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Por sobre os ombros de um viajante: ensaio

sobre o movimento, o perspectivismo e o


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obra de André Thevet

DANIEL CALAZANS PIERRI

resumo No trabalho em questão, o autor na qual me debrucei sobre a obra do viajante André
preocupou-se em formular uma interpretação de �evet, que esteve em terras brasileiras na segunda
aspectos relevantes da cosmologia Tupinambá a par- metade do século XVI, como capelão da fracassa-
tir de informações etnográ�cas esparsas que podem da expedição de colonização francesa na Baía de
ser obtidas nos relatos de André �evet, viajante Guanabara, encampada pelo almirante Villegaig-
francês que participou da expedição de colonização non. Nessa ocasião, �z um exercício de interpreta-
francesa na Baía de Guanabara, no século XVI, en- ção das informações etnográ�cas contidas em seus
campada pelo almirante Villegaignon. Foram três os relatos a respeito dos Tupi que habitavam a costa
temas privilegiados, a saber: a análise dos nove mi- em tempos de conquista2. Desses índios, conheci-
tos reproduzidos pelo cronista e suas relações com dos na literatura antropológica como Tupinambá,
o perspectivismo ameríndio, tal como abordado por muito se falou a respeito do complexo da guerra
Viveiros de Castro e com o conceito de movimento e dos rituais antropofágicos que lhes eram carac-
cosmológico, desenvolvido por Dominique Gallois, terísticos. O interesse sobre esses temas data do
e, por �m, o xamanismo Tupinambá como tendo Renascimento (basta pensar no ensaio “Os cani-
sido uma instituição privilegiada para pautar a re- bais” de Montaigne), mas no âmbito da etnologia
lação que se travou com os franceses. Esse segundo pode-se situar a obra de Florestan Fernandes sobre
ponto permitiu ao autor re�etir sobre as modalida-
des de temporalidade inscritas no pensamento Tu- muito grato também às minhas professoras Marta
pinambá e desse modo inserir-se, tangencialmente, Amoroso e Dominique Gallois que me auxiliaram em
no debate a respeito da “tradicionalidade” do profe- diferentes momentos da pesquisa e da elaboração des-
tismo Tupi-Guarani. se artigo e à Ana Lúcia Pierri pela revisão do texto.
2. Em outra parte de minha pesquisa, empreendi uma
palavras-chave Tupinambá. �evet. Et-
crítica etnológica de fontes, focada no trabalho de
nologia. Villegaignon. Cunhambebe. História Indí- �evet (Pierri 2005: 2-27), na qual analisei as con-
gena. Tupi da Costa. Xamanismo. Mitologia dições de produção de sua obra, tendo em vista seu
contexto de produção que era marcado: pelo empre-
Introdução endimento colonial francês do qual o frade fez parte,
pelas disputas religiosas que ocorreram no seio des-
se empreendimento e que foram, em grande parte,
Pretendo neste artigo-ensaio focalizar uma das
responsáveis pelo seu insucesso, por sua carreira de
partes de minha pesquisa de Iniciação Cientí�ca1, cosmógrafo na corte do rei Henrique II marcada pelo
que chamei de disputa por campo cosmográ�co e pelo
1. Pesquisa realizada sob o apoio �nanceiro da FAPESP, contexto de cisma religioso que reinava na Europa e
à qual sou grato. Agradeço também e sobretudo à que se re�ete também nessa disputa por campo. Essa
Lilia Schwarcz, cuja orientação foi imensamente im- re�exão sobre as fontes de �evet foi imprescindível
portante para mim e aos colegas de orientação pela para um bom uso das mesmas, mas ela não �gurará
discussão de uma versão preliminar desse texto. Sou aqui senão de maneira indireta.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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os mesmos Tupinambá, da década de 50, como centrou os estudos a respeito dos Tupinambá,
marco da renovação do interesse sobre a guerra e mas também de que se trata de assuntos ine-
o canibalismo. vitavelmente imbricados. Nesse terreno, pro-
Em contrapartida, procurei nesse trabalho curei, sobretudo, discutir com o modelo de
explorar outros temas menos discutidos, mas Fausto (1999) a respeito da guerra ameríndia.
não menos importantes, a respeito desses anti-
gos Tupi da Costa. Elaborarei aqui uma inter- �evet e os mitos
pretação sobre os mitos colhidos pelo viajante,
re�etindo como corroboram a concepção de Helène Clastres, em seu famoso livro A Terra
uma cosmologia em movimento, conceito que Sem Mal (1975), pergunta-se sobre o porquê de
tomo de empréstimo de Gallois (1988), que os viajantes do século XVI terem caracterizado
o desenvolveu para re�etir sobre os Wajãpi do os Tupi e os Guarani como povos sem supers-
Amapari, e que nos permite lançar uma nova tições e sem religião alguma. Ela atenta para o
luz sobre as interpretações a respeito do profe- fato de que o juízo de missionários e antropólo-
tismo ameríndio. Do mesmo modo, pensarei gos do começo do século XX a respeito de índios
os mitos reproduzidos pelo frade (em especial da mesma família lingüística foi completamente
os que compõem a série das metamorfoses) em outro, por referirem-se a eles, especialmente aos
sua relação com o perspectivismo ameríndio, Guarani, como extremamente místicos. É como
tal como descrito e analisado por Viveiros de forma de resolver o problema colocado por essa
Castro (1996). Formularei também uma inter- descontinuidade de juízos distantes no tempo
pretação a respeito do xamanismo Tupinambá que a autora desenvolve a intrigante formulação
a partir das diversas referências contidas nas de que se tratava e se trata de povos com uma re-
obras de �evet que permitem pensá-lo. Tra- ligião atéia, cuja compreensão escapou aos viajan-
ta-se não apenas de alusões diretas às cerimô- tes e missionários da época, donde a impressão,
nias de curas ou agressões operadas pelos Pajés equivocada para a autora, de que se lidava com
e Caraíbas mas, sobretudo, de descrições de povos sem qualquer religião. Essa expressão, re-
episódios envolvendo os próprios franceses, em ligião atéia, foi cunhada pela autora para ilustrar
especial, �evet e Villegaigon. As solicitações o fato de que a relação desses povos Tupi com o
que os índios faziam aos brancos, bem como as que se chama, na falta de uma palavra melhor,
atitudes dos últimos que nos primeiros desper- de “sobrenatural”, não é pautada pela centralida-
tavam indignação, permitem pensar no modo de de um deus criador. Ela defende, muito pelo
como o xamanismo foi um terreno privilegia- contrário, que o que de�ne a “religião Tupi-Gua-
do pelos Tupinambá para pautar as relações rani” é a utopia de alcançar a imortalidade sem
que travaram com os europeus (basta lembrar passar pela prova da morte, o que coloca deuses e
que eram tempos de grandes epidemias). To- homens em um mesmo plano.
mei como referência, a esse respeito, o balanço Mas essa tendência em conceber uma religião
feito recentemente por Sztutman (2005) sobre a partir da centralidade de um deus criador não
o xamanismo na região das Guianas, no qual resultou apenas na recusa por parte dos padres
o autor atenta para o seu grande rendimento em conceder aos Tupinambá uma religião. Pode
para pautar as relações interlocais. E por �m, ser atribuído mesmo a um autor como Alfred
esboço uma re�exão a respeito das relações en- Métraux em seu livro pioneiro, A Religião dos
tre o xamanismo e a guerra, tendo em vista não Tupinambá, de 1928, primeiro a articular o ma-
apenas o fato de que esse último tema sempre terial sobre os índios contemporâneos com os

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documentos seiscentistas e setecentistas. Nessa criador na construção do mundo. Isso pode ser
obra alguns dos mitos colhidos por �evet são imputado ao enfoque inicial dado por Métraux
analisados, mas a interpretação restringe-se a ex- que, para �car com a formulação de Clastres,
plorar as questões relacionadas ao papel do herói não percebeu que os Tupinambá praticavam
cultural, Maire, na criação do mundo atual. Em uma religião atéia6.
outro texto (Métraux 1946), no qual o autor se Lévi-Strauss (1991) foi o único que nos for-
detém um pouco mais sobre esses mitos, limi- neceu uma interpretação de todos os episódios
ta-se a abordá-los a partir das recorrências que reproduzidos por �evet. Seu foco, porém, não
apresentam em relação ao difundido episódio era restrito aos antigos Tupi da Costa, já que
dos gêmeos míticos3, não dando conta das varia- os relatos são discutidos no âmbito de uma
ções que cada episódio reproduzido por �evet re�exão abrangente a respeito de um atributo
oferece. Em uma análise difusionista, defende distintivo do pensamento ameríndio, qual seja,
que as versões mais ricas em detalhes são ante- o de sua “abertura para o exterior”. Aborda-
riores em relação às outras compondo seu centro rei brevemente essa questão, mas apresentarei
de dispersão, esse que o autor mesmo julga difí- uma interpretação complementar dos referidos
cil de determinar. mitos, cuja descontinuidade relativa àquela
�evet relatou em seu livro La Cosmographie proposta pelo autor deve-se antes a uma discre-
Universelle, de 1575, nove episódios míticos que pância de objetivo que a uma discordância, o
tratam de temas diversos porém correlacionados. que, creio eu, �cará su�cientemente explícito.
Dois deles referem-se a cataclismos que foram Buscando interpretar esses relatos tendo
responsáveis pela con�guração da topogra�a ter- como foco mais detido os Tupinambá, penso
restre, bem como da cosmogra�a4 atuais (1 e 3). poder demonstrar que a produção quinhentista
Dois deles abordam a separação entre a primei- e seiscentista a respeito dos índios que habita-
ra humanidade e os deuses ou heróis culturais vam a costa em tempos de conquista oferece
(2 e 4). Um narra a origem da agricultura (5) e ainda muita matéria para a re�exão etnológica,
outro a origem da discórdia entre os Tupinam- sobretudo por conta da renovação teórica que
bá e os Tomino (3). Há um ainda que discor- tem se dado na disciplina a partir dos anos 70.
re sobre a natureza dos poderes xamânicos dos De qualquer modo, se como parece, de fato pou-
Caraíbas e heróis culturais (9). Cinco deles, por ca atenção foi dada à religião atéia dos antigos
�m, versam sobre as metamorfoses e transfor- Tupinambá, a obra de André �evet se mostra
mações operadas pelos heróis culturais sobre a
primeira humanidade e que deram origem às es-
6. Não creio que religião seja a expressão mais adequa-
pécies animais e naturais (1, 2, 6, 7 e 8).5 Pouca da para caracterizar as cosmologias ameríndias. O
atenção foi dada à maioria desses relatos, tendo termo implica necessariamente na idéia de “crença”
os autores focado sobretudo no papel do herói que carrega certamente muitos problemas. Para uma
discussão em torno dos problemas em se pensar os
3. Note-se, porém, que o autor foi responsável por su- Tupinambá a partir da idéia de crença ver Viveiros de
blinhar a enorme dispersão da seqüência dos gêmeos Castro (2002a).
míticos na América indígena. Mas defendo a expressão “religião atéia” justamente
4. Emprego o termo aqui no sentido de desenho do cos- pelo seu teor propositadamente paradoxal, que per-
mos tal como o concebiam esses índios e não preten- mite subverter o sentido do termo apontando para
do me referir ao sentido empregado por �evet por o desconforto de pensar as cosmologias ameríndias a
conta da de�nição de seu ofício como cosmógrafo. partir da idéia de religião. Bem ao gosto dos Clastres,
5. Como se pode notar, um mesmo mito trata, em al- é pelo paradoxo que se constrói a re�exão, necessaria-
guns casos, de mais de um tema. mente comparativa.

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como especialmente adequada para este exercí- lugar que cada classe de seres acaba por ocupar.
cio que pretendo desenvolver aqui por conta da Uma concepção bastante difundida no cenário
enorme curiosidade do frade a respeito dos mi- ameríndio e sobre a qual falarei mais detida-
tos, das cerimônias de cura, das agressões xama- mente quando da análise do perpectivismo im-
nísticas operadas pelos Pajés e Caraíbas, en�m, plícito nesse conjunto de mitos é inicialmente
de todas essas manifestações que os cronistas7, expressa nos primeiros: trata-se da idéia de que
bons cristãos que eram, resistiam em descrever homens e deuses viviam todos num mesmo es-
com detalhes. Iniciemos, assim, com uma análi- paço e compartilhavam da mesma cultura e que
se desses relatos reproduzidos pelo frade. foi uma série de eventos nos quais os homens
puderam estabelecer uma escolha circunstan-
A conformação do universo, a separa- cial que desencadeou o processo de separação
ção entre deuses e homens e o movi- entre eles e os deuses ou heróis míticos (ver
mento cosmológico Gallois 1988; Viveiros de Castro 1986 e 2001;
entre outros).
Os quatro primeiros relatos reproduzidos Tal concepção é ilustrada pelo primeiro re-
por �evet devem ser analisados como perten- lato que fala sobre a história de Monan. Entre
centes a uma mesma série, que discorre sobre o ele e os homens, cultivava-se uma boa relação,
processo de conformação do cosmos atual e do marcada por uma convivência freqüente. Vi-
viam todos do que a terra lhes proporciona-
va, com a ajuda dos céus e, desse modo, não
7. Esse termo genérico, cronistas, usado indistintamente
para designar um conjunto extremamente diversi�- tinham necessidade de trabalhar. Isso fez com
cado de documentos quinhentistas e seiscentistas a que se alimentasse entre os homens uma certa
respeito dos índios da costa, que compreendem não mesquinhez, que os fez passar a desprezar Mo-
apenas crônicas de viagem, mas cartas, documentos de nan. Esse, indignado com a situação, resolveu
circulação restrita, compilações de outros documentos separar-se do convívio com eles indo para o céu
(como a obra de Simão de Vasconcelos), entre outros,
e vingou-se enviando à terra o fogo, Tata, que
tem causado enorme desconforto. Não obstante, há
em comum entre todos eles o fato de tratar dos índios tudo queimou. Foi esse incêndio o responsá-
e é isso que os faz interessante ao etnólogo. O termo, vel pela conformação da topogra�a atual pois
além de apagar a diferença entre os tipos de documen- enrugou toda a terra (antes plana e regular),
to, tem o agravante de se referir originalmente a um formando vales e montanhas. O único poupa-
gênero literário especí�co, o das crônicas. Assim, uti- do do desastre foi Irin-Magé, que Monan havia
lizá-lo signi�ca tratar tanto uma carta de circulação
retirado da terra na ocasião do incêndio. Ele
restrita como uma cosmogra�a, gêneros tão distintos,
como crônicas. O que se deve ter claro ao utilizar esses �ca muito irritado com esse último e reivindica
documentos é que se deve lê-los tendo em conta o gê- que faça alguma coisa. Monan, por �m, envia
nero literário ao qual se referem; do contrário corre-se chuvas abundantes, que apagam todo o fogo e
o risco de mal compreendê-los. Porém, ao escrever nos formam os rios e os mares, cujo gosto salgado é
deparamos com a necessidade de empregar um termo fruto das cinzas desse grande incêndio. A Irin-
genérico (a�nal, são todos documentos que versam so-
Magé concede uma mulher e esse casal povoa a
bre os índios) e desde a monumental obra de Flores-
tan Fernandes é o termo cronista que tem carregado nova terra que é a dos Tupinambá atuais.
esse sentido, por isso continuo a empregá-lo. O que O mito 3 também discorre sobre um cata-
importa, a meu ver, é o modo como se utilizam esses clismo responsável pela con�guração atual do
documentos e não o termo genérico empregado. Es- mundo. Porém é resultado, desta vez, do de-
crevi a respeito das especi�cidades do texto de �evet sentendimento entre dois irmãos míticos que
em outra ocasião, ver Pierri (2005).

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eram rivais. O cataclismo e o dilúvio explicam ameríndios como descendentes de São Tomé.
agora não apenas a topogra�a terrestre, mas a Isto é, porém, um capítulo à parte, que não será
eterna rivalidade entre os Tupinambá e seus matéria desse trabalho (ver Holanda 1959).
inimigos. Não tendo sido fruto do desenten- O que quero ressaltar é que os Tupinambá
dimento entre humanos e heróis míticos, mas alegavam que a pedra tinha sido colocada na
destes últimos entre si, o cataclismo e o dilúvio terra por heróis míticos que haviam se transmu-
aparecem invertidos aqui. Não é o herói que tado em estrelas e passado a viver no céu. Aqui
sobe aos céus deixando os homens em terra, marca-se o espaço dos deuses e o dos homens na
mas toda a “vila” que é erguida ao céu, os he- con�guração atual do universo. Mas além disso
róis �cando em terra. Do mesmo modo, ao eles diziam que os homens tinham sido desig-
invés do dilúvio vir dos céus, por intervenção nados como guardiões da pedra, pois se ela fosse
de um herói que deliberadamente se distancia removida de seu lugar ocorreria um novo cata-
dos homens, vem do chão após uma pancada clismo responsável pela aniquilação dessa terra.
de Tamendonare (um dos irmãos) que resulta Aponta-se, assim, para o risco de que os cata-
num rasgo na terra de onde escapa a água. E os clismos míticos voltem a ocorrer no presente.
heróis é que tiveram que fugir da água subindo Não é portanto apenas o gosto salgado das
em palmeiras bem altas (ver diagramas adian- águas do mar (pois os Tupinambá diziam que
te). Isso mostra a continuidade entre homens e as cinzas do incêndio haviam salgado as águas
deuses, pois os primeiros são descendentes dos dos mares) que o mito explica, mas uma con-
últimos. Foram esses dois heróis e suas esposas cepção acerca da dinâmica da cosmogra�a e da
que povoaram a terra. temporalidade, ou também do poder transfor-
Os mitos 4 e 2, porém, ao focarem a distri- mador das águas (�evet 1953: 38-41)8. Neste
buição do espaço do cosmos entre as diferen- sentido, esses mitos cosmogônicos não podem
tes categorias de seres e não sobre a discórdia ser vistos como ilustradores da formação de um
entre os grupos humanos, acabam ressaltando universo fossilizado, que não compreende em
a descontinuidade entre os homens e os deu- si a possibilidade de transformação, mas sim
ses. O quarto mito é o último desse conjunto como operantes na relação atual que os índios
recolhido por �evet que faz menção ao cata- tinham com o cosmos. A possibilidade aberta
clismo apontando, porém, não para o seu pa- de que ocorra um novo cataclismo corrobora
pel na formação do mundo atual, mas para sua com a interpretação de Becquelin de que “todo
função na formação dos mundos futuros. Tra- mundo sabe que o que ocorreu no passado
ta-se da explicação da “reverência” dos índios pode ocorrer agora. O tempo do mito e o tem-
a uma determinada pedra que eles teriam feito po de hoje são contemporâneos. Um evento do
questão de mostrar a �evet e que, aliás, �cou passado, de lá, pode se repetir aqui, agora, co-
bastante famosa na literatura quinhentista por migo ... (...)” (apud Gallois 1988: 55, tradução
ter se prestado às especulações teológicas sobre minha). É isso que faz com que os mitos se-
a origem dos ameríndios. Assim ocorreu, pois jam sempre atuais ou atualizáveis e que coloca
outros cronistas associaram as pegadas inscritas a con�guração do cosmos como transitória e
na pedra, das quais �evet também fala, a um
herói mítico chamado Sumé. Os padres logo o 8. As águas têm grande rendimento no pensamento
tomaram pelo apóstolo São Tomé, que teria via- ameríndio que confere freqüentemente a elas esse po-
jado por todos os cantos do mundo para pregar der de transformação. A esse respeito notar os outros
a palavra divina e explicaram assim a origem dos mitos colhidos por �evet, comentados adiante, e a
re�exão de Wright (1996: 101).

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sempre na iminência de ser superada. Portanto, sustentar a abóbada celeste, o céu cairá sobre
narrar os cataclismos do passado mítico é aten- as cabeças de todos (Albert 2002). Semelhante-
tar para a possibilidade sempre presente de que mente pensaram os Baniwa: quando os evangé-
eles possam voltar a ocorrer no presente. licos acabaram com a prática dos seus pajés, que
Isso nos remete diretamente ao conceito de eram responsáveis por “melhorar o mundo”, o
movimento cosmológico, desenvolvido por Gallois cataclismo também fez-se iminente (Wright
(1988) para caracterizar concepção semelhante 1996: 99, 111). Os Guarani de hoje também
presente entre os Wajãpi do Amapari. A autora alegam que a cruz que �ca na casa de reza está
aponta para o fato de que não se pode caracteri- lá para segurar a abóbada e impedir que o céu
zar a cosmogra�a Wajãpi a partir de uma taxio- caia em suas cabeças; o que eles tem certeza que
nomia, pois ela não se resolve em posições �xas. cedo ou tarde acontecerá (Fausto 2005). Os
O universo foi formado por diversos cataclismos Araweté, por sua vez, temem que a abóbada ce-
sucessivos no passado e o futuro será também leste tombe por conta do peso dos mortos que
marcado por eles. Assim, sua con�guração está nela habitam. Cada vez mais mortos, cada vez
sempre aberta à transformação. Esse movimen- mais pesada a plataforma celeste, o que faz com
to cosmológico institui assim uma temporalidade que em tempos de epidemia eles tenham mui-
muito diversa da teleologia cristã. A história não to medo de um novo cataclismo (Viveiros de
é o percurso em direção ao seu termo, no �m da Castro 1986). Os mesmos Wajãpi também pro-
qual o Grande Julgamento acabará por instaurar duziram recentemente discursos a respeito do
de�nitivamente o reino da salvação e a punição cataclismo. Os igarapés secaram com a abertura
dos pecadores. É, muito por outro lado, a su- da terra operada pelos garimpeiros e o céu cairá,
cessão de humanidades que serão sempre subs- mais uma vez, dizem (Gallois 1989).
tituídas pelos deuses ou mortos que habitam a Não faltariam outros exemplos para ilustrar
abóbada celeste no momento em que esta cair essa idéia: o passado foi marcado por sucessi-
sobre a cabeça dos homens atuais. Os mortos do vos cataclismos e o futuro também será. Desse
presente (que habitam a plataforma celeste) se- modo vê-se uma con�guração de um espaço-
rão os vivos do futuro, o que, ao mesmo tempo tempo na qual esses dois pólos vêm necessaria-
em que instaura uma concepção de certa forma mente imbricados e podem ser, de certa forma,
cíclica ou espiralada da história, aponta para a alternáveis entre si. O espaço das divindades ou
continuidade entre homens e deuses, tão bem dos mortos remete ao tempo de uma humani-
explorada por H. Clastres9. dade simultaneamente passada e futura: os que
Essa concepção me parece bem difundida foram os antigos habitantes da plataforma ter-
no cenário ameríndio. Entre os Yanomami, restre e hoje habitam a plataforma celeste serão
pode-se pensá-la a partir dos discursos de Davi os próximos a povoar a terra.
Kopenawa a respeito da queda do céu desenca- Creio que esse conceito de movimento cos-
deada pela epidemia shawara proveniente da fu- mológico permite lançar uma luz sobre a dis-
maça da queima do ouro e dos manufaturados cussão a respeito do profetismo Tupi-Guarani.
que acaba por eliminar os xamãs e os seus espí- Nessa perspectiva os discursos proféticos e as
ritos auxiliares da �oresta. Sem os xamãs para narrativas míticas se confundem, pois não se
trata de pensar estes últimos como explicações
9. A autora segue o mote de A. Métraux, que designa a respeito de um passado distante mas como
os Caraíbas como homens-deuses. Posteriormente constituidores de uma lógica operante no pre-
Viveiros de Castro (1986) aproveita sua re�exão para sente para lidar com o mundo atual e pautar
sublinhar os traços da “utopia Tupi-guarani”.

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a re�exão sobre o futuro. O profetismo é jus- céu) tem um estatuto totalmente diferente do
tamente isso: um desdobramento atual (que que pode ter em um messianismo cristão, no
pode se manifestar em migrações no espaço, qual a teleologia é colocada no tempo longo e
em discursos políticos ou em crises desespe- a lógica cíclica no tempo curto. Para os cristãos
radas, mas que implica necessariamente em (assim como para os ambientalistas modernos)
uma ação por parte dos índios) das virtualida- o cataclismo representa um télos, o �m (em seus
des possíveis dentro de cosmologias nas quais dois sentidos) da História. Para um Tupinambá
está presente essa concepção de movimento, (assim como para muitos outros ameríndios)
relacionada a representações complexas a res- representava o �m da humanidade atual (um
peito da cosmogra�a, envolvendo uma miríade �m entre outros). Muitas humanidades já po-
de plataformas e seres que nela habitam, mas voaram a Terra e muitos cataclismos já ocorre-
que nunca são tidas como �xas. Uma atualiza- ram. Não é tão excepcional assim esperar que
ção, necessariamente da ordem da curta dura- outro esteja na iminência de ocorrer.
ção, que se exprime sob a forma de teleologia, Não quero sugerir com isso que os movi-
visto que toda profecia remete a um �m, mas mentos proféticos não devam nada à expansão
que se inscreve dentro de uma lógica cíclica a do “sistema mundial”. De fato, a conquista co-
longo prazo, a da alternância de humanidades locou para os índios problemas novos10, cuja
que se sucedem a partir dos cataclismos. Trata- dimensão ultrapassava os limites até então co-
se de um problema que remete diretamente a nhecidos. Basta pensar mais uma vez no modo
uma discussão de Becquelin (1993) a respeito brutal através do qual as epidemias tornaram-
da transmissão da memória entre os Maya, na se um problema cotidiano na vida dos amerín-
qual a autora se questiona sobre o aparente pa- dios. Como �cará claro adiante, elas serviram
radoxo da coexistência destas duas lógicas de em grande medida à especulação dos Tupinam-
temporalidade, uma cíclica, a longo prazo, que bá11 a respeito da origem dos brancos e podem
remete à alternância de humanidades e outra ter sido vistas como indícios de que um novo
linear, que sobressai das profecias que tinham cataclismo estaria na ordem do dia. Porém,
grande centralidade na vida dos Maya. isso tudo não faz necessário imputar uma in-
Nesse sentido, a discussão em torno do �uência cristã à emergência dos movimentos
profetismo Tupi-Guarani tem muito a ganhar proféticos, já que sua possibilidade é dada de
se partir de uma perspectiva comparativa mais maneira muito forte pela lógica do movimento
ampla, considerando a lógica dentro da qual inscrita na cosmologia Tupinambá e em inú-
esses discursos e movimentos chamados pro- meras outras cosmologias ameríndias. Não vou
féticos emergem, que certamente transborda me alongar aqui nessa discussão, pois para isso
o domínio dos grupos Tupi-Guarani. Nessa seria necessário ampliar muito o exercício aqui
perspectiva, a emergência de movimentos pro- proposto. Fica sublinhada, porém, esta suges-
féticos deve-se a uma lógica muito diferente tão de pensar o profetismo relacionando-o com
da lógica cristã e não a uma in�uência tomada o conceito de movimento cosmológico, proposto
do convívio com os missionários. Essa idéia de por Gallois.
movimento cosmológico poderia ser de�nida a
partir de uma lógica cíclica de tempo a longo 10. Desde os primeiros momentos, como comentarei
prazo cujas atualizações são efetuadas na forma adiante re�etindo sobre os Tupinambá.
de teleologia, notadamente no caso das profe- 11. Assim como servem a muitos outros grupos indíge-
cias. Nesse regime, o cataclismo (a queda do nas. Ver sobretudo Albert (1992 e 2002) sobre os Ya-
nomami.

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Voltemos, assim, ao material de �evet. A homens em animais, operada também a par-


transformabilidade da cosmogra�a relaciona-se tir do desentendimento entre heróis e homens
intimamente com a transformabilidade dos se- no começo dos tempos. Em alguns desses epi-
res que habitam o cosmos. Isso permite traçar sódios (1, 2 e 6) estão associadas a separação
uma ponte entre a série dos mitos que abordam dos homens e dos deuses e a dos animais e ho-
o processo de conformação do cosmos com a mens. Há freqüentemente a alusão a um estado
outra série, que focaliza a criação das espécies de abundância plena em oposição a outro de
naturais e animais a partir de metamorfoses carência generalizada (1, 6 e 8) e também ao
sofridas pela primeira humanidade. O mito 2 papel da água nos processos de metamorfose
permite exempli�car essa passagem, pois dis- (6, 7 e 8). Mas passemos a uma análise mais
corre tanto sobre a separação entre os homens pormenorizada de cada mito antes de sistema-
e um herói cultural como enfatiza as metamor- tizá-los.
foses operadas pelo último. Resume-se assim: No mito 1, Monan vivia entre os homens
os homens, cansados das transformações que o em um estado de abundância plena, como já
herói operava manipulando poderes xamâni- mencionei. Eles o desrespeitam e ele sobe aos
cos, resolvem matá-lo e o fazem submeter-se céus, transformando-se em estrela e enviando
a uma prova que acaba resultando na sua me- fogo e água. No �nal do episódio menciona-se
tamorfose em uma estrela, indo morar no céu. que ele tratou de usar seus poderes metamorfo-
Também é um mito que ilustra a origem de seando os homens em animais de acordo com
Tupã, o trovão, uma vez que foi causado pela o ambiente, de modo a se vingar dos homens,
metamorfose de Maire-Monan em estrela. As- o que ele faz do alto dos céus.
sim, a vontade dos homens faz com que a se- Na outra versão (mito 2), Maire-Monan
paração entre eles e os deuses se dê de forma intervém sobre os homens com suas metamor-
que o herói seja lançado aos céus por vontade foses tanto para ajudá-los como para realizar o
deles, diferentemente do cataclismo gerado contrário. Eles se voltam contra o herói, pois
pelo desentendimento entre os heróis do mito achavam que ele estava abusando no uso de
3, quando são os homens que se transformam seus poderes e acabam os homens mesmos in-
em deuses e os deuses em homens, no entanto duzindo sua metamorfose em estrela. No mito
de maneira semelhante ao mito 1, no qual a 6, o herói é subjugado pelos homens e se en-
separação também é fruto do desentendimento contra, a princípio, na condição de escravo. No
entre deuses e homens, vindo o descontenta- momento seguinte, após ter se casado e tido
mento do herói, que se lança ao céu por von- um �lho, ele é abandonado pelos homens que
tade própria. As transformações desta série de passam a viver em uma carência absoluta en-
mitos podem ser resumidas pelo diagrama 1. quanto ele, sua mulher e seu �lho vivem em
abundância plena. Os homens desrespeitam-
A Origem das espécies (ou das pers- no e o herói se vinga metamorfoseando-os em
pectivas...) animais, o que ele faz estando em terra. É res-
saltado o papel da água nas operações. Logo em
Dois mitos já mencionados (1 e 2) e ou- seguida, resolve se separar do convívio com os
tros três (6, 7 e 8), tratam da metamorfose12 de
operados pelos heróis do tempo mítico e o termo
12. A partir daqui seguirei a sugestão de Gallois (1988: transformação às operações dos xamãs do tempo
74) de reservar o termo metamorfose a esses processos “atual”. Até aqui utilizei os dois termos (meio que)
de transformação de�nitiva de homens em animais indistintamente, pois assim o fez �evet.

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Diagrama 1- Conformação do universo e separação dos homens e deuses


Desentendimento entre o herói e os homens A separação se dá de baixo para cima por vontade Água e fogo provém dos
M1
por descontentamento do herói do herói céus
Desentendimento entre o herói e os homens A separação se dá de baixo para cima por vontade
M2 Não há água nem fogo
por descontentamento dos homens dos homens
A separação se dá de modo que os humanos sobem
Desentendimento de dois irmãos heróis entre Água brota da Terra mas
M3 aos céus e se transformam em deuses e os dois heróis
eles mesmos não há fogo
�cam na terra e dão origem à humanidade.

Diagrama 2 - Metamorfoses
Homens desrespeitam Homens viviam com o herói em Herói metamorfoseia, do Herói sobe ao céu se separando
M1
um herói um estado de abundância céu, os homens dos homens por vontade própria
Herói metamorfoseia, da Herói é transformado em estrela
M2 Herói destrata dos homens
- terra, os homens. por vontade dos homens
Homens passam a viver na
Homens subjugam um Herói metamorfoseia, da Herói sobe ao céu por vontade
M6 carência e o herói e sua família
herói terra, os homens na água própria
na abundância
Homem desrespeita um Herói metamorfoseia, da
M7
herói - terra, um homem na água -
Homem desrespeita a mãe Herói metamorfoseia, da
M8a1
de um herói - terra, um homem -
Os heróis mencionam um lugar O mito 9, que é continuação
Homens desrespeitam a de abundância para além de Herói metamorfoseia, da desse, mostra como os heróis
M8b
mãe de dois heróis irmãos onde vivem homens e heróis terra, os homens na água continuam a viver entre os
para ludibriá-los homens

homens e se transforma em estrela, indo viver eles a fazem em pedaços, devorando-a em um


no céu. banquete e jogando fora seus �lhos. Estes pas-
No mito 7, o herói vive entre os homens e sam a viver na aldeia entre os homens e em um
se entretém manipulando seus poderes xamâni- determinado momento se vingam, incitando-
cos para confeccionar um ornamento feito de os a ir a uma ilha, na qual abundam os víveres,
fogo. Um homem o desrespeita e ele se vinga lançando-os ao mar quando navegavam até a
transformando-o em uma galinha (Sarracou). ilha e metamorfoseando-os em jaguar. Aqui é
Também é enfatizado o papel da água na me- enfatizado o papel da água.
tamorfose. O oitavo mito, por sua vez, trata da Esta série de mitos encontra relações com a
história dos meio-irmãos míticos. Um herói primeira mencionada no que se refere à separa-
vive errante na companhia de sua mulher e de ção entre homens e deuses. O diagrama 2 tenta
seu �lho. Ele abandona os dois e estes acabam resumir essa a�rmação.
encontrando homens. No primeiro encontro, Gallois (1988: 72) mostra como, entre os
com o homem-sarigué, ele desrespeita a mãe Wajãpi do Amapari, a separação entre homens
do pequeno herói estuprando-a e engravidan- e animais, Wajãpi e outras categorias de seres,
do-a de um novo �lho. Ele é metamorfoseado se dá no plano horizontal, e que a separação
em sarigué (não se menciona a água). Em se- entre vivos e mortos, terrestre e celeste, dá-se
guida, continuando em sua jornada, a mulher no plano vertical. Viveiros de Castro (1986)
encontra com o homem-jaguar e sua aldeia e propõe, à luz da de�nição de cosmologia de

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Lévi-Strauss, que para os povos Tupi-Guarani escravo. O que acarreta em um momento no


o eixo vertical será tanto mais enfatizado quan- qual ele e sua família viveram na terra num es-
to mais for presente a atuação dos deuses na tado de abundância plena, enquanto os outros
vida cotidiana do grupo. Essa assertiva tem homens sofriam carências e morriam de fome.
como objetivo claro dar conta da transforma- Como no mito 1, o desrespeito dos homens o
ção lógica entre o sistema da sociologia canibal leva a deixar a terra por vontade própria. Por
Tupinambá, na qual o inimigo que compunha �m, outra inversão merece ser notada. No mito
o complexo da vingança era um outro grupo 2, diferentemente do mito 1, do 3 e do 6 (o
humano, para a teologia canibal Arawété, na diagrama 1 mostra isso mais detalhadamente),
qual são os Deuses Canibais que devoram os o desentendimento entre o herói e os homens
homens. se dá de tal modo que são esses últimos que se
As narrativas da gênese das distinções en- descontentam com o primeiro e não o contrá-
tre homens/deuses/animais aqui abordadas, rio. Conseqüentemente, é por vontade dos ho-
de outro modo, apontam ora para uma ante- mens que o herói se metamorfoseia em estrela
rioridade da disjunção homens/deuses ora, ao e vai morar no céu.
inverso, da separação homens/ animais. A se- O que quero destacar a respeito dessas duas
paração entre homens e deuses se expressa no séries de mitos é a sua relevância para destacar
plano vertical a partir de um desentendimento aspectos importantes da cosmologia Tupinam-
que tem origem no plano horizontal, o que é bá. O primeiro deles, como ressaltei, se refere
ilustrado por quatro dos mitos que analiso (1, à grande consonância que se pode notar entre
2, 3 e 6). Já as metamorfoses animais guardam o que Gallois caracterizou como o movimento
uma certa complexidade, como expressa o dia- na cosmologia Wajãpi e o que sugerem os mi-
grama acima. É isso que sugere a comparação tos aqui analisados. Ela defende que a lógica
entre o primeiro e os outros mitos. Esse é o do universo não pode ser apreendida por uma
único no qual os homens viviam em um estado taxionomia, pois é uma lógica que compreende
de abundância quando do desentendimento em si o movimento, já que o universo se fez e se
entre eles e o herói e isso se re�ete no processo refez através de sucessivos cataclismos e outros
de metamorfose dos homens em animais, pois ainda são esperados (1988: 84-85). Do mesmo
ele se dá (e é o único caso no conjunto) do céu modo, a posição que cada classe de seres ocu-
para a terra. Ou seja, o herói primeiro sobe ao pa na con�guração atual do universo pode ser
céu, deixando o convívio com os homens, e só trans�gurada a partir das transformações ope-
depois e lá de cima é que opera as metamorfo- radas por xamãs de diversos planos, pois são
ses. Em outras palavras, há inicialmente a se- eles que no presente possuem as capacidades
paração entre deuses e homens e, em seguida que os heróis tinham no tempo mítico.13 Nesse
e por conseqüência da primeira, a disjunção sentido cabe lembrar a proposição de Becquelin
homens/animais. Em todos os outros casos, a de que “o que ocorreu no passado pode ocorrer
separação entre homens e animais se dá hori- agora” pois o “tempo do mito e o tempo de
zontalmente, com herói e homens em terra, ou hoje são contemporâneos” (op. cit.). Isso nos
seja, antes da separação homens/deuses (ou da leva a crer que essas metamorfoses do passado,
produção desta, já que antes eles se confundiam que �zeram dos homens animais, são plausíveis
entre si). Outra transformação interessante é re- de se repetirem no presente. O que se entrevê
presentada pelo mito 3. Nesse caso, os homens
não apenas desrespeitam o herói como o fazem 13. Falarei mais detidamente do xamanismo no próximo
item.

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aqui é uma cosmogra�a colocada sempre em transformados nos primeiros representantes de


risco pela lógica do universo que é pautada várias espécies de animais e plantas, bem como
pela possibilidade de transformação. Foi algo de corpos celestes ou de acidentes geográ�cos
semelhante o que Viveiros de Castro (2001a) (...) (apud Viveiros de Castro 2001a: 356).
explorou buscando uma generalização para o
cenário ameríndio na teoria que chamou de A mitologia destes Tupinambá, que anali-
perspectivismo. Pensarei agora nas implicações so aqui, não é tão diferente assim. Vemos, nos
dessa teoria para o material de que disponho. mitos colhidos por �evet, como homens de
O perpectivismo é, para Viveiros de Castro, um passado distante se transmutaram em: sari-
um aspecto do pensamento ameríndio referen- gué e jaguar (mito 8), jacaré, tartaruga de água
te a uma concepção muito difundida dentre os doce, grilos e gafanhotos, porcos e aves (mito 6)
povos do continente de que “o mundo é habita- e galinha (mito 7) e como o herói se transfor-
do por diferentes espécies de sujeitos ou pesso- ma em estrela (mito 2). Em alguns desses casos,
as, humanas e não-humanas, que o apreendem porém, estes homens que vieram a dar origem
segundo pontos de vista distintos” (2001a: aos animais já carregavam em si aspectos de suas
347). A questão central é a de que, inversa- perspectivas atuais, como animais. Esse é o caso,
mente ao que ocorre entre nós, “ocidentais”, sobretudo, do homem-jaguar do mito 8, que
o universo é composto por diversas categorias havia comido a mãe do herói em um banque-
de seres, dotadas de um mesmo “espírito” hu- te canibal, semelhante em tudo às cerimônias
mano, que vêem o mundo, porém, a partir de antropofágicas que costumavam fazer os pró-
perspectivas diversas e estas estão relacionadas, prios Tupinambá. Assim, estes homens-jaguar
antes de mais nada, com os corpos dos seres. já carregavam no princípio dos tempos o fato
Neste sentido, homens, deuses, animais, entre de serem predadores dos humanos (mas não dos
Outros, compartilham um mesmo “modo de deuses, a�nal eles não comeram os heróis), mas
vida”, que se expressa de maneira diferente para sua cultura era essencialmente a mesma que a
cada qual. O corolário disso tudo é que todos dos homens: canibal. O jaguar continua, no
vêem a si mesmos como humanos e aos outros tempo “atual” dos Tupinambá, portando a mes-
como animais e espíritos, porém, vêem coisas ma cultura antropofágica. É o que justi�ca todas
diferentes. Para um animal de presa, o homem as precauções que eles tinham em comê-lo (�e-
pode ser um espírito enquanto seu alimento se vet 1953: 156), pedindo desculpas e tentando
manifesta como um animal de presa. Para os neutralizar ou amenizar a vingança que sabiam
deuses, os homens podem ser animais de pre- que viria, uma hora ou outra. É certo que ves-
sa, assim como para um jaguar, por exemplo. tem outra “roupa” que impossibilita aos homens
En�m, não convém aqui reproduzir o ensaio. verem-nos da mesma forma pela qual vêem a si
Destacarei apenas alguns pontos importantes. mesmos. Mas o risco não é por isso menor.
Não menos difundida no continente, e inti- De qualquer modo, esses mitos da série das
mamente relacionada com esse modelo, é a con- metamorfoses podem ser vistos como uma nar-
cepção de que no passado mítico todos os seres rativa sobre a origem das espécies, ou melhor,
eram humanos e viviam juntos. Nesse sentido, das perspectivas que habitavam o mundo atual,
“a mitologia dos Campa”, como advoga Weiss, dos Tupinambá dos tempos da conquista. Desse
conjunto de narrativas sobre a especialização dos
é, em larga medida, a história de como, um a um, seres do cosmos sobressai uma continuidade en-
os Campa primordiais foram irreversivelmente tre homens/deuses, como é claro desde Métraux

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e H. Clastres, e também entre homens e espécies nos detêm no momento atual são vistos como
naturais, como tem sido discutido por Descola tendo sido emprestados ou roubados de outros
(2005) no âmbito de um regime que o autor seres, provenientes de outros domínios. Em
chama de animista e que seria marcado pela ex- �evet, o mito 5 ilustra exatamente este aspec-
tensão dos atributos humanos aos não-humanos to, pois narra o processo de aquisição da agri-
e seria operante em uma porção grande do globo, cultura a partir de Maire-Monan. Mas o que
incluindo parte das duas Américas e da Oceania. importa agora notar é como esse conjunto de
O que, por outro lado, pode-se ter claro a partir questões têm implicações bastante palpáveis no
do perspectivismo e que é bem ilustrado por essas que tangia à vida presente dos índios. Como
narrativas, é o modo de diferenciação que sobres- ressaltei, o que ocorreu no “tempo do mito”,
sai dessas narrativas. Trata-se da questão de que a tem sempre o risco de ocorrer no “tempo vivi-
distinção entre os pontos de vista é levada a cabo do”, o que faz do espaço da �oresta um espaço
pela diferenciação entre os corpos dos seres que perigoso, pois “é sempre possível que aquilo
foi operada pelos heróis desses episódios ocorri- que, ao toparmos com ele na mata, parecia ser
dos num tempo mítico ainda marcado pela in- apenas um bicho, revele-se como o disfarce de
distinção das posições. um espírito de natureza completamente dife-
Viveiros de Castro (2001a) aborda essa rente” (Viveiros de Castro 2001a: 354). Sugeri,
questão caracterizando o perspectivismo de algumas linhas atrás, que o xamanismo ocupa-
multinaturalismo já que, neste regime, a posição va no tempo atual o papel que as metamorfo-
de humano só pode se exprimir na forma cul- ses ocupavam no tempo mítico14. Não há pois,
tural (todos as classes de seres caçam, pescam sentido falar em domesticação da natureza,
ou fazem guerra, têm seus próprios xamãs e, so- pois os seres que nela habitam podem a qual-
bretudo, vêem-se a si próprias como humanas), quer momento emergir como sujeitos e voltar-
e portanto a diferenciação, atributo do corpo, se contra o homem e a ele cabe a retaliação e a
estaria no âmbito da natureza: são efetivamente vingança. O que é necessário para lidar com os
mundos distintos que são dados a ver a cada seres da natureza (ou melhor, com os não-hu-
ponto de vista. Nota-se ainda que os sinais dessa manos) e também com os brancos, como pre-
distinção já estão dados de antemão nas narrati- tenderei mostrar, é política e guerra e é neste
vas, pois, desde o seu início, os personagens que plano que o xamanismo exercia (e exerce, em
serão objeto de metamorfose já desempenham outras paisagens) papel fundamental. É isso
um comportamento pouco comum e que é jus- que explorarei no próximo item.
tamente aquele que lhe será característico en- O xamanismo e os franceses-maire
quanto espécie animal. O homem-sarigué, por Deixei para este momento a análise do
exemplo, viola a heroína e por isso é transfor- mito 9, do qual nada falei, por ele tratar de
mado em um animal de pele fétida. Essa des- maneira muito sutil e interessante o tema do
continuidade que se instaura depois do tempo xamanismo. Esse mito é um outro episódio
mítico não excluirá no tempo atual a possibili- no qual �guram como protagonistas os mes-
dade de comunicação, muito pelo contrário. As mos irmãos míticos do mito 8, ao qual já me
perspectivas são tão imbricadas que a própria referi. Trata-se, na verdade, da seqüência desse
constituição dessa cultura universal é uma ope- último. Recapitulando, assim, lembremos que
ração que transpassa as perspectivas.
Em relação a isto, nota-se freqüentemente
que os atributos de civilização que os huma- 14. �evet, aliás, diz que os próprios Tupinambá lhe sus-
tentaram isso. Ver adiante.

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os dois irmãos eram “meio-gêmeos”15, pois um maiores problemas. O pai diz estar convencido,
era �lho da mãe deles com o caraíba Maire-Atá mas insiste para que passem por outra prova.
e o outro, mais novo, com o homem-sarigué Deveriam ir a um lugar chamado Agnen pinai-
que a havia estuprado. O episódio do mito 8 ticane, que é o lugar onde os mortos moqueiam
havia acabado quando os meio-irmãos tinham e fazem secar um peixe chamado Alain. De lá
se vingado dos homens-jaguar que devoraram deveriam trazer a isca com a qual Agnan pega-
sua mãe. É nesse ponto que começa o mito 9. va esse peixe. Assim, o mais velho propõe algo
Depois de metamorfosear todos em animais, os semelhante ao que já havia feito, enviando seu
irmãos se viram sozinhos, sem ter nem ao me- irmão em primeiro lugar. Ele vai, é estilhaçado
nos mulheres para esposar. Resolveram, então, por Agnan, seu irmão o recompõe, eles vão em
ir à procura de seu pai e passaram a vagar pelas seguida juntos ao fundo do mar e pegam a tal
terras mais longínquas sem ouvir notícia dele. isca levando-a de volta a seu pai. Maire-Atá per-
Em determinado momento da história en- cebe que eles tinham de fato ido ao fundo do
contram seu pai, que era o grande caraíba de mar, pois tinham trazido o verdadeiro alimento
uma aldeia e vivia entre os homens. Abordam- do peixe, que é a pele de um animal chamado
no, dizem que são seus �lhos e que ele deve Tapirousou. Assim, o caraíba os acolheu como
tomá-los como tal. Contam para ele toda a his- �lhos em sua casa, mas todo dia propunha a eles
tória de sua mãe, exceto o fato de que o irmão uma nova prova, com o �to de que eles “ades-
mais novo era “bastardo”. Maire-Atá, assim, trassem a magia” (e este é o ponto importante).
diz a eles que devem passar por algumas pro- Esse mito pode, a princípio, parecer o ates-
vas para mostrar que eram de fato �lhos de um tado de que os poderes xamânicos são restritos
caraíba. Primeiramente, manda-os atirar �echas à “linhagem” dos caraíbas, já que o irmão mais
com seu arco e fazê-las parar no ar. Eles o fazem, novo, que não era �lho de Maire-Atá, tinha
mas ele não se dá por satisfeito. Manda-os, en- di�culdade em operá-los. Mas o que se dá é
tão, passar três vezes e voltar pela fenda de uma justamente o contrário. Penso que o que esse
grande rocha que abria e fechava, destroçando relato destaca é o fato de que mesmo o �lho
tudo16. O primogênito diz então ao mais novo de um caraíba deve passar por uma série de
que este deveria ir primeiro, pois não era �lho procedimentos diários (que podem envolver
do caraíba e se fosse estilhaçado, ele o recom- resguardos, restrições alimentares, além dos
poria. Obedecendo-o, o irmão mais novo, logo exercícios) para conservar a substância xamâni-
que se aproxima da fenda, é despedaçado em ca e, além de tudo, que um humano qualquer
milhões de partes e seu irmão as junta, todas, e pode se tornar um xamã se passar pelos pro-
o recompõe. Faz o mesmo mais duas vezes e de- cedimentos adequados. Nesse sentido, o irmão
pois passa ele mesmo três vezes pela fenda, sem mais novo representa o xamã Tupinambá atual,
não um caraíba dos tempos míticos. Vê-se um
15. Ou que os dois meio-irmãos eram gêmeos... exemplo aqui de “horizontalidade dos poderes
16. Atento para o rendimento simbólico que a pedra tem, xamânicos” (Sztutman 2005), e que exprime o
no cenário ameríndio, na relação com os deuses. En-
fato de que o poder xamânico é, ao menos te-
tre os Araweté (Viveiros de Castro 1986) e os Wajãpi
(Gallois 1988), a plataforma celeste, onde moram os oricamente, acessível a qualquer pessoa, sendo
deuses, é feita de pedra e por conta disso corre o risco necessárias, porém, uma série de observâncias
de cair sobre a cabeça dos homens. Além disso, há en- para conservá-lo. É esse o sentido que se pode
tre os Wajãpi menção semelhante à aqui presente, nes- dar ao �nal do mito, no qual o caraíba expe-
te mito e no mito 4, de que uma pedra é responsável riente determina aos neó�tos que devem passar
pela conexão entre o céu e a terra (Gallois 1988: 61).

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por provas diárias para conservar e incrementar de agressões no momento em que se instalaram
seus poderes. as missões salesianas no território Yanomami e
Além deste mito, uma série de referências os padres foram inseridos no sistema de trocas,
esparsas nos livros de �evet permitem pensar quando seu poder xamânico passou a ser visto
sobre o xamanismo entre os Tupinambá. Na como inoperante. Porém, na primeira fase do
verdade, as passagens que mais dão elementos contato os brancos haviam sido associados a es-
para pensá-lo são os relatos de episódios vividos píritos canibais, grotescos e inumanos, cujo po-
por �evet, Villegagnon e outros brancos. São der de agressão era extremo. Do mesmo modo,
repletos de apelos trágicos aos brancos ou de a intensi�cação das epidemias ocorrida pela
pedidos pontuais. Muitos deles não se referem abertura da Perimetral Norte no território Ya-
ao xamanismo propriamente dito, mas permi- nomami, depois da instalação das missões, fez
tem ver operando claramente o modelo de cau- com que os índios reelaborassem essa primeira
salidade nele implícito, tal como descrito por re�exão, colocando novamente os brancos na
Gallois (1988) e Sztutman (2005). Adianto que condição de alteridade absoluta, cujo poder de
isso me parece uma evidência bastante concreta agressão é enorme.
de que o xamanismo foi uma instituição privi- No momento no qual �evet vivia entre eles,
legiada, através da qual os índios pautaram suas os Tupinambá, como explorarei logo adiante,
relações com os brancos. No que concerne ao inseriram os brancos no sistema de agressões
xamanismo Wajãpi, Gallois nos diz que o siste- não por serem tidos como alteridade absoluta
ma de diagnóstico tendeu a “excluir os brancos (inumana e canibal, como entre os Yanomami)
do sistema de trocas de agressões, colocando mas como descendentes dos grandes caraíbas
essa categoria de humanos numa posição inde- do tempo mítico que haviam se distanciado do
�nida, que escapa aparentemente ao sistema de convívio com eles e agora retornavam. O gran-
interpretação de doenças” (1988: 50). Defendo de poder xamânico a eles atribuído, portanto,
que, entre os Tupinambá, as coisas tenham se era tanto poder de cura como de agressão. Mas
passado de forma bastante diversa, pois os bran- voltemos alguns passos.
cos não apenas foram integrados ao complexo Começarei analisando duas passagens nas
de vingança, como já é bastante sabido (havia quais �evet faz alusão direta ao xamanismo,
grupos aliados aos franceses e outros aos portu- descrevendo uma cerimônia na qual se fazem
gueses), mas também ao sistema de diagnóstico previsões a respeito da guerra (1953: 81-82)
de doenças e de agressões e curas xamânicas. e outra na qual se procede a uma cura (idem:
Mais que isto, passaram a ocupar nesse 147). Nesta primeira, �evet diz que eles ergue-
sistema uma posição de destaque, pois foram ram uma habitação nova, na qual entrou o Ca-
vistos eles mesmos como descendentes dos raíba e onde haviam colocado uma rede branca
grandes caraíbas, com poderes superiores aos e limpa. O Caraíba, que há nove dias estava em
de seus próprios xamãs. A este respeito é in- abstinência e que havia sido lavado por uma jo-
teressante o artigo de Bruce Albert (1992), “A vem virgem, é conduzido solenemente à habi-
fumaça do metal”, que traz as transformações tação. Depois, levam a ele uma série de víveres
estruturais da re�exão dos Yanomami a res- e também cauim. Ele �ca sozinho na casa e os
peito da origem e natureza dos brancos, das outros vão para trás dela. Ele inicia uma série
epidemias e dos objetos manufaturados nas de procedimentos para invocar um espírito que
diferentes “fases do contato”. Como entre os se chama Houioulsira (mesmo nome do espíri-
Wajãpi, os brancos foram excluídos do sistema to que revela aos irmãos do mito 9 que haviam

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encontrado seu pai; ver infra). Quando chega, ras, há alusão tanto a procedimentos de sopro e
perguntam-no sobre uma série de coisas rela- sucção, tal qual descrito no parágrafo anterior,
cionadas à guerra, sobretudo, se vencerão seus como a curas por meio de pinturas corporais,
inimigos17, e isto de fato determinará se sairão da ornamentação com plumas e do pétum, que
em guerra ou em caça ou se permanecerão onde eles fumavam (idem: 100-102). Dupla possi-
estavam. Nesse mesmo sentido, �evet a�rma bilidade na cura, certamente, mas também no
(idem: 78) que os índios con�avam nos pajés diagnóstico, como sugerirei mais para a frente.
para lhes prevenirem sobre a guerra e também A doença pode ser causada tanto pela intro-
sobre os agnan; espíritos que os atormentavam missão de corpos estranhos, tal qual ilustra a
nas mais diversas situações, como relata �e- cerimônia acima descrita, como pela expulsão
vet (ver adiante). Já a outra cerimônia descrita do princípio vital do doente, como alguns ape-
aponta para uma cura xamânica. Dá também los aos brancos sugerem (ver adiante). Quanto
algumas informações sobre os procedimentos às curas por meio de revestimentos corporais,
de diagnóstico. �evet menciona que nas curas Gallois (1988: 273) sugere que devam ser pen-
os “caraíbas e pajés” (ele usa esses termos indis- sadas como transformações análogas às meta-
tintamente) dizem falar com as almas dos mor- morfoses operadas outrora pelos heróis míticos.
tos. E, além disso, dizem que quando alguém Em relação a esse aspecto, pode-se lembrar a
está doente é porque sua alma (ou princípio re�exão de Viveiros de Castro a respeito do
vital) está se queixando. Para curá-lo, chupam perspectivismo ameríndio, que mencionei an-
o braço e a parte molestada, pretendendo fazer teriormente, segundo a qual o ponto de vista
com que a doença saia. E ainda, acrescenta ele, a partir do qual as diversas categorias de seres
as mulheres en�am um pedaço de algodão na vêem o cosmos está relacionado ao seu corpo e
boca do paciente e depois o sugam dizendo ser não a seu espírito. Neste sentido, o uso de or-
o mal. Dizem também como diagnóstico, que namentos plumários ou de pinturas corporais
o doente pode ter comido qualquer fruta, peixe pode ser certamente associado a uma transfor-
ou animal morto de doença (1953: 147). mação, semelhante em tudo às metamorfoses
Dessa forma, �evet menciona a respeito míticas, salvo pelo fato de ser transitória. Pois
do xamanismo Tupinambá tanto operações de bem, segundo �evet, foram os próprios xamãs
cura como de agressão aos inimigos através de Tupinambá que lhe sugeriram esta associação,
venenos (idem: 80). Portanto, a ambigüidade pois lhe disseram que “podiam fazer metamor-
do xamã, que pode tanto fazer o “bem” como o foses e transformações como outrora fazia Mai-
“mal”, está certamente presente também entre re-Monan” (1953: 61). Tal passagem sugere,
os Tupinambá18. No que concerne as primei- em consonância com as re�exões de Gallois
(1988), Viveiros de Castro (1986, 2001a) e
17. Gallois (1988: 232) diz como os presságios têm, entre Sztutman (2005), entre outros, que a particu-
os Wajãpi, um valor interpretativo “a posteriori”. Entre laridade do xamã consiste no fato de poder ver
os Tupinambá parece que as previsões dos xamãs de fato o mundo primitivamente, tal como era antes
in�uenciavam as ações os índios, sobretudo em relação
do processo de especialização dos domínios do
ao fato de saírem ou não em guerra. Ademais, também
encaravam como sinal de mau presságio, o fato de en- cosmos, podendo, pois, operar transformações
contrarem um sapo ou uma onça no caminho e então que lhes permitem comunicar-se com esses
desertavam a expedição de guerra (1953: 272). domínios outros que interferem na vida de to-
18. Ver sobretudo Viveiros de Castro (1986) que coloca dos, mas aos quais nem todos podem ter acesso
essa ambigüidade como traço marcante da “�loso�a (voltarei a isso logo adiante).
Tupi-Guarani”.

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O que ocorre, porém, é que �evet mencio- por uma divergência completa de interesses em
na como seres que atormentam os Tupinambá relação aos índios. Os viajantes queriam saber
apenas os Agnan (além de uma referência a in- se lidavam com uma verdadeira porção da hu-
fortúnios causados pelas Chepicouares, que ele manidade ou com outra categoria de seres, se
associa às almas dos mortos – �evet 1953: 20). estes eram susceptíveis de serem convertidos
Por outro lado, menciona-os inúmeras vezes e à “verdadeira fé” ou se serviriam apenas como
nas mais diversas situações (idem: 71, 77, 78, mão-de-obra (ver Pompa 2003). Mesmo assim,
84, etc.), referindo-se às almas dos mortos, aos e é isso que quero enfatizar, creio que não seja,
espíritos que os atormentam nas �orestas, aos de maneira alguma, o caso de proclamar uma
espíritos das águas (lembrar do mito 9), etc. A impotência frente ao rico material de que se
série mítica das metamorfoses colhida por �e- dispõe em relação a esses índios, muito pelo
vet indica, como pretendi ter mostrado, um contrário.
cosmos recortado em diversos domínios, que Feita esta digressão, voltemos à análise do
interferem uns nos outros. Nesse sentido, pen- material de �evet. Como sugeri, são as passa-
so que os Agnan, de que fala �evet, re�ram-se gens nas quais se relatam episódios vividos pe-
antes à categoria genérica “efeito-espírito”, dos los brancos que mais podem servir para pensar
Wajãpi (Gallois 1988: 239), na qual estão in- o xamanismo Tupinambá. É delas que tratarei
cluídos os espíritos terrestres provenientes da agora. Na primeira, �evet diz ter ido ver um
cisão da alma na morte, que exclusivamente rei, Pinda-houssoub, que estava em seu leito
a esses últimos, como parece ser o caso entre com febre e bastante preocupado pois não ha-
os Araweté (Viveiros de Castro: 1986). Agnan, via destino pior do que morrer de uma doença.
assim, seria a manifestação de diversas catego- Roga então ao padre para que lhe cure, prome-
rias de seres no momento de uma retaliação ou tendo em troca prestar-lhe honras e dar pre-
reparação a múltiplas injúrias e designaria, sob sentes. Diz que deixaria a barba crescer, como
essa rubrica genérica, muitos seres diferentes. ele, e passaria a andar vestido. Vê-se aqui como
Infelizmente, �evet (e talvez qualquer outro o índio atribuía poderes xamânicos de cura ao
cronista) não foi su�cientemente atento para frade que frustra, porém, suas expectativas.
que tenhamos uma visão mais precisa da divisão �evet lhe diz que se quer se curar deve crer
do cosmos tal qual concebiam os Tupinambá e em Deus, deixar de crer nos caraíbas e feiticei-
dos diversos seres que ocupavam os diferentes ros, não mais se vingar, nem mais comer seus
domínios. Não temos qualquer alusão aos do- inimigos e que só assim sua alma não seria ator-
nos das espécies, como entre Wajãpi (Gallois, mentada por espíritos malignos após a morte.
op. cit.), ou aos espíritos das espécies (Viveiros E o rei teria respondido que abriria mão de
de Castro 2001a). O que se teve ter em con- tudo menos de se vingar, mesmo se Toupan, ele
ta, a partir disso, é que de fato não é possível próprio, lhe pedisse, pois se o �zesse morreria
que os cronistas nos forneçam uma imagem da de vergonha. O frade vira as costas, vai embora
cosmologia Tupinambá com o mesmo teor que e o índio então começa a bradar insultos a ele a
podem nos oferecer os etnólogos modernos a seu deus, Toupan (�evet 1953: 85).
respeito dos grupos entre os quais fazem traba- Em outro momento, Villegagnon teria ido
lho de campo. Não apenas por conta do fato de ver o mais famoso entre os “reis do país”, que
que se contrastam instrumentos de análise mui- havia matado e comido muitos. Logo que che-
to diversos (os de um cosmógrafo quinhentista gou, esse e outros morubixabas caíram doen-
e os de um etnógrafo moderno), mas também tes. Imediatamente pesaram sobre os brancos

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acusações de terem trazido o mal. Em segui- seriam efetivamente os brancos os agressores.


da, �evet fala que foi com Villegagnon ver Indignados por terem sido roubados, operaram
um rei e seus �lhos para “tocar-lhes a pele” e retaliações xamânicas através talvez de venenos,
curar-lhes. Nota-se como os próprios brancos é isso o que �evet dizia para os Tupinambá.
se prestavam a integrar-se no sistema de curas Por isso, se apressaram em trazer todos os obje-
para adquirir prestígio entre os índios. Esta ini- tos. O desespero com o qual pediam ajuda pro-
ciativa fez com que os índios esquecessem as vinha da certeza da impotência de seus xamãs
injúrias que proferiam aos brancos e viessem frente a esses caraíbas tão poderosos. Eram os
todos ao encontro de �evet, rogando: “Faça brancos que tinham proferido as agressões cau-
com que eu não morra!”. �evet retruca dizen- sadoras das doenças e, além disso, os únicos que
do que os roubos que tinham feito é que eram a podiam curá-los. Um indício desse poder era o
causa das doenças, ao que respondem trazendo fato de que podiam inclusive, pensaram, trazê-
imediatamente tudo o que tinham roubado e los de volta da morte, buscar o princípio vital
com muito medo de morrer por estarem tocan- que já se afastara, então, do envelope corporal.
do naqueles objetos (idem: 87-88). Este episó- As febres, que deixaram muitos moribundos,
dio bastante trágico, além de dar uma idéia eram causadas por isso, pelo afastamento do
do grau a que haviam chegado as epidemias princípio vital e não pela intromissão de corpos
que matavam os índios - ele diz que os índios estranhos. Frente a tamanho mal, um xamã or-
morreram em número in�nito e que não mais dinário nada poderia fazer; seria necessário um
existiam em número necessário para carregar grande caraíba, um Maire19.
madeira (idem: 86) – é uma evidência bastante Essa sugestão de que a chegada dos bran-
clara do modelo de causalidade operado pelos cos já estava prevista é bastante difundida no
Tupinambá e pelo qual pautavam sua relação cenário ameríndio e, como bem mostrou Lévi-
com os brancos. No mito 2, que analisei an- Strauss (1991), é fruto da atualização de um
teriormente, �evet fala como os Tupinambá mecanismo geral constituinte das ontologias
chamavam os franceses pelo nome Maire, que americanas caracterizadas por um “dualismo
era reservado aos caraíbas do tempo mítico e em perpétuo desequilíbrio” (Lévi Strauss 1991:
cujo poder ultrapassa em muito o dos xamãs 90). Não posso deixar de notar que o autor
atuais. Essa assertiva, bem como os episódios constrói este célebre argumento tendo com
narrados, permitem, penso eu, perceber como principal fonte de inspiração (além de parte
os brancos (ou ao menos os franceses) foram importante da base documental) a série mítica
tomados por xamãs especialmente poderosos. dos heróis culturais Tupinambá, da qual dispo-
Foram tido mesmo como descendentes dire- mos graças a �evet e que tenho comentado
tos de Maire-Monan, separado dos índios pelo neste texto. Para o autor, ela ilustra em uma
dilúvio, como a�rma o próprio �evet (1953: escala exemplar uma lógica que se reproduz
41). Isso é coerente tanto com o poder de cura nas mais diversas operações do pensamento
a eles atribuído, como o de provocar doenças ameríndio e por toda parte, dos Tupinambá
(lembrar da ambigüidade do poder xamânico), aos �ompson da América do Norte, passando
que transparece das acusações que proferem pelos Bororo e pelos Krahó. Trata-se de uma
contra Villegagnon. lógica da bipartição a partir da qual os pares
Quando �evet diz serem os roubos a cau-
sa das doenças, os índios tomam a assertiva 19. A respeito dos dois tipos de causas que podem a�o-
como um diagnóstico xamânico que atesta que rar de um diagnóstico xamânico, ver Gallois (1988:
243).

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sempre se constituem de maneira desigual for-


mando uma hierarquia. Desse tipo bem par-
ticular de dualismo sobressai uma lógica de
“abertura para o exterior”, pois de um dos ter-
mos da oposição constituir-se-á um novo par,
sempre desigual entre si, o que cria a cada des-
dobramento do sistema uma “casa vazia”, que
deve ser redobrada em um novo par. Isso que
o autor caracterizou como “um desequilíbrio
dinâmico do qual depende a estabilidade do
sistema” e que parece bastante abstrato, ganha
contornos muito mais palpáveis nessa série de
mitos recolhida por �evet.
O mito de Monan (1) narra a disjunção en-
tre criador e criaturas, o de Maire-Monan (2) a
disjunção entre índios e brancos, já que são os
últimos os verdadeiros herdeiros do herói apar-
tados dos índios, pois esses foram ingratos com
o primeiro. A discórdia entre Tamendonare e
Aricoute (3) marca a disjunção entre concida- de Lévi-Strauss e é comentada por Viveiros de
dãos e inimigos. A história de Maire-Pochy (6) Castro (2001), que recupera a re�exão do pri-
institui a oposição entre bons e maus e a histó- meiro. Trata-se de relatos extremamente díspa-
ria dos �lhos de Maire-Ata (8/9), que acabo de res, mas que têm em comum, como sugere este
analisar, marca, por este outro ângulo, a distin- último autor, o fato de situarem a origem dos
ção entre bons e maus. De um dos termos da brancos como algo que ocorreu no processo de
oposição cria-se uma outra, num dualismo que criação da humanidade e que portanto se refere
se esforça em enfatizar e produzir a diferença a uma questão já resolvida. O relato de �evet
entre os pares (idem: 65-77) e a partir de uma contrastado às narrativas dessa coletânea, todas
reprodução em cascata de sua estrutura, deixa do século XX (exceto uma, do XVII, recolhida
sempre em aberto uma casa que espera a in- também entre os Tupinambá por D’Abbeville)
trodução de um elemento novo. Não apenas permite pensar como, desde os primeiros mo-
aberto para o exterior, mas mesmo dependen- mentos da conquista, os índios já sabiam da
te dele, como mostrou Viveiros de Castro em chegada dos brancos, e que ela não foi vista
um registro distinto, abordando a dinâmica da como um problema insolúvel, o que corrobora
vingança (1986). Reproduzo aqui, para ilustrar Lévi-Strauss (1991)20.
o argumento, o esquema apresentado Lévi-
Strauss em sua História de lince, com o qual
20. Para encerrar esse comentário sobre a interpretação do
dialogam os diagramas que construí nas passa-
autor a respeito dos mitos que nos importam aqui, devo
gens anteriores deste texto (diagrama 3). notar que essa lógica em desequilíbrio da qual ele fala
Uma coletânea editada pelo ISA que reúne está também relacionada com o conceito de movimento
“doze narrativas, de grupos distintos, a respei- cosmológico que descrevi aqui. A possibilidade sempre
to da origem dos brancos” ilustra muito bem aberta de um novo cataclismo também pode ser aborda-
a abrangência e vitalidade da argumentação da a partir de um dualismo em desequilíbrio entre a pla-
taforma terrestre e a celeste ou os homens e os deuses.

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Mas voltemos ao xamanismo. �evet alude, é sempre possível que aquilo que, ao toparmos
de maneira bastante caricatural, porém precisa, com ele na mata, parecia ser apenas um bicho,
ao modelo de causalidade operado pelos Tu- revele-se como o disfarce de um espírito de na-
pinambá no xamanismo e na relação com os tureza completamente diferente (op.cit.).
diversos planos do cosmos e através do qual se
pautou também a relação com os brancos. Diz Por esses motivos que o xamanismo apa-
a respeito dos índios: “Eles estão tão mergulha- rece como uma instância privilegiada de ação
dos nessa obsessão pela vingança que se uma política, como sugere Sztutman (2005), pois é
mosca passa frente aos seus olhos querem se através dele que se pode ter acesso aos diversos
vingar e se um espinho os pica ou uma pedra os domínios do cosmos dos quais pode partir uma
acerta eles os farão em pedaços” (1953: 207). agressão cujo agente não é visível em “condi-
Esse juízo certamente depreciativo que �evet ções normais”. Sem a mútua relação entre os
faz dos índios mostra como parecia estranho a diversos domínios do cosmos não há eventos,
um europeu a idéia de que objetos da natureza pouco ocorreria mesmo no mundo dos vivos.
pudessem agir como sujeitos. Mas isso é central Nesse sentido, uma cura é sempre uma retalia-
para se pensar a noção de agência (Sztutman ção ou uma vingança já que a causa da doen-
2005) mobilizada no xamanismo e que aponta ça é sempre uma agressão. Dessa forma, o que
para uma resolução de um problema clássico Sztutman generaliza para as Guianas (2005:
na �loso�a ocidental, da relação entre sujeito 162), de que há “duas políticas jamais desim-
e objeto, que parece ter se constituído de ma- bricadas: a política do visível (ou dos homens)
neira bastante peculiar na América indígena. O e a política do invisível (ou cósmica)”, é mais
que se passa é que nada ocorre no mundo sem acertado que nunca para pensar os Tupinambá.
a intenção de um agente, que pode ou não ser O que ocorre é que a relação entre os homens se
humano, pode ser desse ou de outro domínio realizava, sobretudo (mas não exclusivamente),
do cosmos, visível ou invisível (Sztutman 2005: através da guerra e da antropofagia21, movidas
174). Neste sentido a frase de �evet não é tão ambas pelo desejo de vingança, e a relação com
fantasiosa assim, pois remete ao fato de que outros seres do cosmos se dava através do xa-
eventos que aos olhos ocidentais podem pare- manismo, no qual o ímpeto de vingança não é
cer irrepreensíveis, pois frutos de causas exter- menos presente, já que o modelo de causalidade
nas aos sujeitos, mereçam ser vingados. Assim, nele implícito marca esse imperativo da agência.
o “espinho que os pica ou a pedra que os acer- Por outro lado, a antropofagia fazia da vingança
ta” podem não ser eles mesmos os agentes da realizada na guerra algo acessível a todos, fazia
agressão, mas a manifestação de uma retaliação com que participassem da guerra não apenas os
proveniente de um domínio cósmico invisível. guerreiros. Antes de prosseguir com esta a�rma-
É por este modelo que passam as concepções de ção, deste modo, me parece necessário matizar a
morte, doença ou qualquer infortúnio fortuito relação entre o guerreiro e o xamã e conseqüen-
como esses relatados por �evet. São todos fru- temente a relação entre guerra e xamanismo.
tos da intenção de algum agente. Trata-se de O Pajé ou Caraíba é, antes de mais nada,
um cosmos povoado por quase-sujeitos (Latour responsável por gerenciar a relação com a al-
1994), ou sujeitos potenciais, no qual não faz teridade, a partir de sua capacidade de acessar
sentido a idéia de um objeto do qual a agência os domínios invisíveis do cosmos (Sztutman
não possa emergir. Como ressalta Viveiros de
Castro ao falar do perspectivismo, 21. Ver Viveiros de Castro (1986) e Viveiros de Castro e
Carneiro da Cunha (1986).

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2005; Viveiros de Castro 1986 e 2001; Gallois “homem de grande magia”. Uma luz é lançada
1988). Isso lhe confere uma posição de gran- sobre os efeitos da guerra, portanto.
de risco, pois, ao tratar com os Outros, sempre Mas, que conseqüências podem ser extraí-
está sujeito a ser sobrepujado pelo ponto de vis- das destas duas a�rmações de que os matado-
ta alheio. Como mencionei, os homens se rela- res, na medida em que abatem seus inimigos
cionavam sobretudo através da guerra, entre os em guerra, vão ganhando nomes de animais e
Tupinambá. Mas cabe agora notar que isso não acumulando magia? Penso que seja o caso de
signi�ca que apenas os homens se relacionam efetivamente levar a sério a a�rmação de Sztut-
através da guerra, pois ela também pode mo- man de que as políticas visível e invisível estão
bilizar domínios invisíveis. Isso é o que sugere sempre imbricadas. Se o guerreiro acumula ma-
Fausto (1999) em sua re�exão sobre a guerra gia é porque é capaz de controlar e domesticar
indígena a partir do conceito de predação fami- as propriedades alheias e essas não se restrin-
liarizante. O matador, ao exercer sua função, gem ao “domínio humano”. Acumular nomes
engendra uma transformação na sua relação de animais signi�ca efetivamente domesticar
com o inimigo (e portanto com o outro) que atributos dos animais, cujos espíritos são os ini-
será processada a partir de um resguardo, ao migos dos xamãs. Os inimigos colocam o guer-
cabo do qual ele deve ter sucedido em domesti- reiro em contato com os domínios invisíveis
car e controlar o espírito da vítima em proveito do cosmos, fazendo com que a distancia que o
próprio. Desse modo é responsável, analoga- separaria do xamã seja minimizada. O guerrei-
mente ao xamã, por administrar a relação com ro e o xamã estão sujeitos a riscos semelhantes
o exterior, tratando-se nesse caso do inimigo. e cumprem funções análogas. Porém, a guerra
O matador Tupinambá era submetido, em con- tinha na antropofagia um mecanismo de socia-
sonância com a interpretação de Fausto, a um lização de seus efeitos que um xamã não pode-
resguardo penoso que, segundo �evet (1953: ria almejar. Tanto a manipulação dos poderes
201), consistia em se recolher em casa e per- xamânicos como a domesticação da alteridade
manecer três dias em seu leito, sem tocar os pés do inimigo através dos resguardos eram ope-
no chão e em total abstinência. O frade não rações com as quais nem todos podiam arcar.
nos oferece uma explicação explícita a respeito Na antropofagia, porém, a guerra se estendia
dos efeitos e das causas do resguardo, limitan- e a vingança se mostrava acessível a todos. Vê-
do-se a dizer que, em o desrespeitando, o mata- se como guerra e xamanismo são duas formas
dor cairia doente e morreria. Tendo cumprido similares de política.
corretamente o resguardo, ele fazia incisões no Pois bem, o xamanismo, como a política
corpo que �guravam como marca da vingança (ou talvez porque político), é a continuação da
realizada contra (e com) os inimigos. Por outro guerra por outros meios, como poderia suge-
lado, �evet fornece outras pistas para se pensar rir Foucault. Mas se guardarmos o sentido que
os efeitos da guerra. A respeito das suas causas, guerra e política adquirem nessa frase, ela bem
disse, em consonância com os demais cronis- mereceria ser re-invertida. A guerra, assim,
tas, que tinham como objetivo o acúmulo de é também a continuação do xamanismo por
nomes. De maneira singular, porém, acrescenta outros meios. Meios estes extensíveis a todos
que os nomes viriam dos animais (1953: 53-54) através da antropofagia. �evet mesmo é quem
e que os grandes guerreiros que ‘matam muita a�rma que os índios lhe disseram que o honorá-
gente e ganham muitos nomes’ são chamados vel é morrer no estômago do inimigo, pois não
de Treresimbave, o que, segundo ele, signi�ca se pode “vingar a Morte, que ofende e mata os

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autor Daniel Calazans Pierri


Graduando em Ciências Sociais / USP

Recebido em 06/04/2006
Aceito para publicação em 21/12/2006

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 145-166, 2006

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