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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE:

Desafios Contemporâneos
Para Os Direitos Humanos

Phablo Freire
Thiago Teixeira

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE:
Desafios Contemporâneos
Para Os Direitos Humanos

Phablo Freire
Thiago Teixeira

Belo Horizonte, 2019

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Editores Jonathan Félix de Souza
Sandson Rotterdan, Thiago Teixeira
Editoração Eletrônica Alex Andrade
Capa Zwei Arts
Revisão: Maria Madalena Loredo Neta

F866e

Freire, Phablo
Ética, laicidade e alteridade: desafios contemporâneos para os direitos humanos. /
Phablo Freire, Thiago Teixeira. -- Belo Horizonte: Senso, 2019.
151 p.

Inclui referências.

ISBN 978-65-80404-10-0

1. Ética. 2. Espiritualidade. 3. Direitos humanos. I. Teixeira, Thiago. II. Título.

CDD: 170

Ficha Catalográfica elaborada por Niúra Ferreira e Barbosa - CRB/6 - 2377

Todos os direitos reservados à Editora Senso. Nenhuma parte da obra pode ser reproduzida,
adaptada, multiplicada ou divulgada de nenhuma forma (em particular por meios de reprografia
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Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, Decreto nº
6.583, de 29 de setembro de 2008.

http://editorasenso.com

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

SUMÁRIO

Prefácio.................................................................................................... 7
Por uma ética da diferença: ponderações acerca do nós ........................ 11
Thiago teixeira........................................................................................ 11

Introdução........................................................................................... 11
1. Dinamitar os monólogos .................................................................. 14
2. Ética e moral: perspectivas e desafios................................................ 20

3. O enquadramento e os desafios éticos.............................................. 28

4. Apreensão e reconhecimento............................................................. 38

A diferença e a ética possível................................................................ 44

Referências............................................................................................ 46
Direitos humanos, o fenômeno social da laicidade e o pensamento abissal ... 48
Phablo Freire.......................................................................................... 48
1. Uma ética não insulada..................................................................... 48

2. O que é direito e onde está o Direito?............................................. 49


3. O que é um direito humano?.............................................................. 55

4. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais:...................................... 71


distâncias, proximidades e periferia.................................................... 71

5. Modernidade, colonialidade e o fenômeno social laico. ................... 97

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6. O fenômeno sócio-jurídico da laicidade, (de)colonialidade

e o pensamento abissal.................................................................... 117

Referências ......................................................................................... 131


O poder e a violência versus a possibilidade de uma ética da diferença como
ressignificação do nós nos espaços para além das linhas abissais.......... 135

Thiago Teixeira..................................................................................... 135


Phablo Freire........................................................................................ 135
Sobre o poder: demarcações necessárias.............................................. 135

Poder e violência: interfaces perigosas................................................ 140

Espaços para além das linhas abissais. .................................................. 145

Posfácio................................................................................................ 148
Referências ........................................................................................... 151

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Prefácio

Refletir, dialogar, ressignificar, lutar, mobilizar, reconhecer.


Os Direitos Humanos na contemporaneidade nos colo-
cam diante de desafios e horizontes históricos, num tempo
em que as violações e a indiferença em relação a esses
e tantos outros direitos transformam suas roupagens, se
dissipam pelos pensamentos, corpos, afetos, tornando-se
política que aniquila e determina os que merecem viver e
os que precisam morrer. Os horizontes, todavia, são en-
contrados na potência da diferença que emerge dos cole-
tivos, comunidades e grupos que gestam novas práticas
políticas, econômicas e culturais desde suas realidades e
apesar dos cerceamentos.
O diálogo profundo a que Phablo e Thiago nos moti-
vam neste livro é uma possibilidade de alargar as perspec-
tivas sobre ética, laicidade e alteridade, e para possíveis
superações daquilo que historicamente o senso comum

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naturalizou como “igualdade”, inclusive através das cha-


madas “políticas de inclusão”. Forjados num tempo e es-
paço específicos, o marco legal mais conhecido dos Direi-
tos Humanos, a saber, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, é incontestável no que diz respeito às garantias
para que todas as pessoas tenham suas condições de vida
garantidas. Todavia, como destacam os autores, “embora
a DUDH se anuncie como universal e inerente à condição
humana”, é coerente e urgente perguntarmos: os Direitos
Humanos, ou sua forma positivada na lei como é conhe-
cida, respondem e protegem a vida dos sujeitos de hoje?
Se nos detivermos aos povos tradicionais do campo e da
cidade, jovens, mulheres, populações LGBTQI+, popula-
ções em situação de rua, os direitos humanos e as políticas
para sua implementação e garantia conseguem cuidar para
que esses sujeitos tenham condições de existência vivíveis?
Essas questões são as brechas que devemos penetrar
para permitir que o arcabouço legal, as políticas e nossas
relações cotidianas com o “outro” sejam tecidos pelo reco-
nhecimento das diferenças, pela escuta e consideração das
vozes, corpos e sensibilidades invisibilizados pelo poder
que se pretende hegemônico. “O direito é achado na rua,
na concretude da vida!”
Hegemônicas são as políticas que desejam encarcerar
todas as pessoas num padrão de escolas militarizadas,
onde os cabelos não podem apresentar-se na sua teimosa
bonita rebeldia, onde os adolescentes e jovens precisam
marchar em passo uniforme sob os olhares dos senhores

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PARA OS DIREITOS HUMANOS

da disciplina. Hegemônicas e de morte são as políticas


de higienização das ruas e de remoção compulsória de
populações empobrecidas dos centros urbanos. Hegemô-
nicas são as tentativas de cooptação dos povos indígenas
e comunidades ribeirinhas para quem é vendida a ideia
de progresso e desenvolvimento que avança sem piedade
sobre territórios, dando lugar a grandes obras que servem
aos interesses de corporações e governos.
Políticas de morte sistematicamente orquestradas para
homogeneizar os sentidos, as práticas, a linguagem, as
crenças. Os colonialismos de tanto tempo se revestem
de discursos violentos e utilizam dispositivos de controle
e circulação em massa para extirpar os sentidos de uma
existência humana plural. O controle que emerge embre-
nha-se através de carismáticas lideranças e estruturas polí-
ticas, religiosas e econômicas, todas elas entrelaçadas em
seus distintos e conectados interesses.
Contra todo desejo de uma igualdade mesquinha, mul-
tiplicam-se sujeitos que reivindicam suas diferenças. Mes-
mo que afoguem corpos, histórias e comunidades inteiras
na lama e não queiram reconhecê-los como atingidos, eles
e elas gritam que são gente. Ainda que sejam abolidos
por parte dos Estados e governos as políticas e os ordena-
mentos para a proteção da vida das populações empobre-
cidas, não se alterará a lógica perversa de in(existência),
resultando em uma resistência que será criativa e gestará
novas políticas para a aplicabilidade e reconhecimento
dos Direitos Humanos.

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Na memória de muitos corpos e histórias sacrificadas,


esperançamos com este livro, e com todos os que lutam
por Direitos Humanos, que a vida e suas relações sejam
cada vez mais criativas, potentes e diferentes. É na concre-
tude da vida que pulsam os horizontes de outros mundos.

Leon Patrick Afonso de Souza

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Por uma ética da diferença:


ponderações acerca do nós

Thiago teixeira

Introdução
Neste capítulo enfrentaremos um desafio: focalizar
múltiplas perspectivas a fim de elucidar e constituir uma
possível ética da diferença. Você será conduzido por
uma trilha filosófica, polifônica e que mira a valorização
da diferença como componente constitutivo de novos
modelos de reconhecimento e alteridade. O nosso ob-
jetivo está na afirmação de uma ética que se sustenta na
multiplicidade de narrativas e, mais, que se posiciona crí-
tica e ativamente contra os modelos de hegemonização
da realidade humana.
Nesse sentido, discutiremos acerca da alteridade, mas
à distância dos moldes que integram e diluem o outro,
seu corpo, existência e potencialidades numa projeção
violenta e colonizada do eu. O que pretendemos se des-

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cortina à medida que nos aproximamos de perspectivas


que valorizam o outro enquanto aquele que se manifesta
e grifa a sua diferença.
Acreditamos ser possível sublinhar, neste caminho, uma
ontologia que, a partir do estatuto da diferença, compre-
enda a existência de uma humanidade multifacetada. De
modo bastante pontual, não nos limitamos apenas numa
descrição dos modos de ser da realidade humana, mas
acenamos que esses modos — acentuamos o plural —
tensionam a composição de uma ética que, concretamen-
te, amplie a capacidade de percepção daqueles que, por
quaisquer motivos, escapam a nós.
Deixamos entrever uma reflexão ativa que se module
em oposição ao poder de afonia, isto é, ao desejo de se
sobrepor ao outro e à sua diferença impedindo-o de dizer
sobre si e de se manifestar no espaço político. O enfraque-
cimento do outro é resultado desse poder que surge no in-
terior do sujeito que se pretende hegemônico. O ataque a
esse modelo de desejo e de força nasce da disposição éti-
ca de se perceber em relação aos outros. A debilidade do
poder de afonia é proporcional ao quanto nos arriscamos
no encontro e no diálogo com o outro, enquanto outro.
Acenamos à importância do diálogo como capacidade
de se colocar em risco, não de perder a si mesmo, mas de
perceber que existe o outro e ele nos escapa. Numa ética
da diferença, o diálogo toma grande destaque, porque in-
dica novos modelos de encontro que de modo algum se
requerem monológicos, higienistas e solitários. O diálogo
é a evasão de si rumo ao sentido do outro, e isso requer
de nós esforço.

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PARA OS DIREITOS HUMANOS

Esse esforço também abarca o processo de desnatura-


lização de violências que se acoplam sorrateiramente na
moral. O diálogo também nos auxilia aqui, ou seja, na per-
cepção de quais ações — legitimadas pelo costume e prá-
ticas no seu intramundo — reafirmam exclusão e violência
contra corpos, afetos e crenças que operam à distância de
quem somos.
No interesse de promover a tensão como força do diálo-
go e encontros profundamente desconcertantes, nós trou-
xemos para este capítulo Sartre e Butler como os grandes
pilares de nossas discussões. Evidentemente reconhece-
mos a separação epistêmica e temporal entre esses pensa-
dores, mas não podemos fugir à importância e influência
que suas filosofias têm sobre a nossa compreensão acerca
da ética e de seus pressupostos.
Em Sartre, inclusive, se torna bem difícil dizer de uma
ética, uma vez que o próprio filósofo se esquivou de es-
crever um tratado filosófico sobre este tema, exatamente
para não minar a sua filosofia da liberdade com um tra-
tado prescritivo. Nós, porém, observamos a viabilidade
de discutir enunciados éticos a partir de suas reflexões
acerca da liberdade e da alteridade. Assim, nos esforça-
mos para apresentar o impacto dessa perspectiva e de
seu aceno agudo à existência do outro como panorama
de nossas discussões.
Butler, longe de uma filosofia da subjetividade, aos mol-
des existencialistas, nos leva a uma crítica aos modelos de
reconhecimento que modelam a nossa percepção de mun-
do. A filósofa nos faz emergir numa refração em relação
aos enquadramentos que restringem a nossa visão sobre

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o outro que operam na articulação de vidas lidas como


legítimas e dignas de luto, em detrimento de outras que
não o são. A sua elucidação sobre o reconhecimento de-
monstra uma reavaliação dos nossos moldes de encontro,
isto é, indica a necessidade de ampliação das categorias
de encontro, longe de ações que enfraqueçam o poder de
corpos distintos dos nossos.
Entendemos que este capítulo não busca uma simbiose
entre as filosofias de Butler e Sartre; ao contrário, cede
aos interesses de uma ética construída na diferença, com
argumentos dissonantes com um propósito delineado: a
promoção de ações que nos coloquem em condição de
coabitação e não de dominação.

1. Dinamitar os monólogos
Propomos aqui uma reflexão acerca da diferença como
um fator preponderante às discussões éticas, e isso faz
emergir uma provocação rumo à reelaboração de sentido
na tentativa de ampliar a percepção em relação ao outro,
longe de posições endógenas e unilaterais de legitimação
da vida e dos corpos. A discussão que se acende nos limi-
tes de uma ética da diferença compõe um novo panorama
de compreensão da alteridade e das alianças que se fir-
mam num horizonte humano plural.
Nosso caminho será traçado pelo diálogo em perspec-
tivas da alteridade. Nesse sentido, nos debruçaremos na
compreensão de vertentes epistemológicas que se susten-
tam na afirmação da diferença como um dado real, no que
diz respeito à realidade humana, a despeito de perspectivas
que se sustentam numa reciprocidade e numa igualdade

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que ferem, de modo significativo, a construção de um lugar


humano. Partimos do pressuposto de que a realidade hu-
mana é composta pelas mais plurais insígnias de diferença,
isto é, raça, gênero, crença e classe são marcadores contun-
dentes que se entrecruzam e ditam, em nosso modelo de
sociedade, como um indivíduo é lido, respeitado ou não.
Nessa direção, nos propomos uma discussão que faça
alargar as visões de mundo, de modo que a leitura de
quem vive e merece viver se expanda. Entendemos que a
compreensão do outro precisa acontecer como expressão
e manifestação desse mesmo outro.
Ao suscitarmos o que chamamos de uma ética da di-
ferença, pretendemos dinamitar as narrativas endógenas
de mundo. Nelas encontramos sujeitos que se antepõem
aos outros, de modo violento e excludente, mas acreditam
viver sob a égide da alteridade, pois compreendem que a
diferença existe. Vale dizer que compreender a existência
da diferença, mas desejar que ela seja extirpada, não nos
torna mais éticos, e sim higienistas e inaptos à construção
de um horizonte do comum.
Encontramo-nos, então, numa discussão acerca da aber-
tura ética. Entendemos que essa abertura à ética da dife-
rença pressupõe um movimento de ruptura contra todos
os modelos que se sustentam no que compreendemos por
poder de afonia, isto é, nas compreensões unilaterais da
realidade e que se mantêm a distância das construções pau-
tadas no dissenso e na diferença. Esse poder se manifesta
nos indivíduos que enfrentam o outro como um inimigo e
marcam a diferença como algo torpe e passível à morte.
Essa posição em relação ao outro se mantém quando

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nos colocamos como sujeitos universais. Logo, não com-


preendemos que somos em relação. Tal paradigma reforça
uma ideia violenta e que reproduz a lógica do sujeito que
aparelha e se utiliza do outro como objeto.
O sujeito que age sob as modulações do poder de
afonia não quer apenas que o outro não fale, pois,
como sabemos, o silêncio pode ser quebrado a qual-
quer momento; deseja que o outro e a sua diferença
nunca sejam manifestas e, mais, ele mina todas as pos-
sibilidades simbólicas e efetivas de essa disparidade ser
reconhecida ou legitimada.
Esse poder de afonia compõe um ideal que retroalimen-
ta a violência como horizonte das relações. Nesse sentido,
só existe quem existe como nós; os outros, não. Estes não
são e, por isso, devem ser exterminados. Evidentemen-
te, podemos pensar que esta é uma lógica, por exemplo,
da Segunda Grande Guerra que, como sabemos, eclodiu,
entre outros fatores, da manutenção da pureza de raça e
afirmação ideológica endógena e higienista.
Devemos, contudo, refletir se essa mesma matriz de
pensamento não nos alcança aqui, em nossa vida mais co-
tidiana e comum. O desejo pela hegemonia não nos afeta?
Nós realmente lidamos com as diferenças na configuração
de uma sociedade comum e, ao mesmo tempo, plural? O
diálogo é um importante valor para nós?
Todas essas questões nos provocam de modo significa-
tivo. A terceira, para nós, é a que mais nos impacta. Ela,
constantemente, aparece e nos desconcerta. Essa perturba-
ção acontece quando nós entendemos que somos forma-
dos para vencer. Como se a vida fosse uma grande partida

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em que o outro aparece constantemente como adversário.


Não dialogamos, nós debatemos. A matriz das relações é
vencer e não somar. Nós não dialogamos, porque não nos
propomos a compreender o sentido que está fora de nós,
no outro, mas desejamos ardentemente que ele se adapte
ao nosso sentido. Isto não é diálogo, mas, sim, monólogo.
O sentido do diálogo acena a um movimento, isto é,
pressupõe uma saída de si. O termo é composto por uma
junção de dois vocábulos gregos; diá e lógos. A união des-
ses vocábulos elucida o sentido mais profundo do que
entendemos por esse movimento. O termo diá pode sig-
nificar “separação” e, ao mesmo tempo “por meio de” ou
“penetração”. O termo lógos está diretamente associado
ao que compreendemos por “sentido”, “narrativa” ou “dis-
curso”. Portanto, podemos dizer que dialogar é se propor
a enfrentar uma separação de narrativas e buscar, atra-
vés dessa distância, compreender outra manifestação de
sentido, isto é, algo que nos escapa. Vale dizer que, se
entendemos o diálogo como um movimento e como uma
separação, esse sentido outro deve se manifestar a nós, ou
seja, não colocamos o sentido do outro, mas nos esforça-
mos a entendê-lo, por ele mesmo.
Está claro que para que haja diálogo é preciso que nos des-
concertemos, ou seja, que entendamos que o outro existe, mas
não só, que ele pode dizer sobre si, se manifestar. Não somos
ingênuos em compreender a dificuldade desse processo, mas
estamos cientes de que todo processo que não se module no
atravessamento de sentido não configura diálogo.
A dificuldade do processo está mesmo na inabilidade em
perceber o outro como uma narrativa possível. É preciso,

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nesse composto, desconstruir os modelos monológicos que


compõem a nossa leitura de mundo. Tal desmantelamento
afeta as camadas mais profundas dos costumes que, de al-
guma forma, formam a nossa consciência e possibilitam as
nossas ações sob a égide da sua manutenção e proteção.
Esse processo de atualização dos costumes é reflexi-
vo e prático, portanto, ético. Precisamos, então, fomentar
os espaços de compreensão do outro nas mais diversas
instâncias. A alteridade pode se apresentar como um fio
condutor, por exemplo, dos processos educacionais. Ora,
o que queremos dizer com isso? O ensino, como sabemos,
é um importante componente na formação dos indivíduos
de uma sociedade. As instituições de educação têm, em
sua missão, um papel crucial na manutenção ou na ruptu-
ra dos modelos de composição da consciência de crianças,
jovens e adultos. É urgente a composição de uma educa-
ção que torne o eu dialógico, como afirma Paulo Freire:
Enquanto na teoria da ação antidialógica a conquista,
como sua primeira característica, implica um sujeito que,
conquistando o outro, o transforma em quase “coisa”, na
teoria dialógica da ação os sujeitos se encontram para a
transformação do mundo, em co-laboração. O eu anti-
dialógico, dominador, transforma o tu dominado, con-
quistado, num mero, “isto”. O eu dialógico, pelo con-
trário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe
também que, constituído por um tu — um não-eu —,
esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como
eu, ao ter no seu eu um tu. Dessa forma, o eu e o tu
passam a ser, na dialética destas relações constitutivas,
dois tu que se fazem dois eu1.

1 Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, 2005, p. 191-192.

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Queremos dizer que a pluralidade pode ser incorpora-


da, nesses espaços, como a garantia da liberdade de cons-
ciência e, mais, da construção de um lugar comum onde
estarão presentes vários sujeitos e não “coisas” lidas por
sujeitos que se pensam legítimos.
Algo nessa direção está na elaboração da lei 10.639/03,
que fomenta a inserção da cultura negra no projeto pe-
dagógico das escolas brasileiras. Algo que, para nós, tem
grande relevância, uma vez que uma das formas mais cru-
éis de manutenção do horizonte monológico e do poder
de afonia está no enfraquecimento da narrativa e da me-
mória do outro.
A supressão da memória, do corpo e das potencialida-
des do outro atende ao projeto de sua reificação. Ao deter-
minar que a história e a cultura afro-brasileira devem estar
presentes no cotidiano das escolas públicas e particulares
no Brasil, essa lei promove um espaço no qual outras nar-
rativas sejam integradas ao contexto forjado nos alicerces
de vocalização única. Trazer à tona a história do povo ne-
gro no Brasil e, mais, colocar em evidência a importância
de grandes mulheres e homens, esquecidos pela lógica do
racismo estrutural, torna-se uma forma efetiva de dizer a
pluralidade que compõe o nosso país.
Compreendemos, ainda, que o projeto de aniquilação
do outro pode e deve ser alterado pela consolidação de
um espaço comum. Por comum, aqui, não entendemos
um horizonte monológico, endógeno e higienista, mas,
sim, um espaço plural e que dê vazão aos múltiplos cor-
pos, desejos, afetos, anseios e crenças. O desafio de uma
ética da diferença está em tensionar outro lugar que não

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seja a reprodução sistemática de um costume que extirpa


e marginaliza o que é diferente. A proposta de uma ética
da diferença promove o encontro e a tensão, pois com-
preende que a pluralidade de vozes compõe um espaço
político e de participação efetiva de todas e todos.

2. Ética e moral: perspectivas e desafios


A ética se mantém como uma das grandes vertentes de
reflexão filosófica e, ao longo dos tempos, lança luz sobre
a ação dos indivíduos, sobre a vida comum e a tensiona à
compreensão acerca do outro. A sua composição chama a
atenção para a reavaliação dos valores, costumes e normas
vigentes a fim de romper, se necessário, com modelos ex-
cludentes no que tange ao horizonte humano.
É necessário compreender, a título de elucidação, a dis-
tância entre ética e moral, para que possamos, uma vez
que os problemas da moral sejam denunciados, apresen-
tar a relação intrínseca entre esses polos. Por um lado, é
possível dizer a dissonância entre as suas naturezas e, em
outra lógica, é nítido perceber que a relação entre elas é
indispensável.
Por moral, compreendemos a composição de valores,
normas e determinações que modulam as nossas ações,
no cerne de uma sociedade. Sendo assim, sua importância
está em supostamente garantir a ordem, a seguridade e
permitir que nos percebamos parte de um corpo coletivo.
Esse sentimento de pertença, inclusive, pode reforçar
a negligência em relação à percepção do outro, caso o
valor do comum esteja associado à noção de igual. Ao
dizermos desse perigo, entretanto, não queremos grifar a

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moral como algo imediatamente negativo, pois ela não o


é. A nossa intenção, todavia, está em demonstrar o risco
em considerá-la, de forma apressada, como uma via abso-
lutamente boa e livre de violências.
A moral acompanha o processo histórico. Nesse senti-
do, ela dispõe de um caráter intrinsecamente mutável. O
que vemos, no entanto, é uma tentativa constante de ab-
solutizar os valores e as regras de conduta. Ao dizer que
o modelo social que opera desigualdades é intransponível
porque se fundamenta na transcendência, na natureza ou
em qualquer lugar que seja imutável, além de configurar
uma dificuldade de reconhecer a responsabilidade da ação
ainda inspira a naturalização de violências sistemáticas.
Retirar a moral da história é desconsiderar que os valo-
res, normas e costumes são criados por nós e, na mesma
medida, servem aos modelos de homogeneização do que
é considerado, lido e legitimado como humano. Aliás, a
adequação entre moral e a-historicidade é bastante refor-
çada quando as estruturas seguem uma lógica de poder
higienista e excludente. A moral, ao contrário, quando se
pretende aberta aos esforços éticos, expande sua área de
percepção e direciona as ações do indivíduo a um lugar
mais humano e consciente das diferenças que integram a
nossa existência.
A naturalização da moral é perigosa exatamente neste
ponto, de incapacidade de alterar valores que incidem so-
bre corpos e existências, de forma opressiva e, de modo
agudo, retroalimenta a sua precariedade.
Essa percepção determinista alija a discussão moral
do terreno da liberdade, pois as ações estariam fadadas a

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ser desta ou daquela forma, de uma vez por todas. Nesse


caso, se as estruturas axiológicas de um costume oprimem
e segregam, esse status seria inalterável.
Como vemos, aqui se elimina toda a possibilidade de
intervenção livre do homem e se estabelece uma antítese
absoluta entre a necessidade causal e a liberdade hu-
mana. A tese central da posição que estamos adotando
é, pois, a seguinte: tudo é causado e, por conseguinte,
não existe liberdade humana e, portanto, responsabili-
dade moral. E, realmente, se a determinação causal de
nossas ações fosse tão absoluta e rigorosa até o ponto
de nos tornar meros efeitos de causas que escapam por
completo o nosso controle, na se poderia falar em res-
ponsabilidade moral, porque não se poderia exigir que
agíssemos de maneira diferente daquela que somos for-
çados a agir2.
A proposta de uma moral absoluta atende a quem? Essa
questão nos causa profunda inquietação. Quem são os
que se apoiam numa visão plena da moral? Sob quais es-
tatutos operam os que dizem que o processo moralizan-
te se assemelha ao adestramento? Tendemos a pensar na
prerrogativa de abstenção de responsabilidade em relação
a si e ao outro.
Sartre, reconhecido como um dos grandes filósofos do
século XX, chama a atenção para o processo de nega-
ção da responsabilidade no que tange à ação e aos seus
efeitos. A má-fé, como pensa o filósofo francês, aparece
na realidade humana como um componente de recusa da
responsabilidade radical. Nesse sentido, ela opera como
2 Adolfo Sánchez Vázquez, Ética, 2017, p. 122.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

uma maneira de se enganar a si mesmo sobre os efeitos


das próprias ações. Suas considerações acerca da respon-
sabilidade e da ação são radicais, ou seja, não há destino
ou valores que se inscrevam fora do mundo humano.
O Existencialismo traz à tona a liberdade como uma das
principais marcas da realidade humana. Nesse contexto,
a liberdade não é vista como um atributo dado ao indi-
víduo, tampouco como uma substância que dá ânimo à
vida antes dela mesma; ela pode ser compreendida, nesse
campo da filosofia, como a abertura da realidade humana
rumo aos seus possíveis. Ela não denota princípio abstrato
ou metafísico, pois se realiza no mundo e, mais, exige as
condições de adversidade desse mesmo mundo.
A liberdade corresponde à própria realidade humana
que se realiza constantemente, enquanto processo e pro-
jeto. Esse acontecimento é forjado a partir de nossas esco-
lhas e ações, no mundo, diante dos outros. Nossa existên-
cia toma forma ao passo que escolhemos a nós mesmos
e ao mundo no qual habitamos. Somos amplamente res-
ponsáveis pela configuração do horizonte humano que
empreendemos e, por isso, a liberdade é um paradoxo
na ótica do existencialista francês. Assim, o sujeito está
“condenado a ser livre”3, enquanto se vê sem justificação
natural ou transcendente para a sua vida e, a partir disso,
empreende um movimento de profunda responsabilização
pelo que constitui.
Ao pensarmos que tudo o que compõe nosso horizonte
faz parte da humanidade, ficamos diante das maiores atro-
cidades que foram feitas e chamadas de m
­ onstruosidades.
3 Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo, 2010, p. 33.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

Numa perspectiva existencialista, não encarar o que foi


feito como uma possibilidade não nos faz pensar em ou-
tras formas de existir e de ressignificar os valores, bem
como as nossas escolhas, no mundo, junto aos outros. Só
os humanos podem (re)criar um mundo mais humano. A
tentativa de obliterar a nossa ação e os seus efeitos de-
sencadeia numa conduta de má-fé que, como vimos, nos
retira da dimensão do encargo de constituir um horizonte
cada vez mais humano.
Deparamo-nos, então, com dois grandes desafios: a)
reconhecer que os valores são construídos por nós; b)
fugir das tentativas de tornar os valores maciços e intrans-
poníveis. Esses dois limites promovem a alteração dos pa-
radigmas, a fim de instaurar um novo lugar de sentido e
de ação. Logo, a moral requisita, a partir de um esforço
ético, uma atualização permanente. Entendemos que esse
esforço se alicerça nas bases da diferença, ou seja, de uma
percepção que ultrapasse os limites e enquadramentos
constituintes do nosso olhar.
Ao destacarmos a atmosfera imanente e concreta da
moral, deixamos claro que os seus processos constitutivos
e reestruturantes estão diretamente ligados à compreensão
do sujeito a respeito de sua existência e responsabilidade.
Nesse sentido, nos aproximamos do existencialismo hu-
manista de Sartre ao entendermos que
A consequência essencial de nossas observações anterio-
res é a de que o homem, estando condenado a ser livre,
carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é respon-
sável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira
de ser. Tomamos a palavra “responsabilidade” em seu

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

sentido mais corriqueiro de “consciência (de) ser autor


incontestável de um acontecimento ou de um objeto”.
Neste sentido, a responsabilidade do Para-si é opressiva,
já que o Para-si é aquele pelo qual se faz com que haja
mundo [...] as mais atrozes situações de guerra, as piores
torturas, não criam um estado de coisas inumano; não
há situação inumana; é somente pelo medo, pela fuga e
pelo recurso a condutas mágicas que irei determinar o
inumano, mas esta decisão é humana e tenho de assumir
inteira responsabilidade por ela4.
O Existencialismo humanista anuncia a profunda respon-
sabilidade que atravessa a existência de homens e mulheres.
Ao descortinar a vida como um movimento de constituição
permanente e, mais, o encontro irrecuperável com o outro,
essa escola faz com que nos vejamos inteiramente ciosos do
que fazemos de nós mesmos, do mundo que nos cerca e,
em consequência, como afetamos os outros.
Nesse sentido, o que se manifesta, isto é, os valores,
as normas, costumes e afins são realizações humanas e,
por isso, podem ser atualizados desde que essa humani-
dade não seja abrangente e que coloquemos indivíduos
na condição de objeto. Essa força da existência, enquanto
existência, não é vista “sem nenhum compromisso históri-
co, liberdade puramente abstrata”5, ou há uma dificuldade
quando tratamos da alteridade, nos limites do pensamento
sartriano, pois a sua frase “o inferno são os outros” ficou
bastante difundida e, por esse motivo, mal interpretada.
Assim, vale a pena perguntar: o que é possível compreen-
der ao tratarmos desse inferno?
4 Jean-Paul Sartre, O ser e o nada, 2009, p. 678.
5 Roberto Carlos Favero, Sartre, 2018, p. 23.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

Inicialmente, encontramos dificuldade em lidar com o


outro, pois ele é a manifestação daquilo que não somos.
Num mundo cercado por definições, enquadramentos e
tentativas de homogeneização, quão difícil é lidar com
aquilo que difere de nós! Pois é, em Sartre lemos um ace-
no radical ao outro, como aquele que se manifesta à nossa
consciência e, por isso, ele está fora de nós, numa outra
existência e liberdade.
Nessa direção, ele, o outro, requer de mim um esforço
para reconhecer a sua diferença e, mais, compreendê-la
como humana, pois, como já demonstramos, tudo que
está entre nós faz parte da humanidade, inclusive as es-
colhas do outro. O nosso compromisso se torna cada vez
mais desafiador, uma vez que nos colocamos constante-
mente na evasão da percepção do outro como uma coisa
que, de algum modo, pode ser aparelhada por nós. Assim,
as tentativas de transformar o outro num eu não corres-
pondem ao desafio de perceber o outro de modo sincero,
mas, sim, em violência.
Ao atravessarmos os conceitos de responsabilidade e
alteridade em Sartre, buscamos uma alternativa de pensar
o alargamento das condições materiais e sociais que in-
sistem em se modular no valor do igual e não se atentam
às múltiplas manifestações da existência humana, como
legítimas e possíveis. Ao nos recusarmos a reconhecer a
diferença do outro e, mais, compor um universo axiológi-
co que se sustente em perspectivas comuns, nós criamos
um mundo humano que oblitera vidas.
O filósofo diz que a relação de captação do eu e do
outro se alterna constantemente. Sendo assim, nós somos

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

olhados e olhamos. O que isso significa? Comumente so-


mos atravessados por pessoas que constroem o seu pro-
jeto de forma profundamente diferente e, por isso, nos
escapam. Elas nos olham da mesma forma com que as
olhamos, e esse processo é revelador.
No fundo desse movimento o eu e o outro são desve-
lados. Esse processo sublinha os pontos de divergência
que compõem as existências humanas. Estamos diante de
um desafio, ou seja, de ampliação do nosso olhar e do
que construímos como humanidade. Precisamos, assim,
de uma “conversão radical”6, ou seja, da constituição de
um mundo no qual os sujeitos se encontrem, a partir de
suas diferenças; e mais, que os valores se modulem nessa
formulação e humanidade mais abrangente possível e me-
nos restritiva e violenta.
Há, nessa (re)formulação, o grande desafio de sair de si,
mas não no sentido de perder a si mesmo de forma plena
e se diluir no outro, mas de permitir encontrar o sentido
do outro, para-além. Falamos então de uma hemorragia
na própria existência, ou seja, uma forma de evadir de si
mesmo, de se permitir ser olhado e percebido por outrem.
Identificamos, assim, a necessidade de apresentar uma
possível ética da diferença a partir, sobretudo, das bases
filosóficas que descortinam a noção de reconhecimento.
Nesse ambiente, isto é, da percepção do outro, somos in-
citados a tencionar as bases do costume que projeta a
nossa consciência, bem como a nossa ação, uma vez que,
no intramundo desse ethos, podem se esconder valores
demasiadamente excludentes e marginalizantes.
6 Jean-Paul Sartre, O ser e o nada, 2009, p. 331.

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Ao falarmos de uma ética da diferença propomos, en-


tão, a reavaliação do valor a partir dos modelos de percep-
ção do outro que nos interpelam, mas, ao mesmo tempo,
nos dão possibilidade de romper com as bases e estruturas
que nos tornaram quem somos. A manifestação do outro,
em sua diferença, nos desconcerta enquanto garantia da
ampliação do nosso horizonte de sentido.
Reconhecemos a necessidade de problematizar uma
ética que não se alicerce na reciprocidade mantida sob a
égide da homogeneidade, isto é, na elaboração de uma
percepção do outro que se atenha à sua manifestação dís-
par. Assim, pensamos a necessidade de uma ética da dife-
rença que se alinhe à composição de um novo horizonte
de sentido e de ação e, de modo profundo, se integre à
construção de um lugar plural e que não reforce a preca-
riedade de corpos e vidas.
Uma ética da diferença, nesse sentido, tensiona a con-
solidação de enquadramentos violentos que determinem
a vida e a garantia de sua possibilidade, a partir de com-
posições restritivas de mundo. A composição e a reivin-
dicação ética, nesse lugar, estão na aparição da diferença
como possibilidade de alargamento dos enquadramentos
que nos permitem ver o outro a partir de sua existência e
não dos modelos constituintes de nossa consciência que
modulam a diferença como algo passível à morte.

3. O enquadramento e os desafios éticos


Ao pensarmos nos desafios éticos na contemporanei-
dade, somos levados, de forma imediata, ao problema do
reconhecimento. Essa questão nos interessa porque, em

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

nome de tentativas falaciosas de reciprocidade, instaura-


mos, ao longo dos tempos, graves ruídos no diálogo, na
percepção do outro e, ao mesmo tempo, reproduzimos
esses ruídos e nos distanciamos das discussões acerca dos
caminhos ético-políticos que se sustentam na horizontali-
dade e na democracia.
Estamos tensionados por uma reflexão bastante perti-
nente à contemporaneidade: a questão do reconhecimen-
to, a partir das diferenças. Por muito tempo esse tema
foi enaltecido como um grande canto à reciprocidade; as
discussões éticas partiam de uma homogeneidade entre os
sujeitos como, se de algum modo universal, todos, de fato,
fossem vistos como iguais.
A diferença fora obliterada dessas reflexões e, ao mes-
mo tempo, esse esquecimento nos trouxe a um lugar de
retroalimentação de violências sistemáticas. Pensamos, en-
tão, ser necessário, como um compromisso ético, chamar
a atenção às distâncias que nos marcam como humanos e,
mais, enaltecer a sua existência no campo da ética, uma
vez que os modelos de apreensão do outro sob a lente da
homogeneidade resvalam em campos de segregação e de
destituição de sua humanidade.
Somos levados a pensar que esses modelos de (não)
percepção do outro, a partir da oposição sujeito e não
sujeito, se antepõem às nossas relações, pois estão diluí-
dos nas estruturas sociais e valorativas. Somos forjados a
partir de nossa inserção nas narrativas de construção da
nossa humanidade. Sendo assim, as lentes pelas quais en-
xergamos os outros são constituídas a partir dos modelos
morais que nos formam.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

É possível dizer que esses modelos se estruturam no


cerne de uma discussão moralizante e política. Os mode-
los pelos quais percebemos, ou não, os outros indicam o
que conseguimos enxergar como vida. A questão ontoló-
gica “o que é uma vida?”7 indica os instrumentos de poder
que modelam o ser como legítimo ou não. Essas opera-
ções de poder produzem vidas e, ao mesmo tempo, alijam
dessa esteira os que escapam a essa percepção unilateral.
Ao dizermos que, por vezes, esse processo é moral, in-
dicamos um ruído em nossa compreensão mais cotidiana
sobre esse tema. Lemos que a moral se apresenta como
um conjunto de valores que ordenam a vida social. A sua
disposição é objetiva e prática. Logo, ser moral se manifes-
ta no instante em que atendemos, de forma imediata, aos
anseios do costume no qual a consciência é construída.
Ao responder ativamente às exigências desse ethos, so-
mos inseridos em um contexto moral. Está claro que esse
processo de ser dito a partir das estruturas que nos forjam
indica, certamente, os parâmetros que utilizaremos tam-
bém para dizer, agir e fazer. Além disso, é possível consta-
tar que a moral, como uma construção humana, temporal
e concreta, não está isenta de ser atravessada por valores
que se apresentam profundamente problemáticos, no que
tange ao reconhecimento.
Ao dizermos que a moral se relaciona diretamente à
prática imediata do costume, queremos sublinhar seus as-
pectos, por vezes, pouco reflexivos. Nesse sentido, somos
levados a considerar que essas determinações nos for-
mam, interpelam e nos exigem uma resposta. O que deve-
7 Judith Butler, Relatar a si mesmo, 2015b, p. 14.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

mos nos perguntar é: de que modo essas exigências tecem


o nosso olhar em relação ao outro? Inicialmente, a nossa
intenção está na correlação imediata entre o costume e a
produção de bases para a percepção; logo, na elaboração
do reconhecimento do outro a partir dos critérios que fo-
mentam o nosso olhar, a partir dos enquadramentos.
A moral efetiva compreende, portanto, não somente
normas ou regras de ação, mas também — como com-
portamento que deve ser — os fatos com ela confor-
mes. Ou seja, tanto o conjunto dos princípios, valores
e prescrições que os homens, numa dada comunidade,
consideram válidos como os atos reais em que aqueles
se concretizam e encarnam8.
É possível dizer que esse panorama de valores, regras
de ação e prescrições que compõem a moral se encaram
e, nesse momento, é possível entrever a moralidade. A
efetividade do costume que nos forma, então, pode ser
qualificada como a moralidade9.
Comumente nós dizemos que alguém é moral quando
adere subitamente às exigências do seu costume. Vale a
pena questionar, no entanto, se essa adesão não está per-
meada de violências estruturais que se manifestam tanto
na tábula de valores vigentes (moral), quanto nas ações
cotidianas marcadas por aqueles signos (moralidade). Faz-
se necessário perceber se essa estabilidade dos valores e,
mais, da adesão, de modo acrítico, ao costume não tece
uma preservação de olhares violentos em relação ao outro
e às suas diferenças.

8 Adolfo Sánchez Vázquez, Ética, 2017, p. 65.


9 Adolfo Sánchez Vázquez, Ética, 2017, p. 65.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

A dificuldade em transcrever outros panoramas de ação


— motivados por um exercício ético — está nesse lugar de
constituição do sujeito, ou seja, como manifestação desse
processo de subordinação. O que queremos dizer? A he-
rança desse costume é aguda. É possível entrever que nos
tornamos sujeitos a partir da nossa inserção nesse código
de valores. Essa inserção nos modela e, em consequência,
dá tom à nossa ação. Há um costume que se manifesta
antes de nós e se encarna através de nossas ações e pos-
sibilidades — inclusive de romper, através de uma consci-
ência crítica, com esse conjunto de normas e prescrições
em seus marcadores de violência.
A constituição de nossa subjetividade está diretamente
ligada às condições nas quais ela se torna possível. Logo,
a nossa consciência de existir e, mais, de agir, acompa-
nha o processo no qual ela foi elaborada. Podemos dizer
que a subjetividade é designada a partir de um processo
de assujeitamento10.
O duplo aspecto da sujeição parece levar a um círculo
vicioso: a ação do sujeito parece ser efeito de sua su-
bordinação. Qualquer esforço para se opor a esta su-
bordinação necessariamente a pressupõe a e reinvoca.
Felizmente, a história sobrevive a esse impasse11.
Lemos em Butler que as forças que nos atravessam in-
dicam uma “vulnerabilidade temporária”12, visto que nos
dá condição de agir e de transformar as bases de violência
10 Em sua obra A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, a filósofa apresenta a sujeição como
uma face importante na constituição do sujeito. Entendemos esse processo como um terreno de
possibilidade da consciência e das ações, inclusive como possibilidade de ruptura com as forças
de assujeitamento. Todos nós estamos submetidos às condições e forças que se encarnam em
nós, mas isso não nos encerra ou nos determina, pois a nossa ação atualiza essas forças.
11 Judith Butler, A vida psíquica do poder, 2017, p. 20.
12 Judith Butler, A vida psíquica do poder, 2017, p. 21.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

que se mantêm correlatas ao enquadramento violento em


relação ao outro e às suas diferenças. Logo, notamos que
o costume nos dá base para nos tornarmos sujeitos - a
linguagem, os símbolos, os valores e as prescrições nor-
mativas - e, ao mesmo tempo, nos dá condição de agir e
ressignificar suas lacunas que promovem a redução e o
aparelhamento da existência e diferença do outro.
Há uma importância na ação, pois ela será, de modo
ambivalente, o resgate da potência que subordina e, ao
mesmo tempo, a possibilidade de construir outras formas
de perceber o outro, através da ruptura. As condições que
nos formam se fazem presentes, mas como força que deve
ser transposta. Se nascemos numa sociedade que aloca os
negros, por exemplo, numa situação de subalternidade,
esse valor se faz presente, mas sob a égide da oposição.
De acordo com o raciocínio de que a sujeição é tan-
to a subordinação quanto o devir do sujeito, o poder
é, como subordinação, um conjunto de condições que
precedem o sujeito, que o efetuam e o subordinam
desde o princípio. Essa formulação vacila, no entan-
to, quando consideramos que não há sujeito anterior
a essa efetivação. O poder não só age sobre o sujeito
como também, em sentido, transitivo, põe em ato o su-
jeito, conferindo-lhe existência13.
Assim, é possível dizer que o poder compõe o sujeito
e, além disso, se manifesta junto à subjetividade, na ação.
Queremos grifar, no entanto, os modelos de ação que se
manifestam a partir dessa estrutura constituinte. Ora, se o
costume se encarna no sujeito, ele se manifesta na ação
13 Judith Butler, A vida psíquica do poder, 2017, p. 22 (grifos da autora).

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desse mesmo sujeito. O que nos interessa está no efeito


desta ação. Ao nos orientarmos na busca desses efeitos,
miramos as suas articulações éticas. Ao dizermos que o
costume e o poder são concomitantes ao sujeito, enxer-
gamos a força do ethos que subjaz às nossas ações. O
poder nunca é apenas uma condição que nos forma, mas
a manifestação dessas condições, em nossas ações. É com-
preensível o atravessamento do costume em nós, porque
a nossa consciência e a percepção são forjadas nele; no
entanto, sua realidade nos dá base para reinaugurar a ação
e promover outros valores.
O que queremos demonstrar é a realidade do reconhe-
cimento que antecede e modula a nossa percepção do ou-
tro. Nesse sentido, nosso olhar é marcado pela manuten-
ção da diferença como algo passível de destruição. Assim,
o enquadramento que é encarnado em nós, por meio do
costume, desenha as condições de subjetividade que são
legítimas e enfraquecem outras. O nosso esforço está em
demonstrar que essas condições que nos formam podem
ser reformuladas a partir de nossas ações e de um esforço
ético rumo ao alargamento de nossas percepções de quem
é sujeito e vida.
Consideramos que o desafio ético está atrelado, de
modo profundo, ao exercício de reelaboração dos valo-
res vigentes num ethos. Nesses valores estão os modelos
pelos quais compreendemos a nós mesmos, os outros e
o mundo que nos cerca. Assim, de modo agudo, é pos-
sível propor uma crítica e verificação à moral que forja a
nós mesmos e as ações que empreendemos, na tentati-
va de estabelecer outro horizonte de sentido e de ação.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

A pergunta que podemos nos fazer é: as ações tenciona-


das por esse arranjo valorativo cria um mundo mais ou
menos humano?
Em Butler, identificamos o esforço em debater as es-
truturas dessa realidade que nos cerca, porque ali estão
inscritos os critérios de avaliação e, ao mesmo tempo,
de reconhecimento de uma vida. Assim, podemos dizer
que, de modo problemático, a vida é considerada legítima
quando encontra adequação aos estatutos de reconheci-
mento lançados na tessitura social. Somos provocados a
pensar que essa inscrição é bastante perigosa, pois ela
elege, numa atmosfera demasiadamente endógena, quem
existe e quem não.
A questão do reconhecimento é importante porque se
dizemos acreditar que todos os sujeitos humanos mere-
cem igual reconhecimento, presumimos que todos os su-
jeitos humanos são igualmente reconhecíveis. Mas e se o
campo altamente regulado da aparência não admite todo
mundo, demarcando zonas onde se espera que muitos
não apareçam ou sejam legalmente proibidos de fazê-lo?
[...] Na realidade, a demanda compulsória por aparecer
de um modo em vez de outro funciona como precondi-
ção para aparecer por isso mesmo e só.14
De modo pontual podemos compreender que as in-
sígnias de reconhecimento estão postas nas estruturas de
uma sociedade e, mais, são delineadas de acordo com os
seus arranjos. Nosso interesse está em demonstrar o apara-
to moral ou moralizante desse processo. Se lemos a moral
como um conjunto organizado de valores que orientam e
14 Judith Butler, Corpos em aliança e políticas nas ruas, 2018, p. 42.

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dão forma às relações, podemos dizer que ser moral é res-


ponder, numa lógica imediata e prática, aos arranjos que
possibilitam a nossa percepção de ação.
Sendo assim, a moral, enquanto costume, se manifesta
na experiência cotidiana dos indivíduos. Ali estão dadas
as condições de ação e, mais, as diretrizes de reconheci-
mento, uma vez que a moral valida os estatutos de reali-
zação do indivíduo, de sua ação e de percepção do outro.
Se pensamos, por exemplo, nas camadas e nas estruturas
sociais, identificamos o racismo como um elemento cons-
tituinte da nossa visão de mundo e, mais, da nossa percep-
ção dos outros. Ele constitui
[...] uma ideologia, desde que se considere que toda ide-
ologia só pode subsistir se estiver ancorada em práticas
sociais concretas. Mulheres negras são consideradas pou-
co capazes porque existe um sistema econômico, políti-
co, jurídico que perpetua essa condição de subalternida-
de, mantendo-as com baixos salários, fora dos espaços
de decisão, expostas a todo tipo de violência. 15

Não raro, a moral é compreendida como algo poten-


cialmente bom. Ora, não queremos dizer que ela não o
seja, só grifamos a necessidade de uma avaliação crítica
acerca de seus estatutos. Consideramos que a moral deve
ser avaliada a partir de um esforço ético na garantia de
que sua manifestação tóxica não se torne vetor de violên-
cia e de restrição de humanidades.
Lemos que o processo moralizador nos constitui, ao passo
que possibilita a nossa percepção de mundo e, mais, nos
dá condição de balizar a nossa ação, pois se realiza a partir
15 Silvio de Almeida, O que é racismo estrutural?, 2018, p. 52 (grifo do autor).

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

de uma matriz valorativa e cultural. Podemos dizer que, a


partir desse processo, somos interpelados. Somos capazes
de pensar a nós mesmos e aos outros, uma vez que estamos
inseridos num ethos que se encarna em nós. Ele nos assujeita.
O movimento de subjetivação acontece no instante em
que somos integrados num contexto que nos chama e,
mais, que nos enquadra. Nesse mesmo horizonte, nós so-
mos capazes de agir enquanto expressamos as tessituras
desse movimento que nos produz. A moral, e sua matriz
factual, demonstram os indicadores dessa estrutura que nos
forja. Podemos enxergar esse processo quando percebemos
em nós a reprodução de violências que são tão arraigadas
que dispõem de uma face falaciosa de naturalidade.
Em que sentido o processo de enquadramento pode
ser compreendido como violência? Se a nossa percepção
não se expande e, mais, se permanecemos no interesse de
restringir nossa percepção acerca do que é ser humano,
retroalimentamos violências sistemáticas que modelam os
efeitos de nossas ações a partir dos critérios de exclusão
e marginalização. O efeito de empreender força sobre al-
guém, de se sobrepor ao outro, toma forma de oposição
entre quem merece e quem não merece viver.
Butler defende a tese de que a “precariedade é a rubrica
que une”16 os corpos que constantemente são lembrados
daquela oposição. Entendemos que esse elo pode ser res-
significado como uma aliança que combate essa atmosfera
de violência, pois “a ação consiste em reivindicar o poder
de que se necessita17”.

16 Judith Butler, Corpos em aliança e políticas nas ruas, 2018, p. 65.


17 Judith Butler, Corpos em aliança e políticas nas ruas, 2018, p. 65.

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4. Apreensão e reconhecimento
Ao dizermos que o processo moralizador nos dá con-
dições de perceber a nós mesmos, o mundo e os outros,
somos levados a considerar que, de algum modo, as con-
dições de compreensão estão inscritas no surgimento do
sujeito. Nesse sentido, consideramos a viabilidade do re-
conhecimento a partir, inicialmente, dos critérios inscritos
em nossa carne, por meio desse processo.
Nossa consciência se manifesta quando essas normas
se realizam por meio das ações. Assim, nos tornamos,
aos poucos, vetores dessa atmosfera de “reconhecimen-
to” que se antepõe a nós. É possível identificar como os
costumes são gravados em nós na cotidianidade da vida
e como é difícil fugir das insígnias de violência que forja-
ram a nossa consciência de mundo. No trânsito, no está-
dio de futebol, no trabalho e nas mais variadas ocasiões
da vida, o exercício ético está na fuga da engrenagem
que movimenta a nossa visão do outro, nos limites da
vulnerabilidade e segregação.
Nessa direção, somos incitados a manter a ordem e
a norma, porque elas nos dão seguridade e conforto. O
estado de vigilância e controle atende ao processo mora-
lizador, pois ele busca, de forma imediata, a adequação
entre ação e costume. Este encontro, quando não reflexi-
vo, oblitera corpos, experiências e vidas. É possível dizer
não só de um esquecimento do outro, mas do desejo por
sua destruição.
Ao respondermos aos anseios de um costume, longe
das vias interpretativas e críticas a respeito de sua elabo-
ração acerca do outro e da diferença, deixamos entrever

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

um risco: a consolidação de um sistema que reconhece


apenas o que é comum e descarta os sinais de diferença.
A manutenção acrítica daquele sistema, isto é, da soma
costume e ação, pode normalizar e naturalizar a violência
contra corpos dissidentes e vidas que se mantêm fora do
ideal hegemônico de existência. Ao legitimar existências
válidas ou não, esse costume se articula enfraquecendo
as possibilidades de existir. Esse enfraquecimento mantém
uma ordem de controle e de dominação. A qualificação
do lugar ou do não lugar aparece em Foucault quando ele
apresenta a noção de quadriculamento.
O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parce-
las quanto corpos ou elementos a repartir [...] importa
restabelecer as presenças e as ausências, saber onde e
como encontrar os indivíduos, instaurar comunicações
úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar
o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo,
medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, por-
tanto, para conhecer, dominar e utilizar18.
É preciso que permaneçamos atentos às condições de
apreensão do outro e entendamos como operam as dinâmicas
disciplinares dos corpos e existências. Ainda nesse sentido,
colocar em questão se o aparecimento é análogo ao reconhe-
cimento, pois essa discussão toma forma quando somos ten-
sionados a dinamitar as formulações engessadas que marcam
quem é sujeito e quem se distancia desse lugar. Os modelos de
percepção são designados e, como foi sinalizado, encarnados
em nós, no processo do assujeitamento. Logo, os modelos de
alteridade estão forjados nessas condições.
18 Michel Foucault, Vigiar e punir, 2012, p. 138.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

Trata-se de um processo ético o esforço de descortinar


as violências que são enraizadas em nós, através do cos-
tume. Nesse sentido, é possível apreender e reconhecer
que se tornam ações amplamente distantes, uma vez que a
aparição imediata do outro, isto é, longe de um movimen-
to de reconhecimento de suas diferenças — como mani-
festação de sua existência e legitimidade — pode reforçar
as dinâmicas de segregação e manutenção de processos
de marginalização.
A partir de uma ontologia encarnada e que nos per-
mita descrever os corpos — em suas diferenças — pre-
sentes no contexto social e político, entendemos que a
possibilidade de apreendê-los está diretamente ligada
aos processos nos quais a corporeidade e existência são
consolidadas. Nesse sentido, apreendemos as vidas a
partir dos enquadramentos inerentes ao nosso processo
formativo e nele somos incitados a perceber o que é
vida e o que não é.
A precariedade de algumas vidas atende ao proces-
so de repetição que forja a nossa subjetividade. Desde
sempre aprendemos que alguns corpos são marginais,
dissidentes e precisam se esconder, pois fogem à regra
da subjetividade que é reconhecida nos trâmites do en-
quadramento vigente. O que não percebemos é o quan-
to esse processo de apreensão é violento. Nele algumas
vidas, por fugir do quadro norma, são entregues à morte
— simbólica e efetiva.
Os “enquadramentos” que atuam para diferenciar as vi-
das que podemos apreender daquelas que não podemos
(ou que produzem vidas através de um continuum de

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

vida) não só organizam a experiência visual como tam-


bém geram ontologias específicas do sujeito. Os sujeitos
são construídos mediante normas que, quando repeti-
das, produzem e deslocam os termos por meio dos quais
os sujeitos são reconhecidos19.
A instauração e a reprodução de normas, a nosso ver,
não configuram imediatamente num contexto ético, tam-
pouco humanizador. Ao olharmos com atenção a nossa
vida cotidiana, perceberemos que boa parte das ações que
reproduzem o costume vigente dispõe de problemas agu-
dos no que diz respeito à dignidade do outro, enquanto
outro. No trânsito, nos espaços públicos, na imanência e
cotidianidade da vida percebemos que a imitação dos pa-
drões pode incitar, com profundidade, a manutenção de
lógicas excludentes e marginalizantes.
É por isso que a nossa percepção precisa ser afetada
por uma disposição crítica. Entendemos que essa disposi-
ção é paradoxal, ou seja, ela compreende as bases de sua
origem valorativa e de ação, mas desdobra essa mesma
estrutura no esforço de alargar as condições enquadrantes
do outro.
A tentativa aqui está na disposição de ampliar o hori-
zonte de compreensão do outro, não a partir de nós, mas
de sua própria diferença, manifestada e não sucumbida.
Esse parâmetro normativo, em sua realidade, está aberto,
portanto, ao que podemos chamar de “abertura crítica”20.
O enquadramento não se expande numa operação unila-

19 Judith Butler, Relatar a si mesmo, 2015b, p. 17.


20 Judith Butler, Quadros de guerra, 2015a, p. 37.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

teral, mas, sim, na experiência da diferença e na manifes-


tação real do outro, enquanto outro.
A norma não produz o sujeito como seu efeito necessá-
rio, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar
a norma que inaugura sua reflexibilidade; o sujeito luta
invariavelmente com condições de vida que não pode-
ria ter escolhido. Se nessa luta a capacidade de ação,
ou melhor, a liberdade funciona de alguma maneira, é
dentro de um campo facilitador delimitante de restrições.
Essa ação ética não é totalmente determinada nem radi-
calmente livre. Sua luta ou dilema primário devem ser
produzidos por um mundo, mesmo que tenhamos de
produzi-lo de alguma maneira21.
O movimento de percepção do aparecimento do ou-
tro requer um dado: a identificação da precariedade.
Ao compreender que as nossas alianças se mantêm na
luta contra a retroalimentação das precariedades, en-
tendemos que elas se afastam da potência de aniquila-
mento do outro e de sua diferença, seja ela religiosa,
racial, de gênero e outras tantas que compõem a nossa
existência como humanos.
Entendemos que o desejo de aniquilamento do ou-
tro é correlato à inabilidade em lidar com a própria
vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, à tentativa de
manter o status quo da crença num sujeito legítimo
e na do outro como estranho, subalterno e passível à
morte, real ou simbólica.
Esse caminho de ampliação do enquadramento, ou
seja, de percepção do outro enquanto tal, parte do pres-
21 Judith Butler, Quadros de guerra, 2015a, p. 31.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

suposto de que a diferença não é um elemento negati-


vo. É possível ler esse argumento quando se entende o
diferente correlato às desigualdades. A não compreen-
são dos lugares de que falamos e existimos “leva à legi-
timação de um discurso excludente”22. Ao mantermos a
diferença como um elemento de exclusão, seguimos a
padronagem que nos forma. A alteração do nosso cam-
po de compreensão do outro integrado às nossas prá-
ticas faz com que atualizemos não só as estruturas que
nos forjaram, mas também a lógica que veta o outro e a
diferença que ele apresenta, do lugar de subjetividade.
Nós pensamos que a diferença está diretamente ligada
com o que compreendemos como esforço ético, ao passo
que ela nos tensiona ao diálogo. Encontramos o outro e
buscamos instaurar um horizonte do comum, a partir des-
ses lugares polifônicos.
A tentativa de homogeneizar o lugar do comum enfra-
quece a nossa capacidade de aliança que, a nosso ver, está
marcada significativamente pela disposição de ampliar a
nossa visão de quem vive. Nesse sentido, podemos di-
zer que “a ética requer que nos arrisquemos precisamente
nos momentos de desconhecimento, quando aquilo que
nos forma diverge do que está diante de nós”23 justamente
para que aprendamos a perceber que há múltiplas formas
de existir e que as nossas ações precisam ser responsáveis
pelo alcance delas e pela construção do que é compreen-
dido como humano.

22 Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala?, 2018, p. 51.


23 Judith Butler, Relatar a si mesmo, 2015b, p. 171.

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A diferença e a ética possível


Constantemente nos percebemos em situações nas
quais estamos de acordo com os valores que nos forma-
ram, mas, ao mesmo tempo, reproduzimos violência ao
não permitir que o outro tenha a sua dignidade e diferen-
ça resguardada. O espectro da moral vigente se encarna
em nós através de nossas ações e reflexões. Utilizamos
caminhos distintos para chegar a um lugar comum, isto é,
a valorização da diferença.
Lemos que somos forjados a partir de nossa inserção
num contexto normativo, valorativo e factual. O esforço
ético que permeou este capítulo se deu na tensão entre
reconhecimento e violência. A pergunta sobre as nossas
condições de reconhecimento suscitou o debate acerca
da diferença.
Se somos forjados a partir das bases de uma moral que
percebe como legítimo o mesmo, os que não se enqua-
drem no que é legítimo podem ser excluídos, marginali-
zados e mortos? Assim, nos perguntamos: nós realmente
reconhecemos o outro, ou desejamos constantemente
que ele se enquadre no que é lido como normal, possí-
vel e aceitável?
Essas questões nos alocam numa reflexão ética, pois
tensionam as bases da nossa ação e, assim, nos dire-
cionam à diferença entre reconhecimento e reprodu-
ção sistemática de violência. Uma ética da diferença nos
mantém atentos à necessidade de incorporar a dispari-
dade como um valor humano; nesse sentido, nos coloca
distante do enfraquecimento do outro e do que acarreta
a sua destruição.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

O enquadramento violento, ou seja, a manutenção da


diferença correlata à desigualdade e ao aniquilamento dá
lugar a essa perspectiva ética e se abre às novas formas
de compreensão do outro como garantia de novos mo-
delos de aliança e de composição do que é humano. A
pluralidade é incorporada nesse prisma como um valor
de interação, isto é, como rearticulação da vida, ação e
percepção. Nela somos provocados a perceber que exis-
tem vidas, corpos e existências. A relação com a diferen-
ça amplia, de forma ética, a nossa percepção do mundo e
de nós mesmos. Perceber a nós em relação faz com que
também nos percebamos responsáveis por nossas ações
e seus efeitos.
O existencialismo humanista sartriano deixa entrever
uma liberdade radical que se manifesta nas ações e esco-
lhas de homens e mulheres. Contudo, foi preciso demons-
trar que as escolhas não nos encerram num lugar autocen-
trado e, mais, que o outro se manifesta como um grande
desafio porque grifa a diferença diante dos nossos olhos.
Há responsabilidade na ação dos sujeitos, e isso não pode
excluir uma consciência ampla de que estamos no mundo
junto aos outros. Descobrimos, assim, que os valores —
sob a perspectiva existencialista de Sartre — devem ser
reconstituídos e estar atentos aos problemas sociais e mo-
rais que retroalimentam as violências e homogeneizações.
Ao assumirmos as distâncias epistemológicas entre
Butler, Sartre e os demais pensadores trazidos aqui neste
diálogo, demarcamos um ponto em comum: a diferença
como fator possibilitador de uma ética. Longe de dizer que
há entre eles similaridades agudas, pois reconhecemos os

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

seus lugares de fala bem como a dissonância que per-


meia as suas compreensões sobre a subjetividade e seus
ecos, todavia eles são muito importantes para nós e, a par-
tir de seus vieses, buscamos fundamentar a possibilidade
de uma discussão ética a partir da exaltação da diferença
como algo necessário às construções humanas.

Referências
ALMEIDA, Silvio de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte:
Letramento, 2018.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e políticas nas ruas: notas para
uma teoria performativa da assembleia. Tradução de Fernanda Si-
queira Migues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível ao luto
teorias? Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica,
2015a.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradu-
ção de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015b.
BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias de sujeição. Tra-
dução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
CASTRO, Fábio Caprio Leite de. A ética de Sartre. São Paulo: Loyola,
2016.
FAVERO, Roberto Carlos. Sartre: uma filosofia em defesa da liberdade
e da ética. INTERthesis. Florianópolis, v. 15, n. 2. p. 19-37. maio/
ago. 2018.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história de violência nas prisões.
Tradução de Raquel Ramalhete. 40. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramen-


to, 2018.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Tradução
de João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Tradução de Paulo Perdigão.
Petrópolis: Vozes, 2009.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução de João Dell’Anna. 37.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

Direitos humanos, o fenômeno


social da laicidade e o pensamento abissal

Phablo Freire

1. Uma ética não insulada


A ética da qual falamos é uma que encontre em si mes-
ma o lugar da diferença, possibilidade de ruptura de pro-
cessos de naturalização dos sentidos que excluem, mesmo
daqueles que o fazem ao anunciarem-se inclusivos. Uma
ética suficiente para fazer emergir o enfrentamento de
uma historicidade que atravessa as nossas formas simbóli-
cas de constituição dos espaços e dos sujeitos, uma histo-
ricidade silenciosamente violenta. Uma ética que esmiúce
o costume, desmontando-o, evidenciando seus modos de
operação pela exposição de suas contradições. Uma ética
da diferença que nos reposicione enquanto coletivos (e
não como meros indivíduos, fragmentados) não hierarqui-
zados, como iguais em nossa invariável disparidade.
Pela ética que ora experimentamos, modos próprios de

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PARA OS DIREITOS HUMANOS

organização dos sentidos se deram e se esqueceram en-


quanto processos, afirmando-se a partir de certo momento
como fenômenos dados, naturais, pelos quais inúmeras
dinâmicas violentas de distribuição de poder, diferencia-
ção, exclusão e estigmatização foram (e são) legitimadas e
reforçadas. É preciso repensar a ética, atermo-nos, demo-
radamente, ao conteúdo dessa moral que a orienta e, em
dado momento, indagar os contornos da relação entre o
Direito e essas questões.

2. O que é direito e onde está o Direito?


Antes mesmo de adentrar na tentativa de oferecer uma
possível resposta para a pergunta, faz-se necessário de-
marcar o que estamos tratando aqui por Direito.
A palavra direito possui, com efeito, uma vasta polis-
semia, não sendo nosso objetivo aqui enfrentar essa plu-
ralidade semântica24. Vamos pinçar dois sentidos bastante
específicos e nos deter a eles no curso desta discussão.
Vamos tratar do Direito enquanto sistema jurídico, com-
plexidade de princípios e regras, técnicas e processos para
ajustamento social mirando a configuração de uma dada
ordem para um dado grupo em um determinado tempo e
espaço. Vamos também articular o sentido de direito como
aquele fragmento do Direito que os indivíduos e grupos
operacionalizam para conseguir se mover em sociedade.
Relacionando esses dois conceitos, Ferraz Junior diz que
“Direito é uma ciência que estuda o direito quer no sen-
tido de direito objetivo - conjunto de normas -, quer no
24 Sugerimos as leituras de Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito: técnica,
decisão, dominação, 2003; Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995; e Luis Alberto
Warat, Introdução geral ao Direito II, 2002.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

de direto subjetivo: faculdades”25. Para apresentar um con-


ceito de Direito como saber cientificamente organizado e
orientado para compreensão e controle da sociedade, o
autor articula dois conceitos: o de direito objetivo e o de
direito subjetivo. O primeiro é propriamente essa ideia de
sistema há pouco introduzida, enquanto o segundo é a
perspectiva de exercício, de experiência dos indivíduos e
grupos, não existindo direito subjetivo sem que haja sujei-
tos que o movimentem no tempo e no espaço.
Embora esses sejam conceitos tradicionalmente – ou
dogmaticamente – naturalizados na prática da academia e
dos tribunais jurídicos, aparentemente ainda escapa – aos
indivíduos e grupos alheios a esses espaços – uma com-
preensão precisa sobre o que seria esse direito que não se
confunde com o Direito.
Então, o que é o direito?
Ainda valendo-se de um tecnicismo jurídico, é possível
dizer que um direito seria equivalente a uma prerrogativa
exigível. Mas esta última o que seria? O sentido de prerro-
gativa veicula a ideia de conexão, de algo a alguém, isto
é, o direito seria uma prerrogativa quando alguém estaria
autorizado a exigir a experiência de algo, a usufruir esse
algo. Do latim prærogativa vem o sentido de exercício de
uma função a partir de uma determinada posição, de uma
profissão; as prerrogativas seriam específicas e divididas
considerando cada ofício romano. Mais adiante, a partir
das sociedades modernas pautadas pelos regimes de di-
reito, os indivíduos passaram a possuir prerrogativas ine-

25 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação,
2003, p. 38.

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PARA OS DIREITOS HUMANOS

rentes à sua condição como cidadãos, ou seja, passaram a


gozar de direitos.
Entretanto, dizer que um direito é uma prerrogativa não
é bastante para uma suficiente compreensão. Um direito é
uma prerrogativa que se apresenta como exigível.
Um direito é uma prerrogativa por estabelecer uma re-
lação entre alguém e algo, e entre essa relação e suas
possibilidades de exercício. Mas ele só pode assumir tal
configuração quando esse exercício se dá numa relação
com outrem, o que implica dizer que um direito somente
o é quando são identificados todos aqueles que se posi-
cionam fora dessa relação, isto é, aqueles que não podem
impedir o exercício do direito; aqueles que estando fora
da relação aqui tratada como direito encontram-se numa
situação de dever, numa posição que, a despeito de esta-
rem fora do direito de alguém, se encontram implicados
por aquela relação. Observa-se então uma circunstância
que no Direito é chamada de aspecto subjetivo, como
apontou Ferraz Junior, sendo subjetivo aquele direito a
partir do qual vislumbra-se um sujeito que possa exercê
-lo, vivenciá-lo socialmente. Porém, não basta dizer que
haverá um sujeito que poderá experimentá-lo, um direito
está sempre posto numa relação externa, numa dinâmica
interacional na qual minimamente dois sujeitos são consi-
derados: aquele a quem cabe exercer tal direito e aquele
contra quem se exige a possibilidade de exercício de tal
direito, sobre quem recai um dever. A partir dessa relação
é extraída a exigibilidade do direito enquanto condição
essencialmente interacional.
Da prerrogativa deriva um segundo elemento inerente

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ao direito, o marco referencial prévio de onde pode-se


extrair a relação entre o algo e o indivíduo que goza da
prerrogativa. Esse marco referencial ao qual nos referi-
mos é aquilo que Ferraz Junior chamou de direito objetivo.
Noutros termos, quando o indivíduo ou grupo anuncia ser
detentor de um direito, quando ostenta determinada prer-
rogativa, faz-se necessário que esta se encontre ancorada
num acordo prévio entre ele (sujeito ou grupo) e aquele
contra quem exige, ou seja, numa norma anterior. E trata-
mos aqui a norma como acordo prévio, considerando que
sem tal qualidade a exigibilidade perde – em alguma me-
dida – o contorno de legitimidade que pretende imprimir
no sentido de direito. Assim, deve haver um pacto prévio
a partir do qual a norma (marco referencial ou direito ob-
jetivo) conecta o indivíduo ou grupo que exige, e aquele
contra quem se exige (relação subjetiva).
É necessário pontuar que essa exigência pode se dar
de modos distintos. Observe-se, por exemplo, o direito
à propriedade de um determinado bem, como no caso
um veículo privado. Aquele sujeito que possui essa prer-
rogativa exigível isto é, o direito à propriedade do veícu-
lo assenta essa prerrogativa em algum código de direitos
civis prévio a seu exercício que estabelece as formas de
experiência desse direito e, nisto, observa-se a presença
do marco referencial que sustenta a prerrogativa. Mas esse
exercício só é viável quando se vislumbra a possibilida-
de de sua experiência nas múltiplas interações sociais, ou
seja, quando o sujeito que prerroga admite como possível
o exercício diante de todos os indivíduos e grupos sociais,
de modo que seu exercício não seja impedido ou violado,

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

por isso ele exige o respeito de todos aqueles que possam


obstruir sua prerrogativa. Nesse exemplo, a propriedade
é uma prerrogativa exigível em face de qualquer pessoa
que se encontre em condições de obstruir seu exercício.
De outra forma, um direito que esteja ancorado em um
determinado contrato (como um direito à entrega de pro-
duto comprado) somente pode ser exigido por aquele que
direta e imediatamente se vinculou.
Então, podemos realizar duas observações necessárias:
não há direito sem uma obrigação que dele derive, a saber,
todo direito encontra como correspondente um alguém
obrigado a realizar um dever, seja um sujeito determina-
do, seja uma coletividade determinada ou indeterminada;
e esse dever que se encontra como elemento negativo de
um direito pode manifestar-se como atos omissivos ou co-
missivos, isto é, como realizações concretas ou como abs-
tenções de um dado fazer, uma inércia. É o que se observa
com o direito à liberdade de pensamento. Para que seu
exercício seja adequado é necessário que o sujeito que o
prerroga não seja impedido ou obstruído. Para tanto, uma
coletividade indeterminada deve abster-se de causar-lhe
qualquer impedimento.
Pontuamos ainda um terceiro elemento do direito,
qual seja, sua invariável fragilidade: a ausência de uma
autoexecutoriedade, a contínua possibilidade de ruptura
na conexão prerrogada, de quebra das expectativas. Por
ser o direito sempre uma relação interacional (em que al-
guém detém o direito em face de outrem sobre quem recai
um dever) determinada por marcos referenciais prévios,
está sempre passível de alguma violação. Quaisquer dos

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­demais sujeitos localizados na relação na posição do dever


pode ocasionar uma impossibilidade a seu exercício, con-
figurando uma violação e, por conseguinte, imprimindo
sobre o direito uma inevitável fragilidade. Daí sua locali-
zação num sistema maior de conexões (Direito) conside-
rado como meio para assegurar seu exercício mesmo em
contextos de potencial violação.
Podemos então dizer que o direito a que nos referimos
para estas discussões é fenômeno social constituído por
três elementos: 1. sua condição interacional (elemento
subjetivo); 2. sua necessária ancoragem num marco re-
ferencial prévio26 (elemento objetivo); e 3. sua articulação
num sistema complexo de normas (Direito) em razão de
sua fragilidade. E, nesta medida, o direito – enquanto
prerrogativa exigível – não se confunde com o Direito,
como sistema de controle social.
O Direito, desse modo, é um sistema complexo quan-
do se propõe a articular o máximo possível de acordos,
macros e micros, mediatos e imediatos, interligando todos
os indivíduos e grupos e, em razão dessa condição, assu-
jeitando27 a todos os que se encontrem sob sua aplicação.
Assim, o sistema jamais será um dado; pelo contrário, ele
sempre será um processo de contínua reposição que so-
mente terá condições de funcionar regularmente quando
todos (ou mesmo apenas parcela) os direitos a partir dos

26 A despeito de uma aparente alusão ao positivismo jurídico, para que não reste dúvida, a anco-
ragem a que nos referimos aqui, com efeito, implica a conexão com as formas de ordenamento
jurídico, variáveis no tempo e espaço, a partir das quais opera-se a exigibilidade pelos sujeitos
e suas pretensões, não necessariamente ao modelo positivista, sendo este uma daquelas mani-
festações.
27 A respeito do uso do termo assujeitamento neste fragmento, intentamos tratar sobre as possibi-
lidades de conformação das identidades sociais a partir do controle do campo simbólico, como
se demonstrará mais adiante.

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PARA OS DIREITOS HUMANOS

quais ele se opera sejam sabidos por seus interlocutores.


E queremos dizer aqui mais especificamente que a ausên-
cia de (cons)ciência por todos os partícipes de uma dada
sociedade acerca dos elementos que constituem o direito
põe em risco a ideia de legitimidade (e sua regular funcio-
nalidade) e instrumentalização do Direito, subtraindo sua
condição de regime de regulação social, convertendo o
sistema em mero instrumento de dominação.

3. O que é um direito humano?


Considerando o conceito de direito em seus três
elementos, qualquer direito é invariavelmente huma-
no porque é por humanos ancorado em um marco re-
ferencial normativo prévio, elaborado por humanos e
exigido de igual modo – e tão somente – por humanos.
Então, qual seria a necessidade de veiculação de uma
terminologia que desse especificidade a algo que apa-
rentemente lhe seria inerente? Seria a expressão “direi-
tos humanos” uma redundância?
O termo direitos humanos não foi desta forma cunha-
do para fazer alusão à sua titularidade por humanos, não
se trata meramente de uma adjetivação, a qualidade ‘hu-
mana’ dos direitos foi delimitada como marco histórico
e axiológico relativo a um período determinado da ex-
periência jurídico-social no Ocidente de elaboração das
relações sociais.
Os direitos humanos se caracterizam como um conjun-
to específico de direitos, um rol de prerrogativas sem as
quais o sujeito (ou grupo) perde sua qualidade humana,
sendo reduzido à condição de coisa.

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Como pontua Comparato28, a elaboração do conceito


de pessoa (humana) da qual se vale a afirmação acima é
produto de um longo percurso intelectual, sendo a con-
tribuição de Immanuel Kant ponto de inflexão inevitável
nessa trajetória. Em Kant29 a pessoa passa a ser concebida
como sujeito de direitos universais, exigíveis em qualquer
lugar do mundo, anteriores e superiores a quaisquer orde-
namentos jurídicos vigentes.
A acepção de universalidade, anterioridade e supe-
rioridade dos direitos inerentes à pessoa seria resultado
do postulado ético kantiano segundo o qual as pessoas
se diferenciam das coisas em razão da vontade e da
racionalidade, sendo esta última, a seu turno, respon-
sável pelo processo de humanização. Para Kant, o ser
racional possui a habilidade de agir a partir de repre-
sentações30 de leis e princípios, de maneira que esse ser
racional – que representa a realidade com a qual intera-
ge –, manifesta vontade que é, com efeito, a razão or-
ganizada de uma maneira específica, denominada pelo
autor como razão prática. A representação de um prin-
cípio objetivo é, para Kant, a ordem ou comando por
meio do qual se formula um imperativo. Kant apresenta
a existência de duas espécies de imperativos, a primeira
delas, hipotético, pelo qual representa-se a necessidade
prática de ações que se configuram como meios para
realização de algo que se deseja; enquanto a segunda,
o imperativo categórico, representa-se uma ação neces-

28 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013, p. 33.
29 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007.
30 O ato de representar aqui delimitado é a substituição cognitiva de um fenômeno por outro, isto
é, uma dada coisa por outra. De modo que quando se dá uma representação, algo é substituído
por outra coisa, por uma ideia sobre aquele algo: a representação.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

sária em si mesma, obrigatória não pela finalidade que


dele se desdobra, mas por seu conteúdo mesmo.
O imperativo categórico – conceito central na filosofia
kantiana – seria equivalente a um dever de agir a partir da
consideração de princípios universais e a todos benéficos.
Pelo imperativo categórico uma ação se configuraria como
um dever em si mesmo quando fosse exigível por todos os
indivíduos, devendo o sujeito que pretende exigir colocar
primeiramente a si próprio na condição de obrigado, para
em seguida obrigar a outrem.
Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um
imperativo categórico no que respeita à vontade huma-
na, então tem de ser tal que, da representação daquilo
que é necessariamente um fim para toda a gente, por-
que é fim em si mesmo, faça um princípio objetivo da
vontade, que possa por conseguinte servir de lei prática
universal. O fundamento deste princípio é: A natureza
racional existe como fim em si. É assim que o homem
se representa necessariamente a sua própria existência;
e, neste sentido, este princípio é um princípio subjectivo
das acções humanas.31
O apreensão do imperativo categórico se daria pela ar-
ticulação racional de três fórmulas: a lei universal, o fim
em si mesmo e a figura do legislador universal. Pela Lei
Universal, Kant orienta o indivíduo: “age apenas segun-
do uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal (e agir) como se a máxima
da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei

31 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 69.

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universal da natureza”32; na fórmula Fim em si mesmo Kant


sinaliza que o agir deve ser “de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qual-
quer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio”33 e, por fim, pela fórmula do
Legislador Universal (ou da Autonomia da Vontade) deve
ser o agir “de tal maneira que tua vontade possa encarar a
si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal
através de suas máximas”34.
Em Kant, a “vontade é concebida como a faculdade de
se determinar a si mesmo a agir em conformidade com
a representação de certas leis”35, como manifestação da
ontogênese humana que resulta, propriamente, no proces-
so de humanização dos indivíduos e grupos pela via da
razão, sendo fixada nesse intervalo a diferença kantiana
entre pessoas e coisas.
O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional,
existe como fim em si mesmo, não só como meio para
o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrá-
rio, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem
a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres
racionais, ele tem sempre de ser considerado simultane-
amente como fim. [...] Os seres cuja existência depende,
não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm
contudo, se são seres irracionais, apenas um valor rela-
tivo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo
que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua

32 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 59.


33 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 69.
34 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 72.
35 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 67.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer


dizer como algo que não pode ser empregado como
simples meio e que, por conseguinte, limita nessa me-
dida todo o arbítrio (e é um objeto do respeito). Estes
não são portanto meros fins subjectivos cuja existência
tenha para nós um valor como efeito da nossa acção,
mas sim fins objetivos, quer dizer coisas cuja existência
é em si mesma um fim, e um fim tal que se não pode
pôr nenhum outro no seu lugar em relação ao qual essas
coisas servissem apenas como meios; porque de outro
modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse
valor absoluto.36
Pela razão os indivíduos e grupos alcançam, segundo
Kant, os imperativos categóricos que fundam e orientam
as condutas coletivas; pela vontade autodeterminada são
capazes de elaborar a si mesmos, constituindo-se como
humanos e, por conseguinte, diferenciando-se das coisas.
Ao diferenciar as pessoas das coisas, partindo da arti-
culação entre a racionalidade e vontade, Kant vai elucidar
ainda a diferença entre preço e dignidade. As coisas, por
não possuírem um fim em si mesmas, isto é, por serem
sempre meios pelos quais atinge-se algo para além de-
las, encontram-se sempre em uma relação e, por isso, por
possuírem um valor relativo, incide sobre elas a constante
oscilação de valor chamada por Kant de preço. Em con-
trapartida, a respeito das pessoas não há que se falar em
um valor variável a partir de relações, tendo em vista a
condição de fim em si mesma, própria aos humanos em
razão de sua ontogênese (racionalidade e vontade), o que

36 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 68-69.

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existe em se tratando da condição humana é aquilo que


Kant chama de dignidade37.
Por meio da dignidade, Kant fixa um marco ético infle-
xível para elaboração do direito, figurando como univer-
sal, anterior e superior a qualquer ordenamento jurídico.
Universal em razão do alcance a todos os humanos, a
despeito do tempo e lugar; anterior por ser prévio à ela-
boração de qualquer sistema de normas, uma vez que se
encontra impregnado na própria ontogênese humana; su-
perior por não estar sujeito à elaboração normativa de de-
terminado grupo para vir a existir enquanto condição hu-
mana, não sendo a dignidade algo percebido após acordo
social, mas, antes, elemento inerente à condição humana.
Fábio Konder Comparato organiza o percurso históri-
co ocidental de elaboração do conceito jurídico de pessoa
em um processo constituído por cinco fases distintas, si-
tuando a contribuição kantiana num terceiro momento.
Antes dele, no período axial prévio à primeira das fases,
os conceitos helênicos de pessoa relacionavam-se aos de-
lineamentos políticos, de modo que eram tratados como
detentores da condição humana aqueles que integraram
os grupos, sendo estranhos à ideia de pessoa todos os
localizados fora da coletividade imediata. Mais adiante o
autor destaca a primeira grande discussão sobre o concei-
to de pessoa já na era medieval, e não se dirigindo para
os sujeitos sociais, mas, antes, à figura mítica do Cristo,
ícone central do cristianismo. Durante o Primeiro Concí-
lio de Niceia, em 325, definiu-se que a pessoa de Cristo
possuía dupla natureza, sendo a um só tempo partícipe da

37 Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2007, p. 77.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

condição de homens e mulheres e também divino, inse-


rindo pela primeira vez nos debates sobre a pessoa uma
dimensão para além da experiência concreta social. Numa
segunda fase, no século VI, Severino Boécio, filósofo, po-
eta, estadista e teólogo romano, aprofunda o conceito me-
dievo ao afirmar que o âmago da condição de pessoa não
estaria na exterioridade da experiência e sim na substância
que caracterizaria o ser. A ideia então de igualdade entre
os indivíduos se assentaria na premissa de uma substância
comum a todos os homens e mulheres, sendo a pessoa
um composto de substância espiritual e corpo. A quarta
fase, após aquela em que Kant figura como expoente, é
marcada pelo reconhecimento do valor como elemento
constitutivo da pessoa. Comparato nos informa que a par-
tir desse período compreendeu-se que “a pessoa humana
é, ao mesmo tempo, o legislador universal, em função
dos valores éticos que aprecia, e sujeito que se submete
voluntariamente a essas normas valorativas”38, admitindo-
se então a pessoa não apenas como resultado de uma
elaboração racional e valorativa, mas um produto também
determinado pelos conteúdos axiológicos que atravessam
a experiência dos sujeitos.
Observa-se desde a terceira fase um distanciamento de
recursos ancorados em elementos extranaturais, religiosos
ou metafísicos para a construção da noção de pessoa.
Por fim, a última etapa, já na primeira metade do século
XX, busca uma reação aos processos de despersonalização
dos indivíduos, a saber, aos impactos das dinâmicas de de-
sumanização desdobradas nas sociedades capitalistas no

38 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013, p. 38.

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Ocidente. Busca-se conceituar a pessoa não como aquilo


que ela é capaz de performar, tendo em vista as distintas
e desiguais possibilidades de acesso e compreensão dos
conteúdos axiológicos e racionais. Nisto, a ideia de pessoa
não deve ser reduzida a personagem social que é capaz
de emergir da experiência, mas, antes, corresponde a um
campo de possibilidade singular inerente à condição hu-
mana, configurando o humano como “o único ser incom-
pleto pela sua própria essência”39.
A elaboração do conceito de pessoa e dos eventuais
direitos a ela inerentes não se limitou ao campo filosófico;
com efeito, o debate foi travado, ao longo dos séculos,
na história dos ordenamentos jurídicos ocidentais em di-
versos momentos. O que podemos pinçar aqui como ele-
mento necessário é o caráter local ou universal impresso
nas discussões e nas normas jurídicas delas derivadas, e
como ‘caráter’ estamos nos referindo ao esperado alcance
normativo da norma.
De acordo com os registros histórico-jurídicos40, o pri-
meiro documento europeu a tratar de direitos da pessoa
humana foi a Magna Carta de 1215, pelo Rei João Sem-Ter-
ra da Inglaterra. O documento possuía caráter eminente-
mente local, dirigindo-se não à totalidade da raça humana
mas sim ao grupo político local, versando sobre o direito
de escolha, equivalente hoje às liberdades laicas (liberdade
de consciência, de pensamento, crença e culto), direitos
tributários, constituindo nitidamente limitações ao direito
de tributar do soberano, além de direitos relacionados à

39 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013, p. 42.
40 Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 2013, p. 83 e s.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

propriedade, à economia e à aplicação de penas. Todos


eles delimitando um campo de prerrogativas no qual o
soberano não poderia adentrar.
A esse documento jurídico seguem-se outros de grande
relevância histórica, tais como a Lei de Habeas Corpus na
Inglaterra de 1679; a Declaração de Direitos (Bill of Rights)
na Inglaterra de 1689 e a Declaração de Independência
e Constituição dos Estados Unidos da América do Norte
em julho de 1776. Tais documentos possuíam como traço
comum a delimitação de direitos para seu povo interno,
isto é, a localidade, não dirigindo-se para uma generalida-
de externa ao grupo, prevendo inclusive grupos internos
que não teriam quaisquer direitos, como os escravos, por
exemplo, que eram reduzidos à condição de coisa, sendo
tal monstruosidade compatível com as delimitações jurídi-
cas de elaboração de direitos da pessoa. É com o marco da
Revolução Francesa que o alcance das delimitações jurídi-
cas dos direitos da pessoa pretende superar a localidade e
alcançar a universidade da condição humana.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen), em
1789 na França revolucionária, a despeito de referir-se a
si como documento elaborado por e para o povo francês,
se propõe a tratar de direitos universais de todos os ‘ho-
mens’, como se pode observar em fragmento do preâm-
bulo e no seu art.1º:
Representantes do Povo Francês, constituídos em As-
sembleia Nacional, considerando que a ignorância, o es-
quecimento ou o desprezo do direito humano são as
únicas causas dos infortúnios públicos e da corrupção

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dos Governos, resolveram expor, em uma Declaração


solene, os direitos naturais, inalienáveis e​​ sagrados
do Homem, para que esta Declaração, constantemente
apresentada a todos os membros do corpo social,
lembre constantemente os seus direitos e deveres [...]
Consequentemente, a Assembleia Nacional reconhece e
declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo,
os seguintes direitos do Homem e do Cidadão.
Art. 1º: Os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser
baseadas no bem comum41 [...] (Tradução nossa).
A construção lógico-jurídica do texto se dirige, à época,
apenas ao povo francês; no entanto dispara processos de
elaboração jurídica de normas que não se limitariam ape-
nas ao povo que a elabora, mas, por pretender tratar da
condição humana, pretende-se universalmente exigível.
A Revolução Francesa alterou a dinâmica dos estados
europeus, disparando processos de ruptura com os mo-
delos anteriores e iniciando aquilo que viria a ser chama-
do de democracias ocidentais e alterando o modo como
os Estados nacionais se relacionavam com seus cidadãos,
sendo exatamente nesse ínterim que o conteúdo elabora-
do para os ‘direitos do homem’ como “naturais” - ou seja,
41 “Les Représentants du Peuple Français, constitués en Assemblée Nationale, considérant que l’ig-
norance, l’oubli ou le mépris des droits de l’Homme sont les seules causes des malheurs publics
et de la corruption des Gouvernements, ont résolu d’exposer, dans une Déclaration solennelle,
les droits naturels, inaliénables et sacrés de l’Homme, afin que cette Déclaration, constamment
présente à tous les Membres du corps social, leur rappelle sans cesse leurs droits et leurs devoirs
; afin que les actes du pouvoir législatif, et ceux du pouvoir exécutif, pouvant être à chaque
instant comparés avec le but de toute institution politique, en soient plus respectés; afin que
les réclamations des citoyens, fondées désormais sur des principes simples et incontestables,
tournent toujours au maintien de la Constitution et au bonheur de tous [...] En conséquence, l’As-
semblée Nationale reconnaît et déclare, en présence et sous les auspices de l’Etre suprême, les
droits suivants de l’Homme et du Citoyen [...] Art. 1er. Les hommes naissent et demeurent libres
et égaux en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune.”

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

não derivados dos documentos jurídicos, mas anteriores a


eles e apenas por eles reconhecidos - passa a ser a técnica
mais utilizada nos Estados reorganizados pelas Constitui-
ções modernas pós-revolução.
Vieram os diversos estados europeus, veio a moder-
nidade com sua dinâmica própria de organização social,
veio a reestruturação da vida pela racionalidade, vieram as
revoluções industriais, instalou-se o capitalismo e a partir
dele as novas formas ocidentais de produção de guerra.
Fomos capazes de produzir os fenômenos da primeira e
segunda grande guerra.
Muitas são as particularidades das duas grandes guerras
protagonizadas pelos países ocidentais, mas dentre todas
elas, para a temática que ora discutimos, importa destacar
o modo de produção da noção de “inimigo” e a retirada
de direitos que se produziu a partir disso.
Até antes do capitalismo (propriamente antes da ra-
cionalidade moderna) os indivíduos percebiam-se muito
facilmente em suas identidades coletivas, de modo que
o inimigo era sempre o outro, o indivíduo e o grupo es-
tranho ao grupo social. A ideia coletivamente partilhada
sobre o inimigo do grupo recaía sobre o outro grupo e,
a despeito de os Estados atentarem contra direitos indivi-
duais e até mesmo negarem a certos grupos a condição
de pessoa, havia um limite para tais práticas: a considera-
ção do grupo interno como não inimigo, impedindo, por
exemplo, práticas de aniquilação em massa de grupos in-
ternos. É a partir das dinâmicas da Segunda Grande Guer-
ra que o Estado passa a desenvolver técnicas de controle
social que se dirigem à derrubada de todas as limitações

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normativas de proteção à pessoa, afastando todas as cons-


truções sócio-jurídicas relacionadas à ideia de direitos da
pessoa natural, em nome de urgências políticas pontuais;
autorizando-se a retirada massiva de direitos e, na sequên-
cia, o genocídio de grupos internos, a partir da construção
da ideia de um inimigo interno.
A legitimação dos processos genocidas era parte indis-
sociável do processo de aniquilação dos direitos e, em
consequência, das pessoas propriamente: a coisificação
humana. Era necessário que o grupo cultivasse gradativa-
mente o desprezo e uma multiplicidade de estigmas sobre
grupos específicos, de modo que a retirada de seus direi-
tos não fosse sentida como um prejuízo coletivo e, sim,
exclusivamente do grupo afetado: dos inimigos internos.
Ocorre que, ao se considerar a inexistência de rol de prer-
rogativas mínimas contra as quais o Estado não poderia
invadir, ter-se-ia (novamente) a possibilidade de o Estado
dispor livremente do sujeito para o alcance de supostos
interesses coletivos, dos quais obviamente o indivíduo e
grupo não participariam, borrando assim sua qualidade
humana, manipulando os caracteres desta e deslocando-a
para a condição de coisa, mirando o alcance de fins estra-
nhos ao sentido de dignidade (ao indivíduo e ao grupo).
A ideia de que uma pessoa titulariza um rol de prerro-
gativas intransponíveis por outros indivíduos e pelo Es-
tado implica exatamente uma limitação ao arbítrio, existe
para que não se avance ao ponto de total desconsideração
de direitos e consequente desprezo à vida (como último
marco) reduzindo a pessoa à condição de meio para aten-
dimento de interesses de outrem. Imediatamente após a

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Segunda Grande Guerra a comunidade jurídica europeia,


e em parte a americana, dedicou-se a retomar a ideia de
direitos da pessoa humana como marco limitador dos ar-
bítrios estatais absolutos, como aqueles presenciados pelas
práticas de guerra, sendo esse o contexto de elaboração
da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Em 10 de dezembro de 1948 a Assembleia Geral das
Nações Unidas aprova a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), um documento histórico de valor jurí-
dico supranacional, isto é, cujo alcance se estabelece para
além dos limites de um único Estado Nacional a partir do
momento em que o país se torna signatário do Tratado.
Nessa medida, a DUDH carregava em seu conteúdo tanto
a historicidade dialética do pensamento sobre a condição
da pessoa, quanto as marcas do aviltamento da pessoa
humana refletidas numa perspectiva de enfrentamento a
processos de coisificação humana. O conteúdo do docu-
mento reflete, com efeito, esses ideais que originam a pró-
pria Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em
24 de outubro de 1945, no contexto do pós-guerra, por 51
países42, num esforço internacional de combinação de in-
42 Foram os 51 membros fundadores: África do Sul (1945), Arábia Saudita (1945), Argenti-
na (1945), Austrália (1945), Belarus (como URSS) (1945), Bélgica (1945), Bolívia (1945), Brasil
(1945), Canadá (1945), Chile (1945), China (como República da China) (1945), Colômbia (1945),
Costa Rica (1945), Cuba (1945), Dinamarca (1945), Egito (como República Árabe Unida) (1945),
El Salvador (1945), Equador (1945), Estados Unidos da América (1945), Etiópia (1945), Federação
Russa (como URSS) (1945), Filipinas (1945), França (1945), Grécia (1945), Guatemala (1945),
Haiti (1945), Holanda (1945), Honduras (1945), Índia (1945), Irã (1945), Iraque (1945), Líbano
(1945), Libéria (1945), Luxemburgo (1945), México (1945), Nicarágua (1945), Noruega (1945),
Nova Zelândia (1945), Panamá (1945), Paraguai (1945), Peru (1945), Polônia (1945), Reino Uni-
do (1945), República Dominicana (1945), Síria (como República Árabe Unida) (1945), Turquia
(1945), Ucrânia (como URSS) (1945), Uruguai (1945), Venezuela (1945), Checoslováquia (não
mais existente) (1945), Jugoslávia (não mais existente) (1945). No ano de publicação desta
obra (2019) a ONU contava 193 países membros, listados com nome e data de entrada
na organização internacional: Afeganistão (19 de novembro de 1946), África do Sul (7 de
novembro de 1945), Albânia (14 de dezembro de 1955), Alemanha (18 de setembro de 1973),
Andorra (28 de julho de 1993), Angola (1 de dezembro de 1976), Antígua e Barbuda (11 de
novembro de 1981), Arábia Saudita (24 de outubro de 1945), Argélia (8 de outubro de 1962),

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Argentina (24 de outubro de 1945), Armênia (2 de março de 1992), Austrália (1 de novembro


de 1945), Áustria (14 de dezembro de 1955), Azerbaijão (2 de março de 1992), Bahamas (18 de
setembro de 1973), Bahrein (21 de setembro de 1971), Bangladesh (17 de setembro de 1974),
Barbados (9 de dezembro de 1966), Bélgica (27 de dezembro de 1945), Belize (25 de setembro
de 1981), Benim (20 de setembro de 1960), Bielorrússia (24 de outubro de 1945), Bolívia (14 de
novembro de 1945), Bósnia e Herzegovina (22 de maio de 1992), Botswana (17 de outubro de
1966), Brasil (24 de outubro de 1945), Brunei (21 de setembro de 1984), Bulgária (14 de dezem-
bro de 1955), Burkina Faso (20 de setembro de 1960), Burundi (18 de setembro de 1962), Butão
(21 de setembro de 1971), Cabo Verde (16 de setembro de 1975), Camarões (20 de setembro
de 1960), Camboja (14 de dezembro de 1955), Canadá (9 de novembro de 1945), Catar (21 de
setembro de 1971), Cazaquistão (2 de março de 1992), Chade (20 de setembro de 1960), Chile
(24 de outubro de 1945), China (24 de outubro de 1945), Chipre (20 de setembro de 1960), Co-
lômbia (5 de novembro de 1945), Comores (12 de novembro de 1975), República Democrática
do Congo (20 de setembro de 1960), República do Congo (20 de setembro de 1960), Coreia
do Norte (17 de setembro de 1991), Coreia do Sul (17 de setembro de 1991), Costa do Marfim
(20 de setembro de 1960), Costa Rica (2 de novembro de 1945), Croácia (22 de maio de 1992),
Cuba (24 de outubro de 1945), Dinamarca (24 de outubro de 1945), Djibouti (20 de setembro
de 1977), Dominica (18 de dezembro de 1978), Egito (24 de outubro de 1945), Emirados Árabes
(9 de dezembro de 1971), El Salvador (24 de outubro de 1945) Equador (21 de dezembro de
1945), Eritreia (28 de maio de 1993), Eslováquia (19 de janeiro de 1993), Eslovênia (22 de maio
de 1992), Estados Unidos (24 de outubro de 1945), Estónia (17 de setembro de 1991), Etiópia (13
de novembro de 1945), Fiji (13 de outubro de 1970), Filipinas (24 de outubro de 1945), Finlândia
(2 de dezembro de 1955), França (24 de outubro de 1945), Gabão (20 de setembro de 1960),
Gâmbia (21 de setembro de 1965), Gana (8 de março de 1957), Geórgia (31 de julho de 1992)
Granada (17 de setembro de 1974), Grécia (25 de outubro de 1945), Guiana (20 de setembro de
1966), Guatemala (21 de novembro de 1945), Guiné (12 de dezembro de 1958), Guiné-Bissau
(17 de setembro de 1974), Guiné Equatorial (12 de novembro de 1968), Haiti (24 de outubro
de 1945), Honduras (17 de dezembro de 1945), Hungria (14 de dezembro de 1955), Iêmen
(30 de setembro de 1947), Islândia (19 de novembro de 1946), Índia (30 de outubro de 1945),
Indonésia (28 de setembro de 1950), Irão (24 de outubro de 1945), Iraque (21 de dezembro de
1945), Irlanda (14 de dezembro de 1955), Israel (11 de maio de 1949), Itália (14 de dezembro
de 1955), Jamaica (18 de setembro de 1962), Japão (18 de dezembro de 1956), Jordânia (14
de dezembro de 1955), Kiribati (14 de setembro de 1999), Kuwait (14 de maio de 1963), Laos
(14 de dezembro de 1955), Lesoto (17 de outubro de 1966), Letônia (17 de setembro de 1991),
Líbano (24 de outubro de 1945), Libéria (2 de novembro de 1945), Líbia (14 de dezembro de
1955), Liechtenstein (18 de setembro de 1990), Lituânia (17 de setembro de 1991), Luxemburgo
(24 de outubro de 1945), Macedônia do Norte (8 de abril de 1993), Madagáscar (20 de setembro
de 1960), Malawi (1 de dezembro de 1964), Malásia (17 de setembro de 1957), Maldivas (21 de
setembro de 1965), Mali (28 de setembro de 1960), Malta (1 de dezembro de 1964), Marrocos
(12 de novembro de 1956), Ilhas Marshall (17 de setembro de 1991), Mauritânia (27 de outu-
bro de 1961), Maurícia (24 de abril de 1968), México (7 de novembro de 1945), Mianmar (19
de abril de 1948), Estados Federados da Micronésia (17 de setembro de 1991), Moldávia (2 de
março de 1992), Mónaco (28 de maio de 1993), Mongólia (27 de outubro de 1961), Montenegro
(28 de junho de 2006), Moçambique (16 de setembro de 1975), Namíbia (23 de maio de 1990),
Nauru (14 de setembro de 1999), Nicarágua (24 de outubro de 1945) Níger (20 de setembro de
1960), Nigéria (7 de outubro de 1960), Noruega (27 de novembro de 1945), Nova Zelândia (24
de outubro de 1945), Omã (7 de outubro de 1971), Países Baixos (10 de dezembro de 1945),
Paquistão (30 de setembro de 1947), Palau (15 de dezembro de 1994), Panamá (13 de novembro
de 1945), Papua-Nova Guiné (10 de outubro de 1975), Paraguai (24 de outubro de 1945), Peru
(31 de outubro de 1945), Polónia (24 de outubro de 1945), Portugal (14 de dezembro de 1955),
Quênia (16 de dezembro de 1963), Quirguistão (2 de março de 1992), Reino Unido (20 de no-
vembro de 1945), República Centro-Africana (20 de setembro de 1960), República Checa (19 de
janeiro de 1993), República Dominicana (24 de outubro de 1945), Roménia (14 de dezembro de
1955), Ruanda (18 de setembro de 1962), Rússia (24 de outubro de 1945), Ilhas Salomão (17 de
setembro de 1978), San Marino (2 de março de 1992), São Cristóvão e Névis (23 de setembro de
1983), Santa Lúcia (18 de setembro de 1979), São Tomé e Príncipe (16 de setembro de 1975), São

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

teresses para correção dos danos e reconstrução dos sen-


tidos sócio-jurídicos orientados para o convívio pacífico e
potencializador da experiência humana.
A DUDH parte do conceito de dignidade buscando o
enfrentamento normativo dos processos de coisificação,
propondo então delimitar um rol mínimo de direitos ine-
rentes à condição humana. Como se observa nos dois
fragmentos do preâmbulo e nos arts. I e II, abaixo trans-
critos e na observação:
Considerando que o reconhecimento da dignidade ine-
rente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo [...] Conside-
rando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram
a consciência da Humanidade e que o advento de um
mundo em que todos gozem de liberdade de palavra, de
crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da
necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração
do ser humano comum.
art.I: Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos. São dotados de razão e cons-

Vicente e Granadinas (16 de setembro de 1980), Samoa (15 de dezembro de 1976), Senegal (28
de setembro de 1960), Sérvia (1 de novembro de 2000), Serra Leoa (17 de setembro de 1961),
Seicheles (21 de setembro de 1976), Singapura (21 de setembro de 1965), Síria (24 de outubro de
1945), Somália (20 de setembro de 1960), Sri Lanka (14 de dezembro de 1955), Suazilândia (24
de setembro de 1968), Sudão (12 de novembro de 1956), Sudão do Sul (14 de julho de 2011),
Suécia (19 de novembro de 1946), Suíça (10 de setembro de 2002), Suriname (4 de dezembro
de 1975), Tajiquistão (2 de março de 1992), Tailândia (16 de dezembro de 1946), Tanzânia (14
de dezembro de 1961), Timor-Leste (27 de setembro de 2002), Togo (20 de setembro de 1960),
Tonga (14 de setembro de 1999), Trinidad e Tobago (18 de setembro de 1962), Tunísia (12 de
novembro de 1956), Turquemenistão (2 de março de 1992), Turquia (24 de outubro de 1945),
Tuvalu (5 de setembro de 2000), Ucrânia (24 de outubro de 1945), Uganda (25 de outubro de
1962), Uruguai (18 de dezembro de 1945), Uzbequistão (1 de março de 1992), Vanuatu (15 de
setembro de 1981), Venezuela (15 de novembro de 1945), Vietnã (20 de setembro de 1977),
Zâmbia (1 de dezembro de 1964), Zimbabwe (25 de agosto de 1980).

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

ciência e devem agir em relação uns aos outros com


espírito de fraternidade [...]
art. II, 1: Todo ser humano tem capacidade para go-
zar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nas-
cimento, ou qualquer outra condição.
Ao longo da Declaração o rol de direitos é constituído
todo ele a partir dos pilares da dignidade e do enfrenta-
mento de práticas de reificação humana, de maneira que
verificamos os seguintes conteúdos: o direito de ter di-
reitos e a exigi-los em qualquer lugar (art. II, 1: art.VI),
direito à não discriminação (art. II, 2: art. VII), direito à
vida, liberdade e segurança (art. III), absoluta vedação à
escravidão (art. IV), vedação à tortura (art. V), direito a
instrumentos processuais de enfrentamento e reparação
de atos lesivos aos DH (art. VIII), direito a julgamento
justo e ao não exílio (art. IX: art. X: art. XI), direito à priva-
cidade e proteção da honra (art. XII), direito de ir e vir e
de fixar residência (art. XIII), direito ao asilo político (art.
XIV), direito a uma nacionalidade e à alteração desta (art.
XV), direito à constituição da família (art. XVI), direito à
propriedade privada (art. XVII), direito às liberdades de
consciência, pensamento e religião (art. XVIII), liberdade
de expressão e reunião (art. XIX: art. XX), direito à escolha
de representantes e à própria participação das democra-
cias representativas (art. XXI), direito, enquanto membro
da sociedade, ao acesso à cooperação internacional (art.
XXII), direito ao trabalho (art. XXIII), direito ao repouso

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

e ao lazer (art. XXIV), d­ ireito a um padrão qualitativo de


vida (art. XXV), direito à educação gratuita orientada ao
pleno desenvolvimento da personalidade (art. XXVI), di-
reito de acesso à cultura (art. XXVII, 1), direito à proteção
autoral (art. XXVII, 2).
A DUDH também elenca, no rol dos direitos, a lógica do
desdobramento do dever, ao mencionar em seu art. XXIX
o dever, de todo ser humano, para com a comunidade no
intuito da preservação dos conteúdos da Declaração.
Embora a DUDH se anuncie como universal e inerente
à condição humana (art. II, I), os direitos humanos sempre
poderão ser apenas um reflexo do tempo em que se fala,
uma representação da experiência daqueles que falam; re-
sultado da capacidade cognitiva humana em um determi-
nado tempo e lugar e, nesse caso que ora discutimos, o
lugar histórico ocidental pós-guerra. Desse modo, os con-
teúdos da ideia de pessoa, de dignidade e propriamente
o rol fixado sempre estará em uma condição de oscilação,
em razão dos ventos do tempo e espaço que sobre eles in-
cidem, carregando, invariavelmente, seleções ideológicas.
É o que alguns autores vão tratar como o aspecto colonial
dos direitos humanos, como veremos um pouco adiante.

4. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais:


distâncias, proximidades e periferia
É comum a existência de alguma confusão no uso das
terminologias “Direitos humanos” e “Direitos fundamen-
tais”. Apesar de alguns autores entenderem serem sinôni-
mas, as expressões tratam de conteúdos jurídicos distintos.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

A despeito de estarem intimamente relacionados, a dife-


renciação é um importante instrumento para a experiência
de seus conteúdos normativos no cotidiano.
André Tavares43, Dimitri Dimoulis e Leonardo Mar-
tins44, ao tratarem sobre o conceito de Direitos funda-
mentais, comentam que a terminologia por vezes é vei-
culada como sinônimo para “liberdades individuais”,
“liberdades públicas”, “liberdades fundamentais”, “direi-
tos humanos”, “direitos constitucionais”, “direitos públi-
cos subjetivos”, “direitos da pessoa humana”, “direitos
naturais”, “direitos subjetivos”, sendo tais usos equivo-
cados e imprecisos. Como dizem os autores, ao menos
uma diferença clara pode ser delimitada entre os DH e
os DF. Enquanto os Direitos Humanos correspondem
às normas suprapositivas, os Direitos Fundamentais são
aqueles que se encontram positivados em um dado orde-
namento jurídico. Dito de outra forma, uma norma posi-
tivada (Direitos Fundamentais) é aquela que foi objeto
de um processo legislativo e incorporou textos legais,
podendo ser tais leis tanto a Constituição quanto normas
infraconstitucionais, todas elas com alcance normativo
adstrito ao território daquele país que as editou. Já uma
norma suprapositivada não possui as mesmas dinâmicas
de elaboração e efetividade, isso porque ela surge dos
diálogos normativos internacionais realizados através da
elaboração de Tratados, Acordos e outras normativas ela-
boradas por meio de colaborações de múltiplas nações,
tendo sua efetividade, ou seja, sua exigibilidade, iniciada
quando cada país se torna signatário.
43 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, 2015, p. 342.
44 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 39.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

As normas suprapositivas (DH) são consideradas como


posicionadas acima das normas positivas internas uma vez
que se destinam não apenas a um Estado específico, mas
a uma coletividade de nações. Desse modo, se retomar-
mos o conceito de direito desenvolvido no início destas
colocações, quando dissemos ser o direito um fenômeno
social constituído por três elementos – sua condição inte-
racional (elemento subjetivo); sua necessária ancoragem
num marco referencial normativo prévio (elemento obje-
tivo); sua articulação num sistema complexo de normas
(Direito) em razão de sua contínua fragilidade –, podemos
entender que um direito humano seria delimitado como
condição interacional definida a partir da relação entre o
sujeito (individual ou coletivo) e todos os Estados signatá-
rios de uma dada norma internacional, sendo esta norma
o marco referencial no qual se ancora o direito para fins
de exercício e exigibilidade, configurando-se ainda o siste-
ma normativo internacional aquele complexo de normas,
isto é, o Direito a partir do qual são operacionalizadas as
formas de controle do exercício de tal direito.
Por isso um direito humano pode ser exigido por um
sujeito determinado – como prerrogativa exigível – contra
país signatário que eventualmente venha causar óbice ou
deixe de efetivar as condições de exercício para tal direi-
to. Ele – diferentemente do direito fundamental – não se
circunscreve aos limites jurídicos de um determinado país,
tendo seu alcance determinado pela adesão dos Estados
a seu conteúdo no âmbito do Direito Internacional. O di-
reito fundamental, por sua vez, é exigível por sujeito que
o prerroga contra o Estado que o institui e eventualmente

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

deixe de oferecer as condições de exercício ou mesmo


que venha a violá-lo ou ainda em face de outros sujeitos
que possam causar impedimento a seu exercício.
Na história dos ordenamentos jurídicos ocidentais na
modernidade o conteúdo dos DH, além de sua autonomia
normativa na esfera internacional, opera como centro de
influência para elaboração e alargamento do conteúdo dos
DF nos países participantes de organismos internacionais.
Os direitos fundamentais equivalem a “um mínimo de
direitos garantidos, podendo o legislador ordinário acres-
centar outros, mas não tendo a possibilidade de abolir os
tidos como fundamentais” delimitados como “direitos pú-
blico-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos
em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram
caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como
finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da
liberdade individual”45.
Essa espécie de direito, fundamental, figura como um
comando dirigido inicialmente ao Estado e em seguida a
todos os demais indivíduos, limitando suas atuações de
modo a não serem violadas determinadas prerrogativas
dos sujeitos. Sendo este mesmo um dos “fundamentos”
dos Estados modernos e da própria modernidade: a limi-
tação da atuação estatal. Os conteúdos positivados para
esses direitos, no entanto, não surgem de maneira uni-
forme, nem no tempo nem no espaço, isto é, em cada
país esses conteúdos vão sofrendo alterações ao longo de
sua própria história jurídica, tendo cada país sua própria
jornada construtiva. Como destacam Dimoulis e Martins,
45 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 41.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

para esses processos históricos de alteração dos conteúdos


dos direitos fundamentais, utilizam-se algumas expressões
como gerações, dimensões, famílias, etc., sugerindo a pro-
gressividade na elaboração dos direitos fundamentais.
Tal progressividade comumente fixa a ideia de uma
elaboração gradativa que parte do reconhecimento “em
primeiro lugar [de] direitos clássicos individuais e políti-
cos” seguidos dos “direitos sociais e, por último, os novos
direitos difusos e/ou coletivos como os de solidariedade,
ao desenvolvimento econômico (sustentável) e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, havendo também
direitos de quarta geração relacionados ao cosmopolitis-
mo e à democracia universal”46. Desse modo, quando se
veicula a expressão “primeira, segunda, terceira gerações
de direitos humanos”, nutre-se uma ideia de uma sepa-
ração cronológica de reconhecimento jurídico para dife-
rentes direitos, o que, como apontam Dimoulis e Martins,
não corresponde precisamente com os percursos histó-
ricos. Com efeito, alguns países reconheceram duas ou
mais “gerações” em suas constituições desde os primei-
ros momentos dos Estados modernos, não provendo sua
efetividade, ou fazendo-o de modo não uniforme. Alguns
outros textos constitucionais já são promulgados com todo
um rol de direitos que perpassa por todas essas gerações
– como o caso da Constituição Brasileira de 1988 – não ha-
vendo, em um sentido estrito, que se falar em gerações de
direitos fundamentais no Brasil. Com efeito, a evolução do
reconhecimento dos direitos se verifica mais no plano da
efetividade do que, propriamente, no da positivação. Por

46 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 22.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

isso, seria melhor, como sugerem os autores, a utilização


de uma terminologia que privilegiasse não uma diferencia-
ção cronológica (como gerações), mas outra que mirasse a
qualidade que agrupa os direitos.
Desse modo, Dimoulis e Martins47 categorizam os di-
reitos fundamentais em quatro grupos48 a partir de seus
status específicos: 1. direitos (fundamentais) de status ne-
gativo; 2. direitos (fundamentais) de status positivo (ou
sociais); 3. direitos (fundamentais) de status políticos e; 4.
direitos (fundamentais) de status coletivos.
O status49 a que se referem esses autores é a qualidade
singular que delimita um determinado conjunto de direi-
tos. Assim, quando tratam dos direitos negativos, apontam
para aqueles direitos que somente podem ser regularmen-
te exercidos em razão de uma não interferência do Estado,
sendo, nesse contexto, ‘negativa’ a atuação estatal para
que se viabilize o exercício de direitos específicos (são
considerados direitos desse grupo, pela maioria dos auto-
res jurídicos, o direito à vida, à liberdade de locomoção, à
expressão, às liberdades laicas, à associação, etc.). O nú-
cleo distintivo dessa categoria, segundo Dimoulis e Mar-
tins, está na “proibição imediata de interferência imposta
ao Estado, [...] pois gera a obrigação negativa endereçada
ao Estado, a obrigação de deixar de fazer algo”50.
47 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 49 e s.
48 André Ramos Tavares oferece uma categorização distinta dessa tratada por nós. Para o autor, os
direitos humanos podem ser divididos entre direitos de primeira dimensão (direitos negativos
das liberdades, sendo incluídos aqui os direitos políticos), os direitos de segunda dimensão (os
direitos sociais), os direitos de terceira dimensão (sendo aqui posicionados os direitos coletivos)
e os direitos de quarta dimensão (considerados por Tavares como aqueles relacionados ao
acesso à democracia, pluralismo político e à informação). Ver Curso de direito constitucional,
2015, p. 350-355.
49 Como já mencionado, a classificação a seguir é articulada em outros autores, valendo dos termos
“famílias”, “gerações” ou “dimensões”.
50 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 51.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Considerando esse conceito classificatório, temos po-


sitivado ao longo da Constituição promulgada em 1988 o
seguinte conjunto de direitos negativos ou individuais:
[...] direito à vida (CF, art.5º, caput); direito à igualdade
(CF, art. 5º, caput); direito à legalidade51 (CF, arts. 5º, II,
37, caput, 84, IV); direito à não discriminação (CF, art.
3º, IV: art. 5º, XLI); direito às liberdades públicas, situ-
ando-se dentre elas as liberdades laicas: liberdade de
consciência e de crença (CF, art.5º, VI, primeira parte),
livre exercício dos cultos religiosos (CF, art. 5º, VI, segun-
da parte), proteção aos locais de culto e a suas liturgias
(CF, art.5º, VI, última parte), igualdade entre os cidadãos
distinguidos a partir do elemento religioso (CF, art. 5º,
caput, art. 1º, II). O direito à prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação co-
letiva (CF, art. 5º, VII), à não privação ou cerceamento
de direitos em razão do elemento religioso (CF, art. 5º,
VIII, primeira parte), direito à erradicação da marginali-
zação e redução das desigualdades sociais marcadas ou
determinadas pelo elemento religioso (CF, art. 3º, III);
direito à liberdade de profissão (CF, art. 5º, XIII); direito à
liberdade de informação (CF, art. 5º, XIV, XXXIII: art.220,
§1º: lei n.12.527/2011: lei n.5.250/1967); direito de acesso
à informação e sigilo da fonte (CF, art. 5º, XIV); direito à

51 No Direito brasileiro existem três formas distintas de legalidade ou, como prefere a dogmática
jurídica, três acepções distintas para o princípio da legalidade: a legalidade civil, a legalidade
administrativa e a legalidade penal. A legalidade civil implica a possibilidade de realização de
atos desde que não estejam vedados no código civil e nas leis civilistas esparsas, isto é, a norma
civil trata de elencar situações vedadas sendo todas as demais hipóteses possíveis, sendo essa
margem criativa a legalidade civil. A legalidade administrativa, em caminho diametralmente
oposto, é observada quando os atos da administração pública ficam adstritos especificamente
àquilo que está estabelecido na norma administrativa, não podendo – salvo casos excepcionais –
a administração criar possibilidades, devendo agir dentro dos limites fixados na norma. Por fim,
a legalidade penal determina que somente serão considerados como crimes aquelas condutas
fixadas em lei penal.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

reunião (CF, art. 5º XVI); direito à associação (CF, art. 5º,


XVII, XVIII, XIX); direito à locomoção (CF, art. 5º XV);
direito de resposta (CF, art. 5º, V); inviolabilidade da in-
timidade, vida privada, honra e imagem (CF, art. 5º X);
inviolabilidade de domicílio (CF, art. 5º, XI); direito ao
sigilo52 (CF, art. 5º, XII: lei n. 9.296/1996); direito à pro-
priedade privada (CF, art. 5º, XXII: XXIII, 170, 182, §2º,
186, caput: art. 5º, XXIV); direito à autoria intelectual e
imaterial (CF, arts. 5º, XXVII, XXVIII, a, b); direito à pro-
teção à propriedade industrial (CF, art. 5º, XXIX); direito
à herança (CF, art. 5º, XXX); direito à inafastabilidade da
jurisdição (CF, art. 5º XXXV); direito ao devido processo
legal53 (CF, art. 5º, LIV); direito à estabilidade das relações
jurídicas (CF, art. 5º, XXXVI); direito ao Tribunal do Júri e
sua soberania (CF, art. 4º XXXVIII, c); proibição à tortura
(CF, 5º, III); direito ao Direito Constitucional Penal:
direito à presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), direi-
to à legalidade penal estrita (CF, art. 5º, XXXIX), vedação
à retroatividade da lei penal salvo em benefício do réu
(CF, art. 5º, XL), vedação à pena de morte, perpétua,
cruel, ao trabalho forçado e ao banimento (CF, art. 5º,
XLVII, alíneas), direito à individualização e cumprimento
de pena em estabelecimentos separados conforme na-
tureza do delito (CF, art. 5º, XLIII), direito de não ser

52 Sigilos de correspondência, das comunicações telegráficas, das comunicações de dados (bancário


e fiscal), das comunicações telefônicas e o sigilo das comunicações telemáticas.
53 Na dogmática jurídica, o Devido Processo Legal assume a condição de princípio jurídico, isto é,
uma espécie de norma que orienta a interpretação e aplicação de outras normas regras. Nesse
contexto dogmático, desdobram-se do direito-princípio do Devido Processo Legal outros princí-
pios (ou subprincípios): princípio da isonomia (art. 5º, caput, e inciso I); princípio implícito do
duplo grau de jurisdição; princípio implícito da razoabilidade; princípios do juiz e do promotor
natural (art. 5º, XXXVII e LIII); princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV); prin-
cípio da proibição da prova ilícita (art. 5º, LVI); princípio da motivação das decisões (art. 93, IX
e X); princípio da publicidade (arts. 5º, LX: 93, IX); princípio da razoável duração do processo
(art. 5º, LXXVII).

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

preso salvo em flagrante delito ou por ordem judicial


escrita e fundamentada (CF, art. 5º, LXI), direito do preso
à comunicação com juiz competente, familiares ou pes-
soa por ele indicada (CF, art. 5º, LXII), direito ao preso
de informação sobre seus direitos, inclusive o direito de
permanecer calado e direito à assistência familiar e de
advogado (CF, art. 5º, LXIII), direito ao relaxamento ime-
diato de prisão ilegal (CF, art. 5º, LXV), direito de não
ser levado à prisão nas hipóteses em que a lei admitir
a liberdade provisória, com ou sem fiança (CF, art. 5º,
LXVI), direito a não ser preso por dívida civil, salvo o
caso do responsável por inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia (CF, art. 5º, LXVII),
direito à indenização pelo erro judiciário e pelo excesso
de prisão (CF, art. 5º, LXXV).
Os direitos fundamentais de status positivo ou sociais
são aqueles que para serem exercidos demandam uma
prestação positiva estatal, isto é, uma atuação do Estado
sem a qual o conteúdo exigível torna-se esvaziado. Essa
prestação positiva estatal subdivide-se tanto em atos pro-
priamente estatais, quando ele mesmo entrega aos sujeitos
uma determinada prestação; ou quando o Estado regula
a prestação de outros atores sociais, como ocorre com a
normatização das relações de trabalho54.
Tavares55 diz que esse grupo de direitos fundamentais,
caracterizado pelas prestações positivas estatais, os direi-
tos sociais, subdivide-se em cinco categorias: 1. os direitos
sociais dos trabalhadores; 2. os direitos sociais da seguri-
dade social; 3. os direitos sociais de natureza econômica;
54 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 53.
55 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, 2015, p. 706 e s.

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4. os direitos sociais da educação e cultura; 5. os direitos


sociais de segurança. Todos eles estão positivados ao lon-
go da Carta de 88, como se observa abaixo:
[são direitos sociais]: a educação, a saúde, a alimenta-
ção, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a se-
gurança, a previdência social, a proteção à maternida-
de e à infância, à assistência aos desamparados (CF, art.
6º) disciplinados em outros fragmentos constitucionais,
a saber; 1. os direitos sociais dos trabalhadores: di-
reito à relação de emprego protegida contra despedida
arbitrária ou sem justa causa (CF, art.7º, I); direito a se-
guro-desemprego, em caso de desemprego involuntário
(CF, art.7º, II); direito a fundo de garantia do tempo de
serviço (CF, art.7º, III); direito a salário mínimo, capaz de
atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua fa-
mília com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social, com
reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisi-
tivo (CF, art.7º, IV); direito a um piso salarial proporcio-
nal à extensão e à complexidade do trabalho (CF, art.7º,
V); direito à irredutibilidade do salário ressalvado o dis-
posto em convenção ou acordo coletivo (CF, art.7º, VI);
direito à garantia de salário, nunca inferior ao mínimo,
para os que percebem remuneração variável (CF, art.7º,
VII); direito ao décimo terceiro salário com base na re-
muneração integral ou no valor da aposentadoria (CF,
art.7º, VIII); direito à remuneração do trabalho noturno
superior à do diurno (CF, art.7º, IX); direito à proteção
do salário, constituindo crime sua retenção dolosa (CF,
art.7º, X); direito à participação nos lucros, ou resultados,

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, par-


ticipação na gestão da empresa (CF, art.7º, XI); direito a
salário-família pago em razão do dependente do traba-
lhador de baixa renda nos termos da lei (CF, art.7º, XII);
direito à duração do trabalho normal não superior a oito
horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a
compensação de horários e a redução da jornada, me-
diante acordo ou convenção coletiva de trabalho (CF,
art.7º, XIII); direito à jornada de seis horas para o traba-
lho realizado em turnos ininterruptos de revezamento,
ressalvada a negociação coletiva (CF, art.7º, XIV); direito
ao repouso semanal remunerado, preferencialmente aos
domingos (CF, art.7º, XV); direito à remuneração do ser-
viço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta
por cento à do normal (CF, art.7º, XVI); direito ao gozo
de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço
a mais do que o salário normal (CF, art.7º, XVII); direito à
licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário,
com a duração de cento e vinte dias (CF, art.7º, XVIII);
direito à licença-paternidade (CF, art.7º, XIX); direito à
proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos (CF, art.7º, XX); direito a aviso pré-
vio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo
de trinta dias (CF, art.7º, XXI); direito à redução dos ris-
cos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde,
higiene e segurança (CF, art.7º, XXII); direito a adicional
de remuneração para as atividades penosas, insalubres
ou perigosas (CF, art.7º, XXIII); direito à aposentadoria
(CF, art.7º, XXIV); direito à assistência gratuita aos filhos
e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de
idade em creches e pré-escolas (CF, art.7º, XXV); direito

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

ao reconhecimento das convenções e acordos coletivos


de trabalho (CF, art.7º, XXVI); direito à proteção da ati-
vidade laboral em face da automação, na forma da lei
(CF, art.7º, XXVII); direito a seguro contra acidentes de
trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indeni-
zação a que este está obrigado, quando incorrer em dolo
ou culpa (CF, art.7º, XXVIII); direito à ação, quanto aos
créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo
prescricional de cinco anos para os trabalhadores urba-
nos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do
contrato de trabalho (CF, art.7º, XXIX); proibição de dife-
rença de salários, de exercício de funções e de critério de
admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil
(CF, art.7º, XXX); proibição de qualquer discriminação
no tocante a salário e critérios de admissão do trabalha-
dor portador de deficiência (CF, art.7º, XXXI); proibição
de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual
ou entre os profissionais respectivos (CF, art.7º, XXXII);
proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a
menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de
dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir
de quatorze anos (CF, art.7º, XXXIII); direito à igualdade
de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício
permanente e o trabalhador avulso (CF, art.7º, XXXIV). 2.
os direitos sociais da seguridade social: (CF, art.194,
195); direito à saúde (CF, arts.196, 197, 198, 199, 200);
direito à previdência (CF, art.201, 202); direito à assis-
tência social (CF, art.203, 204). 3. os direitos sociais de
natureza econômica: direito à livre concorrência (CF,
art.170, IV); direito à regulação da defesa do consumidor
(CF, art.170, V: ADCT, art.48); direito ao pleno emprego

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

(CF, art.170, VIII); direito a tratamento favorecido para as


empresas de pequeno porte constituídas sob as leis bra-
sileiras e que tenham sua sede e administração no País
(CF, art.170, IX). 4. os direitos sociais da educação e
cultura: direito à educação (CF, art.205 a 214); direito à
cultura (CF, art.215 a 216-A). 5. os direitos sociais de
segurança: (CF, art.144).
Os direitos fundamentais de status políticos corres-
pondem à “possibilidade de participar na determinação
da política estatal de forma ativa [...] trata-se de direitos
ativos porque possibilitam uma ‘intromissão’ do indiví-
duo na esfera da política decidida pelas autoridades do
Estado”56. Essa categoria diz respeito às condições positi-
vas e negativas prestadas pelo Estado para que ocorra a
participação das populações na elaboração e condução
da coisa pública.
Os direitos políticos positivos correspondem ao direi-
to ao sufrágio (direito de votar em eleições, plebiscitos e
referendos e o direito de ser votado que consubstancia o
direito de elegibilidade), à fixação das normas para delimi-
tação e execução dos sistemas eleitorais (sistemas majori-
tário, proporcional e misto) e delimitação do procedimen-
to eleitoral (regulamentado em todas as leis e normativas
eleitorais infraconstitucionais), gerando esses três grupos
direitos exigíveis pelo indivíduo interessado em participar
diretamente da esfera política.
[...] direito à nacionalidade (CF, art. 12, incisos, parágrafos
e alíneas); direito ao asilo político (CF, art. 4º, X); direito
ao sufrágio universal exercido pelo voto direto, pessoal,

56 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 53.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

secreto e de valor igual para todos, nos termos da lei


(CF, art.14); direito à realização de plebiscitos (CF, art.14,
I: lei n. 9.709/1998); direito à realização de referendos
(CF, art.14, II: lei n. 9.709/1998); direito à propositura de
lei de iniciativa popular (CF, art.14, III); direito à elegi-
bilidade (CF, art.14, §3º); regras de inelegibilidade (CF,
art.14, §§4º a 9º); vedação à cassação de direitos políti-
cos (CF, art.15); direito à suspensão dos direitos políticos
mediante regras prefixadas (CF, art. 15, incisos); fixação
dos sistemas eleitorais, majoritário (CF, arts. 77, §2º: 28:
29, II: 46) proporcional (CF, art.45); direitos políticos dos
deputados e senadores (CF, art.53 a 56).
O ato de legislar sobre o procedimento eleitoral é
atribuição da União, conforme o art.22 da Constituição,
sendo toda a normativa fixada nas normas eleitorais in-
fraconstitucionais que versam sobre direitos políticos (Có-
digo Eleitoral57, Lei das Eleições58, etc.), configurando-se
como direitos políticos infraconstitucionais, regulamenta-
dos para exercício dos direitos políticos constitucionais,
não se confundindo os primeiros com os segundos, sendo
fundamentais apenas estes últimos. Destacamos também
como fora do rol de direitos políticos fundamentais o di-
reito de propor ações populares (CF, art. 5º, LXXIII) e o
direito de organizar e participar de partidos políticos (CF,
art. 17, caput) em razão de serem estes manifestações da
soberania popular e não propriamente direitos políticos
fundamentais individuais.
Por fim, os direitos fundamentais de status coletivos di-
ferenciam-se dos três grupos anteriores em razão da qua-
57 Lei n. 4.737/1965.
58 Lei n. 9.504/1997.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

lidade dos sujeitos que irão titularizar tais prerrogativas.


Enquanto nos direitos negativos, positivos e políticos é
possível vislumbrar a individualidade de quem prerroga -
aquele que subjetiva o conteúdo do direito -, nos direitos
de status coletivo verifica-se a possibilidade da existência
(e exigência) do direito apenas após a configuração de
uma dada coletividade. Ou seja, não serão indivíduos que
poderão exigir o direito, mas, sim, uma coletividade. E
aqui, como pontuam Tavares59, e Dimoulis e Martins60, a
titularidade coletiva desdobra duas categorias de direitos:
1. direitos coletivos stricto sensu (indivisíveis e determiná-
veis enquanto grupos) e os 2. direitos difusos (indivisíveis
e indetermináveis). No primeiro caso, a exigibilidade de
um determinado direito se torna indivisível para o grupo,
sendo todos os sujeitos que integram o grupo igualmente
titulares, mas este grupo possui um grupo de indivíduos
determinado ou determinável, sendo possível identificar
a totalidade de seus titulares (é exemplo desse tipo de
direito alguns direitos trabalhistas e consumeristas). Já na
segunda categoria, a exigibilidade também é indivisível,
porém seus titulares são um grupo de pessoas indetermi-
nado ou indeterminável (os direitos ambientais se enqua-
dram nessa categoria).
[...] direito coletivo nas relações consumeristas (CF,
art. 5º, XXXII: art. 170, caput, V); direito coletivo nas
relações trabalhistas, dentre eles: direito de greve (CF,
art.9º); direito de organização sindical (CF, art.8º); direi-
to de reconhecimento da convenção coletiva (CF, art.7º,
XXVI); direito à representação dos trabalhadores na em-
59 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, 2015, p. 761 e s.
60 Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, p. 56.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

presa (CF, art. 11); direito ao meio ambiente ecologica-


mente equilibrado (CF, art. 225).61
Os DF, uma vez positivados numa dada Constituição,
carecem por vezes de dois procedimentos técnico-jurídi-
cos: a dogmatização e a regulamentação.

61 A regulamentação infraconstitucional do meio ambiente ecologica-


mente equilibrado configura o ramo específico do Direito Ambien-
tal que possui, dentre outras normativas, a seguinte disciplina legal:
Lei nº 7347/1985, que disciplina a ação civil pública de responsa-
bilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a
bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e dá outras pro-
vidências; Lei nº 7802/1989, que dispõe sobre a pesquisa, a ex-
perimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte,
o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a
utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos
e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a
fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras
providências; Decreto nº 98.816/1990, que Regulamenta a Lei n°
7802, de 1989; Lei nº 9605/1998, que dispõe sobre as sanções pe-
nais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente, e dá outras providências; Lei nº 9.985/2000, que
Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III, e VII da Constituição
Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza e dá outras providências; Lei nº 8974/1995, que regula-
menta os incisos II e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal,
estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética e
liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modifi-
cados, autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito da Presidência
da República, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, e dá
outras providências; Lei nº 4771/65, que institui Código Florestal;
Lei nº 5197/1967, que dispõe sobre a proteção à fauna (Código
de Caça); Decreto-Lei nº 221/1967, que dispõe sobre a proteção
e estímulos à pesca; Decreto-Lei nº 1985/40 – Código de Mine-
ração, com redação dada pelo Decreto-Lei nº 227, de 28.2.1967;
Ainda sobre a disciplina das Terras devolutas, vide Decreto-Lei nº
9760, de 5.9.1946, arts. 1º, 5º, 164 e seguintes, 175 e seguintes, Leis
nºs. 6383, de 6.12.1976, 6925, de 29.6.1981, Decreto-Lei nº 1414,
de 18.8.1975 e Decreto 87620, de 21.9.1982.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

A dogmatização se configura pela inserção do conte-


údo jurídico dos DF no complexo sistêmico jurídico de
classificação conceitual (o Direito), mirando a viabilidade
de sua aplicação pelos Tribunais. Noutros termos, uma vez
positivado na Constituição, o DF precisa ser discutido pe-
los autores jurídicos, de modo a organizar e categorizar o
conteúdo necessário à compreensão sistêmica e aplicação
pelos juízes em eventuais violações levadas à discussão
judicial. Assim, a classificação dogmática dota o conteú-
do posto no texto constitucional da sistematicidade ne-
cessária à argumentação e decisão jurídica. O processo de
dogmatização pode se operar sobre o conteúdo constitu-
cional propriamente, sendo, por vezes, suficiente apenas
esse procedimento. Entretanto, noutras situações, alguns
direitos fundamentais demandam além da dogmatização a
produção de normas infraconstitucionais (leis em sentido
estrito ou em sentido amplo)62 que venham a regulamentar
o direito, ou seja, detalhar os modos como determinado
direito será exercido e exigido. Dessa forma, a dogmática
jurídica desenvolveu um conjunto de caracteres jurídico-
dogmáticos específico para os DF, com vistas à sua arti-
culação jurídico-argumentativa em contextos judiciais de
exigibilidade em face de eventuais violadores, sendo esse
rol composto por nove elementos: historicidade, irrenun-
ciabilidade, inalienabilidade, inviolabilidade, imprescri-
tibilidade, universalidade, limitabilidade, concorrência e
complementaridade.
62 O conceito de lei em sentido estrito adotado em nosso material diz respeito ao produto do traba-
lho parlamentar, isto é, aquele material que é entregue à sociedade após os procedimentos de
produção legiferante, seja esse parlamento o municipal, o estadual ou federal, observadas suas
respectivas competências. Já o conceito de lei em sentido amplo é todo ato com força jurídico-
normativa produzido por outro agente público situado em outro poder que não o legislativo, a
saber, no executivo ou judiciário.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

O primeiro dos elementos, a historicidade, vem dar re-


levo ao caráter social dos DF, tendo em vista sua elabo-
ração continuada e determinada pelos aspectos de tempo
e lugar pelos quais são elaborados. São também irrenun-
ciáveis uma vez que não podem ser objeto de renúncia
jurídica, ou seja, seu titular não pode deles abrir mão em
benefício de outrem. São inalienáveis e invioláveis, pois
não possuem qualidade patrimonial, por isso não podem
ser objeto de negociação (doação, troca, venda ou qual-
quer outro ato dispositivo), não podem tampouco serem
violados por interesses alheios àqueles dos seus titulares.
São imprescritíveis por seu exercício não estar sujeito ou
condicionado a quaisquer aspectos temporais, perdurando
válidos enquanto perdurar a existência de seus titulares.
Possuem universalidade, pois se estendem a todos os in-
divíduos alcançados pelo ordenamento jurídico no qual se
inscrevem tais direitos, com vistas à preservação de condi-
ção como pessoa. Os DF são ainda limitados pelas regras
do próprio ordenamento no qual se encontram, não pos-
suindo uma exigibilidade absoluta. São concorrentes uma
vez que sua incidência pode se dar concomitantemente a
outros direitos fundamentais e, num mesmo sentido, com-
plementares quando se diz que sua interpretação e apli-
cação podem contribuir para o alargamento hermenêutico
de outros direitos (fundamentais ou não),
Considerada a positivação, dogmatização e regulamen-
tação dos DF, seu conteúdo passa a ser efetivamente exi-
gível juridicamente.
Desta feita, se retomarmos o conceito por nós propos-
to para o direito – qual seja, fenômeno social formado

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

pelo elemento subjetivo (interações sociais, nas quais cada


prerrogativa exigível corresponde a um dever, uma dada
obrigação), pelo elemento objetivo (marco referencial jurí-
dico no qual a prerrogativa exigível se ancora) e sua arti-
culação em um sistema complexo de normas (Direito) em
razão de sua fragilidade – podemos estabelecer algumas
distinções necessárias entre os DF e os DH. Os direitos
humanos se configuram como uma interação entre indi-
víduos (pessoas físicas ou jurídicas) e os Estados, num
plano supranacional, isto é, o marco referencial no qual
se ancoram as prerrogativas são os Tratados Internacionais
e normativas formalizados em conjunto pelas nações jun-
to aos organismos internacionais, de modo que os direi-
tos que deles emanam instituem relações entre os sujeitos
e as nações, sendo tutelados por meio de instrumentos
próprios manejados na ordem jurídica internacional. Já os
direitos fundamentais se configuram como prerrogativas
exigíveis por indivíduos e grupos em face dos Estados e
de outros indivíduos no contexto do direito interno de
cada nação, o plano intranacional, estando ancorados nas
respectivas Constituições e eventuais normas infraconsti-
tucionais. Esse complexo de direitos é tutelado por meio
de instrumentos positivados e manejados dentro da ordem
jurídica na qual se inscrevem os DF. Fixam, portanto, DH
e DF, relações intersubjetivas diferentes, com atores sociais
diferentes, ancoradas em marcos referenciais jurídicos dis-
tintos e, por conseguinte, articuladas em sistemas norma-
tivos diferentes (sistema interno e sistema externo-inter-
nacional); sendo a tutela dos direitos realizada também a
partir de instrumentos diferentes.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

A exigibilidade e efetividade dos DH estão diretamente


condicionadas às articulações entre o marco referencial de
ancoragem e a inserção em sistemas complexos de normas
específicos à dinâmica internacional de tutela. Os marcos
referenciais dos direitos humanos, como já dito, são docu-
mentos normativos supranacionais elaborados em contex-
tos de colaboração internacional. Diferentemente dos DF,
cujos marcos referenciais são as respectivas Constituições
e normas infraconstitucionais, elaboradas pelos parla-
mentos intranacionais, os marcos referenciais dos DH são
constituídos a partir de gestos internacionais de colabora-
ção materializados por meio de Tratados Internacionais.
Os Tratados se configuram como o ponto central dos
Sistemas Jurídicos Internacionais, a partir dos quais são
estabelecidos os elementos dos direitos humanos (1. re-
lações subjetivas, 2. objetivas e 3. inserção sistemática).
Quatro são os sistemas ocidentais mais importantes; o
primeiro deles, de status “global” - a Organização das
Nações Unidas (ONU) -, foi fundado em 1945. Os outros
três sistemas equivalem a esforços regionais de constru-
ção de marcos referenciais no Ocidente: a Convenção
Europeia (CEPDH: Convenção Europeia para Proteção
dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais), fun-
dada em 1950; o Sistema Interamericano (OEA: Orga-
nização dos Estados Americanos) fundado em 1969; e
o Sistema Africano (OUA: Organização para a Unidade
Africana), fundado em 1981.
A tutela dos DH é então articulada a partir do manejo
dos Instrumentos e Mecanismos internacionais. Sendo os
instrumentos todos os Tratados e demais normativas, ao

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

passo que os mecanismos correspondem aos meios pelos


quais são efetivados os instrumentos, subdividindo-se em:
1. convencionais (estabelecidos nas convenções interna-
cionais) e 2. não convencionais ou extraconvencionais.
Os mecanismos convencionais (comitês, comissões, re-
latorias especiais, Tribunais Internacionais) são criados no
contexto das convenções específicas de direitos humanos,
v.g. a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, a Convenção pela Eliminação de To-
das as Formas de Discriminação contra a Mulher, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Dentre as
principais características dos órgãos protetivos criados por
esses tratados internacionais estão: dedicam-se exclusiva-
mente à proteção de direitos previstos nas convenções
que os criaram; possuem competência para analisar relató-
rios e petições individuais apenas no que toca àqueles Es-
tados que ratificaram a convenção instituidora do órgão. Já
os Mecanismos extraconvencionais desdobram-se de um
único tratado internacional: a Carta das Nações Unidas63,
apresentando algumas especificidades: podem receber pe-
tições individuais ou grupais mesmo quando oriundas de
países não signatários de nenhuma convenção de direi-
tos humanos, além disso abarcam violações a quaisquer
direitos, contanto que caracterizadas por algum grau de
sistematicidade nas agressões.
Como pontua Tavares64, os instrumentos internacionais
(Tratados e outras normativas) não possuem força ­jurídica

63 A Carta das Nações Unidas foi elaborada pelos representantes de 51 países presentes à Confe-
rência sobre Organização Internacional, que se reuniu em São Francisco de 25 de abril a 26 de
junho de 1945 e estabeleceu a ONU.
64 André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, 2015, p. 399.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

para obrigar os países a seu cumprimento, mesmo os Sis-


temas não podem fazê-lo, pois esbarram no fenômeno ju-
rídico-institucional da soberania de cada Nação; podem,
no entanto, provocar constrangimento internacional para
aqueles países que, mesmo ratificando normativas inter-
nacionais de respeito e proteção dos DH, provocam ou
fazem-se omissos diante de violações internas. Todavia, a
ordem internacional tem buscado o desenvolvimento de
formas particulares para a produção de uma maior efetivi-
dade do conteúdo dos DH. Nesse sentido, destaca Tavares
três etapas na promoção: a primeira delas se consubstan-
cia pela fixação dos Tratados de reconhecimento do con-
teúdo dos DH; a segunda fase – ainda não implementada
– buscaria o desenvolvimento de instrumentos jurídicos
vinculantes que aprimorassem o conteúdo dos Tratados;
e, por fim, numa terceira fase, seriam aprimorados os me-
canismos, partindo da instauração de comissões mais pró-
ximas das populações até a ampliação das competências
dos Tribunais Internacionais e alcance de suas decisões.
Já a tutela dos DF se opera dentro do ordenamento de
um dado país em um determinando tempo, a partir dos
marcos referenciais fixados pela Constituição e normas in-
fraconstitucionais vigentes, sendo exigíveis em face tanto
do próprio Estado quanto em razão de violações pratica-
das por outras pessoas (físicas ou jurídicas) ou grupos. A
defesa desses direitos em circunstâncias de violação ou
ameaça de violação pode se dar com o manejo de instru-
mentos específicos, tratados pelos autores constitucionais
como “Instrumentos de tutela das liberdades”, mas que,
com efeito, são úteis para a defesa de quaisquer direitos

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

fundamentais, tanto individuais quanto coletivos, observa-


das as devidas aplicabilidades. Uadi Lammêgo Bulos diz
que os “instrumentos de tutela das Liberdades são meios
constitucionais postos ao dispor dos indivíduos e das co-
letividades para provocar a intervenção das autoridades
competentes, com vistas à defesa de um direito lesado ou
ameaçado de lesão por ilegalidade ou abuso de poder”65.
Os instrumentos também são tratados por esses autores
como remédios constitucionais, ações constitucionais ou
ainda writs constitucionais. São eles: o direito de petição
(art. 5º, XXXIV, a); o direito de certidão (art. 5º, XXXIV, b);
o habeas corpus (art. 5º, LXVIII); o mandado de seguran-
ça (art. 5º, LXIX); o mandado de injunção (art. 5º, LXXI);
o habeas data (art. 5º, LXXII); a ação popular (art. 5º,
LXXIII) e o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX).
Além desses instrumentos constitucionais específicos, os
direitos fundamentais podem ser tutelados ao curso de um
processo judicial comum por indivíduos ou grupos.
Tradicionalmente a relação subjetiva, um dos elementos
do direito, em relação à tutela dos DF é constituída entre
o titular do direito, pessoa física ou jurídica e o Estado,
sendo esta a chamada eficácia vertical dos direitos fun-
damentais. Isso porque, quando pensados inicialmente –
sobretudo aqueles de status positivo e negativo – estavam
em uma nítida relação com o Poder Público. No entanto,
ao longo dos anos, foi possível identificar que não ape-
nas o Estado produzia violações aos DF por meio de suas
ações ou omissões; outros particulares (pessoas físicas ou
jurídicas) igualmente produziam obstáculo ou lesão aos

65 Uadi Lammêgo Bulos, Curso de direito constitucional, 2014, p. 732.

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direitos, sendo necessário o manejo das necessárias tutelas


contra tais sujeitos. Nisso a exigibilidade dos DF passa a se
dar numa relação não mais verticalizada – Estado versus
indivíduos ou coletividades – mas entre indivíduos e indi-
víduos ou entre indivíduos e coletividades, no que veio a
ser classificada pela dogmática66 como eficácia horizontal.
Desse modo, é possível que se busque a efetividade de DF
em face de violações perpetradas por outros indivíduos ou
mesmo em cenários de não violação, mas de obstrução do
exercício em razão do conflito de interesses derivado de
múltiplos exercícios de direitos em colisão.
Como dissemos anteriormente, alguns autores67 prefe-
rem classificar o rol dos direitos fundamentais valendo-se
da terminologia “gerações”. A partir desse uso, veiculam
a ideia de uma evolução social para a experiência dos
direitos. Essa perspectiva pode, inclusive, ser observada
na jurisprudência dos Tribunais Superiores, quando, v.g.,
Celso de Mello, em 199568, afirmou em seu voto que
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis
e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas,
negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade
e os direitos de segunda geração (direitos econômicos,
sociais e culturais) - que se identificam com as liberda-
des positivas, reais ou concretas - acentuam o princí-
pio da igualdade, os direitos de terceira geração, que
materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos

66 Uadi Lammêgo Bulos, Curso de direito constitucional, 2014, p. 539 e s.


67 Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 2006; Uadi Lammêgo Bulos, Curso de direito
constitucional, 2014; Alexandre de Moraes, Os 10 anos da Constituição Federal, 1999; Ingo
Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal
de 1988, 2005.
68 STF, Pleno, MS 22.164/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 1, de 17-11-1995, p. 39206.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

genericamente a todas as formações sociais, consagram


o princípio da solidariedade e constituem um momento
importante no processo de desenvolvimento, expansão
e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados,
enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota
de uma essencial inexauribilidade.
O raciocínio tenta atrelar à classificação um sentido de
evolução que busca espelhar os ideais da Revolução Fran-
cesa de liberdade, igualdade e fraternidade (Liberté, Egali-
té, Fraternité), aproximando, respectivamente, os direitos
civis e políticos, as prestações estatais negativas à geração
da liberdade; as prestações positivas à geração da igual-
dade; e os direitos coletivos à geração da fraternidade.
Ocorre, porém que esses ideais já estavam inscritos na
experiência francesa desde a Revolução de 1789 e, antes
dela, guardadas as devidas proporções, na experiência es-
tadunidense de 1776. Com um maior cuidado analítico,
seria possível aproximar a ideia de “gerações” não aos
princípios revolucionários, mas sim aos modelos de Es-
tado que foram implementados desde a inauguração da
modernidade; iniciando-se, com o Estado mínimo, uma
exaltação à limitação do poder soberano e das iniciati-
vas privadas econômicas (em que se verifica claramente
o status negativo das liberdades), sendo flagrante a au-
sência de efetividade dos conteúdos que mais adiante fo-
ram tratados como direitos sociais, pelos modelos estatais
conhecidos como Estados do Bem-Estar Social (em que
verifica-se claramente o status positivo das obrigações que
passam a recair sobre o Estado). Mais adiante, nos Estados
democráticos de Direito foi possível observar a inclinação

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

dos ordenamentos em possibilitar as participações sociais


consubstanciadas naqueles direitos conhecidos como di-
reitos políticos (status políticos), ocorrendo, finalmente, a
abertura aos direitos coletivos com o modelo estatal dos
Estados Constitucionais de Direito.
A narrativa que celebra a evolução dos ordenamentos
jurídicos refletida na marcha expansiva pela efetividade de
diferentes grupos de direitos pode acabar por ocultar os
processos político-ideológicos que, influindo diretamente
nessas sociedades ocidentais, ocasionaram e ocasionam
impedimentos à efetividade das promessas normativas
inerente aos direitos humanos, mesmo seu conteúdo – em
parte – já sendo anunciado desde o século XVIII. A narrati-
va também fomenta a ideia de que as sociedades estão em
processo de evolução na direção de um modelo próprio
de sociedade, aquela que produziu a efetividade de todas
as “gerações”, fortalecendo os sentidos de universalida-
de e hegemonia que atravessam as experiências históricas
por trás dos múltiplos conteúdos jurídicos dos DH e DF.
Enquanto os DH incorporam em sua narrativa jurídica
uma universalidade ao se projetarem homogeneamente
para todas as nações na busca pela adesão dos povos na
tentativa de uniformizar o reconhecimento de direitos pe-
los povos, os DF são sempre locais, dirigidos a um lugar
em um dado tempo, são marcados pela historicidade da-
quele povo, determinados pelo tempo em que vive. Nisso
se distanciam os conteúdos dos grupos, quando precisa-
mos reconhecer que cada país está em sua marcha de
elaboração social própria, enfrentando suas lutas internas
contra as formas e processos particulares de coisificação

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

da pessoa humana. Em contrapartida, quando dialogam


juridicamente entre si, os DF e os DH caminham sempre
em certa proximidade, buscando aqueles espelhar o con-
teúdo destes.
É certo que nem todos os países experimentaram de
igual modo o ideal dos DH desde sua elaboração, e os res-
pectivos processos internos de positivação dos DF guar-
dam peculiaridades e ausências, silêncios em relação às
singularidades de muitos povos, negligenciadas e obscu-
recidas pela busca de uma reprodução acrítica de conteú-
dos pensados para os DH a partir de contextos externos,
distantes, europeus. Há distorções na experiência jurídica
dos DF, pois configuram os povos que vivenciam seus
direitos como, em dada proporção, externos à elaboração
dos conteúdos para tais direitos.

5. Modernidade, colonialidade e o
fenômeno social laico
A modernidade é um modelo político-ideológico de
ressignificação e reconstrução dos modos de produção
da realidade social, disparado desde o século XVI e que
perdura, em seus efeitos, até a contemporaneidade. Com-
plexo, desde sua gênese, o projeto moderno se propunha
a uma reelaboração social a partir da ancoragem na ideia
de ruptura com todas as formas anteriores de organização
social e de controle das populações. Valendo-se das in-
satisfações e insuficiências do ancien régime69, filósofos,
políticos e burgueses organizarem-se para estabelecer as
69 Expressão do francês equivalente no português a “antigo regime” utilizada para designar o mo-
delo de regime de poder operado em toda a Europa desde o período medieval até os eventos
da Revolução Francesa e seus desdobramentos.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

condições para alteração dos sentidos que davam susten-


tação e forneciam os modos de distribuição e exercício do
poder até então experimentados.
Os modernos - aquele grupo social especificamente
determinável que detinha os meios sociais para dispa-
rar e operar as alterações do campo simbólico - projeta-
ram um processo de ruptura da tradição que implicava
a superação e abandono dos modos de vida até então
praticados socialmente, sobretudo no tocante às formas
naturalizadas de distribuição e exercício do poder. Ob-
jetivava-se o deslocamento das formas de legitimação e
controle dos símbolos articuladas a partir dos sentidos do
sagrado (afetando consequentemente aqueles que os po-
diam operar: os religiosos) para lugares e atores outros.
A burguesia - e seus ideais - seria a destinatária principal
de um locus especial na instrumentalização desse novo
modo de vida. Assim, para que a sociedade experimen-
tasse a modernidade era necessária então a produção de
uma ruptura paradigmática.
O abandono de um paradigma requer a ascensão de
um outro, como apontou Thomas Kuhn70. Assim foi im-
prescindível, para superação da ordem simbólica que
caracterizava o antigo regime, que a modernidade pro-
duzisse traços que fossem inconfundíveis com aquele re-
gime social que se propunha obliterar. Essa singularidade
nos traços da modernidade é discutida por Boaventura
de Souza Santos ao enfrentar as inconsistências do para-
digma moderno.

70 Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 1998, p. 67 e s.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Santos71 diz que a modernidade ancora suas premissas


em dois pilares, o da regulação e o da emancipação, sen-
do cada um deles constituído por três princípios próprios
que se configuram como lógicas internas de funcionamen-
to. O pilar da regulação constitui-se pelos princípios do
Estado, do Mercado e da Comunidade; enquanto o pilar
da emancipação, pelos princípios da racionalidade estéti-
co-expressiva das artes e literatura, da racionalidade cog-
nitivo-instrumental da ciência e da tecnologia, e da racio-
nalidade moral-prática da ética e do Direito.
No pilar da regulação, pelo princípio do Estado, desen-
volvido a partir de Hobbes, temos a ideia de obrigação
política verticalizada entre os indivíduos e o Estado, os
primeiros posicionados na categoria ‘cidadão’ enquanto o
segundo como ficção jurídica representativa do interesse
coletivo. Pelo princípio do Mercado, formulado desde as
premissas de John Locke e Adam Smith, temos a matriz
das liberdades e das autonomias, quando são postas as
obrigações políticas recíprocas horizontalizadas entre os
indivíduos, sendo essa reciprocidade marcada pela indi-
vidualidade e antagonismo propulsor das relações comer-
ciais e embrionário do sistema capitalista. Pelo princípio
da Comunidade, orientado pela teoria do contrato social
de Jean-Jacques Rousseau, temos a noção de relação hori-
zontal recíproca de solidariedade para fins de manutenção
dos interesses comuns à coletividade. Poderíamos destacar
desde logo um evidente campo de tensão entre os dois
últimos princípios no pilar da regulação, forjando uma das
primeiras e mais profundas chagas da modernidade72.
71 Boaventura de Souza Santos, Para um novo senso comum, 2002, p. 45 e s.
72 Boaventura de Souza Santos, Para um novo senso comum, 2002, p. 45 e s.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

No pilar da emancipação, vislumbraram-se as possibi-


lidades de produção de uma autonomia cognitiva social
viabilizada pelos três princípios – ou lógicas – internos ao
pilar. Cada uma delas haveria de propiciar condições dis-
tintas de produção concomitante de sentidos sociais, dife-
rentemente daqueles operados pelo antigo regime. Nisso,
cada uma das três lógicas produziria formas de símbo-
los e meios próprios de ordenação destes, na constituição
de um imaginário social próprio para a modernidade. A
racionalidade das artes e da literatura forjaria a estética
possível para a modernidade. A cognição instrumental de
legitimação se daria pela racionalidade introduzida na so-
ciedade pela cientificidade e seus métodos próprios de
produção de saberes e, por fim, o Direito e a ética for-
neceriam os elementos necessários à elaboração de uma
racionalidade moral-prática.
Para que o modelo lograsse sucesso, como aponta San-
tos73, seria necessária uma dinâmica específica de articu-
lação instrumental recíproca entre os dois pilares, num
processo chamado pelo autor de dupla vinculação, em
que se daria a realização recíproca entre os pilares da re-
gulação e emancipação e entre estes e a práxis social,
mirando uma completa racionalização (nas suas diversas
formas) de toda a vida individual e coletiva.
Não é difícil identificar que o modelo moderno, como
delimitado por Santos, fracassou.
Boaventura74 analisa o fracasso como desdobramento
da própria complexidade do modelo, considerando que

73 Boaventura de Souza Santos, Para um novo senso comum, 2002, p. 50.


74 Boaventura de Souza Santos, Para um novo senso comum, 2002, p. 50 e s.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

pelo processo de alteração dos símbolos constituintes do


imaginário social derivaria uma dinâmica de proliferação
simbólica própria a cada princípio em cada pilar, operan-
do atritos simbólicos que desencadeariam inevitáveis co-
lonizações. Dito de outra forma, os princípios tenderiam a
maximizar-se e a projetar-se, todos eles e simultaneamen-
te, para todos os campos da vida social, desconsiderando
os espaços teoricamente planejados para cada um. Assim,
a regulação se maximizaria quando o Estado viesse a cres-
cer, sobrepondo os espaços pensados para a autonomia
do Mercado e da comunidade, ou quando esta última so-
brepujasse as condições de operação do Mercado, dada a
incompatibilidade inerente a ambas, ou quando o Merca-
do avançasse contra o Estado e a Comunidade. A fragili-
dade da exequibilidade do modelo também se perceberia
quando mesmo os pilares operassem formas de coloniza-
ção, inviabilizando sua instrumentalidade recíproca, pelo
preenchimento dos espaços de um pelo outro.
Observamos, acompanhando o pensamento de Santos
que, ao curso da implementação da modernidade, ocor-
reram diversos processos de colonização dos princípios e
pilares por meio da hierarquização dos sentidos inerentes
aos símbolos modernos. É o que verificamos internamente
no pilar emancipatório quando todas as lógicas foram re-
duzidas ao modo de produção da cientificidade, operando
esta como último meio de legitimação do conhecimento.
Quando, para ser eficaz, a racionalidade moral-prática do
Direito precisa submeter-se à racionalidade instrumental
científica, ocorre, em certa medida, o mesmo com a éti-
ca e com as artes, restando as demais em uma posição

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­subalterna, não gozando da mesma legitimidade para or-


denação do imaginário social. Considerada essa redução,
o pilar em si mesmo é cooptado pela regulação, subordi-
nando aquele à operacionalização deste último, dissipan-
do a instrumentalidade recíproca inicialmente concebida.
Dentro do pilar da regulação – que subjuga o da emanci-
pação – observamos a redução do Estado e da comunida-
de à condição de instrumentos do Mercado, colonizando
este último os elementos constitutivos dos demais prin-
cípios, subvertendo sua singularidade ao subordinar sua
funcionalidade aos signos do Mercado. Tal colonização
gradual propicia e caracteriza aquilo que vai ser chamado
como sistema capitalismo, tornando inviável a implemen-
tação da modernidade como pensada, sendo esta, como
aponta Santos75, a falha essencial da modernidade.
A disfuncionalidade do modelo moderno – a irrealiza-
ção de suas promessas –, em razão das colonizações do pi-
lar da emancipação pelo da regulação e nesse último pela
invasão dos signos do Mercado nos princípios da Comu-
nidade e do Estado, não é, para alguns pensadores, uma
falha, mas, antes, um objetivo ideologicamente articulado
ao longo da modernidade, sobretudo quando observada
a relação entre a Europa e os países por ela explorados.
Comumente, a modernidade foi discutida a partir de
um olhar interno, eurocentrado, mirando as possibilidades
não atingidas, reticentes. Porém, desde os anos de 1970 o
fenômeno vem sendo enfrentado por meio de uma pers-
pectiva outra, considerando o que se produziu na expe-
riência daqueles que foram atravessados pelos interesses

75 Boaventura de Souza Santos, Para um novo senso comum, 2002.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

e efeitos da modernidade. Assim, destacamos dois grupos


de estudos desenvolvidos para oferecer uma leitura dis-
tinta daquela realizada pela própria Europa, o Grupo de
Estudos Subalternos Indianos e o Grupo Latino-americano
da Modernidade-Colonialidade. Ambos intencionavam o
desenvolvendo de um pensamento crítico não eurocêntri-
co pautado pela experiência local, mais especificamente
novas formas de constituição do pensamento suficientes
para desvelar os modos de naturalização das relações de
poder que conduziram a vida nos lugares colonizados
para as circunstâncias observadas na contemporaneidade.
Anibal Quijano e Walter Mignolo figuram entre os pen-
sadores do grupo de estudos latino-americanos que com-
preendem a modernidade como projeto epistemológico que
se arvora não apenas para as Américas, mas para todos os
lugares do globo, constituindo-se como um sistema-mun-
do76 por meio dos seus três eixos centrais, a colonialidade
do poder, o capitalismo e o eurocentrismo.
Tais eixos, como pontua Quijano, configuram-se como
um “conjunto de elementos demonstráveis que apontam
para um conceito de modernidade diferente, que dá conta de
um processo histórico específico ao atual sistema-mundo”77.
Essa especificidade que delimita a modernidade à qual se re-
fere o autor diz respeito aos modos pelos quais os processos
de produção de sentidos configuraram as possibilidades de
elaboração das realidades sociais, conformando os modos
de vida nos locais politicamente colonizados pela Europa,
subalternizando não apenas os indivíduos pela política, mas,

76 Anibal Quijano, Colonialidade do poder e classificação social, 2009.


77 Anibal Quijano, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, 2005, p. 123.

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antes desta, pelos sentidos. Assim, a modernidade, enquanto


sistema-mundo pode ser compreendida quando dissecadas
as formas específicas pelas quais ela operou e opera a pro-
dução e ordenação de sentidos na realidade: a colonialidade
do poder, o eurocentrismo e o capitalismo.
O conceito de colonialidade do poder – para os pensado-
res do Grupo Latino-americano da Modernidade-Coloniali-
dade –, está ancorado nos conceitos de poder desenvolvido
a partir de Michel Foucault, e de colonialidade elaborado a
partir dos estudos latinos. Em Foucault78 não se encontra uma
teoria delimitada para o poder, em lugar disso o autor ofere-
ce uma possibilidade conceitual extraída de cinco preocupa-
ções metodológicas, assim definidas por ele como critérios
conceituais necessários à apreensão do fenômeno “poder”.
Cada uma das preocupações anunciadas por Foucault
fornece uma faceta para compreensão acerca do fenôme-
no poder, de modo que pela primeira delas identifica-se o
poder como fenômeno capilar, isto é, não centrado:
Não se trata de analisar as formas regulamentares e le-
gítimas do poder em seu centro [...] trata-se, ao contrá-
rio, de captar o poder em suas extremidades, em suas
últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar, captar
o poder nas suas formas e instituições mais regionais e
locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando
as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se
prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em téc-
nicas e se mune de instrumentos de intervenção material,
eventualmente violentos.79

78 Michel Foucault, Microfísica do poder, 2015.


79 Michel Foucault, Microfísica do poder, 2015, p. 282.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Pela segunda preocupação metodológica, admite-se o


poder não como poder subjetivado ou interno aos sujei-
tos, mas como processo objetivo, externo às intenções:
Não analisar o poder no plano da intenção ou da de-
cisão, não tentar abordá-lo pelo lado interno, não for-
mular a pergunta sem resposta: ‘quem tem o poder e
o que pretende’, ou o que procura aquele que tem o
poder?’ mas estudar o poder onde sua intenção – se é
que há uma intenção – está completamente investida
em práticas reais e efetivas; estudar o poder em sua
face externa.80
O poder, de acordo com a terceira preocupação, não
é algo sólido ou homogêneo; ao contrário, é fluido e
heterogêneo:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou
melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nun-
ca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem. O poder funciona e se exerce em rede.
Foucault aponta ainda que o poder deve ser apreendido
por meio da historicidade de suas tecnologias periféricas,
ou seja, pelos modos capilares historicamente demarcados
de constituição das formas de operação do poder ou ain-
da, dito de outra forma, devem-se evitar as buscas dedu-
tivas pelo poder em que se procura identificar um centro
pelo qual supostamente emanaria o poder, identificando-
se a partir dele suas ramificações; deve-se, por outro lado,
seguir caminho inverso, partindo das capilaridades.

80 Michel Foucault, Microfísica do poder, 2015, p. 283.

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Finalmente, por meio da quinta preocupação, Foucault


chama a atenção para o fato de que, embora o poder arti-
cule-se estreitamente das produções ideológicas, com elas
ele não pode ser confundido. Antes disso, o poder opera
seus efeitos por meio de aparelhos de saber, ocultados
pelas produções ideológicas.
É bem provável que as grandes máquinas de poder te-
nham sido acompanhadas de produções ideológicas [...]
mas não creio que aquilo que se forma na base sejam
ideologias [...] são instrumentos reais de formação e de
acumulação de saber [...] isso significa que o poder, para
exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a formar,
organizar e pôr em circulação um saber, ou melhor, apa-
relhos de saber que não são construções ideológicas.81
Nesses termos, para Foucault o poder é um fenômeno
que se opera no campo simbólico, capilarizado, um proces-
so objetivo em movimento contínuo, fluido e heterogêneo.
Identificável através da historicidade de suas tecnologias pe-
riféricas, não se confundindo com produções ideológicas,
sendo prévio a elas e por elas ocultado nas práticas sociais.
Partindo dessa possibilidade conceitual de poder, os
pensadores decoloniais irão elaborar o conceito de co-
lonialidade do poder, que se apresenta como uma for-
ma particular de organização e operação de tecnologias
de poder, isto é, um processo específico de organização
simbólica, do imaginário social no hemisfério Sul. Nesse
sentido, Anibal Quijano82 diz que a colonialidade do poder
é um padrão singular de operação do poder que se rea-

81 Michel Foucault, Microfísica do poder, 2015, p. 288-289.


82 Anibal Quijano, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, 2005.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

liza por meio de dois processos: a classificação racial da


população mundial e a articulação de todas as formas de
controle do trabalho.
Para entendermos a ideia de “classificação racial” é
necessário antes apreender a ideia de raça na perspecti-
va decolonial. Como aponta Quijano83, o fenômeno raça
passa a ser uma categoria mental (cognitiva), a partir da
modernidade, quando os indivíduos se percebem em suas
identidades não apenas em razão de diferenças fenotípicas
ou das determinações culturais locais, mas, antes disso, o
sentido de raça é fixado a partir da dicotomia estabelecida
com a relação colonizadora, ou seja, quando passam a in-
teragir conquistador-conquistado. As relações sociais que
são fundadas a partir do fenômeno da colonização moder-
na possuem, todas elas em todos os lugares do mundo,
a ideia central de que todos os sujeitos estão em alguma
medida em uma relação com o sujeito europeu, mais espe-
cificamente com o português, com o espanhol, com o in-
glês, com o francês etc. (gradativamente esse sentido tam-
bém fragmentado é alterado pela modernidade e passa a
convergir para o senso de ‘sujeito europeu’). O outro que
é colocado – pelo processo colonizador – em uma intera-
ção com esse sujeito europeu é por ele significado, tendo
todas as condições de sua constituição identitária altera-
das por essa interação, forçando o surgimento de novas
identidades sociais historicamente delimitadas, tais como
a identidade do índio, do negro, do mestiço, do pardo, do
amarelo, etc. de maneira que todos eles somente o são em
uma circunstância de justaposição com o sujeito europeu.

83 Anibal Quijano, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, 2005.

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PHABLO FREIRE | THIAGO TEIXEIRA

A modernidade reconfirma as possibilidades de ser e,


consequentemente, as identidades dos sujeitos nessa re-
lação são alteradas, não apenas as dos colonizados, mas,
com efeito, as dos colonizadores. A ideia mesma de eu-
ropeu é definida após a colonização da América, assim
como toda a distribuição de poder que passa a recair so-
bre esse lugar identitário.
A diferenciação entre os grupos de colonizadores e co-
lonizados não altera apenas a nomenclatura com as quais
passam a interagir e referir-se a si mesmos, mas, antes
disso, no campo simbólico, essas relações instituem e na-
turalizam posições bem determinadas para exercício do
poder, hierarquias, lugares e papéis sociais que se incor-
poram a essas novas identidades modernas, classificando
socialmente os indivíduos e ordenando as possibilidades
de existência social através das delimitações que se corpo-
rificam pela ideia de raça84.
Quijano diz ainda que esses processos identitários des-
dobram não apenas o surgimento das identidades subal-
ternizadas nas Américas, mas em todo o globo e, além
disso, igualmente desdobra-se uma nova identidade euro-
peia, aquela que subalterniza todos os demais povos:
No curso da expansão mundial da dominação colonial
por parte da mesma raça dominante – os brancos (ou
do século XVIII em diante, os europeus) – foi imposto
o mesmo critério de classificação social a toda a popula-
ção mundial em escala global. Consequentemente, novas
identidades históricas e sociais foram produzidas: amare-
los e azeitonados (ou oliváceos) somaram-se a brancos,

84 Anibal Quijano, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, 2005, p. 107.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

índios, negros e mestiços. Essa distribuição racista de


novas identidades sociais foi combinada, tal como havia
sido tão exitosamente logrado na América, com uma dis-
tribuição racista do trabalho e das formas de exploração
do capitalismo colonial.85
Esse fenômeno é aquilo que o autor vai chamar de eu-
rocentrismo, isto é, uma narrativa que se institui por meio
da difusão – em todos os lugares aonde a perspectiva
colonizadora chegou – de uma ideia-imagem da história
da civilização humana enquanto trajetória que tem como
ponto de partida o estado da natureza; e como ponto de
chegada, limite último, a experiência europeia. Tal narrati-
va não lograria êxito se não fossem alterados os símbolos
estruturantes das relações de modo a naturalizar as rela-
ções de poder, socialmente construídas, que posicionam
a raça europeia em superioridade a todas as demais. Dito
ainda de outra forma, a diferenciação entre europeus e
demais raças, que é uma elaboração social fundada em
profundas e lentas dinâmicas de violência, passa a ser res-
significada para a ideia de uma superioridade natural para
a raça europeia. Nisso, “o eurocentrismo não é exclusi-
vamente, portanto, a perspectiva cognitiva dos europeus,
ou apenas dos dominantes do capitalismo mundial, mas
também do conjunto dos educados sob sua hegemonia”86.
Borram-se ideologicamente os processos históricos de su-
balternização – por meio da narrativa eurocêntrica – para
que se projetem e se perpetuem no tempo e espaço esses
mesmos processos de subalternidade, tanto sobre os edu-
cados quanto sobre educadores.
85 Anibal Quijano, Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, 2005, p. 119.
86 Anibal Quijano, Colonialidade do poder e classificação social, 2009, p. 74-75.

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A colonialidade do poder enquanto padrão singular da


distribuição do poder opera por meio destes dois pro-
cessos: a classificação racial da população mundial (que
ancora a si mesma na ideia-imagem eurocêntrica) e a ar-
ticulação de todas as formas de controle do trabalho que,
por sua vez, desdobrou uma experiência muito singular
de relações de produção: o capitalismo.
Quijano pontua a diferenciação entre o capital e o ca-
pitalismo, sendo aquele encontrado nas relações sociais
baseadas na mercantilização do trabalho, isto é, a venda
pelos sujeitos de sua força de trabalho como se produto
fosse; já por este, fenômeno próprio da modernidade –
pois apenas por meio de seus símbolos ela é capaz de
emergir – tem-se um sistema de relações de produção,
uma heterogênea engrenagem que articula todas as for-
mas de controle do trabalho e de seus produtos sob a
égide do capital, constituindo uma lógica de ordenação
mundial: o mercado, impossível de existir sem as dinâmi-
cas disparadas pela modernidade.
[...] desde o século XVII, nos principais centros hegemô-
nicos desse padrão mundial de poder, nessa centúria,
não sendo um acaso a Holanda (Descartes, Spinoza) e
a Inglaterra (Locke, Newton), desse universo intersub-
jetivo, foi elaborado e formalizado um modo de pro-
duzir conhecimento que dava conta das necessidades
cognitivas do capitalismo: a medição, a externalização
(ou objetivação) do cognoscível em relação ao conhece-
dor, para o controle das relações dos indivíduos com a
natureza e entre aquelas em relação a esta, em especial
a propriedade dos recursos de produção. Dentro dessa

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

mesma orientação foram também já formalmente natu-


ralizadas as experiências, identidades e relações histó-
ricas da colonialidade e da distribuição geocultural do
poder capitalista mundial. Esse modo de conhecimento
foi, pelo seu caráter e pela sua origem, eurocêntrico. De-
nominado racional, foi imposto e admitido no conjunto
do mundo capitalista como a única racionalidade válida
e como emblema da modernidade.87
Desse modo, Quijano explica como os conceitos de
modernidade, eurocentrismo e capitalismo se articulam
para forjar o modo específico de distribuição do poder
cunhado como colonialidade do poder:
[...] sobretudo com o Iluminismo, no eurocentrismo foi-
se afirmando a mitológica ideia de que a Europa era
pré-existente a esse padrão de poder, que já era antes
um centro mundial de capitalismo que colonizou o resto
do mundo, elaborando por sua conta, a partir do seio da
modernidade e da racionalidade. E que nessa qualidade,
a Europa e os europeus eram o momento e o nível mais
avançados no caminho linear, unidirecional e contínuo
da espécie. Consolidou-se assim, justamente com essa
ideia, outro dos núcleos principais da colonialidade/mo-
dernidade eurocêntrica: uma concepção de humanidade
segundo a qual a população do mundo se diferenciava
em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primi-
tivos e civilizados, tracionais e modernos.88
Considerando então os apontamentos oferecidos pelos
estudos decoloniais, é possível identificar que aqueles pro-

87 Anibal Quijano, Colonialidade do poder e classificação social, 2009, p. 74 (grifo do autor).


88 Anibal Quijano, Colonialidade do poder e classificação social, 2009, p. 75 (grifo do autor).

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cessos de colonizações dos pilares e das racionalidades na


modernidade, apresentados por Boaventura, não podem
ser compreendidos como um fracasso. Ao contrário, trata-
va-se (e ainda agora trata-se) de um acerto ideológico, um
processo direcionado à produção de um imaginário social
pelo qual estrutura-se toda a comunidade global por meio
de ordens simbólicas bem definidas, conformando assim as
linhas de uma epistemologia hegemônica da modernidade.
Nesse sentido, como a discussão sobre os direitos hu-
manos se insere nessa forma de compreender a moderni-
dade quando retomamos que a elaboração do conceito de
direitos humanos somente se dá nesse intervalo epistemo-
lógico da modernidade? E como a laicidade se localiza no
contexto dos estudos decoloniais?
Para a primeira questão recorremos a Boaventura, que
vai dissecar o conceito dos direitos humanos na moder-
nidade apontando quatro pressupostos que configuram
esse rol de prerrogativas exigíveis. Em primeiro lugar
tem-se a existência de uma natureza humana universal
alcançável por meio da razão; em segundo tem-se o re-
conhecimento de uma diferença e cisão essencial entre
a condição humana e o resto da realidade; por terceiro
tem-se uma acepção de dignidade como um dado abso-
luto e irredutível exigível em face do Estado e da socieda-
de, isto é, de todos os demais indivíduos e grupos e, por
fim, um quarto pressuposto: a necessidade de uma socie-
dade não hierarquizada composta de sujeitos livres para
a concretização da autonomia das vontades. Boaventura
de Souza Santos89 destaca de pronto que esse conjunto

89 Boaventura de Souza Santos, Para descolonizar occidente, 2010, p. 89.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

rígido de pressupostos, a despeito de apresentar-se como


universal, é um reflexo invariável da ocidentalidade mo-
derna, atendendo a uma agenda política liberal que aca-
bou por esvaziar o sentido último em se elaborar um
rol de prerrogativas exigíveis por todos os indivíduos e
grupos em quaisquer lugares.
A partir do pós-guerra, como aponta Santos, as políti-
cas públicas desenvolvidas no Ocidente em torno da ideia
dos direitos humanos “serviram a interesses econômicos
e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos”90,
afastando-se gradativamente do conteúdo originalmente
anunciado, tanto ao se considerarem os problemas ineren-
tes ao rol de pressupostos quanto a seus efeitos práticos
nos espaços onde foram implementados. Quando aplica-
mos sobre o rol de pressupostos uma breve análise críti-
ca em perspectiva decolonial, identificamos problemas de
ordem ideológica, isto é, determinadas seleções ocultadas
pela superfície do discurso dos DH, desdobrados daqueles
processos de colonizações dos pilares da modernidade.
Quando afirma-se, pelo primeiro pressuposto, a existência
de uma natureza humana universal, vislumbramos um
movimento homogeneizador que se dirige para o silencia-
mento de todos os traços externos àqueles selecionados
naquela ideia-imagem eurocêntrica, ocultando a diversi-
dade que é em si mesma traço da condição humana e um
obstáculo às tentativas de redução da condição humana à
delimitação de uma dada existência, um prévio modelo.
O segundo pressuposto, ao fixar a ideia de uma di-
ferença ou cisão essencial entre a condição humana e o

90 Boaventura de Souza Santos, Para descolonizar occidente, 2010, p. 90.

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resto da realidade, realiza o núcleo da racionalidade cien-


tífica na modernidade, isto é, a ideia do indivíduo huma-
no como sujeito do conhecimento, aquele que o produz,
enquanto a natureza passa a ser algo extirpado, o objeto
do conhecimento, algo que o ser humano passa a encarar
como um dado manipulável, ao dispor do interesse de
sujeito cognoscente. Essa cisão não apenas é o vetor da
profusão da lógica da individualidade, como do próprio
capitalismo, objetivando todas as coisas, inclusive os su-
jeitos externalizados pelo discurso desse sujeito europeu
hegemônico - o sujeito universal -, posicionados como
objeto de conhecimento, como coisas das quais se precise
dizer algo, conhecer, e não como sujeitos protagonistas do
conhecimento operável sobre si mesmo.
No terceiro pressuposto, a acepção de dignidade como
um dado absoluto e irredutível exigível em face do Estado
e da sociedade, observamos um desdobramento do segun-
do, da individualidade como lógica estrutural, dissipando
interesses de grupos e necessidades próprias a eles - que
deveriam integrar aquele rol de prerrogativas mínimas -,
temos uma seleção prefixada que atende a uma agenda
que, em parte91, corresponde à experiência europeia, mas
que de nenhum modo pode apresentar-se como reflexo
da historicidade mundial por uma razão óbvia, a exclusão
de todos os demais povos de sua elaboração. Finalmente,
no quarto pressuposto, a necessidade de uma sociedade
não hierarquizada, temos a ideia de que as sociedades
modernas são livres e de que o princípio da liberdade
enquanto primeiro pilar desse modelo de sociedade deve
91 Tendo em vista que mesmo entre os europeus persistem críticas ao rol constitutivo dos DH e à
cooptação pela agenda ideológica liberal da modernidade.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

orientar todas as escolhas, públicas e privadas, na direção


de uma não hierarquização. Todavia, quando considera-
mos as colonizações que se deram no pilar da emanci-
pação e mesmo no pilar da regulação quando sabemos
que o princípio do Mercado instrumentalizou os do Es-
tado e da Comunidade sob seus símbolos, não podemos
identificar uma não hierarquização. Ao contrário, verifica-
mos uma clara ordenação social, rigidamente legitimada
pelo Direito, para manutenção e contenção de eventuais
desvios nesse modelo colonizado reduzido aos interesses
mercadológicos. Logo, a afirmação de uma sociedade or-
ganizada de uma forma não hierárquica é uma grande fa-
lácia, quando se reconhece a produção de um imaginário
social reflexo desses processos de colonização simbólica
dos pilares modernos.
Essa análise também ecoa no pensamento de Boaven-
tura quando é jogada luz sobre as inúmeras atrocidades
realizadas em nome do “discurso generoso e tentador dos
direitos humanos”92 sobre os povos não europeus. Além
dessas ponderações, o autor sugere ainda quatro aponta-
mentos críticos a respeito do discurso dos direitos huma-
nos: 1. a elaboração da Declaração Universal de 1948 foi
um movimento dirigido a atender um projeto de poder
hegemônico ocidental eurocêntrico, sendo excluída deli-
beradamente de sua elaboração a maioria dos povos do
mundo e suas demandas locais; 2. a hipervalorização dos
direitos individuais em detrimento dos coletivos, favore-
cendo a racionalização individualista da sociedade de mer-
cado a despeito de necessidades explicitamente coletivas;

92 Boaventura de Souza Santos, Para descolonizar occidente, 2010, p. 90.

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3. a prioridade dada aos direitos civis e políticos sobre os


direitos econômicos, sociais e culturais que, assim como o
segundo apontamento, refletem uma seleção nitidamente
liberal de delineamento social em favor da lógica merca-
dológica; 4. o reconhecimento do direito à propriedade
privada sem todas as inevitáveis ressalvas e reparações,
tendo em conta os milhares de despropriados, em todos
os povos, vitimados pelas violências patrimoniais anterio-
res aos regimes democráticos (práticas espúrias de aqui-
sição de propriedades diversas, como aquelas realizadas
no período feudal, as grilagens nos regimes de direito,
os favores ilegítimos e prévios e posteriores aos Estados
democráticos, as heranças de períodos também anteriores
aos processos democráticos ou ainda a dinâmica patrimo-
nial própria às práticas abolicionistas não reparadoras que
inseriam nas sociedades em que se praticou a escravidão
em massa de indivíduos e grupos despropriados e instan-
taneamente vitimados pela pobreza), tornando-se a ideia
de estruturar o Estado para defesa da propriedade privada
contra os despropriados – no contexto do quarto apon-
tamento – em si mesma uma violência, ao servir como
silenciamento a quaisquer insurgências orientadas para a
produção de igualdade no direito à propriedade93.
A despeito do conteúdo ideológico a partir do qual se
originam e efetivam os direitos humanos, é reconhecida
sua importância por todos os grupos sociais no mundo
ocidental, buscando, todos eles, a efetividade dos valo-
res por eles anunciados num contexto de reelaboração de
elementos internos de maneira a corrigir as distorções nas

93 Boaventura de Souza Santos, Para descolonizar occidente, 2010, p. 90.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

aplicações e a superação da perspectiva universal silen-


ciadora das demandas locais. Para tanto, faz-se necessária
a discussão de uma agenda emancipatória que responda
à realidade local, de baixo para cima, ajustando as falhas
apontadas por Boaventura nos quatro pressupostos con-
ceituais dos DH, além de posicioná-los fora do cenário
político-ideológico liberal em sendo observados os quatro
apontamentos críticos, também discutidos em Santos.
Tal empreitada pode se realizar num intervalo teórico
decolonial em que os sujeitos assumem posições de pro-
tagonismo da elaboração dessas novas realidades sociais
para a experiência dos Direitos Humanos e, sobretudo,
de seus reflexos internos, os Direitos Fundamentais, mi-
rando a superação das identidades subalternas e do pen-
samento abissal.

6. O fenômeno sócio-jurídico da laicidade,


(de)colonialidade e o pensamento abissal
A partir desta seção articularemos as expressões “norma
laica” e “discurso laico” para discutir os processos de con-
figuração das relações sociais determinadas pelo elemento
religioso desde a modernidade, sendo necessário destacar
que não serão tratadas como expressões sinônimas.
Quando utilizarmos “norma laica”, estaremos a tratar
do conteúdo propriamente jurídico, o fragmento de lei
de que cada país se utiliza para fixar a norma de separa-
ção entre o Estado e as religiões em seu território. Desse
modo, a norma laica é sempre específica a um ordena-
mento jurídico determinado; no Brasil, p. ex. ela se en-
contra na Constituição de 1988 no art.19. inciso I, ocor-

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rendo tantas variações normativas quantos vários são os


ordenamentos dos países ocidentais. A norma laica será
então aqui tratada como o intervalo de sentido jurídico
entre o dever-ser normativo (a maneira como se delimita
juridicamente a laicidade) e o ser social (o grau de efetivi-
dade que a norma laica apresenta em cada realidade). Por
outro lado, quando nos valermos da expressão “discurso
laico”, estaremos tratando a laicidade como uma prática
social. Fairclough94 diz que o discurso é “o uso da lingua-
gem como forma de prática social”, um modo de ação
utilizado pelas pessoas para agir sobre o mundo e, em
especial, sobre os outros. O discurso é um fenômeno so-
cialmente constitutivo porque contribui para a formação
de todas as dimensões da estrutura social. Muito além de
formas de significar o mundo, o discurso corresponde às
possibilidades de práticas sociais, construindo a partir dele
a realidade social experimentada. Fairclough95 entende o
discurso como fenômeno a partir do qual são constituídas
as relações sociais, as identidades sociais e, por meio das
relações dialéticas entre essas duas, o posicionamento so-
cial dos sujeitos, pois os discursos fixam as condições de
compreensão, interação e existência social. Desse modo,
quando utilizarmos a expressão “discurso laico” estaremos
tratando não da norma laica, mas das práticas sociais que
fixam as relações, as identidades e o posicionamento dos
indivíduos e grupos a partir das interações determinadas
pelo elemento religioso.
Dito isso, sigamos.

94 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 90.


95 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Quando da instauração da modernidade, o discurso


laico apresentou-se como importante ferramenta para a
transição, isso porque através dele iniciaram-se os pro-
cedimentos simbólicos de deslocamento do sagrado, das
instâncias de poder coletivo – enquanto recurso de legi-
timação da gestão de todos os aspectos da vida – para a
esfera privada, da individualidade. O domínio do sagrado
no modo de elaboração da realidade social se configurava
como um óbice para o novo modelo.
Sobre o conceito possível, Ferry e Gauchet dizem que
o sagrado corresponde ao “encontro material entre a na-
tureza e a sobrenaturalidade [...] é a conjunção tangível
do visível e do invisível, do aqui embaixo e do além”96,
implicando um modo de produção de sentidos elaborado
e compreendido na interface entre a experiência concreta
e elementos de outra ordem, situados para além da ex-
periência humana, dissociados da concretude cotidiana.
Evidentemente, esses sentidos ocultavam formas singula-
res de exercício do poder, forjando como legítimos deter-
minados atores sociais no manejo do controle das socie-
dades, sendo o discurso da modernidade o elemento de
pressão para a reconfiguração daqueles arranjos sociais.
Fazendo incidir uma divisão na experiência, de maneira
que a experiência até então una (o social e o metafísico
eram uma categoria única) passa a ser dupla (percebida em
dois aspectos, nomeados como ‘social’ e como ‘metafísico’,
apartando-se a experiência), deslocando-se pelo discurso
laico esta última, como escolha privada dos sujeitos que

96 Luc Ferry e Marcel Gauchet, Depois da religião: o que será do homem depois que a religião
deixar de ditar a lei?, 2008, p. 48-49.

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assim a desejassem a partir de uma experiência racional de


seleção e não mais pela imposição do senso comum opera-
do pela presença acrítica do sagrado no domínio coletivo.
De modo que o discurso laico é suficiente para operar tal
cisão, em maior ou menor medida, em toda a modernida-
de, reposicionando o sentido do sagrado – e das práticas
sociais da religião – na experiência social privada.
O discurso laico instrumentaliza esse reposicionamen-
to, sustentando a impossibilidade e negação de toda auto-
ridade religiosa externa à consciência e escolha individual,
a negação da Igreja como governo a priori da sociedade,
movimento de desconstrução de seu papel como artífice
e tutora do senso comum. O discurso laico anuncia o pro-
jeto de reelaboração da vida moral e social dissociada de
qualquer influência das instituições sagradas97. A laicidade
– ao apontar para um modelo de estado dissociado da
religião – vai privilegiar a experiência humana descolada
dos elementos externos a ela, não constatáveis, metafísi-
cos, abrindo caminho para a legitimação do uso da racio-
nalidade em lugar do sagrado na produção do conteúdo
público para organização da realidade social.
Para Pena-Ruiz98, a separação laica foi a condição para
a emancipação – ou ruptura – com os modos anteriores de
produção de sentidos coletivos; o ponto de partida para
constituição dos Estados Modernos. O discurso laico ope-
rou uma cisão na experiência social dos indivíduos, como
afirma Pena-Ruiz99, quando por meio dele vislumbrou-se

97 Jean-Baptiste Trotabas, La notion de laïcité dans le Droit de l’Eglise catholique et de l’Etat répu-
blicain, 1961.
98 Henri Pena-Ruiz, La Laïcité, 2003a.
99 Henri Pena-Ruiz, Qu’est-ce que la laïcité?, 2003b.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

“a distinção entre a pessoa privada e a pessoa pública”,


pois o sujeito poderia, a um só tempo, escolher a adesão
ao sagrado na configuração de sua experiência pessoal,
mas também reconhecer o Estado como fenômeno cole-
tivo não sujeito a esse tipo de escolha, dada a pluralida-
de irreconciliável de possibilidades de sagrados, devendo
este Estado restringir-se às seleções de conteúdos racional-
mente tangenciáveis, por serem esses produtos suscetíveis
do crivo coletivo, diferentemente do conteúdo do sagrado,
alcançável unicamente por fiéis.
Pena-Ruiz100 qualifica a norma laica como direito políti-
co fundamental, um ideal universal da organização estatal
e do sistema legal. Nesse sentido, o autor vai prescrever
um conteúdo mínimo para a normatividade laica consi-
derando três exigências indissociáveis: 1. a liberdade de
consciência; 2. igualdade de todos os cidadãos, indepen-
dentemente das suas crenças espirituais, sexo ou origem
e, 3. a busca pelo interesse geral do bem comum a todos.
A laicidade seria, em perspectiva jurídica, a superação, na
esfera pública, do domínio e influência do sagrado na or-
ganização da experiência social.
Sem a instrumentalização do discurso laico o modelo
moderno não teria logrado êxito em seu estabelecimento.
Por meio dele, pelo esvaziamento dos sentidos do sagra-
do na escolha pública, os dois pilares se estruturaram. No
pilar regulação, o Estado organizou-se em torno dos ideais
de autonomia e legitimidade ancoradas na racionalidade e
antropocentrismo; o Mercado alcançou a possibilidade de
desenvolvimento e expansão fora do controle político e mo-

100 Henri Pena-Ruiz, Qu’est-ce que la laïcité?, 2003b.

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ral do sagrado, desvencilhando-se das limitações impostas


desde antes do antigo regime; a Comunidade passa a poder
experimentar os ideais de autodeterminação e as liberdades.
A legitimidade verticalizada desloca-se do sagrado-igreja-
monarca-sociedade para lei-Estado-sociedade numa eviden-
te ode à razão. São também esgarçadas as hierarquias fixadas
na comunidade ao se anunciar uma horizontalidade recípro-
ca de direitos. Mas é no pilar da emancipação que o discurso
laico opera mais visivelmente sua incidência ao viabilizar a
elaboração e expansão das lógicas das artes e literatura, da
cientificidade, da autonomia do Direito e o desenvolvimento
de uma ética pautada no indivíduo. A promessa central (e
explícita) da laicidade era o reposicionamento das religiões,
deslocando o sagrado para a experiência privada, ao passo
que se anunciava uma igualdade entre os credos e a viabili-
dade das liberdades (de consciência, pensamento, crença e
culto). Mas, implicitamente, a maior de suas promessas era a
viabilidade do modelo moderno.
Como observamos em Boaventura101, os sentidos pro-
duzidos pela lógica do Direito e da ciência se autorrefen-
ciaram gradativamente, valendo-se esta da força coercitiva
daquele para impor-se contra a força simbólica do sagrado
(e de outros modos de produção de sentidos antagônicos
à modernidade), subvertendo-se então a funcionalidade do
pilar emancipatório, sendo este cooptado pelo da regulação
após a colonização dos sentidos do Mercado sobre os do
Estado e da Comunidade, não podendo se dar tal processo
de desvirtuamento sem a veiculação do discurso laico.
O discurso laico pode ser apreendido por meio das

101 Boaventura de Souza Santos, Para um novo senso comum, 2002.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

experiências laicas realizadas nos Estados modernos no


Ocidente. De partida, observa-se que a universalidade102
pretendida para a laicidade – a saber, a separação entre os
interesses religiosos (cristãos, na esmagadora maioria da
experiência europeia e americana), e aqueles de natureza
coletiva, adjetivados como públicos – não se implementou
em nenhum local. Isso porque à medida que os Estados
aderiam ao modelo moderno, articulavam a seu modo as
condições de existência para o discurso laico, num proces-
so de gradação classificado por Catroga103 como dividido
entre não-laicidades104 (em que adotam-se política e juri-
dicamente religiões oficiais), quase-laicidades105 (em que
se verifica o regime de separação com ressalvas, existindo

102 Traço característico das demais linhas definidoras da modernidade, a ideia de universalidade
para o principio (ou axioma) da laicidade foi reconhecida internacionalmente quando em 2005,
por ocasião das comemorações do centenário da separação do Estado-Igrejas na França, foi
apresentada no Senado Francês a Declaração Universal da Laicidade no Século XXI. O docu-
mento redigido pelo francês Jean Baubérot, pela canadense Micheline Milot e pelo mexicano
Roberto Blancarte se configura como esforço de afirmação intercontinental da importância da
separação dos interesses religiosos e públicos. A pretensa universalidade do conteúdo laico é
observada nos seus dois primeiros artigos “art. 1º: Todos os seres humanos têm direito ao res-
peito à sua liberdade de consciência e à sua prática individual e coletiva. Este respeito implica a
liberdade de se aderir ou não a uma religião ou a convicções filosóficas (incluindo o teísmo e o
agnosticismo), o reconhecimento da autonomia da consciência individual, da liberdade pessoal
dos seres humanos e da sua livre escolha em matéria de religião e de convicção. Isso também
implica o respeito pelo Estado, dentro dos limites de uma ordem pública democrática e do res-
peito aos direitos fundamentais, à autonomia das religiões e das convicções filosóficas. art. 2º:
Para que os Estados tenham condições de garantir um tratamento igualitário aos seres humanos
e às diferentes religiões e crenças (dentro dos limites indicados), a ordem política deve ter a
liberdade para elaborar normas coletivas sem que alguma religião ou crença domine o poder e
as instituições públicas. Consequentemente, a autonomia do Estado implica a dissociação entre
a lei civil e as normas religiosas ou filosóficas particulares. As religiões e os grupos de convicção
devem participar livremente dos debates da sociedade civil. Os Estados não podem, de forma
alguma, dominar esta sociedade e impor doutrinas ou comportamentos a priori.”
103 Fernando Catroga, Entre deuses e Césares, 2010.
104 Na União Europeia, sete países adotam o regime de Igrejas de Estado: o anglicanismo na
Inglaterra; a Igreja Ortodoxa na Grécia; o catolicismo em Malta; e o Luteranismo na Finlândia,
Dinamarca, Noruega e Suécia.
105 Ainda no continente europeu, implementa-se legalmente uma separação das Igrejas e do Estado,
com ressalvas: Portugal, Hungria, Letônia, República Tcheca e Eslováquia e, na América Latina,
podemos mencionar o Brasil que, a despeito assegurar a separação por meio do art. 19, inciso I
da Constituição de 1988, promulgou em fevereiro de 2010 o Decreto nº 7.107 que institui acordo
entre o Governo brasileiro e a Santa Sé estabelecendo direitos à Igreja Católica não estendidos
às demais religiões.

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em alguns lugares Acordos e Tratados que fixam privilé-


gios a certas religiões) e laicidades (onde se observa o re-
gime de separação entre Estado-religiões sem a ocorrência
de exceções jurídicas).
Como sinalizado por Catroga106, as formas de organi-
zação das sociedades ocidentais modernas em relação
ao elemento religioso oscila entre essas três possibilida-
des gerais. Na primeira, as não-laicidades, é reconhecida
juridicamente em nível estatal, uma diferenciação entre
os credos, inexistindo uma horizontalidade recíproca de
direitos quando evoca-se para o Estado uma religião es-
pecífica, distinguindo notoriamente os cidadãos que são
achados representados pelo Estado e aqueles outros que
são por ele apenas tolerados. A segunda, as quase-laici-
dades, chegam a reconhecer a importância do princípio
da separação em seus ordenamentos jurídicos, mas são
promovidos fragmentos jurídicos que subvertem a separa-
ção, inviabilizando-a juridicamente, possibilitando interfe-
rências mais ou menos indiretas de determinadas religiões
na configuração dos interesses anunciados como públicos
em detrimento dos interesses díspares de outros grupos
de religiões não contemplados juridicamente por tais atos
normativos. Por fim, o último formato - as laicidades -
é marcado pelo reconhecimento constitucional ou infra-
constitucional do princípio da separação sem a promoção
jurídica de disparidades entre os credos.
Nas Américas, Huaco107 observa que Argentina, Brasil,
Colômbia, Costa Rica, Equador, Paraguai, Peru, El ­Salvador,

106 Fernando Catroga, Entre deuses e Césares, 2010.


107 Marco Huaco, A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito, 2008.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Honduras, Panamá, Venezuela, Antigua e Barbuda, Beli-


ce, Granada, Saint Kitts e Nevis, Santa Lucia, São Vicente
e Lãs Grandinas e Suriname apresentam menções a Deus
e a religiões em suas legislações e em seus preâmbulos
constitucionais, sendo que dentre estes, Brasil, Argentina,
Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, El Salvador e Venezuela
possuem Acordos e Tratados jurídicos firmados com a Santa
Sé, configurando tais nações como quase-laicidades. Como
modelos próximos ao conceito de laicidades, aponta Marco
Huaco: México, Chile, Uruguai, Guatemala, Barbados, Ca-
nadá, Cuba, Guiana, Dominica, Haiti e Jamaica.
A laicidade – a norma laica – operou-se juridicamen-
te de formas distintas, por vezes inexistente, nos ordena-
mentos ocidentais, mas em todas as nações democráticas
moldadas pela modernidade pode-se reconhecer como
presente o convívio entre indivíduos diferenciados pelo
elemento religioso. A interação social entre os indivíduos
e grupos diferenciados pelo elemento religioso é traço de
todas as democracias. Assim, o discurso laico fez a norma
laica ser percebida exclusivamente como fenômeno jurí-
dico; como uma ficta promessa de separação e igualdade
entre credos dirigida ao Estado. Ao Estado caberia ser lai-
co, enquanto aos indivíduos e grupos, não, configurando-
se então uma percepção social de distância entre a laici-
dade e a experiência social; devendo o Estado ser laico,
não os indivíduos, não suas experiências sociais. Isso por-
que a escolha do sagrado pelos indivíduos e grupos seria
equivalente a uma postura de seleção incompatível com
o comando normativo de laicidade, devendo o Estado ser
laico quando da gestão de posicionamento das religiões

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nas esferas ­privadas, protegendo assim o espaço público


para convívio de todos os credos.
Mas o discurso laico, desde sua origem, não se dirigia uni-
camente ao Estado. Se estavam postas no cotidiano relações
sociais determinadas pelo elemento religioso (entre indivíduos
e grupos religiosos e não religiosos) orientadas pelo sagrado
em ajustes hierarquizados, a norma laica, dirigida para o Estado,
haveria de converter-se, em alguma medida, em prática social,
alterando aquelas realidades (aproximando-se da efetividade
para a norma anunciada) ou mantendo-as (distanciando-se da
sua realização social). Essa prática social laica, isto é o discurso
laico, seria suficiente para posicionar socialmente de alguma
maneira os indivíduos e grupos determinados em razão do ele-
mento religioso, produzido uma igualdade entre credos ou não.
Isto é, no espaço entre o conteúdo jurídico extraído da promes-
sa veiculada pela norma laica (sua expectativa normativa108) e a
experiência social, desdobraram-se os graus de efetividade.

108 Para estabelecer uma diferenciação entre expectativas cognitivas e expectativas normativas,
Niklas Luhmann evidencia alguns aspectos específicos do processo de cognição social. De acor-
do com o autor, considerando o mundo sensorialmente constituído, complexo e contingente,
faz-se necessário aos indivíduos a redução de todas as possibilidades de seleção cognitiva para
tomada de decisão, de maneira que se torna quase impossível considerar, efetivamente, em cada
ação, todas as possibilidades existentes, de modo que os indivíduos estão reduzindo esse campo
de possibilidade pois realizam seleções, e estas são percebidas pelos destinatários interlocutores
não mais como seleções, mas sim como fatos ou premissas que, por sua vez, determinam as
próximas tomadas de decisão, ao serem incorporadas a esses posicionamentos posteriores. A
redução de possibilidade no exame próprio das alternativas ocasiona um alívio que viabiliza a
comunicação e experiência social fixando estruturas. A partir disso são estabelecidas determina-
das expectativas em relação aos comportamentos que, quando não correspondidos, ocasionam
frustração que demanda dos indivíduos estratégias que organizem as eventuais respostas a essas
frustrações. De acordo com Luhmann, as estratégias se organizam em dois grupos possíveis:
abandonar as expectativas ou persistir nelas. Essa diferenciação é, com efeito, o critério de dife-
renciação para as exceptivas cognitivas e normativas. O desapontamento, ou frustração, diante
de uma expectativa cognitiva demanda uma resposta de adaptação à frustração, assimila-se a
frustração à realidade, abandonando-se a expectativa de determinados comportamentos previa-
mente exigidos. Diferentes são as respostas quando se trata de expectativas normativas, de ma-
neira que estas não são abandonadas, resistindo às frustrações, persistindo na experiência pela
exigência daquelas condutas previamente esperadas. Na hipótese de Luhmann, quanto menos
complexas as sociedades maior proximidade se observará entre as expectativas, de modo que
quanto mais complexa e contingente a sociedade maior e mais necessária será a diferenciação
entre expectativas normativas e expectativas cognitivas.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Sobre esses graus de efetividade incidem – com fre-


quência – análises normativo-jurídicas, prescritivas, acerca
de ‘como as coisas deveriam ser’, ‘como as interações de-
veriam ser’ (se mais ou menos laicas, se maior ou menor
a separação Estado-Igrejas), não sendo evidenciado, em
grande parcela das discussões que, a despeito do modelo
de laicidade aplicado, o discurso laico é sempre suficiente
para posicionar de alguma maneira os indivíduos no teci-
do social, ao estabelecer como a distribuição de poder se
opera naquela realidade social, por meio de sua efetivida-
de, sua inefetividade e até mesmo sua ausência.
O discurso laico é esta forma específica de organizar os
sentidos socialmente partilhados sobre a interação entre
indivíduos e grupos diferenciados pelo elemento religio-
so, fixando modos de distribuição e exercício de poder,
posicionando, a partir disso, os sujeitos e conformando as
possibilidades e elaboração identitárias. Ele é constituído
pela anunciada homogeneidade universal da separação
Estado-Igrejas, pela multiplicidade de sua (in)efetividade
jurídico-normativa e pela percepção de distanciamento e
dissociação entre o conteúdo laico e a experiência priva-
da, operando uma das facetas de colonialidade do poder:
a diferenciação racial pela categoria do religioso.
Na modernidade, a laicidade, enquanto prática sócio-
discursiva, operou uma ordenação peculiar dos sentidos,
pautando modos de produção e reprodução da realidade
social, configurados a partir de, minimamente, sete aspec-
tos: 1. fixação do racional como recurso de significação
hierarquicamente superior ao sagrado, diferenciando as
formas de produção de sentido entre as racionais e as

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sagradas, sendo estas inferiores àquelas; 2. hierarquização


entre o racional e o sagrado e entre o sagrado eurocen-
trado – que carregava os signos da experiência religiosa
europeia – e os demais sagrados, subalternizando estes
últimos; 3. hierarquização dos sujeitos a partir de seus mo-
dos de produção do conhecimento, estabelecendo-se três
categorias subjetivas: sujeito-racional, o sujeito religioso-
cristão e o sujeito religioso-outro, valorados como sujeitos
mais ou menos legítimos, importando uma classificação
racial das populações em razão do elemento religioso eu-
rocêntrico (cristão). Nisso tem-se a produção de estima/es-
tigma identitárias em razão da organização do valor que os
diversos elementos religiosos passam a ter socialmente; 4.
política de estigmatização de todas as demais alternativas
não eurocêntricas, variando entre a mais tolerável e a mais
repugnante, numa relação de reconhecimento-rejeição a
partir dos caracteres eurocêntricos; 5. dada a seleção de
um modo de produção único da realidade, a fixação de
modos próprios de distribuição do poder, de seu exercício
e controle, legitimando atores sociais hierarquizados para
exercício do controle do discurso racional laico, seus graus
de efetividade; 6. a naturalização da diferenciação iden-
titária determinada pelo elemento religioso, viabilizando
o acesso e protagonismo no espaço público por aqueles
que ostentavam os elementos racionais e religiosos-cris-
tãos ao passo que marginalizava todos os demais; 7. pelas
identidades estigmatizadas e marginalizadas produzem-se
sentidos alienados para a (re)posição dessas identidades,
de modo que os problemas sociais vivenciados por esses
sujeitos passam a ser percebidos como externos ao seu

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PARA OS DIREITOS HUMANOS

campo de interferência, dados naturais, operando uma su-


balternidade reforçada em suas práticas grupais internas,
endogrupais, e nas suas interações exogrupais, pautando
a inércia e incapacidade de (re)ação dado o pensamento
abissal instaurado.
A norma laica – dada a expectativa normativa que ela
é capaz de produzir – em si mesma trata de invisibilizar a
operação do discurso laico e seu modo colonial de orde-
nação dos sentidos e produção de identidades ao anun-
ciar-se como uma expectativa de igualdade – separação e
horizontalidade recíproca –, sem quaisquer recursos para
alterações concretas do tecido social, operando como óbi-
ce em si mesmo à mudança que anuncia.
Como pontua Mignolo109, a totalidade da retórica da
modernidade se subdivide em suas microrretóricas, suas
lógicas, que por sua vez também operaram discursos in-
ternos, práticas sociais específicas, como o discurso da lai-
cidade operado de dentro do princípio Estado, permean-
do todos os elementos dos pilares modernos. O discurso
da laicidade, a retórica implícita da salvação que atravessa
diversas áreas da modernidade, como aponta Mignolo,
foi suficiente para o posicionamento colonial de indiví-
duos e grupos, classificando socialmente os indivíduos
em grupos hierarquizados pelo elemento religioso, como
sujeitos-racionais-não-religiosos-legítimos, sujeitos-religio-
sos-cristãos-legítimos e todos os demais como sujeitos-reli-
giosos-não-legítimos.
No entanto, a ideia de pluralidade social, de multipli-
cidade de interações, cuja existência independe da mo-
109 Walter Mignolo, Desobediencia epistémica, 2010.

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dernidade e seus desdobramentos, impõe a necessidade


de elaboração de possibilidades para o convívio e, neste,
da superação dos problemas nele identificados – como a
subalternidade produzida pela colonialidade do poder –,
de maneira que o discurso laico, enquanto prática de po-
sicionamento colonial dos indivíduos e grupos, precisa ser
alcançado pela gramática decolonial, ressignificando-o,
imprimindo sobre ele as possibilidades de superação do
pensamento abissal, visibilidade dos traços determinantes
da subalternidade e elaboração de possibilidades outras.
Quanto aos signos da modernidade, a colonialidade
aponta para o seu abandono: o desapego epistemológico,
localizando-se a laicidade como dentro desses limites a
serem deixados para trás. Mas para a elaboração de ou-
tro campo de possibilidades para o saber e para o ser,
suficiente para fazer ver as distribuições desiguais e su-
balternizantes, não se abandona a ideia de produção de
igualdade entre indivíduos e grupos determinados pelo
elemento religioso; o que se impõe é o reconhecimento
de que o conteúdo prometido para a norma laica haverá
de persistir após o giro decolonial, pois persistirá a neces-
sária ideia de possibilidade de convívio entre os diferentes
e pela diferença determinada a partir do elemento religio-
so, mirando um conteúdo não hierarquizado, plural. Ou-
tros vocábulos, nova sintaxe, uma semântica díspar que
opere o que o discurso laico não foi capaz de fazer, de
baixo para cima, da experiência para a normatização, a
produção de sentidos para uma organização da realidade
social não excludente, não violenta, aquilo que se pode
vislumbrar para além da laicidade, para além do abismo.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

O poder e a violência versus a possibilidade de


uma ética da diferença como ressignificação do
nós nos espaços para além das linhas abissais

Thiago Teixeira
Phablo Freire

Sobre o poder: demarcações necessárias


Embora sejam reiteradamente tratados como sinônimos
no imaginário social, vale a pena travarmos um itinerário
que demarca os pontos de confluência, bem como os de
descontinuidade, entre o poder e a violência.
Trata-se, portanto, de uma pulverização de uma ideo-
logia de poder que se regozija da incapacidade de pensar
outros contornos de sua existência fora, sobretudo, das
dinâmicas ostensivas de repressão, invisibilidade e aniqui-
lamento do que escapa a sua suposta centralidade e uni-
versalidade.
Ao assumirmos o poder como uma potência de realiza-
ção, imediatamente somos levados a também considerá-lo

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como expressão das resistências e das rupturas com estru-


turas demasiadamente hostis e que se dissimulam atrás da
moralidade e de sua irrefletida afeição pela sensação de
naturalidade e a-historicidade.
A ética, nesse sentido, se relaciona ao poder e se inter-
põe contra os seus mecanismos que se articulam na afonia.
É possível que vejamos na disposição ética uma ambiva-
lência: numa primeira acepção ela opera como denúncia
aos valores que retroalimentam a destruição da diferen-
ça num locus. Noutra lente, ela erige uma força reativa e
reinventiva da moral, pois a sua estrutura é integralmente
reflexiva, ativa e reativa.
Nessa dinâmica de reorganização se instaura uma nova
economia de poder. Esta, por sua vez, aparece pulverizada
em seus horizontes de sentido, tensionada e, de fato, cio-
sa do encontro, uma vez que ele se dá, como sabemos, a
partir das diferenças que se colocam dispostas à escuta e à
fala oscilante. Esse processo, embora seja completamente
complexo, provoca uma quebra ostensiva nas engrena-
gens de uma tecnologia de poder que se mantém segura
e que retroalimenta a oposição entre o sujeito e o objeto.
Por vezes, o poder é reconhecido como uma força uni-
lateral, endógena e irrevogavelmente monológica. Essa
expressão tácita do poder de afonia ganha força numa
consciência partilhada, porque sua eficácia se amarra aos
arranjos da moral, da publicidade e da perversão. Nota-
mos que o poder de afonia se entranha em nós como uma
consciência forjada e preparada para fazer com que este-
jamos a serviço de um ideal criado e mantido na lógica do
enfraquecimento das diferenças.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

Nesse sentido, vale dizer que se o poder é uma potên-


cia de ação, ou seja, a descrição mais clara de possibilida-
de e, ao mesmo tempo de liberdade nessa face, isto é, na
articulação que se regozija da centralidade e da violência
contra o que lhe escapa, a ação é iminentemente hostil,
mas com uma sutileza tacanha.
O perigo que o poder provoca se dá com um desejo
criado no interior daqueles que são atacados por ele. Sua
perversão, embora seja devastadora, não é clara e, mais,
passa à distância de uma tecnologia de violência explí-
cita; aquela opera silenciosamente, como uma memória,
uma alma, um desejo de docilidade criado para que a des-
truição pareça o desejo, de bom grado, do destruído. Tal
modalidade de poder, isto é, a composição que descarta
o outro a ponto de incutir nele o próprio desejo por sua
destruição, é compreendido por Byung-Chul Han como
“continuidade”, isto é, essa economia de poder
[...] acaba produzindo uma continuidade no self. Tam-
bém a “vontade” aumenta a continuidade do self na me-
dida em que tenta tornar objetiva a sua interioridade,
imprimindo no exterior o seu interior [...] O poder é fe-
nômeno da interioridade e da subjetividade. 110

Se entendemos o poder como um efeito inventivo, nos


deslocamos de uma compreensão rasteira que o requer
apenas como força ou violência explícita. Por vezes, o
sangue que é jorrado de estruturas vis de poder é derra-
mado no silêncio, mas não como a afonia que incute no
outro, num silêncio ativo e dissimulado cuja ação é or-
questrada como um desejo que se forma no interior, por
meio de um processo tácito de assujeitamento.
110 Byung-Chul Han, O que é poder?, 2018, p. 107-108.

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É possível dizer que o poder constitui, enquanto apara-


to inventivo, as consciências e, mais, torna a sensação de
pertença análoga à partilha do ódio. Odiar se torna, nesse
contexto, o elo de todas e todos, mesmo que, de modo
muito alienado, nos requisitemos fora das fobias e nos
enxerguemos à distância dos preconceitos e julgamentos.
Esse modo de poder, ou seja, como continuidade, não
isenta a nenhum de nós em seu processo de constituição.
Sartre demonstra que o sujeito que se vê impenetrável e
crente de que seus valores são absolutos é um “destruidor
por ofício [...] o que ele deseja, o que prepara, é a mor-
te”111 do outro.
É possível dizer, orientados por Judith Butler, que a nos-
sa subjetividade está atravessada pelas condições de subjeti-
vação que se alinham a essa economia de poder. Relatamo-
nos como sujeitos a partir das insígnias que oscilam e nos
atravessam; nelas encontramos os estatutos que nos fazem
perceber, agir, apreender e reconhecer os outros.
Podemos então entender a “submissão” às regras da ide-
ologia dominante como uma submissão à necessidade de
provar a inocência diante da acusação, uma submissão à
exigência de provas, uma execução dessa prova e a aqui-
sição do status de sujeito em conformidade com os termos
da lei interrogativa e através desta conformidade.112
De modo imediato, essas capacidades estão alinhadas
ao processo de composição de nossas subjetividades e di-
zem sobre as insígnias e os valores que transitam naquela
estrutura de poder. Seu discurso é captado por nós e, ao

111 Jean-Paul Sartre, Reflexões sobre o racismo, 1968, p. 28.


112 Judith Butler, A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, 2017, p. 127.

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

mesmo tempo, nos expropria de uma compreensão mais


alargada da realidade. Essa estrutura de poder opera a par-
tir de um sujeito que reiteradamente demarca os estatutos
de vida e morte e que anuncia, em seu projeto genocida,
a aniquilação do que escapa ao enquadramento113, um ob-
jetivo honroso.
Ao expressar com o seu corpo e com a sua consciência
imediata enraizada das ideologias fundantes e originárias de
um desejo endógeno e afônico de poder, os sujeitos, por
vezes, reproduzem traços de perversão e de hostilidade.
Nessa conjuntura, o sujeito ataca os que são lidos e for-
jados como exceção, inclusive colocam por vezes a si pró-
prios em zonas de perigo, por ter a consciência sobre si,
sobre o seu corpo, afeto, crença e existência, deslocada de
sua real objetividade, pois ela gira numa órbita que não o
afirma. A consciência diz sobre o sujeito norma que, atra-
vés de suas tecnologias, faz com que a vontade de todos,
inclusive daqueles que são amplamente distintos dele, seja
estruturada no ódio e no desejo da morte das exceções.
Estamos cientes de que o poder, enquanto capacidade
de realizar algo, oscila constantemente entre a liberda-
de e a coerção. De modo pontual, a sua estrutura mais
perversa ocorre exatamente em alinhamento com a mo-
ral, ou seja, como uma coerção silenciosa. Seus efeitos
de constituição, norma e nivelamento orquestram, por
exemplo, uma domesticação dos corpos. Nesse sentido,

113 Na perspectiva da filósofa os enquadramentos são referidos aos modelos de compreensão sobre
quais existências são designadas como vidas e, ao mesmo tempo, quais são indignas inclusive do
luto, a partir de uma legitimidade constituída de existência. Ela nos deixa perceber a realidade a
partir de uma dimensão violenta e restritiva. Nos enquadramentos estão os pressupostos que an-
tecedem a nossa própria capacidade de reconhecer. Os enquadramentos “atuam para diferenciar
as vidas das que podemos apreender das que não podemos” (BUTLER, 2017, p. 17).

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as liberdades são enfraquecidas em nome de uma identi-


dade construída e marcadora.
Na compreensão dessa identidade que se forja como re-
gra, as dinâmicas de intercâmbio pautadas na reciprocida-
de são tão perigosas que, aos poucos, o que se faz é des-
truir todo o eco da voz e da presença do outro. O poder
de afonia que, sorrateiramente, compõe as economias de
poder requisita modelos de supressão e de aniquilamento
dos que fogem à regra. A mídia, a publicidade e o humor,
por exemplo, são mecanismos que atendem às exigências
de uma moral e de uma ideologia vigentes. Suas articula-
ções demonstram os valores que transitam e demarcam os
modelos enquadrantes de um tempo.
É imprescindível que ampliemos, a partir de reflexões
e ações éticas, os modelos que nos fazem perceber a
realidade. Se a moral incialmente tende aos processos
de restrição para manter o seu desejo falacioso de esta-
bilidade e atemporalidade, a ética, numa órbita inflexiva,
dinamita as narrativas unilaterais. Numa dimensão ética,
o encontro entre o eu e o outro não perpassa por um
desnível, tampouco pela manutenção de valores impe-
netráveis que alocam o outro, seu corpo e narrativa, no
lugar da exceção e da execução. É preciso que a pers-
pectiva da subversão dos valores morais restritivos entre
em rota de colisão com um poder violento e seu anseio
sádico pela morte do outro.

Poder e violência: interfaces perigosas


Percebemos, até aqui, que a aproximação entre poder
e violência não corresponde a uma relação intransponível

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

entre causa e efeito. É preciso considerar, por exemplo,


que a possibilidade pode demonstrar uma capacidade de
resistência e, mais, de restituir um poder enfraquecido.
Nessa lógica, empoderar-se diz respeito a um processo
que quebra as engrenagens de uma máquina multifacetada
de violência. O empoderamento em suas transformações
estruturais ressignifica um ambiente político constituído
numa “hierarquização revisitada, tendo como base o dis-
curso e o conhecimento concentrado como poder que é
capaz de manipular pela propagação da história única.”114
É muito comum que olhemos para os meios que pulve-
rizam e que materializam o espírito do nosso tempo. Neles
é possível considerar que valores como racismo, misoginia
e xenofobia, por exemplo, sejam descaradamente esfrega-
dos em nossos rostos, requisitando, do alto da perversão
dessa formatação moral e de seus valores odiosos, o riso.
Como afirma Adilson Moreira, esses mecanismos constro-
em “microagressões”115, ou seja, neles o humor é utilizado
como forma de propagar valores odiosos. Sua capacida-
de de destilar violência é tão aguda e eficaz que quando
denunciado rapidamente o agressor se esconde atrás da
liberdade de fazer sorrir. A recreação, nesse sentido, opera
como instrumento que reproduz, de forma supostamente
inofensiva, desumanidade.
A pulverização desse poder que mascara os seus efeitos
de silenciamento em nome do humor também o faz a par-
tir de uma falsa noção de liberdade de expressão. Nessa
falsa noção, o ressentimento e o desejo de morte do outro

114 Joice Berth, O que é empoderamento, 2018, p. 78.


115 Adilson Moreira, Racismo recreativo, 2019, p. 51.

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aparecem como uma opinião que, por sua vez, se articula


absoluta e impenetrável, tão nociva quando uma arma em-
punhada, mas “legitimada” num suposto direito.
O que se esquece, ou melhor, o que se quer esquecer
é o fato de que liberdade de expressão e violência são
lugares amplamente distintos. A liberdade de expressão
é um direito e, por consequência, requisita um princípio
mínimo de responsabilidade; a violência, ao contrário, fo-
menta uma anticonsciência, ela é irresponsável e desejosa
da morte do outro, ou seja, “aquele que fomenta verbal-
mente a violência trabalha na formação da violência sim-
bólica.”116
A publicidade geral, isto é, não a específica que se pro-
duz no intramundo das agências, é retroalimentada pelo
poder de afonia que dissemina os valores morais articu-
lados na restrição. Ela é tão tóxica que legitima, sem que
percebamos com tanta clareza e objetividade, que pesso-
as marcadas como diferentes — por escaparem à norma
construída num discurso de poder — sejam mortas, ape-
nas por existir; além disso, que a sua morte seja divulgada
numa grande mídia digital e que outras pessoas comemo-
rem a brutalidade exercida. A moralidade sem a reflexão
de uma ética inflexiva ainda mata muitas Dandaras.
A comemoração da morte dos que são lidos como “os
outros”, à distância, demarca um grave problema ético que
se sustenta na restrição do que se considera como vida.
Quando a morte de Mãe Stela do Oxóssi foi festejada nas
redes sociais, percebemos o nível nefasto que orbita como
face dessa moral restritiva. A cor da pele, a sexualidade,
116 Márcia Tiburi, Como conversar com um fascista? 2018, p. 78

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

a religião foram insígnias de denúncia. Essa atitude indica


quem merece e quem não merece viver, ou seja, a norma
validada a partir de uma subjetividade supostamente he-
gemônica estabelece “um processo de força que domina,
marginaliza e altera nossas disposições em relação à morte
do outro”117.
Caminhamos na direção de uma crítica ostensiva à nor-
ma, enquanto centralidade de poder e manutenção de sua
economia restritiva que, embora seja externa, cria um efei-
to de continuidade, memória e interioridade. Sua extensão
molda a nossa consciência e articula, sob os efeitos de
vigia e punição, as nossas vidas. Essa norma cria uma “al-
ma”118 que se torna a prisão dos nossos corpos. Violar é
utilizar a força, ou seja, é brutalizar a fim de que o objetivo
final seja alcançado: o controle. Todavia, é preciso que
nos mantenhamos alertas e conscienciosos de que força
não necessariamente é sinônimo de tortura. Ela pode, in-
clusive, se materializar na forma de coerção, pois essa tec-
nologia cria um efeito de naturalização de seus interesses.
Enquanto coerção, ou seja, como mecanismo de natu-
ralização da desumanização, o poder age de forma a en-
fraquecer o que escapa de sua zona de apreensão. Assim,
sua característica mais vil diz respeito ao processo de ba-
nalização da violência e da morte do outro. Cria-se, nesse
contexto, um estado de exceção, uma “soberania”119 que
valida - como arranjo político, econômico, estético, sexu-
al/de gênero, territorial e racial, por exemplo - o exter-
mínio do outro. Ao falarmos de aniquilamento, e mesmo
117 Thiago Teixeira, A necropolítica travestida de narrativa religiosa no Brasil, 2019.
118 Michel Foucault, Vigiar e punir: histórias de violência nas prisões, 2012, p. 32.
119 Achille Mbembe, Necropolítica, 2018. p. 38.

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que isso pareça algo grandiloquente, é urgente perceber


o quanto essa lógica tem atravessado a nossa vida mais
cotidiana e tem chegado a nós, através de múltiplas telas,
olhares, palavras e instituições.
A violência, por vezes, é anunciada por seus efeitos e
desconsiderada em suas causas. Assim, é muito comum
que vejamos as pontas dos icebergs, mas desconsideramos
as anatomias de poder que dão forma à exclusão, à pre-
cariedade e à banalização da vida. A marcação de uma
vida como precária demonstra a incapacidade de perceber
a própria fragilidade. Estamos de acordo que nós sejamos
atravessados por uma sensibilidade muito peculiar, haja
vista que um micro-organismo pode nos matar em poucos
dias. Contudo, devemos perceber que a brutalidade e a
morte, em vida, são orquestradas por dinâmicas de poder
que se escondem atrás da alma, do destino, do corpo, afe-
to ou crença. Há uma fragilidade criada como economia
do poder de afonia. Ela cria e orquestra meios de manter
sem vozes aqueles que devem manter-se — para os seus
louros — na subalternidade.
Ao se expressar e, ainda, ocupar lugares políticos,
esse sujeito marcado e composto para uma morte, em
vida, desmantela uma hierarquia atrelada à moralidade
e ciosa das manutenções restritivas e higienistas sobre
a realidade. A dominação dos corpos dá lugar ao es-
paço polifônico, dada a subversão decorrente de um
processo ético de crítica, reavaliação e transformação da
realidade. A capacidade dialógica de uma ética inflexiva
faz com que a brutalidade e o silêncio deem lugar à fala
e à escuta, forças criativas de um novo ethos. Neste a

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

diferença aparece como um valor positivo, uma estrutu-


ra que, embora não abandone a tensão, ressignifica as
consciências formadas para requerer como legítimas as
visões monológicas de mundo.
Uma ética inflexiva – da diferença – reage ao poder
de afonia, isto é, ela se alicerça na valorização da dife-
rença. Sua força está na descentralidade do poder, uma
vez que ele oscila no encontro, na fala e na escuta. O
grande desafio dessa modalidade ética está na capaci-
dade de reconhecer a existência do outro, perceber a
sua manifestação e não ter a sensação de uma perda
absoluta; sensação esta que intensifica a hostilidade de
um poder de morte. A ética inflexiva é subversiva, ou
seja, ela é uma resposta ao poder violento e restritivo.
Se o poder de violência opera como uma degradação
construída na ideia do outro como o inimigo absoluto,
a ética inflexiva requisita a tensão do encontro e do
diálogo como formadores constitutivos de um espaço
humano plural e, na mesma medida, recíproco.

Espaços para além das linhas abissais


Da ética inflexiva esperamos, com efeito, algo mais que
o reconhecimento do outro, nos moldes ensinados pela
modernidade, por aquele que é sujeito de conhecimen-
to, que é universal em direção de tudo que com ele não
se confunde. Por ela, precisamos confundir essa perversa
separação. Devemos deixar emergir uma gramática outra,
que produza deslocamentos, abandonos, desapegos. O
outro já não mais será posto apartado do sujeito; ele res-
ponderá a este na lógica de reciprocidade.

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É preciso que as linhas subalternizantes sejam vistas,


sejam percebidas, sentidas e abandonadas. Assim, abon-
donaremos essas linhas que impendem a existência de
outros saberes/seres e possibilidades.
O sujeito que fala, o que se compreende como uni-
versal, abstrato e a-histórico precisa se ver no objeto
de sua fala, confundir-se. Ao tratarmos de uma ética
subversiva, afirmamos uma composição coletiva que se
insurge contra as individualidades patológicas, contra o
eu insulado, contra aqueles modos de saber que recor-
tam e silenciam os espaços políticos. Aquela consciên-
cia, ou melhor, anticonsciência, naturaliza a violência
contra o outro, pois retroalimenta o desejo pela morte
do que é estranho.
Colocamo-nos, assim, contra as visões homogeneizado-
ras que enfraquecem as identidades e, ao mesmo tempo,
nos distanciamos das leituras de mundo que isolam e en-
fraquecem e destroem as individualidades.
Nós nos aproximamos, assim, d’outros vocábulos, no-
vas sintaxes, nos enveredamos por uma semântica deco-
lonial. Por um caminho sussurrado pela ética da diferença
como ética do encontro, artífice de um outro poder, por
muitos articulado, multilateral, inventivo, dialógico, diató-
pico. De baixo para cima; não hierarquizante; visto como
elaboração e, assim, percebido continuamente.
As linhas que o discurso laico foi capaz de (im)pôr so-
cialmente, nas práticas, nas subjetividades os posiciona-
mentos que dele derivam, devem ser vistas, percebidas,
sentidas e ressignificadas: outros modos de (con)viver. As
linhas que delimitam o discurso laico – assim como tantos

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ÉTICA, LAICIDADE E ALTERIDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
PARA OS DIREITOS HUMANOS

outros discursos na modernidade – tracejam uma incapa-


cidade de ver, de perceber, uma miopia para se vislumbrar
o possível. Elas fixam a distância intransponível, uma con-
cepção ausente entre o que se impôs como experiência
possível e todo o mais: o abismo.
É necessário que se desemaranhem as linhas que amar-
ram e fazem o saber e o ser perderem-se nas possibilida-
des estranhas, estrangeiras. É urgente que se deixe pensar
outros lugares para o ser, outros modos de encontro, luga-
res locais. Voltar ao anterior e repetir o medo isolado, o si-
lêncio não nos fará perceber o que ainda não se inventou.
É preciso ouvir todas as vozes sufocadas pela modernida-
de, é preciso fazê-las pulsar para além dos limites abissais.
É possível seguir para além da fronteira artificialmente de-
lineada, na qual nos deixaram para morrer esquecidos por
nós mesmos.
É possível perspectiva.
É possível singrar, pelo afeto, o abismo, em direção a
outros afetos.
Pelo encontro em direção aos encontros,
Para fora do eu mirando um nós.
Possibilidade.

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