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Narcisismo:

A Constituição Do Sujeito

André Gide na abertura de seu livro “O Tratado de Narciso”, de 1891, fala


assim a seus leitores: “Conheceis a história. Por isso nós a diremos de novo.
Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém as escuta, é preciso
recomeçar sempre.”
Por isso, o mito:
Narciso nascera belo à perfeição. Sobre seu futuro, predissera o oráculo:
“seria feliz se jamais mirasse a própria imagem”. Narciso cresceu belo. Eco, uma
ninfa, apaixonou-se por aquela perfeição. Como Narciso a desprezasse, Eco se
queixou à deusa Nêmesis, que tramou sua vingança. Num dia quente, em meio à
caçada, o fez sentir sede. Assim, cansado e sedento, Narciso debruçou-se sobre
um riacho no qual o fluxo d’água parecia imóvel. E Narciso então viu. Se viu. Viu a
bela forma, a forma perfeita e, sem saber que via a si mesmo, por ela se
apaixonou. Ao tentar tocá-la, dissipou-a; e então, vidrou! E, vidrado, deixou-se
morrer ali mesmo, à beira d’água, à borda do espelho.
O melhor modo de começar é dizendo que estamos nos metendo em um
dos pontos mais difíceis da teoria psicanalítica. E que se pretende, aqui, hoje,
poder articular o que de decisivo — ou não — tem esse conceito.
Comecemos do início: o filhote humano surge neste planeta pelo desejo de
outro. Alguém, de algum modo, o deseja: para amá-lo, para odiá-lo, para destruí-
lo, para se dizer mulher, para se dizer pai, para dar algum sentido a tudo ou a
qualquer coisa. O desejo de alguém possibilita ao humano, o nascimento.
Nascido está, desejado foi.
Mas o pequeno humano ainda não tem palavras. Não sabe dizer. Não se
sabe ainda. Nesse momento ele e tudo são o mesmo. O bebê não se diferencia
psiquicamente do mundo à sua volta. Vê as partes de seu corpo e as coisas do
mundo como um todo. Bebê e mundo são igual, são tudo.
A esse estádio, Freud dá o nome de auto-erotismo, que é postulado
enquanto “um estágio inicial da libido”, ou seja, da energia sexual, que ainda não
tem objeto diferenciado e tudo erotiza. Tudo se resume anarquicamente em
prazer/desprazer.
Mas, há um momento fundamental, há um evento que inaugura, que
dispara, que precipita a formação do eu, do ego.
Diante do espelho, no colo da mãe, ele se vê. E porque ao voltar o olho em
torno de si, reconhece o que duplamente está ali refletido, percebe que se vê. E é
com sentimento de júbilo que escuta aquela mãe confirmar a sua impressão, a
sua percepção quando lhe diz: “lá está o bebê!”
É claro que não é absolutamente necessário que seja a mãe ou o pai
concretos. Qualquer um serve. Trata-se de corroborar.
Mas falávamos do momento inaugural, da experiência fundamental - o
espelho - que dá alguma ordem ao caos, que começa a organizar o sujeito, que
faz a ruptura, a brecha, a fenda que desfaz o todo e que faz a unidade.
Ao descrever o Paraíso, o mesmo André Gide diz o seguinte: “O Paraíso
não era amplo. Perfeito, cada uma de suas formas abria-se uma única vez. [...]
Tudo permanecia imóvel já que nada ansiava por estar melhor.” Mas quando
Adão estende os braços para colher entre os dedos orgulhosos um ramo da
Ygdrasil, a árvore logarítmica... “Assim se fez.
...Uma fissura, à primeira vista imperceptível, um grito, mas que rebenta,
desdobra-se, exaspera-se, assobia com estridência e logo geme como temporal.
Desfalecida, a árvore Ygdrasil oscila e estala; as folhas [...] rodopiam na borrasca.
[...] Rumo ao céu sobe um vapor, lágrimas [...] E o Homem, aturdido [...] chorou
de angústia e horror...”
Voltemos a Narciso: nascera belo à perfeição. Ora, o que é perfeito anseia
nada mudar. Mas Narciso se vê no espelho d’água. Vê a perfeição do outro. Vê a
imagem do outro. Vê a perfeição sem saber que vê a si mesmo. Vê, portanto, a
perfeição fora de si e a deseja.

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Ora, se a perfeição, o perfeito anseia nada mudar e Narciso deseja algo
fora dele: então instala-se aí o furo, a brecha, a fenda que produz a ruptura.
Ruptura essa, de força brutal.
Assim, a fissura que instala em nós a simples mirada em que vemos a
nossa imagem do outro lado do espelho. Essa mirada nos devolve algo
insuspeito: os limites do corpo, a forma, o definido.
Quebra-se o que antes era totalidade.
Ainda que seja a minha própria imagem, a imagem invertida que o espelho
me devolve, é diferente de mim, é imagem de outro que não eu. Imagem, que não
é igual ao corpo, mas que é tomada como imagem do corpo, como se ele e a
imagem fossem um. Faz-se unidade. Ou melhor, ilusão de unidade.
No texto do Narcisismo, de 1914, Freud diz que “uma unidade comparável
ao ego não pode existir desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os
instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto,
necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica -
a fim de provocar o narcisismo.”
Assim se dá com o filhote humano. “Lá está o bebê!” Essa marca de
absoluta brutalidade, que rompe a totalidade na qual o bebê vivia e que lhe dá a
imagem refletida no espelho como unidade, identidade — “Isso é você!”. Essa
marca — que inaugura o eu do sujeito, mas, que o identifica desde fora dele —
produz, de saída, a alienação do sujeito.
Essa imagem corporal — ilusória — é investida narcisicamente. É o
primeiro narcisismo, o narcisismo primário.
Lacan, no Seminário 1, diz: “Há inicialmente, com efeito, um narcisismo
que se relaciona à imagem corporal. [...] Ela permite organizar o conjunto da
realidade”. E noutro ponto: “Ela faz a unidade do sujeito.”
Assim a libido encontra finalmente um objeto: a imagem. Ou melhor ainda:
o eu inseparável da imagem que se formulou aí.
MDMagno afirma que “a noção de imaginário é de uma correspondência
assim entre dois sistemas: cada ponto de um encontra correspondente no outro.”

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Estamos, portanto, no registro do imaginário. Neste momento, para a criança, tal
imagem corresponde ponto a ponto ao próprio corpo, entendido enquanto “eu”.
Por conta então, dessa relação imaginariamente biunívoca entre esses
dois representantes do mesmo ser, o pequeno humano faz a unidade. Imaginariza
a unidade e a investe libidinalmente. Dirige sua libido para o nascente “eu”.
Essa unidade não lhe devolve, no entanto, a totalidade, antes
supostamente vivenciada. Então, há algo que algo sobra, há alguma coisa que vai
ficar fora pra sempre. É a fenda, o buraco, que Lacan chama de “objeto a”, objeto
causa do desejo. Indizível, inominável, está lá o real, que, no dizer do próprio
Lacan, não cessa de não se escrever.
O sujeito parte então, à procura de algo que lhe tape o buraco, que o possa
completar e devolver-lhe a totalidade, mas como o real não cessa de não se
escrever, ele nada encontrará que feche o furo, a ferida, o buraco. E assim partirá
novamente e sempre em busca de tal objeto.
Esse investimento naquilo que é, segundo Chemama, “o primeiro esboço
do eu”, tomado como unidade, formaliza o que conhecemos como o Eu Ideal, que
se traduz pelo fato de o sujeito tomar a si mesmo como o seu próprio ideal e que
se caracteriza pela fantasia de onipotência, onde o sujeito pode tudo, ou seja,
pode ser totalidade novamente.
Embora tomada de amor pela suposta totalidade de si mesma, a criança
segue marcada pela falta que a constituiu e que jamais vai ser preenchida. Falta
essa que se inscreve no ato mesmo da identificação com a imagem do espelho,
porque imagem do outro.
Se o “eu” se forma fundido, confundido com a imagem que se inscreve
desde fora do sujeito, não pode ser capaz de representá-lo completamente.
Desse modo, toma forma um desconhecimento crônico do eu.
E porque o “eu” foi constituído desde fora, que ela, a criança, vai continuar
a buscar no desejo do outro, o seu desejo, vai continuar a buscar novas
identificações, vai em busca de alguma coisa que possa suprir essa falta e que

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possa torná-la inteira, una. Ou, para retomar o mito, perfeita. Mas não há
possibilidade de recuperar o que nunca houve, não há possibilidade de perfeição.
E se a totalidade não é mais possível, se o espelho dá unidade ao sujeito,
se o diferencia de todos os outros objetos à sua volta; e se a partir de então, ele
vai em busca de novas identificações, devemos estabelecer aqui o caráter parcial
da pulsão. A partir da experiência do espelho, o que há de fato, são pulsões,
fragmentadas, parciais, que nunca podem ser satisfeitas, que nunca refazem a
supostamente perdida perfeição.
Apaixonado, Narciso busca possuir o objeto de seu amor. Estende seus
braços para abraçar a perfeição. Ao toque das mãos, porém, a água se agita e a
imagem se torna imprecisa. A perfeição se desfaz.
Assim com as pulsões, que circundam os objetos sem poder tocá-los e que
voltam para o sujeito mesmo.
É a água que se turva.
É Narciso tentando tomar para si o objeto inalcançável de sua paixão.
Passa então o sujeito humano a buscar novas identificações que possam
devolver-lhe uma imagem própria. A criança imita o adulto como se assim
pudesse sê-lo. Mas o selo que ela carrega é o da falta.
Essa série de identificações, que a criança persegue, estabelece o
desenvolvimento do narcisismo secundário. Ou seja, o narcisismo secundário é
uma resultante da experiência especular.
Quer dizer, após o júbilo do reconhecimento da própria imagem — a
despeito de ser imagem do outro —, após esse reconhecimento que determina
desde sempre a alienação do sujeito; após a formação de um “eu”, que é
imaginário, que é engodo, a criança passa a investir a sua libido nos objetos à sua
volta em busca de identificar-se com algo que responda à questão da falta, algo
que lhe tape o buraco, o furo que fica posto desde a origem daquele “eu”.
Percebam que a busca é ainda narcísica. A libido se dirige ao objeto para
voltar ao eu. Esse narcisismo secundário, todos nós o temos e o mantemos, ou
melhor, ele nos mantém até a morte.

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Como no mito:
Morre Narciso à beira do riacho, à borda do espelho.
E ali, tempos depois, diz a lenda, nasce uma bela flor, que recebe o nome
de Narciso.
Mas isto não é toda a constituição do sujeito.
Ainda é Gide quem diz: “Os livros não são talvez coisa muito necessária. À
primeira vista, uns tantos mitos seriam suficientes. [...] Depois, quisemos explicar.
Os livros ampliaram os mitos. Uns poucos mitos, no entanto, seriam suficientes.”
Assim, para entender a constituição do sujeito é necessário que outro mito
intervenha. O mais famoso mito da psicanálise, o de Édipo.
Édipo, filho de Laio e de Jocasta, reis de Tebas, também teve seu futuro
predito pelo oráculo, que afirmou que aquela criança se transformaria em
assassino do próprio pai e desposaria a própria mãe. Laio e Jocasta apavorados
com tal previsão, ordenaram que um criado matasse a criança. Mas, está escrito
que ninguém foge ao próprio destino. Não seria diferente com Édipo. Por isso, o
criado não o matou; deu-o a um pastor, que por sua vez o deu a outro casal,
Políbio e Mérope, também reis da cidade de Corinto, que o criou como filho.
O menino virou homem. E foi ele mesmo consultar o oráculo acerca de seu
destino. Ao ouvir o que os deuses haviam reservado para si, fugiu. E como não
podia deixar de ser, fugiu para o seu próprio destino: para Tebas. Ainda antes
mesmo de chegar à cidade, na estrada, encontra um homem com quem briga e a
quem mata. Era Laio. Édipo, sem o saber, mata o próprio pai.
Vivia em Tebas, uma Esfinge que propunha enigmas aos homens e como
eles não os decifrassem, ela os devorava. A Esfinge tanto os afligia que não
houve na cidade grandes investigações para aquele assassinato. Morto o rei, a
cidade decidiu que aquele que decifrasse o enigma da Esfinge seria o novo rei e
desposaria a rainha. Édipo assim o fez: decifrou o enigma da Esfinge, que se
precipitou no abismo, libertando a cidade daquele terror e casou-se com Jocasta.
Édipo, sem o saber, desposa a própria mãe.

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Édipo, rei, e vive Tebas uma grande peste. Os deuses o informam que a
desgraça só teria fim quando o homem que matou o rei Laio fosse banido da
cidade. Édipo se põe a investigar aquele crime até descobrir através do relato de
um pastor, que ele próprio era o filho e o assassino de Laio.
Em desespero, Édipo fura os próprios olhos e pede que o levem para
algum lugar longe de Tebas e de Corinto, cidades onde nunca voltaria a pisar...
A história contém outros detalhes, mas já temos aqui os elementos
necessários para seguirmos em frente.
Estávamos mesmo, antes de entrarmos no Édipo, na busca que o sujeito
faz de algo que lhe tape o buraco, lhe obture a falta. Busca que é narcísica, posto
que envolve o objeto para se voltar ao próprio sujeito.
O primeiro — e mais sedutor — objeto que a criança encontra é Jocasta,
ou seja, é a mãe. Objeto de amor, portanto, objeto libidinal, a mãe é mesmo —
pelo menos, imaginariamente — aquela que tudo supre, que tudo faz para o filho.
Então, a criança pensa que encontrou o tal objeto, que ela e a mãe podem formar
a tal completude perdida. Acontece que não podem, não podem porque é
impossível, mas isso a criança não sabe.
O que ela percebe é que há algo além dela mesma que é presente, que
comparece — ainda que enquanto falta, enquanto furo — no discurso, e portanto,
no desejo da mãe. Porém, outra vez a criança não pode saber que se trata do
mesmo objeto, o “objeto a”, ao qual ela persegue.
Para ela, existe mais alguém, um rival, que também solicita o amor daquela
mulher: o pai, que enquanto presente no discurso materno é metáfora, metáfora
paterna. Identificado, então, ao próprio Falo, o pai será visto como aquele que tem
tudo.
Por isto: porque solicita o amor daquela mulher, porque a “rouba” da
criança, porque assim lhe diz que ela, a criança, e a mãe não podem se
completar, porque faz um impedimento, uma interdição... por isso a criança vai
odiá-lo, vai brigar com ele, vai desejar eliminá-lo de seu caminho. Por isso o pai é
Laio.

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O pai, que afirma para a criança que ela e a mãe não podem se completar
— não podem porque é impossível, não podem porque não há o que complete —,
esse pai, vai funcionar como o “representante” da castração, da lei. É ele quem
vai colocar a criança na ordem — simbólica — da cultura. É ele que, castrado —
porque sabe que não há o que complete — vai castrar o filho.
Daqui se deriva ainda aquilo que Freud chama o Ideal do Eu, que tem a
função, no plano simbólico, de regular as relações do sujeito com a realidade e os
conflitos que daí advêm, além de servir, conforme o nome diz, de modelo para o
eu.
Mas, como sempre em Psicanálise, tudo começou antes.
Estávamos com a criança em frente ao espelho, onde a mãe lhe dizia a
frase de mais abrupta alteridade que se pode escutar: “Aquele é você!” e que, no
entanto dá ao sujeito a ilusão de unidade. A criança já pode, então, distinguir-se
dos outros humanos e das coisas. Mas, segue marcada pela falta que a constitui
e vai começar a procurar nos objetos em volta de si, aquele que é capaz de
completá-la.
Surge Jocasta, a mãe. Aquela que dá o alimento vai ser o primeiro objeto
de amor. O prazer de mamar, de se alimentar, que era auto-erótico, se transforma
em prazer amoroso, libidinal. É importante perceber que aqui se dá uma
separação entre a atividade alimentar e a sexual. É a chamada fase oral, que se
prolonga até mais ou menos os dois anos, quando termina também a fase do
espelho. Funda-se aí um tipo de relação que é o de incorporação do objeto. A
criança quer experimentar o mundo pela boca, primeiro pela sucção, depois pela
mordedura. A criança, que já reconhece a boca como sua, tenta se apropriar do
objeto amado através dela. Realiza-a enquanto uma zona erógena.
E se frustra porque a frustração acompanha qualquer tentativa de restaurar
a plenitude do eu.
A criança elege, entre dois e quatro anos, a zona anal como a principal
fonte de seu prazer. Primeiro no ato de expulsar as fezes; depois no de retê-las. É
a chamada fase sádico-anal. Aqui o sujeito exercita a bipolaridade, ligada ao

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relaxamento ou à contração dos esfíncteres, à passividade ou à atividade, à
entrega ou à posse. Simbolicamente, ambos os atos são dirigidos à mãe, seu
objeto amoroso: defecar é apresentar as fezes como um presente, uma oferta;
retê-las é índice de agressividade, de recusa.
A isso se segue a chamada fase fálica, onde a primazia do falo vigora. Isso
quer dizer que meninos e meninas conhecem apenas um órgão genital: o
masculino. O foco do prazer se desloca para a zona genital, mas uma zona
genital que ainda não se diferencia enquanto os próprios órgãos.
Um belo dia, o menino se depara com uma visão inusitada, impensada,
inesperada: o órgão genital feminino. Ou melhor, ao ver uma menina nua, vê uma
ausência, uma falta de órgão genital. Formula, para explicar o que viu algumas
teorias do tipo: “vai crescer”, “vai ganhar um”, “perdeu”, ou “foi cortado”. Daí o
susto: “mas, se ela perdeu, então eu posso perder também!” Conclusão: ou se
tem ou não se tem o falo.
A oposição entre atividade e passividade transforma-se em fálico e
castrado. Nas meninas, a inveja do pênis e nos meninos, a angústia de castração
são as marcas regentes desse período.
Sentir prazer, masturbar-se, coloca o menino frente à culpa e ao medo de
ter o seu membro cortado. Não importa que ele nunca tenha sido assim
ameaçado. Mas todas as ameaças que tenha sofrido convertem-se nessa. E
todas as pessoas que, porventura, o tenham ameaçado de qualquer coisa
convertem-se aqui na figura do pai, ou seja, em Laio.
A fase fálica, cujo final coincide com o fim do Complexo de Castração, é
também marcada pelo ápice e pelo declínio do Complexo de Édipo.
Agora quero fazer um pequeno parêntese para situar que essa historieta,
essa re-teatralização do mito na vida psíquica de cada um, que contamos aqui, se
dá de maneiras diversas para os meninos e para as meninas. E que este que
acompanhamos aqui é o percurso do Complexo de Édipo mais comum nos
meninos.

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Entre Narciso e Édipo há muito o que comentar, há muito o que dizer, mas
gostaria de destacar alguns aspectos que a mim, me chamam a atenção:
Em primeiro lugar, há em ambos os mitos um desconhecimento
fundamental do sujeito em relação a si mesmo. Narciso não sabe quem é ele, não
conhece a própria imagem. Édipo não sabe quem ele é, não se sabe filho do pai e
nem filho da mãe, quer dizer, não se sabe nem assassino do pai, nem se sabe
amante da mãe. Assim com o sujeito humano que se engana o tempo todo a
respeito de si mesmo, que pensa conhecer-se e poder dizer-se num “eu” que é
puro imaginário, mas que o supõe próprio, autêntico, original.
Em segundo lugar, há para ambos um terceiro, um alguém que desde
outro lugar, desde o lugar do outro os obriga a se verem a si mesmos. Para
Narciso é a deusa Nêmesis; para Édipo é o pastor. Assim para o sujeito humano,
cujo “eu” é objeto tomado, por assim dizer, de empréstimo desde fora de si.
E em terceiro lugar, há para ambos uma pena a ser cumprida, uma
condenação por se conhecerem: Narciso é condenado à uma espécie de cegueira
— a da paixão, que não lhe permite ver nada além da própria imagem — e à
morte; Édipo é condenado à cegueira e ao desterro, que é uma espécie de morte,
posto que o afasta do convívio das gentes e das terras a que amava. Assim com
o sujeito humano, que por cada um seu desejo que conheça tem um preço a
pagar.
A esses dois mitos, podemos juntar o terceiro de que já falamos aqui hoje,
que é o mito de Adão, o mito do Paraíso Perdido, o qual o homem não cessa de
procurar e ao qual só pode chegar — assim diz o próprio mito — com a morte.
Também em Adão há um desconhecimento de si mesmo; também em Adão há
uma serpente ou uma maçã que o obriga a ver-se; também em Adão há uma
condenação, um desterro — e, por assim dizer — a morte.
Mas do que tratam então os mitos?
Tratam da verdade do desejo. Tratam daquilo que o ser humano quer
sempre saber mais e para o qual há um outro que lhe revele e uma condenação
por sabê-lo.

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Ou seja, tratam do próprio sujeito humano que quer sempre saber mais de
si, mas que necessita de um outro que possa dizê-lo e que, por fim, ainda que
pague pelo que sabe, está condenado a nunca saber de si realmente, porque o
real é impossível.

Piracicaba, 1999

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