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Texto adaptado de SAND, Shlomo. A invenção do povo judeu.

São Paulo:
Benvirá, 2011 (Introdução) e ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas.
São Paulo: Cia. das letras, 2008 (Introdução)

Vários elementos intervêm na formação de nossas orientações intelectuais, mas, independentemente


de quais sejam, há em todo cidadão estratificações de lembranças coletivas que o alimentaram bem
antes que se torne um “adulto consciente”; cada um acedeu à consciência através de um
entrelaçamento de discursos já formalizados no âmbito de relações de força ideológicas anteriores.
O ensino da história da instrução cívica no sistema educacional nacional, as festas nacionais, os dias
de recordação, as cerimônias oficiais, o nome das ruas, os monumentos aos mortos, os
documentários de televisão e vários outros “lugares de memória” criam, por si sós, uma vivência
imaginária bem antes de quem quer que seja possa dispor de instrumentos que lhe permitirão
analisá-los de maneira crítica. Quando alguém se põe a refletir sobre essas questões, o “bloco de
verdades” do qual o espírito já é portador o incita a pensar em determinada direção. Todo cidadão é
o produto psíquico e cultural de experiências vividas; sua consciência permanece, portanto,
impregnada da memória construída. As aulas de história na universidade não conseguirão
fragmentar esses “cristais da memória”.

Se toda escrita da história é portadora de mitos, aqueles da historiografia nacional são


particularmente flagrantes. A proeza dos povos e das nações foi escrita de modo semelhante ao das
estátuas instaladas em praças das grandes metrópoles que se obrigavam a ser enormes, expressando
o poder, portadoras de uma magnificência heroica. Até recentemente, a leitura historiográfica podia
se aparentar à seção de esporte de um jornal diário: “nós” e os “outros, todos os outros”, tal era a
cisão tida como quase natural. A criação desse “nós” foi a obra de uma vida para historiadores e
arqueólogos nacionais, “guardiões juramentados” da memória.

O nascimento de uma nação é seguramente um verdadeiro processo histórico, mas não um


fenômeno puramente espontâneo. Para fortalecer o sentimento abstrato de fidelidade ao grupo, a
nação necessita de rituais, de festas, de cerimônias e de mitos. Para se delimitar e se fundir em uma
única identidade rígida, necessita de atividades culturais públicas e contínuas, assim como da
invenção de uma memória coletiva unificadora.

A ideia de uma identidade ancestral primordial, a representação de uma continuidade genealógica


com fundamento biológico e a concepção de um povo-raça eleito não são elementos advindos de
lugar algum, surgidos por acaso no seio de grupos humanos. Apenas a presença constante de
letrados permitiu a cristalização de uma consciência nacional, seja ela etnocêntrica ou cívica. Esta
teve sempre a seu serviço produtos de cultura eruditos, mestres da memória, para “que se lembrem”
e fixem suas representações históricas. Se diversas classes sociais tiveram necessidade da criação
dos estados-nações ou deles tiraram vantagens diversas, os principais agentes da elaboração das
entidades nacionais e de seu patrimônio simbólico foram os intelectuais

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