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Uma flâneur na metrópole contemporânea: paisagens urbanas goianienses na

Avenida e Eixo Anhanguera

A flâneur in the contemporary metropolis: urban landscapes of Goianienses on the


Avenue and Eixo Anhanguera

Resumo

As discussões sobre paisagem urbana, segregação socioespacial, cidadania e direito à


cidade, levam este trabalho a desenvolver uma reflexão sobre as desigualdades sociais que
habitam o espaço urbano da cidade de Goiânia, tendo como principal objeto de análise a Av.
Anhanguera. Para isso, foram utilizadas fotografias do percurso leste e oeste, abarcando toda
a avenida no interior da capital, para posterior leitura e análise das imagens. Também foi
realizada uma etnografia urbana, com observação participante, simples, deste pedaço da
cidade a partir do Eixo Anhanguera, veículo que trafega exclusivamente por esta avenida. A
partir disso, foram analisadas as condições de mobilidade à disposição dos/as citadinos/as
que utilizam este veículo de massa, BRT. Os resultados apontam para uma estreita relação
entre a desigualdade social e a segregação espacial, mostrando como, à medida que nos
afastamos das regiões centrais e nos aproximamos das regiões periféricas, os lugares da
cidade se alteram, significativamente, no que diz respeito a serviços e estética urbana.

Palavras-chave: Av. Anhanguera; segregação socioespacial; paisagem urbana; mobilidade


urbana.

Abstract

The discussions on urban landscape, socio-spatial segregation, citizenship and the right to the
city, lead this work to develop a reflection on the social inequalities that inhabit the urban space
of the city of Goiânia, having as main object of analysis av. Anhanguera. For this, we used
photographs of the east and west route, encompassing the entire avenue in the interior of the
capital, for later reading and analysis of the images. An urban ethnography was also
performed, with simple participant observation of this part of the city from the Anhanguera Axis,
a vehicle that travels exclusively along this avenue. From this, we analyzed the mobility
conditions available to the city dwellers using this mass vehicle, BRT. The results point to a
close relationship between social inequality and spatial segregation, showing how, as we move
away from the central regions and approach the peripheral regions, the places of the city
change significantly with regard to services and urban aesthetics.

Key words: Av. Anhanguera; socio-spatial segregation; urban landscape; urban mobility.

Introdução

A paisagem está para a natureza assim como a cidade está para a cultura. Muito além
desta insólita dicotomia, a paisagem urbana resulta de um processo contínuo de
transformações dos elementos naturais pelas forças humanas, seja por razões adaptativas,
interesses econômicos ou desejos estéticos. Ao caminhar pela cidade, a flâneur1 estabelece
com ela uma relação de proximidade, de familiaridade e pertencimento. A paisagem ergue-se
no espaço. A percepção humana ativa-se pelas sensações e estímulos diversos. Há, nas
cidades, um predomínio da visão, das imagens. E o que é a paisagem senão uma larga
fotografia diante dos nossos olhos?
A vida moderna exige deslocamentos. Cada atividade é realizada num lugar. A
mobilidade surge como condição humana e o espaço é atravessado por espacialidades e
movimentos contínuos, pois, “todo mundo está em movimento, e tem sido há séculos:
moramos em viagem” (CLIFFORD, 1997, p. 2). A vida como movimento permite que a
flâneurie se apresente como passeio, observação, apreciação, atenção aos detalhes,
vivências. A cidade aparece como lócus de múltiplas atividades, efêmeras e simbólicas, como
experiência sensível. Como experiência social, cultural, política, etnográfica. A cidade como
laboratório2 possibilita experimentos que capturem seus conteúdos que sobressaem às
formas e estruturação do espaço físico.
O passeio, a pé ou motorizado, desenha-se sobre o traçado da cidade e seus
direcionamentos possíveis. Escolhas e cursos, trajetos e trajetórias, mobilidades, usos e
acessos, são pelas linhas do pavimento, das calçadas e ruas, prédios, muros e vitrines,
definidas. A proposta metodológica envolve, pois, uma tensão entre a flâneurie, no sentido
benjaminiano, e outras metáforas ou analogias da ação social orientadas pelo traçado da
cidade, como a do Metrô3, a do plano ou mapa4, a do ônibus em movimento5. Essa orientação
pelo traçado da cidade permite observá-la de um ponto de vista, fragmentado, limitado, micro,
de um sujeito definido temporal e espacialmente.
A proposta consiste numa “caminhada virtual” (ARANTES, 2000), por meio da qual
atravesso a cidade seguindo a rede da Avenida Anhanguera, capturando os trechos com
fotografias para, em seguida, descrevê-las e analisá-las. O instante temporal, o corte ou pausa
na sequência de eventos, capturam o fato com o clique fotográfico. Assim, “a fotografia
permite, pela primeira vez, fixar os vestígios de uma pessoa de uma forma inequívoca e
definitiva” (BENJAMIN, 1994, p.29)
A fim de sustentar a utilização das fotografias como método investigativo e forma de
apreensão da realidade, trago uma citação de Simmel feita por Benjamin, sobre o predomínio

1 Criada no século XIX pelo poeta francês Charles Baudelaire e utilizada por outros, como Edgar Allan
Poe, o flâneur é uma personagem caracteristicamente urbana. Difundiu-se na literatura científica e
acadêmica por meio do filósofo alemão Walter Benjamin, no século XX, que viu nesta personagem uma
crítica à própria modernidade e ao estilo e ritmo de vida vigorados com a revolução industrial.
2 Essa expressão remonta a vários autores, podendo ser aqui referida a Robert Park em seu texto A

cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano (1925).


3 Estudo do sociólogo francês Pierre Bourdieu busca explicar um trajeto no metrô levando em conta a

estrutura da rede, ou seja, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações.
4 Estudo de Jean-Claude Passeron.
5 Estudo do economista e cientista político austríaco Joseph Schumpeter.
da visão, em relação aos outros aparelhos sensoriais humanos, nas grandes cidades e no
mundo moderno, vinculando-o ao surgimento dos transportes coletivos:

As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades...


caracterizam-se por um evidente predomínio da actividade do olhar
sobre a do ouvido. As causas principais deste estado de coisas são os
meios de transporte colectivos. Antes do aparecimento dos autocarros,
dos comboios, dos eléctricos no século XIX, as pessoas não conheciam
a situação de se encontrarem durante muitos minutos, ou mesmo horas,
a olhar umas para as outras sem dizerem uma palavra (SIMMEL apud
BENJAMIN, 2007, p. 39)
Procurei estabelecer um diálogo entre a obra de Arantes e de Benjamin, pois, minha
intenção foi olhar para cidade considerando-a um grande laboratório. Entretanto, diferente do
flâneur que caminha sem destino e a “passos de tartaruga”, cultuando as ruas da metrópole
moderna, observo a cidade da janela do coletivo e meu destino foi pré-estabelecido. Apesar
desta diferença, para mim, assim como para o flâneur benjaminiano:

Os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de


parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês;
muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas
de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de
onde, após o trabalho, observa o ambiente. Que a vida em toda a
sua diversidade, em toda sua inesgotável riqueza de variações, só se
desenvolva entre paralelepípedos cinzentos (BENJAMIN, 1994, p.35).
Cabe definir a flâneurie, antes de tudo, como um tipo de ação social sobre o espaço
urbano, seguindo o traçado da cidade, o movimento da multidão. Ocioso, vagabundo,
observador, caminhante. O flâneur torna-se multidão e apenas existe em seu meio, sem
perder sua individualidade. Benjamin (2007) afirma, todavia, que a ociosidade resulta de um
confronto com a divisão do trabalho social, assim como a lentidão dos movimentos, a ausência
da pressa, são também uma afronta aos modos de vida urbanos, erguidos na modernidade,
com a correria, a velocidade e o controle do tempo pelo relógio.
O flâneur compõe seus devaneios como legendas para as imagens, parafraseando
Benjamin (2007). Assim, a elaboração das legendas e nomeação das fotografias ocorreu de
maneira livre, seguindo uma linha descritiva ou metafórica, e, por vezes, um tom sarcástico
que se justifica diante das contradições presentes nas imagens. O percurso analisado segue,
necessariamente, um norteamento básico: o coletivo sai de uma região periférica, atravessa
um setor médio-nobre, corta o setor comercial-central, e encontra novamente uma região
periférica.
Esse flanar envolveu uma observação participante realizada num período de um ano,
de modo fragmentado, não frequente e de algumas semanas contínuas, diárias. O uso do
Eixo e o caminhar pela Avenida compuseram um banco de dados complexo que era criado
muitas vezes de interações não programadas, iniciadas ou perseguidas. As informações
brotavam do percurso realizado, do cotidiano compartilhado.

MARCO ZERO – O Anhanguera em Goiânia: toponímia e memória

Anhanguera, de origem tupi, anhanga, “ser maligno”, e uera, “o velho, o que já foi”,
“diabo velho”, foi o nome dado ao filho de Bartolomeu Bueno da Silva, bandeirante
responsável pela fundação do Arraial de Sant’Anna, em 1722, que se tornaria Vila Boas de
Goyaz e seria a capital do estado até o final do século XIX, quando as ideias de construção
da nova capital começam a surgir.
Além da Avenida e o Eixo de transporte público aqui estudados, que carregam esse
nome, há monumentos, canal de televisão aberta (filial da Rede Globo), jornal, faculdade
particular, vilas habitacionais, terminais de integração de ônibus coletivo e inúmeras outras
referências em lojas e armazéns locais: Monumento ao Bandeirante, Av. Anhanguera, Eixo
Anhanguera, Jornal Anhanguera, TV Anhanguera, Faculdade Anhanguera, Vila Bandeirantes,
Terminal das Bandeiras etc.
Construída nos anos 30 do século XX, Goiânia nasce como nova capital de Goiás, em
6
1942 . Inaugura a modernidade no centro-oeste com seus traços fortemente influenciados
pelo urbanismo moderno. Atílio Correa Lima, criador do primeiro plano urbanístico da cidade,
formou-se na França e trouxe para o coração do Brasil suas marcas nesse projeto. A
arquitetura em art déco caracteriza os edifícios e casas nas ruas do centro histórico da cidade
cujos conjuntos arquitetônicos são hoje tombados em patrimônio pela legislação federal. Parte
deles se encontram na Avenida Anhanguera, uma das principais projetadas e construídas nos
primeiros anos de vida da jovem cidade.
A Avenida Anhanguera, todavia, se encontra tombada, como uma árvore sem raízes,
esquecida e apodrecendo. Reconhecida por seu predominante fluxo comercial, nas áreas
centrais da capital, é referência para o comércio local:

O setor comercial distribui-se no cruzamento com a Avenida


Anhanguera. Concebido pelo autor como ‘área central da cidade, onde
gravita o comércio, onde a construção é mais densa’, seu traçado em
malha ortogonal privilegia o tráfego de veículos e as áreas de
estacionamento. (UNES, 2010, p. 47)
O autor a quem o texto se refere é Atílio Correia Lima, o primeiro projetista da capital
goiana. A avenida, hoje, se encontra ancorada não apenas no comércio formal, mas também
no trabalho informal que se estende desde o entroncamento com a Av. Paranaíba até pouco
depois do cruzamento com a Av. Tocantins. Após certo vazio comercial, a forte presença do

6 Ano do batismo cultural da nova capital.


comércio é retomada no bairro de Campinas. Ao contrário do que o trecho afirma, o tráfego
de veículos é lento em praticamente toda extensão da avenida, devido à sua estreiteza e às
áreas de estacionamento rentes às calçadas.
O Eixo Anhanguera, por outro lado, trafega sem concorrência. Inicialmente projetado,
pelo político e arquiteto curitibano Jaime Lerner (RODRIGUES, 2017), e implantado como
Sistema Integrado de Transporte de Massa, em 1976, percorria um trajeto de 7,8 km que ia
do Terminal Dergo até o Terminal Praça da Bíblia, levando cerca de 40 mil pessoas
diariamente. Foi o segundo corredor BRT (Bus Rapid Transport) do Brasil. O primeiro foi
inaugurado em Curitiba. Atualmente, o trajeto ultrapassa os limites da capital goiana. Há um
Eixo específico para Senador Canedo, que sai do Terminal Novo Mundo (extremo leste), e
outro que, saindo do Terminal Padre Pelágio (extremo oeste), alcança Trindade e Goianira,
cidades da região metropolitana. A extensão dentro da capital chega a quase 14 km. Nos 40
anos de funcionamento, o Eixo foi gerido por empresas de economias mistas, com subsídios
estatais. Atualmente, a Metrobus desempenha esse papel. Esta parceria público-privada
compreende não apenas o aumento, a manutenção e melhoria das frotas de ônibus, mas dos
terminais, pontos de ônibus, criação de novas linhas etc.

ESTAÇÃO 1 – O confinamento ou o pêndulo: como ir e vir? O Eixo Anhanguera

Aqui apresentam-se os dados construídos com a “caminhada virtual” (ARANTES,


2000), que parte do Terminal Novo Mundo até o Terminal Padre Pelágio, com fotografias da
paisagem do percurso produzidas por mim através da janela do Eixo, além da descrição
dos/as usuários/as em mobilidade.
O acesso à cidade e o consumo
de serviços por ela fornecidos variam a
partir da configuração territorial e
social, com as elites concentrando-se
geralmente no centro e os/as
trabalhadores/as nas regiões
periféricas. Vale destacar que,
conforme a teoria da expansão em
círculos concêntricos da Sociologia de
Chicago, a tendência à deterioração do
centro conduz à expansão urbana para
Figura 1 - Av. Anhanguera, Saída Terminal Novo Mundo / Fonte:
áreas antes periféricas que se tornam Acervo pessoal (2017)
valorizadas. Este caso, em Goiânia, pode ser ilustrado pelos condomínios fechados luxuosos
Alpha Ville, Aldeia do Vale, entre outros. De volta ao Eixo, os nomes das estações remontam
aos bairros que as circundam ou a pontos marcantes. Veremos isso mais de perto.
A Avenida Anhanguera, dentro de Goiânia, possui cerca de 15 km de extensão, indo
do Terminal Jardim Novo Mundo (leste) [Figura 1] ao Terminal Padre Pelágio (oeste). Sua
principal distinção com relação às demais avenidas é o corredor de ônibus separado do
trânsito corrente por uma pequena cerca de ferro azul e um baixo muro amarelo e cinza, por
onde trafega o Eixo Anhanguera. Podendo custar até metade da tarifa usual (R$3,70) do
7
transporte coletivo da região metropolitana, com cadastro e cartão Metrobus , ele cruza alguns
terminais de integração de ônibus da cidade. De um terminal a outro, há plataformas azuis
com os nomes de cada estação, referentes aos bairros vizinhos. As paradas, para embarque
e desembarque dos transeuntes, acontecem em todas as estações construídas a cerca de
1m do chão.
O “eixão”, “sanfonão”, “minhocão”, é o veículo utilizado pelas camadas mais pobres da
cidade de Goiânia que, geralmente, partem das regiões periféricas, ou de cidades vizinhas
(Trindade, Goianira e Senador Canedo), em direção às regiões centrais, onde estão seus
locais de trabalho ou instituições escolares, instâncias burocráticas, agências bancárias,
correios, hospitais, parques, teatros, cinemas, bares, lojas, comércios, shoppings, lugares de
passeio, entre outros.
Diferentemente do metrô de São Paulo onde “embora evitem andar de ônibus, as
classes média e alta frequentemente usam o metrô, ao lado de passageiros mais pobres”
(ARANTES, 2000, p. 110), no BRT de Goiânia não se observa essa heterogeneidade de
classes reunidas. De fato, há o predomínio de estudantes, idosos/as, ociosos/as,
trabalhadores/as uniformizados do setor de serviços e industrial, vendedores/as ambulantes,
pedintes, mulheres e homens, rapazes e moças, cujo cálculo econômico viabiliza a travessia
utilizando o Eixo.
Do terminal Novo Mundo, partimos em direção ao centro da cidade. É manhã e os
trajetos individuais estão determinados, apressados, pontuais ou atrasados. A espera pelo
Eixão não se prolonga, cerca de 5 minutos e estamos dentro. O horário de pico já passou. O
burburinho dos ônibus e das pessoas nos terminais, os(as) vendedores(as) ambulantes, os
estreitos corredores de circulação, a pouca e confusa sinalização para pedestres, coincidem
com o empurra-empurra por um lugar no veículo. É preciso se esforçar para ser uma das 240
mil pessoas transportadas por dia. “Porta fechando...”, o moderno desenvolvimento da capital
alerta com a voz de uma mulher atenta que a porta fechará em segundos e que caso você

7Metrobus Transporte Coletivo S/A: Empresa de transporte público urbano, gerida por economia mista,
com subsídios estatais, no estado de Goiás, responsável pelo Eixo Anhanguera que trafega em Goiânia
e, desde 2014, alcança Goianira, Trindade e Senador Canedo.
não entre ou saia depressa pode ter suas pernas decepadas. O fechamento é bruto,
barulhento, preciso. O privilégio é de quem conseguiu se sentar, seja criança ou idoso(a),
jovem ou adulto. Aos que permanecem de pé, cuidem de seus pertences: mochilas entre os
braços e a barriga, bolsas firmes coladas ao corpo, nada nos bolsos, mãos onde se pode ver.
Se for mulher, o cuidado é dobrado. Além de cuidar de seus pertences deve cuidar de seu
corpo, para evitar situações constrangedoras de assédio. Para distrair, há monitores de TVs
instalados no veículo, que não vimos ligados em nenhuma das viagens que fizemos, refletindo
em seu espelho negro apenas aquela realidade momentânea.
Olhar para os lados, certificar-se de quem lhe acerca, é arriscado. A depender da
velocidade do gesto, da precisão do olhar, da forma do movimento, o(a) observador(a) torna-
se observado(a). O medo, a insegurança, a incerteza, a falta de confiança, geram um
silencioso percurso, aflito e ansioso pelo fim do trajeto sem surpresas. “Diz-se que a confiança
é ‘um dispositivo para se lidar com a liberdade dos outros’, mas a condição principal de
requisitos para a confiança não é a falta de poder, mas falta de informação plena” (GIDDENS,
1991), incluindo a possibilidade de o Outro usar sua liberdade para tomar-lhe de assalto num
susto, num ato imprevisível, não informado. Não é lenda, mas todos(as) conhecem as
histórias de assaltos e arrastões do Eixão. Se perguntar algo a alguém, caso não se
conheçam, é provável que a resposta da interação seja distante, precavida e, em alguns
casos, hostil, sem contato visual. Há exceções, obviamente. Uma senhora, mais velha, com
dificuldades para se locomover, um homem ou mulher com uma criança, jovens com mochilas
e uniformizados certamente despertam maior confiança do que um rapaz, alto, forte,
malvestido e de mãos vazias.
Não é raro encontrar jovens mães com seus bebês no colo trafegando pela cidade
dentro do Eixo. Negras/os, pardos/as, em sua maioria. Crianças de colo e ainda em
crescimento estão sempre acompanhadas. Quando estão prontas para seguir sozinhas,
vestem o uniforme da escola ou do trabalho e seguem com suas turmas. Afinal, na Estação
Universitária, o Eixo corta o Instituto Estadual Goiano - IEG, um dos maiores colégios públicos
de Goiânia, localizado em frente à Secretaria Cidadã, onde vemos slogans de igualdade
racial, sexual, social, econômica etc. Também não é raro ver idosos(as), geralmente
sozinhos(as) ou acompanhados(as) de algum familiar, utilizando o transporte para chegar até
algum hospital, resolver trâmites burocráticos ou fazer compras. É possível inferir tais
informações a partir de curtos diálogos com dúvidas sobre onde descer ou com resultados de
exames, pasta com fotocópias de documentos ou sacolas de lojas, nas mãos.
Do Terminal Novo Mundo ao Terminal Praça da Bíblia, a paisagem urbana não se
modifica tanto. Passamos por quatro estações: Anhanguera, Palmito, Vila Morais e Vila
Bandeirantes. As pequenas lojas, raras construções acima do térreo, expõem mercadorias e
estabelecimentos que variam de cosméticos a salões de beleza, de açougues a
supermercados, revistarias a chaveiros, ferro e aço a materiais para construção, celulares a
shows eróticos, parafusos e ferramentas a revisão de veículos, panificadoras, lanchonetes,
farmácias, lotéricas. Restaurantes, escolas, igrejas, praças, postos de gasolina. Ruas
estreitas para os carros, calçadas desfeitas e caminhos inventados para os(as) pedestres. Um
viaduto sobre a Avenida permite a saída da cidade pela BR-153.
Do Terminal da Praça da Bíblia até o próximo Terminal, Praça A, é onde encontramos
os principais contrastes na organização espacial da cidade e, concomitantemente, na
desigualdade social. Ainda não estamos certas do que viria primeiro: a disposição espacial ou
a hierarquia socioeconômica? Após a Estação Botafogo, referente à marginal botafogo, uma
via de trânsito rápido da capital, avistamos o começo do Setor Central. Antigos prédios,
tombados como patrimônio por sua
arquitetura em estilo Art déco,
cedem lugar para contemporâneos
prédios comerciais, principalmente
de grandes lojas nacionais de
eletrodomésticos, eletrônicos,
instrumentos musicais, brinquedos,
roupas, acessórios etc.
A exemplos dos antigos
prédios, vemos o Teatro Goiânia
[Figura 3], o Edifício do Comércio, Figura 2 - Teatro Goiânia, cruzamento Av. Anhanguera e Av.
Tocantins / Fonte: Acervo pessoal (2017)
entre outras casas e sobrados. Nas
calçadas, o mercado informal reina. Há muitos imigrantes, negros e homens, em especial.
Entre as mercadorias, nota-se a predominância de óculos escuros e relógios; bolsas e
carteiras; baterias, chips, acessórios para celular; meias e peças íntimas; frutas e doces etc.
Sempre a pequenos preços promocionais que cabem no bolso do(a) trabalhador(a). É nesses
entroncamentos da Tocantins, Goiás e Araguaia com a Anhanguera que o fluxo de pessoas,
mercadorias, coisas e valores aparece mais visível, ininterrupto. Porém, vale lembrar que
estamos caminhando pela manhã, por volta das 9h, durante a semana. Atravessamos as
estações da Rua 20, Rua 7, Rua 8 e do Joquei Clube.

Figura 3: O império das mercadorias: St. Central, Av. Anhanguera / Fonte: Acervo pessoal (2017)

Ao analisar a figura 3, destaco, em relação à apropriação do espaço na área que


compreende o Setor Central, que, apesar de inúmeras tentativas por parte da administração
pública em disciplinar o seu uso, os agentes/sujeitos sociais sempre criam estratégias para
burlar as regras. Ali, os ambulantes disputam os consumidores com os lojistas, o que, algumas
vezes resulta em conflitos devido à diferença existente entre a legislação que normatiza o
comércio formal e o informal.
Seguimos. Até o Terminal Praça A ainda temos um caminho. Lá está Campinas, que
já era cidade moça quando Goiânia nasceu. Foi depois que se tornou apenas um bairro. Antes
de Campinas, atravessamos o Setor Aeroporto e Oeste. Hospitais, condomínios fechados e
prédios muito altos; melhor sinalização e cuidado das ruas e avenidas; são vistos pela janela.
Não há morros acentuados, as
ruas edificam-se em planícies quase
retilíneas. Atravessamos uma região
de hospitais. Nela se encontra o
Hemocentro [Figura 5], ponto de
referência para cidades vizinhas em
atendimentos diversos. A Estação
HGG (Hospital Geral de Goiânia)
precede a Estação Lago das Rosas,
referente ao parque mais antigo da
capital, inaugurado ainda por Pedro Figura 4 - Hemocentro de Goiânia, St. Aeroporto / Fonte: Acervo
pessoal (2017)
Ludovico Teixeira, em 1941. Seus
pedalinhos, árvores e plantas, quadra de esportes, zoológico, destoam das praças outrora
vistas durante o percurso, onde sequer havia bancos para se sentar e as crianças brincavam
na poeira vermelha e enferrujados brinquedos.
À medida que
seguimos na direção leste, é
possível perceber que a
paisagem se modifica como
ficou registrado na figura 5. Ali
já é possível visualizar o
descaso com as regiões
periféricas, as quais
apresentam construções de
baixa qualidade, terrenos
baldios que, muitas vezes,
são utilizados como depósitos
Figura 5 - Jd. Novo Mundo, saída para Senador Canedo, Av. Anhanguera
de lixo, além de uma
(lado leste) / Fonte: Acervo pessoal (2017)
infraestrutura que não atende
as necessidades dos cidadãos.
Agora falta pouco. Nosso percurso está quase no fim. Em Campinas, no Terminal
“Praça A” [Figura 6], o pulso comercial é fortemente sentido nos camelódromos, feiras, nas
grandes e pequenas lojas. Reconhecida como o lugar onde “se encontra de tudo”, Campinas
lidera entre os locais escolhidos para procurar desde tecidos de costura até móveis,
acessórios para festas, equipamentos para automóveis etc. Há ainda o Shopping Cerrado,
recém-inaugurado. As grandes lojas vendem geralmente em atacado, o que atrai pequenos
comerciantes e/ou vendedores(as) ambulantes.
É interessante notar que
apesar de haver um aviso em todos
os veículos dizendo que “É proibida a
venda no interior do veículo”, os(as)
vendedores(as) ambulantes são
os(as) principais agentes dentro do
Eixo Anhanguera. São os(as)
únicos(as) autorizados(as),
legitimados(as), a se movimentarem
livremente (ou sempre que houver
Figura 6 - Espera, corre-corre e aflição: Terminal Praça A, St. espaço entre as pessoas), a falar em
Campinas / Fonte: Acervo pessoal (2017)
voz alta dirigindo-se a todos(as),
apresentando seus produtos e preços. Água, chocolates, balas; fones de ouvido,
carregadores; lixas de unha, esmaltes; tampas de tanque, porta-documentos, cremes para
dores musculares, CDs, entre outros, são vendidos por preços que variam de 1 a 5 BRL. Além
dos(as) vendedores(as) ambulantes, há também os/as pedintes e rapazes de casas de
reabilitação cristãs. Ambos se dirigem às pessoas em tom explicativo, falando ou entregando
pequenos bilhetes, justificando o que estão fazendo ali, suas necessidades e/ou objetivos. Os
rapazes da reabilitação geralmente se apresentam como antigos usuários de crack, que
superaram seus vícios, ou “se libertaram”, graças à clínica e a Deus.
É recorrente em seus discursos que começaram experimentando a droga por
influência de terceiros/as e acabaram dormindo nas ruas ou comendo restos de comida que
encontravam nos lixos. Vários sintomas dos problemas sociais urbanos estão reunidos dentro
deste veículo. Para além da aparente simples desigualdade entre ricos e pobres, as drogas,
o mercado informal, o subemprego, a mercadoria e mão-de-obra barata, as precárias
condições do transporte público (superlotação, insegurança, desconforto, sujeiras etc.), a
vulnerabilidade física e a facilidade de assédios, o elevado tempo gasto na espera da
condução, a mendicância, os assaltos, a criminalidade, os apelos religiosos (ARANTES,
2000), são algumas das características da marginalização, do submundo cotidiano maquiado
pelo espetáculo da vida moderna.
Na Figura 7, podemos observar o que
anteriormente foi mencionado sobre as estratégias de
manutenção dos pertences pessoais durante as viagens
de ônibus, especialmente de Eixo. Com a mochila ou bolsa
na frente, entre os braços e visível, é mais fácil driblar
possíveis assaltantes silenciosos, muito comuns, que
abrem as mochilas sem que as pessoas vejam e lhes
furtam carteiras, celulares e o que encontrarem de
imediato. A fotografia captura a imagem de uma senhora
com sua mochila, estudando formas de andar pela cidade
tranquilamente. Figura 7 - [Detalhe fig. 6] – A senhora e a
mochila / Fonte: Acervo pessoal (2017)
O Terminal Dergo (Figura 8), representado no imaginário social como um ponto
perigoso, marginal, de prostitutas e travestis, drogas e ladrões; durante o dia, é apenas mais
um terminal de ônibus coletivo, com relativo movimento, policiamento, transeuntes,
vendedores/as e empregados/as da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo – RMTC. Fim
da linha. Atravessamos uma pequena ponte sobre uma parte do Rio Meia Ponte e chegamos
ao Terminal Padre Pelágio. Nesse fim de percurso, a cidade vai perdendo o fôlego,
sofregamente se arrastando com pouca circulação de pessoas, carros, motos ou bicicletas;
fraco comércio e muitos espaços vazios entre as casas e algumas ruas sem asfalto, deixando
para trás a verticalização e o intenso fluxo comercial. Em compensação, grandes indústrias
são vistas, a exemplo: uma indústria de cortes de aço e outros metais.

Figura 8 - Trocas: Terminal Dergo, St. Aeroviário / Fonte: Acervo pessoal (2017)

Ao passo que o transporte individual permite uma circulação relativamente mais livre
pela cidade – apesar de ainda condicionada pelas vias de tráfego, como todo tipo de
movimento urbano (ônibus, carro, bicicleta, pedestres etc.), o transporte público, coletivo, em
suas condições atuais, dificulta essa circulação. As possibilidades caminham nos limites do
aceitável, do humano. Em horários de pico, pela manhã e fim da tarde, transitar por Goiânia
utilizando o Eixo Anhanguera é um desafio nada divertido. O inevitável contato físico, o temível
assédio, a ilusória privacidade, esmagam uns contra os outros, contra assentos, janelas e
portas. Até mesmo respirar se torna difícil. Mas é preciso ir. Chegar a casa, ao trabalho, à
escola, ou a outro lugar. Atravessar os muros e pontes que cruzam lugares tão diferentes e
tão próximos (Figuras 9 e 10).
Figura 9: Estação Vila Moraes, entrada do Jd. Novo Figura 10 - Passeio entre árvores e edifícios: Parque Lago
Mundo [leste da Av. Anhanguera]/ Fonte: Acervo pessoal das Rosas, St. Oeste [oeste da Av. Anhanguera] / Fonte:
(2017) Acervo pessoal (2017)

Considerações Finais

Chave de investigação deste trabalho foi a paisagem urbana criada nos intermédios
do corredor BRT que articula a mobilidade urbana na região metropolitana de Goiânia. Sendo
o principal veículo de massa da capital, sua importância para o tráfego e circulação de
pessoas é inegável: mesmo em péssimas condições, de superlotação, sujeira e violência,
caso o Eixo Anhanguera deixe de transitar, uma quebra nos deslocamentos cotidianos de
milhares de habitantes, trabalhadores/as e estudantes, será sentida8. A ideia consistiu em
mostrar que o trajeto da Avenida Anhanguera por onde passa o Eixo não se reduz a um
espaço de circulação, tratando-se de um espaço público. Ou seja, não se restringe ao simples
deslocamento, homogêneo e abstrato, de pessoas e bens, mas integra em seu veículo e
percurso diário redes de sociabilidades, convívios, encontros e agência.
Isso foi elucidado com a presença dos/as vendedores/as ambulantes, dos/as pedintes,
dos rapazes da reabilitação; dos grupos mais ou menos estruturados de estudantes,
idosos/as, crianças, dos/as que sabem onde estão e dos/as que precisam de informação, de
homens e mulheres, jovens, grupos étnicos (negros/as, pardos/as, mestiços/as). Apesar de
não termos mencionado, uma vez que não presenciamos durante nossa observação, alguns
grupos de artistas marginais e/ou estudantes realizam dentro do Eixo intervenções artísticas,
visando o entretenimento e o lazer dos/as que assistem, além da divulgação de seus projetos
e trabalhos. Tocam instrumentos, cantam; recitam poesias, cordéis; encenam pequenos

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Isso é notado em greves de motoristas, manifestações que impedem a circulação do veículo, entre outros.
jograis, peças, cujos temas podem fazer referência à vida na cidade, ao cotidiano urbano ou
simplesmente terem um caráter lúdico, humorístico, reflexivo.
Ainda foram discutas questões que envolvem a cidadania, os direitos à cidade, à
mobilidade, ao transporte etc., foram levantadas, de modo a mostrar o vácuo entre a ordem
legal e a cidade real, as salvaguardas constitucionais e a realidade das condições sociais
concretas que abrigam a pobreza, a marginalidade e a exclusão urbana. Apesar das melhorias
implementadas no Eixo Anhanguera, incluindo sua ampliação para cidades da região
metropolitana de Goiânia, as condições de travessia disponíveis aos/às usuários/as ainda não
são satisfatórias. Em horários de grande procura, a superlotação é inevitável, aumentando os
riscos temíveis pela maioria dos transeuntes: roubos, furtos, violências, assédios, empurra-
empurra, agressões involuntárias (cotoveladas, pisar no pé, quedas etc.).
A partir da trajetória desenhada pelo Eixo no percurso da Av. Anhanguera, a paisagem
que se modificava do lado de fora do veículo foi objeto de análise, uma vez que apresentava
dissonâncias visuais significativas. Era a desigualdade social refletida no espaço urbano e em
suas apropriações por classes e grupos distintos, isto é, a segregação socioespacial. Este
tema foi discutido tomando como pontos de comparação uma região periférica, de poucos ou
nulos espaços fixos de convivência, calçadas, parques, praças, e uma região médio-nobre
que conta com amplos espaços como estes. Nessa discussão, não se considerou a região
comercial-central como referência para as discussões, pois, ela se encontra relativamente
acessível a ambos os grupos de moradores/as.
Pela janela do “Eixo”, enxergamos as paisagens urbanas da cidade de Goiânia
mudando como cenários de um filme latino-americano sobre desigualdade social, violência,
acumulação de capital, trabalho infantil, trabalho informal, trânsito, limites da cidadania,
individualismo, tribos urbanas, capitalismo, subdesenvolvimento, contrastes centro-periferia,
etc. Marcadamente distintas, as regiões e bairros adjacentes à Avenida Anhanguera diferem-
se nas paisagens, comércios e serviços oferecidos; casas, prédios, edifícios, monumentos;
fluxos de pessoas, veículos e mercadorias; limpeza e “beleza” de ruas, muros e avenidas. É
como mundos diferentes num mesmo lugar.
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