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Pensar a morte: possível contributo das chullpas do

altiplano andino (sécs. XI a XVI DC) para o entendimento


e interpretação das antas (IV a II milénios AC)

Ana Martins Francisco

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


Mestrado em Arqueologia | 2022.2023 | Arqueologia da Morte
Professora Doutora Mariana Diniz
Pensar a morte: possível contributo das chullpas do altiplano andino (sécs. XI a XVI DC)
para o entendimento e interpretação das antas (IV a II milénios AC)

Índice

Introdução ................................................................................................................................ 2

1. As antas: breve enquadramento ....................................................................................... 4

2. As chullpas........................................................................................................................... 5

2.1 Contextualização ........................................................................................................... 5


2.2. Dispositivo arquitetónico - morfologia e materialidade ......................................... 7
2.3. Implantação e apropriação da paisagem ................................................................ 10
2.4. Ritual funerário........................................................................................................... 12
2.5. A utilização do ocre e do cinábrio ............................................................................ 15

Discussão e considerações finais....................................................................................... 16

Bibliografia ............................................................................................................................. 21

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


Mestrado em Arqueologia | 2022.2023 | Arqueologia da Morte
Professora Doutora Mariana Diniz 1
Pensar a morte: possível contributo das chullpas do altiplano andino (sécs. XI a XVI DC)
para o entendimento e interpretação das antas (IV a II milénios AC)

Introdução

O megalitismo tem sido pensado e discutido nas últimas décadas como um fenómeno
associado não só a uma mudança económica, mas também a uma alteração social e
mental da própria conceção da vida e da morte. Durante o período mesolítico, as práticas
funerárias consistiam em enterrar os corpos em depressões escavadas no solo junto aos
lugares de habitat, pelo que vivos e mortos partilhavam o mesmo espaço.
Posteriormente, com a utilização de grutas naturais para deposição dos mortos, parecem
definir-se duas áreas distintas: a dos vivos e a dos mortos, o que permite pensar uma
mudança na estrutura mental das primeiras comunidades camponesas. (Diniz, 2000)
Por outro lado, se para o período mesolítico existem vários registos de locais de habitat,
à medida que se vai entrando no neolítico são as estruturas e objetos funerários que
predominam no registo arqueológico.
Esta sucessiva valorização da morte, torna-se evidente com a construção de
monumentos megalíticos, que não só definem um espaço próprio e erguido
especificamente para o efeito de receber o morto; mas também marcam o início da
construção de uma paisagem funerária.
O megalitismo é compreendido como um fenómeno polimorfo, uma vez que se manifesta
através da construção de diversas estruturas distintas, umas em positivo, outras em
negativo, incluindo menires, isolados ou em grupo. Assim, durante este período – desde
o neolítico médio até ao final do calcolítico – os mortos terão tido diversos destinos: as
grutas naturais continuaram em utilização; construíam-se hipogeus, grutas artificiais,
onde também se realizavam deposições; construíram-se antas e posteriormente tholoi.
Neste estudo, consideram-se principalmente as antas, como a materialização do
primeiro esforço de construção, que não sendo erigido nos lugares de habitat, é
exatamente no mundo dos mortos que encontra o seu fundamento. (Diniz, 2000)
São várias as interrogações que persistem à volta da construção, utilização e significado
destas estruturas tão representativas da pré-história peninsular. A informação à qual se
tem acesso é limitada, não existindo naturalmente qualquer tipo de registo escrito que
se constitua como uma fonte mais direta para a compreensão destas sociedades.
Assim, através do estudo de estruturas funerárias de outro contexto geográfico e
cronológico, sobre as quais se tem informação de caráter distinto daquela que se
consegue obter para o estudo das antas, procura-se explorar a possibilidade de formular
hipóteses interpretativas que ajudem à sua compreensão.
São múltiplas as formas de inumação praticadas no continente americano, como o são
no continente europeu, coexistindo inclusivamente diferentes práticas funerárias. Na
América do Sul, e mais concretamente na região andina é igualmente possível identificar,
à semelhança do descrito para o megalitismo peninsular, a presença de ortóstatos, de
estruturas construídas acima do nível do solo e de estruturas em negativo. Este estudo
focar-se-á nas estruturas em positivo, nomeadamente nas antas e nas chullpas.
Apesar da diferença geográfica e cronológica, considera-se que é possível estabelecer
uma relação entre ambas as estruturas funerárias, atentando à fase de desenvolvimento
socioeconómico das comunidades que as construíram, que viviam essencialmente da
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agricultura e não tinham desenvolvido escrita, possuindo um complexo pensamento


ideológico e mágico-religioso. Os registos antropológicos e etnográficos realizados no
continente americano, quer pelos cronistas em época colonial, quer por exploradores dos
séculos XIX e XX que realizaram expedições, contribuem para o entendimento destas
estruturas e do seu significado.

La muerte, al contrario, se percibe como un estado de transición, como


otra faceta de la vida en condiciones extra o suprasociales, las cuales
no impiden el reestablecimiento de relaciones con los sobrevivientes.
En muchos casos este tipo de relación se considera elemental para el
funcionamiento de la sociedad y de su entorno, su mundo, y es por ello
que el funcionamiento de esta interacción depende de un complejo
aparato ritual que implica idealmente a toda la sociedad. Ello se
expresa en secuencias rituales cíclicas que no solamente se inician
antes de la muerte física y culminan con la colocación final de los
restos del individuo fallecido, sino se repiten constantemente durante
un tiempo más o menos largo para memorizar los muertos convertidos
en ancestros. Por tanto, la muerte forma parte esencial de la vida
social, la determina en buen grado y su memorización conlleva a un
concepto de historia propia. (Kaulicke, 1997, p. 7)

Figura 1 - Localização dos dois contextos


https://www.kindpng.com/picc/m/37-372782_map-of-the-world-countries-blank-hd-png.png

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1. As antas: breve enquadramento

As antas são monumentos megalíticos construídos na Europa Ocidental, durante o


período Neolítico e Calcolítico. Foram construídas numa vasta extensão territorial,
existindo naturalmente variações regionais, que levam à definição de distintas tipologias.
No entanto, de forma geral, são estruturas funerárias compostas por uma câmara
coberta, à qual se acede por uma passagem ou por um corredor, que por vezes possui
vários metros de extensão. As antas estavam inseridas num tumulus ou mamoa, que as
cobria totalmente, formando uma elevação na topografia.
Construtivamente eram realizadas com ortóstatos, lajes de pedra de grandes dimensões,
que podiam pesar várias toneladas, posicionadas na vertical, sobre as quais assentavam
lajes na horizontal. Normalmente era utilizada pedra disponível na região. Ainda que o
granito seja uma das pedras mais utilizadas, que pelas suas características se presta a
este tipo de construção, verifica-se igualmente a construção de antas com pedra
calcária, como por exemplo na região da estremadura. A construção das antas exigia um
esforço coletivo considerável, sugerindo a existência de uma comunidade coesa e
organizada.
Na Península Ibérica distinguem-se igualmente diferentes tipologias de antas, sendo que
uma mesma região pode possuir estruturas tipologicamente distintas. Por exemplo para
a região da Cantábria, as datações realizadas apontam que a variabilidade existente na
região não está associada a uma mudança sequencial cronológica, sendo provável que
os vários monumentos megalíticos de diferentes morfologias tenham sido construídos
um curto período de tempo. (Scarre, 2001) Já no centro e sul de Portugal encontra-se
uma característica morfológica particular que foi amplamente repetida: muitas das antas
têm sete ou oito ortóstatos a conformar as câmaras poligonais, posicionados com uma
inclinação para o interior e com as arestas sobrepostas, sendo que as lajes se vão
suportando umas às outras. (Scarre, 2001)
Uma característica transversal a estes monumentos, ainda que apenas pontualmente
registada, é a pintura. Um exemplo incontornável é a anta de Antelas, em Oliveira de
Frades.
As antas podem ser encontradas de forma isolada ou agrupadas em conjuntos,
localizam-se em colinas ou planícies, e estão frequentemente inseridas em paisagens
culturais significativas, sugerindo uma relação entre o território e a cosmologia das
sociedades.
O registo arqueológico mostra que as antas foram lugares de deposição coletivos, onde
os corpos eram colocados juntamente com objetos. Os rituais funerários associados
intensificavam o vínculo das estruturas funerárias com as comunidades, sendo que a
revisitação aos lugares de deposição perpetuava a conexão entre os vivos e os mortos.

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Figuras 2 e 3 – Anta de Antelas. Vista do exterior – tumulus e vista do interior – pinturas.


https://antelas-omeulugar.blogspot.com/2019/04/dolmen-de-antelas.html
https://www.shadowsandstone.com/portfolio/portfolio?itemId=ug5ph2coqbgbkd0bqwm1owhgmfgr93

2. As chullpas

2.1 Contextualização

Apesar do termo chullpa ter sido por vezes generalizado, fazendo referência a uma
grande variedade de estruturas, no presente estudo baliza-se este termo a um contexto
geográfico e cronológico definidos. Assim, as chullpas são estruturas funerárias pré-
incas, construídas principalmente pela cultura aymara durante o período Intermédio
Tardio (1000-1400 DC), prolongando-se até ao Horizonte Tardio (1400-1532 DC)1,
localizadas na região do altiplano andino, também denominado meseta de Collao, numa
área que inclui parte dos atuais territórios do Peru, Bolívia e Chile.
O altiplano andino, localiza-se nos Andes Centrais, onde se distinguem duas cordilheiras,
a oriental e a ocidental, que delimitam uma vasta extensão plana, localizada a uma
altitude média de cerca de 3800 metros. É uma região pontuada por vários cones
vulcânicos com alturas superiores a 6000 metros, alguns deles ativos. Destaca-se ainda
a presença de bacias endorreicas: existem vários lagos e lagoas, sendo o maior o lago
Titicaca (Peru e Bolívia); e salares, como o salar de Uyuni (Bolívia).

1 São múltiplas as propostas de divisões de períodos cronológicos utilizadas na arqueologia peruana. Ao longo
do século XX foram desenvolvidas e questionadas diversas aproximações, uma vez que diferentes autores
apresentam distintos períodos, considerando critérios específicos para a sua determinação. Uma das propostas
que tem sido amplamente utilizada é a divisão em horizontes, proposta por Rowe (1962), alvo de posteriores
ajustes. Em 1967, Rowe e Menzel estabelecem os seguintes períodos: Periodo Inicial (10.000 AC - 1200 AC);
Horizonte Temprano (1200 AC - 200 AC); Intermedio Temprano (200 AC - 600 DC); Horizonte Medio (600 DC
- 1000 DC); Intermedio Tardío (1000 DC - 1476 DC); Horizonte Tardío (1476 DC - 1532 DC). No entanto,
existem outras aproximações mais recentes que propõem divisões cronológicas distintas.
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Figura 4 - Região do altiplano andino Figura 5 – As principais regiões do séc. XVI no


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons altiplano andino, retirado de Kesseli, Risto;
Pärssinen, Martti, 2005
/2/2f/Mapa_cuencas_endorr%C3%A9icas_meseta
_del_collao.jpg

O clima é frio e seco, sendo que pela presença do lago Titicaca e da bacia do Amazonas,
as zonas norte e oeste do altiplano são mais húmidas, tornando-se progressivamente
mais seco e árido a sul e este, até à Puna de Atacama, desértica. O clima é ainda
caracterizado por grandes amplitudes térmicas diárias, que podem atingir os 30ºC.
Embora haja registos da utilização de chullpas para outros fins, não parecem restar
dúvidas sobre a sua intenção funerária, desde logo impressa na sua própria designação
- o termo “chullpa” surge no Vocabulario de la lengua aymara2 (1962) definido como
“entierro o serón donde metían sus defuntos”, pelo padre Ludovico Bertonio3 -, e
sustentada pelos restos humanos e espólios funerários a elas associados.
São vários os cronistas que fazem referência a estas estruturas funerárias, que pelas
suas características não passaram despercebidas. Conforme mencionado por Francisco
Gil García (2000), para entender a forma como os cronistas descrevem o que encontram
no continente americano é importante considerar o pensamento europeu da época, que
naturalmente condiciona a interpretação que realizam. Assim, a conceção da morte que

2
Consultado em https://kuprienko.info/ludovico-bertonio-vocabulario-de-la-lengua-aymara-1612/, a 17 de maio de 23
3
Nielsen (2022) questiona as definições apresentadas pelos cronistas, nomeadamente esta do padre Ludovico
Bertonio, considerando que o termo chullpa, na sua origem não se referia necessariamente à estrutura funerária,
aludindo à sua conceção como huaca ou lugar sagrado, associado a relatos mitológicos ainda hoje presentes.
Nielsen considera que chullpa se refere a lugares, objetos ou monumentos que, adquirindo diferentes formas
(grutas naturais ou artificiais, pedras, estruturas funerárias, etc) permitem o contacto entre os vivos e o mundo
dos mortos, apontando a importância dessa relação e os seus impactos na vida dos indivíduos. Considerando
esta informação, ainda que o conceito de chullpa possa ser mais abrangente, persiste o caráter transcendental
e simbólico associado aos mortos, quer incluindo os restos humanos, quer invocando a sua presença.
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se tinha no mundo ocidental europeu do século XVI, onde o pensamento renascentista


fez priorizar a vida sobre a morte, ajuda a entender a admiração que alguns relatos
deixam transparecer nas suas descrições sobre as estruturas funerárias. De forma
equivalente, há que contextualizar os registos realizados no decorrer das expedições dos
séculos XIX e XX.

2.2. Dispositivo arquitetónico - morfologia e materialidade

As chullpas são estruturas verticais de planta circular ou retangular/ quadrangular, cujas


alturas variam normalmente entre os dois e os oito metros. A sua morfologia aparece
amplamente registada, sendo a seguinte descrição de Bartolomé de Las Casas um
exemplo significativo: “(…) hacían para sepolturas unas torres altas. Eran huecas en lo
bajo dellas, obra de un estado4 en alto; lo demás todo era macizo, que o era lleno de
tierra o de piedra y canto labrado, y todas muy blanqueadas. En unas partes das hacían
redondas y en otras cuadradas, muy altas y juntas unas con otras y en el campo.” (Las
Casas, [1552-1561?, Lib. III, cap. CCXLIX] 1976 II: 571 apud Gil García, 2000, p. 172)
Na sua construção é utilizada a pedra ou a terra, e por vezes ambos os materiais. As
paredes eram constituídas por blocos de pedra ou de adobe, de formas mais ou menos
irregulares. As coberturas foram realizadas utilizando diferentes materiais e técnicas:
algumas em falsa cúpula, em pedra ou adobe, outras com grandes lajetas de pedra, e
outras com elementos vegetais.5
A pedra foi utilizada como material de construção destas estruturas de duas formas
diferenciadas. Em alguns casos, como em Qiwaya, uma península localizada na margem
sudeste do lago Titicaca, construíram-se estruturas de aparelho irregular, nas quais os
blocos de pedra são assentes com argamassas e/ ou argila. Já em Sillustani, uma zona
a oeste do lago Titicaca, na região de Colla, se numa primeira fase foi utilizado o aparelho
irregular já descrito, numa fase posterior, realizam-se chullpas com aparelho “estilo
Cuzco”, com pedras bem talhadas, de encaixe cuidado e junta seca. Apesar das pedras
talhadas ao “estilo Cuzco” como o próprio nome indica, serem comummente associadas
a uma característica incaica e, portanto, indicadora da ocupação inca da região, Kessili
e Pärssinen (2005) levantam a hipótese de que esta técnica já estaria a ser realizada
antes da conquista inca, pelo que teria raízes na área a sul do lago Titicaca. De qualquer
forma, existem características que são efetivamente inovações do período incaico,
durante o qual se continuam a utilizar e a construir chullpas.
Em Caquiaviri, na região de Pacaje, verifica-se em algumas estruturas que as paredes,
construídas em adobe, eram revestidas com uma camada de barro, por vezes com

4
Medida antiga que se costumava considerar de 7 pés. Tendo em conta o pé de Castela (0,278 m), um estado
seria equivalente a aproximadamente 1,95 metros.
5
“y así, por la vegas y llanos cerca de los pueblos estaban las sepulturas destos indios, hechas como pequeñas
torres de cuatro esquinas, unas de piedra sola y otras de piedra y tierra, algunas anchas y otras angostas; (…)
Los chapiteles, algunos estaban cubiertos con paja; otros, con unas losas grandes; y parecióme que tenían las
puertas estas sepulturas hacia la parte de levante” (Cieza, [1553, cap. C] 1934: 357 apud Gil García, 2000 p.
169).
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evidencias de terem sido pintadas6. Por outro lado, algumas chullpas foram construídas
com blocos de adobe previamente pigmentados com diferentes cores para formar
determinados padrões (Kessili, Pärssinen, 2005), pelo que se verifica uma estreita
relação entre a decoração e a própria construção.
Apesar de existirem semelhanças transversalmente às várias estruturas funerárias,
também se identificam variações, quer associadas à diversidade de técnicas
construtivas, quer à regionalidade da sua construção que permite associar determinadas
características a algumas zonas. Esta questão tinha sido identificada pelo Padre Bernabé
Cobo (1653)7 e é constatada por Kessili e Pärssinen (2005), na investigação que
desenvolvem para a região Pakasa, na Bolívia, na qual concluem que “existe en realidad
una fuerte correspondencia entre los estilos arquitectónicos de torres funerarias y los
territorios de ciertos grupos étnicos en el altiplano boliviano prehispánico.” (Kessili,
Pärssinen, 2005, p. 402)
Assim, por um lado, cada comunidade conferia características particulares às suas
construções, no entanto, por outro lado, as chullpas podem pensar-se como um
fenómeno difundido na região altiplana andina, na qual se estabeleceriam redes de
comunicação. Existe um registo de chullpas construídas de forma colectiva por várias
comunidades, que se juntaram para a sua realização, que permite refletir sobre as
relações intercomunitárias, mas também sobre o significado do ato de construir e o valor
da chullpa como lugar simbólico de memória. É referido que “gente de cinco naciones
(…) le construyó a Tata Paria dos chullpas de piedra”8 (Kessili, Pärssinen, 2005, p. 383).
A construção de duas chullpas para uma mesma pessoa demonstra o seu valor simbólico,
que transcende a função de espaço de deposição, uma vez que a evocação da presença
do antepassado é em si já significante. Neste sentido, evidencia-se a importância destas
estruturas como lugares de culto aos antepassados, como símbolos de prestígio do ayllu9
e como marcadores territoriais. (Kessili, Pärssinen, 2005)
O acesso ao espaço interior era realizado através de um vão de dimensões normalmente
bastante reduzidas, orientado maioritariamente a oriente. Esta característica foi notória

6
Pedro Mercado de Peñaloza (1583) faz referência às pinturas no exterior das chullpas, realizadas com
“algumas cores”. (García , 2000)
7
“La forma que les daban no era una sola en todo el reino, que como las provincias y naciones eran diversas,
así también tenían diferentes maneras de sepulturas. Mas podemos reducirlas todas a dos géneros: el primero,
de las que cavaban debajo de la tierra, y el segundo de las que levantaban encima de ella. […] Más generales
eran las sepulturas altas edificadas sobre la tierra; en las cuales también hallamos gran variedad, porque cada
nación buscaba nueva traza para hacerlas. (…)” Cobo, [Lib. XIV, cap. 18] 1964 II: 271-273 apud García p. 169-
170
8
“Tristan Platt ha citado un documento temprano que demuestra el esfuerzo colectivo, interprovincial, de
construir un gran mausoleo funerario o chullpa para Tata Paria, un importante señor local de Karakara. Eso no
es todo, ya que el documento demuestra que realmente la gente de cinco naciones (Karakara, Killaqa, Sora,
Chui y Karangas) le construyó a Tata Paria dos chullpas de piedra: una en Macha, la capital inca de Karakara,
y la otra cerca de las Salinas de Carata (Platt, 1988: 385-386; cf. también Abercrombie, 1998: 181).” (Kessili,
Pärssinen, 2005, p. 383)
9
Ayllu é uma forma de organização andina que consta num grupo de pessoas que vive em comunidade, unidas
por um antepassado comum, real ou mítico, e que trabalham de forma coletiva num território comum.
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para muitos dos cronistas10 que nas suas descrições mencionavam a orientação dos vãos
a nascente, bem como para vários investigadores11 que realizaram expedições na
América durante os séculos XIX e XX. Apesar de se registarem orientações diversas e
tamanhos de aberturas mais e menos generosos, a descrição do padre Cobo parece
refletir a norma: “Todas tienen las puertas al oriente, y tan bajas y estrechas como bocas
de horno, que no se entra en ellas sino pecho por tierra.” (Cobo, [Lib. XIV, cap. 18] 1964
II: 271-273 apud Gil García p. 169-170) A abertura dos vãos tem então um simbolismo
relacionado com o nascer do sol, talvez relacionado com o desejo de perpetuação da
existência, que continua depois da morte; e um significado associado à sua dimensão
reduzida que se constitui como um filtro do espaço interior.

Figuras 6 e 7 - Chullpas de pedra, a primeira realizada com blocos menores assentes com argamassa
ou argila; a segunda feita com blocos talhados de encaixe cuidado e junta seca. Kesseli, Pärssinen,
2005

Figura 8 – Chullpa de adobe pintadas. Kesseli, Pärssinen, 2005

10
Álvarez, 1998 [1588; Cieza de León, 1984 [1553]; Cobo, 1964 [1653]; Vázquez de Espinosa, 1992 [1630]
11
Hyslop, 1977; Pärssinen, 1993; Ponce Sanginés, 1958; Pucher, 1947; Vásquez, 1937, entre muitos.
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2.3. Implantação e apropriação da paisagem

Pelas suas dimensões e forma, as chullpas são elementos de grande visibilidade na


paisagem. Ainda que normalmente não se localizem nos cumes de montanhas, existe
uma preferência por pequenas elevações. É igualmente possível encontrar chullpas nas
encostas de montanhas ou mesmo em planícies. Algumas estruturas estão isoladas, mas
outras encontram-se em grupos, inclusivamente com alinhamentos intencionais.
(Kessili, Pärssinen, 2005) Com respeito à posição relativa das chullpas entre si, apesar
de se identificarem agrupamentos específicos, ainda não se estudou com mais detalhe
estas relações. Carmen García (2013) faz esse alerta, levantando a hipótese de existirem
relações complexas por trás das suas posições, tendo por base relações de parentesco,
por exemplo.
É possível associar estas estruturas a marcos territoriais, uma vez que pela sua
monumentalidade se impunham na paisagem, podendo ainda ser pensadas como uma
forma de legitimação da ocupação de determinada área.
A proximidade entre as chullpas e os lugares de assentamento não segue uma regra
constante: “Hacíanlas por las vegas, dehesas y despoblados, unas cerca y otras lejos de
sus pueblos.” (Cobo, 1964 II [1653]: 271-273 apud Gil García p. 169-170)12. No entanto,
apesar da distância ser variável, é recorrente a referência a essa distinção13, sendo que
o mais comum é que exista uma separação entre o lugar dos vivos e o lugar dos mortos.
A concentração destas estruturas na paisagem, levou alguns cronistas a compará-las a
outro assentamento, como é o caso de Las Casas: “Algunas hacían en cerrillos, media o
una legua del pueblo desviadas, que parecía otro pueblo muy poblado, y cada uno tenía
la sepultura de su abalorio y linaje” (Las Casas, [1552-1561?, Lib. III, cap. CCXLIX] 1976
II: 571 apud Gil García, 2000, p. 172)

Figura 9 - Chullpas de Umala, Bolívia. Agence France-Presse, 2019

12
Cobo, 1964 [1653], numa outra passagem, relativamente à localização das chullpas, refere que “edificábanlas
por la mayor parte en los campos, unos en sus heredades, otros en los desiertos y dehesas donde apacentaban
sus ganados, y en algunas provincias dentro de sus mismas casas.” (Cobo, Lib. XIV, cap. 18] 1964 II: 271-273
apud Gil García, 2000 p. 169); Já Cieza, descreve que “por la vegas y llanos cerca de los pueblos estaban las
sepulturas destos indios” (Cieza, [1553, cap. C] 1934: 357 apud Gil García, 2000 p. 169).
13
Outro registo é o de Pedro Mercado de Peñaloza ([1583] 1965), que menciona que as chullpas eram
edificadas “fuera de los pueblos”. (Nuñez, 2013, p. 26)
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Uma explicação possível para a concentração de chullpas em determinados lugares,


frequentemente junto a montanhas ou lagos, estará relacionada com o carácter
simbólico atribuído a esses elementos naturais, que são sagrados na cosmovisão andina.
O lago Titicaca, por exemplo, mais do que sagrado, é concebido como paqarina – lugar
de origem – ventre primogénito das comunidades. O conceito de paqarina surge também
relacionado com grutas, mananciais, ou com o próprio subsolo. Como lugar de origem,
pode igualmente ser concebido como o lugar ao qual regressam os mortos.
Por outro lado, registos antropológicos da região altiplana associam o destino final dos
defuntos aos cumes de montanhas, que teriam de ser escaladas. (García Escudero, 2009,
p. 7) Apesar das diferenças regionais, normalmente, o lugar de destino dos mortos tem
uma relação com um elemento da paisagem. Existe ainda a ideia transversal de que há
alguma dificuldade na viagem post mortem que o defunto teria de realizar até ao seu
destino14. (García Escudero, 2009, p. 7)
Os lugares de assentamento estariam sempre em forte relação com uma paqarina, um
lugar ou elemento da paisagem interpretado como lugar central, fonte e origem da
comunidade. O lugar dos mortos, neste caso bastante visível e marcado na paisagem
através da construção das chullpas, também estabelece uma relação, não só com o
povoado, como com a paqarina. Estes vínculos, que estão fortemente conectados ao
espaço físico onde se assentam as comunidades, estruturam a cosmovisão andina.
Esta forte relação com o lugar pode ler-se na observação de Pablo José de Arriaga (1621):
"(…) una de las causas porque rehusan tanto la reducción de sus pueblos (…) y la
principal razón que dan es que está allí su pacarina (…)" (Arriaga 1968 [1621]: 202).
Assim, entende-se que para as comunidades andinas era importante localizar-se nas
proximidades do seu lugar de origem, que seria provavelmente o lugar pelo qual
iniciariam a sua viagem após a morte. (García Escudero, 2009)
Considerando esta ideia, a resistência que as comunidades locais ofereceram durante a
conquista inca, revelaria a sua preocupação com o afastamento ao seu lugar de origem
que lhes permitiria um dia, na morte, continuar o seu caminho. Neste sentido,
compreende-se a resistência em deixar os lugares de assentamento, e o esforço de
trazer os mortos de volta “a casa”, quando os vivos já tinham sido relocalizados, como
se discutirá mais à frente.
A resistência das comunidades e a sua devoção aos elementos da paisagem,
nomeadamente as montanhas, lê-se nesta descrição de Garcilaso de la Vega: “(…)
sabiendo que el Inca iba a conquistarlos, se conformaron y redujeron en un cerro (…). A
este cerro, por ser solo y por su hermosura, tenían aquellos indios por cosa sagrada, y le
adoraban y ofrecían sus sacrificios. (…) El inca envió los requerimientos acostumbrados,
y que en particular les dijesen, que no iban a quitarles sus vidas, ni haciendas, sino a
hacerles los beneficios que el sol mandaba que hiciese a los indios (…). Este recado

14
Exemplo de relato recolhido por Zulma Rosis Pinaya e Patricia Fuertes, na região altiplana da Bolívia: "ahí [na
montanha Urco Mundo] están los muertos, para llegar al cielo dicen que tienen que subir esse cerro, pero es
difícil de subir, los muertos lo intentan, pero pocos son los que llegan a la cima" (trabajo de campo, Tuysuri,
Tinquipaya, Potosí, Bolivia, 2006, apud García Escudero, 2009, p. 7)
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envió muchas veces a los indios, los cuales estuvieron siempre pertinaces, diciendo que
ellos tenían buena manera de vivir, que no la querían mejorar, y que tenían sus dioses, y
que uno de ellos era aquel cerro que los tenía amparados, y los había de favorecer: que
los incas se fuesen en paz, y enseñasen a otros lo que quisiesen, que ellos no querían
aprender.“ (Garcilaso de la Veja, 1609, p. 58)
Apesar da resistência, as comunidades locais não conseguiram evitar a conquista e, na
sequência de conflitos, foram vários os ayllus obrigados a mudar o seu lugar de
assentamento, passando a localizar-se perto da rede de caminhos incas. Ainda assim,
regista-se que se continuaram a construir chullpas nos assentamentos antigos, cuja
utilização como necrópole e huaca – lugar sagrado – foi perpetuada pelas populações.
(Kessili, Pärssinen, 2005)
Neste sentido, torna-se claro que para além da função mais imediata de se constituírem
como lugares de deposição, as chullpas possuem um elevado valor simbólico. Os
territórios das necrópoles adquiriam um significado intrínseco, que não se podia
transladar. Por isso, mesmo no caso em que a comunidade muda de lugar de
assentamento, a sua paisagem sagrada permanece a mesma: aí está a sua origem e o
lugar ao qual devem regressar.
Este vínculo simbólico com o lugar também evoca questões relacionadas com a
identidade, quer dos indivíduos, quer do grupo. A estabilidade da comunidade depende
da preservação da sua identidade, através da memória e dos rituais, que são
simultaneamente aglutinadores sociais.

Figura 10 - Chullpas de Sillustani, Peru. Ana Francisco, 2018

2.4. Ritual funerário

O ritual funerário associado às chullpas inclui a deposição dos corpos, que eram
normalmente colocados sentados, com os joelhos junto ao rosto, embrulhados em
têxteis, peles ou cestos de fibras vegetais. Devido às condições climáticas, era
relativamente comum que pudesse acontecer uma mumificação natural. Os cronistas
referem com admiração o bom estado de conservação dos corpos, como é esta descrição
um exemplo: “sentados, enteros e incorporados, por ser aquel sitio sempre frío y de

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ventos sutiles (…) parece que ayer se pusieron en aquellos sepulcros” (Vázquez de
Espinosa, 1992 [1630]: 660 apud Gil García, 2000, p. 172) Os corpos seriam
acompanhados com alimentos e bebidas15, e por objetos cerâmicos, líticos e metálicos.
A análise da disposição destes objetos denunciou que normalmente se encontram em
“U”, junto às paredes da estrutura, coincidindo o espaço livre com o vão de acesso.
(Nuñez, 2013)
Relativamente aos destinatários destas estruturas, a discussão permanece. Alguns
autores apontam que as chullpas seriam para a elite16, tendo sido essa a interpretação
geral que os exploradores dos séculos XIX e XX adotaram e registaram nas suas
publicações17 (Kessili, Pärssinen, 2005; Gil García, 2000). No entanto, essa ideia é
questionada por Francisco Gil García (2000) que, analisando aspetos relacionadas com
a etimologia da palavra chullpa, registos coloniais, bem como a proporção entre a
quantidade de chullpas existentes com respeito ao número de habitantes, conclui que as
chullpas são um “modelo de sepulcro extensible a todos los estamentos sociales,
algunos de los cuales, eso sí, podrían quedar diferenciados en función de un tratamiento
especial de la superficie externa de sus torres chullpa.” (Gil García, 2000, p. 188) Assim,
o autor realça a função social das chullpas como estruturas relacionadas ao culto dos
antepassados, e apoia a ideia de “ayllus de sepulcros abertos” proposta por Isbell (1997),
que considera que a permanência do ayllu depende de um cuidado constante dos corpos
dos mortos, cuidado esse que garante a sobrevivência dos mortos. Desta forma, o
equilíbrio é atingido nesta relação próxima e constante entre os dois mundos,
considerando que a revisitação aos mortos era parte essencial do ritual funerário, que
não terminava com a deposição do corpo. Esta ideia surge em alguns registos coloniais
que descrevem rituais frequentes realizados junto às estruturas funerárias. Cieza revela
que as chullpas “tiene sus puertas que salen al nacimiento del sol, y junto a ellas (como
también diré) acostumbran a hacer sus sacrificios y quemar algunas cosas, y rociar
aquellos lugares con sangre de corderos o de otros animales” (Cieza, [1553, cap. LXIII]
1984: 266 apud Gil García, 2000 p. 169).
A maioria das chullpas percebe-se que são de uso coletivo, sendo que os registos
coloniais revelam que quando morriam pessoas com algum estatuto social, estas
poderiam ser depositadas com serventes que as acompanhariam na morte: “Solían los
curacas principales, cuando moría algún principal curaca, hacer que en el aposento del
muerto se encerracen las mancebas que habían sido de aquel que estaba muriendo. A
las cuales las cercaban otras mujeres; dándoles a comer coca y a beber acua, las hacían
morir borrachas y ahogadas desta comida y bebida, diciendo “come, come y bebe presto

15
Situação descrita por alguns cronistas, como Ramos Gavilán “(…) donde juntamente con el difunto
encerraban alguna comida y bebida y el vestuario que tenía” (Ramos Gavilán, [1621], cap. XXII] 1976: 73 apud
Gil García, 2000, p. 712)
16
Como Hyslop, 1977, Lumbreras, 1974, entre outros.
17
Um dos exploradores do séc. XIX que reafirma o sentido de deposições da elite é Alcides D’Orbigny que
menciona que alguns dos crânios que encontra no interior das chullpas possuem deformações evidentes,
especificando que “las cabezas más deformadas se encuentran en las tumbas más grandes” (Gil García, 2000,
p. 177)
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y mucho, que has de ir a servir al malco - que quiere decir ‘señor’-; está de partida y has
de ir a servirle allá donde va; que, si tú no vas, no lleva quien le sirva”. Y así mataban a
muchas, y las enterraban con ellos en sus sepulcros.” (padre Bartolomé Álvarez (1998
[1588]: 94) apud Kessili, Pärssinen, 2005, p. 383)
Através do estudo do espólio funerário de chullpas realizado por C. Nuñez (2013), foi
possível compreender que existe uma diferença evidente entre os objetos encontrados
na parte superior da estrutura (material cultura inca) e na parte inferior (material cultura
local pré-inca), o que demonstra o período de utilização da estrutura, culturalmente
transversal. Verificou-se ainda uma distribuição contrastante de piruros – objetos
pequenos de formato circular com uma perfuração central, utilizados na fabricação da lã
– muito presentes na parte inferior e ausentes na superior. Estes objetos, na cultura local
pré-inca (Chiribaya), eram tipicamente utilizados em contextos funerários femininos,
tendo sido identificados artefactos sem qualquer marca de uso postos simbolicamente
junto aos corpos de crianças (provavelmente do sexo feminino). Esta associação
demonstraria uma construção de identidade de género desde a infância. Assim, a
presença de piruros com e sem marcas de uso nas chullpas poderá corresponder ao facto
de nelas terem sido sepultados indivíduos do sexo feminino de diferentes idades. Esta
relação entre a identidade e género e a produção têxtil parece diluir-se durante a
influência imperial, uma vez que não se verifica a inclusão destes objetos nos contextos
funerários dessa cronologia. (Nuñez, 2013)
Assim, compreende-se que os rituais associados a estas estruturas funerárias são
complexos e envolvem uma diversidade de gestos e objetos que buscam perpetuar a
memória, estabelecendo fortes vínculos dentro, e possivelmente fora, da comunidade.

Figura 11 - “Entierro de Collasuyos”, Figura 12 - Desenho do interior de uma chullpa, Paul


Guaman Poma de Ayala, Nueva Crónica
Marcoy, 1872
y Buen Gobierno, 1615
A representação do ritual de deposição
mostra a presença prévia de restos
humanos na estrutura funerária, aos
quais se juntará mais um morto. Por
cima do vão lê-se a expressão “ayan
otapa” que em aymara significa “casa do
morto”.

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Figura 13 - Múmias encontradas em Sillustani, Flor Ruiz, 2010

2.5. A utilização do ocre e do cinábrio

A utilização de ocre e cinábrio nos contextos funerários foi recentemente estudada no


Peru, no âmbito de um trabalho que analisou restos humanos de um conjunto de chullpas
da região de Chincha. Jacob Bongers (2023) propõe que os corpos dos mortos, depois de
atingirem determinado nível de decomposição, eram pintados com estes pigmentos,
podendo, aquando dessa manipulação, ser relocalizados noutra chullpa. A pintura não
era aplicada em todos os restos humanos, pelo que se sugere que se destinaria apenas
a uma parte da população. O ocre, obtido localmente, teria um menor valor, já o cinábrio,
que tinha de percorrer uma longa distância, estaria destinado a um uso mais exclusivo.
Os pigmentos seriam aplicados diretamente com os dedos, com folhas ou outros
instrumentos, estabelecendo-se um vínculo de grande proximidade entre vivos e mortos.
(Bonders et al., 2023) Os autores consideram que esta manipulação dos corpos e
aplicação das pinturas aos restos humanos, alteraria o estatuto ontológico dos mortos,
argumentando, no entanto, que outras ações associadas à revisitação regular, como as
oferendas de comida e bebida e o envolvimento dos corpos com têxteis, teriam
significados equiparáveis, interpretados como gestos de manutenção destas relações.

Figura 14 – Utilização de pigmento vermelho no ciclo funerário das chullpas, Jacob et al., 2023
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Discussão e considerações finais

É curioso, desde logo, notar que as descrições que fazem os cronistas europeus dos
séculos XVI e XVII, perante o investimento que as comunidades nativas que encontram
na América dedicam à morte - evidente quando observam as chullpas - refletem uma
admiração e estranheza equiparável à que existe entre os pré-historiadores que
reconhecem no megalitismo uma supremacia do investimento na morte.
Assim, a conceção da morte que se tinha no mundo ocidental europeu do século XVI,
onde o pensamento renascentista fez priorizar a vida sobre a morte, contextualiza as
descrições sobre as estruturas funerárias que Pedro Cieza de León faz em La Crónica
del Perú (1553):

“teniendo por ciertas aquellas falsas apariencias, tienen más cuidado


en aderezar sus sepulcros o sepulturas que ninguna otra cosa” (Cieza,
[1553, cap. LXII] 1984: 263 apud García, 2000, p. 169)

“La cosa más notable y de ver que hay en este Collao, a mi ver, es las
sepulturas de los muertos. Cuando yo pasé por él me detenía a escribir
lo que entendía de las cosas que había que notar destos indios. Y
verdaderamente me admiraba en pensar cómo los vivos se daban poco
por tener casas grandes y galanas, y con cuanto cuidado adornaban
las sepulturas donde se habían de enterrar, como si toda su felicidad
no consistiera en otra cosa; (…)” (Cieza, [1553, cap. C] 1934: 357 apud
García, 2000, p. 169)

Um século depois, o Padre Bernabé Cobo faz uma descrição semelhante:

“(…) Costumbre fue universal en todas las naciones de indios, tener


más en cuenta con la morada que habían de tener después de muertos
que en vida; pues contentándose para su habitación con tan pequeñas
y humildes casas (…) sin dárseles nada por tenerlas grandes y
lustrosas, ponían tanto cuidado en labrar y adornar los sepulcros en
que se habían de enterrar, como si en eso sólo estuviera su felicidad.”
(Cobo, Lib. XIV, cap. 18, 1964 II [1652]: 271-273 apud García, 2000, p.
169)

Apesar de se tratar de uma cronologia muito distinta, quando comparado com o


megalitismo, as comunidades nativas americanas viviam essencialmente da agricultura
e não tinham desenvolvido escrita, possuindo um complexo pensamento ideológico e
mágico-religioso, características partilhadas pelas comunidades construtoras das antas.
Podem estabelecer-se paralelismos, quer ao nível das estruturas construídas, quer dos
rituais a elas associados. As antas e as chullpas são estruturas realizadas para os
mortos, construídas em positivo, com uma marcada presença na paisagem onde se
implantam. Em ambos os contextos já se teriam realizado enterramentos em estruturas
negativas, mas as antas e as chullpas contêm em si o desejo de serem vistas, de marcar
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a paisagem, pelo que se pode entender simultaneamente uma intenção de legitimar a


pertença de determinado território a uma comunidade. Uma das características que
demonstra o vínculo destas estruturas com a paisagem, é a orientação das suas
aberturas, que maioritariamente estão viradas a este, ao sol nascente. São vários os
possíveis significados que se podem imaginar, ficando, no entanto clara, a vontade de
vincular estas estruturas funerárias não só com o espaço envolvente, mas também com
o tempo e os ciclos naturais. Pode pensar-se uma relação entre as revisitações
recorrentes que se faziam aos mortos, com o vínculo com o nascer do sol, reforçando a
ideia de continuidade e perpetuação após a morte.
As entradas nas antas realizam-se normalmente por um corredor estreito onde seria
dificil ou mesmo impeditivo andar a pé. Por sua vez, a entrada das chullpas, não se
efetuando por um corredor, é também muito reduzida e baixa, constrangendo o acesso.
Assim, pode ler-se em ambas as estruturas uma intenção de contração do espaço da
entrada, seguido de dilatação na câmara funerária. Se, por um lado, as aberturas são o
que permite o acesso ao espaço interior, e como se referiu, não apenas um acesso
pontual, mas repetido ao longo do tempo, são também estas que, pelas suas
características, oferecem resistência à entrada. Este acesso difícil e filtrado poderá
reforçar a ideia de que a estrutura funerária é um ponto de contacto entre dois mundos
distintos, que se conectam pontualmente. As aberturas reduzidas aumentam o contraste
entre o exterior e o interior, e proporcionando essa descontinuidade, geram um ambiente
interior de penumbra, mais isolado e introspetivo. Assim, as câmaras funerárias podem
ser concebidas como umbrais que permitem o acesso a um espaço que as transcende.

Figura 15 – Entrada na Anta Grande do Zambujeiro, António Carlos Silva, 2014

Figuras 16 e 17 – Entradas nas chullpas. Kesseli, Pärssinen, 2005


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Construtivamente, as antas e as chullpas diferenciam-se significativamente. Mesmo


considerando as chullpas executadas em pedra, a utilização do material é bastante
distinta, uma vez que as chullpas se constroem com blocos de menores dimensões, que
se vão assentando com ou sem recurso a argamassa, e as antas são realizadas com
blocos de grandes dimensões colocados em posição vertical, sobre os quais assentam
um ou mais blocos horizontais. Para além disso, as antas não eram visíveis, era a mamoa
que tinha presença no território.
Em algumas chullpas, conforme referido, conservam-se vestígios da utilização de pintura
no exterior, característica que teria impacto na paisagem. É naturalmente distinto
imaginar estas estruturas com o material utilizado na sua construção à vista, ou concebê-
las com cores e/ ou padrões. A paisagem funerária megalítica pode também ter sido
colorida. Bueno Ramírez (2020) aponta que seriam selecionadas argilas específicas para
o tumulus, e que as pedras perimetrais que o contêm seriam também escolhias pela sua
cor.

La colina de los muertos en rojo, en rojo y blanco o en rojo, blanco y


negro, resultaría impactante bajo la luz solar o las luces artificiales. Su
color, unido a su volumen y, en ocasiones, a su altura, contribuiría a
hacer visible la gran mortaja que acogía los restos de los ancestros que
se depositaban en su interior. (Bueno Ramírez, et al., 2020, p. 232)

A presença de cor nas estruturas funerárias põe em evidência a sua importância,


realçando o desejo de visibilidade. Considerando os amplos períodos de utilização destas
estruturas, pode pensar-se a manutenção dos revestimentos/ pinturas como uma
vertente mais dos rituais a elas associados.
Relativamente aos rituais funerários, ambos incluíam a deposição dos corpos, junto aos
quais se colocam objetos. Os espólios são variados, incluindo desde objetos do
quotidiano a elementos mais excecionais. Conforme referido, o ritual não terminava com
a deposição do corpo. A revisitação na cultura andina tinha como intenção a prestação
de um cuidado contínuo ao morto, vinculado ao próprio bem-estar dos vivos. O ocre e o
cinábrio são elementos usados em ambos os contextos funerários, encontrando-se
evidências da sua utilização para pigmentar os corpos, mas também os objetos
funerários, o solo e as paredes da câmara funerária, pelo que a sua função não estaria
unicamente relacionada com as suas propriedades de conservação e desinfeção, que
justificariam a sua aplicação aos corpos dos mortos, mas adquiria um outro valor
simbólico.
Outro aspeto interessante relaciona-se com a ideia de que os hábitos e costumes
relacionados com os mortos parecem ser os mais difíceis de alterar. A continua e
prolongada utilização que tiveram as antas e as chullpas parecem demonstrar o forte
vínculo aos mortos, à estrutura funerária e ao próprio lugar. A importância simbólica dos
lugares de deposição, associados a um território também ele sacralizado, evidencia-se
no desejo de continuar a usar as necrópoles antigas, mesmo depois das comunidades
serem obrigadas a mudar de lugar de assentamento. Este transporte dos mortos

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continuou a verificar-se já em época colonial, período no qual se encontram registos de


que, após a imposição de uma regra que obrigava ao enterramento de todas as pessoas
nas igrejas ou cemitérios cristãos, as comunidades nativas iam às escondidas recuperar
os corpos dos seus mortos para os depositar nos sepulcros que eram para eles os lugares
adequados. (García, 2000, p. 173) Destaca-se assim como os vivos, ainda que alterem
os seus hábitos e habitats, se encontram mais resistentes à mudança quando ela envolve
os mortos.
Para a compreensão da relação estabelecida no mundo andino com os antepassados e
com o território é importante o conceito de paqarina.

(…) los mecanismos religiosos y sociales andinos reposaban sobre el


sistema de parentesco, expresado principalmente por el culto a los
muertos, a las momias de los ancestros, así como al otro, anexo, del
lugar de origen (pacarina) atribuido a cada linaje (ayllu) pudiendo ser
ese lugar de origen tanto una gruta, como una fuente o una momia, etc.
Existía pues un lazo indisoluble, vital, entre el hábitat y los grupos
humanos; una distancia excesiva entre ese hábitat y la pacarina volvía
imposible el culto a los lugares de origen de las familias. (Duviolds,
1976, p. 89 apud García, 2000, p. 190)

Os lugares de assentamento estariam sempre em forte relação com uma paqarina,


interpretada como lugar central, fonte e origem da comunidade. O lugar dos mortos,
bastante visível e marcado na paisagem através da construção das chullpas, também
estabelece uma relação, não só com o povoado, como com a paqarina. Estes vínculos,
que estão fortemente conectados ao espaço físico onde se assentam as comunidades,
estruturam a cosmovisão andina.
A ideia de “ayllus de sepulcros abertos” proposta por Isbell (1997) considera que os
antepassados contribuem para as relações sociais e políticas da comunidade e,
consequentemente, para o controlo territorial, pelo que os lugares de deposição eram
lugares abertos aos quais os vivos iam frequentemente realizar oferendas e rituais, que
garantiam que os antepassados intercediam por eles, permitindo a permanência unitária
do ayllu. (Isbell, 1997)
Esta relação de reciprocidade constante permite pensar que se possam ter erguido
monumentos funerários sem o propósito de depositar um corpo, mas de evocar a
presença dos antepassados, provavelmente com objetos simbólicos associados. (García,
2000) Neste sentido, pode pensar-se que as chullpas poderão associar-se à ideia de
paqarina, enquanto lugar simbólico de origem, determinantes para a apropriação do
território e para a domesticação do tempo e do espaço.
É plausível pensar que as antas se pudessem igualmente inserir numa complexa teia de
relações, entre vivos e mortos, território, paisagem, simbolismo e memória.
Sendo em ambos os casos estruturas feitas para durar, subentende-se um desejo de
continuidade e perpetuação da memória. A memória social inerente à construção das
estruturas funerárias que, por perdurarem no tempo afetam sucessivas gerações,

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desempenha um papel fundamental no culto aos antepassados. (Nielsen, 2008) Assim,


entende-se que existe uma acumulação da memória na paisagem, na qual se imprime
culturalmente ao longo do tempo.
A importância da memória na transmissão da cultura é discutida por Michael Rowlands
(1993) que propõe uma abordagem, que se baseia principalmente nas ideias de Kuechler
e Whitehouse, e que procura questionar a conceção previamente pensada por Barth de
que a transmissão cultural se realiza de forma diferenciada em sociedades com ou sem
escrita, propondo este autor a distinção entre práticas inscritas e incorporadas, que são
transversais a diferentes contextos e a sociedades em distintos estágios de
desenvolvimento. Assim, segundo Rowlands (1993) a transmissão por inscrição é
realizada através de registos materiais que representam determinada ideia; já a
transmissão por incorporação dá-se através da experiência vivida, pela observação e
participação em práticas culturais e rituais. Se na primeira se torna fundamental a
repetição para a disseminação da informação, na segunda é o simbolismo icónico e a
capacidade de persuasão que apela ao lado emocional, que adquirem um papel de
particular importância.
Assim, a transmissão por incorporação é particularmente importante em sociedades sem
escrita, nas quais a maior parte da informação cultural é transmitida através de práticas
cotidianas. Neste sentido, os rituais funerários adquirem um papel relevante, uma vez
que envolvem experiências sensoriais e emocionais fortes, associadas a gestos
simbólicos, que são partilhadas pelos indivíduos de determinado grupo, contribuindo
igualmente para a coesão do mesmo. Complementarmente, e porque a transmissão
cultural será naturalmente um processo híbrido que transcende as categorias propostas
que ajudam à sua compreensão, pode identificar-se nos contextos funerários, elementos
materiais igualmente importantes na transmissão de significados, sendo desde logo um
exemplo a própria estrutura funerária, principalmente quando possui uma visibilidade
relevante, como é o caso das antas ou das chullpas.
Tendo em conta os paralelismos que foram sendo estabelecidos, as estruturas funerárias
de ambos os contextos parecem possuir: uma dimensão funcional, associada à
deposição e proteção dos corpos dos mortos; uma dimensão social, considerando a
importância dos antepassados para a coesão das comunidades; uma dimensão
territorial, uma vez que possuem uma grande visibilidade e presença na paisagem que
se poderia relacionar com a legitimação territorial dos grupos; uma dimensão simbólica,
vinculada com as relações com os antepassados e a sua importância para a
sobrevivência dos vivos.
Assim, os monumentos funerários podem ser pensados como “fenómenos sociais totais”,
ideia proposta por Marcel Mauss (1925), que procura romper com as dicotomias e o
dualismo, propondo que certos fenómenos sociais não podem ser adequadamente
compreendidos isoladamente, mas sim como totalidades complexas e interconectadas.
As estruturas funerárias, para além da sua fisicalidade, são expressões sociais, culturais
e simbólicas das comunidades e devem ser pensadas de forma global, o que implica uma
abertura à compreensão complexa da realidade.

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Os monumentos funerários desempenham papéis diversos e interligados na vida das


comunidades, sendo que através destes, os grupos estabelecem uma conexão entre o
passado e o presente, perpetuando a memória coletiva e reforçando a identidade da
comunidade. Estas estruturas são elementos bem visíveis e de longa duração, que
marcam o território e adquirem significados culturais e simbólicos, impactando na
organização social, na cosmovisão e nas práticas das sociedades.
Assim, antas e chullpas refletem a relação indissociável entre o território, as
comunidades e os diversos aspetos da sua vida social e cultural, desempenhando um
papel significativo na compreensão a sua identidade.

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