano, então, compreendemos
plenamente extracotidiano, que independe das ações do cotidiano para que não há um início absoluto nesse processo. Logo, a predeterminação
existir e nem sequer com ele tem relação direta, em alguns casos. Os se resume na possibilidade de esse processo vir a acontecer, completa-
processos de decupagem, nos quais os atores dividem em partes, tão mente dependente das experiências que um determinado sujeito coti-
pequenas quanto possível, cada ação e atribuem significados pessoais diano fizer em prol de seu processo de construção extracotidiano.
a elas, tomam ações de origem cotidiana em extracotidiano. Mesmo Então, a progressão da compreensão do extracotidiano passa por
que o resultado ao olhar do público seja fiel ao modelo cotidiano há um sucessivos patamares, em que se instaura um movimento a partir de
sujeito extracotidiano realizando-as, pois ao dividi-las e reagrupá-Ias um todo indiferenciado, que começa a destacar e usar formas conhe-
as toma plenas de presença. Nada está fora do lugar e, apesar de tudo cidas de caminhar, andar, olhar com atributos os esquemas ainda não
ser premeditado, as ações que passaram por processos de decupagem utilizados.
tomam-se tão presentes que é irresistível olhá-Ias. Os processos de de- Assim, sempre supondo estruturas já conhecidas, as novidades
cupagem são exemplos de apropriações de si mesmo que os sujeitos vão sendo constituídas num longo processo, no qual a ação experi-
extracotidianos realizam para se tomarem sujeitos de si. mentada resulta num movimento entre fazer e compreender.
Portanto, parece claro que as estruturas extracotidianas de com- Somente um pensamento bastante redutor pode considerar o tra-
portamento cênico são aprendizagens realizadas por diferenciação e balho extracotidiano do ator como algo fixo e fechado. Passar de um
coordenação, constituindo-se pela incorporação de comportamentos conhecimento menos complexo a um mais complexo parece ser uma
novos, aprendidos em sucessivos patamares de diferenciação do coti- característica intrínseca ao desenvolvimento geral do ser humano, e a
diano, sintetizando-se em cada nível os êxitos da ação, superando-os constituição de estruturas extracotidianas não foge a essa regra.
e impulsionando-os a um patamar seguinte, num caminho duplo e Deslocar a objetividade, tematizando o próprio sujeito como ob-
complementar de diferenciação e coordenação. De um lado, diferen- jeto de conhecimento, caracteriza este processo de construção criador
ciando-se o comportamento cotidiano do extracotidiano; e do outro, de novidades, que se constituem pela ação do sujeito. Essa ação pos-
constituindo o sujeito extracotidiano por uma espécie de continuida- sui um funcionamento similar à ação cotidiana, no entanto, coordenar
de funcional ao sujeito cotidiano. Quanto maior a capacidade de dife- essas ações e diferenciá-las das do cotidiano causa uma ruptura estru-
renciação entre cotidiano e extracotidiano o ator possuir, tanto maior tural. O ato r poderá retomar a estados e ações extracotidianos, porque
será sua habilidade de traduzir seu próprio eu, de expor sua própria constituiu para si estruturas próprias para esse fim.
identidade no seu comportamento extracotidiano. Seria, então, o trabalho do ator um desenvolvimento dependente
Desde os estudos de Stanislávski (no início do século xx), o tra- de estruturas e capacidades já constituídas pelo sujeito cotidiano que,
balho do ator pode ser compreendido como um trabalho relacionado embora em continuidade funcional, ou seja, funcionando da mesma
às ações psicofísicas. Da mesma forma e num campo bem mais am- maneira como o cotidiano, rompem os modos de agir e pensar, para
plo, é pela ação que Piaget explica toda a complementaridade entre constituir modos singulares de presença, de consciência e de apro-
estrutura e funcionamento, entendendo o desenvolvimento humano priação de si mesmo.
30 o ATOR COMO XAMÃ O SUJEITO EXTRACOTlDIANO 31

UM SUJEITO DE CONSCIÊNCIA cipal~ente do cinema e da TV), mas, ao contrário, numa apropriação


Tentando generalizar o trabalho dos alunos-atores, poderia daquilo que não pode ser mostrado aos outros de outra forma, Daquilo
imaginar uma situação exemplar. Temos um aluno em trabalho. que queremos esconder e que as "máscaras sociais" que se configuram
Ele precisa montar uma pequena seqüência de ações físicas a partir como pr~teções, como personagens que inventamos no cotidiano para
de determinado tema, costurar um manto infinito, por exemplo. nos relacionar melhor com os outros, não nos deixam expressar.
Usa ações cotidianas tentando dilatá-Ias, tentando aumentar seu Como sujeitos de si, exploramos nossos esconderijos secretos
tamanho no espaço e sua energia. Nesse trabalho descobre novas nossas angústias, nossos sonhos secretos e, assim, expressamos uma
ações, distintas daquelas inicialmente selecionadas. Uma forma de humanidade na dimensão do extracotidiano.
caminhar, por exemplo, transformou-se e, transformando-se, defi- . ~s en~evistas com os clowns profissionais sugeriram que essa apro-
niu um padrão de tônus muscular que até então era desconhecido. pnaçao de SI começa, freqüentemente, na infância ou na adolescência. Os
Depois, noutro momento, esse mesmo ator precisa fazer uma outra entrevistados relatam acontecimentos da vida cotidiana que por acaso ou
seqüência de ações físicas para outro tema qualquer, poderia ser por brincadeira adentram a dimensão da apropriação de si.
para uma cena na qual deve enfrentar uma fera selvagem. Ele usa . . A fala de uma imitação que fazia por volta dos sete anos, na qual
a energia descoberta na primeira vez que trabalhou com aquele irmtava o pai do caseiro da família, o qual não tinha dentes, e divertia
modo particular de caminhar e opera outras transformações. Tra- toda a família. B fala de como é tímido e como isso está incorporado
balha sobre o resultado da ação primeira e eleva a uma segunda na atuação. Esses relatos indicam, também, que o vocábulo "si" im-
potência esse resultado. Da segunda vez que cria uma seqüência de plica na relação com o "outro", pois é na interação com o outro que se
ações físicas, já não cria da mesma forma, desde que tenha se apro- estrutura o si. Uma vez atravessado pelo outro, não se reduz, portanto,
priado do resultado das açõcs da primeira. Se considerarmos como ao eu. O si é mais que o eu, ele implica o outro.
resultado aquele novo padrão de tônus muscular, o ator poderá Esses exemplos mostram a diferença entre o sujeito extracotidia-
operar criativamente sobre esse resultado. Na segunda seqüência no e outros comportamentos espetaculares. Parece haver uma conti-
ele não trabalha mais diretamente sobre as ações cotidianas, mas nuidade entre a vida cotidiana e sua reformulação noutra dimensão. Os
sobre o resultado delas no âmbito extracotidiano, ou seja, sobre acrobatas, os praticantes de artes marciais ou os esportistas, por exemplo,
um padrão de energia que ele consegue identificar, distinguir de não são sujeitos de si, na dimensão que estou propondo, embora realizem
outros e manipular em diferentes ações. um comportamento espetacular, pois não se apropriam de si, não necessi-
Esse exemplo mostra como o sujeito extracotidiano é um su- tam revelar nada escondido, não necessitam um comportamento no qual
jeito que organiza e sistematiza determinado comportamento para tenham de revelar-se como humanos num estado alterado e distinto do
dar a ver a outros sujeitos. No entanto, nem todo comportamento cotidiano. Embora extracotidianos dão-se a ver muito mais numa dimen-
que nós, como observadores, definimos como extracotidiano é um são incrível do que crível. Um sujeito de si é sempre um sujeito no qual
comportamento aplicável ao sujeito extracotidiano. É preciso que o observador acreditará e o fará em função de um comportamento que é
haja um acordo no qual observador e sujeito extracotidiano acei- orgânico e, portanto, pertencente ao organismo, ou seja, pertencente a si
tem esse comportamento como extracotidiano e, portanto, deslo- mesmo - construído pelo indivíduo e por ele realizado na apropriação de
cado do tempo e do espaço cotidiano; surpreendente, fascinante, elementos que não estão fora de si ou trazidos do exterior. Por mais que
especial. usemos objetos, idéias ou elementos exteriores, são os elementos do su-
A experiência da consciência é uma característica desse sujeito e jeito que caracterizam essas apropriações, fazendo da ação extracotidiana
de como ele se assujeita a suas próprias ações, à sua cultura pessoal sempre uma ação sobre si mesmo.
e coletiva, na qual, imerso, aprende a fazer e construir seu comporta-
mento extracotidiano. UM SUJEITO DE PRESENÇA
Segundo Barba, "Stanislávski e seus alunos [oo.] descobriram que
o trabalho sobre eles mesmos como atores se convertia em um trabalho Pensar o sujeito extracotidiano como um sujeito da presença ti-
sobre eles mesmos como indivíduos'". Essa "conversão" não se dá no sica e mental significa ampliar a idéia de que o ato r é aquele que age
uso de uma persona social, como fazem os atores celebridades (prin- na intenção de fazer parecer-se outro. Essa é uma característica muito
particular de um atar típico da tradição euro-americana, do intérprete
de textos, do ator falador. O que posso dizer é que o que abarca outras
5. E. Barba, La canoa de papel, p. 167. maneiras de estar e ser extracotidiano é caracterizado pela presença.
32 o ATOR COMO XAMÃ O SUJEITO EXTRACOTIDIANO 33

Essa presença supõe ausência de características cotidianas. Estar É um corpo-em-vida. O fluxo de energias que caracteriza nosso com-
presente significa integrar corpo e mente numa ação única e indivi- portamento cotidiano foi redirecionado'".
sível, ao contrário da vida cotidiana, em que podemos agir e pensar Esse fluxo de energia, portanto, é não só a presença no sentido
em coisas diversas ao mesmo tempo; o sujeito extracotidiano prova a literal, mas uma alteração intencional da consciência de estar aí diante
indubitável força da vida que fluiu. do observador, uma responsabilidade contínua de capturá-lo, de man-
Vejamos alguns dados extraídos das entrevistas com o grupo de ter sua atenção sem, contudo, expressar sua intencionalidade.
atores profissionais. A, explicando como resolve imprevistos duran- Ora, mas se essa dilatação do corpo que captura a atenção do ob-
te a atuação, responde: "acho que é uma presença tão presente que servador caracteriza esse sujeito extracotidiano, que implicação teria
é mais do que o teu poder mental, porque senão tu entraria numa sua mente? Trata-se de um processo unicamente fisico?
racionalidade explicativa. [00'] esse estado gera o jogo, gera uma De forma alguma. Um corpo dilatado corresponde ao que Franco
lógica especial". Ruffini nomeia como uma "mente dilatada'". Segundo ele, as carac-
B diz: "é uma experiência completa. Parece que você fez ao mes- terísticas apontadas por Barba para definir o corpo dilatado definem,
mo tempo em que você percebeu o que você fazia, o que você sentia. também, a mente dilatada. Essas modalidades da mente dilatada são a
E ao mesmo tempo você provocou aquilo e ao mesmo tempo você viu peripécia, a capacidade de fazer saltos com o pensamento para surpreen-
a reação do público, é tudo junto". der tanto o ator quanto o espectador; a desorientação, que caracteriza
As ausências iniciam-se nas escolhas que os sujeitos fazem no esses saltos, pois inverte a lógica linear do pensamento cotidiano; e,
seu caminho profissional. Escolher estas ou aquelas técnicas já deter- a precisão, que corresponde a banir a redundância de toda a ação para
mina eliminar possibilidades, e, eliminando-as, produzir uma presen- deixar livre apenas a simplicidade e o essencial para a relação com o
ça determinada, com características e identidades específicas. observador.
Por outro lado, essas eliminações conduzem a uma coerência Essa mente dilatada, como mostrou o trabalho com o c!own, cor-
distinta da do cotidiano. Os sujeitos de presença eliminam os con- responde a um nível pré-expressivo de trabalho. Uma dimensão ante-
dicionamentos cotidianos pelos quais automatizamos determina- rior à expressão que a torna possível e, ao mesmo tempo, se constrói
dos modos de comportamento. Nosso comportamento cotidiano é por ela. O sujeito extracotidiano se encontra com uma mente dilatada
sempre funcional, pois nos comportamos na medida de nossas ne- não como um estado final, mas como um processo pelo qual a cons-
cessidades, usando o mínimo esforço para atender aos resultados ciência dilatada faz com que o fluxo de energia de sua presença fisica
esperados. em ação reconstrua a cada instante sua relação de "sedução" com o
Na dimensão extracotidiana, entretanto, usamos o máximo de observador. Esse processo de estar presente caracteriza o sujeito extra-
esforço físico e mental para lograr resultado pela eliminação de cotidiano e o diferencia de outros sujeitos cênicos, no entanto, antes de
condicionamentos cotidianos. Formas de falar, andar e pensar al- tudo, cabe frisar que essa constituição de configurar-se como uma dila-
teram-se para tomar outra velocidade, outra coerência e, por fim, tação é um processo de diferenciação do comportamento cotidiano que
outra consciência de si e de estar presente em todas as dimensões conduz a uma ruptura das estruturas mentais e fisicas em relação a essas
do sujeito. construções no cotidiano. Um corpo e uma mente dilatados constroem
A partir dessas observações posso perguntar novamente: o que estruturas específicas para esse comportamento, e isso faz do trabalho
caracteriza o sujeito extracotidiano? do ator um comportamento cênico dependente de procedimentos vo-
Além de todos os dados que pude recolher e apresentar, pare- luntários e intencionais, e jamais de determinantes inatos.
ce-me que o que caracteriza o sujeito extracotidiano é uma singular Os exemplos e as idéias que mostrei até agora ampliam a compreen-
configuração da consciência, a qual toma-o presente, de modo a mo- são pela qual gostaria de sublinhar a idéia de que temos no compor-
dificar a percepção que o espectador tem dele. Esse estado presente tamento do sujeito extracotidiano uma continuidade funcional entre o
dilata as energias corporais unindo intenção e ação no tempo e no cotidiano e sua contínua e fluente construção de um comportamento
espaço. Barba define a presença do ator como um poder de sedução extracotidiano. Essa hipótese encontrou subsídios suficientes nesta
que, aliado à compreensão do que ocorre em cena, faz com que o es- pesquisa para ser demonstrada. O comportamento do sujeito extraco-
pectador se interesse e mantenha seu interesse pelo ator. Ele diz que tidiano funciona numa continuidade diferenciadora da do comporta-
"Com freqüência chamamos esta força do ator de 'presença'. Mas
não se trata de algo que está, que se encontra aí, à nossa frente. É 6. E. Barba e N. Savarese, A Arte Secreta do Ator, p. 54.
contínua mutação, crescimento que acontece diante de nossos olhos. 7. Idem, p. 64.
34 o ATaR COMO XAMÃ
3. O Mecanismo da Consciência
mento cotidiano, no entanto, numa dimensão na qual a presença, as
apropriações de si e sua consciência possuem estruturações que rom-
pem os princípios cotidianos e constroem estados e ações tão diversos
e, ao mesmo tempo, tão semelhantes aos do indivíduo.
A seguir, vou me esforçar em discutir como essas configurações
da consciência funcionam numa espécie de "apercebimento recons-
trutivo", no qual o ator configura sua consciência para se fazer sujeito
extracotidiano e para dar a ver um comportamento sedutor com efi-
ciência.

A tarefa a que me propus foi a de verificar como a consciên-


cia trabalha nas primeiras ações do ator até a apresentação diante do
público. Falei sobre a consciência nas tradições pedagógicas teatrais
constituídas no século xx, como elas polarizaram, de um lado, o en-
tendimento da consciência como razão e de outro, como tentativa de
minimizar as funções racionais. Depois procurei delimitar o sujeito
extracotidiano como um sujeito de si, de presença e de consciência,
mostrando a continuidade funcional e a ruptura estrutural entre a di-
mensão cotidiana e extracotidiana. Assim, ao refletir sobre a consti-
tuição do sujeito extracotidiano, posso reformular minha questão de
pesquisa e perguntar: como se configura a consciência na constituição
do sujeito extracotidiano? Saber o como é, também perguntar sobre
o mecanismo da consciência, como ela age e como percebemos essa
experiência de reconhecermos que sabemos sobre nós e sobre nossas
ações na dimensão extracotidiana.
O objetivo desse capítulo será, portanto, mostrar a inversão das
relações entre fazer e compreender na tomada de consciência da
ação extracotidiana, ou seja, como o compreender se torna fazer
em pensamento, na medida em que fazer se torna compreender em
ação.
O ponto inicial dessas questões foi, para mim, o trabalho com
alunos em oficinas de iniciação de clown. Embora não me debruce
neste trabalho sobre a constituição do clown especificamente, rói ele
que me forneceu os indícios para construir a trajetória dcsta pesquisa.
36 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 37

As configurações da consciência no trabalho de alunos atores em si- configurações da consciência como um mecanismo. Por que nesses
tuação de iniciação ao estudo do clown exemplificaram para mim as dois casos temos resultados tão diferentes para propostas idênticas?
demandas da pesquisa. Ao trabalhar com esses alunos, uma questão Obviamente, a história das ações de cada aluno é diferente, mas se a
prática sempre me perseguiu: por que, depois de experimentar o esta- hipótese lançada anteriormente está correta e existe uma continuidade
do cômico no picadeiro (o que observo acontecer com praticamente funcional entre a dimensão cotidiana e a constituição da dimensão ex-
todos os meus alunos), pouquíssimos conseguem retomar esse estado, tracotidiana, parece evidente que a consciência se configura como um
configurá-lo numa ação memorizada e apresentá-lo diante do público mecanismo importante, no qual o sujeito regula suas ações de forma
com o mesmo nível de intensidade que tinham no exercício do Pica- deliberada ou obstaculiza por algum fator que foge de sua vontade.
deiro em sala de aula? Assim, nesta pesquisa, pude perceber de forma mais clara o me-
Na pesquisa realizada procurei verificar, então, quais os proces- canismo da consciência como uma das formas de sua configuração.
sos implicados no sucesso dessa tarefa e quais no fracasso da mesma Foi analisando o trabalho dos alunos-atores, sobretudo nas primei-
proposta. Dois casos me chamaram a atenção, nesse sentido, no grupo ras elaborações, que pude compreender como a consciência trabalha
de alunos-atores, objeto desta pesquisa. com uma espécie de "apercebimento" que, contudo, não se reduz à
O primeiro aluno clown vou nomear como A, e o segundo, como percepção, mas trata-se de uma reconstrução noutro plano bastante
B. Recorto esses dois exemplos pela singularidade e oposição que complexo das ações de êxito precoce em relação à sua compreensão.
seus trabalhos apresentaram durante a oficina. Piaget chama esse mecanismo de tomada de consciência.
A chega à oficina de clown com alguma experiência como ator. Trata-se de uma espécie de apropriação de si ou das ações pró-
Tem facilidade para atingir rapidamente o estado ridículo, no qual ex- prias numa dimensão que faz a experiência se constituir de forma
perimenta poucos movimentos. Logo na terceira sessão de trabalho, tão profunda, capaz de construir conhecimento e, por isso, mudar as
anotei em meu diário: "A usa pequenos movimentos com a cabeça estruturas do sujeito.
parecendo dizer sim e não ao mesmo tempo. Os colegas riem. Já con- Piaget tratou o assunto em duas obras: A Tomada de Consciência
segue um estado clownesco bastante presente". e Fazer e Compreender. Na primeira, relata e analisa uma série de ex-
Na sessão de trabalho que precede o Picadeiro, descrevi o traba- perimentos sobre a tomada de consciência de ações de êxito precoce,
lho de A assim: "A não repete muito as ações que criou, mas consegue ou seja, os sujeitos tomam consciência de uma ação que já dominam
estabelecer o estado clownesco com facilidade. Parece escolher o que no plano motor. Na segunda, traz experimentos e análise de tomadas
fazer e regula a intensidade das ações muito bem". de consciência progressivas em relação ao domínio da ação.
Na entrevista coletiva que sucedeu de imediato o trabalho com o Mas se Piaget se ocupou dessa tomada de consciência, no que diz
exercício do Picadeiro, A diz: "parece que a gente tem que decidir de respeito às ações motoras e sua interiorização por meio de estruturas
um outro jeito, não como faz na vida". lógico-matemáticas, a psicanálise cumpriu tarefa semelhante ao pro-
B, ao contrário, não possui quase nenhuma experiência teatral curar explicar a passagem do inconsciente ao consciente de elementos
anterior. Tem muita dificuldade para lograr o estado ridículo, carac- reprimidos, sejam afetivos ou emocionais.
terístico do clown, embora se esforce. Sobre isso registrei o seguinte: O autor suíço trabalha, obviamente, com o mecanismo na dimen-
"B não consegue nos exercícios preliminares, em nenhum momento, são cotidiana, no entanto, se a idéia de continuidade funcional entre co-
um estado satisfatório. Todo o tempo em que usa o nariz parece estar tidiano e extracotidiano que apresentei anteriormente está correta, essa
premeditando, usando deliberadamente o raciocínio para planejar al- explicação piagetiana se aplicará também às tomadas de consciência do
guma coisa e depois executá-la. É quase impossível para ele". sujeito extracotidiano. Então, tomar consciência no trabalho do ator não
Na oitava sessão de trabalho registrei um fato interessante em significa iluminar algo que já existia anteriormente e que, como ator,
meu caderno, vejamos: "Ao tentar trabalhar com um objeto, B quase não havia me dado conta, mas, sim, reconstruir de forma tão trabalhosa
o derrubou, resgatando-o no ar, num golpe rapidíssimo. Como ficou quanto qualquer ação complexa que gera e possibilita nossos conheci-
satisfeito com sua agilidade, sorriu para a platéia (de colegas) e ime- mentos. Entendida dessa forma, a idéia de talento passa a ser tão somente
diatamente provocou o riso dos colegas. Tentou repetir e não funcio- o resultado do esforço de trabalho e jamais uma condição a priori.
nou, desta segunda vez parecia tentar imitar a si próprio, não fez a ação Em função dessas propostas, vou usar alguns argumentos piage-
como se ela fosse de verdade, parecia ter uma verdade inventada". tianos com o fim único de elucidar as questões sobre o trabalho do
Os exemplos acima são tirados de uma série de situações em ator, sem, contudo, procurar testar suas hipóteses, tampouco reprodu-
sala de aula, trabalhando com clowns que me fazem pensar nessas zir suas idéias ou defender teses sobre elas.
38 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA }9

Piaget rechaça a idéia do senso comum de que a tomada de cons- ciação ao clown e sublinho três desses tipos para ilustrar os êxitos
ciência seria uma iluminação, um desvelamento de algo que já estava precoces da ação.
dado no sujeito e que viria lançar luz sobre algo que estava obscuro. A primeira coordenação que gostaria de relatar é a dos estados
Piaget alerta sobre a exigência de reconstruções para essa passagem lúdicos se sobrepondo à ação. Naquilo que é possível de ser consi-
do inconsciente até estados mais conscientes. derado como observável na ludicidade de uma ação, anotei diversos
Mas o que são ações de êxito precoce no trabalho do ator? A ob- exemplos sobre a capacidade de conferír êxito à ação cômica, impli-
servação e análise do grupo de alunos-atores mostrou que o êxito da cando ela um estado de divertimento e prazer.
ação tisica não está em todas as ações improvisadas e que respondem Vamos a algumas anotações do meu caderno de notas sobre a
à determinada proposta. É preciso que o ator possa determinar dentre oficina com os alunos atores.
as suas ações quais alcançam êxito e quais não alcançam. No mundo
cotidiano essa diferença se toma mais claramente exposta ao sujeito, Encontro 8 - D, F c I sambam freneticamente enquanto C olha como se nada
estivesse acontecendo. O nariz de F quase cai devido aos movimentos enlou-
pois cumprimos tarefas bem específicas. Desejo ir até a porta, levanto
quecidos. Quanto mais dançam, mais entusiasmados ficam, mostram prazer
donde estou sentado e vou até lá. Sei de imediato se tive ou não êxito, enorme cm realizar. Os colegas riem bastante. É um ótirno exercício para I,
pois a tarefa a que me propus foi ou não cumprida. que mostra algum prazer pela primeira vez. Depois perguntei o que acharam
A escolha do clown como linguagem me ajudou a determinar um do exercício e os três responderam que se divertiram muito.
limite bastante específico nesta pesquisa para considerar as ações de Encontro 20 - C fica um tempo enorme brincando com os dedos e fazendo toda
uma história com os dois indicadores, como se fossem um casal a namorar.
êxito precoce. Sempre que a ação do ator possui êxito, seja ele pre-
Exercita longamente e diverte-se de forma clara, conseguindo a atenção ime-
coce ao seu entendimento pelo sujeito ou progressivo em relação ao diata e muito atenta dos colegas.
mesmo, existe uma reação de riso ou comoção na platéia. Assim, deli-
mitei minha observação nas ações que provocam riso e/ou comoção. Essa dimensão lúdica é fartamente relatada pelos atores clowns
Ora, qualquer pessoa no cotidiano realiza ações que, eventual- profissionais como um estado de prazer. Vejamos alguns depoimentos.
mente, podem conduzir o observador ao riso ou à comoção. No en-
tanto, o que as diferencia é o fato de que no cotidiano tais ações não A - Tu tens que ter prazer, senão não há cômico.
possuem uma intencionalidade. A dimensão extracotidiana solicita 13 - Deixei que o tridente pegasse no meu pé, e isso foi uma coisa engraçada que
uma apropriação dessas ações para torná-Ias cênicas, e o mecanismo o público riu muito e nesse momento eu senti que eu queria fazer [...] cu tive
a sensação - nossa que bom fazer isso, cu quero, que prazer.
da consciência que realiza essa apropriação constitui-se num conhe-
cimento específico e possui idiossincrasias.
Supondo que os sujeitos identifiquem de imediato as ações que A segunda coordenação que parece conferir êxito ao intento de
possuem êxito de fazer rir e comover os observadores, como se apro- provocar riso e comoção é deixar-se atingir. No trabalho com o clown
priam dessas ações e de seus respectivos estados para reutilizá-los no isso significa orientar as ações a partir das reações do observador.
futuro? Ou ainda, como retomam no presente ações e estados experi- Esse observador pode ser, também, no caso da situação em oficina,
mentados no passado? o coordenador (Monsieur Loyal). Os exemplos dos alunos atores po-
Para Piaget, a ação possui um saber por si só. No plano da ação, en- dem clarificar essa noção. Durante o trabalho prático usa-se a expres-
contramos uma série de coordenações que podem conferir êxito à ação. são "receber a bola" para designar esse momento de aceite do clown
Para os alunos-atores o trabalho com o clown apresentou essa de sua condição ridícula. Então, receber a bola é uma experiência de
primeira dificuldade: identificar quais eram as ações de êxito para so- apercebimento, na qual o ator deve coordenar sua ação a partir da rea-
mente depois se apropriar delas. Considerando as coordenações das ção que ela provocou no observador para criar uma próxima ação.
ações como vínculos e nexos entre relações de ações que não existiam Perguntados sobre isso os alunos respondem assim:
até o momento e que o sujeito realiza para satisfazer um objetivo,
E - Receber a bola é de repente tu te dá conta que aquilo pode ser ridículo c pode
pude apurar a diversidade das soluções encontradas. Para Becker, ser engraçado e pode ser divertido pros outros.
a "coordenação de ações significa, pois, alguma ligação ou relação C - É se dar conta da tua idiotice.
que o sujeito estabelece entre ações, que não existia anteriormente"'. II - É um processo [...] a gente fica nu, a gente fica despido.
Assim, observei coordenações específicas durante o trabalho de ini-
A terceira coordenação que, segundo minha observação, parece
I. r. Beckcr, Educação e Construção do Conhecimento, p. 117. conferir êxito à ação clownesca pode ser resumida como a imobilidade.
40 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 41

No caso do clown trata-se de um atributo bem específico. Excesso de simultaneidade implica sempre que o sujeito tenha já experienciado
ações quase sempre toma-se parasitário ao êxito de provocar riso ou ações de êxito.
comoção. Movimentos da face, como caretas e risos excessivos, tam- No sentido de descrever e delimitar esse processo, observei no
bém podem lograr insucesso. No entanto, o mais importante parece grupo de alunos três fases distintas dessas relações entre fazer e com-
ser coordenar uma determinada imobilidade, característica da situa- preender.
ção clownesca; o clown se apercebendo do seu ridículo e, por isso, Na primeira o aluno tem êxito nas ações, consegue provocar o riso
impossibilitado de agir, ou agindo de forma reduzida. Vamos a um ou a comoção, mas não tem a mínima idéia do que provocou o riso,
exemplo do meu caderno de notas: de qual comportamento apresenta possibilidades de ser repetido com
sucesso. Vejamos um exemplo do meu caderno de anotações.
Encontro 3 - A, ao virar-se da parede para a platéia, fica praticamente imóvel, no
entanto, pulsando. Não usa praticamente nenhum movimento aparente, mas Encontro 6 - [...] estamos realizando um exercício em trios. Depois de realizarem
posso perceber uma imobilidade dinâmica, apenas olha para os colegas e eles a tarefa que consiste em dar um susto, converso com cada clown orientando,
riem muito. E, ao contrário, não logra sucesso nenhum em fazer rir porque faz em cena, algumas apropriações, como manter um movimento de cabeça ou
caretas e explora em demasia seus pequenos movimentos. pernas. Quando falo das pernas longas de O, ele reage ao que eu digo, fazen-
do movimentos quase cruzados entre os joelhos. Os colegas riem. Digo para
Mais do que coordenar um desses aspectos, logrou-se êxito nas O repetir e manter o movimento das pernas, mas embora os faça iguais no
que diz respeito ao movimento externo, algo falta para que seja igualou que
ações quando foi possível coordená-los todos, uns aos outros, pois tenha a mesma intensidade. O repete diversas vezes sem conseguir resgatar
aquilo que aqui descrevo separadamente, na prática, precisa atingir a
a. unidade, e coordenar esses aspectos significa relacioná-los em ações.
a comicidade que tinha de início. Ele me olha atónito parecendo não saber o
que fez.
(J)

-
:::> Essa construção, esse apercebimento, que Piaget chama de to-
mada de consciência, no entanto, coordena as ações num segundo Nessa primeira fase, identificar o êxito da ação se confunde com
I plano e sintetiza os mecanismos e processos das primeiras, elevando compreender o que se fez, ao contrário da segunda fase, na qual o su-
Ü o sujeito a um novo patamar de apropriação de sua ação, emergindo, jeito percebe o êxito, mas não compreende por completo a ação e, por
-J então, uma nova ação distinta da que originou todo o processo de isso, não consegue se apropriar dela de forma integral. Vamos seguir

-
u, tomada de consciência. Trata-se de identificar quais as ações de êxito a trajetória de O para se ter uma idéia.
U.
e depois se apropriar delas com o intuito de retomá-las ou aos seus
estados no futuro. Esse processo é que se revela extremamente com- Encontro 12 - O sorri e provoca riso nos colegas. Descobriu fazendo exercícios,
O mas o Picadeiro foi definitivo para essa apropriação. No final do encontro per-
CC plexo, enquanto, segundo Piaget, para o senso comum "a tomada de
gunto a O o que faz para conseguir rir e provocar o riso. O responde: "Ainda
(1), consciência consiste apenas em uma espécie de esclarecimento que não sei muito bem, mas acho que se trata de uma sensação... assim, uma coisa
_._. J
não modifica nem acrescenta nada, a não ser visibilidade ao que já assim meio bobo alegre".
existia antes que se lhe projetasse a luz'",
Longe de ser uma "iluminação", a tomada de consciência é uma Nessa segunda fase, existe um apercebimento de que uma de-
reconstrução, ou seja, uma construção num novo patamar. Essa "pas- terminada ação funciona e, funcionando, possui algum mecanismo que
sagem" de estados inconscientes até o plano da consciência exige, poderia ser usado, mas não se compreende em profundidade, a ponto de
então, uma construção. se ter o domínio absoluto das razões da ação, e essas razões não são enun-
É na teoria da tomada de consciência que Piaget delimita as ciados que o sujeito pode ou não definirquando perguntado sobre a ação.
preocupações do sujeito com a sua própria ação, pois, ao procurar Descrevê-Ia não garante sua compreensão, pois compreender é coor-
reconhecer sua ação, o sujeito busca "reconhecimento dos meios denar a ação nos domínios da ação tisica e no domínio do pensamento.
empregados, motivos de sua escolha ou de sua modificação durante Uma terceira fase pode ser descrita quando essa situação se constitui por
a experiência etc..". Essa dupla coordenação implica, então, fazer e completo. O sabe fazer seu sorriso com êxito sempre que deseja e com-
compreender o que foi feito ou o que está sendo feito. Embora com- preende quando e em quais situações obtém êxito nesse objetivo. Vamos
preender seja tardio em relação ao fazer, existe um processo que pode a um último exemplo, também extraído de meu caderno de notas.
ser simultâneo. Compreendo durante o ato de fazer. No entanto, essa
Durante a apresentação ao público, O usa o sorriso exitoso diversas vezes. Em
2. J. Piaget, A Tomada de Consciência. p. 197. alguns casos suaviza a expressão e em outros intensifica enquanto faz outras ações da
3. Idem, p. 198. sua cena. Parece ter plena noção daquilo que eriou, pois age como se sempre fizesse
42 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 4.1

essas ações. Todas as vezes que usou essa ação o públieo riu de forma explícita. Apro- A compreensão, enfim, transborda o mundo real, a partir da
priou-se disso de forma que aparentemente O compreende e generaliza esse estado para síntese que faz da ação fisica, ampliando os possíveis do sujeito cm
qualquer ação que quiser. Perguntei a O se sabia quando usar seu chistc, e O respondeu:
direção a uma nova ação, dessa vez num patamar superior aos prece-
"na apresentação parecia muito fácil".
dentes, mas que não os relega c, sim, os subjaz. E é o mecanismo da
tomada de consciência, ou seja, do sujeito se reconhecendo em sua
Essas três fases (1. ter êxito sem possibilidades de saber por quê;
2. ter êxito e aperceber-se de que existe um mecanismo implicado; e
ação, ou ainda, conhecendo a si mesmo e, portanto, conhecendo o
mundo, que explicaria essas transições entre um patamar e outro. Em
3. ter êxito e dominar o mecanismo, sendo capaz de repeti-lo) con-
síntese, o momento de mudança é mais importante que o momento de
sistem apenas numa descrição, mas mostram como as relações entre
equilíbrio. É a transição que explica o conhecimento construído, é a
fazer e compreender possuem, de um lado, um êxito precoce da ação
passagem que nos revela o mecanismo que conduz o sujeito da ação
sobre a compreensão e, de outro, um progresso processual da compreen-
à sua compreensão.
são em relação à ação. O exemplo acima ilustra como a ação fisica
Se a tomada de consciência é o mecanismo responsável por esse
se toma pensamento, e como essas coordenações vão pouco a pouco
processo de apercebimento e construção, é porque ela resulta em mu-
tomando-se ação fisica novamente.
danças significativas no sujeito, e essas por sua vez respondem a con-
Essa dupla natureza - a de uma coordenação da ação e uma do
ceituações novas.
pensamento - inverte os sentidos entre fazer e compreender, pois
Para Piaget, a partir do estágio das operações concretas, a tomada
compreender passa a ser tão fisico quanto fazer, ao passo que o fa-
de consciência leva a uma conceituação. Antes disso, a tomada de
zer necessita de uma compreensão para alcançar êxito. Não existem
consciência supõe uma série de construções inerentes a cada estágio,
limites, então, entre corpo e mente. O trabalho do ator integra tanto
contudo, isomorfas ao que, no futuro, será a conceituação. Conceitua-
técnica, quanto criação; mente e corpo; natureza e cultura. Se o pen-
samento trabalha com grupos simultâneos e esquemas de ordem, en-
ção não é, segundo Piaget, igual à enunciação:
caixes, correspondências e outros, a ação tisica do ator, ao contrário,
nós nos exprimimos como se toda verbalização implicasse uma conceituação e toda
opera sempre uma a uma, mas dentro de uma estrutura de grupo. Mas conccituação, um certo grau de consciência [...] Pode haver conceituação fora da lin-
do que se trata, então, compreender, no trabalho do ator? guagem e em ligação com outras formas da função serniológica [semiótica] (...] a con-
Fazer e compreender formam uma bipolaridade complementar, ccituação devendo ser entendida no sentido mais amplo de um esquema representativo,
pois, para Piaget: "compreender consiste em isolar a razão das coisas, mas em sua significação, evidentemente, seja qual for o significante'.
enquanto fazer é somente utilizá-las com sucesso, o que é, certamen-
te, uma condição preliminar da compreensão, mas que esta ultrapassa, A idéia de conceituação não se resume, pois, a uma simples de-
visto que atinge um saber que precede a ação e pode abster-se dela'". finição; trata-se mais de uma síntese num plano que engloba a ação,
Esse fazer como condição para a compreensão se torna, no caso mas que, no entanto, a ultrapassa, embora conservando-a.
da compreensão da ação fisica do ator, um problema-chave, à medida Mas seria a idéia de coneeituação aplicável aos comportamentos
que as relações entre a ação fisica e a ação mental correspondente extracotidianos? A ação fisica do ator necessitaria uma conceituação
possuem mais ligações do que as ações e a compreensão da ação co- para ter eficácia? Quais seriam as características de uma conceituação
tidiana, à qual se refere Piaget, principalmente no que diz respeito à na dimensão extracotidiana?
simultaneidade e às coordenações progressivas entre agir e pensar. Lembro-me de uma situação envolvendo uma aluna que não con-
É comum o ator poder relatar verbalmente os avanços necessários seguia transformar uma seqüência extraída de movimentos com um
a suas ações, sem necessariamente conseguir empreender tais avan- bastão, numa seqüência de ações fisicas que ela desejava usar numa
ços no plano objetivo de suas ações fisicas. Esses relatos são típicos cena em que simulava um vôo, Apesar de muitos exercícios, alguns
daquilo que descrevi há pouco como uma segunda fase de relações comentários meus e outros dos demais colegas, ela não progredia.
entre fazer e compreender. A compreensão da ação fisica necessita Após uma conversa em sala de aula, conseguiu relatar todos os pro-
uma compreensão superlativa na qual corpo e mente se conectam de blemas da seqüência sem, contudo, conseguir resolvê-los. Algumas
maneira imperiosa. Compreender, para o ator, passa por sintetizar aulas depois, ainda trabalhando sobre a mesma seqüência, estava
ação fisica formal ao universo interior. Compreende-se com o corpo repetindo as ações. Em dado momento resolveu realizá-las sentada.
e no corpo. Depois de experimentar uma vez, disse: "poderia ser como uma gai-

4. J. Piagct, Fazer e Compreender, p. 179. 5. J. Piagct. A Tomada de Consciência. p. 195.


44 o ATaR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 45

vota na praia", refazendo as ações. No entanto, dessa vez, de forrna Em Fazer e Compreender, Piaget objetiva verificar se os resul-
surpreendente, inclusive para ela, as ações começavam a deixar de ter tados obtidos confirmam a autonomia inicial da ação e os efeitos re-
apenas uma dinâmica e alternavam completamente a percepção de sultantes da conceítuação sobre as ações. Para ele a ação possui um
peso e espaço no seu corpo. conhecimento autônomo; a tomada de consciência dos mecanismos
Parece-me considerável que o ator precise retirar, extrair de suas das ações é sempre tardia: "partindo das zonas de adaptação ao objeto
ações as qualidades que pretende manter em seu trabalho e descon- para atingir as coordenações internas das ações'", Não obstante, após
siderar as que não lhe interessam. Vejo aí um processo que pode ser um certo nível, existe influência da conceituação ou de seus resulta-
entendido como conceituação, mas que não se reduz a um enunciado dos sobre a ação.
dessas qualidades; ao contrário, age retroativamente, trazendo do pas- A conceituação passa a funcionar em relação à ação como um
sado as qualidades mencionadas e impulsionando para o futuro as hi- reforço das possibilidades de previsão de futuro, aumentando o poder
póteses de ações novas, regulando e ajustando as ações conforme sua de coordenação já encontrado na ação de primeiro nível. Para Piaget
vontade. Segundo o professor Fernando Becker, a conceituação é "a isso ocorre "sem que o indivíduo estabeleça fronteiras entre a sua
ação de extrair as características não observáveis da coordenação das prática ('o que fazer para conseguir?') e o sistema de seus conceitos
ações e reconstruí-Ias num patamar superior'". Conceituação, para o ('por que as coisas se passam desta maneira?')?",
trabalho do ator, é um processo fisico e mental ou, mais exatamente, É exatamente isso o relato que B, um dos clowns profissionais
a ação de sintetizar o universo fisico e mental. entrevistados, nos traz. Pergunto como ele incorpora influências de
No entanto, o processo não é tão límpido e é bem mais dificulto- outros clowns como, por exemplo, assistindo a filmes do Gordo e o
so do que essa breve descrição deixa transparecer. O ator enfrentará Magro. Ele responde que isso serve para compreender as estruturas
toda sorte de obstáculos, muitas vezes construídos por ele mesmo. cômicas. Então, pergunto se isso ocorre no momento da ação, em
Por algum conteúdo conflitante (fisico, psicológico, afetivo, sociaI...) cena. Ele diz: "Hoje em dia acontece, mais depois, eu acho. No iní-
ou que sugira alguma contradição, poderá bloquear sua percepção e cio, quando eu estava começando, era mais no momento. [...] Hoje
ter dificuldades em ver o caminho mais eficaz para sua ação. É o pro- eu consigo às vezes prever. Não é uma lembrança, [...] é um uso da
cesso de tomada de consciência que reequilibrará essas contradições, cabeça com o qual você pode antever, você pode, ao mesmo tempo
estabelecendo novas conceituações e fazendo-o retomar ao caminho que te ocorre, a idéia vem junto".
da criação. Há, notadamente, uma relação de futuro na descrição do processo
No caso da busca de êxito das ações cômicas do c1own, observei de B, na qual a conceituação faz um movimento de retroação, influen-
alguns exemplos desse processo de conceituação. Vejamos um deles, ciando a ação que originalmente possibilitou o processo. Esse movi-
extraído do meu caderno de notas: mento dialético é, aliás, toda a explicação piagetiana. Ao explorar os
conceitos e as diferenças entre fazer e compreender, Piaget analisa o
o tem se comportado de modo bastante diferente entre o encontro passado e fazer sob o ponto de vista dos movimentos, ou seja, como equivalente
hoje. Antes não havia qualquer indício que tivesse conseguido, senão ao acaso, usar
de compreender no plano da ação; ao passo que compreender impli-
pernas e braços de modo a produzir riso dos colegas. Hoje ele parece compreender,
parece dar significado a cada movimento, além de ser divertido para ele fazer isso nos
caria o domínio em pensamento, a ponto de resolver os problemas
exercícios que propus hoje. É como se ele agora soubesse, compreendesse o rídículo levantados no nível da ação. Trata-se de coordenações materiais e de
de seus movimentos. Não posso precisar exatamente em que momento isso ocorreu ou coordenações do pensamento:
começou a ocorrer, mas há, sem dúvida, uma grande diferença entre a semana passada
e essa. [) pode conduzir as ações como quiser. Perguntei a ele, durante um exercício, se Considerando somente os dados evidentes, existe, de fato, uma diferença de na-
ele poderia dizer como havia conseguido dominar essa espécie de KGK com as pernas e tureza, e até bastante sensível, entre os dois tipos de coordenações, no sentido de que
braços. Ele disse: "não sei dizer, mas sei o que significa pra mim". o primeiro é de caráter material e causal, visto que se trata de coordenar movimentos,
mesmo se eles são guiados por índices perceptivos, enquanto o segundo é de natureza
Esse processo de significar, embora não podendo enunciar, parece implicativa (no sentido das ligações entre significações, portanto da "implicação signi-
conduzir ao êxito e ligar significados pessoais a significantes observá- ficativa" ou implicação no sentido amplo, c não apenas entre proposições), mesmo se
entre seus elementos encontrarem-se representações de movimentos".
veis. Uma conceituação nesse caso tende a fazer da compreensão uma
estruturação num plano pessoal e eficaz para as ações cômicas.
7. .I. Piaget, Fazer e Compreender. p. 172.
8. Idem, p. 174.
6. Anotação de aula. 9. Idem, p. 176.
46 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 47

Em linhas gerais, o problema em Piaget é saber como essas coor- Mas se as estruturas causais dos movimentos em relação a objetos
denações materiais no nível da ação podem construir conhecimentos físicos não são tão importantes para a discussão da consciência extra-
que, embora limitados ao plano da ação, do movimento, portanto, não cotidiana do ator, a explicação desses possíveis como previsão de fu-
atingindo representações e não resultando em qualquer compreensão turo, como dissemos há pouco, reveste-se de implicações complexas
do pensamento, são isomorfos às coordenações lógicas. e pertinentes à nossa questão, pois a procura da razão ou a compreensão
O autor atribui essa propriedade cognitiva da ação material à ultrapassa os sucessos da prática, do plano material, enriquece a con-
causalidade orgânica ou biológica, que consiste na capacidade de ceituação, justamente porque ultrapassa os limites da ação, amplia-se
auto-organização. Essa capacidade não é linear. Os movimentos se sobre esses possíveis e transborda o real.
encadeiam em ciclos formados pelos conjuntos de movimentos que, Em relação à equilibração dos progressos entre a interiorização
por sua vez, formam os esquemas; estes últimos conduzem à satisfa- lógico-matemática e a exteriorização causal, Piaget argumenta de
ção de determinadas necessidades do sujeito. duas maneiras: a primeira, invocando a idéia de que, embora o sujeito
Piaget propõe-se a estudar essas coordenações da ação como adquira a capacidade de construir indefinidamente operações novas
contribuição para o entendimento da conceituação e por serem seus sobre as precedentes, isso não significa que essas operações novas
pré-requisitos. não tenham efeitos retrospectivos; e a segunda, sublinhando o movi-
Ele lança a hipótese de "que a característica mais geral dos esta- mento que parte dos fenômenos mais aparentes da ação para procurar
dos conscientes, desde as tornadas de consciência elementares, unidas suas razões.
aos objetivos e resultados das ações, até as conceituações dos níveis Dessa forma, as etapas da ação são sempre projetos de futuro,
superiores, é a de exprimir significações e reuni-las por meio de uma enquanto a compreensão constitui um fim permanente. Ambos cons-
forma de conexão que chamaremos, na falta de um termo melhor, de tituem processo de equilibração conjunta.
'implicação significante"'IO. Piaget afirma ainda que não é propriamente o futuro que determi-
Isso significa dizer que a coordenação operatória do pensamento na o presente, mas, sim, o desejo de atingir um determinado resultado.
é o legado mais direto da coordenação da ação que transforma, da Esse desejo constitui uma direção de futuro mais que uma determina-
mesma maneira, no plano da ação, os objetos materiais. Essa coor- ção, uma vez que ele não admite a idéia de uma suposta ação futura
denação do pensamento é considerada por Piaget como ação, pois influir no presente. Isso é possível, pois, em se tratando de comporta-
constrói novidades e toma-se ação significante ao utilizar meios de mento, o objetivo é visto como uma necessidade, como a expressão
natureza implicativa e não mais causal, como a ação material. Em de uma lacuna, de um desequilíbrio. Assim, para Piaget, o sujeito, ao
resumo, Piaget investiga o isomorfismo entre o fisiológico e a cons- satisfazer essa lacuna, consegue reequilibrar o organismo. Daí sua
ciência, entre a causalidade e a implicação, em que esta última tor- afirmação de que "essa direção oscila entre uma determinação pelo
na-se uma ação interiorizada. Considerando isso, Piaget levanta mais passado e uma abertura sobre novidades imprevisíveis, e isso apenas
um problema, pois "se há isomorfismo entre as estruturas causais das em cada etapa e não antecipadamente, pois é só através dos instru-
ações e de seus objetos e as estruturas implicativas do pensamento, as mentos dedutivos construídos nessa etapa que a nova e imprevista
segundas limitando-se a fornecer a razão das primeiras, como expli- construção aparece retrospectivamente como necessáriav'".
car por que essas razões se tornam autônomas, a ponto de abster-se de Da mesma forma, como já disse, o papel dos conflitos e das con-
todo objeto atual?"". tradições constitui elemento fundamental nas ultrapassagens, ou seja,
Para responder a essa questão, Piaget considera, inicialmente, que nos desequilíbrios e nas respectivas reequilibrações. Nesse caso, ve-
o indivíduo situa, em um universo de possíveis, as relações observadas rifica-se a primazia, no seu início, das afirmações e de tudo o que se
no real, e depois, que esse poder operatório conquistado pelo sujeito se relaciona como positivo, em detrimento das negações e do que se
prolonga como operações de segunda, terceira, enésima potência, ad relaciona às características negativas. Ao sublinhar tal idéia, Piaget
irfinitum, ultrapassando necessariamente os limites da ação motora. afirma que não há atividade cognitiva sem uma correspondência entre
No caso do ator, essa relação com os objetos flsicos está colocada elementos positivos e negativos. Afirmações sem negações comple-
de forma secundária para a análise da consciência. É a apropriação mentares caracterizam a situação periférica das atividades do sujeito,
dos mecanismos da ação do sujeito que nos interessa em particular. uma vez que os dados de observação aparecem na percepção do sujeito
nos seus aspectos e características positivas, antes de se apresentarem
10. Idem, p. 178.
I I. Idem, p. 179. 12. Idem, p. 183.
48 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 49

como dados negativos. Segundo Piaget, "percebe-se que um objeto é da indiferenciação. Esse movimento diferenciador que anteriormente
vermelho, ou quadrado, ou colocado sobre um outro etc., bem antes caracterizei como construtor do sujeito extracotidiano está, portanto,
de constatar que ele não é azul, nem redondo, nem colocado na mes- no cerne da tomada de consciência.
ma mesa etc."!', As qualidades negativas, portanto, sendo sempre de É assim que, a partir de conflitos e contradições que nos de-
caráter comparativo, aproximam-se das regiões mais centrais. sequilibram, precisamos promover escolhas deliberadas de ações,
Ora, essas duas características, o papel dos conflitos e das con- chamadas por Piaget de regulações ativas, uma vez que regulações
tradições, e as negações como posteriores às afirmações, constituem- automáticas não são mais suficientes para superar os conflitos e as
se, segundo a análise dos dados colhidos no trabalho com os clowns, contradições e conduzir da indiferenciação das afirmações até a dife-
como desencadeadores do mecanismo da tomada de consciência. renciação das negações, já que poder compreender negações sobre um
Identifiquei como conflitos e contradições uma série de com- objeto de conhecimento está mais próximo do centro do objeto do que
portamentos de bloqueio da ação. Conflitos e contradições físicos simplesmente poder fazer afirmações sobre ele. Para o autor, "o que
se caracterizam por dificuldades corporais em relação à capacidade desencadeia a tomada de consciência é o fato de que as regulações auto-
de flexibilidade ou coordenação motora. Conflitos e contradições máticas [...] não são mais suficientes e de que é preciso, então, procurar
internas dizem respeito a idéias e valores que se contradizem entre novos meios mediante uma regulação mais ativa e, em conseqüência,
o desejo de fazer e uma espécie de "bloqueio" ou barreira imposta fonte de escolhas deliberadas, o que supõe a consciência'?".
por uma determinação do mundo cotidiano. Um caso exemplar foi o Portanto, chegamos ao mecanismo interno, ao funcionamento da
comportamento de K durante a oficina com os alunos-atores, Vejamos tomada de consciência como explicação desse processo. Piaget usa o
minhas anotações: esquema abaixo para ilustrar sua compreensão do mecanismo interno
da tomada de consciência.
K quis expor-se durante o exercício do Picadeiro. Percebi sua vontade, Ele acha
que suas pernas são demasiadamente grandes. Ao perceber isso solicitei intencional-
mente que retirasse a parte de baixo da roupa, dizendo que este circo só contrataria
clowns que tivessem pernas grossas. A isso se seguiram cerca de 30 minutos de agonia
entre tirar ou não tirar, e é incrível como, de repente, esses movimentos causaram riso e
comoção nos colegas. Parece haver uma força interna que impede K de fazer uma ação
que seria tão simples. A vergonha dc mostrar as pernas traz um conflito pessoal que K
tentou resolver de vários modos, tentando enganar a proposta do exercício, tentando
fazer muito devagar ou muito rápido, enfim, procurando alternativas.
Já se passaram três semanas desde o Picadeiro de K, e ele não fala em outra coisa
senão na imensa sensação de autoconhecimento que a experiência lhe trouxe.

Esse dado poderia fazer pensar que esses conflitos impedem o co-
nhecimento, no entanto, são justamente os conflitos e as contradições,
- por exemplo, quando há contradição entre o que conhecemos sobre
aquele assunto e uma nova informação trazida há pouco -, que nos C~(--P---7)C'
causam desequilíbrio, e esse desequilíbrio necessita de uma reequili-
bração. É nesse momento que a tomada de consciência opera como
um meio de tornar conflitos e contradições aceitáveis, ou ainda, são
os conflitos e as contradições que promovem e desencadeiam um pro-
cesso que nos conduz a tomar consciência sobre as razões de nossas
ações e mesmo de nossos conflitos e contradições, resolvendo-os. Da
mesma forma, se nossas afirmações sobre determinado objeto quase
sempre não delimitam o universo e a complexidade do que deseja- Figura 115: movimentos da periferia ao centro.
mos compreender, é porque nos faltam negações em relação a isso,
caracterizando-nos como ainda emaranhados no amálgama disforme
14. J. Piagct, A Tomada de Consciência, p. 198.
13. Idem, p. 185. 15. Idem, p. 199.
50 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 51

Para Piaget O conhecimento não procede do sujeito (S) nem do na tradicional gag de apertões, beliscões e tabefes. Os dois clowns
objeto (O), e sim da interação entre ambos. Assim, (P) designa o pon- podem apenas olhar para dois pontos distintos: o outro clown ou o
to mais periférico em relação ao sujeito e ao objeto. A orientação do público. Isso configura uma triangulação entre o clown A, o clown B
processo de conhecimento direciona-se para os mecanismos centrais c o espectador.
do sujeito (C) e para as propriedades intrínsecas, e também centrais, O caso da triangulação é bastante significativo para a questão da
do objeto (C'). As regiões periféricas são os objetivos e resultados su- tomada de consciência. Em todas as observações feitas, os sujeitos só
perficiais; enquanto os centros (C e C') configuram-se pela procura do conseguem construir a noção de triangulação quando se apropriam
reconhecimento dos meios empregados e os motivos de sua escolha. das suas próprias ações. O centro do objeto (a triangulação) se as-
Existe uma correlação intrínseca entre C e C' que constitui tanto sinala no controle das ações do sujeito c, principalmente, nas signi-
a representação da compreensão dos objetos como a conceituação das ficações que este atribui a cada ação. A triangulação constitui-se
ações, Isso representa uma lei essencial do mecanismo da tomada de desde uma zona de indiferenciação entre o que é próprio do mundo
consciência. cotidiano do sujeito até uma delimitação precisa do jogo de olhares,
A lei da direção da periferia (P) para os centros (C e C') não se baseado no princípio de olhar apenas o companheiro e o público.
limita à tomada de consciência da ação material, pois o processo de O centro do objeto, então, se constrói a partir do centro do sujeito
interiorização da ação leva a uma consciência dos problemas a resol- e os movimentos da periferia indiferenciada até regiões centrais,
ver, permitindo, assim, a consciência dos meios para resolvê-los. tão diferenciadas quanto possível. Esses movimentos evoluem por
O mecanismo da tomada de consciência parece sugerir um sucessivas tomadas de consciência que corrigem as coordenações de
movimento de transformação no qual o sujeito caminha desde uma ações, para depois coordenar de forma coerente o resultado dessas
zona de indiferenciação, em que o objeto de conhecimento é ele mesmas ações, O movimento iniciado na ação fisica coordena-se
próprio, pois sua ação e as razões que as dirigem não possuem di- e, nessa condição, conduz a um segundo nível: o das coordenações
ferenças significativas para o sujeito, até uma zona central localiza- lógicas, as quais por sua vez podem, ainda, transformar-se numa
da tanto no centro do sujeito (as razões e os mecanismos das suas coordenação das coordenações.
ações) quanto no centro do objeto (suas propriedades intrínsecas). A observação dos alunos atores em oficina mostrou três fases bem
Essa zona de indiferenciação, nomeada como "periferia" por Piaget, distintas nos exercícios de triangulação. Eis um exemplo de cada.
situa-se num ponto eqüidistante dos centros do sujeito e do obje-
to. Não obstante, é a ação do sujeito, par sucessivas assimilações e Encontro 14 - J não fixa o olhar no colega, sempre olha mais de um ponto, embora
eu esteja dando-lhe instruções precisas durante a execução do exercício.
respectivas acomodações, que constitui as propriedades intrínsecas
Encontro 15 - Na tentativa dc hoje, J já domina o olhar da triangulação c está
do objeto, à medida que coordena as ações de êxito e também faz fazendo com perfeição, mas, comparado a A, vê-se bem que J faz tudo meca-
inferências sobre elas. nicamente, como se fosse uma seqüência de movimentos somente tisicas.
A tomada de consciência constitui, então, a ligação ou o meca- Encontro 19 - Vendo J fazer a sua gag, lembrei a dificuldade que tinha com a
nismo que une as coordenações de ações às coordenações lógicas, triangulação. Agora, ao contrário, cada movimento está pleno de significado
pessoal, é muito interessante de ver e engraçado.
que, por sua vez, produzem novas coordenações de ações, agora num
plano superior, por novas tomadas de consciência.
No trabalho do atar os signos e as convenções teatrais são tra- Os sujeitos num primeiro estágio não conseguem fixar o olhar
zidos para o mundo do sujeito. O sujeito se constitui pela tomada de apenas em dois pontos; quase sempre olham para diversos pontos en-
consciência dos mecanismos íntimos da ação em busca da edificação tre o público e o companheiro. Num segundo momento, dominam as
de uma técnica atoral. ações em nível de movimento, embora não apresentem significações
Como as convenções só fazem sentido quando o sujeito as res- para os movimentos, limitando-se a executar o desenho das ações. So-
significa, no uso e nas suas relações, esse mesmo sujeito realiza o mo- mente num terceiro estágio de trabalho, ainda conservando o domínio
vimento da periferia ao centro, reconstruindo os signos teatrais pela dos movimentos, são capazes de significar cada ação e criar diferentes
tomada de consciência dos mecanismos íntimos de suas ações. dinâmicas. Esse movimento torna a triangulação algo bastante perso-
Um exemplo esclarecedor é o da constituição da triangulação nalizado, pois já não se configura como triangulação apenas e, sim,
na linguagem do clown. A triangulação pode ser definida como os como triangulação segundo determinado sujeito.
movimentos e olhares de comunicação com o público. O exemplo A representação desses movimentos da periferia ao centro ficaria
mais cabal é o da dupla de clowns que dialoga apenas com o olhar, assim, conforme mostra a figura 2.
52 o ATOR COMO XAMÃ O MECANISMO DA CONSCIÊNCIA 53

dente da prática de suas ações fisicas. Da mesma forma, a tomada de


consciência parece agir enquanto existirem obstáculos - conflitos e
contradições. É na dificuldade de resolução dos problemas extraco-
tidianos que o ator toma consciência de sua ação. Essas dificuldades
podem ser atribuídas, muitas vezes, às contradições da percepção. O
ator faz determinada ação crendo fazer outra, ou acreditando realizá-
la com outras características. Entretanto, a tomada de consciência é
sempre processual, pois atua sobre elaborações passadas, ressignifica
as ações do passado e avança em favor de novas conexões fisicas e
Sujeito tldi ~ Comportamento mentais. A terceira elaboração do ator é o caminho possível encontra-
extracotíidiiano ~ co I iano ----, ex t raco tidi
I iano do como resultado da segunda elaboração e, esta, da primeira.
A análise dos dados sobre o clown me conduziram, então, a
deduzir alguns aspectos sobre essa configuração da consciência no
caminho entre as primeiras e as últimas elaborações do ator. Tomar
consciência de suas ações significa um apercebimento reconstrutivo
que conduz a retroações do ator. Isso significa dizer que, ao perceber
Figura 2: adaptação do gráfico de Piaget os mecanismos de sua ação, o ator reconstrói os trajetos realizados e
apodera-se dos êxitos de sua ação, fazendo com que elas sejam cada
Designo como cotidiano o ponto mais distante das ações de êxito vez mais exitosas, e nisso consiste o caráter de coordenação da tomada
precoce (comportamento extracotidiano) e do centro do sujeito (sujei- de consciência.
to extracotidiano), trata-se da periferia do conhecimento. Eis o ponto Contudo, se essa se configura como um apercebimento recons-
em que nem o sujeito nem seu comportamento são considerados ato- trutivo, ela não se resume a, apenas, uma iluminação. Caso se tratasse
res e cênicos respectivamente, pois estão distantes do centro, tanto de apenas de uma iluminação, as coordenações não teriam necessidade de
si mesmo, que aqui nomeio de sujeito extracotidiano, quanto de um construções novas, uma vez que já são realizadas numa primeira elabo-
comportamento extracotidiano, que caracteriza a dimensão extracoti- ração. No entanto, trata-se de uma reconstrução muito trabalhosa, como
diana como uma dimensão própria do ator. se não correspondesse a algo já conhecido pelo próprio ator.
A tomada de consciência da ação fisica do ator passa, então, por Esses aspectos, essas configurações da consciência, levam a pen-
esse processo, cuja construção de conhecimento se edifica por suces- sar que o mecanismo da tomada de consciência como um processo
sivos patamares de abstração, compreendido apenas no sentido daqui- de conceituação reconstrói, no plano da semiotização, aquilo que já
lo que retiramos da ação, sendo a tomada de consciência a transição havia sido realizado no plano das ações. Para Piaget:
entre um patamar e outro, a qual, pela mudança de conceitos, pode
Não há, portanto, diferença de natureza, numa tal perspectiva, entre a tomada
compreender as novidades. Essa compreensão, enquanto síntese da
de consciência da ação própria e o conhecimento das seqüências exteriores ao sujeito,
ação, qualifica a ação original. comportando ambos uma elaboração gradativa de noções a partir de um dado, quer
Se pensarmos naquele mesmo ator iniciante já mencionado, po- este consista em aspectos materiais da ação executada pelo sujeito, quer em aspectos
demos imaginá-lo às voltas com a escolha de suas ações. Quando materiais das ações que são realizadas entre os objetos";
toma consciência dos funcionamentos de si próprio, sabe dos porquês
de suas ações, mesmo que não saiba dizê-los em palavras. Reconhece, Isso quer dizer que existe uma ultrapassagem do plano da ação
no entanto, que as escolhas que fez de cada ação, das qualidades de motora pela serniotização que também se explica pelas idas e vindas
cada uma delas e dos significados que elas têm para ele totalizam uma entre os dados de observação que o sujeito retém de sua ação e as
experiência significativa, Se parte dessa experiência extracotidiana coordenações inferenciais que ultrapassam os dados colhidos, permi-
não couber nesta explicação, ele fará os ajustes necessários para que tindo-lhe compreender os efeitos observados na ação, resultando daí
o todo permaneça fazendo sentido ou o faça de forma mais eficiente, uma análise mais apurada dos dados observados.
No mesmo sentido, a idéia de tomada de consciência no trabalho
do ator explicita uma ligação inequívoca com o fazer. Não se pode
imaginar a criação de um comportamento cênico pelo ator, indepen- 16. J. I'iagel, A Tomada de ('0/1,1''';2,1'';11, p. 204.
54 o ATOR COMO XAMÃ
4. A Consciência Extracotidiana
De um lado, o ator percebe os dados das ações, se são fortes ou
fracas, pequenas ou grandes, em que ritmo são realizadas, qual a rela-
ção de determinada ação com os objetos manipulados e com o espaço
circundante ou com o companheiro de cena; de outro lado, realiza
coordenações inferenciais, ou seja, relaciona todos esses elementos
percebidos e cria ligações entre eles, faz com que tenham sentido,
estabelece significados. Ao fazer isso, o ator enriquece os dados co-
lhidos e acaba por perceber melhor sua ação.
Assim, os dados de observação são constatações a partir de fa-
tos ou acontecimentos, extraídos tanto das ações próprias quanto das
propriedades dos objetos, enquanto as coordenações inferenciais são
deduções a partir de conexões operatórias que só podem ter lugar na
lógica do sujeito.
Ao pensarmos nessa lógica não como uma seqüência linear de
deduções, mas sim, como um conjunto articulado de coordenações
entre corpo e mente, podemos dizer que a conceituação, promovida
pelas idas e vindas entre os dados de observação e as coordenações
inferenciais, é uma configuração construtiva da consciência e faz com
que o ator se distancie do plano cotidiano, dos modos de agir e pensar
no cotidiano, retendo para si maneiras extracotidianas de estar pre-
sente e agir.
Os dados sobre o clown que extraí, durante esta pesquisa, do
Se a conceituação, conforme Piaget, "está longe de constituir
trabalho com os alunos, das entrevistas com clowns profissionais e
apenas uma simples leitura: é uma reconstrução, e que introduz carac-
da minha experiência como ator clown, me fizeram pensar numa di-
terísticas novas sob a forma de ligações lógicas, com estabelecimento
mensão diferente da que eu imaginava quando planejei esse trajeto
de conexões entre a compreensão e as extensões etc."!', então, a con-
investigativo.
ceituação resume e sintetiza esse mecanismo, fazendo com que o ato r
O trabalho com o clown me fez imaginar uma dimensão que mo-
se mova de uma periferia indiferenciada até zonas centrais, tanto do
difica a estrutura interna do ator, confere capacidade de reproduzir
comportamento cênico, quanto da constituição do sujeito extracoti-
aquilo que ele deseja, num tempo e num espaço determinado, É a ex-
diano - a esse mecanismo chamo de apercebimento reconstrutivo.
periência da consciência extracotidiana que define o trabalho do ator.
Essas constatações fornecem elementos necessários à idéia de to-
Se minhas suposições estão corretas, como já disse, há uma con-
talidade no funcionamento da consciência do ator. Todas as funções
tinuidade funcional entre cotidiano e extracotidiano que resulta em
e procedimentos do sujeito, aparentemente isolados e funcionando de
estruturações muito diferentes das do cotidiano, uma descontinuidade
forma independente, possuem no máximo uma autonomia que, em ver-
estrutural, portanto. Essas estruturações são formas de conhecimen-
dade, se configura num todo orgânico. Assim, as construções do ator e
to e caracterizam os estados extracotidianos como mais complexos e
os esforços para sua compreensão não possuem exclusivas ações em
que abarcam estados anteriores.
tomo dos domínios intuitivos, tampouco as construções das ciências
A experiência consciente de saber o que se faz, de dominar os
dizem respeito às faculdades da razão, exclusivamente. Ambas consti-
impulsos, de atrelar a integridade dos estados à ação, possibilita uma
tuem aspectos de uma complementaridade que caracteriza a consciên-
compreensão não-linear do trabalho. Essa experiência que denomino
cia humana como função emergente das suas respectivas ações.
consciência extracotidiana é uma exaustão da consciência cotidiana,
O que apresento a seguir é a configuração desse mecanismo no fun-
ou seja, consiste numa superação, no sentido dialético, da consciência
cionamento da dimensão extracotidiana, ou seja, como o ator usa esse
cotidiana.
mecanismo para aprender a ser ator, para ser sujeito de suas ações.
Quando o ator está atento para cumprir uma tarefa cênica impos-
ta por um coordenador, diretor, professor ou delimitada pelo próprio
sujeito que se impõe, ele pensa em resolver um problema concreto.
17. Idem, p. 208.
56 o ATOR COMO XAMÃ A CONSCIÊNCIA EXTRACOTIDIANA 57
i

Ao pensar nessa tarefa elenca uma série de possibilidades que estão


conectadas com o conhecido para ele.
No trabalho com os alunos-atores, procuro descartar essas alter-
nativas primeiras para encontrar com eles possibilidades mais profun-
I
J
durante o processo perceberam isso. Vejamos alguns depoimentos ex-
traídos das entrevistas coletivas:

D respondendo à questão "o que é () clown? ", diz: "É sentir mais e fazer menos
[oo.] o problema é quando tu começa a querer fazer alguma coisa, aí não funciona",
das. O exercício do picadeiro é um exemplo, precisa se desenvolver
L, sobre a mesma pergunta, diz: "se a pessoa ficar pensando muito, passou, pas-
num tempo longo para que os procedimentos conhecidos dos alunos se sou o tempo, tem que ser na hora".
esgotem e, dessa forma, transbordem as possibilidades imagináveis. É E K diz: "Não funciona porque é pensado [oo.] eu vou fazer aquela minha careta
o âmbito do "não imaginável", do surpreendente que interessa ao ator. que eu treinei na frente do espelho, com a língua pra fora, porque meu irmão achou
Quando a consciência cotidiana se toma exaurida, se esgota, abre engraçado. Então, não é por aí".
a possibilidade de construção de uma outra dimensão dessa experiên-
cia, uma consciência extracotidiana. Esse inimaginável se configura, assim, como um processo da
Vejamos alguns casos dentre os alunos clowns: consciência no qual, estando pleno de suas funções mentais, o ator
não usa, ou não necessita usar, imagens mentais. Ele transcende o
F tenta me fazer rir de muitas formas, posso quase materializar seu pensamento, poder da imaginação, contudo, forma imagens e idéias que estão em
ele mostra claramente um lapso entre o que pensa e o que faz, listando coisas que ima- íntima relação com suas ações em termos de tempo e espaço. O ini-
gina que são engraçadas. Começa fazendo uma dança com passos que lembram uma maginável é um imaginável sem lapso entre intenção e ação. Trata-
polca, depois resolve cantar e, por fim, imita um pássaro. Depois de uns trinta minutos
tentando caminhadas, saltos e imitações, já parece cansado, pára, faz novas tentativas.
se, portanto, de uma configuração da consciência que dispensa as
Eu digo que nada do que faz serve de alguma coisa. Logo após começa a rir e chacoalhar imagens mentais, embora tenha tido nelas a base de sua construção.
as mãos como dizendo que não sabe o que fazer, é interessante como isso toma outra A tentativa de uso da razão analítica não logra resultado, mas,
dimensão. Os colegas, que pareciam apáticos até então, começam a rir. então, o atar não usa a razão quando trabalha?
C está tentando encontrar uma maneira para caminhar, sem muito sucesso. Refaz
A questão é complexa e nenhuma resposta seria definitiva. A
todos os exercícios c instruções que trabalhamos, como andar na ponta do pé, nas
bordas, nos calcanhares e assim por diante. No entanto, tudo parece apenas exercício,
pretensão de Copeau de minimizar a razão do trabalho do ator, dei-
embora faça com muito interesse e bastante concentrado. Depois de muito tempo final- xando-a em suspenso para atingir um estado mais primitivo e mais
mente encontra uma caminhada interessante, acha divertido e consegue incorporá-Ia profundo, parece ser impossível, embora consista num obstáculo
ao universo do clown. Parece realmente a caminhada própria e adequada para a figura perseguivel. O que parece elucidar tal questão, ao menos em parte,
clownesca que construiu.
será distinguir razão como um conjunto de operações da mente em
que estão implicados sistemas lógico-matemáticos em coordenações
Esses exemplos mostram como a exaustão conduz à criação, pela que distinguem significantes de significados, e uma razão ou pensa-
eliminação das possibilidades pensadas, ou seja, aquelas com as quais mento, digamos, mais analítico e linear, que se descreve pela lingua-
estamos acostumados. Essa idéia é provavelmente parceira das no- gem verbal.
ções de via negativa de Copeau, que pela eliminação buscava encon- No primeiro caso, temos uma propriedade mais geral da mente
trar uma criação mais autêntica. Os atores clowns profissionais também que, como mostra o trabalho de Piaget, nos transforma em humanos
mencionam essa idéia. A diz: "Acho que um trabalho forte não precisa e constrói por diferentes processos o conhecimento de nós mesmos
de nada, [...] tu pode* encher de coisa e depois ir tirando. Tu nunca está ao mesmo tempo que do mundo e suas propriedades.
satisfeito com a tua casa, vai enchendo de lixo, bota tudo. Depois quan- Imaginar alguma ação humana não constituída de razão é dificil,
do não cabe mais nada vai tirando. E aí a casa ficou enorme". pois o mais descontrolado dos transes supõe início e fim e, portanto,
Mas que experiência temos quando exaurimos a consciência co- uma noção de tempo, que só é possível por meio de sistemas lógi-
tidiana? Pode parecer estranho, mas o ator não trabalha com o imagi- cos. Da mesma forma, qualquer de nossas atividades de pensamento
nável e, sim, com o inimaginável. supõe uma razão construída ao longo de nossa história de ações e,
A experiência do clown mostra que imaginar alternativas no sentido acredito, como Piaget, que não podemos retomar ao imediatamente
de planejá-Ias, ou seja, pensá-Ias para depois usá-Ias em ações fisicas anterior ao conhecimento. Depois de construirmos a razão, por mais
propriamente ditas não logra êxito nenhum. Os próprios alunos- atores incipiente que ela seja, não lhe podemos abrir mão, mesmo que seja
essa nossa vontade.
* Em se tratando de entrevistas julgamos que se deveria manter o caráter colo- No entanto, se considerarmos o pensamento como um interme-
quial da fala na forma como ela se realiza no Rio Grande do Sul, mantendo o pronome
tu com o verbo na terceira pessoa (N. da E.), diário, um instrumento ou uma dimensão da razão, poderíamos supor
58 o ATOR COMO XAMÃ A CONSCIÊNCIA EXTRACOTIDIANA 59

existir em alguns momentos razão sem pensamento, haja vista os sar para esse mundo teatral". Assim, o mundo extracotidiano produz
exemplos que Piaget relata quando fala sobre o saber complexo da material e conteúdo para uma reflexão no mundo cotidiano, enquanto
ação. Posso operar ações sem pensar nelas. Posso dirigir um carro este último não produz necessariamente influência no outro.
sem pensar linearmente no que estou fazendo. Posso não pensar mais, Nossa civilização tem se esforçado para atribuir significados
ainda assim estarei usando a razão. precisos a tudo quanto possa ser medido, e essa tradição de pensa-
O que parece obstaculizar o trabalho dos atores, mostrado nos mento está de tal forma arraigada em nossa formação que é prati-
relatos anteriores, não é o uso da razão, mas, muito pelo contrário, camente impossível pensarmos de outra forma, embora possamos
um parasitário uso de um pensamento linear que procura resolver do encontrar exemplos inúmeros em culturas orientais ou em povos
modo cotidiano problemas extracotidianos. primitivos, nos quais os domínios da razão parecem bem mais equi-
Os três atores c/owns profissionais entrevistados relatam preocu- librados. O trabalho do ator, no mundo euro-americano, talvez seja a
pações semelhantes e definem essa separação. prova de que não só possamos nos constituir, ao menos em parte, pela
Perguntado sobre como percebe a diferença entre aquilo que liberação do fardo de pensarmos de forma interpretativa nosso meio,
tem êxito em cena e aquilo que não tem, A responde: "Não funciona pela necessidade de nomear e classificar tudo o que nos cerca. A idéia
porque é cerebral, assim ... é pensado a priori, é muito pensado. [...] de um ator como xamã, como veremos mais adiante, é uma metáfo-
pensou a piada, aí pensei, vai funcionar. Pensei demais, aí perde uma ra a esse desvio de conduta do ator em prol de um comportamento
originalidade que até poderia vir a funcionar". menos racionalista. Outros exemplos desse tipo de conduta estão nas
B diz a respeito de como sente a presença da platéia, se ele pensa tradições orientais de dança e teatros codificados, que têm no zen-
ou se não está agradando: "Claro que você olha, vê, reconhece o que budismo ou em filosofias como o taoísmo sua base, nas quais teoria e
está acontecendo, mas é tudo junto, já não tem separação, não tem esse prática não se separam.
julgamento [...] tem uma consciência mais integral, mais inteira". Segundo Sá, "a realidade primeira para os zen-budistas (o re-
A contraprova de que esse tipo de pensamento não traz êxito à sultado da atividade perceptiva independente da atividade racional)
ação clownesca está no relato daquilo que os entrevistados afirmam pode ser atingida através da vivência dos estados de não-atribuição
não possuir êxito. Sobre isso B relata uma péssima atuação feita para ou ausência da necessidade de nomear os objetos através dos meca-
um grupo muito pequeno de espectadores, na qual ele julga não ter nismos da razão'".
tido êxito algum. Ele diz: "fica muito essa coisa de julgamento da Esses estados parecem ilustrar esse aquietamento do pensamento
cabeça, olha o fulano não tá gostando, é uma coisa acusatória. O bel- a que se referiu um dos entrevistados. Freqüentemente, algumas cul-
trano tá dormindo e você já quer pular para o outro número e terminar turas orientais trocam os conceitos provenientes de operações lógicas
logo o que está fazendo". por imagens sem conteúdo explícito e que são muito mais pessoais e
C, perguntado sobre o que pensava durante a atuação, responde dificeis de serem compartilhadas. Não posso afirmar, e não é esse meu
que não pensa em nada. Então pergunto como sabe da programação, objetivo, se o zen-budismo pretende ou não esse caminho, contudo,
de tudo o que foi acordado nos ensaios, do roteiro e da complexidade essa idéia de estados de não-atribuição se configura numa metáfora
que é atuar com outro ator se não pensa em nada. C definiu assim: "é importante para explicar a consciência extracotidiana.
dificil descrever esse momento... porque não é pensar... falando nossa Feldshuh, ao discorrer sobre as relações entre o zen e o trabalho
linguagem, é você estar com a mente dilatada ... é um estado de pleni- do ator, diz que a mente do ator
tude que não chega a ser pensar. [...] Você pensa o êxtase, o prazer, é
é a condição interna necessária para integrar qualquer técnica ao ato criativo, ato que
diferente de pensar. O pensamento se aquieta".
vai além das fronteiras do controle consciente ou da inteligência analítica, requeren-
Dessa forma, os dados recolhidos mostram como a consciência do a capacidade de entregar-se ao momento presente e viver plenamente nele. Esta
extracotidiana se constrói como uma capacidade de coordenar estados qualidade de consciência lembra um estado animal, em sua confiança na sabedoria do
que não se distanciam da razão, mas que, no entanto, deixam de lado organismo integrado. Neste estado, o pensar se torna uma reação instantânea, não deli-
o pensamento cotidiano para aperceber-se de si e de seu entorno de berada. A mente não se torna limitada, a atenção não se atérn a apenas um dos aspectos.
uma outra forma. Esse pensamento cotidiano não contribui, de fato, A consciência própria desaparece, porque não existe divisão na consciência vigilante.
Não existe recuo, nem vacilação, porque a mente é fluida'.
para a atuação do ator, e o seu uso pode ser pernicioso. Pensar. pare-
ce ser uma atividade cotidiana, e C relata na entrevista que "E bem
diferente, porque é um mundo à parte. É o mundo à parte que te faz I. L. F. N. Sá, Semiótica da Percepção, p. 19.
refletir, você pensar diferente, completamente diferente de você pen- 2. D. Feldshuh, () Zen e o Ator. p. 12.
60 o ATOR COMO XAMÃ A CONSCIÊNCIA EXTRACOTIDIANA
61

A partir dos dados que relatei há pouco posso convidar o leitor a regido por leis cotidianas. A partir de suas primeiras ações (digamos
fazer uma exploração por esse estado de consciência sem atribuição. numa improvisação), como num exercício para a linguagem do clown,
Tratar-se-ia de uma forma de organização extremamente complexa o ator vai diferenciando o estado cotidiano e coordenando suas ações.
na qual a extrema estruturação poderia resultar num funcionamento Essas diferenciações, em direção à dimensão extracotidiana, fazem
distinto do cotidiano. Não atribuir conteúdos pode significar uma in- com que a ação comece a possuir atributos distintos dos que possuía
tegração entre todas as funções humanas e provar que o trabalho do há pouco, e esses atributos configuram um estado diferente, no qual o
ator é a atividade superlativa do ser humano na integração de tudo peso, o equilíbrio e a energia se regem de forma diferente do cotidiano.
aquilo que a tradição cartesiana se esmerou em separar. No mínimo A consciência aí age no sentido de verificar os êxitos das ações, identifi-
me dou conta de que a consciência não se reduz ao pensamento, ela é cando-os e coordenando-os para que se tomem repetíveis. Constitui-se
mais do que este, apesar de termos nos acostumado a achar que pensar assim o sujeito-ator que, embora esteja sempre num processo dinâmico
e ter consciência de que pensamos resume toda condição humana. In- de constituição, tem nesta fase seu momento de formação.
completa, essa acepção é da mesma natureza daquela que liga a mente . E.ssas primeiras elaborações são responsáveis, também, pelas
unicamente ao cérebro e às emoções ao passado remoto e primitivo pnmeiras rupturas estruturais do sujeito ator. Essas ações diferencia-
do qual temos que nos proteger controlando-as por meio da razão. doras e suas respectivas coordenações se apóiam em estruturas de
Se a consciência extracotidiana trabalha nesse estado de não-atri- conhecimento cotidianas, mas somente num primeiro momento. Ime-
buição no qual o pensamento não age com todo seu poder de raciona- diatamente após, começam a se formar sob a égide da dimensão extra-
lidade, qual o papel das emoções nesse quadro? cotidiana ou não configuram aprendizados sólidos, passíveis de serem
Para Piaget, razão e emoção não se separam, constituem dimen- recriados no futuro. Essa é uma boa explicação para saber por que de-
sões distintas, mas impossíveis de serem divididas. Para ele, as emo- terminados indivíduos não podem retomar seus trabalhos, pois esses
ções são o motor, a energia que move todo o complexo humano do não configuraram estruturações suficientemente constituídas. Essas
raciocínio e da vida em geral. Nenhuma ação humana está fora do âm- estruturas mentais e corporais, ao mesmo tempo ligadas e emergentes
bito dessa geração de energia que, em última análise, é o que define o da ação corporal, fazem do sujeito extracotidiano um sujeito capaz de
comportamento, as escolhas e as construções humanas. retomar no futuro ações do passado.
Se toda ação está pautada por esse motor emocional é porque o Como uma primeira fase do trabalho, o ator segue num conti-
fundamento da razão é emocional e provavelmente as emoções se nuum para um segundo momento no qual está empenhado em criar
organizam com base numa lógica racíonal. algo com o fim de apresentá-lo a outros sujeitos. Nessa ocasião, a
É com base nisso que esse estado de não-atribuição não relega nem ra- consciência extracotidiana segue seu percurso da mesma maneira
zão, nem emoção, constituindo de fato uma função altemativapara ambas. como na primeira elaboração; no entanto, aqui, a noção do outro fica
Não se trata, contudo, de um estado de descontrole,ao contrário, a percepção mais evidente. Preparar algo para outro sujeito passa a ser uma di-
atinge seu ápice quando pode seguir livrementeo curso das ações e esse aper- mensão da consciência, e esse aspecto faz com que toda estruturação
cebimento de si passa pelo apercebimento do ambiente e do outro. de conhecimento esteja endereçada na preparação de formas de re-
Como já disse, trata-se de uma reconstrução na qual a consciên- lação. Há, portanto, uma previsão de futuro embutida nessas ações,
cia faz com que percebamos e, ao mesmo tempo, nos reorganizemos previsões de como reagirão os observadores e como estar preparado
para satisfazer algum objetivo. para a diversidade de reações que podem vir a ocorrer.
Ora, caberia agora relatar uma espécie de caminho pelo qual passa No último momento dessa trajetória acontece o ápice da capaci-
a consciência extracotidiana nas três elaborações do trabalho do ator. dade dessa consciência extracotidiana. Tudo o que foi antes preparado
Essas elaborações não são conceitos precisos e visam apenas a descre- e articulado deve agora ser colocado em prática para os observadores,
ver com alguma organização um processo bastante complexo. Essas como se estivesse sendo feito pela primeira vez.
fases do trabalho ocorrem em muitos de forma distinta, dependendo da Essa repetição das ações do passado exige uma consciência su-
formação, da técnica e da tradição do ator. Escolho apresentar assim, perlativa, pois o ator põe em funcionamento sua extracotidianeidade
para operar sobre algo concreto, mas sublinho que se trata apenas de fazendo-o entrar num estado alterado de consciência, no qual o pen-
uma opção de caminho sem querer impô-la como o caminho do ator. samento, as emoções, a razão, a percepção estão a serviço de uma
A primeira elaboração é o momento de preparaçã,o do ator, ante- relação que não pode ser quebrada: o encantamento do outro.
rior à criação de uma obra com vistas à apresentação. E o mais distan- Esse é, aliás, um tema muito presente nessa elaboração diante
te da dimensão extracotidiana. O ator está, portanto, ainda no mundo do público, pois não é a ação pura e simples que vemos confrontada
62 o ATaR COMO XAMÃ A CONSCIÊNCIA EXTRACOTIDIANA 63

diante do observador, mas a relação que esta estabelece com o pú- que se pode transformar. Num sentido exato, portanto, é a coorde-
blico. Qualquer ator sabe que cada apresentação de um espetáculo é nação do resultado das repetições que possibilita ao ator chegar às
única, porque cada platéia é singular. transfo~mações, pois enquanto coordena resultados distintos, peque-
A presença do outro se toma definitiva para a ação do ator, e a nas vanações, reações, novas possibilidades, usa a consciência de si,
consciência de que o outro está me observando produz em mim uma do seu corpo e de seu estado extracotidiano para organizar, em outro
alteração. Essa noção foi bastante sublinhada pelos atores profissio- patamar, as novídades surgidas. Apropria-se, então, desses resultados.
nais nas entrevistas. Vejamos alguns exemplos. Nisso consiste o processo. Toma consciência, com todo seu ser da-
quilo que faz. '
A - Eu sei que é diferente quando eu faço sozinho e quando tem alguém olhando. Podem-se destacar dois tipos distintos de repetição neste traba-
[...] se tem alguém olhando é o prazer de oferecer aquilo pra criatura.
lho: a repetição da ação com vistas à criação, à elaboração de algo a
B - A partir de uma ação simples, começa a ter consciência do foco da atenção,
de você estar ali e de perceber que tem alguém lá do outro lado da calçada,
ser apresentado e a repetição de uma seqüência de ações, tidas como
que está lá olhando, você começa a ter essa percepção do outro, de fora. E aos a~abadas, algo que foi feito e memorizado em um momento e, agora,
poucos começa a querer fazer mais... diante do público, reapresentado, repetido.
Para cada uma dessas repetições é fundamental suas respecti-
Os êxitos de uma performance estão atrelados a essa relação. As- vas transfonnações, pois o ideal de reapresentar o exato desenho das
sim, quando se obtém e consegue se manter uma boa relação, pode-se ações memorizadas é tão inatingível quanto transformador,
lograr um bom espetáculo. Se o ator é sujeito de presença, o público ~e retomarmos a adaptação do gráfico de Piaget, que apresentei
também o é, pois está - ou não - presente na relação com o ator. Sua antenormente, poderemos localizar a transformação no centro do su-
presença é necessária para o teatro. jeito extracotidiano, enquanto a repetição estaria no centro do com-
Nesse sentido, esse estado no presente é certamente determinado portamento extracotidiano.
pela história das ações do passado. No entanto, o passado é, também,
determinado pelo presente, pois essa relação entre o ator e o observa-
dor modifica aquilo que havia sido preparado no passado para, agora,
fazer sentido em função da observação do outro.
Assim trabalha a memória do ator que, evocando aspectos do
passado, precisa se reestruturar no presente. Essa reestruturação é
sempre construção nova e inacabada.
Essas construções emanam de uma dialética bem particular entre
repetir e transformar. transformação repetição
A repetição nunca é mecânica e nunca pretende reproduzir ipsis
litteris a ação original. Repetir significa sempre ressignificar. No Sujeito Comportamento
extracotidiano ~ cotidiano ~
trabalho do ator, uma repetição é um reapresentar a si mesmo e, extracotidiano
conseqüentemente aos outros, uma determinada relação entre o uni-
verso interior e exterior do sujeito. A repetição do exterior, do dese-
nho das ações no tempo e no espaço, é uma busca sempre precisa e Figura 3: adaptação do gráfico de Piaget.
inatingível. É ela que garante o reapresentar das relações interiores
do sujeito-ator.
A transformação do universo interior do ator, aquilo que garante Como mostra a figura, os movimentos, a partir da periferia indi-
uma atuação sempre viva só é possivel pela tentativa de repetição ferenciada, ou seja, do cotidiano do sujeito e de seu comportamento,
exata do exterior. Uma atuação viva é aquela que garante transforma- vão em direção aos centros. Tanto o sujeito extracotidiano quanto seu
ções às repetições. Iben Nagel Rasmussen, atriz dinamarquesa, diz comportamento cênico constituem-se na exata medida um do outro.
que "a repetição é a mãe de todos nós, atores'", pois é através dela Esse processo de repetição do comportamento cênico pelo sujeito
extracotidiano o constitui e o transforma enquanto repete, ou pensa
3. Trabajando y convivendo con el Odin, EITAI.C, 1995, Holstebro, Dinamarca, repetir, seu comportamento. Contudo, a repetição do comportamento
anotações de caderno referentes á oficina de Iben Nagel Rasmussen. cênico significa para o sujeito extracotidiano apropriar-se de si, e esse
64 o ATOR COMO XAMÃ A CONSCIÊNCIA EXTRACOTIDIANA 65

movimento em direção a si mesmo só faz sentido na medida de sua início, na qual discuto a continuidade funcional e a ruptura estrutural
relação com o observador, o que constitui uma transformação. entre o sujeito cotidiano e o extracotidiano.
Assim, o que garante uma atuação com êxito é justamente essa Se o inconsciente é lugar e depósito da memória, ou mais radical-
flexibilidade da transformação, possibilitando que a relação com o mente, de tudo quanto o indivíduo fez c sofreu, ele seria um conjunto
observador possa ser orgânica e eficaz. Isso é possível por esse reapre- de estruturas e não um funcionamento. No entanto, os dados extraídos
sentar das ações, portanto, por essa repetição transformável. do trabalho com o clown fazem-me pensar o contrário: o inconscien-
Transformar-se e dar-se conta do que está acontecendo com a te como uma dimensão do funcionamento da consciência, no caso
qualidade da relação com o observador só é possível porque o sujeito específico da consciência extracotidiana. Não vou, portanto, falar de
ator se constituiu de estruturas específicas para esse ato. Ele pode re- um inconsciente extracotidiano para não correr o risco de imaginar
petir aquilo que preparou no passado, deixando ingressar no presente, um mundo paralelo no qual o ator trabalharia completamente isolado
devido à flexibilidade do processo, novas informações, tal como a do mundo cotidiano. Os dados mostraram como há uma continuidade
mais importante delas: a relação com o observador. Esse ato é, então, entre vida c ficção, entre cotidiano e extracotidiano.
uma transformação repetível. Segundo Piaget: "O inconsciente encontra-se em toda parte e,
Aquilo que me esforcei em separar, na verdade, só tem senti- portanto, existe tanto um inconsciente intelectual quanto um incons-
do quando uno. Todas essas capacidades fazem parte desse aperce- ciente afetivo. Mas isso é dizer que ele não se encontra em parte al-
bimento reconstrutivo. B, um dos atores profissionais entrevistados, guma, a título de 'região', e que a diferença entre a consciência e
diz: "Eu acho que tem o racional também, só que está junto com tudo, o inconsciente não é mais que um caso de gradação ou de grau de
porque também é um trabalho muito inteligente. Você tem que estar reflexão?'.
muito atento às reações e saber, estar de prontidão e perceber fulano Então, se falamos em consciência não podemos deixar de falar
no fundo, acontece isso... também é uma capacidade de decisão". em inconsciente, considerando que, de modo geral, todo trabalho tem
Essa unidade não é, talvez, tão clara ao senso comum e às tradi- resultados conscientes, embora os mecanismos de seu funcionamento
ções pedagógicas teatrais, como vimos no início deste trabalho. Elas permaneçam inconscientes.
trouxeram até nós a idéia de separação: a consciência como um meca- Não podemos pensar, assim, no inconsciente como um depósito
nismo inócuo e que, identificada com a razão, é ora instrumento para da memória, pois nem tudo o que experimentamos registramos nessa
atingir um inconsciente mais legítimo, ora minimizada para dar lugar dimensão. O trabalho com os alunos-atores mostra como se realizam di-
a um fluxo criador não racional. versas ações e exercícios que não sobrevivem para serem retomados um
Como me esforcei em discutir, até aqui, a consciência não se re- dia depois, e não há razão para concluir que estes permaneçam em algum
duz a um "lugar", no qual o ser humano distingue a si mesmo do mun- "lugar" da mente como um conteúdo latente. No mundo cotidiano, não
do. Ela, ao contrário, se configura em dimensões tão distintas quanto sabemos dizer, na maioria das vezes, o que realizamos hoje de manhã e
a capacidade de diversidade e singularidade humanas. O que denomi- recorremos à dedução lógica para reconstruir qualquer lembrança.
no de consciência extracotidiana, específica do sujeito extracotidiano, O papel da memória como uma configuração dinâmica é, enfim,
é um caso particular dela. Não se trata de uma simples iluminação tão importante quanto pensar o inconsciente como uma dimensão do
de algo que estava, até então, "escondido" no sujeito, é antes de tudo funcionamento do sujeito, na qual as reações "não pensadas" se ex-
uma gradação dinâmica entre zonas mais inconscientes e estados de pressam por essa memória reconstrutiva.
apropriação mais conscientes, ambos como apercebimentos recons- Piaget diz que "o inconsciente é essencialmente motor (ou, como
trutivos da ação do sujeito. diriam os próprios freudianos, 'dinâmico') e é em termos de reações
Mas se esse apercebimento reconstrutivo é a própria consciência que convém então descrevê-lo, se se deseja evitar as ciladas do voca-
extracotidiana em ação, isso significará que existe, então, um incons- bulário substancialista'".
ciente extracotidiano? A consciência extracotidiana é, portanto, consciência e, ao mes-
Trata-se de outra questão com a qual esta pesquisa pode apenas mo tempo, inconsciente se manifestando de forma dinâmica e contí-
em parte contribuir. Dizer que há um inconsciente extracotidiano é nua em reações de memória. Não há, assim, para o ator, diferença de
dizer que existe um processo de diferenciação entre o que seria o natureza entre esses dois termos.
inconsciente primeiro do sujeito, constituído no seu cotidiano, e um
segundo inconsciente, elaborado na dimensão extracotidiana. Essa 4. .I. Piagct, A Formação do Símbolo na Criança, p. 222.
hipótese se contraporia à tese que me esforcei em defender desde o 5. Idem, p. 240.
66 o ATaR COMO XAMÃ
5. O Ator como Xamã
Perguntado sobre o que pensa quando atua, A responde que procura não pensar
cm nada, e isso "permite inclusive quc muitas coisas que são [...] tuas apareçam, não
só as tuas coisas, coisas que são tuas se revelem através do trabalho. A gente reprime,
fica lá num canto que não mexe, tu não vai expor, mas ela é exposta r...] volta pra ti de
uma outra maneira".

A mostra como a recordação tem pouco a ver com o trabalho do


ator, que, por sua vez, recorre a uma espécie de memória reconstrutiva,
pois precisa ser reconstruída a cada vez que é acionada. Como expres-
são de reações constitutivas do sujeito extracotidiano, o inconsciente
permite uma dinâmica entre ações e suas respectivas simbolizações,
nas quais estão implicados significados ora construídos no momento,
ora retirados da memória.
Os dados que levantei não permitem deduzir o que ocorre com a
memória do trabalho no intervalo em que o ator volta ao cotidiano. É
certo, contudo, que a repetição de suas ações implica sempre uma re-
construção, uma recriação do fluxo de vida que havia sido preparado
para se relacionar com o observador.
Talvez seja essa capacidade de unir razão, percepção, emoção
num todo transformável, para manter a relação com o observador, que
caracterize essa consciência extracotidiana como um apercebimento
reconstrutivo sem grandes diferenças de natureza com relação àquilo
que costumamos chamar de inconsciente. Desde o início deste trabalho procurei mostrar como a noção de
consciência está relacionada com as tradições pedagógicas teatrais e
como essas constituem modos de fazer e pensar o sujeito extracotidia-
no. Defendi a idéia de que esse sujeito se constitui por modos de dife-
renciação e em continuidade funcional com o sujeito cotidiano, apesar
de essas diferenciações e suas coordenações de ações levarem a uma
ruptura no que diz respeito às estruturas mentais anteriores do ator.
Da mesma forma, os dados sobre o clown mostraram, também,
como o mecanismo da consciência se configura como um movimento
da periferia difusa até regiões centrais, ou seja, como a tomada de
consciência conduz do cotidiano ao extracotidiano. E, por fim, me
esforcei em caracterizar a consciência extracotidiana como um estado
de não-atribuição, usando de forma particular aquilo que denomina-
mos de pensamento.
Agora caberia encerrar essa trajetória apelando para uma espécie
de síntese por meio de uma imagem que, de um lado, rompe com
a linearidade do discurso verbal, para melhor ilustrar o objeto des-
ta pesquisa, e, de outro, reúne em si diversos atributos e qualidades
descritos e analisados até agora. Trata-se de pensar o trabalho do ato r
como um xamã.
Evidentemente não existe ligação ou solução de continuidade
histórica entre o xamanismo, fenômeno religioso característico do
centro asiático e da Sibéria e o trabalho do ator contemporâneo euro-
americano, nem é minha proposta fazer qualquer tipo de comparação
68 o ATaR COMO XAMÃ o AraR COMO XAMÃ 69

científica, histórica ou psicológica. Também não importa, para os obje- Johnstone, quando fala do transe, no qual as técnicas de êxtase
tivos deste trabalho, se existem ligações entre essas duas atividades. são certamente empregadas, afirma que "em muitos estados de transe,
No entanto, a idéia do xamã como uma metáfora pode ajudar na as pessoas estão mais em contato, mais alertas'". Assim, fica evidente
compreensão daquilo que estou caracterizando como consciência ex- que se trata de um comportamento complexo que nada tem em co-
tracotidiana, pois ele nos traz, também, uma consciência alterada a partir mum com doença mental ou atividade informal, mas, sim, implica
do cotidiano. Sobretudo, essa idéia caracteriza-se por um aspecto que um comportamento espetacular altamente sistematizado e organizado
será muito caro para esta pesquisa, o êxtase, como veremos adiante. para dar a ver a outros seres humanos uma experiência que, na sua
Segundo Eliade, o xamanismo é um fenômeno religioso mágico e maioria, visa integrar a comunidade por meio da religião.
não pode ser generalizado para todas as formas sagradas de rituais nas Caracterizar o êxtase é dificil, pois trata-se de uma experiência
quais se encontram atividades de transe. Assim, o autor caracteriza privada e complexa, mas, no caso do ator, é esse estado que pare-
o xamanismo como sendo um fenômeno específico siberiano e cen- ce caracterizar o nível mais elaborado da sua consciência. Saber em
tro-asiático "onde a experiência extática é considerada a experiência profundidade o que se está fazendo, mesmo sem lhe atribuir um pen-
religiosa por excelência, é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do samento verbal, como já disse, consiste provavelmente no cerne do
êxtase. Uma primeira definição desse fenômeno complexo, c possi- trabalho do ator, e isso é uma característica extática.
velmente a menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase'". Os dados extraídos das entrevistas com os atores clowns profis-
Essa especialidade mágica se manifesta durante um transe no sionais mostram isso. C fala de plenitude para caracterizar esse estado
qual se acredita numa viagem que o xamã faria levando sua alma de êxtase. Ainda respondendo à pergunta "como pensa durante a atua-
"para realizar ascensões celestes ou descensões infernais'". ção", ele diz: "é um estado de plenitude que não chega a ser pensar.
Acostumamos-nos a pensar no transe como uma atividade des- [...] o pensar está integrado com o fazer. Você pensa o êxtase, você
controlada e caótica, e chegaram a existir teorias que relacionavam pensa o prazer [...] você vive uma intensidade total nesse momento".
esses fenômenos a doenças mentais. No entanto, Eliade mostra como E perguntado sobre o estado de êxtase, C responde: "O êxtase
a preparação e a iniciação dos xamãs requerem rituais didáticos que tem um ponto claro. É mais uma consciência ativa, viva, do que pen-
instruem o aspirante em técnicas determinadas, e o transe, ele próprio, samento [...] A consciência ativa é você logo perceber. Tem esse pensar,
embora pareça desprovido de organização, é fruto, na verdade, de uma está lá, mas tem esse estado ampliado, esse estado de plenitude".
riqueza técnica exemplar, sem a qual não seria possível a realização dos Perguntado sobre como sabe quando passa de um estado cotidia-
rituais nos quais são praticadas essas técnicas de êxtase. A presença no ao estado de plenitude, C responde:
da palavra técnica, aliás, já indica a extrema organização e controle
no qual o transe se insere para poder lograr os objetivos sociais para É muito pereeptível fisicamente. L~ muito perceptível. [...] Quando você entra no
estado de êxtase, por exemplo, é como se fosse apagando, apaga isso daqui [fazendo
os quais ele existe.
um gesto e se referindo à cabeça] c você diz nossa, mas é diferente. Você percebe, é
As relações entre ritual e teatro já foram bastante exploradas na
perceptível, quando você entra cm êxtase você se conecta com algo que não estava
literatura sobre o teatro contemporâneo c, de fato, no caso do xama- conectado, com algo diferente.
nismo, as relações entre a atividade teatral e essas práticas religiosas
são fáceis de serem percebidas. Eliade chega a relacionar e desejar um Parece claro que esse estado lida com uma dimensão extática, no
estudo sobre "as fontes extáticas da poesia épica e do lirismo, sobre sentido de o sujeito que experiencia ser transportado para fora de si
a pré-história do espetáculo dramático">. Da mesma forma, o uso de c do mundo cotidiano, por conta de um prazer muito intenso, de um
figurinos e de outros aspectos faz da sessão xamânica um espetáculo deslocamento, um movimento em direção ao outro. Essa imagem é
aos moldes euro-americanos. intensamente xamânica, pois a experiência do xarnã é sempre uma
Entretanto, não são esses aspectos que interessam aqui, e sim viagem de si para o mundo mítico-mágico, para o illud tempus.
as relações desse xamã com o uso particular da consciência. Nesse Esse movimento para fora de si, acompanhado de outro inverso,
sentido, centrarei a análise naquilo que o xamã pode explicar e exem- caracterizado como possessão, é para Cole o que resume importantes
plificar o trabalho do ator euro-americano: as técnicas do êxtase. aspectos do trabalho do ator.
Segundo Heusch, "possessão é oposta a xamanismo neste aspec-
I. M. Eliade, O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Extase, p. 16. to: o xamanismo é um movimento vertical do homem na direção dos
2. Idem, p. 17.
3. Idem. p. 554. 4. K. Johnstone, lmpro improvisacion y e/teatro, p. 145.
70 o ATaR COMO XAMÃ O ATaR COMO XAMÃ 71

deuses, de ascensão em técnica e doutrina; possessão é um movimen- Como já disse, as analogias cênicas entre uma performance de
to para baixo, que parte dos deuses, uma encamaçãc'", teatro e uma perfonnance xamânica são inúmeras. Muitas vezes, é
Cole acredita que o trabalho do ator está identificado com um pela mímica que o xamã conta sua viagem de ascensão ao Céu, sua
movimento entre o xamanismo, movimento ou viagem em direção ao descida ao submundo ou sua conversa com os deuses; pode, além
illud tempus; e a possessão, movimento em que os espíritos se apo- disso, usar bonecos ou ventriloquia. Emprega figurinos específicos,
deram do corpo do oficiante para se manifestar, característico daquilo objetos, música e efeitos primitivos de iluminação e troca de cena.
que se chama Hungan, uma espécie de sacerdote haitiano de rituais Ora, essa poderia ser muito bem a descrição de uma performance de
mágicos e cultos de possessão. teatro euro-americano.
Esse movimento chama-se rounding e expressa a trajetória do Mas ainda o que mais chama atenção é o uso comum dessas téc-
ator; de um lado, saindo em direção ao mundo ficcional e dessa fonna nicas de êxtase que se manifestam durante o transe do xamã, no qual
mostrando à platéia essa viagem e, de outro, deixando-se apoderar a figura cotidiana abandona o corpo do oficiante para dar lugar a um
por um personagem que para Cole poderia ser uma Imagem, para não corpo totalmente diferente. Um aspecto ilustra isso de modo particu-
reduzir demasiado a idéia de personificação como sendo apenas as lar: a suspensão da dor durante o ritual, no qual são comuns provas
figuras extraídas da literatura, por isso, usa "Imagem" grafada com de que o xamã abandonou de fato o corpo e, estando noutro lugar
maiúscula. que não seu próprio corpo, não sente as dores cotidianas. Certamente
O que parece de qualquer modo um etnocentrismo do autor ainda o leitor lembra, também, de rituais primitivos de iniciação nos quais o
é a crença de que todo ator está possuído por uma Imagem, seja ela praticante deve pisar sobre brasas ou fazer outras ações que envolvam a
de qual proveniência. Suspeito que tal afirmação possa ser demasiada, dor física, sem contudo estar sensível a ela.
visto a enorme diversidade de manifestações espetaculares que não Parece interessante que o depoimento de C, um dos clowns pro-
possuem aparentemente nenhum tipo de personificação. De fato, o fissionais entrevistados, apresente essa mesma característica. Veja-
próprio clown possui uma personificação parcial, pois se o ator está mos o exemplo: "C - Se você está com dor de cabeça, quer dizer [...]
de fato em estado de representação, portanto em estado extracotidia- quando você está com febre e tem que fazer espetáculo com febre,
no, não apresenta, contudo, um ente diferente dele próprio. Certamen- gripado ou mesmo com dor, às vezes, por ter machucado a perna,
te, o ator não se veste, não se comporta e não está presente na vida você vai e é impressionante, você não sente nada, nada".
cotidiana da mesma forma; por outro lado, o aspecto pessoal dessas Assim, esse estado de êxtase em que se encontra o ator durante a
ações não pode ser descartado, uma vez que o clown não inventa nem performance parece suspender temporariamente a sensibilidade coti-
apresenta nenhum personagem ou Imagem que não corresponda exa- diana para fazer surgir uma dimensão extracotidiana que celebra com
tamente a ele mesmo. os observadores o resultado dessa viagem xamânica.
Se essa possessão parece não caracterizar o trabalho do ator ne- Leabhart dialoga com Cole e resume seu paradigma explicativo
cessariamente, a idéia xamânica expressa diversas faces isomorfas ao sobre o trabalho do ator como um xamã, da seguinte forma:
trabalho do ator. Segundo Eliade,
I) a viagem xamânica ao iIIud tempus ou mundo da peça; 2) a descoberta do mun-
às vezes, esse conjunto de práticas e idéias religiosas parece ter relação com o mito da do da peça, e logo a "tomada do poder" pelo personagem do texto, o que se denomina
existência de uma época remota em que a comunicação entre Céu e a terra era muito possessão ou "rouding"; 3) o retorno do ator ao nosso mundo, possuído pela Imagem,
mais fácil. Vista desse ângulo, a experiência xamânica equivale ao restabelecimento mas ao mesmo tempo mantendo o controle sobre si mesmo. Esta é a parte da atividade
desse tempo mítico primordial, e o xamã surge como um ser privilegiado que revive, que Cole chama de "retorno hungânico", assim denominado de acordo com aspectos
individualmente, a condição feliz da humanidade na aurora dos tempos". de rituais haitianos'.

Essa época remota, provavelmente anterior à linguagem e ao Na verdade, Leabhart vai adiante, ele usa o paradigma de Cole
pensamento linear, vai ao encontro das idéias de consciência extra- para discutir a possibilidade de as práticas teatrais de Copeau e De-
cotidiana que vimos há pouco, Como o xamã, o ator faz uma espécie croux serem práticas xamânicas,
de jornada ao illud tempus para oferecer a outros seres humanos essa De qualquer modo, como já disse, essa "descoberta do mundo
experiência por meio de técnicas de êxtase muito precisas. da peça" e mesmo a idéia de possessão parece supor um tipo muito

5. Ileusch, apud Cole, The Theatrical Event, p. 15. 7. T. Leabhart, A Máscara como Ferramenta Xamanística no Treinamento Teatral
6. M. Eliade, op. cit., p. 166-167. de Jacques Copcau. Revista da Fundarte, p. 7.
72 o ATOR COMO XAMÃ o I\I'OR COMO XAMÀ

específico de teatro, no qual o personagem é o centro dos objetivos diano, como o xamã que representa uma viagem aos deuses. e nno ele
do ator. Pavis lembra que a personificação é uma característica euro- próprio como cidadão daquela comunidade.
americana e que as formas orientais de teatro e dança não se deixam Essas técnicas de êxtase parecem se sobrepor a qualquer tentativa
penetrar pela livre expressão, por serem extremamente técnicas. Ele de teorização sobre essas motivações exteriores, pois a experiência
afirma que "o ator ocidental parece sobretudo querer dar a ilusão que interna é sempre maior e mais forte que os motivos pelos quais o ator
encarna um indivíduo do qual lhe confiaram o papel em uma história inicia um trabalho. Mesmo ao interpretar um personagem da literatu-
em que intervém como um dos protagonistas da ação'". Assim, nem ra dramática, o êxtase é esse estado singular de presença que o ator
todo ator usa a personificação, não só o clown não deixa claro esses aciona; nessa técnica usa um padrão definido para que a platéia veja
limites; principalmente, práticas parateatrais e as tradições orientais uma determinada Imagem. No entanto, embora possa transitar de uma
codificadas não estão de fato preocupadas com a personificação como Imagem a outra ou fazer um ou outro personagem, todo esse trabalho
uma mimese. Se considerarmos o personagem apenas como um pa- está amparado por esse estado de êxtase que sustenta qualquer atuação,
drão extracotidiano de comportamento, ou seja, algo (poderia ser a fazendo com que a platéia se sinta irresistivelmente motivada a olhar.
idéia de Imagem de Cole) que provém de fora do ator a tomar conta Nesse caso, o personagem, o tipo, a Imagem, como diz Cole, é
de si e fazer com que ele aja "como se", a idéia de possessão seria tão tão somente um padrão que configura uma unidade, um conjunto de
somente uma especificidade do teatro euro-americano, que de modo aspectos do comportamento extracotidiano, um modo de falar, um
algum poderia ser generalizada como uma característica intrínseca ao modo de se deslocar, um ritmo de respiração, entre outros. Isso tudo
trabalho do ator. Em síntese, o trabalho do ator não é necessariamente colocado sobre o êxtase de fazer.
realizado sobre um personagem, pois este pode atuar sem ter consigo As técnicas de êxtase suspendem a vontade cotidiana e, nessa
a idéia da personificação. suspensão, a consciência é mais integral e alheia ao pensamento linear
Por outro lado, essa idéia de estar possuído, de personificar, de ser do cotidiano; isso causa a impressão ao ator de estar sendo levado por
tomado por um ente externo, sem perder o controle, certamente ocupa uma motivação exterior, como, por exemplo, por um personagem que
boa parte do trabalho e do imaginário do ator euro-americano, pois as agiria na tênue linha divisória entre a vontade do ator e a coerência
tradições teatrais instauraram desde muito cedo essa tarefa. A própria do personagem. Entretanto, essa coerência é constituída pela vontade do
vinculação do teatro euro-americano com a dramaturgia implica uma ator, decidindo ele próprio quais as características que o ser ficcional
relação ator/personagem. Afinal, viver o papel foi um aspecto bastan- terá e, ainda, quais o público verá e quais estarão à disposição apenas
te explorado por Stanislávski e toda tradição que ele instaurou; além do deleite do ator.
disso, a própria tradição de ver o ator como um intérprete do texto é, Das entrevistas com clowns profissionais, A traz um depoimen-
certamente, muito anterior ao trabalho de Stanislávski. to que ajuda a elucidar tal questão. Ao ser perguntado sobre o que
Se for admissível que o trabalho do ator não se resuma à personi- pensa quando está em cena, ele responde: "eu procuro não pensar, eu
ficação, e, no entanto, boa parte do trabalho do ator euro-americano é procuro ser um veículo pra que a criatura que está em cena ou numa
personificar imagens que provêm de fora, do exterior, como explicar improvisação, o ser que está ali, ele procure pensar por si".
esse processo frente à idéia que estou perseguindo de falar em técni- A questão que se abre dessa fala é: estaria o ator tomado por um
cas de êxtase? personagem cujo esforço de coerência ficcional se sobreponha ao seu
A pesquisa que realizei com o clown me faz crer que não há qual- pensamento, ou estaria ele apenas usando uma técnica de êxtase para
quer indício que concretize essa chamada personificação, além de um aquietar seu pensamento cotidiano?
nível maior ou menor de imaginação. Contudo, parece ser no proces- É difícil responder. O que me parece claro nos dados recolhidos é
so de criação muito mais do que durante a performance que o ator que o êxtase sustenta todas essas práticas e confere a elas uma dimen-
imagina ser tomado por uma Imagem do exterior, revelando-se esta são extracotidiana, fazendo com que a platéia reconheça aquilo como
atitude também como uma técnica de êxtase. uma experiência deslocada do cotidiano e que lhe causa interesse.
Durante a atuação diante da platéia, o ator também personifica Do ponto de vista do ator, no entanto, seu mundo mental está
num certo nível. No entanto, isso parece ser apenas o necessário para aberto, quer esteja usando, quer não, uma Imagem exterior, quer, ain-
uma espécie de proteção, pois, não sendo sua personalidade social a da, prove de uma viagem xamânica ao illud tempus, a um mundo
atuar, está autorizado a fazer coisas que não faria como sujeito coti- ficcional em que a platéia não tem acesso, só podendo presenciá-lo
por intermédio do ator. Cole reconhece que, na possessão, "a pessoa
X. 1'. I'avis.;/ Anális« do", f,'SjJI!IÚCU/os, p. 51. possuída projeta a força interior que lhe possui como 'outro' - algu-
74 o ATOR COMO XAMÃ O ATOR COMO XAMÃ 75

mas vezes como outra pessoa, mas mais freqüentemente como deus tegrar no fluxo contínuo da vida as partes no todo, que é, por sua vez,
ou espírito - precisamente parque ele não a pode reconhecer como certamente, muito mais que a soma das partes.
um aspecto de si'". Não é, senão, no corpo e em função dele que tudo isso ocorre:
Nesse caso, se o trabalho do atar é similar às técnicas xamânicas a consciência não sendo um ente à parte, mas, no caso particular da
de êxtase, resumidas no movimento de "ascensão de um homem aos consciência extracotidiana, e também, lato sensu, uma emergência do
deuses, por um lado; descida de um deus em um homem, por outro" I 0, e funcionamento corporal. São as ações físicas do ato r que constituem
o personagem existe ou não em sua concretude, trata-se de uma questão esse modo singular de tornar a consciência extracotidiana em êxtase,
menor. O que preciso sublinhar é que as técnicas de êxtase, como uma ou seja, em muito mais funções do que ela pode ter em sua dimensão
alteração da consciência, duplicam esse apercebimento reconstrutivo cotidiana. E tudo isso em função do observador ou, melhor dizendo,
de si e dos outros, desdobrando a consciência cotidiana em direção ao na relação com ele.
prazer de realizar essa viagem, à constituição de sentido das ações apre-
sentadas e à manutenção e dinamização da relação com a platéia.
OS LIMITES DA PESQUISA
A essa altura o leitor pode estar imaginando essas técnicas de êxtase
como soluços, espasmos, retorções e um comportamento ritualístico. No Um desafio, entre tantos enfrentados por esta pesquisa, foi o de
entanto, não é a isso que me refiro quando falo em técnicas de êxtase. tratar de forma linear aquilo que se configura de modo não-linear - as
Nesse sentido, há apenas um isomorfismo entre as técnicas de êxta- configurações da consciência no trabalho do ator. Essas configurações
se xamanísticas e o trabalho do ator. Existe êxtase na imobilidade dispensam em muitos casos a linguagem e não podem ser fixadas em
e apenas na presença psicofisica do ator, embora algumas atuações terminologias simplificadas.
possam lembrar mais ou menos rituais. Componentes ou conteúdos Esse desafio me fez pensar na questão da comparação entre o uso
normalmente reprimidos e escondidos são facilmente liberados pelo da linguagem e a própria ação, tão presente nas pessoas de teatro. A
êxtase. Estar em cena sob o domínio descontrolado da consciência palavra ou a linguagem permanece e pode ser reproduzida e transmi-
extracotidiana pode implicar revelação de elementos que tentamos tida pela ação, que é efêmera e ocorre no "aqui e agora" do tempo e
esconder na dimensão cotidiana. Já procurei demonstrar isso quan- do espaço do viver.
do descrevi o trabalho com o c!own e discuti a questão da máscara. Mas se a ação é viva porque nos transforma, ela é vã porque
Mas deixando para a psicanálise esses elementos reprimidos ou que não permanece. Entretanto, a palavra que imprimo agora nesse papel
podem, eventualmente, ser pseudoterapêuticos, o êxtase como carac- (mesmo que virtual, pois uso o computador) possui um poder de per-
terística da consciência extracotidiana separa a idéia de consciência manência. Porém, os significados que a palavra possa ter sobre aquilo
da idéia de vontade. que não é verbal produzem nada mais do que dúvidas sobre seu sen-
"Obter o êxtase, ou seja, 'sair de si mesma'"!' como mostrou tido. A palavra é também efêmera quando procura cercar a efemeri-
o trabalho com o c!own, implica trabalhar de uma maneira não pla- dade do teatro. Com palavras, explicamos o inexplicável. Reduzimos
nejada na conduta da vontade. A imaginação é um a priori somente o irredutível. Classificamos o inclassificável. O leitor pode estar se
como ponto de partida que logo abandona seu curso para dar lugar a perguntando, mas por que chegamos até aqui?
"saltos" mentais inesperados. A busca que relatei neste estudo talvez persiga um objetivo tão
Segundo Barba: "De fato, o pensamento criativo se distingue inatingível quanto necessário para a arte teatral: compreender o que
justamente por prosseguir por saltos, por meio de uma desorientação fazemos. Provavelmente, essa é a busca de todos que se propõem a
inesperada que o obriga a se reorganizar de novas maneiras, aban- estudar, com anseios científicos, o teatro e as artes em geral.
donando uma concha bem ordenada. É o pensamento-em-vida, não Isso é necessário para que possamos seguir perguntando, e, ao
retilíneo, não unívoco"!" perguntar, nos defrontarmos com nós mesmos, com nossa condição
Mas se até aqui me ocupei em separar a consciência para dela de sujeitos imersos na nossa ânsia de compreensão do mundo. Não
extrair uma compreensão do trabalho do ator, é agora importante rein- nos contentamos com pouco, precisamos sempre compreender o
mundo e a nós próprios. Diz um ditado judeu que quando o homem
está saciado de pão, ele pergunta: "E agora, o que devo fazer?".
9. D. Cole, The Theatrical Event, p. 44.
É nessa condição humana, frente ao conhecimento, que esta pes-
10. Idem, p. 52.
II. M. Eliade, op. cit., p. 506. quisa foi conduzida. Ao reconhecer nossa precariedade, precisamos
12. E. Barba; N. Savarese, A Arte Secreta do Ator p. 58. assumir que o real nos escapa a cada nova tentativa que fazemos de
76 o ATOR COMO XAMÃ

compreendê-lo. Por isso, devemos nos dar conta de que o conheci-


mento é sempre provisório. Não conhecemos mais do que a reação
que os objetos de conhecimento (inclusive nós mesmos quando nos
objetivamos) nos apresentam frente à nossa ação sobre eles.
I O ATOR COMO XAMÃ

e ao deixar se influenciar por fazeres específicos. É sujeito de sua


77

No entanto, ele constitui identidades múltiplas ao fazer escolhas

ação, porque se apropria dos êxitos do que faz. É sujeito de presença,


de uma presença singular e superlativa. E como sujeito de si mesmo,
o ator apropria-se de sua presença cotidiana para convertê-la em pre-
O próprio esforço de definir a consciência leva-nos a reconfigurá-
la e é por isso que é impossível aprisioná-la numa definição. sença extracotidiana. Realiza aquilo que a busca humana convencio-
Assim, procurei conduzir esta pesquisa sobre as configurações nou chamar de conhecer a si mesmo.
da consciência extracotidiana, mais num sentido de pergunta do que Acostumamo-nos a pensar que esse "conhecer a si" implica o
de afirmação. Contudo, necessitamos das afirmações para transformá- exercício estrito da vontade. Mas o trabalho com os alunos-atores e
las em perguntas a partir das dúvidas que suscitam. Parafraseando o as entrevistas com c!owns profissionais mostraram que o ator é cons-
físico dinamarquês Niels Bohr, devo advertir o leitor de que "qual- ciente de sua ação não como um calculista ou hábil estrategista que
quer frase que diga não deve ser entendida como uma afirmação, mas articula de antemão todo processo, mas, ao contrário, como quem se
como uma pergunta"!'. entrega a si mesmo, se abandona, se sujeita ao intrincado mundo da
As afirmações desta pesquisa produzirão certamente compreen- apropriação e do apercebimento de si. Isso qualifica sua presença no
sões distintas. A impossibilidade de produzir no leitor uma idéia mais mundo e lhe confere um poder especial de chamar atenção.
exata e única do que seja a experiência da consciência extracotidiana Por outro lado, sua vontade é atravessada, em todo o processo,
me conduz a encerrar este livro com uma síntese que pretende, de pelo tangenciamento do querer dito consciente, pois os próprios dese-
certa forma, não mais do que ordenar a desordem. jos do que fazer se obscurecem com a clareza do feito. Não podemos
determinar com precisão cartesiana a intenção prévia a cada ação,
nem no processo de construção de uma cena, nem tampouco no ato
DA ILUSÃO DA VONTADE de apresentá-la à platéia. Determinar a intenção já supõe destacá-la da
As tradições pedagógicas teatrais, das quais somos herdeiros, me ação, O ator deseja parecer velho, ou cansado, ou triste, deseja fazer
fizeram pensar na consciência no trabalho do ator, ora como sinônimo rir ou chorar, mas todas essas intenções chegam ao êxito quando uni-
de razão e ora como crença de que possamos minimizá-la, na inten- das à ação. Assim, embora fruto de sua vontade de atuar, suas ações
ção de descobrir algo mais profundo do que o pensamento cotidiano. são resultado de um confronto maior entre a vontade do gozo da cena
Essas posições nos abrem caminhos aparentemente inconciliáveis. e a relação com a alteridade.
De um lado, a idéia de que possamos conduzir o trabalho criativo É totalmente ilusório acharmos que possuímos um saber fazer,
por meios conscientes; de outro, por meios inconscientes.iou não tão porque possuímos a vontade de fazer. Esforcei-me em mostrar como
claros à consciência, embora ambos sejam provenientes da intencio- o ator é atravessado pela transformação, embora repita para si e para
nalidade. a platéia ações preparadas no passado. Existe nessa transformação,
Essa idéia de opor a consciência ao inconsciente manifesta uma no fluir da ação extracotidiana, uma suspensão do tempo e do espaço
oposição insustentável. Procurei mostrar, com o trabalho com o c!own, que os teóricos do jogo há muito atribuíram ao jogador. As ações do
como essa oposição está circunscrita pelo que denomino configurações passado são permanentemente reconstituídas no presente, e isso lhes
da consciência. Essas configurações não podem ser consideradas como confere a capacidade de incorporar eventos, detalhes e caracteres dis-
opostas, tampouco podemos determinar seu grau de vontade. tintos, em especial, as reações do público, por mais imperceptíveis
Se a consciência se configura a partir de uma diferenciação do que sejam. Essas reações do público constituem, portanto, uma pre-
cotidiano em direção ao extracotidiano, é porque o ator se consti- sença que atravessa a ação do ator e lhe confere legitimidade.
tui, pois não aparece do nada. Embora não possamos identificar com Em muitos casos pensamos que a constituição do ator está dada.
precisão a gênese dos conhecimentos que fazem do ator um sujeito Ou pelo nascimento, quando cremos que existem atores talentosos
extracotidiano, podemos deduzir que é na ação ou na retenção de as- e outros nem tanto, ou pela técnica, quando admitimos que o méto-
pectos de sua ação que ele se constrói como identidade. Ele abre e, ao do correto é capaz de transformar qualquer um em ator. Mas não há
mesmo tempo, reduz os seus possíveis, delimitando o campo de seu nada nesta pesquisa que me faça poder afirmar tal idéia. O trabalho
comportamento. do c!own mostrou-me que esse processo é muito mais complexo e que
a formação do que chamei de sujeito extracotidiano depende não só
13. Bohr, apud E. Barba, Além das !lhas Flutuantes, p. 13.
das ações que ele faz para diferenciar-se do cotidiano, mas também
78 o ATaR COMO XAMÃ O ATaR COMO XAMÃ 79

daquilo que extrai dessas ações, da sua interação consigo mesmo, da- então, conseqüência, e não causa desse salto para o inimaginável. O
quilo que se faz com o que se fez, no qual certamente estão implica- ator tenta, com esquemas já experimentados, o êxito de fazer rir ou
das as determinações biológicas, pessoais e sociais, sem, entretanto, criar comoção. Quando isso não funciona, a exigência do professor
reduzir-se a elas. em sala de aula ou a reação do público durante a apresentação lhe
A consciência não é igual à vontade. A consciência não é igual propõe um desequilíbrio, e a reação do ator constrói uma novidade,
ao querer. O ator pode desejar executar determinada ação, mas isso uma ligação que não havia até então. Ele supera a dificuldade, trans-
não garante êxito. Ter consciência, nesse caso, é aperceber-se de uma portando-se para um resultado inimaginável, não previsto.
forma reconstrutiva, isto é, refazer, num outro plano, o que se fez,
incorporando as reações da platéia.
Trata-se de um apercebimento reconstrutivo, no qual a tomada DO ÊXTASE DE FAZER AO ÊXTASE DE COMPARTILHAR
de consciência da própria ação conduz de uma zona indiferenciada Nas entrevistas com os clowns profissionais ficou claro que repe-
entre cotidiano e extracotidiano até zonas centrais bastante delimi- tir é um anseio fervoroso do ator e, ao mesmo tempo em que constitui
tadas, ou seja, conduz à construção do comportamento e do sujeito um objetivo, constitui também um obstáculo nunca transponível. Ao
extracotidiano. repetir uma seqüência de ações, uma improvisação, um texto ou um
gesto, o ator admite ser tocado por si mesmo; precisa se apropriar
DAS CONFIGURAÇÕES DO INIMAGINÁVEL desse pequeno objeto de si e, ao se apropriar, o transforma para dele
extrair a experiência de estar vivo e orgânico. Se o transforma, já não
Os atores, objeto desta pesquisa, pareceram romper com as es- pode tê-lo como havia feito há pouco, mas é a tentativa de repeti-lo
truturas cotidianas de pensar e agir por meio de um processo longo que permite, ao transformar aquilo que delimitou como ação, que se
de diferenciação dos comportamentos cotidianos. É a continuidade aperceba do funcionamento de si mesmo e se refaça, se reconstrua
de funcionamento que conduz a uma ruptura estrutural. Chamamos noutro nível, no nível da apropriação de si.
ator o sujeito que, percebendo de forma reconstrutiva sua ação, pode A constante transformação do sujeito extracotidiano é o que pos-
repeti-la para chamar a atenção de outros seres humanos e, fazendo sibilita essa simulação da vida, uma vida recriada sob a égide do arti-
isso, constrói estruturas cada vez mais diferenciadas daquelas do co- ficio. Essa recriação do fluxo transformável de vida no corpo do ator
tidiano. Essa construção é que lhe permite repetir suas ações com o é o que garante a possibilidade de relação com a platéia, contamina
mesmo fluxo orgânico de vida que as faz parecer serem realizadas com presença o corpo do observador, faz dos comportamentos espe-
pela primeira vez. Essas repetições transformantes constituem cami- taculares um trabalho de comunicação vital, converte a platéia num
nhos para a imaginação. participante sem o qual a presença não tem sentido, constitui uma
O objetivo do ator é poder trabalhar na dimensão do inimaginá- troca de significados que possibilita um encantamento, uma atração
vel. Pensamos com freqüência que um bom ator tem uma boa imagi- mágica entre os seres humanos.
nação. Isso pode estar correto, mas logramos êxito em cena quando No momento da atuação o pensamento se aquieta; mas isso não
transcendemos a imaginação e conseguimos alcançar uma dimensão acontece com toda a razão. Apesar de não pensar, o ator usa a razão,
na qual essas "imagens em ação" deixam de ser produzidas como um pois o trabalho do ator é um trabalho de inteligência muito rebuscado.
fluxo planejado e seqüenciado de razões, para se converterem numa No entanto, aquele pensamento linear que funciona no cotidiano para
gama de "ações em imagem". Embora derivando desse exercício de guiar e medir nossas ações não conduz a êxitos, não permite estabe-
imaginar estar noutro lugar ou ser outra pessoa, ainda que derivando lecer relações de presença com a platéia. Provavelmente similar ao
do plano de agir "como se", essas imagens não se restringem àquilo que o zen-budismo classifica como não-atribuição, o estado em que
que podemos prever e se configuram como um abandono controlado. se encontra o ator permite uma inteireza da ação a tal ponto que todas
O inimaginável não é um lugar, tampouco um momento, mas se as divisões cotidianas entre corpo e mente, entre pensar e agir, ficam
circunscreve como configurações singulares da consciência. Não se provisoriamente suspensas.
trata de um ponto de partida do ator, mas, sim, de chegada. É o resul- O ator, assim como o xamã, realiza uma viagem para fora de
tado emergente da ação de compartilhar com a platéia que denomino si, uma transcendência do corpo e da mente. As técnicas de êxtase
como inimaginável. significam um transbordamento da ação, O corpo extracotidiano é um
Classifiquei isso como uma exaustão ou uma eliminação das pos- corpo no qual não cabem mais as ações. Elas precisam ir além do
sibilidades habituais ou já organizadas. Essa eliminação parece ser, próprio sujeito, elas precisam invadir o espaço da platéia, o espaço
80 o ATOR COMO XAMÃ O ATOR COMO XAMÃ Xl

intersubjetivo. Da mesma forma, a mente extracotidiana extática não A pergunta inicial desta pesquisa, ou seja, como age a consciência
se conforma apenas com seus atributos cotidianos, extrapola a razão, no caminho entre uma primeira elaboração do ator e a reaprescnta-
o pensamento, o sentir e o estar, para criar possibilidades sempre em ção das ações ao espectador, pode ser reconfigurada dizendo-se que a
transformação. consciência não age de modo linear, mas, antes, se configura de modos
O ator como xamã é uma metáfora da consciência como algo que distintos, promovendo uma ruptura estrutural a partir de uma conti-
é mais do que pensar o que pensamos. O ator como xamã é uma idéia nuidade funcional entre cotidiano e extracotidiano. Essa estruturação
que me ajuda a tomar posse das configurações distintas, duplicadas, de saberes extracotidianos ocorre por um mecanismo que caracterizei
unas, dilatadas, reconstruídas, transformadas, que a consciência assu- como apercebimento reconstrutivo, promovendo uma transcendência
me ao se relacionar, ao trocar e ao se confundir com o outro. No êx- para um estado inimaginável, no qual as dicotomias cotidianas estão
tase não podemos delimitar com precisão o que é sujeito e o que nele suspensas. Todas essas configurações da consciência são experiências
está atravessado pelo outro; o que é planejado e o que é ação criada de êxtase xamânico ou isomorfas à viagem que o xamã faz tanto para
no momento; o que é descontrole e o que é repetição premeditada; o dentro de si, quanto para a alteridade. Não posso e não desejo afirmar
que é viagem para fora de si e o que é retomo; o que é objetivo da que o ator é um xamã, mas esta pesquisa mostra que as configurações
ação c o que é a razão da sua realização; o que é aperceber-se de si e circunscritas por sua consciência fazem parecer que o ator trabalha
o que é reconstruir-se. como um xamã.
A pouco falei sobre a efemeridade da ação e a permanência da
palavra. No entanto, se o ator trabalha como um xamã é porque a
O ATOR PARA ALÉM DO ATOR
ação, apesar de fugaz, deixa rastros que são perenes: as estruturas de
Reconhecer a existência de técnicas de êxtase, do ator como conhecimento, de consciência, de afetividade. Elas possibilitam ao
xamã, abre novas possibilidades de pensar o trabalho do ator, sua atua- ator repetir suas ações, refazendo-se a cada instante, e dão possibili-
ção e as situações pedagógicas de sua formação, Ao aprofundar essas dade à sua consciência de fazê-lo trabalhar como um xamã.
idéias, constituo outros significados para a educação. Acostumamo-nos
a pensar a educação e o conhecimento como as formas humanas de
constituir e desenvolver as ciências para disso extrair maneiras de viver
melhor. O ator como xamã talvez possa nos alertar para a necessidade
de repensarmos as funções do conhecimento, seus caminhos e suas pos-
sibilidades de aplicação, uma vez que o ator como xamã nos faz pensar
nas distintas dimensões que a consciência humana pode configurar.
Por tudo isso, qualquer definição de consciência poderia, a esta
altura, ser arriscada e desnecessária. Apesar de a intenção inicial desta
pesquisa ter sido a de verificar a tomada de consciência no trabalho
do ator, as análises feitas conduziram-me a concluir que a diversidade
de configurações do que designamos como consciência podem, no
máximo, ampliar a noção que temos desse conceito.
Ao realizar tal movimento, de uma idéia fechada e linear para
um conceito de consciência como modo de configurar a experiência
da apropriação de si, proponho que as práticas pedagógicas em teatro
e mesmo lato sensu possam considerar que aquilo que parece desco-
nectado, dividido e, por vezes, alternado, constitui, na verdade, uma
totalidade que caracteriza a humanidade. Saber sobre esses processos
pode revelar compreensões mais aprofundadas sobre o trabalho do
ator e ter desdobramentos mais claros para a educação. Podemos, as-
sim, ir além do entendimento que define o trabalho do ato r como sim-
ples fruto de um talento inato ou de procedimentos técnicos precisos,
de um treinamento que não contemple a tomada de consciência.
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