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Índice
Introdução ................................................................................................................................ 2
2. As chullpas........................................................................................................................... 5
Bibliografia ............................................................................................................................. 21
Introdução
O megalitismo tem sido pensado e discutido nas últimas décadas como um fenómeno
associado não só a uma mudança económica, mas também a uma alteração social e
mental da própria conceção da vida e da morte. Durante o período mesolítico, as práticas
funerárias consistiam em enterrar os corpos em depressões escavadas no solo junto aos
lugares de habitat, pelo que vivos e mortos partilhavam o mesmo espaço.
Posteriormente, com a utilização de grutas naturais para deposição dos mortos, parecem
definir-se duas áreas distintas: a dos vivos e a dos mortos, o que permite pensar uma
mudança na estrutura mental das primeiras comunidades camponesas. (Diniz, 2000)
Por outro lado, se para o período mesolítico existem vários registos de locais de habitat,
à medida que se vai entrando no neolítico são as estruturas e objetos funerários que
predominam no registo arqueológico.
Esta sucessiva valorização da morte, torna-se evidente com a construção de
monumentos megalíticos, que não só definem um espaço próprio e erguido
especificamente para o efeito de receber o morto; mas também marcam o início da
construção de uma paisagem funerária.
O megalitismo é compreendido como um fenómeno polimorfo, uma vez que se manifesta
através da construção de diversas estruturas distintas, umas em positivo, outras em
negativo, incluindo menires, isolados ou em grupo. Assim, durante este período – desde
o neolítico médio até ao final do calcolítico – os mortos terão tido diversos destinos: as
grutas naturais continuaram em utilização; construíam-se hipogeus, grutas artificiais,
onde também se realizavam deposições; construíram-se antas e posteriormente tholoi.
Neste estudo, consideram-se principalmente as antas, como a materialização do
primeiro esforço de construção, que não sendo erigido nos lugares de habitat, é
exatamente no mundo dos mortos que encontra o seu fundamento. (Diniz, 2000)
São várias as interrogações que persistem à volta da construção, utilização e significado
destas estruturas tão representativas da pré-história peninsular. A informação à qual se
tem acesso é limitada, não existindo naturalmente qualquer tipo de registo escrito que
se constitua como uma fonte mais direta para a compreensão destas sociedades.
Assim, através do estudo de estruturas funerárias de outro contexto geográfico e
cronológico, sobre as quais se tem informação de caráter distinto daquela que se
consegue obter para o estudo das antas, procura-se explorar a possibilidade de formular
hipóteses interpretativas que ajudem à sua compreensão.
São múltiplas as formas de inumação praticadas no continente americano, como o são
no continente europeu, coexistindo inclusivamente diferentes práticas funerárias. Na
América do Sul, e mais concretamente na região andina é igualmente possível identificar,
à semelhança do descrito para o megalitismo peninsular, a presença de ortóstatos, de
estruturas construídas acima do nível do solo e de estruturas em negativo. Este estudo
focar-se-á nas estruturas em positivo, nomeadamente nas antas e nas chullpas.
Apesar da diferença geográfica e cronológica, considera-se que é possível estabelecer
uma relação entre ambas as estruturas funerárias, atentando à fase de desenvolvimento
socioeconómico das comunidades que as construíram, que viviam essencialmente da
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Pensar a morte: possível contributo das chullpas do altiplano andino (sécs. XI a XVI DC)
para o entendimento e interpretação das antas (IV a II milénios AC)
2. As chullpas
2.1 Contextualização
Apesar do termo chullpa ter sido por vezes generalizado, fazendo referência a uma
grande variedade de estruturas, no presente estudo baliza-se este termo a um contexto
geográfico e cronológico definidos. Assim, as chullpas são estruturas funerárias pré-
incas, construídas principalmente pela cultura aymara durante o período Intermédio
Tardio (1000-1400 DC), prolongando-se até ao Horizonte Tardio (1400-1532 DC)1,
localizadas na região do altiplano andino, também denominado meseta de Collao, numa
área que inclui parte dos atuais territórios do Peru, Bolívia e Chile.
O altiplano andino, localiza-se nos Andes Centrais, onde se distinguem duas cordilheiras,
a oriental e a ocidental, que delimitam uma vasta extensão plana, localizada a uma
altitude média de cerca de 3800 metros. É uma região pontuada por vários cones
vulcânicos com alturas superiores a 6000 metros, alguns deles ativos. Destaca-se ainda
a presença de bacias endorreicas: existem vários lagos e lagoas, sendo o maior o lago
Titicaca (Peru e Bolívia); e salares, como o salar de Uyuni (Bolívia).
1 São múltiplas as propostas de divisões de períodos cronológicos utilizadas na arqueologia peruana. Ao longo
do século XX foram desenvolvidas e questionadas diversas aproximações, uma vez que diferentes autores
apresentam distintos períodos, considerando critérios específicos para a sua determinação. Uma das propostas
que tem sido amplamente utilizada é a divisão em horizontes, proposta por Rowe (1962), alvo de posteriores
ajustes. Em 1967, Rowe e Menzel estabelecem os seguintes períodos: Periodo Inicial (10.000 AC - 1200 AC);
Horizonte Temprano (1200 AC - 200 AC); Intermedio Temprano (200 AC - 600 DC); Horizonte Medio (600 DC
- 1000 DC); Intermedio Tardío (1000 DC - 1476 DC); Horizonte Tardío (1476 DC - 1532 DC). No entanto,
existem outras aproximações mais recentes que propõem divisões cronológicas distintas.
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O clima é frio e seco, sendo que pela presença do lago Titicaca e da bacia do Amazonas,
as zonas norte e oeste do altiplano são mais húmidas, tornando-se progressivamente
mais seco e árido a sul e este, até à Puna de Atacama, desértica. O clima é ainda
caracterizado por grandes amplitudes térmicas diárias, que podem atingir os 30ºC.
Embora haja registos da utilização de chullpas para outros fins, não parecem restar
dúvidas sobre a sua intenção funerária, desde logo impressa na sua própria designação
- o termo “chullpa” surge no Vocabulario de la lengua aymara2 (1962) definido como
“entierro o serón donde metían sus defuntos”, pelo padre Ludovico Bertonio3 -, e
sustentada pelos restos humanos e espólios funerários a elas associados.
São vários os cronistas que fazem referência a estas estruturas funerárias, que pelas
suas características não passaram despercebidas. Conforme mencionado por Francisco
Gil García (2000), para entender a forma como os cronistas descrevem o que encontram
no continente americano é importante considerar o pensamento europeu da época, que
naturalmente condiciona a interpretação que realizam. Assim, a conceção da morte que
2
Consultado em https://kuprienko.info/ludovico-bertonio-vocabulario-de-la-lengua-aymara-1612/, a 17 de maio de 23
3
Nielsen (2022) questiona as definições apresentadas pelos cronistas, nomeadamente esta do padre Ludovico
Bertonio, considerando que o termo chullpa, na sua origem não se referia necessariamente à estrutura funerária,
aludindo à sua conceção como huaca ou lugar sagrado, associado a relatos mitológicos ainda hoje presentes.
Nielsen considera que chullpa se refere a lugares, objetos ou monumentos que, adquirindo diferentes formas
(grutas naturais ou artificiais, pedras, estruturas funerárias, etc) permitem o contacto entre os vivos e o mundo
dos mortos, apontando a importância dessa relação e os seus impactos na vida dos indivíduos. Considerando
esta informação, ainda que o conceito de chullpa possa ser mais abrangente, persiste o caráter transcendental
e simbólico associado aos mortos, quer incluindo os restos humanos, quer invocando a sua presença.
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para o entendimento e interpretação das antas (IV a II milénios AC)
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Medida antiga que se costumava considerar de 7 pés. Tendo em conta o pé de Castela (0,278 m), um estado
seria equivalente a aproximadamente 1,95 metros.
5
“y así, por la vegas y llanos cerca de los pueblos estaban las sepulturas destos indios, hechas como pequeñas
torres de cuatro esquinas, unas de piedra sola y otras de piedra y tierra, algunas anchas y otras angostas; (…)
Los chapiteles, algunos estaban cubiertos con paja; otros, con unas losas grandes; y parecióme que tenían las
puertas estas sepulturas hacia la parte de levante” (Cieza, [1553, cap. C] 1934: 357 apud Gil García, 2000 p.
169).
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evidencias de terem sido pintadas6. Por outro lado, algumas chullpas foram construídas
com blocos de adobe previamente pigmentados com diferentes cores para formar
determinados padrões (Kessili, Pärssinen, 2005), pelo que se verifica uma estreita
relação entre a decoração e a própria construção.
Apesar de existirem semelhanças transversalmente às várias estruturas funerárias,
também se identificam variações, quer associadas à diversidade de técnicas
construtivas, quer à regionalidade da sua construção que permite associar determinadas
características a algumas zonas. Esta questão tinha sido identificada pelo Padre Bernabé
Cobo (1653)7 e é constatada por Kessili e Pärssinen (2005), na investigação que
desenvolvem para a região Pakasa, na Bolívia, na qual concluem que “existe en realidad
una fuerte correspondencia entre los estilos arquitectónicos de torres funerarias y los
territorios de ciertos grupos étnicos en el altiplano boliviano prehispánico.” (Kessili,
Pärssinen, 2005, p. 402)
Assim, por um lado, cada comunidade conferia características particulares às suas
construções, no entanto, por outro lado, as chullpas podem pensar-se como um
fenómeno difundido na região altiplana andina, na qual se estabeleceriam redes de
comunicação. Existe um registo de chullpas construídas de forma colectiva por várias
comunidades, que se juntaram para a sua realização, que permite refletir sobre as
relações intercomunitárias, mas também sobre o significado do ato de construir e o valor
da chullpa como lugar simbólico de memória. É referido que “gente de cinco naciones
(…) le construyó a Tata Paria dos chullpas de piedra”8 (Kessili, Pärssinen, 2005, p. 383).
A construção de duas chullpas para uma mesma pessoa demonstra o seu valor simbólico,
que transcende a função de espaço de deposição, uma vez que a evocação da presença
do antepassado é em si já significante. Neste sentido, evidencia-se a importância destas
estruturas como lugares de culto aos antepassados, como símbolos de prestígio do ayllu9
e como marcadores territoriais. (Kessili, Pärssinen, 2005)
O acesso ao espaço interior era realizado através de um vão de dimensões normalmente
bastante reduzidas, orientado maioritariamente a oriente. Esta característica foi notória
6
Pedro Mercado de Peñaloza (1583) faz referência às pinturas no exterior das chullpas, realizadas com
“algumas cores”. (García , 2000)
7
“La forma que les daban no era una sola en todo el reino, que como las provincias y naciones eran diversas,
así también tenían diferentes maneras de sepulturas. Mas podemos reducirlas todas a dos géneros: el primero,
de las que cavaban debajo de la tierra, y el segundo de las que levantaban encima de ella. […] Más generales
eran las sepulturas altas edificadas sobre la tierra; en las cuales también hallamos gran variedad, porque cada
nación buscaba nueva traza para hacerlas. (…)” Cobo, [Lib. XIV, cap. 18] 1964 II: 271-273 apud García p. 169-
170
8
“Tristan Platt ha citado un documento temprano que demuestra el esfuerzo colectivo, interprovincial, de
construir un gran mausoleo funerario o chullpa para Tata Paria, un importante señor local de Karakara. Eso no
es todo, ya que el documento demuestra que realmente la gente de cinco naciones (Karakara, Killaqa, Sora,
Chui y Karangas) le construyó a Tata Paria dos chullpas de piedra: una en Macha, la capital inca de Karakara,
y la otra cerca de las Salinas de Carata (Platt, 1988: 385-386; cf. también Abercrombie, 1998: 181).” (Kessili,
Pärssinen, 2005, p. 383)
9
Ayllu é uma forma de organização andina que consta num grupo de pessoas que vive em comunidade, unidas
por um antepassado comum, real ou mítico, e que trabalham de forma coletiva num território comum.
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para muitos dos cronistas10 que nas suas descrições mencionavam a orientação dos vãos
a nascente, bem como para vários investigadores11 que realizaram expedições na
América durante os séculos XIX e XX. Apesar de se registarem orientações diversas e
tamanhos de aberturas mais e menos generosos, a descrição do padre Cobo parece
refletir a norma: “Todas tienen las puertas al oriente, y tan bajas y estrechas como bocas
de horno, que no se entra en ellas sino pecho por tierra.” (Cobo, [Lib. XIV, cap. 18] 1964
II: 271-273 apud Gil García p. 169-170) A abertura dos vãos tem então um simbolismo
relacionado com o nascer do sol, talvez relacionado com o desejo de perpetuação da
existência, que continua depois da morte; e um significado associado à sua dimensão
reduzida que se constitui como um filtro do espaço interior.
Figuras 6 e 7 - Chullpas de pedra, a primeira realizada com blocos menores assentes com argamassa
ou argila; a segunda feita com blocos talhados de encaixe cuidado e junta seca. Kesseli, Pärssinen,
2005
10
Álvarez, 1998 [1588; Cieza de León, 1984 [1553]; Cobo, 1964 [1653]; Vázquez de Espinosa, 1992 [1630]
11
Hyslop, 1977; Pärssinen, 1993; Ponce Sanginés, 1958; Pucher, 1947; Vásquez, 1937, entre muitos.
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Cobo, 1964 [1653], numa outra passagem, relativamente à localização das chullpas, refere que “edificábanlas
por la mayor parte en los campos, unos en sus heredades, otros en los desiertos y dehesas donde apacentaban
sus ganados, y en algunas provincias dentro de sus mismas casas.” (Cobo, Lib. XIV, cap. 18] 1964 II: 271-273
apud Gil García, 2000 p. 169); Já Cieza, descreve que “por la vegas y llanos cerca de los pueblos estaban las
sepulturas destos indios” (Cieza, [1553, cap. C] 1934: 357 apud Gil García, 2000 p. 169).
13
Outro registo é o de Pedro Mercado de Peñaloza ([1583] 1965), que menciona que as chullpas eram
edificadas “fuera de los pueblos”. (Nuñez, 2013, p. 26)
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14
Exemplo de relato recolhido por Zulma Rosis Pinaya e Patricia Fuertes, na região altiplana da Bolívia: "ahí [na
montanha Urco Mundo] están los muertos, para llegar al cielo dicen que tienen que subir esse cerro, pero es
difícil de subir, los muertos lo intentan, pero pocos son los que llegan a la cima" (trabajo de campo, Tuysuri,
Tinquipaya, Potosí, Bolivia, 2006, apud García Escudero, 2009, p. 7)
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envió muchas veces a los indios, los cuales estuvieron siempre pertinaces, diciendo que
ellos tenían buena manera de vivir, que no la querían mejorar, y que tenían sus dioses, y
que uno de ellos era aquel cerro que los tenía amparados, y los había de favorecer: que
los incas se fuesen en paz, y enseñasen a otros lo que quisiesen, que ellos no querían
aprender.“ (Garcilaso de la Veja, 1609, p. 58)
Apesar da resistência, as comunidades locais não conseguiram evitar a conquista e, na
sequência de conflitos, foram vários os ayllus obrigados a mudar o seu lugar de
assentamento, passando a localizar-se perto da rede de caminhos incas. Ainda assim,
regista-se que se continuaram a construir chullpas nos assentamentos antigos, cuja
utilização como necrópole e huaca – lugar sagrado – foi perpetuada pelas populações.
(Kessili, Pärssinen, 2005)
Neste sentido, torna-se claro que para além da função mais imediata de se constituírem
como lugares de deposição, as chullpas possuem um elevado valor simbólico. Os
territórios das necrópoles adquiriam um significado intrínseco, que não se podia
transladar. Por isso, mesmo no caso em que a comunidade muda de lugar de
assentamento, a sua paisagem sagrada permanece a mesma: aí está a sua origem e o
lugar ao qual devem regressar.
Este vínculo simbólico com o lugar também evoca questões relacionadas com a
identidade, quer dos indivíduos, quer do grupo. A estabilidade da comunidade depende
da preservação da sua identidade, através da memória e dos rituais, que são
simultaneamente aglutinadores sociais.
O ritual funerário associado às chullpas inclui a deposição dos corpos, que eram
normalmente colocados sentados, com os joelhos junto ao rosto, embrulhados em
têxteis, peles ou cestos de fibras vegetais. Devido às condições climáticas, era
relativamente comum que pudesse acontecer uma mumificação natural. Os cronistas
referem com admiração o bom estado de conservação dos corpos, como é esta descrição
um exemplo: “sentados, enteros e incorporados, por ser aquel sitio sempre frío y de
ventos sutiles (…) parece que ayer se pusieron en aquellos sepulcros” (Vázquez de
Espinosa, 1992 [1630]: 660 apud Gil García, 2000, p. 172) Os corpos seriam
acompanhados com alimentos e bebidas15, e por objetos cerâmicos, líticos e metálicos.
A análise da disposição destes objetos denunciou que normalmente se encontram em
“U”, junto às paredes da estrutura, coincidindo o espaço livre com o vão de acesso.
(Nuñez, 2013)
Relativamente aos destinatários destas estruturas, a discussão permanece. Alguns
autores apontam que as chullpas seriam para a elite16, tendo sido essa a interpretação
geral que os exploradores dos séculos XIX e XX adotaram e registaram nas suas
publicações17 (Kessili, Pärssinen, 2005; Gil García, 2000). No entanto, essa ideia é
questionada por Francisco Gil García (2000) que, analisando aspetos relacionadas com
a etimologia da palavra chullpa, registos coloniais, bem como a proporção entre a
quantidade de chullpas existentes com respeito ao número de habitantes, conclui que as
chullpas são um “modelo de sepulcro extensible a todos los estamentos sociales,
algunos de los cuales, eso sí, podrían quedar diferenciados en función de un tratamiento
especial de la superficie externa de sus torres chullpa.” (Gil García, 2000, p. 188) Assim,
o autor realça a função social das chullpas como estruturas relacionadas ao culto dos
antepassados, e apoia a ideia de “ayllus de sepulcros abertos” proposta por Isbell (1997),
que considera que a permanência do ayllu depende de um cuidado constante dos corpos
dos mortos, cuidado esse que garante a sobrevivência dos mortos. Desta forma, o
equilíbrio é atingido nesta relação próxima e constante entre os dois mundos,
considerando que a revisitação aos mortos era parte essencial do ritual funerário, que
não terminava com a deposição do corpo. Esta ideia surge em alguns registos coloniais
que descrevem rituais frequentes realizados junto às estruturas funerárias. Cieza revela
que as chullpas “tiene sus puertas que salen al nacimiento del sol, y junto a ellas (como
también diré) acostumbran a hacer sus sacrificios y quemar algunas cosas, y rociar
aquellos lugares con sangre de corderos o de otros animales” (Cieza, [1553, cap. LXIII]
1984: 266 apud Gil García, 2000 p. 169).
A maioria das chullpas percebe-se que são de uso coletivo, sendo que os registos
coloniais revelam que quando morriam pessoas com algum estatuto social, estas
poderiam ser depositadas com serventes que as acompanhariam na morte: “Solían los
curacas principales, cuando moría algún principal curaca, hacer que en el aposento del
muerto se encerracen las mancebas que habían sido de aquel que estaba muriendo. A
las cuales las cercaban otras mujeres; dándoles a comer coca y a beber acua, las hacían
morir borrachas y ahogadas desta comida y bebida, diciendo “come, come y bebe presto
15
Situação descrita por alguns cronistas, como Ramos Gavilán “(…) donde juntamente con el difunto
encerraban alguna comida y bebida y el vestuario que tenía” (Ramos Gavilán, [1621], cap. XXII] 1976: 73 apud
Gil García, 2000, p. 712)
16
Como Hyslop, 1977, Lumbreras, 1974, entre outros.
17
Um dos exploradores do séc. XIX que reafirma o sentido de deposições da elite é Alcides D’Orbigny que
menciona que alguns dos crânios que encontra no interior das chullpas possuem deformações evidentes,
especificando que “las cabezas más deformadas se encuentran en las tumbas más grandes” (Gil García, 2000,
p. 177)
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y mucho, que has de ir a servir al malco - que quiere decir ‘señor’-; está de partida y has
de ir a servirle allá donde va; que, si tú no vas, no lleva quien le sirva”. Y así mataban a
muchas, y las enterraban con ellos en sus sepulcros.” (padre Bartolomé Álvarez (1998
[1588]: 94) apud Kessili, Pärssinen, 2005, p. 383)
Através do estudo do espólio funerário de chullpas realizado por C. Nuñez (2013), foi
possível compreender que existe uma diferença evidente entre os objetos encontrados
na parte superior da estrutura (material cultura inca) e na parte inferior (material cultura
local pré-inca), o que demonstra o período de utilização da estrutura, culturalmente
transversal. Verificou-se ainda uma distribuição contrastante de piruros – objetos
pequenos de formato circular com uma perfuração central, utilizados na fabricação da lã
– muito presentes na parte inferior e ausentes na superior. Estes objetos, na cultura local
pré-inca (Chiribaya), eram tipicamente utilizados em contextos funerários femininos,
tendo sido identificados artefactos sem qualquer marca de uso postos simbolicamente
junto aos corpos de crianças (provavelmente do sexo feminino). Esta associação
demonstraria uma construção de identidade de género desde a infância. Assim, a
presença de piruros com e sem marcas de uso nas chullpas poderá corresponder ao facto
de nelas terem sido sepultados indivíduos do sexo feminino de diferentes idades. Esta
relação entre a identidade e género e a produção têxtil parece diluir-se durante a
influência imperial, uma vez que não se verifica a inclusão destes objetos nos contextos
funerários dessa cronologia. (Nuñez, 2013)
Assim, compreende-se que os rituais associados a estas estruturas funerárias são
complexos e envolvem uma diversidade de gestos e objetos que buscam perpetuar a
memória, estabelecendo fortes vínculos dentro, e possivelmente fora, da comunidade.
Figura 14 – Utilização de pigmento vermelho no ciclo funerário das chullpas, Jacob et al., 2023
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É curioso, desde logo, notar que as descrições que fazem os cronistas europeus dos
séculos XVI e XVII, perante o investimento que as comunidades nativas que encontram
na América dedicam à morte - evidente quando observam as chullpas - refletem uma
admiração e estranheza equiparável à que existe entre os pré-historiadores que
reconhecem no megalitismo uma supremacia do investimento na morte.
Assim, a conceção da morte que se tinha no mundo ocidental europeu do século XVI,
onde o pensamento renascentista fez priorizar a vida sobre a morte, contextualiza as
descrições sobre as estruturas funerárias que Pedro Cieza de León faz em La Crónica
del Perú (1553):
“La cosa más notable y de ver que hay en este Collao, a mi ver, es las
sepulturas de los muertos. Cuando yo pasé por él me detenía a escribir
lo que entendía de las cosas que había que notar destos indios. Y
verdaderamente me admiraba en pensar cómo los vivos se daban poco
por tener casas grandes y galanas, y con cuanto cuidado adornaban
las sepulturas donde se habían de enterrar, como si toda su felicidad
no consistiera en otra cosa; (…)” (Cieza, [1553, cap. C] 1934: 357 apud
García, 2000, p. 169)
Bibliografia
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